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A blasfêmia, o prazer, o incorreto

A b l a s f ê m i a , o p r a z e rr,, o i n c o r rree t o

B eth Lopes

Deus é um grande artista, fez o Himalaia. Como divertindo com algo que reconhecemos e que
Deus não poderia ter filho, criou gente como nos permite fazer inúmeras analogias.
vocês. Vocês são filhos do demônio, vão para o Com essas emoções que nos desobstruem,
gueto, e nós não queremos mais ver vocês. Vão não menos sérias do que aquelas que nos en-
para o pântano ou para a floresta. E eles pensa- tristecem, provocando o choro, conseguimos
ram: Filhos do demônio... Não é tão mau. O perceber o fundo de nossas contradições. Rir do
demônio deu liberdade para a mulher... Para a jeito dos outros, da exuberância dos tipos hu-
primeira mulher, Eva. A mulher, então, foi o manos, da sua semelhança com os animais, dos
primeiro bufão. – Na Bíblia vocês podem ver o costumes diferentes. Rir de maneira discreta,
que Deus disse à mulher quando ela comeu a passando por inúmeras gradações que chegam
maçã – e completa a idéia final: Vão para o à gargalhada, o que significa, no fim de tudo,
gueto! (Gaulier, 1999). rir de nós mesmos.
Quando rimos de algo, ou de alguém, no
fundo estamos negando-os. Rimos do que é
O riso blasfemo considerado falho, incorreto, proibido. A nega-
ção é feita para poder afirmar um outro com-

R
imos por diversas razões; rimos para de- portamento, ou uma outra idéia, que conside-
monstrar alegria; rimos de satisfação, de ramos correta. Ou, ainda, talvez, para reafirmar
felicidade, de alívio. Rir dá uma sensação a verdade encoberta.
de liberdade, uma sensação real de que, O riso, como nos mostra Bergson, é uma
por alguns instantes, os problemas do co- manifestação que delimita fronteira cultural. E
tidiano deixam de existir. tal fato nos leva à constatação de que temos a
Este momento fica marcado em nossa capacidade de reconhecer códigos comporta-
memória, sempre associado a um instante de mentais comuns, os quais são regidos por uma
prazer. Contudo, antes de ser uma satisfação fí- lógica ao mesmo tempo silenciosa e potente.
sica, é um procedimento lógico de apreensão da Mas não rimos somente do que é “me-
realidade, onde o riso é o aviso sonoro – de nor”. Podemos rir também da astúcia e de
aprovação, é claro. Rimos porque estamos nos refinada construção da inteligência. Rimos da

Beth Lopes é diretora e professora de Interpretação do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

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ironia. E, neste sentido, o jogo muda as regras. tamos primeiramente uma espécie que, por não
O sujeito que manifesta o riso não é mais aque- pertencer ao universo específico do teatro, in-
le que, com segurança, constata a sua superio- serimos entre os bufões míticos, representados
ridade lógica e existencial. Neste caso, rir é re- nas festas e rituais que se associavam ao concei-
sultante do reconhecimento de algo que não to de fertilidade e progresso. Estas figuras res-
havíamos percebido sobre nós mesmos, e ao saltavam os aspectos monstruosos, ridículos e
mesmo tempo nos coloca como portadores de sexuais das potências sagradas para “desdrama-
defeitos e imperfeições. Desta vez, nós somos o tizar a existência” (Clastres, 1986, p. 91).
objeto do qual se deve rir. Pertencem a esta categoria os bailarinos
Seja o que for que queiramos negar ou diabólicos, xamãs, sacerdotes e reis, que utiliza-
afirmar, isto se esconde atrás do riso evocado vam a imitação burlesca, nas comunidades pri-
pelos Bufões. A seu modo, eles testemunham a mitivas, para domesticar o riso pela via da ritua-
condição humana no espelho retorcido da derri- lização (Macedo, 2000, p. 36). As figuras extra-
são e carregam em seus corpos excêntricos os ordinárias destas representações ridicularizantes,
motivos risíveis que perduram através dos tem- monstros, bruxas, anões, gigantes e loucos trans-
pos e das culturas. punham o imaginário popular, misturando os
Bufão, Truão, Bobo, Histrião, Momo, elementos satíricos com as situações sérias, ali-
Charlatão, Fanfarrão; não importa o nome, o nhando valores opostos como o sagrado e o pro-
que se sabe é que é um ator a quem, antiga- fano, vida e morte, representação e realidade.
mente, se destinavam papéis de comicidade Entre tantas outras figuras da legião mí-
grosseira. O corpo deformado do Bufão confir- tica dos bufões, temos no “trickster’’1 um ante-
ma a relação que se faz dele com o mundo da passado importante do nosso personagem.
imagem. Se tentarmos resgatá-lo em nossa me- Nascido nos confins da animalidade e da huma-
mória, certamente encontraremos exemplos nidade, suas aventuras são contadas em um ciclo
precisos em outras artes. O prazer da blasfêmia de representações alegóricas de entidades bur-
serviria de motivação não só para o teatro, mas lescas. As descrições de tal personagem lembram
também para a pintura de Bosch, de Brueguel, que, além da sua aparência ambivalente, meio
de Velásquez e de Goya. Na música ele reapare- deus meio demônio, transformava-se em mu-
ceria como um personagem central da ópera lher ou em diferentes animais, envolvendo um
Rigoletto de Verdi. Estes exemplares demons- travestimento não apenas físico, mas também
tram a força da natureza visual da sua figura. espiritual. Esse ser paradoxal combina o bem e
o mal em um vaivém fantástico, alternando em
seu jogo grosseria sexual, astúcia, blasfêmia, ale-
O per curso da blasfêmia
percurso gria, provocações, encantamento, crueldade e
canibalismo. Esses atributos caracterizam-se
Revendo as diferentes manifestações do bufão como algumas das “incivilidades” que entram
presentes na história, podemos perceber, gra- na sua composição e fazem dele um modelo de
dualmente, os inúmeros aspectos que funda- imaginação bufa na forma de parábola.
mentam sua importância. Sem ter a pretensão Nascidas da mesma espécie de brincadei-
de abarcá-lo aqui em toda a sua extensão, apon- ras populares, encontradas na cultura grega ar-

1 Segundo Jean Duvignau, em “Rire et Après”, o “trickster” faz parte de um ciclo, saído da África, do
Norte da América e da Oceania, composto de histórias humorísticas que contam aventuras deste per-
sonagem burlesco.

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caica, as epifanias ao deus Dioniso se asseme- em suas múltiplas formas, sobretudo os popula-
lham. O deus do vinho, da embriaguez e do res, os quais eram encontráveis por todas as par-
prazer, ao mesmo tempo sanguinário e cruel, é tes: “jongleurs”,3 mimos, ventríloquos, equili-
o protobufão – o primeiro representante do tea- bristas, malabaristas, titeriteiros, saltimbancos,
tro que traz no conteúdo e na forma, no mito e menestréis. Nas sucessivas cortes, nos castelos
na festa, não só a expressão inspiradora da tra- entre os príncipes e reis, nos conventos e nas
gédia, mas também a da comédia, da farsa e da igrejas, junto a bispos e abades, sua função cons-
bufonaria. tituía-se em um título de ofício que nunca se
A dupla natureza de Dioniso, constituída deixava vago. Certamente o bufão era um re-
que é por contrastes de caráter e de físico, reúne quisito obrigatório de todas as comemorações.
o prazer à dor, assim como a destruição à reno- Fazendo apresentações nas casas, palácios,
vação, e o lamento à celebração. As contradi- tavernas e outros lugares públicos, destaca-se a
ções encontradas em suas ações e na sua perso- célebre figura do bobo da corte, cuja profissão se
nalidade são de ordem variada. Pode-se ver nele confundia com a de um servo. Além de servir,
as duas faces, da excitação e da loucura, e a ma- ele teria que “brilhar” distraindo os convidados,
gia do deus. Nesta imagem encontra-se o para- arremedando as atitudes do seu amo com ações,
digma da sua essência mística e de sua arte, se- palavras e chocarrices.
gundo as críticas à moralidade e à linguagem Em certo momento da história o bufão
feitas por Nietzsche. Fonte de pura desmedida parece ter desaparecido. O bobo do rei vai su-
é, ao mesmo tempo, substrato da medida do mindo aos poucos das cortes medievais. Talvez,
mundo apolíneo reunida na interioridade com- na sua forma anarquista, pelo menos, o bobo
plexa e plural do mito de Dioniso. não iria mais invadir as naves das igrejas, nas
Os vestígios deixados pelos bufões míticos datas religiosas especiais. Tampouco elegeria o
não precedem, no sentido cronológico, a pre- rei de um mundo virado de cabeça para baixo.
sença dos bufões domésticos (Gazeau, 1995, Um possível motivo pode ter sido a censura e o
p. 11). Pelo visto, estes seriam presença incon- controle do riso que a Igreja passa a exercer
testável nas festas e banquetes ao lado de sobe- quando a sociedade começa a se perceber a si
ranos até mesmo entre os povos primitivos. mesma como ridícula. O movimento doutrina-
Segundo a história dos bufões contada por Ga- dor da cristianização empreendido pela Contra-
zeau, eles não se limitavam a fazer rir, mas tam- reforma, parece ter sido o grande responsável
bém acumulavam a função do louco sábio, o pela domesticação do riso, o que implicou na
morósofo. Assim, ele confundia sentenças mo- morte das manifestações cômicas populares.
rais com anedotas pueris, ou então, ações ridí- Não se sabe ao certo, mas o bufão que emergia
culas com uma profunda reflexão filosófica. dos mundos subterrâneos da Idade Média tal-
Todo soberano teria um louco ou um parasitós 2 vez tenha sido perseguido pela Inquisição ou,
em sua mesa. Cabe recordar que um dos mais quem sabe, não tenha sobrevivido ao novo pen-
antigos e ilustres, com certeza, teria sido Esopo, samento da Renascença.
o fabulista feio e tartamudo. Na visão renascentista, o indivíduo vai ad-
Mas sem dúvida, teria sido na Idade Mé- quirir valor, e Deus, então, não será visto mais
dia e Renascimento onde se veriam os bufões como o centro do mundo, de acordo com o

2 Convidado, farsante, produtor de riso.


3 Artistas profissionais, que possuíam qualidades múltiplas, eram capazes de cantar, tocar, atuar, dançar,
recitar e fazer acrobacias.

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espírito da Idade Média. O foco, neste período, tre o popular e o erudito, tão peculiar neste pe-
torna-se o da valorização da consciência huma- ríodo de transição para a Época Moderna. O
na, onde o mundo é visto de modo relativizado. bobo seria eternizado de modo fecundo, na in-
O teatro, nessa esteira, descobre a perspectiva corporação de sua cultura à literatura, à pintu-
tridimensional e, portanto, o palco ilusionista ra, à música e à dramaturgia.
do qual herdamos a cena à italiana. A cultura dos bufões no Renascimento
O bobo, por certo, poderia ser revisto no iria ecoar, ainda, na literatura de Erasmo de Ro-
espetáculo popular, no circo, no teatro de varie- terdam, com o Elogio da loucura, e de Rabelais,
dades, no “vaudeville” e de outras maneiras que cuja obra serviu de investigação para a teoria de
se disseminariam em meio aos truques e ao luxo Mikhail Bakhtin sobre a cultura cômica popu-
das encenações do Renascimento, permanecen- lar que trouxe no centro da obra a figura do
do até esta nossa época de forma significativa. bufão. Na Espanha, com Miguel de Cervantes,
Diante da sofisticação das novas descober- teríamos as emblemáticas figuras tragicômicas
tas artísticas, o interesse pelo teatro clássico e de Dom Quixote e Sancho Pança, cuja dupla
pela arquitetura cênica, que florescem no perío- seria inspiradora para os palhaços, “clowns” e bu-
do renascentista, torna possível que as formas fões modernos.
populares sejam colocadas também a serviço O tema dos bufões tornar-se-ia eterno,
desse novo teatro. entretanto, na mão do mais famoso dos drama-
A “Commedia Dell’Arte” (também cha- turgos ingleses da renascença, Shakespeare. O
mada de comédia “bufonesca”), que eclodiria autor celebrizaria esta figura bizarra em uma
nesta época e cujo êxito popular era incontestá- gama bem variada de aspectos. Bufões sábios,
vel, passaria das ruas para o palácio, tamanho mágicos, excêntricos, grotescos, selvagens, en-
era o interesse que despertava a originalidade do diabrados, trapalhões, trapaceiros, bondosos,
desempenho dos atores. A sua forma sempre li- pérfidos, sombrios, falsos, bajuladores e opor-
gada ao que existe de mais legítimo da arte tea- tunistas tornam-se os personagens tão sonhados
tral, a arte dos atores, assim mesmo retomaria o pelos grandes atores.
enredo da chamada comedia nova 4 grega, entre
outras fontes, – comédias antigas, pastorais e pe-
ças populares – evidentemente, bem ao gosto da O território do cômico-sério
classe média que prosperava no início dos tem-
pos modernos. A visibilidade da bufonaria estaria definiti-
Além disso, a falta da dimensão sagrada a vamente associada, de forma dantesca, ao infer-
que se contrapõe o ator bufo do período medie- no grotesco da cultura popular da idade Média
val, de certa maneira, teria esvaziado a sua fun- e Renascimento. Os bobos, essas figuras recu-
ção. Sem o teor blasfemo que o bufão possuía peradas nos estudos sobre este período por
ao inverter a ordem cristã e todo poder domi- Bakhtin, eram consagrados pela principal festa,
nante, o humor perdia a força crítica. a do carnaval. A síntese da ação carnavalesca, a
Mas a influência do bufão seria marcada da entronização-destronização, compreende toda
em outras esferas, além dos modos de diversão espécie de ambigüidades. No centro das ambi-
do teatro popular, como resultante da fusão en- güidades está aquela ação que personifica, na fi-

4 A comédia nova grega teria sido representada por Menandro, cujo tema diferenciava-se da comédia
antiga, de Aristófanes, que criticava o cidadão como parte do Estado para ilustrar a vida cotidiana, a
natureza privada do homem grego.

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gura do falso rei do carnaval, o duplo destro- A sátira menipéia, o gênero dialogal que
nante. Ao final da festa, coroa-se o antípoda do remonta ao folclore carnavalesco, traz o aumen-
rei, o bobo. Assim, parodiar é criar o duplo to do peso cômico, não se prende a qualquer
destronante. exigência de verossimilhança, cria situações ex-
A ação bufa, analisada por Bakhtin, é uma traordinárias, cenas de escândalos e comporta-
herança repassada pela cultura popular cômica mento excêntrico, além de produzir situações de
à literatura, e pontualmente, observada por ele contrastes agudos com os jogos de oxímoros.
na obra de Rabelais e de Dostoiévski. Tal teoria Portanto, a representação “carnavalizada” conti-
torna-se fundamental para a compreensão das da na ação do ator traz uma qualidade parado-
manifestações do grotesco nas formas teatrais, xal à atuação, na medida em que reúne em um
trazendo à superfície, no conjunto das reflexões, mesmo corpo os contrários: o cômico ao sério,
a estética dos bufões. o risível ao grotesco, a ridicularização ao júbilo.
O grotesco, como uma categoria estética Inspirados nas festas carnavalescas, o compor-
que pressupõe uma comicidade degradante, tamento, o gesto e a palavra libertam-se da vida
como aquela presente nos participantes das fes- extracarnavalesca para “viver” uma vida deriva-
tas carnavalescas, tem na sua concepção um da de sua ordem habitual. Desta forma, reforça-
enfoque corporal. A monstruosidade do corpo se a idéia de representação como simulacro.
grotesco nos revela a relação entre forma inter- Duplicidade e inversões grotescas são,
na e externa. A expressão alegórica deixa entre- portanto, os mecanismos utilizados pelo bufão
ver uma visão de mundo na sua distorção física, para empreender uma representação que o par-
moral e espiritual. O grotesco é um instrumen- ticulariza, que o distingui dos demais fazedores
to da crítica que acaba com tudo, mas como a de riso. Com estes recursos o ator faz a paródia,
existência é indissolúvel, cria situações desuma- a qual consiste na mais cruel arma de denúncia
nas. As imagens disformes dos corpos grotescos das vilezas humanas.
ressaltam, concretamente, a tal “segunda” natu-
reza do homem. Associadas a uma linguagem
marginal que não se manifestava nas solenida- A passagem da máscara
des oficiais, as imagens grotescas expressavam de à sala de espetáculo
modo fundamental a vida pela lógica do mun-
do invertido ou mésalliances, segundo Bakhtin. A máscara grotesca utilizada pelo ator popular
Os elementos burlados pela inversão e, se viu apropriada, em outros diferentes momen-
portanto, permitidos durante o carnaval, trazi- tos, pela dramaturgia e encenação. Esta herança
am no espírito da bufonaria momentos reple- estética apresenta-se sob diferentes formas de
tos de paganismo e licenciosidade. Remexiam máscaras que ela vai assumindo no curso da his-
com as relações de parentesco, alteravam o tória, desde uma deformação ligeira, material,
“status” social, homogeneizando diferenças e até uma mais radical.
abolindo as hierarquias. E a profanação, princi- Com todo o seu vigor o bufão volta ao
palmente dos papéis religiosos, girava em torno espetáculo retomado pelos encenadores da es-
de três eixos: sexo, comida e poder. querda vanguardista, do princípio do século
A visão carnavalizada do mundo, para XX, num resgate da cultura do passado, do ca-
Bakhtin, é uma visão crítica da sociedade. Este ráter popular da personagem e de todo o tipo
olhar se realiza em função da eliminação das de manifestação coletiva e duradoura como a do
distâncias temporais e em favor de um tempo teatro oriental. Em busca da vivacidade e da se-
presente da “representação”, bem como em re- dução que eles exerciam no grande público, esse
lação à anulação das diferenças sociais entre os teatro valorizaria a teatralidade, o jogo, a festa e
homens. a espontaneidade do teatro popular cômico.

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O papel do grotesco seria resgatado na O cinema, no desenrolar dos aconteci-


prática de Stanislavski, Meyerhold, Vakhtangov, mentos artísticos renovados, abrigaria as mais
Brecht e, de certa forma, Artaud também, ao interessantes inserções destes bufões soturnos e
lado das idéias que levaram, no conjunto, às rea- loucos das telas. Aparentemente saídos de um
ções ao Naturalismo e ao teatro burguês. Para quadro de Goya, como no exemplo do Dr. Ca-
eles a máscara se impõe como símbolo do jogo ligari, do diretor Robert Wiene, personagens
do ator e o grotesco, sugerindo gestos exagera- grotescos habitam cenários que estendem nos
dos e distantes das ações cotidianas, dá à expres- ângulos tortuosos os símbolos da deformação
são teatral um sentido dialético. psicótica. Esses monstros modernos do cinema
A força da gestualidade e da voz grotesca alemão seriam vistos de vários ângulos pelos di-
seria a tônica do modo de atuar dos atores dos retores da época e se tornariam ícones da arte
movimentos de vanguarda da virada do século, cinematográfica deste século, pela forma esti-
o Expressionismo, e depois, o Futurismo, Da- lizada e pela atuação grotesca. Podemos assistir,
daísmo e Surrealismo. Desde a polêmica mon- ainda hoje, em cineclubes especializados, às
tagem de Ubu-rei, de Alfred Jarry, em 1896, os obras exemplares de Murnau ou Fritz Lang.
dadaístas, futuristas e surrealistas escandaliza- Na variada dramaturgia do decorrer do
riam os ícones tradicionais do teatro. O espíri- século se pode ver também as múltiplas faces
to de escárnio do Futurismo e do Surrealismo, da figura do bufão. Na Itália, o Teatro do
a desintegração da linguagem, a falta de com- Grottesco abordaria o tema com Luigi Chiarelli,
promisso com a verossimilhança, a explosão da Antonelli e Cavacchioli, Fausto Maria Martini,
noção de personagem, a fragmentação do espa- Nicodemi, Rosso di San Secondo e o mais
ço e da dramaturgia (Aslan, 1994, p. 91) colo- famoso deles, Luigi Pirandello, os quais se
cariam em xeque o próprio sentido do teatro. fundiam na idéia de que o homem possui uma
Na prática desmistificadora do espetáculo e na máscara ou aparência, que lhe permite viver em
teoria provocadora dos encenadores da vanguar- sociedade, sob a qual se oculta o verdadeiro
da histórica, o espírito niilista e zombeteiro com rosto.
que estes artistas tecem suas críticas é muito Para outros autores, a bufonaria aparece
próximo ao dos bufões. acentuando o cômico, em outros, o fantástico e
O Expressionismo, movimento que flo- o sombrio ou, ainda, desarticulado como em
resce a partir de 1910, principalmente na Ale- Ionesco, ou existencial como em Beckett. Mas
manha, como uma apocalíptica reação de jovens a diversidade de seu ser demonstra em quantas
artistas, mediante um mundo desmoronado formas ele pode aparecer, se metamorfosear, ou
deixado pela Primeira Guerra Mundial, utiliza- mesmo, se disfarçar.
ria o grotesco para expressar a natureza bestial Às vezes ele aparece como personagem,
do homem que aflora sob sua aparência social. em outras como uma máscara do ator que traz
O Expressionismo rejeitaria, principalmente, o um espírito inquieto e subtérreo às propostas do
naturalismo e, assim, traria um teatro que pro- artista. Mas grande parte destas formas teatrais,
jeta as forças da alma, de modo anarquista e de fato, foi beber na fonte do Teatro de Varie-
blasfemo que grita violentamente como no cé- dades, no Circo, no Vaudeville, na Commedia
lebre quadro de Munch. Os mesmos fantasmas Dell’Arte e na Ópera de Pequim, valorizando
e visões fantásticas do romantismo são retoma- assim o papel do popular. No artista popular se
dos e são transformados em estados psíquicos, encontrariam os atributos para garantir aos ato-
materializados pelos corpos deformados de per- res versatilidade, espírito habilidoso, prontidão
sonagens e por cenários expressionistas. física e diversão.

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A bufonaria digerida máxima e deveria saber agir com a argúcia do


pelo teatr
teatroo moder
modernn o palhaço, do “jongleur”, do acrobata, do cantor e
do dançarino.
Pode-se assim pensar numa retomada do bufão Meyerhold fala sobre a relação intrínseca
pelo teatro, delineando um percurso da másca- entre o sintético e o grotesco. Será sintética, mas
ra para a sala de espetáculo. Se, às vezes, ele apa- não-cumulativa, porque não deverá mostrar
rece como um personagem da dramaturgia, em tudo, muito menos reproduzir, ilustrar ou ex-
outras surge como um procedimento técnico plicar. A criação grotesca deverá evidenciar a
para o ator. densidade concreta do real sem referi-la.
Nas mãos do polêmico encenador russo O princípio da substituição é fundamental
Meyerhold, o bufão reaparece pelas vias do no grotesco. Mesmo quando se toma a realida-
teatro de feira, da pantomima, do Arlequim da de como tema, a representação tem que ter algo
“Commedia Dell’Arte”, do teatro de Gozzi e do ao mesmo tempo estranho e familiar. Com isto,
teatro chinês (“Nô” e “Kabuki”) que servem para o resultado de cada representação alcançaria o
a elaboração de conceitos fundadores do ator e seu objetivo somente se fosse capaz de revelar
do seu teatro. A partir das grandes tradições do os sentidos ocultos ao espectador. Ao público
espetáculo ele dá forma à idéia do “Teatro seria apresentado um mundo palpitante, fre-
Teatral”. mente, emocionante, no qual nenhum elemen-
Meyerhold queria resgatar para o teatro o to teria mais o seu rígido papel institucional.
seu caráter convencional, diáfano e ofensiva- A interpretação poderia mesclar o cômi-
mente teatral. A sua estética passou por diferen- co e o trágico, como nos desenhos de Goya ou
tes fases de concepção, mas foram, acima de nos contos de Edgar Alan Poe e Hoffmann,
tudo, a idéia de tirar todo o ilusionismo da re- num esforço de superar as situações cotidianas.
lação cena e público, a negação da prioridade Ele não pretendia desordenar a realidade, utili-
do texto e a busca de expressividade do ator, os zando o método do grotesco na encenação, mas,
tópicos centrais da sua teoria e práticas cênicas. ao contrário, saber reinventá-la naquele espaço
Para conseguir tais objetivos, iria resgatar cênico restrito e artificial. A cena se tornaria um
o grotesco do teatro popular e recomendar sua lugar de “tensões”, de contrastes que gerariam
utilização como um recurso para vivificar o tea- um fluxo dinâmico na representação.
tro: “O grotesco permite o cotidiano em um Na encenação de O Inspetor Geral, de
plano inédito, o aprofunda a tal ponto que o Nicolai Gógol, Meyerhold cria um novo gêne-
cotidiano deixa de parecer natural” (Meyerhold, ro cênico, diz Arlete Cavaliere, surgido de suas
1986, p. 61). experiências com a pesquisa dos elementos cô-
Com gestos exagerados atenuados, o uso micos que “com suas linhas estéticas deformantes
do grotesco não deixaria espaço para a concre- e deformadas, suas proporções aumentadas e
tude, para a afirmação e para a interpretação suas imagens exageradas e traços distorcidos,
verossímil do realismo-naturalismo de Stanis- aponta uma espécie de bufonaria trágica...”
lavski. Neste sentido, ele estaria usando na atua- (Cavaliere, 1996, p. 91).
ção apenas a alusão, a sugestão dos gestos e A partir disso, surge um outro ponto
nunca a reprodução minuciosa da vida. A re- fundamental, a composição paradoxal, a qual
presentação trataria a realidade com estilização. Meyerhold sugere utilizar nas diferentes estrutu-
O ator grotesco encontraria ainda o seu ras dramáticas. Assim, mesclar um personagem
equivalente no conceito de ator sintético. Este, trágico com funções cômicas torna possível a
para Meyerhold, seria um ator que dominaria o passagem da burla para a tragédia, equilibra os
corpo com conhecimento profundo do seu apa- sentidos opostos, inclusive ressaltando a feiúra
rato biológico. Ele usaria a sua expressividade e impedindo que a beleza se torne sentimental.

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É importante ressaltar o fato de que o fragmentada e viva como os “números” circen-


grotesco se apresenta, em Meyerhold, não como ses. O trabalho do ator consiste em contar uma
um estilo, mas como uma técnica. Ele tira o gro- história (fábula) por meio de atitudes gestuais.
tesco do estilo e o transforma em procedimento. O gestus, guardada a sua dimensão assaz com-
O grotesco não é o tema, mas sim a contrapo- plexa, indica uma conduta ou atitude social. Li-
sição entre elementos sensíveis e perceptíveis. gada ao conteúdo histórico e ideológico mar-
Para Meyerhold, assim como para Brecht, xista, a escritura corporal (feita também de
a figura grotesca do bufão foi resgatada da lite- palavras) se constrói a partir de diferentes ní-
ratura para os palcos, carregada da inteligente veis miméticos, desde um detalhe de movimen-
ironia necessária para desmascarar a vida políti- to de um personagem a um comportamento ca-
ca e social de seu tempo. Nas mãos de Brecht, o racterístico de um grupo. Mais do que isto, o
nosso farsante reapareceria com os recursos do gestus deve revelar as idéias subentendidas nas
circo e Cabaret alemão, os quais serviriam so- palavras e acontecimentos. Ações que contradi-
bremodo para restituir o que ele acreditava ser zem os textos produzem fissuras na representa-
a principal função estética do teatro, a diversão. ção, provocando o efeito de estranhamento e dis-
Uma diversão de acordo com o seu tem- tanciamento essenciais para o teatro épico.
po, que reivindica para o teatro de uma época O ator brechtiano, neste sistema de traba-
científica a racionalidade das novas formas lho, é um enunciador que interage criticamen-
tecnológicas, como o cinema e o rádio (Ben- te, a partir do seu ponto de vista, com o do per-
jamin, 1987, p. 98). O teatro épico de Brecht sonagem e com o do espectador. Ora afastado
também teria a forma episódica, permitindo en- ora próximo, o ator representa um elo entre o
tradas e saídas aos atores e personagens, inter- significado e o significante, entre o real e o si-
rompendo o envolvimento ilusionista que o es- mulacro, entre arte e vida. Nesse vaivém, o ator
petáculo pode produzir nos espectadores. Com se multiplica transitando entre diferentes gê-
o público e artistas em posição de distanciamen- neros, implícita ou explicitamente, do drama à
to, pode-se então reconhecer as situações reais farsa. Evocando referências reais e corporifican-
inspiradas na teatralidade da vida. do-as em paródias o ator expressa as relações so-
O teatro não-aristotélico de Brecht, além ciais entre os homens.
de colocar o homem comum no centro da dra- De certo modo, os fundamentos de
maturgia, não deve propiciar a catarse nem a Meyerhold ou de Brecht encaminham-se para
empatia diante do herói trágico. Ao contrário, um teatro que hoje se expande no vigor da lin-
o espectador não se identifica com as persona- guagem corporal. Sem a ortodoxia ideológica e
gens, mas as reconhece em suas contradições. a dimensão social da gestualidade, o teatro de
Como na técnica do cinema, a cena de Brecht Jerzy Grotowski, Eugenio Barba, Peter Brook,
corta, recorta, monta, cola, edita, em processo Ariane Mnouchkine amplia as noções corpo-
descontínuo. E o ator, por sua vez, conta, narra rais para um sentido antropológico ou intercul-
e expõe diretamente ao público, combinando tural. Especialmente nos modos de criação de
acontecimentos em tempos diferentes. O lugar Tadeusz Kantor vimos desfilar a blasfêmia mis-
das emoções é reservado ao espectador que, sem turada à mais fina poesia teatral. Com humor e
os recursos da ilusão cênica, é levado a refletir cinismo, Kantor tira da sua memória de criança
ativamente sobre o que assiste. A realidade é as personagens mais bizarras das experiências
analisada pelo confronto de idéias opostas, na das duas grandes guerras mundiais e da situa-
direção de um teatro dialético. ção política da Polônia.
A redescoberta de Brecht dos valores do Como na prática da bufonaria, tanto em
velho teatro popular se traduz na produção de Kantor como em Brecht, as histórias tratam de
uma atuação e dramaturgia “vaudevillenesca”, temas sociais, e as sátiras versam sobre o poder,

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A blasfêmia, o prazer, o incorreto

a política, a religião, a guerra, a família, os ta- Esta figura engloba tantos tipos de riso,
bus e as diferenças de status. Estas combinações com os corpos deformados e deformantes debo-
conferem, deste modo, uma tendência crítica ao chando de nós, para se divertir e divertir a nós
modo farsesco de atuar. mesmos, que a sua figura nos causa estranheza.
O que esta figura da tradição cômico-popular,
presente de maneira tão incerta e ao mesmo
A experiência da alteridade tempo tão caricaturizada, pode interessar ao tra-
balho do ator contemporâneo?
Artistas, vagabundos, ladrões, loucos e margi- Seja qual for a imagem relacionada a ele
nais. Corcundas, aleijados, anões, gigantes e que, certamente, todos temos no fundo da nos-
monstros completam o grupo de sujeitos excên- sa memória, sua importância vai muito além da
tricos que desfilam no “bando dos bufões”. Na construção de uma personagem histriônica.
fragilidade do mundo particular em que se Mais do que uma máscara entre outras, o bufão
aglutinam vigora a loucura. Embora exista um é um catalisador de valores e códigos culturais,
grande número de exemplos na literatura de com capacidade de produzir processos percep-
bufões solitários, eles pertencem a uma massa tivos em termos especificamente teatrais.
aparentemente inútil. São, no entanto, o cerne À primeira vista, o Bufão apresenta regras
de uma minoria excluída socialmente que mos- básicas de contracenação, de jogo, de cumplici-
tra o vigor político nas atitudes imprevisíveis. dade e de prontidão, sem elaborações artísticas
A esse coletivo pertencem os negros, os mais complexas. Sua principal meta é trazer di-
gays, as mulheres, as prostitutas, os doentes, os versão ao teatro. Somente pelo prazer do jogo
aleijados, os despatriados, os sem-terra, os sem ele usa da blasfêmia, que é a mais radical nega-
teto e todos aqueles que são inadequados na so- ção da ordem social. Para blasfemar, é preciso
ciedade. Indiferente à sua adversidade, o “ban- que o ator tenha do que blasfemar. Pois quem
do” se diverte zombando da hipocrisia e me- blasfema não é o bufão, mas o ator que veste a
diocridade humana. Eles se divertem muito sua máscara. O bufão é o veículo, a forma dissi-
satirizando as autoridades. Como na sociedade mulada para desfiar a crítica contra nós mesmos,
em que se espelham para debochar, eles são co- contra a sociedade em que vivemos.
mandados por um chefe, a quem todos se ale- A técnica do Bufão tem como eixo o de-
gram em obedecer. Eles zombam até do “in- senvolvimento da capacidade improvisacional,
zombável”: da guerra, da fome do mundo, de e tem segredos e regras que atuam numa exten-
Deus (Lecoq, 1997, p. 35). são que vai do farsesco ao trágico. O corpo de-
A ambigüidade da sua figura, portanto, formado constitui-se numa máscara de corpo
não cessa nas energias que o potencializam, ou inteiro, plasmada numa alegoria que implica em
no físico que o caracteriza, mas também forra o inúmeras conotações e cujos sentidos deixam
fundo de suas convicções acerca do mundo em entrever a visão de mundo não só da persona-
que vive. O bufão representa o ser humano em gem, mas também do ator. O corpo aleijado,
estado bruto – amoral, complexo, múltiplo – deformado e defeituoso pode ser materializado
podendo ser comparado, ao mesmo tempo, ao por um figurino exagerado e descomunal. Mas
veneno e à cura. Haja vista que na Idade Mé- sem o figurino, o ator pode reconstruir e des-
dia, onde o pensamento se orientava pela or- truir o comportamento dos homens somente
dem divina, era comparável ao diabo pela apa- com a força expressiva de seu corpo.
rência medonha que em todos provocava asco, O jogo da máscara oculta uma duplicida-
medo e riso e, ao mesmo tempo, era tido como de inerente, a do ator e a do personagem, cuja
um talismã da sorte cuja presença, acreditavam, natureza pressupõe a existência de um outro,
afastava os males.

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como na discussão amplamente examinada no o tempo presente e passado, a presença do ator


Paradoxo do Comediante, por Diderot. alude a algo ou a alguém para assim compor a
A máscara do bufão propõe um outro sua performance. No domínio destas relações
olhar sobre as relações entre o corpo deformado intersubjetivas, pode-se pensar ainda que a arte
e o deformante: a noção de alteridade possibilita do bufão consiste em estabelecer diálogos
a coexistência de idéias opostas que, por força corpóreos, profanos e risíveis, entre o real e o
das contradições, se anulam. A ambigüidade da virtual, entre si e com os outros.
máscara expressa esta antítese, criando uma se- A multiplicidade dos diálogos se dá sem-
gunda natureza para a personagem, ou para o pre com os “outros”, com o corpo do outro,
ator. O grotesco, entretanto, por diversas cir- centrando-se numa experiência de alteridade.
cunstâncias, tenta fazer coincidir máscara e ros- Quando ele imita um gesto ou uma ação ele
to simultaneamente. Essa oposição entre dois expõe o ridículo do outro e dele mesmo. O seu
valores, entre duas coisas, produz uma forma corpo, desta forma, representa outros corpos,
nadificante,5 onde uma nega algo que precisa ser colocando a sua monstruosidade em cena. O
afirmado pela outra. Ou seja, trata-se de uma ator consegue tirar daí a sua força de expressão
categoria estética de território irrestrito.6 do que é disforme. E com um humor demonía-
Sendo a paródia a imitação burlesca de co, ele debocha por prazer, por pura diversão.
uma obra ou de um personagem conta, pelo Ele usa da ironia, que é a mais inteligente e po-
menos, com duas faces: a máscara real e a más- tente arma, para denunciar as diferentes faces
cara da derrisão, ambas situadas na esfera da per- da maldade dos homens.
sonagem. A real é a base para a imitação da ou- Os múltiplos discursos do bufão funcio-
tra que é a alegórica, estilizada (Martin, 1985, nam como uma colagem. Nele mesmo cruzam-
p. 27). Uma face serve de referência para o des- se distintas vozes e seres ficcionais (textos sérios
cortino que se processa com a outra. Sendo as- e jocosos; humano e fantástico). Torna-se possí-
sim, a máscara do ator (em situação de perfor- vel reunir, também, várias referências estéticas
mance) é a face matriz, a que empresta sua e poéticas (tragédia e comédia; o sentimental
plástica para o desdobramento das outras duas e a grosseria) dentro de um mesmo processo de
máscaras. Dessa maneira, o ator, como o sujeito atuação.
da representação, empresta seu corpo ao defor- Pode-se ainda pensar em relações entre
mado, o bufão; o qual, no exercício da paródia, “personas” no lugar de personagens. Pensando
alude a um terceiro componente, o deformante, assim, leva-se em conta que a paródia não tra-
ou o referente. balha com a produção de mimese no sentido
Esta triplicidade na atuação é a base do clássico, mas sim com uma espécie de captura
jogo que leva o ator a interagir com as diferen- física de imagens, figurações ou evocações. O
tes camadas de representação. Alternando entre sentido de personagem do drama, de verossimi-

5 Conceito desenvolvido por Jacó Guinsburg, durante a orientação da tese de doutorado desta autora.
Um exemplo de forma nadificante está em Dioniso, que funde em seu mito o trágico e o cômico.
6 No texto para Bufões, de Phillipe Gaulier, chamado “Celui-ci n’est pas mon fils”, a Santíssima Trinda-
de – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – são transformados em Bufões. Na associação de Deus com um
ser sanguinário e cruel, infantil e caprichoso, na humanização da criatura divina, novamente o cômico
e o trágico se fundem, o que implica em uma forma nadificante, já que se perde o sentido original das
divindades para exprimir uma realidade amoral, ambígua e estranha. Esse texto tem uma tradução
portuguesa feita por Fernando Kinas, que também é diretor e professor de teatro.

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lhança e de identificação, se acontece, se dá no A performance, em seus atributos artísti-


resgate do modelo que será “destruído” pela cos, se caracteriza pela transformação do corpo
derrisão. em signo além da presentificação do ato. O que
Desta forma, ser bufão envolve as distin- se vê é de forma simplificada, é uma imagem
tas camadas da representação mimética, vista distorcida do mundo real, uma parte do todo
aqui como uma constelação de referências e es- que se organiza nas ações. O gesto e a movi-
paços da imaginação. Trata-se ainda de reunir mentação, deliberadamente, artificiais e exage-
tais espaços e contradições em um só corpo, rados, tornam-se uma narrativa que mistura
criando uma miríade de tensões que modelam tempos, espaços e máscaras. A linguagem cor-
de modo peculiar este comportamento cênico. poral e vocal do bufão, nesta inter-relação, evo-
Nesta sua interdiscursividade corporal o bufão ca imagens visíveis e conhecidas. Além disto,
tem que preservar a humanidade das imitações tais recursos técnicos nos fazem recordar de cer-
burlescas, extraindo da realidade a sua criativi- tas imagens temidas, aquelas que se encontram
dade. Quem o assiste deve reconhecer a realida- ocultas de nós mesmos.
de que está sendo burlada. Há uma espécie de negação da interpre-
O que conta para o bufão é o diálogo que tação de uma personagem no sentido tradicio-
ele estabelece com o público e, mais especifica- nal, em favor de uma dilatação das energias ex-
mente, com o que Phillipe Gaulier chama de pressivas pessoais do ator. Há uma liberdade,
“bastardo” – o alvo das denúncias e da zomba- neste jogo, de romper com qualquer sistema de
ria. O sujeito “bufonável” ganha dimensões e interpretação. Evidente que nem questionamos
modos extravagantes sem perder a referência do o fato de que este jogo não seja uma representa-
real. Essa é uma forma de ganhar a cumplicida- ção, visto que não é uma ação do cotidiano. Isto
de da platéia, que em essência é o alimento do acontece devido a um embaralhamento das re-
seu humor. Se o espectador se diverte, mesmo ferências, peculiar do jogo, que faz quem assiste
que tire o prazer de rir da própria desgraça, isto confundir a verdade com a representação.
quer dizer que a “temperatura” da atuação está Faz-se necessário um esforço da memória
no ponto ideal e que o ator pode seguir em fren- associativa para desencadear a ação da paródia.
te. Em estado quase permanente de ebulição, a Gaulier sempre diz que tem de se trabalhar com
improvisação se vale da energia do “aqui e ago- a lembrança de uma grande diversão. Somente
ra”. O jogo do ator, pelo menos, deve aparentar assim, com este estoque de memória, a referên-
o mesmo frescor. cia real do parodiado será base para uma repre-
A esse ofício tão antigo se designou uma sentação “turbinada” que se manifesta em uma
máscara, e nem sempre, na sua longa história, o potencialização de energias. Como na caricatu-
ator e mesmo o espectador conseguiram delimi- ra, entretanto, o resultado da expressão será sin-
tar fronteiras entre o momento em que começa tético, já que não necessita mais do que quatro
e em que termina a representação. A dupla face ou cinco características para produzir a imita-
de sua expressão já era uma espécie de estigma ção burlesca (Lecoq, 1998, p. 45).
para o ator bufo no mundo medievo e renascen- Vale dizer que o jogo farsesco do bufão
tista, cuja presença tragicômica se fazia presente tem, como as suas origens carnavalescas, múlti-
em todos os momentos de sua vida. Não é pos- plas significações, mas pouco necessita, além do
sível imaginar um bobo da corte sem as suas ator, para exercitar a sua teatralidade. A rigor, o
vestimentas, andando como um ator de folga ator precisa no máximo de alguns acessórios que
pelo palácio. Neste sentido, a atuação do bufão ampliam o jogo. O bufão é imagem, é visual. Tem
se aproxima do sentido de performance, no pon- que buscar equivalentes na representação e não
to em que tal manifestação implica em esfu- na semelhança. E encontrar os símbolos justos no
maçamento das noções de vida e representação. corpo e na imagem para desvendar as verdades.

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No Brasil contemporâneo, este “trickster”, prisma, pode oferecer um material específico


insolente e zombeteiro, se revela na mescla in- para o trabalho do ator, o qual abre, por sua vez
teligente da personalidade e do teatro de José um plano horizontal de possibilidades. Ele pode
Celso Martinez Correa, de Gerald Thomas e de representar uma dimensão original para a forma-
Cacá Rosset. A evocação do espírito bufonesco ção e para as práticas do ator. Sem receio da lin-
não se limita a um modo de atuação ou de en- guagem “baixa” para tratar dos temas “altos”, o
cenar, mas tem relação com o artista que toma trabalho do ator rompe os limites da elegância e
para si o comportamento combativo e perfor- do sentimentalismo que parecem envolver toda
mático deste ser conhecido pela popularidade e a filosofia do teatro sério. Sendo assim, a experi-
irreverência. ência com o bufão é ir contra o “politicamente
Trabalhar com o bufão sem dúvida é as- correto” da representação teatral. É mesmo ele-
sumir os riscos da experiência teatral. Sob outro ger essa incorreção como maneira de atuar.

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