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Uma entrevista com Marcel Proust *

O que o publico é apenas um volume, No caminho de Swann, de um romance que terá


como título geral Em busca do tempo perdido. Gostaria de publicar tudo junto, mas não se
editam mais obras em vários volumes. Sou como alguém que tem uma tapeçaria grande
demais para os apartamentos atuais e que por isto foi obrigado a cortá-la.
Alguns jovens escritores, com os quais me simpatizo em outros pontos, preconizam, ao
contrário, uma ação breve com poucos personagens. Não é minha concepção de romance.
Como lhes dizer isso? Sabem que existe uma geometria plana e uma geometria espacial. Pois
bem, para mim, o momento não é somente da psicologia plana, mas da psicologia no tempo.
Essa substância invisível do tempo, e procurei isolá-la, mas para isto havia uma necessidade
que a experiência pudesse durar. Espero que no final de meu livro, tal fato social pequeno e
sem importância, tal como casamento entre duas pessoas que no primeiro volume pertencem
a mundos bastante diferentes, indicará que o tempo passou e assumirá a beleza de alguns dos
chumbos patinados de Versailles, que o tempo envolveu de um revestimento de esmeralda.
Então, como numa cidade que, enquanto o trem segue seu caminho enviesado,
aparece-nos tanto a nossa direita como a nossa esquerda, os diversos aspectos de um mesmo
personagem terá assumido aos olhos de um outro, a ponto de ser personagens sucessivos e
diferentes darão - mas por isso somente - a sensação do tempo decorrido. Tais personagens
revelar-se-ão mais tarde diferentes daquilo que são neste volume atual, deferente daquilo
que se acreditará ser, da mesma forma que acontece com muita frequência na vida, de resto.
E não são somente os mesmo personagens que reaparecerão ao longo desta obra sob
aspectos diversos, como em certos ciclos de Balzac, mas em um mesmo personagem - nos diz
o Sr. Proust - certas impressões profundas, quase que inconscientes.
Quanto a isso, continua o Sr. Proust, meu livro será talvez como um ensaio de uma
sequência de “Romances do Inconsciente”: não teria vergonha nenhuma de dizer de
“romances bergsonianos”, se acreditasse isso, pois em todas as épocas ocorre de a literatura
tentar se ligar - naturalmente de forma tardia - à filosofia predominante. Mas (dizendo isso)
não seria exato, pois minha obra está dominada por uma distinção entre a memória
involuntária e a memória voluntária, distinção que não somente não aparece na filosofia de
Bergson, mas é até mesmo contradita por ela.

* Entrevista concedida por Marcel Proust ao jornal Le Temps no dia 14 de novembro de


1913, antevéspera da publicação de No Caminho de Swann. Tradução de Guilherme Ignácio
da Silva. Fonte: Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve (ed. Pierre Clarae), Paris, Pléiade
Gallimard, 1971, p. 604-5.
Como o senhor estabelece essa distinção?

Para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da inteligência e dos
olhos, não dos dá, do passado, mais do que faces sem realidade; mas se um cheiro, um sabor,
encontrados em algumas circunstâncias totalmente diferentes, despertam em nós, à nossa
revelia, o passado, passamos a sentir o quanto esse passado era diferente aquilo que
acreditávamos lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com
cores sem realidade. Já neste primeiro volumes vocês verão o personagem que narra que diz:
Eu (que não sou eu) encontrar de repente, jardins, seres esquecidos, no gosto de um gole de
chá onde ele mergulhou um pedaço de madeleine; é provável que ele se lembrasse deles, mas
sem suas cores, sem seu charme; pude fazê-lo dizer como este pequeno jogo japonês onde se
mergulham pedacinhos de papel que, tão logo imersos na tigela, se esticam, ganham
contorno, tornam-se flores, personagens, todas as flores de seu jardim e as ninfeias da
Vivonne, e a boa gente da aldeia e sua casinhas e a igreja, e toda Combray e arredores, tudo
isto que assume forma e solidez saiu, cidade e jardins, de sua xícara de chá.
Vejam vocês, acredito que é apenas às lembranças involuntárias que o artista dever
requisitar a matéria-prima de sua obra. Antes de mais nada, precisamente porque elas são
involuntárias, que se formam por si próprias, atraídas pela semelhança de um minuto idêntico,
elas são as únicas a possuir uma marca de autenticidade. Depois, porque nos trazem de volta
as coisas numa dose exata de memória e esquecimento e, enfim, uma vez que nos fazem
experimentar a mesma sensação em uma circunstância completamente diferente, elas a
liberam de toda contingência, e nos dão dela a essência extratemporal, aquela que é
exatamente o conteúdo do belo estilo, esta verdade geral e necessária que somente a beleza
do estilo traduz.
Se me permitem divagar sobre meu livro, continua o Sr. Marcel Proust, é que não se
trata em nenhum grau de uma obra de raciocínio, é que os seus mais ínfimos elementos me
foram fornecidos pela minha sensibilidade, que os encontrei no fundo de mim mesmo, sem os
compreender, tendo tanto trabalho em convertê-los em algo inteligível, como se eles fossem
tão estranhos ao mundo da inteligência, como dizer?, como um motivo musical. Parece-me
que vocês podem estar pensando que se trata de meras sutilezas. Oh, não! Eu lhes asseguro:
ao contrário, de realidades. O que não tivemos de esclarecer nós mesmos, o que estava claro
antes de nós (por exemplo, idéias lógicas) tudo isso não é realmente nosso, não sabemos nem
mesmo se é real. É apenas parte do “possível” que elegemos arbitrariamente. Aliás, como
vocês sabem, isso se vê imediatamente no estilo.
O estilo não é de maneira alguma um enfeite como crêem certas pessoas, não é
sequer uma questão de técnica, é - como a cor para os pintores - uma qualidade da visão, a
revelação do universo particular que cada um de nós vê, e que não vêem os outros. O prazer
que nos dá um artista é de nos fazer conhecer um universo a mais. **

** In: PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana. 3ª edição


revisada por Olgária Matos; Prefácio, cronologia, notas e resumo Guilherme Ignácio da Silva;
Posfácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Globo, 2006. p. 510-512 (Proust Definitivo)

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