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Riso - A Blasfêmia, o Prazer, o Incorreto PDF
Riso - A Blasfêmia, o Prazer, o Incorreto PDF
A b l a s f ê m i a , o p r a z e rr,, o i n c o r rree t o
B eth Lopes
Deus é um grande artista, fez o Himalaia. Como divertindo com algo que reconhecemos e que
Deus não poderia ter filho, criou gente como nos permite fazer inúmeras analogias.
vocês. Vocês são filhos do demônio, vão para o Com essas emoções que nos desobstruem,
gueto, e nós não queremos mais ver vocês. Vão não menos sérias do que aquelas que nos en-
para o pântano ou para a floresta. E eles pensa- tristecem, provocando o choro, conseguimos
ram: Filhos do demônio... Não é tão mau. O perceber o fundo de nossas contradições. Rir do
demônio deu liberdade para a mulher... Para a jeito dos outros, da exuberância dos tipos hu-
primeira mulher, Eva. A mulher, então, foi o manos, da sua semelhança com os animais, dos
primeiro bufão. – Na Bíblia vocês podem ver o costumes diferentes. Rir de maneira discreta,
que Deus disse à mulher quando ela comeu a passando por inúmeras gradações que chegam
maçã – e completa a idéia final: Vão para o à gargalhada, o que significa, no fim de tudo,
gueto! (Gaulier, 1999). rir de nós mesmos.
Quando rimos de algo, ou de alguém, no
fundo estamos negando-os. Rimos do que é
O riso blasfemo considerado falho, incorreto, proibido. A nega-
ção é feita para poder afirmar um outro com-
R
imos por diversas razões; rimos para de- portamento, ou uma outra idéia, que conside-
monstrar alegria; rimos de satisfação, de ramos correta. Ou, ainda, talvez, para reafirmar
felicidade, de alívio. Rir dá uma sensação a verdade encoberta.
de liberdade, uma sensação real de que, O riso, como nos mostra Bergson, é uma
por alguns instantes, os problemas do co- manifestação que delimita fronteira cultural. E
tidiano deixam de existir. tal fato nos leva à constatação de que temos a
Este momento fica marcado em nossa capacidade de reconhecer códigos comporta-
memória, sempre associado a um instante de mentais comuns, os quais são regidos por uma
prazer. Contudo, antes de ser uma satisfação fí- lógica ao mesmo tempo silenciosa e potente.
sica, é um procedimento lógico de apreensão da Mas não rimos somente do que é “me-
realidade, onde o riso é o aviso sonoro – de nor”. Podemos rir também da astúcia e de
aprovação, é claro. Rimos porque estamos nos refinada construção da inteligência. Rimos da
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ironia. E, neste sentido, o jogo muda as regras. tamos primeiramente uma espécie que, por não
O sujeito que manifesta o riso não é mais aque- pertencer ao universo específico do teatro, in-
le que, com segurança, constata a sua superio- serimos entre os bufões míticos, representados
ridade lógica e existencial. Neste caso, rir é re- nas festas e rituais que se associavam ao concei-
sultante do reconhecimento de algo que não to de fertilidade e progresso. Estas figuras res-
havíamos percebido sobre nós mesmos, e ao saltavam os aspectos monstruosos, ridículos e
mesmo tempo nos coloca como portadores de sexuais das potências sagradas para “desdrama-
defeitos e imperfeições. Desta vez, nós somos o tizar a existência” (Clastres, 1986, p. 91).
objeto do qual se deve rir. Pertencem a esta categoria os bailarinos
Seja o que for que queiramos negar ou diabólicos, xamãs, sacerdotes e reis, que utiliza-
afirmar, isto se esconde atrás do riso evocado vam a imitação burlesca, nas comunidades pri-
pelos Bufões. A seu modo, eles testemunham a mitivas, para domesticar o riso pela via da ritua-
condição humana no espelho retorcido da derri- lização (Macedo, 2000, p. 36). As figuras extra-
são e carregam em seus corpos excêntricos os ordinárias destas representações ridicularizantes,
motivos risíveis que perduram através dos tem- monstros, bruxas, anões, gigantes e loucos trans-
pos e das culturas. punham o imaginário popular, misturando os
Bufão, Truão, Bobo, Histrião, Momo, elementos satíricos com as situações sérias, ali-
Charlatão, Fanfarrão; não importa o nome, o nhando valores opostos como o sagrado e o pro-
que se sabe é que é um ator a quem, antiga- fano, vida e morte, representação e realidade.
mente, se destinavam papéis de comicidade Entre tantas outras figuras da legião mí-
grosseira. O corpo deformado do Bufão confir- tica dos bufões, temos no “trickster’’1 um ante-
ma a relação que se faz dele com o mundo da passado importante do nosso personagem.
imagem. Se tentarmos resgatá-lo em nossa me- Nascido nos confins da animalidade e da huma-
mória, certamente encontraremos exemplos nidade, suas aventuras são contadas em um ciclo
precisos em outras artes. O prazer da blasfêmia de representações alegóricas de entidades bur-
serviria de motivação não só para o teatro, mas lescas. As descrições de tal personagem lembram
também para a pintura de Bosch, de Brueguel, que, além da sua aparência ambivalente, meio
de Velásquez e de Goya. Na música ele reapare- deus meio demônio, transformava-se em mu-
ceria como um personagem central da ópera lher ou em diferentes animais, envolvendo um
Rigoletto de Verdi. Estes exemplares demons- travestimento não apenas físico, mas também
tram a força da natureza visual da sua figura. espiritual. Esse ser paradoxal combina o bem e
o mal em um vaivém fantástico, alternando em
seu jogo grosseria sexual, astúcia, blasfêmia, ale-
O per curso da blasfêmia
percurso gria, provocações, encantamento, crueldade e
canibalismo. Esses atributos caracterizam-se
Revendo as diferentes manifestações do bufão como algumas das “incivilidades” que entram
presentes na história, podemos perceber, gra- na sua composição e fazem dele um modelo de
dualmente, os inúmeros aspectos que funda- imaginação bufa na forma de parábola.
mentam sua importância. Sem ter a pretensão Nascidas da mesma espécie de brincadei-
de abarcá-lo aqui em toda a sua extensão, apon- ras populares, encontradas na cultura grega ar-
1 Segundo Jean Duvignau, em “Rire et Après”, o “trickster” faz parte de um ciclo, saído da África, do
Norte da América e da Oceania, composto de histórias humorísticas que contam aventuras deste per-
sonagem burlesco.
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caica, as epifanias ao deus Dioniso se asseme- em suas múltiplas formas, sobretudo os popula-
lham. O deus do vinho, da embriaguez e do res, os quais eram encontráveis por todas as par-
prazer, ao mesmo tempo sanguinário e cruel, é tes: “jongleurs”,3 mimos, ventríloquos, equili-
o protobufão – o primeiro representante do tea- bristas, malabaristas, titeriteiros, saltimbancos,
tro que traz no conteúdo e na forma, no mito e menestréis. Nas sucessivas cortes, nos castelos
na festa, não só a expressão inspiradora da tra- entre os príncipes e reis, nos conventos e nas
gédia, mas também a da comédia, da farsa e da igrejas, junto a bispos e abades, sua função cons-
bufonaria. tituía-se em um título de ofício que nunca se
A dupla natureza de Dioniso, constituída deixava vago. Certamente o bufão era um re-
que é por contrastes de caráter e de físico, reúne quisito obrigatório de todas as comemorações.
o prazer à dor, assim como a destruição à reno- Fazendo apresentações nas casas, palácios,
vação, e o lamento à celebração. As contradi- tavernas e outros lugares públicos, destaca-se a
ções encontradas em suas ações e na sua perso- célebre figura do bobo da corte, cuja profissão se
nalidade são de ordem variada. Pode-se ver nele confundia com a de um servo. Além de servir,
as duas faces, da excitação e da loucura, e a ma- ele teria que “brilhar” distraindo os convidados,
gia do deus. Nesta imagem encontra-se o para- arremedando as atitudes do seu amo com ações,
digma da sua essência mística e de sua arte, se- palavras e chocarrices.
gundo as críticas à moralidade e à linguagem Em certo momento da história o bufão
feitas por Nietzsche. Fonte de pura desmedida parece ter desaparecido. O bobo do rei vai su-
é, ao mesmo tempo, substrato da medida do mindo aos poucos das cortes medievais. Talvez,
mundo apolíneo reunida na interioridade com- na sua forma anarquista, pelo menos, o bobo
plexa e plural do mito de Dioniso. não iria mais invadir as naves das igrejas, nas
Os vestígios deixados pelos bufões míticos datas religiosas especiais. Tampouco elegeria o
não precedem, no sentido cronológico, a pre- rei de um mundo virado de cabeça para baixo.
sença dos bufões domésticos (Gazeau, 1995, Um possível motivo pode ter sido a censura e o
p. 11). Pelo visto, estes seriam presença incon- controle do riso que a Igreja passa a exercer
testável nas festas e banquetes ao lado de sobe- quando a sociedade começa a se perceber a si
ranos até mesmo entre os povos primitivos. mesma como ridícula. O movimento doutrina-
Segundo a história dos bufões contada por Ga- dor da cristianização empreendido pela Contra-
zeau, eles não se limitavam a fazer rir, mas tam- reforma, parece ter sido o grande responsável
bém acumulavam a função do louco sábio, o pela domesticação do riso, o que implicou na
morósofo. Assim, ele confundia sentenças mo- morte das manifestações cômicas populares.
rais com anedotas pueris, ou então, ações ridí- Não se sabe ao certo, mas o bufão que emergia
culas com uma profunda reflexão filosófica. dos mundos subterrâneos da Idade Média tal-
Todo soberano teria um louco ou um parasitós 2 vez tenha sido perseguido pela Inquisição ou,
em sua mesa. Cabe recordar que um dos mais quem sabe, não tenha sobrevivido ao novo pen-
antigos e ilustres, com certeza, teria sido Esopo, samento da Renascença.
o fabulista feio e tartamudo. Na visão renascentista, o indivíduo vai ad-
Mas sem dúvida, teria sido na Idade Mé- quirir valor, e Deus, então, não será visto mais
dia e Renascimento onde se veriam os bufões como o centro do mundo, de acordo com o
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espírito da Idade Média. O foco, neste período, tre o popular e o erudito, tão peculiar neste pe-
torna-se o da valorização da consciência huma- ríodo de transição para a Época Moderna. O
na, onde o mundo é visto de modo relativizado. bobo seria eternizado de modo fecundo, na in-
O teatro, nessa esteira, descobre a perspectiva corporação de sua cultura à literatura, à pintu-
tridimensional e, portanto, o palco ilusionista ra, à música e à dramaturgia.
do qual herdamos a cena à italiana. A cultura dos bufões no Renascimento
O bobo, por certo, poderia ser revisto no iria ecoar, ainda, na literatura de Erasmo de Ro-
espetáculo popular, no circo, no teatro de varie- terdam, com o Elogio da loucura, e de Rabelais,
dades, no “vaudeville” e de outras maneiras que cuja obra serviu de investigação para a teoria de
se disseminariam em meio aos truques e ao luxo Mikhail Bakhtin sobre a cultura cômica popu-
das encenações do Renascimento, permanecen- lar que trouxe no centro da obra a figura do
do até esta nossa época de forma significativa. bufão. Na Espanha, com Miguel de Cervantes,
Diante da sofisticação das novas descober- teríamos as emblemáticas figuras tragicômicas
tas artísticas, o interesse pelo teatro clássico e de Dom Quixote e Sancho Pança, cuja dupla
pela arquitetura cênica, que florescem no perío- seria inspiradora para os palhaços, “clowns” e bu-
do renascentista, torna possível que as formas fões modernos.
populares sejam colocadas também a serviço O tema dos bufões tornar-se-ia eterno,
desse novo teatro. entretanto, na mão do mais famoso dos drama-
A “Commedia Dell’Arte” (também cha- turgos ingleses da renascença, Shakespeare. O
mada de comédia “bufonesca”), que eclodiria autor celebrizaria esta figura bizarra em uma
nesta época e cujo êxito popular era incontestá- gama bem variada de aspectos. Bufões sábios,
vel, passaria das ruas para o palácio, tamanho mágicos, excêntricos, grotescos, selvagens, en-
era o interesse que despertava a originalidade do diabrados, trapalhões, trapaceiros, bondosos,
desempenho dos atores. A sua forma sempre li- pérfidos, sombrios, falsos, bajuladores e opor-
gada ao que existe de mais legítimo da arte tea- tunistas tornam-se os personagens tão sonhados
tral, a arte dos atores, assim mesmo retomaria o pelos grandes atores.
enredo da chamada comedia nova 4 grega, entre
outras fontes, – comédias antigas, pastorais e pe-
ças populares – evidentemente, bem ao gosto da O território do cômico-sério
classe média que prosperava no início dos tem-
pos modernos. A visibilidade da bufonaria estaria definiti-
Além disso, a falta da dimensão sagrada a vamente associada, de forma dantesca, ao infer-
que se contrapõe o ator bufo do período medie- no grotesco da cultura popular da idade Média
val, de certa maneira, teria esvaziado a sua fun- e Renascimento. Os bobos, essas figuras recu-
ção. Sem o teor blasfemo que o bufão possuía peradas nos estudos sobre este período por
ao inverter a ordem cristã e todo poder domi- Bakhtin, eram consagrados pela principal festa,
nante, o humor perdia a força crítica. a do carnaval. A síntese da ação carnavalesca, a
Mas a influência do bufão seria marcada da entronização-destronização, compreende toda
em outras esferas, além dos modos de diversão espécie de ambigüidades. No centro das ambi-
do teatro popular, como resultante da fusão en- güidades está aquela ação que personifica, na fi-
4 A comédia nova grega teria sido representada por Menandro, cujo tema diferenciava-se da comédia
antiga, de Aristófanes, que criticava o cidadão como parte do Estado para ilustrar a vida cotidiana, a
natureza privada do homem grego.
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gura do falso rei do carnaval, o duplo destro- A sátira menipéia, o gênero dialogal que
nante. Ao final da festa, coroa-se o antípoda do remonta ao folclore carnavalesco, traz o aumen-
rei, o bobo. Assim, parodiar é criar o duplo to do peso cômico, não se prende a qualquer
destronante. exigência de verossimilhança, cria situações ex-
A ação bufa, analisada por Bakhtin, é uma traordinárias, cenas de escândalos e comporta-
herança repassada pela cultura popular cômica mento excêntrico, além de produzir situações de
à literatura, e pontualmente, observada por ele contrastes agudos com os jogos de oxímoros.
na obra de Rabelais e de Dostoiévski. Tal teoria Portanto, a representação “carnavalizada” conti-
torna-se fundamental para a compreensão das da na ação do ator traz uma qualidade parado-
manifestações do grotesco nas formas teatrais, xal à atuação, na medida em que reúne em um
trazendo à superfície, no conjunto das reflexões, mesmo corpo os contrários: o cômico ao sério,
a estética dos bufões. o risível ao grotesco, a ridicularização ao júbilo.
O grotesco, como uma categoria estética Inspirados nas festas carnavalescas, o compor-
que pressupõe uma comicidade degradante, tamento, o gesto e a palavra libertam-se da vida
como aquela presente nos participantes das fes- extracarnavalesca para “viver” uma vida deriva-
tas carnavalescas, tem na sua concepção um da de sua ordem habitual. Desta forma, reforça-
enfoque corporal. A monstruosidade do corpo se a idéia de representação como simulacro.
grotesco nos revela a relação entre forma inter- Duplicidade e inversões grotescas são,
na e externa. A expressão alegórica deixa entre- portanto, os mecanismos utilizados pelo bufão
ver uma visão de mundo na sua distorção física, para empreender uma representação que o par-
moral e espiritual. O grotesco é um instrumen- ticulariza, que o distingui dos demais fazedores
to da crítica que acaba com tudo, mas como a de riso. Com estes recursos o ator faz a paródia,
existência é indissolúvel, cria situações desuma- a qual consiste na mais cruel arma de denúncia
nas. As imagens disformes dos corpos grotescos das vilezas humanas.
ressaltam, concretamente, a tal “segunda” natu-
reza do homem. Associadas a uma linguagem
marginal que não se manifestava nas solenida- A passagem da máscara
des oficiais, as imagens grotescas expressavam de à sala de espetáculo
modo fundamental a vida pela lógica do mun-
do invertido ou mésalliances, segundo Bakhtin. A máscara grotesca utilizada pelo ator popular
Os elementos burlados pela inversão e, se viu apropriada, em outros diferentes momen-
portanto, permitidos durante o carnaval, trazi- tos, pela dramaturgia e encenação. Esta herança
am no espírito da bufonaria momentos reple- estética apresenta-se sob diferentes formas de
tos de paganismo e licenciosidade. Remexiam máscaras que ela vai assumindo no curso da his-
com as relações de parentesco, alteravam o tória, desde uma deformação ligeira, material,
“status” social, homogeneizando diferenças e até uma mais radical.
abolindo as hierarquias. E a profanação, princi- Com todo o seu vigor o bufão volta ao
palmente dos papéis religiosos, girava em torno espetáculo retomado pelos encenadores da es-
de três eixos: sexo, comida e poder. querda vanguardista, do princípio do século
A visão carnavalizada do mundo, para XX, num resgate da cultura do passado, do ca-
Bakhtin, é uma visão crítica da sociedade. Este ráter popular da personagem e de todo o tipo
olhar se realiza em função da eliminação das de manifestação coletiva e duradoura como a do
distâncias temporais e em favor de um tempo teatro oriental. Em busca da vivacidade e da se-
presente da “representação”, bem como em re- dução que eles exerciam no grande público, esse
lação à anulação das diferenças sociais entre os teatro valorizaria a teatralidade, o jogo, a festa e
homens. a espontaneidade do teatro popular cômico.
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a política, a religião, a guerra, a família, os ta- Esta figura engloba tantos tipos de riso,
bus e as diferenças de status. Estas combinações com os corpos deformados e deformantes debo-
conferem, deste modo, uma tendência crítica ao chando de nós, para se divertir e divertir a nós
modo farsesco de atuar. mesmos, que a sua figura nos causa estranheza.
O que esta figura da tradição cômico-popular,
presente de maneira tão incerta e ao mesmo
A experiência da alteridade tempo tão caricaturizada, pode interessar ao tra-
balho do ator contemporâneo?
Artistas, vagabundos, ladrões, loucos e margi- Seja qual for a imagem relacionada a ele
nais. Corcundas, aleijados, anões, gigantes e que, certamente, todos temos no fundo da nos-
monstros completam o grupo de sujeitos excên- sa memória, sua importância vai muito além da
tricos que desfilam no “bando dos bufões”. Na construção de uma personagem histriônica.
fragilidade do mundo particular em que se Mais do que uma máscara entre outras, o bufão
aglutinam vigora a loucura. Embora exista um é um catalisador de valores e códigos culturais,
grande número de exemplos na literatura de com capacidade de produzir processos percep-
bufões solitários, eles pertencem a uma massa tivos em termos especificamente teatrais.
aparentemente inútil. São, no entanto, o cerne À primeira vista, o Bufão apresenta regras
de uma minoria excluída socialmente que mos- básicas de contracenação, de jogo, de cumplici-
tra o vigor político nas atitudes imprevisíveis. dade e de prontidão, sem elaborações artísticas
A esse coletivo pertencem os negros, os mais complexas. Sua principal meta é trazer di-
gays, as mulheres, as prostitutas, os doentes, os versão ao teatro. Somente pelo prazer do jogo
aleijados, os despatriados, os sem-terra, os sem ele usa da blasfêmia, que é a mais radical nega-
teto e todos aqueles que são inadequados na so- ção da ordem social. Para blasfemar, é preciso
ciedade. Indiferente à sua adversidade, o “ban- que o ator tenha do que blasfemar. Pois quem
do” se diverte zombando da hipocrisia e me- blasfema não é o bufão, mas o ator que veste a
diocridade humana. Eles se divertem muito sua máscara. O bufão é o veículo, a forma dissi-
satirizando as autoridades. Como na sociedade mulada para desfiar a crítica contra nós mesmos,
em que se espelham para debochar, eles são co- contra a sociedade em que vivemos.
mandados por um chefe, a quem todos se ale- A técnica do Bufão tem como eixo o de-
gram em obedecer. Eles zombam até do “in- senvolvimento da capacidade improvisacional,
zombável”: da guerra, da fome do mundo, de e tem segredos e regras que atuam numa exten-
Deus (Lecoq, 1997, p. 35). são que vai do farsesco ao trágico. O corpo de-
A ambigüidade da sua figura, portanto, formado constitui-se numa máscara de corpo
não cessa nas energias que o potencializam, ou inteiro, plasmada numa alegoria que implica em
no físico que o caracteriza, mas também forra o inúmeras conotações e cujos sentidos deixam
fundo de suas convicções acerca do mundo em entrever a visão de mundo não só da persona-
que vive. O bufão representa o ser humano em gem, mas também do ator. O corpo aleijado,
estado bruto – amoral, complexo, múltiplo – deformado e defeituoso pode ser materializado
podendo ser comparado, ao mesmo tempo, ao por um figurino exagerado e descomunal. Mas
veneno e à cura. Haja vista que na Idade Mé- sem o figurino, o ator pode reconstruir e des-
dia, onde o pensamento se orientava pela or- truir o comportamento dos homens somente
dem divina, era comparável ao diabo pela apa- com a força expressiva de seu corpo.
rência medonha que em todos provocava asco, O jogo da máscara oculta uma duplicida-
medo e riso e, ao mesmo tempo, era tido como de inerente, a do ator e a do personagem, cuja
um talismã da sorte cuja presença, acreditavam, natureza pressupõe a existência de um outro,
afastava os males.
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5 Conceito desenvolvido por Jacó Guinsburg, durante a orientação da tese de doutorado desta autora.
Um exemplo de forma nadificante está em Dioniso, que funde em seu mito o trágico e o cômico.
6 No texto para Bufões, de Phillipe Gaulier, chamado “Celui-ci n’est pas mon fils”, a Santíssima Trinda-
de – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – são transformados em Bufões. Na associação de Deus com um
ser sanguinário e cruel, infantil e caprichoso, na humanização da criatura divina, novamente o cômico
e o trágico se fundem, o que implica em uma forma nadificante, já que se perde o sentido original das
divindades para exprimir uma realidade amoral, ambígua e estranha. Esse texto tem uma tradução
portuguesa feita por Fernando Kinas, que também é diretor e professor de teatro.
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Referências bibliográficas
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