Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
VIÇOSA
MINAS GERAIS – BRASIL
AGOSTO/2017
A MULHER CANTADA EM PROSA E VERSO: A CONSTRUÇÃO DA
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA MULHER NAS CANÇÕES DE VOZES
FEMININAS DA MPB (1930-1980)
________________________________________________________________
Luíza Estéfany Campos Sobreira
_________________________________________________________________
Anita Maria Ferreira da Silva
1
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
1. REVISÃO DE LITERATURA 4
I. Amplitude acadêmica 13
V. Década de 1970 23
5. CONCLUSÕES 25
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 27
7. ANEXOS 29
2
INTRODUÇÃO
A construção simbólica em torno da figura feminina na música popular brasileira
não costuma ser feita por ela própria, mas, sim, estruturada e apresentada por um sujeito
coletivo e externo, seu criador. Este fato transporta a mulher para uma realidade imaginada e a
distancia de sua subjetividade, suprimindo, portanto, seu espaço e voz na formulação de sua
própria identidade.
Na música popular brasileira, que, por sua vez, será nosso objeto de pesquisa, é
possível identificar características associadas intimamente ao feminino. Essas representações
tanto retomam imagens, geralmente, cristalizadas - a “esposa exemplar”, “mãe”, “virgem” e
“virtuosa”1 ou a “suja”, “sedutora” - sustentadas, principalmente, por discursos
tradicionalistas e religiosos - como, também, adaptam o imaginário social aos novos papéis
sociais assumidos pela mulher ao longo do tempo – a “lavadeira”, a “mulher do lesco-lesco”,
a “mulata assanhada”, a “bailarina”, entre outras.
1
Provérbios (30, 10-12): “Uma mulher virtuosa, quem pode encontrá-la? Superior ao das pérolas é
o seu valor. Confia nela o coração de seu marido e jamais lhe faltará coisa alguma.”
3
Neste contexto, a criação de representações opostas como “mulher-amada” e
“mulher-odiada”, que emergem em composições de diferentes ritmos e classes sociais,
representam ora a admiração pela figura feminina, sua beleza e preciosidade, ora as
insatisfações e repressões ao comportamento da mesma, em uma tentativa de conter a sua
autonomia. No entanto, ambos, por sua vez, definem interpretações particulares, externas à
consciência feminina e inclusiva ao universo masculino e, apesar de fortalecerem diferentes
visões, estas se apresentam relativamente distorcidas em relação ao mesmo objeto da
composição, a mulher.
1. REVISÃO DE LITERATURA
2
Outros trabalhos já discutiram sobre como a construção simbólica da mulher foi feita através de
discursos externos a ela, principalmente, discursos masculinos. Ver: Simão, F. L. R.,2016.
3
Definição de Talcott Parsons. Moscovici fala sobre isso em um trabalho originalmente preparado
para uma conferencia pública, em Genebra, setembro de 1996. Disponível no livro “Representações Sociais –
Investigações em psicologia Social”, 6ª edição, 2000, Capítulo 6, Página 287.
4
antropológicas que se utilizam da raça, instinto e hereditariedade para explicar a cultura e as
peculiaridades éticas, alega que o ambiente natural dos seres humanos é, na verdade, a
sociedade. Isso porque é a partir das crenças, normas e linguagem, ou seja, é a partir de um
conjunto de relações e concepções partilhadas que as pessoas se mantêm coesas e, “[...] do
mesmo modo que qualquer instituição, o conhecimento e as crenças têm uma existência antes,
durante e depois da existência dos indivíduos singulares”. (Moscovici, 2000, p.287) Dessa
forma, as chamadas “representações coletivas” constituem uma realidade, formada
intersubjetivamente, e que, de acordo com Durkheim, é tão real quanto, se não mais real, que
uma realidade física.
Conceitos, escreve Durkheim (1995/1993), que são coletivos na origem (como na verdade
todos os conceitos), assumem a nossos olhos, mesmo quando seu objeto não seja um objeto
real, tal força que ele se apresenta como real. É por isso que os conceitos adquirem a
vivacidade e a força de ação das sensações. [...] Representações coletivas ou sociais são a força
da realidade que se comunica e se transforma [...] e a consequência disso é que [elas] não
podem ser explicadas por fatos menos complexos que os que governam a interação social. Com
outras palavras, elas não podem ser explicadas pelos fatos da psicologia individual, ou por
alguns processos elementares. (Moscovici, 2000, p. 287)
Tais pontos abordados na tese de Durkheim são retomados por Serge Moscovici no
desenvolvimento da Teoria das Representações Sociais (TRS), que nasce centrada no ramo da
Psicologia Social. No entanto, as Representações Sociais (RS) deixam de ser vistas
simplesmente como conceitos e são tomadas como fenômenos.4 Essa nova perspectiva,
trazida por Moscovici (1961), enfoca o aspecto dinâmico das RS, característico das suas
constantes transformações da sociedade, em contraste com as estáticas representações
coletivas durkheimianas, que foram tomadas como permanentes, sem apresentar a
dinamicidade no tempo e espaço que propunham. (Santos, 2011, p.225)
Além disso, outra crítica que emerge com a TRS é a ligada ao caráter puramente
individual da mente humana5 e à importância da linguagem e, consequentemente, do social
para a constituição da mesma. Em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, a partir do conceito
4
“As representações sociais são conjuntos dinâmicos, sua característica é a produção de
comportamentos e de relações com o meio, é uma ação que modifica a ambos e não uma reprodução destes
comportamentos ou destas relações, nem uma reação a um estímulo exterior dado. “(Moscovici, 1979, apud
Santos, 2011, p.225)
5
O caráter puramente individual da mente humana se refere à razão pura, que nasce com os
indivíduos. René Descartes (1596-1650) é o grande nome dessa corrente de pensamento, o racionalismo.
5
de signo, que são unidades básicas de significação criadas a partir da interação social, Mikhail
Bakhtin (1929) defende que o cognitivo, chamado por ele de psiquismo, é formado através do
meio externo, ou seja, através do contato do indivíduo com o social.
Em nenhum ponto a compreensão dos signos se quebra da cadeia formada por signos e penetra
na existência interior, de natureza não material e não corporificada em signos. A própria
consciência apenas se torna consciência ao se impregnar de conteúdo ideológico (semiótico) e,
consequentemente, somente no processo de interação social. [...] [Sendo assim,] fora desse
material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do
sentido que os signos lhe conferem. (Bakhtin, 2006, p. 32 e 34)
6
self seria uma instância psíquica que permite ao sujeito olhar a si mesmo como um objeto e,
para que o mesmo se desenvolva, é necessário que o indivíduo se olhe pelo olhar do outro
com o objetivo de apreender a realidade social em que ambos estão inseridos (Sant’Ana,
2007, p.133). O “outro generalizado”, por sua vez, é resultado da “[...] abstração dos
elementos comuns das atitudes daqueles com os quais o indivíduo interage, que, uma vez
incorporado pelo indivíduo, passa a exercer autocontrole dentro da estrutura de ordem
normativa com a qual se identifica” (Idem).
a análise das representações sociais vai além do trabalho individual do psiquismo e emerge
deslocada para um outro nível, ela não se centra no sujeito individual, mas nos fenômenos
produzidos pelas construções particulares da realidade social. As mediações sociais são quem
formam as representações – estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a
diversidade e a mobilidade do mundo que, embora pertença a todos, transcende cada um
individualmente. Nesse sentido, elas são um espaço de fabricação comum, onde cada sujeito
vai além de sua própria individualidade para entrar em domínio diferente, ainda que
fundamentalmente relacionado: o domínio da vida comum: o espaço público. Dessa forma, elas
não apenas surgem através de mediações sociais, mas tornam-se, elas próprias, mediações
sociais. E enquanto mediação social, elas expressam por excelência o espaço do sujeito na sua
relação com a alteridade, lutando para interpretar, entender e construir o mundo.
(Jovchelovitch, 2009, p.81)
7
As representações sociais dão forma definitiva ao conhecimento produzido acerca
de objetos, pessoas e/ou acontecimentos além de organizá-lo em uma determinada categoria,
tornando-o um modelo partilhado por um grupo. Além disso, Barlett (1961), ao falar sobre a
tendência dos novos elementos que surgem serem sintetizados no suposto “modelo”,
acrescenta que “[...] quando uma forma de representação comum e já convencional está em
uso antes que o signo seja introduzido, existe uma forte tendência para características
particulares desaparecerem e para todo o signo ser assimilado em uma forma mais familiar.”.
Assim, as RS convencionam elementos quaisquer em um processo de familiarização, ou
melhor, elas organizam o que é “não-familiar” para torná-lo “familiar”, tornando-se o
resultado das constantes generalizações de nosso pensamento.
b) Prescrever;
A série de convenções ditas representações sociais não são todas pensadas por nós
e, por isso, são impositivas ao nosso cenário de ação. Dessa forma, as RS já construídas são
alvo de constantes recriações e, portanto, formam uma estrutura de representações que
prescreve o surgimento de novas representações.
[...] nossas experiências e ideias passadas não são experiências ou ideias mortas, mas
continuam a ser ativas, a mudar e a infiltrar nossa experiência e ideias atuais. Sob muitos
aspectos, o passado é mais real que o presente. O poder e claridade peculiares - [...] das
representações sociais, - deriva o sucesso com que elas controlam a realidade de hoje através
da de ontem e da continuidade que isso pressupõe. (Moscovici, 2000, p.38)
A ancoragem é definida por Santos (2011) como um processo que permite dois ou
mais interlocutores tornar familiar, em uma prática discursiva, ou seja, através da
comunicação, algo que não lhes é familiar. Já a objetificação, por sua vez, estabiliza de forma
temporária as informações criadas por meio do discurso. Sendo assim, é no discurso que as
8
RS se concretizam e, por isso, é por meio da linguagem, em especial, da comunicação que as
representações são construídas, difundidas e transformadas.
Logo, assim como defende Santos (2011), é plausível a utilização da análise dos
discursos dos enunciados para a identificação de representações sociais, como será feito neste
presente trabalho. Além disso, a identidade dos sujeitos também pode ser apreciada a partir da
mesma metodologia, pois reiterando a dialética que o indivíduo assume com a sociedade,
temos que “[...] o sujeito, ao mesmo tempo em que colabora com suas experiências e
conhecimentos para a construção do discurso, constrói-se e atualiza ou reafirma essas
experiências [sua identidade] a partir do discurso.” (Santos, 2011, p.226)
É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as
transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma,
que ainda não abriram caminho para os sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A
palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças
que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não
tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de
registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. (Bakhtin,
2006, p.40)
[...] o estudo das formas de categorização e recategorização de objetos de discurso deveria dar
conta de identificar os efeitos das representações sociais na construção dos papéis sociais e
comunicativos dos sujeitos, assinalando suas funções identitárias nos movimentos de
objetivação e subjetivação que manifestam. Este estudo deveria, ainda, focalizar os
movimentos em que o recurso a uma determinada forma linguareira funciona como estratégia
para de ser compreendido ou para vincular-se/distinguir-se de grupos ou determinadas práticas
sociais. (Matêncio, 2008, p.7 apud Santos, 2011, p.229)
9
Bakhtin (1929), por meio de suas análises sobre o romance de Dostoiévski6,
destaca o caráter dialógico da linguagem, em que os enunciados se constituem a partir de
outros enunciados e têm, pelo menos, duas vozes. Para ele, o homem, através do diálogo
interativo, auto revela-se livremente e se constrói neste processo de tal forma que se vê e se
reconhece através do outro, na imagem que o outro faz dele próprio. (Bezerra, 2007, p.194
apud Bakhtin, 1997, p.366)
Por sua natureza, o eu não pode ser solitário, um “eu” sozinho, pois só pode ter vida real em
um universo povoado por uma multiplicidade de sujeitos interdependentes e isônomos . Eu me
projeto no outro que também projeta em mim, nossa comunicação dialógica requer que meu
reflexo se projete nele e o dele em mim, que firmemos um para o outro a existência de duas
multiplicidades de “eu”, de duas multiplicidades de infinitos que convivem e dialogam em pé
de igualdade. (Idem)
2. OBJETIVOS
Temos, por hipótese, que a mulher, como tema de um grande contingente de
canções da música popular brasileira – MPB, não é sempre representada como um sujeito de
consciência, capaz de influenciar no discurso das canções, até mesmo em músicas cantadas
pelas próprias mulheres.
Sendo assim, este presente trabalho tem por objetivo geral identificar e analisar, a
partir da letra de canções de vozes femininas lançadas entre 1930 e 1990, os momentos em
que a representação da mulher na MPB se dá como sujeito. Os objetivos específicos, por sua
vez, pautam-se na utilização da Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici (1961)
e de recursos como dialogismo e polifonia, da teoria de linguagem de Mikhail Bakhtin (1929),
para a análise dos enunciados de letras musicais. Além disso, pretendemos construir nossas
6
Problemas da poética de Dostoiévski. SP: Forense, 2010
10
discussões a partir do conflito entre as representações mulher-sujeito e mulher-objeto,
presentes nos discursos das canções, debatendo, também, o espaço sócio histórico das
cantoras brasileiras (1930-1980) na construção da representação social da mulher.
3. METODOLOGIA
As canções analisadas neste presente trabalho foram retiradas do livro escrito por
Charles Gavin, nomeado “300 álbuns importantes da música brasileira”, que reúne, como o
nome sugere, álbuns de importância dentro do cenário musical brasileiro. Na tabela abaixo,
vê-se a lista completa das músicas selecionadas para análise (gráfico nossos).
A limitação do universo no período 1930-1980, por sua vez, deu-se devido à sua
antecedência ao advento da internet, um meio de comunicação em que se tem pouco controle
em termos de influência e difusão do discurso musical, o que, consequentemente, dificultaria
a análise das representações sociais da maneira em que propomos. Além disso, cabe destacar
que a utilização de álbuns como referência de canções importantes do cenário musical
11
brasileiro não significa que restringiremos a veiculação do objeto de pesquisa à indústria
fonográfica, até mesmo porque esta mantinha estreita ligação com outros meios de circulação,
como o ambiente radiofônico7 e a televisão.
Com o recorte definido, analisamos o discurso de cada uma das canções tomando-
as como enunciados. Cabe ressaltar, assim, que é designado por enunciação o acontecimento
constituído pelo aparecimento do enunciado. Dessa forma, “[...] a realização de um enunciado
é um acontecimento histórico: é dado existência a alguma coisa que não existia antes de se
falar e que não existirá depois.” (Ducrot, 1981 apud Brait, 2007, p. 64). Com esse aspecto,
concebe-se a linguagem “de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui para
efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela
envolvidos.” (Brait, 2007, p.65)
7
As relações entre rádio e indústria fonográfica são discutidas em “Da vitrola ao ipod: uma
história da indústria fonográfica no brasil” (2014), livro escrito por Irineu Guerrini Jr. e Eduardo Vicente)
12
com o que se afirma Moscovici (1961), os sujeitos, ao mesmo tempo em que constroem as
representações sociais, também são construídos por elas. Enquanto isso, os objetos são apenas
o resultado de construções dos sujeitos. No caso da mulher, dentro dos enunciados musicais, o
seu papel de objeto se dá quando esta é colocada como musa, objeto-motivo da composição
das canções. Enquanto a mulher-sujeito é ativa e contribui para a construção e reconstrução de
sua representação.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
I. Amplitude acadêmica
A análise de Senra (2014), porém, difere de nosso presente trabalho pela seleção
do corpus musical, que é feita por ela em um período recente - 2005 a 2012. A diferença
8
Em relação ao corpus de pesquisa, como já foi expresso por Senra (2014), o número de estudos é
bem maior se consideramos os trabalhos que se limitaram à análise de um ritmo musical específico. Podemos
destacar as contribuições de Janotti Jr. (2013) no heavy metal, Trotta (2009, 2010) no forró eletrônico; Simone
Sá (2007) no funk carioca; Naves (2010); Sovik (2009), no samba; Soares (2012), na brega e, mais recentemente,
Moises (2016), no rap.
9
Ver: SENRA, I. Z. M.. Canções vadias: Mulheres, identidades e música brasileira de grande
circulação no rádio. 2014
13
temporal é significativa principalmente devido à difusão da internet a partir dos anos 1990,
que altera completamente a forma de contato entre o público e artistas, o que dificulta a
análise da construção de representações sociais, pois diminui o controle de circulação do
material estudado.
Apesar das semelhanças com este trabalho, o texto do site musicaria brasil é
apenas um apanhado geral das RS da mulher no amplo contingente da MPB. Em contraste,
temos, aqui, um corpus delimitado que pretende dar margens para a compreensão construção
da representação da mulher ao longo de um período específico (1930-1980).
10
Psicólogo, professor da Teoria Psicanalítica da Escola S. Freud, em São Paulo, e mestrando em
Psicologia Clínica no IMS-S.
11
Publicação de 06 de março de 2010, disponível em:
https://musicariabrasil.blogspot.com.br/2010/03/mulher-na-musica-popular-brasileira.html (Acesso: 27/07/2017)
12
Trecho de Garota de Ipanema – Vinicius de Moraes e Tom Jobim (1964).
13
Santos, Cristiane Alvarenga Rocha. A teoria das representações sociais e a análise do discurso
em uma narrativa esportiva de futebol. Revista Diadorim . Volume 10, Dezembro de 2011(p.223-228)
14
como uma forma de identificação de representações sociais. Segundo ela, a TRS propõe um
estudo das RS ora social e ora psicológico, sem acrescentar uma sólida interface sócia-
cognitiva feita pela linguagem. Para Santos (2011), “[...] o estudo das representações sociais
consiste em responder como o homem constrói a realidade, e essa construção, [...] é fruto
dessa relação entre cognição e interação.” (p.237)
14
Destaca-se o programa informativo oficial “A hora do Brasil”, criado em 1935, além de outros
meios de controle informacional pelo Estado, como a DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, que
controlava as transmissões radiofônicas.
15
A mulher conquista o direito ao voto em 1932.
15
maridos, preguiçosos e boêmios foi muito difundida e se expressou em músicas do samba
urbano carioca como “Vai trabalhar”, cantada por Aracy de Almeida e “No lesco-lesco”, por
Carmen Costa. Além disso, a difusão radiofônica trouxe consigo figuras femininas
importantes e influentes como Emilinha Borba, Linda Batista, Carmen e Aurora Miranda,
entre muitas outras, consagradas como as “Cantoras do Rádio” 16, representantes das mulheres
no universo artístico musical, majoritariamente masculino. Ao mesmo tempo, entretanto,
também foi possível notar o fortalecimento de correntes tradicionalistas, muito defendidas por
projetos do Estado Novo varguista, que procuravam alimentar um modelo de família ideal
para o progresso nacional17 ao evocar a imagem da mulher dona-de-casa, mãe e senhora do
proletariado.
Escandalosa (2x)
Dancei,
E não me incomodei
É maliciosa...19
16
As “Cantoras do Rádio” é uma música interpretada por Carmen e Aurora Miranda, lançada em
1936, que quase sempre acompanhara as transmissões radiofônicas brasileiras.
17
“Na contracorrente das novas realidades que vinham se estabelecendo, Gustavo Capanema,
ministro da Educação e Saúde, chegou a bancar um projeto que, em prol da grandeza do país, salientava a
necessidade de promover o aumento da população e de oferecer proteção estatal à família monogâmica e ao
casamento indissolúvel.” (PARANHOS, Adalberto. Mulheres do lesco-lesco e do balacobaco: relações de gênero
e música popular no tempo do “Estado Novo”. UFU. 2008. Disponível em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST55/Adalberto_Paranhos_55.pdf (Acesso 29/07/2017)
18
Rumba é uma dança de origem cubana, marcada por ser um estilo suave e descontraído, apesar
de apresentar um ritmo complexo.
16
Diferentemente de outras canções compostas por homens, nesta, o compositor se
coloca, de certo modo, no lugar da cantora e intérprete, aproximando o enunciado musical da
visão e imagem da mesma. No enunciado, a atribuição de “Escandalosa” à figura do eu-
lírico é, aparentemente, parte dos discursos tradicionalistas que depreciam e julgam a sua
figura, ligada intimamente à dança, ao canto e à boemia. No entanto, apesar da suposta crítica,
observa-se que a pessoa retratada não se incomoda com o que dizem ao seu respeito, pois ela
mesma considera a sua postura “maliciosa” e é exatamente por isso que aprecia o ritmo ao
qual se dispõe. Sendo assim, neste diálogo, a identidade cantora, enquanto figura feminina, é
reafirmada por si própria, com o auxílio de sua posição emancipada enquanto artista, o que
revela a sua subjetividade e constrói a representação de uma mulher-sujeito.
19
Anexo 1.
20
KERBER, Alessander. Carmen Miranda entre as representações da identidade nacional e de
identidades regionais. Revista ArtCultura, Uberlândia, v.7, n. 10, p.122, jan-jun. 2005
21
O sucesso da Carmen Miranda nos Estados Unidos não é justificado apenas pelo seu talento,
pois a cantora também fez parte da propaganda política da boa vizinhança, existente no período entre guerras.
Isso é comentado no livro O “it verde-amarelo” de Carmen Miranda (1930-1946) de Tânia de Souza, p.10.
2004.
22
Anexo 2.
17
ignorar a emersão de uma voz feminina em contraposição a uma representação preexistente.
Tal voz, que, por sua vez, configura-se como um elemento de subjetividade, emerge ao se
atribuir novas características à identidade da mulher – ela pode ser recatada, mas também é
honrada – estruturando-se como uma forma de resistência ao discurso dominante. Além disso,
cabe acrescentar que a recusa em se submeter às vontades do homem, descrita no enunciado,
torna-se possível, principalmente, pela autonomia financeira da mulher retratada em relação
ao seu marido, – “Daqui não saio, que o chatô também é meu / Pois a metade do dinheiro foi
meu pai quem deu” – o que demonstra a interferência das novas configurações sexuais de
funções e trabalho da conjuntura brasileira dos anos 1930/1940 nas representações da mulher
na música brasileira.
23
A política de J.K. costuma ser definida como Nacional Desenvolvimentismo, com grande
abertura dos mercados brasileiros às transnacionais estrangeiras, principalmente no setor de transportes.
24
Napolitano, 2010, p.64 apud De Almeida, p.2
25
Os defensores da Bossa Nova são famosos pela crítica ao Samba-canção.
18
Prepara em noite de orgia
26
Anexo 3.
27
Brito, 1974, p.38-39
28
Álbum “Canção do Amor demais” (1958); composição de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.
Disponível no anexo 4.
19
É como a flor que não dura de mais
Embriagador...
No Brasil, os irmãos Tony e Celly Campello foram responsáveis por firmar tal
atmosfera. Em 1959, eles gravaram o disco “Estúpido Cupido”, que conta com uma série de
regravações de canções norte-americanas, como a própria Stupid Cupid. Em “Lacinhos Cor de
Rosa” (1959), por sua vez, é visível a emersão dessas novas configurações sociais e a
construção imagética do jovem por meio do rock e da indústria cultural. Na letra da canção, a
estagnação do uso de lacinhos cor-de-rosa, que passam a ser vistos como peças infantis,
ultrapassadas para os adolescentes, revela-se problemática para a menina, a eu-lírico do
29
Etimologia da palavra segundo o site dicionário de nomes próprios. Disponível em:
(https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/luciana/ (Acesso: 02/08/2017).
30
O grande destaque é o filme “Juventude Transvia” (Movel rebel without a cause), lançado em
1955, do cineasta Nicholas Rey e atores muito famosos na época como James Dean e Natalie Wood.
20
enunciado. Na passagem abaixo, vê-se, aparentemente, uma pressão para a emancipação
feminina em meio a esses produtos de consumo.
A Bossa Nova inicia a década de 1960 com certo destaque no cenário musical
brasileiro. A sua batida característica, criada por João Gilberto, líder do movimento, com
compassos inspirados no cool jazz, rompeu com os dramáticos sambas-canção da década de
1950 e atraiu o público da classe média, que aos poucos passava a escutar mais músicas
brasileiras32. Tal ruptura atingiu também a representação social da mulher, que passou a se
distanciar da figura das lavadeiras, prostitutas, cantoras, etc comumente encontradas em
outros sambas e gêneros musicais. A metonímia mulher/rosa/flor típica da mulher-objeto
ideal33 é muito regular em canções, como em “Das rosas” (1965), composta por Dorival
Caymmi e interpretada por Nana Caymmi: “Um amigo meu disse que em samba / Canta-se
melhor flor e mulher / E eu que tenho rosas como tema / Canto no compasso o que quiser //
Rosas, rosas, rosas... / Rosas formosas / São rosas de mim[...]”.34
31
Anexo 5.
32
Ver sobre a Bossa Nova em NAVES, Santuza Cambraia Neves. Da Bossa Nova à Tropicália:
contenção e excesso na música popular. RBCS. Vol. 15 nº 43 junho 2000
33
Ver HAUDENSCHILD, André Rocha Leite. “O dengo que a nega tem”: Representações de
gênero e raça na obra de Dorival Caymmi. Art Cultura, Uberlândia, v. 16, n. 28, p. 77-88, jan-jun. 2014
34
Anexo 8.
35
Ver: GEROLAMO, Ismael de Oliveira. Nara Leão: entre a bossa nova e a canção engajada.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 66, p. 172-198, abr. 2017
21
Mulher que fala muito perde logo seu amor
36
Anexo 7.
37
Anexo 6.
22
enunciador em ser dono da “Mulata Assanhada”, o que reitera a condição de objeto que o
mesmo atribui à mulher.
V. Década de 1970
38
Ver: MACHADO, A. C. Martinho da Vila: uma nova linhagem do samba nos anos de 1970...
Per Musi, Belo Horizonte, n.28, 2013, p.208-221.
39
Anexo 9.
23
cenário, a mulher admite a função que o seu criador condiciona, sendo, portanto, apenas
objeto de sua criação.
40
NAPOLITANO, 2010, p.389
41
Anexo 10.
24
moral e dos bons costumes”42 - “E o jeito que eu conduzo a vida / Não é tido como forma
popular”.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No gráfico abaixo, vê-se a disposição entre as representações da mulher em nosso
objeto de pesquisa. Tal disposição, apesar de oscilar um pouco ao longo das décadas,
principalmente entre o período 1930-1949 e os demais, mantem-se, razoavelmente, constante
ao longo do tempo.
100%
90%
80%
70%
60%
50% OBJETO
40% SUJEITO
30%
20%
10%
0%
1930/1940 1950 1960 1970
42
Ver: SETEMY, A. C. L. “Em defesa da moral e dos bons costumes”: a censura de periódicos na
ditadura militar (1964-1985) 2008. (Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4205239/4101474/artigo_adriana_cristina.pdf)
25
A partir da década de 1950, devido, entre outros fatores à diversificação de temas
e ritmos, encontram-se diferentes representações da mulher no cenário musical brasileiro. Nos
sambas-canções, em que é presente a expressão de “dores de cotovelo”, a mulher se dá, por
vezes, em exemplo da canção “Vida de Bailarina” – Angela Maria (1953), como um objeto
que possui e causa dor, sofrimento e drama. Em outro contexto, contudo, na incipiente bossa
nova do final da década de 1950 (“Luciana” - Elizeth Cardoso (1958)), a figura feminina,
apesar de ser, neste samba sofisticado, próxima da mulher ideal, também se mostra,
majoritariamente, apenas como objeto-motivo das canções.
26
comparativamente como se dá a construção imagética feminina em cada um dos objetos de
pesquisa.
Além disso, apesar deste projeto de pesquisa ser, relativamente, limitado para
que se obtenham dados significativos, apreciamos a experiência de produzir e reunir
conhecimento. Foi possível, com esse trabalho, conhecer metodologias de pesquisa e adentrar,
de forma considerável, no ambiente acadêmico. Tivemos dificuldade em selecionar o corpus,
devido ao enorme contingente de canções disponíveis, além de ter sido complicado aplicar e
entender as teorias utilizadas aqui. No entanto, com a ajuda da orientadora, consegui escrever,
ou melhor, construir este presente trabalho.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GAVIN, Charles. 300 Discos Importantes da Música Brasileira. 1.ed. Brasil: Editora
Cabeça de Dinossauro, 2008
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. 2. ed. Brasil:
Editora 34, 2010. 381 p. v. 1
27
SANT’ANA, R.B.. A dimensão social na formação do sujeito na psicologia.
Memorandum, 12, 125-142. World Wide Web, 2007
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/santana01.pdf (Acesso: 31/08/2017)
SIMÃO , Fábio Luiz Rigueira. Ser Mulher, Uma Missão? : A Escola Superior de
Ciências Domésticas, Domesticidade, Discurso e Representações De Gênero (1948 -
1992). 2016. 267 p. Dissertação de Doutorado (História)- Universidade Federal de Juiz
de Fora, UFJF, [S.l.], 2016. único.
208
28
7. ANEXOS
Dancei,
E não me encomodei
Pois a rumba em si,
É maliciosa...
Escandalosa (2x)
29
3) VIDA DE BAILARINA – ANGELA MARIA
30
5) LACINHOS COR DE ROSA – CELLY CAMPELLO
Tenho um amor puro e verdadeiro
É playboy é bom companheiro
Brotinho enxuto um amor
Mas não me liga que horror
Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar
Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar
Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar
Um sapatinho eu vou
Com laço cor de rosa enfeitar
E perto dele eu vou
Andar devagarinho e o broto conquistar
Composição: M. Grant
Letra por: https://www.letras.mus.br/celly-campello/69832/ (Acesso: 08/08/2017)
31
6) MULATA ASSANHADA – ELZA SOARES
Ai, mulata assanhada
Que passa com graça
Fazendo pirraça
Fingindo inocente
Tirando o sossego da gente
32
8) DAS ROSAS – NANA CAYMMI
Nada como ser rosa na vida
Rosa mesmo ou mesmo rosa mulher
Todos querem muito bem a rosa
Quero eu ....
33
10) AGITO E USO – ANGELA RO RO
Sou uma moça sem recato
Desacato a autoridade e me dou mal
Sou o que resta da cidade
Respirando liberdade por igual
34