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Estatuto Editorial A publicação designada por «Cadernos de Pedagogia Social» é propriedade da Faculdade de
Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa e visa contribuir para a consolidação de uma cultura
científica no domínio da Pedagogia Social através da publicação de trabalhos de investigação de reconhecido valor
académico segundo uma perspectiva que, integrando dialecticamente teoria e prática, procura promover a coope-
ração activa entre profissionais e investigadores, nacionais e estrangeiros.
Esta publicação contempla três tipos de colaboração, com aceitação prévia pelo Conselho Editorial, que funcionará
como comissão de leitura e revisão (peer-review):
- Artigos originais (original articles) que se debrucem sobre investigações realizadas no domínio científico da
Pedagogia Social.
- Revisões bibliográficas (contemporary reviews) que proporcionem uma leitura compreensiva sobre tendências
recentes e relevantes no domínio científico da Pedagogia Social.
- Relatórios (reports) sobre o trabalho realizado por instituições nacionais e internacionais dentro do domínio
científico da Pedagogia Social, podendo integrar entrevistas, relatos de visitas e/ou de reuniões científicas.
A publicação de «Cadernos de Pedagogia Social» acontece uma vez por ano.

© Universidade Católica Editora, Sociedade Unipessoal, Lda | Faculdade de Educação e Psicologia

Director Isabel Baptista Conselho Editorial Joaquim Azevedo, Isabel Baptista, Américo Peres, Adalberto Dias
de Carvalho, Roberto Carneiro

Propriedade Universidade Católica Portuguesa Concepção gráfica LabGraf Execução gráfica LabGraf
Dep. legal 258356/06 ISSN 1646-7280

Assinaturas bi-anuais Portugal e países africanos de expressão oficial portuguesa: 15,00 € Europa: 19,00 € Brasil:
US$25 avulso: 8,50 € Toda a correspondência destinada à revista, incluindo pedidos de assinatura, pagamentos e alte-
rações de endereço, deve ser dirigido a: Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Educação e Psicologia | Palma
de Cima | 1649-023 Lisboa - Portugal | tl. +351 217 214 060 fx. +351 217 266 160 iedu@iedu.ucp.pt www.ucp.pt

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2 (2008)
ANO II

5 Nota de apresentação
Isabel Baptista
7 Pedagogia Social: Uma ciência, um saber profissional, uma filosofia de
acção
Isabel Baptista

31 Estatuto antropológico e limiares epistemológicos da educação social


Adalberto Dias de Carvalho

45 Educadores Sociais: Quem são? O que fazem? Como desejam ser


reconhecidos?
Joaquim Azevedo | Isabel Baptista
Mesa de Discussão: Maria Ferreira; Maria Guerra; Sofia Rodrigues; Fernanda Cachada;
Rui Amado

61 O Perfil Profissional do Educador Especializado (Social): Uma leitura sócio-


-histórica
Fernando Canastra | Manuela Malheiro

81 A Educação Intergeracional no horizonte da Educação Social: compromisso


do nosso tempo
Cristina Palmeirão

101 Espaço, universo de relações e a questão da alteridade: Uma reflexão


sobre a cidade de São Paulo/ Brasil
Marielys Siqueira Bueno | Maria do Rosário Rolfsen Salles | Sênia Bastos

117 Porque necessitamos de um modelo bioecológico – transaccional para


pensar o futuro?
Maria Raul Lobo Xavier

125 Intervenção Social da Ald No Gúruè


Adérito Gomes Barbosa

151 Direito ao trabalho e cidadania social: A educação ao serviço da


solidariedade
Maria Helena Magalhães da Silveira Ribeiro
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163 Situações de risco: jovens “sem projecto de vida”, construção de um


objecto de estudo
Dulce Helena Penna Soares | Maria Sara de Lima Dias

179 Resiliência num grupo de adolescentes de risco de uma escola secundária do


grande Porto
Maria Raul Lobo Xavier | Mariana Andresen Abreu
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Nota de apresentação

Ancorados na dinâmica investigativa desenvolvida no seio da Faculdade de


Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (FEP/UCP), há um
ano atrás lançávamos o primeiro número desta publicação que escolhemos
designar por «Cadernos de Pedagogia Social», na expectativa de que pudesse
constituir um espaço plural de partilha de conhecimento nesta área de trabalho.
É, pois, com enorme satisfação que apresentamos um segundo número composto
por textos de vários autores, provenientes de instituições nacionais e estrangeiras
e dando testemunho sobre experiências de estudo muito diversas, evidenciando
assim a consistência de uma racionalidade sócio-pedagógica «hospitaleira»,
firmemente estribada no acolhimento de múltiplas abordagens disciplinares e
profissionais.
Ao referir-se a uma ingerência propositada no projecto antropológico, a
educação não pode alhear-se dos problemas humanos respeitantes à chamada
«questão social», sobretudo no quadro de uma sociedade educativa que se deseja
justa, cosmopolita e solidária. O tema de capa deste número, «Educação e
Solidariedade Social», surge no seguimento desta intenção, visando salientar os
objectivos de humanidade e de cidadania social que balizam o tipo de educação
que constitui objecto de estudo da pedagogia social. Daí a ênfase dada à
educação social, enquanto domínio privilegiado nesta área, relativo à atenção
prioritária a pessoas e grupos humanos que se encontram em manifesta situação
de sofrimento e vulnerabilidade, ainda que sem perder a referência essencial aos
múltiplos lugares de realização antropológica numa «sociedade de todos, com
todos e para todos».
Valorizando a ligação orgânica entre os universos de fundamentação e
aplicação, os textos apresentados expõem preocupações de ordem teórico-prática
relacionadas com o estatuto epistemológico da pedagogia social e com a
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diversidade de saberes e contextos que configuram esta ciência da educação,


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desde a definição do perfil formativo dos agentes de intervenção sócio-educativa,


em particular dos educadores sociais, passando pela compreensão do espaço
público como «universo de relações de alteridade», até a questões especificas
levantadas nos vários relatos de investigação e de acção. Sublinham-se ainda os
contributos vindos de outras áreas de conhecimento, como a psicologia, por
exemplo, testemunho de um diálogo interdisciplinar imprescindível em termos de
construção solidária do saber.

Isabel Baptista
Porto, Abril 2008

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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 7-30

Pedagogia Social: Uma ciência, um saber


profissional, uma filosofia de acção
Isabel Baptista Docente da Faculdade de Educação e Psicologia, UCP

Resumo
A disciplina científica que dá pelo nome de «pedagogia social» ocupa hoje um
lugar fundamental no seio das ciências da educação, respondendo por um
universo conceptual específico, alicerçado num património histórico próprio e
num campo de problematização-acção de confirmada relevância na nossa
contemporaneidade. É justamente em torno do conceito de pedagogia social,
da sua história e da sua especificidade epistemológica que procuro reflectir
neste texto, tentando evidenciar a pertinência socio-política desta área de
conhecimento num quadro de renovação do «espaço público da educação»,
em conformidade com a utopia do humano preconizada pelas Nações Unidas
para a sociedade do século XXI.

Educação, desenvolvimento humano e cidadania


solidária

Definido em termos gerais, o objecto de estudo da pedagogia social remete-


nos para uma realidade antropologicamente densa, complexa e multifacetada – a
praxis sócio-educativa numa perspectiva de «cidadania social». Ao mesmo tempo
que se promove a capacitação subjectiva e cívica das pessoas, trata-se de
procurar «fazer sociedade» num mundo que nos surge como fragmentado,
incerto, vulnerável e «líquido», apostando para tal na ligação orgânica entre
aprendizagem, vida e experiência comunitária. Estamos, pois, perante um
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conhecimento construído na interface entre as áreas da educação e da


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solidariedade social, num contexto de mutação paradigmática dos respectivos


campos de referência.
De um lado, temos o ideal de uma educação para todos e ao longo da vida como
o grande princípio orientador da mudança desejada. Pretende-se que nos diferentes
planos de acção política – mundial, nacional, regional – sejam forjados
compromissos sociais audaciosos em torno da criação de oportunidades
educacionais contextualizadas, diferenciadas, flexíveis e permanentemente
acessíveis a todas as pessoas, seja qual for a sua situação existencial. O que, desde
logo, se afigura como uma tarefa hercúlea, conforme admitiu o Director Geral da
UNESCO, Koichiro Matsuura (2000), mesmo se encarada apenas em ternos de
universalização e diversificação da oferta formativa. Porque, na verdade, o desafio
em causa transcende largamente esta meta, implicando uma profunda
transformação dos modos de pensar e viver a educação enquanto interferência
propositada no processo de desenvolvimento humano. Reconhece-se hoje que a
educação constitui o sustentáculo basilar «de uma evolução consciente, de uma
socialização ao longo da vida e do exercício de uma cidadania activa no plano dos
direitos e deveres de cada pessoa» (Carneiro, 2004). E é neste sentido que a
promoção de processos intencionais de aprendizagem deixa de ser uma
responsabilidade exclusiva dos sistemas escolares, passando a ser equacionada em
função de uma pluralidade de tempos, de lugares e de exigências de conhecimento.
Do lado das políticas sociais, considera-se que o desafio passa pela
regeneração do Estado providência clássico e por práticas de cidadania ancoradas
em laços humanos que, não sendo definitivos e indissolúveis, possam, todavia,
ser consistentes e significativos. Conforme notou Zygmunt Bauman (2000;2004),
denunciando o que classifica de «modernidade líquida». Os cidadãos
contemporâneos tendem a desenvolver conexões episódicas, «desesperados por
se relacionarem» mas ao mesmo tempo cada vez mais «desconfiados da
condição de estar ligado». Daqui resultam laços fortuitos e frouxos, atados com
«insustentável leveza» e numa «tentação de inocência» incompatível com os
desígnios de uma cidadania solidária, recorrendo assim a expressões utilizadas,
respectivamente, por Milan Kundera e Pascal Brukner.
Os efeitos do «mundo líquido» reflectem-se igualmente no plano das
mediações institucionais e nas formas de organização do compromisso social.
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Citando Joaquim Azevedo (2006), cresce a desconfiança em relação às mais

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variadas formas de governo da res pública, com reflexo evidente nas condições de
representação e acção das instituições sociais. É a própria democracia que assim
fica em causa, «esse ideal permanentemente traído e desfigurado», como afirma
Pierre Rosanvallon (1998) ao lembrar que sem perseverança no aperfeiçoamento
da democracia não há progresso social. Nessa medida, ao mesmo tempo que
propõe a reconceptualização da noção de «cidadania», o sociólogo argumenta em
favor da renovação «intelectual e moral» do Estado como condição indispensável
para a afirmação de uma «nova era do social» que, na sua perspectiva, deverá
também, e forçosamente, corresponder a uma nova era da política.
Com Rosanvallon, associo a necessária transformação dos modelos de
intervenção pública a uma redefinição filosófica do Estado providência, mas
considero que é num plano de questionamento ainda mais radical, em termos de
«refundação antropológica e ética», que a questão deve ser colocada (cf. Baptista,
2007, 2008). Interrogarmo-nos sobre os mecanismos da justiça, sobre as
garantias de equidade, sobre práticas de cidadania, sobre a violação sistemática
de direitos humanos ou sobre novos «direitos sociais», significa reflectir sobre
padrões de conduta pessoal, sobre dinâmicas identitárias e sobre estratégias de
vida. Antes de mais, estas são questões de natureza antropológica e ética no
centro das quais estão perguntas como: Quem somos? Quem queremos ser? O
que é que faz a diferença dos nossos dias e dos nossos caminhos? Que tipo de
relação estabelecemos connosco próprios, com os outros e com o mundo? O que
é que caracteriza, ou deve caracterizar, a nossa presença no mundo?
É, pois, nesta base de questionamento essencial que deve ser inserida a
exortação de Rosanvallon no sentido de um regresso ao ponto de origem, lá onde
o laço social e o laço cívico se confundem e onde a justiça descobre que, afinal,
é bem mais antiga do que o regime de direitos que a serve. Isto não significa que
se procure substituir o Estado providência por «comunidades providência» ou
ainda muito menos por «indivíduos providência», como por vezes se sugere. O que
se deseja é que a um «Estado social» forte e iluminado correspondam dinâmicas
de «cidadania social» apoiadas na implicação dos próprios cidadãos enquanto
«sujeitos capazes» (Ricoeur, 1988), que o mesmo é dizer enquanto cidadãos
aptos a actualizar os seus direitos/deveres no espaço de vida em comum, na
convicção de que só aí é que eles ganham a forma de «poderes». Assinala-se
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deste modo uma demarcação crítica relativamente às perspectivas de intervenção


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comunitária subordinadas à noção de «empowerment» ou «empoderamento» se


optarmos pela tradução portuguesa. Os processos de capacitação não podem ser
reduzidos ao desenvolvimento de competências de domínio e de controlo,
individuais ou grupais, confundindo os modos de participação cívica com o
exercício de uma influência «eficaz» e credora de reconhecimento. No lugar de
organizações e contextos sociais «empoderados» e «empoderantes», opto por
falar em «lugares de hospitalidade, justiça e solidariedade social» (Baptista,
2006,2007;2008).
Recuperando uma noção cara a António Nóvoa (2005), podemos afirmar que
nesta nova era da política, a pedagogia social ocupa um lugar decisivo na
reconfiguração do «espaço público da educação», tendo em conta a valorização
dos múltiplos lugares de realização antropológica e a necessidade de investir em
respostas educacionais de base sócio-comunitária. Interpreto neste sentido o
apelo feito por Joaquim Azevedo (2007) em relação ao actual movimento de
territorialização das medidas educativas que, do seu ponto de vista, deverá ser
encarado como possibilidade de profunda reformulação política e não apenas
como um fenómeno administrativo ou jurídico-legal.
Justamente, é necessário inscrever as preocupações de solidariedade social
no coração dessa mudança política. Ao referir-se a uma intervenção intencional no
projecto antropológico, a educação não pode ficar de fora do debate público sobre
a «questão social», expressão com que aprendemos a nomear o conjunto de
problemas que, em determinada época histórica, afectam os processos de
desenvolvimento humano

Ciências da Educação e sociedade educativa

Equacionado no quadro de uma educação para todos e ao logo da vida, o


universo de estudo das ciências da educação alarga-se substancialmente,
tornando-se muito abrangente, complexo, incerto e, em muitos aspectos,
impreciso e ambíguo. Assim, privadas de um horizonte objectual estável e
facilmente reconhecível que, de um modo algo artificial, elas haviam tentado
impor a si mesmas, as ciências da educação experimentam hoje um certo
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desnorteamento, conforme notou Adalberto Dias de Carvalho (1996). Os para-

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digmas de cientificidade adoptados por estas ciências numa primeira fase do seu
processo de legitimação epistémica carecem de uma reflexividade ético-
-antropológica considerada fundamental.
Parafraseando Hannah Arendt (2000), podemos dizer que, no caso concreto
das ciências da educação, a dificuldade em encontrar resposta para as situações
problemáticas resulta, em boa medida, da amnésia em relação às perguntas de
origem. De que falamos quando falamos em educação? Que concepções de
subjectividade, de humanidade e de cidadania, sustentam, ou devem sustentar,
os objectivos sociais do novo milénio? O que é que realmente entendemos por
«desenvolvimento humano»? Como, com que meios e de que forma, podemos
intervir pedagogicamente nesse processo?
Na verdade, este tipo de interrogações sobre as prioridades do humano no
tempo que nos couber viver constitui uma exigência incontornável de toda a
racionalidade científica. Será esta a lição a retirar das críticas feitas à tradição
ocidental por Michel Foucault, Louis Althusser, Jacques Lacan, entre outros. Mais
do que anunciar o «fim do humanismo», a reflexão protagonizada por estes autores
veio lembrar que os ideais de humanidade requerem uma actualização histórica
contínua e que a razão científica não está fora deste esforço. Num mundo tão
complexo como o nosso, numa sociedade «ela própria revolucionada pela ciência»,
é preciso reaprender a fazer perguntas «simples, elementares, mas profundas,
perguntas que tragam luz nova à nossa perplexidade» (Sousa Santos, 1989).
Os quadros conceptuais que outrora suportavam a confiança epistemológica
têm vindo a desmoronar-se, provocando uma experiência colectiva de dúvida
geradora de um clima de incerteza e ambivalência sem precedentes. A única
lucidez possível parece ser agora a da consciência da própria incerteza, conforme
ensina Edgar Morin. Sem abandonar os princípios da ciência clássica – ordem,
separabilidade e razão –, pelo contrário, inserindo-os em esquemas de
combinação dialógica onde ordem, desordem e organização se entrelaçam
produtivamente, Morim (2000) desafia a ciência contemporânea a assumir os
factores complexidade e imprevisibilidade como seus traços constitutivos. O
espírito cartesiano passa assim a estar ao serviço de perspectivas sistémicas que
acolhem as tensões subjectivas inerentes ao movimento pendular entre universal
e singular, entre o todo e a parte ou entre previsto e imprevisto.
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Tal como tenho vindo a tentar fundamentar no quadro de uma reflexão ética
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sobre «pedagogia e políticas de alteridade» (Baptista, 2006; 2007; 2008), o


paradigma da complexidade advogado por Edgar Morim é indissociável de uma
concepção antropológica vinculada à alteridade, segundo a perspectiva relacional
proposta por Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida. Remeto assim para uma
«leitura filosófica» da obra levinasiana apresentada noutro texto (Baptista, 2007a),
esclarecendo que, por definição, a «leitura filosófica» corresponde ao processo de
fundamentação racional de uma determinada interpretação subjectiva, assumindo
criticamente todas as «infidelidades» e transgressões conceptuais que tal exercício
implica. Emmanuel Lévinas fez questão de se demarcar de qualquer teorização de
carácter socio-político, sem que tal diminua a força reflexiva das suas teses a este
respeito. Foi o que então se procurou sustentar, recorrendo para tal às
interpelações de outros filósofos, como Paul Ricoeur e Jacques Derrida. É
sobretudo a este último que devo a possibilidade de ter compreendido «Totalidade
e Infinito», talvez a obra mais conhecida de Lévinas, como um «imenso tratado
sobre hospitalidade» quando na verdade o seu autor quase nunca usa esse termo,
preferindo o de «acolhimento». O uso, neste texto, de expressões como:
«hospitalidade interdisciplinar e interprofissional» «auto-hospitalidade» ou «razão
hospitaleira» insere-se, pois, numa reflexão tributária dos autores referidos. Só
uma consciência capaz de se deixar interromper e ensinar por verdades nascidas
fora de si mesma poderá servir de suporte a uma «racionalidade hospitaleira»,
optando por designar assim o tipo de pensamento que aceita, sem receio, a
energia desconstrutora que advém da experiência de afecção intersubjectiva. Essa
energia é o que, na verdade, alimenta os sistemas impedindo a sua
obsolescência, como verdades situadas fora de todos os cânones e de todo o
cálculo, mas que por isso mesmo se apresentam à consciência «grávidas de uma
aceitabilidade possível» (Derrida, 2006).
De acordo com este alinhamento conceptual, mais do que substituir um
paradigma por outro, trata-se hoje de admitir a pluralidade paradigmática como
condição da prática investigativa. Sem que, todavia, tal signifique o estilhaçamento
da razão científica, a sua fragmentação ou dispersão. Bem pelo contrário, a confian-
ça epistemológica fortalece-se na exacta medida em que se renova, deixando-se
entranhar por factores como complexidade e incerteza o que, no contexto da reflexão
que proponho, é o mesmo que dizer capacidade de «paixão» e «compaixão».
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Pressupondo uma «aprendizagem social» assente na relação de intimidade

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com a vida e orientada para o desenvolvimento de laços constitutivamente sólidos
em termos de identidade pessoal e cívica, o tipo de educação que constitui objecto
de estudo da pedagogia social obriga-nos a desenhar linhas de uma «geografia
humana» mais permeável à entrada do outro que, sendo outrem, dá testemunho
de realidades que excedem, perturbam e intrigam a razão que as acolhe.
Tentando definir «os seus outros», a razão escolhe muitas vezes nomes como
sentimento, emoção ou sensação quando pretende referir-se a esse seu lado
perturbante «clamoroso e ameaçador, a esse atravessar e ser atravessado, a essa
súbita abertura ao Outro, a essa explosão não planeada de não-indiferença, a essa
busca de proximidade da distância» (Bauman, 1995).
Ora, desejando dar atenção – fazer justiça – à dimensão subjectiva dos
processos de devir humano, é necessário aprender a escutar e a traduzir os sinais
que vêm desse «outro lado da razão». De novo com Boaventura Sousa Santos
(1989), há que ter em conta que «as condições epistémicas das nossas perguntas
estão muitas vezes inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar
resposta». Os termos a que a razão se habituou a recorrer, sobretudo quando se
trata de designar os «seus outros», estão «viciados», constituindo em si mesmos
obstáculos à tradução racional.
Explica-se deste modo o facto de, entre as prioridades de trabalho actualmente
privilegiadas no contexto investigativo da Faculdade de Educação e Psicologia da
Universidade Católica, concretamente no domínio da pedagogia social, se
encontrarem os estudos centrados no questionamento de tipo nocional e a
procura de novas linguagens científicas. A sociedade complexa do século XXI
requer um pensamento novo, ele próprio complexo e alternativo. Ora, um
pensamento deste tipo precisa ser servido por uma linguagem ela também nova,
aberta, complexa e alternativa – hospitaleira.

Pedagogia Social – especificidade epistemológica

É, pois, num horizonte de mudança paradigmática e no espaço amplo e


impreciso das ciências da educação que surge hoje a pedagogia social, trazendo
consigo a inevitável interrogação sobre a legitimidade científica da própria
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pedagogia, uma área tradicionalmente prestigiada no seio dos saberes


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educacionais mas que entretanto foi sendo desacreditada em virtude da sua


reconhecida ligação ao mundo filosófico e metafísico. Todavia, «expulsa pela
porta», a pedagogia parece agora querer «entrar pela janela» por força da
necessária resubjectivação do discurso científico. Remetendo para outro contexto
o adequado tratamento académico da questão de saber se podemos ou não
chamar ciência à pedagogia, situo o lugar científico da pedagogia social neste
retorno da pedagogia que, na verdade, é um «retorno das pedagogias», conforme
salienta Adalberto Dias de Carvalho (1992).
Durante muito tempo confundida com a sociologia da educação (Quintana
Cabanas, 1988), a pedagogia social tende hoje a ser aparentada à filosofia da
educação, disciplina com a qual, todavia, mantém relações fortes que guardam a
memória crítica de uma relação umbilical originária. Sem menosprezar ou temer
o contágio da filosofia, muito pelo contrário, desejando-o, recuso aceitar que,
enquanto ciência da educação, a pedagogia social seja tomada por uma espécie
de teoria geral sobre a intervenção sócio-educativa, funcionando como um saber
super-substantivado, gerador de múltiplas especializações susceptíveis de
adjectivação indiscriminada e confusa, como se estivéssemos perante uma
«espécie de saco sem fundo» para onde podem ser lançadas todas as
aprendizagens ditas «não-escolares».
Neste sentido, e antes de mais, privilegio o recurso à expressão
«aprendizagem social», evitando a designação de «não-escolar», por considerar
pouco pertinente nomear uma realidade tão específica e relevante a partir de uma
identidade negativa, ou seja, tendo por referência aquilo que ela não é, nem
pretende ser. Chamar de «não-escolar» à aprendizagem social faz tanto sentido
como denominar a aprendizagem escolar de «não-social». Na realidade, ao
ignorar a especificidade distintiva dos universos em referência, acabamos por
obscurecer os núcleos de fecundidade produzidos nas zonas de intersecção entre
as duas culturas de aprendizagem – escolar e social.
O que está em causa é a valorização da educação em todas as suas
dimensões e durante toda a caminhada existencial. Nesta medida, o aprender «na
e com escola», experiência fundamental e preciosa em qualquer aventura de vida,
passa a coexistir em regime de articulação dinâmica com outras formas de educar
e aprender, distintas nos tempos e nos modos. O que distingue então estas formas
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de aprender, justificando a «mútua hospedagem» ou cooperação activa? Que

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implicações sociais, políticas e organizacionais decorrem dessa ligação? Qual a
relação entre a aprendizagem social e o sucesso escolar, por exemplo?
São precisamente questões como estas que estão na base de muitos dos
projectos de investigação e de acção actualmente em desenvolvimento na área de
especialização da pedagogia social no contexto da FEP/UCP. Projectos como:
«Escola e Comunidade»; «Mediação Escola-Família»; «Escola e educação ao longo
da vida»; «O Educador Social na Escola»; «O Professor Mediador»; «Organização
escola e comunidades de aprendizagem», «Inclusão Social da Escola» ou «A
Escola como lugar de hospitalidade social».
Aceitando as definições veiculadas no documento produzido pela Comissão
Europeia – «Tornar o Espaço Europeu de aprendizagem ao longo da vida uma
realidade» (2001) – sobre os conceitos de «aprendizagem formal»,
«aprendizagem não-formal» e «aprendizagem informal» e reafirmadas
recentemente no plano nacional através do Despacho sobre Reconhecimento,
Creditação e Certificação de Competências (cf. IPP/P-098/2007), pode dizer-se
que as intervenções enquadradas pela pedagogia social tendem a privilegiar as
modalidades de educação não-formal e informal, dado que estas modalidades se
referem a uma aprendizagem que não é, necessariamente, dispensada por um
estabelecimento de ensino ou de formação e que nem sempre conduz a uma
certificação reconhecida nos moldes tradicionais.
Contudo, em rigor, estamos perante uma perspectiva bem mais abrangente e
complexa, assente no acolhimento de diferentes dimensões de educação e
formação, segundo uma lógica compreensiva de «lifewide learning» orientada por
objectivos de solidariedade social.

Campo de hospitalidade interdisciplinar e


interprofissional

Ancorada no reconhecimento da dimensão subjectiva e valorativa que é


intrínseca ao conhecimento humano, a pedagogia social apresenta-se no espaço
plural das ciências da educação e, de um modo geral, da ciência contemporânea,
com uma identidade científica apoiada em dinâmicas de hospitalidade
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interdisciplinar e interprofissional. Como vimos, o seu objecto de estudo configura


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uma variedade infinita de tempos e espaços, em consonância com a pluralidade


de exigências que suportam o existir humano. O que em termos epistemológicos
faz com que uma das tarefas fundamentais da razão sócio-pedagógica seja,
obrigatoriamente, a da interrogação sobre as suas próprias ambições, sobre os
seus limites e os seus limiares de hospitalidade.
Assumem-se, portanto, como interrogações internas à pedagogia social as que
se prendem com a sua ligação a outras disciplinas, a outras pedagogias e a outros
domínios de intervenção sócio-educativa. Qual a relação da pedagogia social com
a «pedagogia intercultural», a «pedagogia dos tempos livres», a «pedagogia do
imaginário», a «pedagogia institucional», a «pedagogia ambiental» ou a
«pedagogia intergeracional»? Prolongando as questões levantadas atrás, a
propósito da cultura escolar, e tendo em conta o caminho a fazer na realização da
utopia de uma educação ao longo da vida, até que ponto, e de que modo, faz
sentido articular a pedagogia social com a «Educação de Adultos», por exemplo?
Reside justamente aqui uma das características fundamentais da pedagogia
social e um dos seus contributos mais interessantes para o debate epistemológico
contemporâneo, particularmente no seio das ciências da educação. Ao instituir-se
como um saber matricialmente dependente da qualidade das interfaces
produzidas na relação com outros saberes, a pedagogia social oferece um capital
de conhecimento decisivo na construção de novos modelos de inteligibilidade,
traduzidos, forçosamente, em novos esquemas de acção. Com isto não se
pretende, de modo algum, pôr em causa a validade e a pertinência do saber
disciplinar. Se assim fosse, como poderíamos falar ainda em interdisciplinaridade?
O que acontece é que estamos perante um modelo de racionalidade que, dada a
natureza transdisciplinar do seu objecto de estudo é incompatível com a existência
de «mentalidades fortaleza», próprias da lógica positivista.
As mentalidades fortaleza tendem a produzir um conhecimento segmentado
por especializações de ordem disciplinar que, por sua vez, favorece intervenções
sectoriais e parcelares, desenhadas para «populações» tipificadas e sinalizadas
como «alvo» tendo por base o «diagnóstico» de «défices» ou carências
psicossociais. Numa espécie de efeito em cadeia, esta cultura de acção «em
fragmentos» acaba por alimentar atitudes profissionais de carácter corporativista,
gerando o fenómeno a que Meirieu (1993) chama de «associação mole»,
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referindo-se a ambientes de equipa pobres em diálogo interprofissional, onde, em

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nome da pretensa «harmonia» do grupo, se evitam os incómodos inerentes à
verdadeira interacção, sacrificando assim os valores de autenticidade e coerência.
As respostas públicas à «questão social» passarão sempre, e necessaria-
mente, por uma atenção privilegiada à situação concreta das pessoas
identificadas como especialmente vulneráveis e carentes de ajuda. Os seus
sofrimentos, dramas e anseios pessoais apelam a medidas de urgência. Mas
estaremos a hipotecar a mudança social positiva se nos mantivermos no quadro
de respostas sociais de assistência, circunscritas a zonas de atenção prioritária.
Como mostrou Robert Castel (2007), «se nada mais for feito, a luta contra a
exclusão corre o risco de se reduzir a um pronto-socorro social», intervindo «aqui
e ali» sem chegar a atender aos processos que produzem as situações de
urgência.
Só um processo de construção solidária do conhecimento, apoiado em
dinâmicas de hospitalidade interdisciplinar e interprofissional permite gerar
leituras adequadas à multidimensionalidade dos fenómenos educativos e sociais.
Este esforço depende muito da forma como, no plano da realização prática, os
saberes teóricos forem sendo «incorporados», vividos e conceptualizados pelos
sujeitos que protagonizam a intervenção sócio-educativa. Salientando, porém, que
as percepções dos técnicos são importantes e decisivas, mas na medida em que
elas resultam de um diálogo reflexivo, e comprometido, com as pessoas e as
situações.

Pedagogia e Social e Educação Social

A história da pedagogia social é uma história viva e, como tal,


permanentemente reactualizada e reescrita por investigadores-actores, na sua
qualidade de herdeiros conscientes – simultaneamente fiéis e infiéis – de um
passado, de um património e de uma tradição. Tomando apenas como referência
o contexto europeu, onde se pode dizer que nasceu a pedagogia social enquanto
disciplina explicitamente autónoma, mais precisamente na Alemanha recém
industrializada do século XIX, são múltiplos e imensamente ricos os contributos
que alimentam hoje a cultura científica da pedagogia social. De tal modo que um
17
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dos desafios de estudo mais pertinentes nesta área de conhecimento se prende,


 Cadernos de Pedagogia Social

justamente, com o levantamento da história e pré-história da pedagogia social.


Sem qualquer pretensão a este respeito, e sem querer desvalorizar a
pluralidade de experiências internacionais, escolho destacar o caso da vizinha
Espanha. Não só pela qualidade e diversidade da respectiva produção científica,
desenvolvida em décadas de trabalho, mas também pela forma como esta
tradição tem marcado o panorama nacional que podemos considerar ainda em
fase de emergência. Os autores espanhóis parecem convergir para a definição da
pedagogia social como ciência da «educação social», identificando como tal todo
o universo prático da educação dita «não-escolar» (Caride, 2005; Nunez, 2002).
É esta também a linha de pensamento inicialmente assumida por Maria João
Couto, autora de um dos primeiros trabalhos académicos produzidos nesta área
em Portugal – «Da Comunicação entre diferenças, reflexões em torno da
educação social e do seu sentido» (Tese de Mestrado em Filosofia de Educação,
FLUP, 1996).
Por razões que transcendem a divergência terminológica, considero pouco
adequado identificar como «educação social» a totalidade do campo empírico da
pedagogia social. A meu ver, a educação social corresponde a uma área muito
específica dentro do universo vasto e multifacetado da pedagogia social, referindo-
se à praxis educativa desenvolvida no campo tradicionalmente identificado como
de «trabalho social», onde hoje é chamada a conviver com outros saberes. Assim
o atesta o processo de afirmação histórica da profissão de educador social em
Portugal, em particular na última década, e que a este nível tem vindo a evidenciar
a tendência para uma maior aproximação à tradição europeia de matriz anglo-
saxónica onde temos «Escolas Superiores de Educação Social e Trabalho Social».
As análises produzidas no âmbito dos programas de investigação e formação
desenvolvidos pelo projecto de pesquisa «European Social Ethics Project»,
promovido pela rede europeia ESEP/FESET2 actualmente dirigida por Helene

2
FESET – Formation d’Educateur Sociaux Eurpéens; European Social Educator Training (www. Feset.dk).
Sob o patrocínio desta federação europeia e enquadrados pelas actividades da rede ESEP (European
Social Ethics Project), os estudantes da turma de Mestrado de Pedagogia Social UCP (2007-09) e os
técnicos UCP/TCA (Trofa Comunidade de Aprendentes», participam de uma pesquisa sobre «ética
intercultural», coordenada internacionalmente por Anne Liebing, University College Sealand, Faculty of
Social Education and Social Work, Roskilde, Dinamarca.

18
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Petterson (Universidade de Kalmar, Suécia), permitem-nos concluir igualmente

 Cadernos de Pedagogia Social


pela pertinência dessa aproximação. Este ambicioso projecto de investigação-
formação-acção, centrado no «ethos dos trabalhadores sociais», encontra-se em
desenvolvimento desde 1998, por proposta e coordenação inicial de Sarah Banks
(Universidade de Durham, Reino Unido), reunindo desde então docentes e
investigadores de vinte instituições e envolvendo dezenas de estudantes e
profissionais de diversas nacionalidades europeias, incluindo Portugal (cf. FESET,
1999; Carvalho & Baptista, 2003, 2004; Banks, 2003). Todos os estudos
realizados neste contexto convergem para o reconhecimento da pertinência, e
diferença, da mediação pedagógica no interior das dinâmicas de protecção e
apoio social.
Por outro lado, e pelas razões já indicadas, a intervenção sócio-educativa não
é redutível a uma «pedagogia de socorro», inserida naquilo a que se convencionou
chamar «área de exclusão social». Numa sociedade «vulnerável e precária»
(Castel, 1995) onde o trabalho deixou de funcionar como o grande factor de
integração e coesão, é necessário promover uma outra lógica de
acompanhamento das trajectórias de vida. A experiência contemporânea
associada ao fenómeno de exclusão evidencia a necessidade de uma intervenção
mais a montante, reencaminhada para o coração da vida social onde começam
os complicados processos de vulnerabilização humana. Aliás, é a própria
categoria de «exclusão» que se revela insuficiente e, a muitos níveis, inadequada
para descrever o carácter enredado e labiríntico destes processos. Por esta razão,
a especificidade do contributo da educação social no seio da «acção social» deve
medir-se também, ou principalmente, pela sua filiação conceptual e metodológica
a um universo mais vasto de problematização e acção que dá pelo nome de
pedagogia social.
Recordando palavras de Pierre Ceyrac, padre jesuíta laureado com o grande
prémio da Academia Universal das Culturas, num testemunho sobre a sua imensa
experiência no plano das organizações humanitárias apresentado num debate
promovido pela UNESCO (Paris, 2003), a interpelação vinda do rosto dos «pobres
e excluídos», em consequência da sua dramática experiência de vida, tem o poder
de nos lembrar o sentido fundacional da humanidade – ou vulnerabilidade –
comum. Para que aconteça verdadeira solidariedade é necessário que algo venha
despertar o mais fundo da consciência humana, provocando «compaixão». E,
19
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nessa medida então, são de facto «eles», os nus e os famintos, que nos ensinam
 Cadernos de Pedagogia Social

a arte do encontro e da partilha, o segredo da verdadeira salvação.


O sentido da vida em sociedade é indissociável do respeito pelo mistério que
define ontologicamente cada pessoa justificando a necessidade, e a fecundidade,
da prática intersubjectiva. É essa separação ontológica que, explicando a
unicidade de cada ser humano, nos permite entender o pluralismo enquanto
princípio de democracia, paz, justiça e solidariedade. As pessoas – todas as
pessoas – são seres únicos, misteriosamente em trânsito e em desenvolvimento
e, nessa condição, partilhando «o mesmo barco» na aventura de ser mais,
melhor, diferente. Ou, evocando Lévinas, mais exactamente na aventura de
procurar ser «para lá do simplesmente ser». Isso significa que ninguém está livre
da ameaça de naufrágio mas também, e sobretudo, que o sucesso, a felicidade e
a «boa sorte» da viagem, pessoal e colectiva, dependem de uma estratégia
comum. Somos todos «sujeitos de ajuda». Precisamos todos de «ser salvos». E,
importa não o esquecer, ninguém se salva sozinho.

Esteios de racionalidade sócio-educativa


Como notou Paciano Fermoso (1994), basta pesar a polissemia dos termos
em conjugação – «pedagogia» e «social» –, para compreender a dificuldade de
fundamentação de uma ciência como esta. Considerados isoladamente ou em
articulação, os dois vocábulos remetem-nos para uma teia de significados muito
intrincada, urdida numa malha histórica com raízes na antiguidade clássica. As
remissões mais frequentes reconduzem-nos à tradição greco-latina, começando
pelo ideal pedagógico da «polis» expresso na «paideia» grega e prolongado na
«civitas» romana. Mas há que considerar igualmente a riquíssima experiência das
escolas populares e o extraordinário capital de conhecimento produzido pelos
movimentos sociais que animaram as lógicas de desenvolvimento sócio-
comunitário durante século XX, na sua maioria, tributários da Doutrina Social da
Igreja e das correntes socio-políticas de inspiração marxista.
São efectivamente múltiplos os veios que alimentam a corrente de sentido que
suporta a pré-história e a história da pedagogia social. Contudo, é possível, e
pertinente, identificar nesta corrente algumas das fontes de inspiração que melhor
ajudam a entender as configurações contemporâneas:
20
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a) A ligação entre educação e solidariedade, originariamente associada às

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práticas de beneficência e de «ajuda» a pessoas e grupos humanos
considerados como excluídos ou susceptíveis de exclusão, como a infância
e a juventude. Uma orientação especialmente notória na última metade do
século XX, numa época profundamente marcada pelos cenários de
urgência que caracterizaram o «pós-guerra».

b) A proximidade às ideologias e às doutrinas sociais, vocacionadas para a


preparação moral e cívica dos indivíduos, dando neste caso especial
atenção à formação do ser humano numa perspectiva de desenvolvimento
de competências de vida em sociedade.

c) O reconhecimento da função educadora da própria sociedade, girando em


torno do potencial pedagógico das cidades e das suas comunidades, dos
seus lugares públicos e institucionais e valorizando também os chamados
tempos livres e as modalidades informais de aprendizagem.

Os dois últimos aspectos correspondem curiosamente à dualidade proposta


por Paul Natorp, um dos reconhecidos fundadores da pedagogia social, que
sublinhava o papel socializador da educação e simultaneamente o papel educador
da sociedade (Quintana Cabanas, 1988; Fermoso, 1994; Cólon, 1988).
Procurando acolher criticamente estes contributos num esforço de
reconceptualização configurado pelas interpelações vindas da sociedade
educativa, atrevo-me a indicar as acepções de pedagogia social que me parecem
mais pertinentes na actualidade, assumindo para o efeito os riscos inerentes a
uma sistematização inevitavelmente redutora. Quando usamos a expressão
«pedagogia social» podemos estar a referirmo-nos a:

1) Uma ciência – Inserida no campo epistemológico das ciências da educação


e tendo como objecto de estudo a aprendizagem social, em conformidade
com o ideal de uma educação ao longo de toda a vida num cenário de
religitimação histórica do Estado providência. Forçosamente indexada a
uma perspectiva humanista, hospitaleira, sensível e capaz de heterodoxia,
a racionalidade sócio-pedagógica assume a exigência de circularidade
21
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epistémico-antropológica como condição de inteligibilidade interdisciplinar,


 Cadernos de Pedagogia Social

ocupando, nessa medida, um lugar incontornável na definição de novos


paradigmas e linguagens científicas.

2) Uma disciplina académica – A ser incluída nos currículos de ensino


superior, em todos os seus ciclos de formação, tendo em conta as
exigências de uma aprendizagem social no seio de uma sociedade que
pretende ser educativa. Em particular, nos cursos que à partida se
apresentam como explicitamente vocacionados para a intervenção
pedagógica, escolar ou social. Considerando, todavia, que o campo de
acção enquadrado pela razão sócio-pedagógica tende hoje a abarcar
múltiplos cenários educacionais, procedentes das mais diversas áreas de
conhecimento, desenvolvidos numa pluralidade de contextos de intervenção
e, como tal, reclamando um quadro muito vasto e diferenciado de perfis
formativos.

3) Um saber técnico-profissional – Um conhecimento de carácter teórico-


prático que pode funcionar como saber profissional de referência para uma
pluralidade de actores sociais. Nalguns casos, a pedagogia social pode
mesmo ser assumida como saber matricial, nomeadamente em áreas com
maior autonomia técnica, como acontece hoje em Portugal com a
Educação Social e a Animação Sóciocultural.

4) Uma filosofia de acção – Uma cultura de trabalho orientada para a


promoção de laços sociais significativos entre pessoas, instituições e
comunidades, funcionando nesta medida como uma antropologia prática
associada a valores de humanismo de carácter relacional. Nesta acepção,
a pedagogia social tem tendência a aparecer adjectivada de múltiplas
formas, de acordo com a dimensão axiológica privilegiada. A opção
conceptual por uma antropologia da alteridade encaminha-nos para a
defesa de uma «pedagogia de proximidade humana» ou «pedagogia de
hospitalidade social».

22
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Como se disse, estamos perante facetas de uma mesma realidade, todas elas

 Cadernos de Pedagogia Social


válidas e pertinentes, sendo que nenhuma é redutível à outra. Também aqui, a
parte nunca poderá ser confundida com o todo que é pedagogia social, sob pena
de desvirtuarmos a sua cientificidade, conforme alerta José António Caride. «Não
podemos confundir a construção do estatuto epistemológico de uma ciência ou de
uma disciplina científica – neste caso a pedagogia social – com o que muitas
vezes não é mais do que um dos modos de pensá-la e praticá-la» (2005). Daí que
seja necessário vertebrar a pedagogia social em eixos de inteligibilidade claros e
precisos, traduzidos em domínios de acção igualmente bem identificados.
.

Áreas e domínios estratégicos de acção

O processo de desenvolvimento humano corresponde a um caminho sempre


em aberto, marcado por incontornáveis factores de incerteza e complexidade,
como se disse, mas isso só contribui para reforçar a necessidade de decisão e de
aposta estratégica. Neste sentido, e considerando as interpelações vindas da
nossa contemporaneidade, podemos identificar como áreas e domínios
estratégicos da pedagogia social os seguintes:

I) Educação Social – Intervenção educacional especificamente direccionada


para o apoio a pessoas e grupos humanos identificados como vulneráveis e
carentes de atenção prioritária. Situada no interior da chamada «acção
social», a intervenção pedagógica assume exigências de especialização
muito próprias, em conformidade com a singularidade dos problemas e das
situações, mas funcionando sempre como mais do que «uma pedagogia de
urgência», de acordo com um sentido integrado e integrador do processo de
desenvolvimento humano.

II) Educação, trabalho e emprego – Promoção de condições de realização


laboral dos sujeitos num contexto de inserção socioprofissional marcado
por factores de complexidade e precariedade associados à mutação
permanente de lugares, papéis e funções. Subordinadas a princípios de
uma racionalidade hospitaleira, isto é, inscritas num quadro prospectivo
23
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irredutível a lógicas circunstanciais de carácter meramente economicista,


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as estratégias de formação para o emprego equacionadas no âmbito da


pedagogia social visam ampliar o horizonte de possibilidades das pessoas,
consideradas na integralidade da sua condição humana e não como meros
«recursos», contribuindo desse modo para a criação de oportunidades de
vida e de trabalho originais e empreendedoras. Entendido como parte
fundamental, mas não exclusiva, do «direito social de inserção», o direito ao
trabalho surge neste contexto obrigatoriamente articulado com outros
direitos sociais.

III) Educação e formação de adultos – Apoio e incentivo a processos


intencionais de formação ao longo da vida, desenvolvidos «na e com a
vida», acessível a todos os cidadãos segundo princípios de hospitalidade
cívica, cultural, geracional e profissional. Explorando linhas de intersecção
entre a pedagogia escolar e a pedagogia social, assume aqui especial
importância a especificidade de uma mediação pedagógica vocacionada
para a «construção da procura» de aprendizagem. Trata-se não só de
detectar e gerir assistenciamente necessidades de formação, mas
também, ou sobretudo, de ajudar a despertar «fomes de invisível» em
pessoas de todas as idades.

IV) Educação e Ambiente – Consciencialização para a sustentabilidade


enquanto condição de desenvolvimento solidário, inscrevendo o ambiente
no seio de uma cultura de responsabilidade cívica que procura ter em
conta a hospitalidade do próprio mundo natural – fonte de alimento, de
sustento e fruição mas não recurso inesgotável. Na defesa da qualidade
ambiental está em causa a qualidade de vida das gerações
contemporâneas mas também a das gerações ainda por nascer, dando
assim expressão ao respeito pelo futuro enquanto tempo de alteridade por
excelência. A pedagogia social pode neste aspecto desenvolver uma
colaboração profícua com o que hoje se designa por «educação
ambiental», sem, todavia, se confundir com ela.

V) Educação e Cidade – Uma pedagogia desde e para a cidadania,


considerando a miríade de conexões que envolvem a relação entre a
24
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educação e a cidade. Valorizada simultaneamente como contexto, como

 Cadernos de Pedagogia Social


conteúdo e como agente de educação, em consonância com o ideal das
«cidades educadoras», mas na consciência de que o direito à cidade
educadora se cumpre, antes de mais, como direito à cidade. O que implica
dar atenção aos processos de apropriação pessoal e cívica dos lugares
urbanos, alinhado o «fazer cidade» com um «fazer sociedade».

VI) Educação e políticas públicas – Pela relevância socio-política do saber a


que se reporta, a pedagogia social ocupa um lugar decisivo na definição e
regulação das medidas que configuram o espaço público da educação e da
solidariedade social, concretamente no desenho de modelos integrados de
intervenção, segundo uma lógica que procura evidenciar o papel do Estado
no apoio à acção dos próprios técnicos, instituições, comunidades,
movimentos cívicos e cidadãos em geral. Reconhecendo a pluralidade de
preocupações de natureza antropológica que hoje configuram a chamada
«questão social», a pedagogia social pode ainda assumir a forma de uma
medida política específica.

Indicadas sem obediência a qualquer ordem hierárquica e na consciência dos


factores de subjectividade e ambivalência inerentes à responsabilidade de uma
escolha, estas áreas não esgotam, evidentemente, o universo de intervenção da
pedagogia social. Por outro lado, e tal como foi sublinhado, importa reter que a
pedagogia social intervém em todos estes domínios numa postura de
compromisso com o diálogo interdisciplinar, apresentando-se com espírito de
identidade nos territórios comuns e, dessa forma, aventurando-se em espírito de
hospitalidade nas zonas de encontro, de fronteira ou de limiares científicos.

Autoridade pedagógica e formação contínua:


a interprofissionalidade como exigência ética

Indexado a uma matriz epistemo-antropológica de carácter humanista, o


exercício prático da pedagogia social apoia-se em iniciativas originais e
contextualizadas, desenvolvidas em ambientes relacionais muito complexos e
25
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variados. Um trabalho desta natureza requer espaços de autoridade pedagógica


 Cadernos de Pedagogia Social

de elevada exigência técnica e ética. Por «autoridade pedagógica» entende-se a


capacidade para, em situação educativa, nos afirmarmos como sujeitos de
decisões tecnicamente sustentadas. O que nos conduz à questão de saber quais
os valores e as competências que devem balizar o espaço de autoridade
pedagógica dos «pedagogos sociais». Na verdade, quem são, ou quem podem ser,
os autores de mediação sócio-pedagógica?
Tomando como referência privilegiada a experiência da FEP/UCP nesta área
de formação3, pode afirmar-se que, exigindo profissionalidade e preparação, o
saber sócio-pedagógico não remete para uma autoridade profissional exclusiva,
podendo constituir referência normativa para uma pluralidade de agentes de
desenvolvimento humano. Sem que, todavia, tal obste a que muitos profissionais
possam, legitimamente, reclamar a pedagogia social como um saber matricial.
Em Portugal o caso dos educadores sociais e dos animadores socioculturais
parece-me emblemático a este respeito, estes dois grupos têm vindo a adoptar a
pedagogia social como seu saber profissional de referência ao mesmo tempo que
pugnam pelo reconhecimento público da sua identidade distintiva.
Tal como tem vindo a ser estudado e concretizado no seio da UCP, o processo
de apoio à definição do ethos dos «pedagogos sociais» privilegia modelos de
actuação próximos dos actores e das situações experienciais, segundo uma lógica
de «problem-oriented project work» alicerçada numa preparação académica
exigente, do ponto de vista cientifico, técnico e ético. Enunciado em termos
sintéticos este processo passa por:
- Projectos de investigação-acção promovidos no âmbito de parcerias
institucionais ou inseridos nos cursos de mestrado e doutoramento.
- Promoção, acompanhamento, acreditação cientifica e certificação de
«comunidades de prática» ou «núcleos de aprendizagem cooperativa».

3
Desde 2004 que a FEP/UCP, dirigida por Joaquim Azevedo, vem promovendo programas de formação
pós-graduada na área da Pedagogia Social (cursos de especialização, mestrados, doutoramentos),
projectos individuais de formação-acção (tutoriado pedagógico) e dinâmicas de formação contínua
ligadas aos vários projectos de intervenção sócio-educativa que decorrem sob a supervisão cientifica
da UCP, abrangendo mais de duas centenas de técnicos, oriundos de diferentes áreas de actividade,
detentores de perfis académicos diversos e que, por sua vez, actuam como mediadores de formação
numa pluralidade de contextos sociais. (Cf. Revista Cadernos de Pedagogia Social. (1). UCP. 2007;
www.porto.ucp.pt; www.trofatca.pt)
26
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- Dinâmicas de tutoriado pedagógico, dirigidas a partir da equipa de «tutores

 Cadernos de Pedagogia Social


académicos» e replicadas numa pluralidade de contextos através de redes e
sub-redes de tutores e mediadores de aprendizagem, tendo por base
protocolos específicos com projectos e instituições.
- Participação activa em associações, redes e parcerias científicas, nacionais
e internacionais.
- Produção de guias didácticos, cadernos pedagógicos e publicações
científicas.
- Oferta permanente de cursos de especialização em regime de formação pós-
graduada, centrados em áreas de interesse emergentes dos contextos de
investigação e acção. 4

Em termos de supervisão científico-pedagógica, conceptualização e


formalização de experiências, este esquema articulado de formação-acção é
dinamizado pela equipa de investigadores da FEP, formalmente enquadrada pelo
Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano (CEDH/UCP). Apela-se aqui,
portanto, para o carácter normativo e, em boa medida, prescritivo que caracteriza
o saber pedagógico mas na medida em que se trata de saber intimamente ligado
a uma prática, da qual se alimenta e à qual fornece alimento.
Procurando aliar as qualidades de inteligência reflexiva a uma sabedoria ética
capaz de enlaçar os universos de fundamentação e de aplicação, procura dar-se
especial atenção à promoção de aptidões subjectivas e cívicas dos próprios
técnicos, atendendo à sua responsabilidade enquanto agentes de subjectivação e
de proximidade humana. Valorizada como conteúdo curricular ou como
preocupação subjacente e norteadora de todos os projectos, seja ao nível da
orientação de itinerários pessoais ou da dinamização de equipas de supervisão
pedagógica, a Ética ocupa neste sentido um lugar central em todas as práticas
formativas.
Retomando a questão levantada por Philipe Meirieu sobre as «associações
moles», considera-se que a sensibilidade relacional dos pedagogos sociais

4
No que se refere a cursos, no ano de 2007 o plano de formação contínua correspondeu à seguinte
oferta: «Mediação Social» (Porto); «Gestão de projectos de intervenção comunitária» (Porto); «Ética e
intervenção» sócio-educativa» (Porto); «Acção sócio-educativa» (Évora); «Hospitalidade e Pedagogia
Social» (São Paulo, Brasil).

27
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constitui uma aptidão profissional inseparável das suas próprias competências de


 Cadernos de Pedagogia Social

interioridade ou «auto-hospitalidade». Parafraseando Meirieu (1993), a interven-


ção pedagógica não pode constituir um exercício solitário e a gestão da comple-
xidade requer, cada vez mais, hábitos de cooperação. Acontece, porém, que esta
só é possível, só tem sentido, entre sujeitos livres, capazes, enquanto tal, de
hospitalidade intersubjectiva.
Como tal, associando a existência de princípios éticos comuns, condição de
referência identitária, ao desenvolvimento de uma consciência individual marcada
por valores de hospitalidade, responsabilidade e bondade, aposta-se na
interprofissionalidade como exigência ética resultante da necessidade de trabalho
«em rede» mas também, ou fundamentalmente, do imperativo de construção
solidária do saber. A essência de uma equipa multiprofissional de sucesso reside
na mistura de objectivos e valores partilhados ao mesmo tempo que se abre
espaço para a revelação da contribuição pessoal e distintiva (Banks, 2004). A
interprofissionalidade surge-nos, pois, como algo que precisa ser trabalhado,
como um valor ou ideal a atingir, e não como um bem preexistente e previamente
garantido. Ou, muito menos ainda, como algo que possa ser burocraticamente
decidido e imposto de fora. Também aqui, a grande prova de afirmação de
identidade, neste caso profissional, reside no modo como os valores próprios são
colocados «à disposição» de outros, produzindo comunidade.
Em suma, a inserção da pedagogia social no quadro de prioridades da
investigação e acção educacionais constitui hoje um factor crucial para a
concretização de políticas sócio-educativas capazes de dar expressão aos ideais
de humanidade e cidadania num tempo cheio de dificuldades, de ameaças e
«sombras negras», mas também muito auspicioso e desafiante. Este esforço pede
uma mentalidade académica e científica forte, capaz de hospedar diferentes
culturas disciplinares e profissionais.

28
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30
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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 31-43

Estatuto antropológico e limiares


epistemológicos da educação social
Adalberto Dias Carvalho

Resumo
O presente artigo desenvolve a temática do estatuto da educação social
enquanto disciplina de confluência e síntese de vários saberes e enquanto
prática de intervenção. Para o efeito questiona a sua relação com as ciências
da educação e com a pedagogia social, a par das suas conexões com a ética
e a política. Numa perspectiva essencialmente hermenêutica indaga-se ainda
o complexo desafio que as situações-limite e o contrato social colocam à
sociedade civil impondo que esta promova o exercício de uma cidadania
responsável, dimensão em que a educação social tem um papel fundamental.

1. A educação social como praxiologia e os


desafios da ética

A Educação Social é uma prática que, enquanto tal, tem incorporada uma
teoria. Poderá também ser olhada como uma acção teoricamente estruturada.
Numa palavra, poderemos defini-la como uma praxiologia, termo que foi

*
Gabinete de Filosofia da Educação do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto. Colaborador no Mestrado de Pedagogia Social FEP/UCP.
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amplamente utilizado pelas ciências da educação ou pelas ciências pedagógicas


 Cadernos de Pedagogia Social

enquanto estas se perfilaram, após a emergência daquelas, como expressões do


discurso reflexivo da prática.
Entretanto, se é verdade que as ciências da educação adoptaram os
paradigmas de ciências humanas pioneiras como a psicologia e a sociologia, daí
tendo tirado algumas vantagens, em termos de afirmação, e outros tantos
prejuízos, em termos de identidade, eis que a educação social tende a reeditar o
mesmo modelo de subsidiariedade epistemológica, mas tendo agora como
referência as próprias ciências da educação. Por esse facto, se, sem mais,
permanecer nesse estádio, tende a reeditar alguns daqueles problemas.
Paralelamente, os desafios da prática colocam-se com uma especial acuidade,
solicitando e rejeitando, num mesmo e contraditório movimento, a racionalidade
teórica. Este fenómeno ocorre porque, precisamente como no domínio da
educação formal, o saber científico da educação social, quando procura construir
uma prática decorrente da configuração do seu objecto teórico, confronta-se com
toda uma realidade tecida por um saber empírico já constituído,
institucionalmente organizado e consolidado pela tradição. Tratando-se de um
saber intimamente ligado a actividades profissionais, o poder em causa integra
ainda, por vezes, uma dimensão corporativa. A tendência é então para o tribunal
da verdade se instalar no senso comum, aceitando este da ciência apenas o que
pode acatar sem pôr em jogo a sua lógica e o seu poder.
Deste modo, implanta-se um jogo de lógica e de poder – ou a lógica de um
poder – em que, pela rotina, se sedimentam valores morais, contudo, hoje em dia,
frequentemente desafiados pelos limiares críticos da inovação científica e da falência
de vários dos modelos sociais historicamente prevalecentes. Perante a crise que
assim emerge, apela-se à reconfiguração dos códigos de ética, por vezes, para se
dar lugar à possibilidade de referenciais axiológicos consentâneos com as novas
realidades e paradigmas gerados pela ciência, pela técnica bem como por
representações e práticas sociais alternativas; outras vezes, pura e simplesmente
para, através da estratégia de uma nova legitimação, se suster o que é visto como
uma ameaça aos valores tradicionais entretanto identificados como detendo a
própria essência dos valores. Trata-se de uma autêntica ontologia axiológica.
Acresce que num quadro como este em que o relativismo ganha espaço não
só a fundamentação ética aparece como sendo relevante como, em estreita
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articulação com ela, se impõe a urgência de cartas deontológicas. Simplesmente,

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se a transcendentalidade da Razão permitia a Kant radicar a deontologia no
âmago da ética – a ética era aí imperativa -, contemporaneamente, essa co-
-emergência da ética e da deontologia – ou apenas de uma ética deontológica –
é impossível. A imperatividade, ainda que procurada mediante a falência, ou crise,
dos sistemas normativos tradicionais, é mal aceite por uma ideologia dominante
que tende a valorizar a individualidade das pessoas numa óptica individualista que
é, assim, reducionista. Concomitantemente, o “sono dogmático”, para cujo
despertar apelou Foucault em As Palavras e as Coisas, não é mais aceitável,
abrindo-se por esta via campo, enquanto último reduto da possibilidade de uma
ética universal, às éticas dialógicas em que o papel dos argumentos – e dos
acontecimentos aí situados – é privilegiado, preterindo-se a solidez e a
anterioridade metafísica dos fundamentos que permitiram a enunciação das
grandes declarações, fossem estas políticas, sociais ou profissionais. No fundo, é
também de uma crise de fundamentação – tradicionalmente remetida para o
direito natural, podendo este assentar na natureza divina, humana ou material,
natureza esta entretanto questionada em todas as suas dimensões – de que
padecem actualmente as próprias declarações dos direitos humanos, elas
mesmas sendo, em última análise, as grandes cartas deontológicas da
modernidade.
O que está então verdadeiramente em causa? Pensamos que a viabilidade e a
legitimação da responsabilidade entendida como suporte das relações sociais,
responsabilidade a plasmar sob a forma de contratos sociais que vinculem as
pessoas e as organizações a princípios decisivos para a coexistência e coesão
sociais. Será aqui, aliás, que ganha força o reconhecimento de uma sistemática
conceptual que gradue as noções de indivíduo (sem mais), de indivíduo na
sociedade e de indivíduo social, indo, portanto, de uma concepção estritamente
individualista que destaca sobretudo a independência daquele, até à de um
indivíduo cuja autonomia se tece nas próprias relações sociais, passando por uma
perspectiva monadológica que crê na regulação natural e a priori das conexões
indivíduo-sociedade. O que se vai esboçando cada vez com mais força é a questão
da esfera normativa - da sua emergência, estatuto e abrangência – entendida
como cimento da identidade social pela imposição de espaços axiológicos e
referenciais comuns e consequente retracção da liberdade individual.
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No quadro das “morais da convicção”, assim identificadas por Max Weber, claro
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que tudo era bem mais simples neste aspecto pois a partilha da mesma crença
religiosa assegurava, por inerência, a partilha em termos de consciência moral, dos
mesmos valores e da homogeneidade das respostas individuais – de todos os
indivíduos – perante o mesmo Deus, com igual grau de implicação e de
responsabilidade. Ou seja, a responsabilidade não pressupunha nenhum acordo
prévio – como tal, discutível e susceptível de ser ou não assumido – mas antes a
obediência à própria raiz inalienável da dignidade da natureza humana. Tudo estava
no domínio do verdadeiro e do falso, sendo que correspondendo o falso à falta moral
e a verdade à virtude e à beatitude, não restavam alternativas antropológica e
humanamente válidas para opções fora do domínio da Verdade. A responsabilidade
decorria então da assunção plena da dignidade humana, a qual, ao ser de natureza
religiosa, era por inerência moral e, portanto, imperativa relativamente às
consciências cuja unidade se fazia pela comum filiação divina e nunca por uma
liberdade individual socialmente reconhecida. É que a coesão da sociedade
assentava, como vimos, na homogeneidade moral e antropológica das consciências
individuais sem que houvesse lugar a uma consciência social intersubjectivamente
construída. Mesmo em Rousseau, a noção de “vontade geral” expressava justamente
isso mesmo, designadamente na ideia de indivíduo genérico que, na sua natural
comunidade intra-individual, viabilizava o contrato. Estávamos aqui muito longe,
apesar de algumas semelhanças terminológicas, da perspectiva democrática de
responsabilidade social, a qual vê o contrato como o resultado de um acordo que
surge num segundo momento da edificação das organizações – que admite, por isso,
as oposições, as negociações e os dissensos - e não como a simples emanação da
similitude das pessoas, de um seu desdobramento metafísico, que, pelo encontro e
pela obediência às suas consciências, comungavam do mesmo fundamento –
transcendente ou transcendental – divino ou racional.
As éticas da discussão, tal como expressamente o assume J. Habermas em
De l’Éthique de la Discussion (trad. franc.), afirmam-se “contra o cepticismo
axiológico”, em nome de um “consenso racionalmente motivado” e na sequência
da “busca de um universal que, não ignorando os contextos reais, não seja
também abstracto”. Deste universal, designado por “universal pragmático”, diz o
autor ironicamente que não é “um ponto de vista de Deus” mas antes “o ponto
de vista de nós”.
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Esta posição de Habermas representa uma tentativa de superação das

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dificuldades que se levantam à reflexão moral com a desconstrução dos
fundamentos – cosmológicos, teológicos, ontológicos ou racionais a priori – dos
princípios da liberdade e da responsabilidade e consequentes riscos de relativismo
ou até de niilismo que, aliás, Nietzsche protagonizou, entre outras obras, em
Assim Falava Zaratustra e em A Genealogia da Moral.
Em todas as circunstâncias, a verdade é que a responsabilidade, mediante as
desconfianças instauradas em relação às éticas da convicção, não pode mais ser
encarada numa reduzida dimensão subjectiva para exigir uma articulação desta
com a vertente objectiva da ética, isto é, considerando, a par das crenças de cada
um, as consequências dos actos. Isto é tanto mais exacto quanto, hoje em dia, se
impõe a necessidade de conciliação entre os espaços privado e público, ao
mesmo tempo que a emergência das chamadas tecnociências cria enormes
dificuldades a que se imponha uma definição simbólica do homem – e da
eticidade -, a qual autorizava anteriormente que o dever-ser fosse colocado dentro
dos limites do ser, fenómeno que as convicções cristalizavam e exprimiam na
normatividade das regras morais.
Ora, a tentativa de legitimação de novas formas de acordo normativo através
do diálogo e da discussão – atitudes consideradas normais no contexto das
relações interpessoais – traz consigo a questão da justiça e não tanto a da “vida
boa”, a par da valorização da aplicação sobre a problemática dos fundamentos.
Privilegiado o caminho que parte do ponto de vista de cada um para os
consensos e os acordos, eis que a nova “moral deontológica” – preocupada com
a legitimação da validade prescritiva - remete principalmente para uma “teoria do
juízo” e não para uma “teoria da obrigação”. As questões práticas são, pois,
susceptíveis de uma “verdade encontrada argumentativamente”. Diferentemente
de Kant, a razão teórica coincide em Habermas com a razão prática e não a
precede. Em Kant, importa recordá-lo, a razão pura proporcionava-nos a lei sobre
a qual repousava toda a moralidade, a qual implicava a subordinação, em nome
da autonomia e da liberdade do Homem, da vontade relativamente a essa mesma
lei (racional). O dever decorria deste respeito pela lei, o qual impunha
paralelamente a rejeição das tendências sensíveis.

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2. Configuração do estatuto antropológico da


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educação social

É neste novo quadro paradigmático que a educação social – enquanto matéria


científica intradisciplinar na confluência de contributos investigativos diversos e
enquanto prática multidimensional - ganha especial acuidade. Isto porque, com a
falência dos sistemas axiológicos dogmáticos e o reconhecimento das
prerrogativas e responsabilidades das pessoas enquanto sujeitos dotados do
direito – e do dever - de estabelecer acordos e contratos de alcance social que a
todos afectam, se impõe que todos usufruam das necessárias condições e
competências para tal. Trata-se assim de uma perspectiva a partilhar por todas as
frentes do trabalho social. É que, ao assumir-se a incontornável dimensão
educativa das intervenções sociais, rejeita-se liminarmente a óptica
assistencialista, a qual permitia e favorecia até a ideia de que o trabalho social era
uma decorrência ou uma emanação das lógicas das ideologias sociais e políticas.
O Estado providência comportava e assumia isso mesmo pelo que o trabalho
social se apresentava aí, no seu conjunto, como um braço da democracia social
de que ele era autor e onde era actor o poder político que o representava.
Acontece que a educação social se tenta apresentar hoje como usufruindo de
uma autonomia que, perante a recusa de uma qualquer sacralização do Estado
providência – que acompanhou o seu apogeu – e a inerente valorização da
chamada sociedade civil, carece de uma legitimação diversa da estritamente
política. Entretanto, com a crise dessa concepção de Estado e a constatação das
suas contradições e limiares, ganham especial relevo as situações-limite e os
percursos que a elas conduzem, ou seja, situações sociais como a pobreza, o
desemprego e todo o tipo de discriminações, bem como os itinerários de ordem
económica, laboral, educativa e política que nelas desembocam. Por outras
palavras ainda, a educação social está particularmente atenta não tanto à
exclusão como um estádio negativo mas provisório no seio de uma sociedade
politicamente coerente e progressivamente realizada pelas utopias democráticas,
mas sobretudo aos mecanismos perversos que, nas nossas sociedades,
produzem uma exclusão endémica e, por isso, sempre iminente. A atenção
efectiva às situações-limite exige a capacidade de cada um ser protagonista dos
seus projectos de vida e, dessa maneira, gerir a precariedade antropológica das
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organizações sociais para que deve contribuir, a quem deve exigir mas de quem

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não deve esperar uma protecção tutelar.
A cidadania, como aliás todos os direitos que a constituem, para além de ser,
em concreto, universalmente alargada – e não apenas por abstracção – ,
abandonou contemporaneamente e em definitivo a ideologia feudal, não mais
sendo por isso outorgada ou simplesmente reconhecida, para ser antes edificada
por sujeitos que procuram assim construir as condições da sua própria identidade,
impondo o seu reconhecimento enquanto pessoas. A pessoa - entendida na sua
dupla relação consigo mesma e com a sociedade - é, afinal, o conceito central que
a sociologia, tentando escapar ao vínculo humanista que esse termo acarreta,
actualmente traduz pela designação de indivíduo social.
Ao serviço desta nova cidadania - mais lockeana (porque mais atenta à
salvaguarda dos círculos da liberdade individual) do que hobbesiana (porque
menos extasiada com as virtudes do Estado) -, a educação social aspira a uma
certificação científica que a liberte das teias políticas e ideológicas que, em vez de
serem olhadas como podendo sustentar o seu estatuto (intra)disciplinar, agora
surgem como verdadeiros obstáculos epistemológicos. Entretanto, no plano
prático, a militância é substituída pela profissionalidade. Aquela servia ideais
utópicos e transcendentes. Implicava, em primeira instância, convicção e adesão
aos mesmos, em nome de ideologias de todo o tipo. A profissionalidade exige
principalmente saber e capacidade de interpretação crítica das situações e das
aspirações dos destinatários das intervenções, no âmbito de uma inalienável
independência em relação a qualquer tutela doutrinária e em resposta às
necessidades de coesão e justiça reguladas pela sociedade civil, mesmo que o
seu exercício seja da responsabilidade do Estado. Uma profissionalidade
justamente ao serviço dos cidadãos que, sendo-o por direito, podem o não ser de
facto por obstruções no espaço de uma contratualização que, enunciada, pode
igualmente não se cumprir por défices de execução de qualquer uma das partes
envolvidas. Se, quando o défice em causa é do Estado, a denúncia e sua
superação é de ordem política, já quando a ruptura aparece da parte do cidadão
ou grupo de cidadãos, a questão, desde que tal tenha a ver com a incapacidade
destes (porque se não o tiver é do foro do direito), passa para o terreno do trabalho
social e aqui, como vimos, com uma filiação cada vez mais nítida na educação
social por força das exigências de afirmação da autonomia e dignidade de todos
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os seres humanos. No campo estritamente assistencial, ficarão somente os que,


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por deficiência ou precariedade social extremas, carecem da possibilidade de


exercício efectivo da cidadania.
O reconhecimento da condição cidadã não é mais, pois, uma dádiva mas a
assunção contínua e continuadamente renovada da dialéctica liberdade-
responsabilidade cuja consumação perante a sociedade e o Estado passa pelo
exercício, assumido, consequente e adaptado às circunstâncias e às pessoas, dos
direitos, traduzidos - ou a traduzir com o apoio da educação social - sob a forma
de competências de iniciativa, de negociação e de participação solidária.

3. Educação social e pedagogia social

Uma vez descartada a legitimidade da sua filiação ideológica e constatada a


debilidade do seu acantonamento linear nas ciências da educação, onde radica
então a propalada fundamentação científica da educação social, decisiva para o
seu reconhecimento desde que entendida na sua dupla e indissociável acepção
intradisciplinar e prática?
Na pedagogia social, será hoje a resposta mais óbvia, logo acrescentando-se
que a pedagogia social representa a teoria da educação social. Como esquema
epistemológico esta resposta parece ser satisfatória. Resta saber como resiste a
uma crítica epistemológica mais radical.

Vejamos, em síntese, que questões importantes aqui se podem e devem


colocar.
A primeira, reporta-se à própria separação entre teoria e prática. Como
poderemos aceitar a existência de uma deambulação teórica pura após a declínio
do racionalismo que lhe deu resguardo e que, designadamente em Kant, como já
aqui vimos, lhe permitia partir da “razão pura” para a “razão pura prática”,
fundamentando-se esta naquela? Com o pragmatismo, por exemplo, a validade
das proposições teóricas constata-se já através das suas consequências práticas.
Em segundo lugar, coloca-se a questão do próprio estatuto da pedagogia.
Como sabemos, a pedagogia está ainda estigmatizada com o anátema de ser
uma configuração ideológica. Foi contra ela que se ergueram as ciências da
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educação - após o fracasso das “pedagogias científicas” de Montessori ou de

 Cadernos de Pedagogia Social


Durkheim - precisamente na ânsia de obviarem à intuição e cristalização
características do senso comum, ou seja, das convicções não sujeitas ao crivo dos
critérios de rigor e de contrastação empírica.
Em terceiro lugar, importa considerar que o adjectivo “social” reforça, pelo
menos em termos de estatuto formal, o carácter aparentemente doutrinário de
uma acção persuasiva que a ela assim parece ligada. Pedagogia social pode fazer
recordar quer as campanhas de regimes autoritários como as da própria
democracia nas fases históricas da sua implantação e desenvolvimento: o
estalinismo, as reformas napoleónicas da educação, os movimentos do socialismo
utópico e do positivismo, todos fizeram, de uma forma ou de outra, pedagogia
social...
Enfrentando as questões acabadas de esquematizar, adiantamos as reflexões
seguintes:
Como o afirma José Ortega, a pedagogia social, enquanto “ciência e
tecnologia do fenómeno e da intervenção sócio-educativa ou pedagógico-social”,
aspirou a ser uma simbiose da vertente onto-lógico-empirista da realidade sócio-
educativa e da vertente práxico-lógico-tecnológica das intervenções sócio-
educativas propriamente ditas, resultando daqui constituir-se como um “conjunto
simbiótico de conhecimentos nomológicos e nomopragmáticos relativos aos
fenómenos e às intervenções sócio-educativas”. Por outro lado, Paciano Fermoso
e Sáez, colocam a pedagogia social, respectivamente, no interface entre a teoria
e a prática ou, em simultâneo, como um campo de conhecimento teórico e como
uma prática educativa Todos estes autores pretendem fazer confluir as dimensões
teórica e prática num mesmo espaço epístemo-antropológico, evitando deste
modo dicotomias difíceis de gerir bem como a subsistência de práticas estranhas
ao filtro das indagações científicas.
Fenómeno epistemológico importante nesta postura é o afastamento dos
preconceitos positivistas das pedagogias científicas acima assinaladas enquanto
exigiam, bem ao sabor dos discursos positivistas, um ilusório mas vincado hiato,
em nome da objectividade, entre o tecido teórico das representações científicas e
o sincretismo das práticas educativas, crendo-se que, graças ao virtuosismo do
método, aquelas explicavam e podiam orientar estas. A partir daqui, a pedagogia
social, implicando-se, vivendo a tumultuosidade do vivido, está em condições de
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superar o risco de se impregnar de autoritarismo. Este surge muitas vezes apoiado


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numa ortopraxia, isto é, numa normalização das práticas a partir de uma aparente
independência teórica que, no fundo, enquanto tal, serve apenas para formatar
um real que desta maneira se confirma, se reitera e reitera a própria teoria no seio
de um infindável e intricado círculo vicioso.
Ora, se a pedagogia social – situando-se num limiar teórico-prático
epistemologicamente instável e por isso aberto à crítica e à regulação dos
processos - assumir o estatuto não de uma teoria da prática mas de uma teoria
prática, pode reivindicar o seu papel de substrato da educação social sem a
condicionar a priori a preconceitos externos. A educação social, essa, reforça
assim o seu desempenho enquanto uma prática profissional autêntica porque,
interpelando a teoria que a suporta, não deixa de ganhar consistência científica ao
mesmo tempo que se liberta dos círculos doutrinários que continuamente a
ameaçam e tendem a restringir.

4. A especificidade antropológica e hermenêutica


da educação social

Com a educação social, temos de o perceber e aceitar, estamos perante novas


práticas, novos quadros teóricos, novas relações entre ambos e, mais do que isso,
diante de novas realidades epistemológicas que, emergindo do humano e tocando-o,
assumem na sua plenitude a dimensão hermenêutica deste cruzamento epístemo-
antropológico. Um cruzamento em que, criticamente, o sentido brota da ameaça da
sua extinção porque o que nos assalta é o grito que vem das fracturas, dos abismos
em que as sociedades envolvem as pessoas mas para que também as despertam.
Esse grito, mais do que a voz da exclusão, tem de ser genuinamente o grito dos
excluídos para quem a inclusão – e a revolução – perderam dramaticamente sentido.
Quais têm de ser, neste espaço antropológico, as funções do educador social
percepcionado enquanto hermeneuta do trabalho social e profissional da condição
humana?
Em nosso entendimento, sobretudo as seguintes, as quais decorrem de uma
oscilação entre competências formais – cientificamente suportadas – e
competências informais de natureza eminentemente relacional e afectiva:
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- acompanhamento compreensivo das pessoas em dificuldade ou em risco

 Cadernos de Pedagogia Social


mais ou menos dilatado, considerando nomeadamente a sua irredutível
singularidade;
- assunção de uma posição comprometida e implicada que procure, em todas
as circunstâncias, a aferição de uma distância solidária que seja susceptível
de favorecer uma autonomização integrada dos destinatários;
- dinamização de uma interacção mutuamente vantajosa entre os projectos
individuais e colectivos;
- aprofundamento do espaço-tempo da quotidaneidade, o que implica o
respeito e fortalecimento regulado das esferas do íntimo e do privado na sua
dialéctica com o espaço público;
- gestão dos acontecimentos que, irrompendo frequentemente ao arrepio dos
processos e das tendências, geram o efeito psicológico do inesperado sem
poderem, por isso, ser subalternizados;
- indução de alternativas de modo a evitar que os impasses e as indecisões –
normais na vida – degenerem em bloqueamentos da interpretação e da
acção;
- mediação de relações interpessoais e intergrupais, a par das relações
identitárias entre o passado e o devir do presente e do futuro, em todas as
suas dimensões evolutivas, de continuidade ou conflito;
- avaliação de constrangimentos e possibilidades de acção no quadro da
formação de uma consciência dos limites e das suas potencialidades;
- valorização de uma consciência positiva acerca da fragilidade antropológica
das pessoas e grupos especialmente considerados;
- disponibilização de uma grande capacidade de escuta enquanto
manifestação consequente e interactiva do sentido de disponibilidade,
acolhimento e receptividade perante o outro;
- exercício continuado da hetero e auto-avaliação de personalidades, de inter-
relações, de contextos, de evoluções e das conexões múltiplas entre as
imagens pessoais idealizadas e as projectadas.

Da compilação destes itens depreende-se que o educador social deverá


encontrar ele mesmo, num processo extraordinariamente exigente e
idiossincrático, a distância óptima que lhe permita conjugar racionalidades e
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sensibilidades, ser um autêntico indutor da (re)construção do eu junto de pessoas


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e grupos em situação de fragilidade potencial ou efectiva e ainda, como pano de


fundo para esta complexa trama sócio-educativa, assumir a relação interpessoal
como um encontro, o que implica a valorização racional e afectiva das
expectativas, das representações e dos jogos psicológicos. Compreende-se
também, por seu turno, que a educação social, numa óptica mais hermenêutica
do que estritamente epistemológica, ou seja, mais tributária de preocupações
antropológicas do que de preocupações de coerência e validação científicas, tenha
como objectivo central não tanto a conceptualização das práticas mas sobretudo
a inteligibilidade de uma realidade complexa, visando com esta intervenção
clarificadora auxiliar o trabalho do educador social, retirando-o do domínio do
senso comum mas sem o utilizar segundo lógicas estranhas ao urgentismo de que
o mesmo se reveste. Lógicas que, obedecendo aos cânones positivistas que
frequentemente adquire a epistemologia, acabariam por, neutralizando os sujeitos
em nome da objectividade, destruir a incessante remissão subjectiva inerente à
vivência humana que perpassa os encontros antropológicos entre educadores e
educandos, dimensão que é finalmente matricial nas intervenções de todos os
trabalhadores sociais.
A educação social, na pujança da sua autonomia prática e intradisciplinar,
importa destacá-lo com clareza, é expressão de um novo humanismo, o qual
pretende ser uma resposta às filosofias do conceito, às filosofias da ausência, que,
transformadas em ideologias, alimentaram – na educação e no trabalho social -
os impasses historicamente recentes do estruturalismo, do sistemismo e de todos
os tipos de holismos. Impasses que se traduziram numa trágica
desresponsabilização dos actores - dos indivíduos, das pessoas! – que, nas
sociedades, constituem e constroem os seus êxitos e os seus fracassos..

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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 45-60

Educadores Sociais: Quem são? O que


fazem? Como desejam ser reconhecidos?
Joaquim Azevedo | Isabel Baptista

Mesa de Discussão: Maria Ferreira 1 | Maria Guerra 2 | Sofia Rodrigues 3 |


Fernanda Cachada 4 | Rui Amado 5

Resumo
O presente texto corresponde ao relato crítico de um debate em torno da
«identidade profissional dos educadores sociais» que contou com a
participação de três educadoras sociais, uma professora e um antropólogo,
todos especializados em pedagogia social e colaboradores da Universidade
Católica Portuguesa nesta área de investigação-acção. Tomando como
referência empírica o universo experiencial de cada um dos participantes,
pretendeu-se colocar em confronto – em diálogo – diferentes concepções e
percepções sobre o contributo específico dos educadores sociais no seio das
dinâmicas de intervenção sócio-educativa, numa perspectiva de explicitação e
valorização da sua identidade profissional.

1
Educadora Social, Equipa pedagógica do Projecto Raiz /Programa Escolhas
2
Educadora Social, Equipa pedagógica de Centro de Dia/IPSS
3
Educadora Social, Equipa pedagógica do projecto Trofa Comunidade e Aprendentes (TCA)
4
Professora/ Coordenadora da rede de Mediadores TCA
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Uma profissão qualificada de «social» deve poder dar um conteúdo preciso a este
 Cadernos de Pedagogia Social

termo, sob pena de se ver privada de conteúdo funcional, balizada por fronteiras fluidas
e com uma missão reduzida a nada.
Lia Sanicola, 1994

Introdução

Quem são os educadores sociais? Que valores e que competências balizam o


seu espaço de autoridade pedagógica? Como é que os educadores sociais
conceptualizam e verbalizam o seu exercício profissional? O que é que os distingue
de outros técnicos com quem são chamados a constituir equipas de trabalho?
Como são, ou desejam ser, profissionalmente reconhecidos?
Foram estas, no essencial, as questões que nortearam o diálogo desenvolvido
neste pequeno grupo de discussão, composto por três educadoras sociais com
experiências profissionais diferentes: mediação de aprendizagem e intervenção
comunitária; mediação junto de famílias em risco; práticas de acolhimento social
a idosos e contando ainda com o contributo de outros dois técnicos que
desempenham tarefas de coordenação em dinâmicas protagonizadas por
educadores sociais, estando, nessa medida, em posição de dar um testemunho
privilegiado sobre a matéria em debate.
Tendo por base sessões presenciais, realizadas durante o mês de Janeiro de
2008 e intercaladas por acertos de comunicação feitos no chamado ciberespaço,
o debate decorreu sob a moderação de Joaquim Azevedo e Isabel Baptista que
assumiram também a difícil tarefa de relatores.
Enquanto intervenção sócio-pedagógica especificamente vocacionada para o
trabalho de proximidade com pessoas e grupos humanos em situação de
vulnerabilidade e exclusão social, a educação social constitui um dos domínios de
investigação privilegiados pela Faculdade de Educação e Psicologia da
Universidade Católica Portuguesa, o que justifica o número de projectos de
pesquisa cientifica realizados e em curso neste contexto investigativo tendo como
objecto de estudo a realidade da educação social em Portugal, a maior parte dos
quais da autoria de educadores sociais.
É, pois, para esses e para outros trabalhos académicos que remetemos no
sentido de uma análise mais abrangente, aprofundada e rigorosa sobre os
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problemas, desafios e dilemas que hoje se colocam no caminho da construção

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identitária dos educadores sociais, em especial no nosso país. O objectivo deste
pequeno círculo de discussão não teve essa ambição, visando sobretudo abrir um
espaço informal de «escuta atenta e activa» sobre as percepções desses mesmos
investigadores-actores, na intenção de perceber de que forma é que eles sentem
e conceptualizam os valores que caracterizam – que «enchem de carácter» – o
seu «rosto profissional».
Assim, sem prejuízo do rigor conceptual exigido pela inserção deste tipo de
narrativa numa publicação académica como a revista «Cadernos de Pedagogia
Social», tentou-se ter em «devida conta» a riqueza das expressões pessoais,
optando por um registo de escrita centrado nos testemunhos dos participantes e
apresentados de acordo com a ordem discursiva seguida durante as sessões de
debate. Pretendeu-se deste modo honrar o poder da linguagem enquanto
estrutura de mediação normativa que, ao permitir inscrever o vivido na esfera do
inter-humano, ajuda a instituir um mundo comum. É assim, afinal, que as coisas
e as ideias adquirem «identidade», funcionando como «temas» ou conteúdos
partilháveis no seio de um processo de construção de conhecimento racional.
Neste sentido, tentando enquadrar racionalmente os elementos de análise
sem trair a memória dos «dizeres» que lhes deram origem, expomos as questões
agrupando-as em três eixos de reflexão fundamentais: 1) profissão de educador
social – uma identidade em construção; 2) prática profissional – problemas e
desafios; 3) valorização e reconhecimento socioprofissional.
O texto termina com reflexões finais da inteira responsabilidade dos relatores
e com recomendações de carácter bibliográfico.

1) Profissão Educador Social – uma identidade em


construção

Para começar, gostávamos que nos falassem um pouco sobre como


chegaram à profissão. Que caminhos e experiências de vida vos trouxeram até aos
contextos laborais onde exercem actualmente? O que é que fazem? Onde? Como?
Com quem?

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Maria Guerra
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Este é o meu primeiro «posto de trabalho» desde que me licenciei há quatro


anos, exactamente os mesmos que a instituição onde exerço tem de vida. Todavia,
quando iniciei actividade foi como técnica da valência de tempos livres (ATL).
Depois, com a alteração da política educacional no 1º Ciclo Ensino Básico e o
começo da «escola a tempo inteiro», fizeram-me a proposta de iniciar um trabalho
no Centro de Dia com a finalidade de humanizar esse espaço criando um lugar
de proximidade especialmente dirigido à comunidade sénior, acompanhado de um
projecto sócio-pedagógico próprio. Desafio que aceitei de imediato! …

Maria Ferreira
O meu primeiro emprego foi num ATL. Depois fui contratada para um projecto
de Apoio Familiar e Acompanhamento Parental – CAFAP, financiado pela
Segurança Social e onde desempenhava funções de mediadora familiar.
Actualmente, integro a equipa pedagógica de um projecto sócio-comunitário, o
Projecto Raiz financiado pelo Programa Escolhas que tem como entidade
promotora o Colégio Nossa Senhora do Rosário mas que envolve outras
instituições em consórcio, como a Universidade Católica. Nesta equipa, cabe-me
principalmente acompanhar as famílias dos jovens que constituem a «população-
alvo» do projecto.

Sofia Rodrigues
No começo, em 2003, ano em que terminei a licenciatura em Educação
Social, a minha experiência profissional desenvolveu-se no âmbito da acção social,
em colaborações pontuais, com vínculos laborais muito precários ou mesmo
numa base de voluntariado. Saliento aqui a experiência ligada a uma CPCJ, onde
percebi o que significa trabalhar com jovens que vivem em estado de exclusão
social, tentando fomentar mais integração e um novo sentido de cidadania. Fui
muitas vezes à «casa» deles, à sua associação de moradores, tentando entender
bem a sua situação e conhecer as pessoas que fazem parte da sua vida. Posso
dizer que todos os dias, durante cerca de sete meses, vivenciei histórias de
«horror humano», de violência e violação de direitos de crianças, seres
desprovidos de defesas em relação aos comportamentos agressivos daqueles que
lhes eram próximos e a quem, à partida, cabia o papel de protecção. Em Maio de
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2005, quando estava a terminar a parte curricular do mestrado em Pedagogia

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Social, chamaram-me para uma dinâmica de trabalho comunitário no Concelho
da Trofa – Trofa Comunidade de Aprendentes (TCA). Nunca antes teria imaginado,
sequer, ter acesso a uma experiência destas. A minha vida mudou para sempre.
Obrigada por esta breve apresentação. Mas seria importante tentar especificar
um pouco mais, talvez dando exemplos sobre o conteúdo funcional do vosso
trabalho. O que é que, afinal de contas, faz a diferença da actuação do educador
social?

Maria Guerra
Actualmente coordeno a equipa que trabalha na valência de Centro de Dia e
as minhas funções centram-se em todas as tarefas inerentes a esta valência como
a planificação, construção, implementação e avaliação do projecto pedagógico
que inclui actividades de mediação familiar, institucional e comunitária,
envolvendo unidades de saúde, instituições parceiras e autarquia.
Vejo o educador social como um profissional multifacetado que tem como
objectivo, em qualquer contexto de trabalho, promover o desenvolvimento humano
através da educação.

Sofia Rodrigues
Hoje sou «técnica TCA» com responsabilidade pela coordenação da rede de
Voluntários e formadora/tutora de outras colegas, mas a actividade que exerci
desde sempre neste projecto foi a de «mediadora de aprendizagem». A dinâmica
TCA visa criar oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos os
cidadãos do município, mobilizando as 8 freguesias da Trofa e apoiando-se num
modelo de intervenção que articula sete redes sociais – instituições, mediadores,
formadores voluntários, técnicos e centros de aprendizagem ou Centros TCA como
lhes chamamos. Faço portanto equipa com muitas outras pessoas, de diferentes
formações.
Como mediadora de aprendizagem com formação de educação social (porque
há no projecto outros mediadores), a minha função é a de atender, escutar e
orientar as pessoas que nos procuram para saber mais ou para descobrir algum
caminho para a sua vida. Sobretudo aquelas que nem sabem dizer bem o que
pretendem ou que se encontram sozinhas e pedem ajuda. Tem sido incrível
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acompanhar a forma como tantas pessoas mudaram e ganharam ânimo. É o que


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estou a tentar estudar na minha tese de mestrado, esta ligação entre educação
social, aprendizagem e desafios de vida.

Maria Ferreira
O educador social orienta a sua intervenção através da definição de um
conjunto de acções de carácter sócio-pedagógico. Por outro lado, a «escuta» é o
meio pelo qual o educador “sente” as pessoas permitindo-lhe colocar-se na óptica
de quem vive o problema para que possam, juntos, assumir um compromisso,
uma implicação no processo de construção de um “EU” e na elaboração de um
projecto de vida. Ou seja, o educador social define-se através da mediação e pela
forma como estabelece relações de proximidade com os educandos, olhando-os
como pessoas únicas e com potencialidades, de modo a ajudar a produzir
mudanças e a alterar comportamentos.
É isto essencialmente o que tento fazer junto das famílias que estão «ao meu
cuidado» e que são, à partida, muito destruturadas. Quase todos os membros
destas famílias, adultos e crianças, são abrangidos por outras intervenções. No
nosso caso, tentamos ver a família como um todo, intervir junto de cada um dos
seus elementos e ligar as redes de proximidade para maior apoio. Ou seja, a
«mediação familiar» aqui não é para gerir conflitos mas para actuar na educação
da família e das pessoas, discutindo modelos parentais e aproximando mais estes
«encarregados de educação» das escolas que os jovens frequentam e ao mesmo
tempo promover a formação deles próprios.

Proximidade com as pessoas e as comunidades, mediação, cooperação


interprofissional e interinstitucional, parecem ser valores em evidência.
Mas o que dizem os outros, a Fernanda e o Rui? Tendo em conta a vossa
experiência de convívio profissional com educadores sociais, o que pensam sobre
o acaba de ser dito?

Rui Amado
Os educadores sociais abordam a realidade social numa perspectiva
humanista, o que os faz ter um “olhar” completamente novo sobre as pessoas,
sobre a sua cultura e contextos de vida específicos. Isto faz toda a diferença na
forma como se encara o próprio conceito de trabalho social, as suas práticas e
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valores. Eles desenvolvem o trabalho social a partir do lado positivo das pessoas

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e da crença plena na educabilidade do ser humano, através de uma prática
profissional baseada numa relação de proximidade, no primado das relações
afectivas, numa relação de igualdade entre técnico e pessoa.

Fernanda Cachada
O maior contributo dos educadores sociais, ou pelo menos aquele que eu
tendo a valorizar mais, é a efectiva promoção da proximidade humana. A prática
diária de olhar e estar com cada uma das pessoas de uma forma única é algo
que, ainda hoje passados alguns anos de trabalho com os educadores sociais, me
causa admiração. Mais do que fazer planificações, preencher e elaborar relatórios
e diagnósticos, o que admiro nos educadores sociais é a disponibilidade para o
encontro com outros seres humanos de um modo tão profissional e ao mesmo
tempo tão intimista, é a mais-valia que vejo nos educadores sociais, pelo menos
no TCA.

As vossas respostas são interessantes e muito expressivas das preocupações


humanistas que partilham. Mas é justamente por isso que se impõem as
seguintes perguntas: não acham que o objectivo de «promoção de proximidade
humana» é comum a todos os educadores e, de uma forma geral, a todos os
agentes de desenvolvimento humano?
Em que é que o domínio de competências relacionais define o conteúdo
funcional da profissão de educador social?

Fernanda Cachada
Sim e não. Embora identifique um conjunto de deveres diferenciados entre os
dois registos de actuação, o conjunto de compromissos, sobretudo os
compromissos morais, são comuns. Nós na escola também tentamos respeitar e
valorizar cada pessoa e como mediadora TCA é essa também a minha
preocupação, seja com os alunos, com os pais ou com qualquer elemento da
comunidade. Mas o que vejo no TCA, e não sei explicar muito bem, é que as
educadoras sociais fazem isso de modo diferente, elas não só acolhem e atendem
bem, mas conseguem ir ter com as pessoas, mesmo as mais «difíceis», de uma
maneira que nós não conseguimos.
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Rui Amado
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Como disse, a mais valia/diferença destes profissionais é que são formados


para lidar especificamente com as problemáticas inerentes às pessoas e
populações em situações de vida complicadas e numa perspectiva não-
-assistencialista, orientada para a mudança e transformação positiva. De facto, no
seu quotidiano, o educador social, mais do que planear, planificar e cumprir as
calendarizações, tem um papel imprescindível na escuta e na observação atenta
do que o educando diz e executa. Muitas vezes o que o educando necessita é de
alguém que lhe dê atenção, perceba as suas inquietações e dúvidas não para
receber uma solução, mas para sentir que alguém acredita no seu potencial,
dando-lhe sentido.

Dirigindo esta pergunta a todos, que aspectos comuns encontram entre a


actividade dos educadores sociais e a de outros profissionais?

Maria Ferreira
O primeiro aspecto que nos distingue é o carácter sócio-pedagógico das
intervenções. O segundo aspecto prende-se com o facto de a educação social se
equacionar no âmbito da pedagogia social, o que permite situar a nossa conduta
noutra filosofia de acção. Os educadores sociais tentam despertar as pessoas
para novas aprendizagens sociais, para além de trabalharem a auto-estima e a
vontade de definir trajectos para o futuro.
O técnico de serviço social, por exemplo, tem uma função mais pautada pelo
assistencialismo. O educador social assume uma intencionalidade pedagógica
muito marcada por valores humanistas e pauta a sua acção pelas mais diversas
estratégias de mediação.

Sofia Rodrigues
A minha experiência está muito marcada pelo TCA que é um projecto de
pedagogia social onde trabalham muitos outros que partilham as mesmas
preocupações sócio-pedagógicas. A nossa tarefa mais específica como
educadores sociais está ligada ao atendimento de pessoas e grupos mais
«sensíveis» ou menos habituados a entrar nas acções de aprendizagem e
formação que propomos. A coordenação do projecto encarrega-nos sobretudo da
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atenção especial que é preciso dar a pessoas que, seja por que motivo for, pedem

 Cadernos de Pedagogia Social


um acompanhamento mais pessoal. Outra das nossas missões é ir directamente
ao encontro dessas pessoas que andam mais alheadas da aprendizagem. Mas
tudo o que fazemos é em articulação com os outros membros da equipa ou das
redes, professores ou outros. No TCA temos até serviços de educação nas
escolas, como na escola da Fernanda Cachada, EB23 de S. Romão do Coronado,
que actuam as minhas colegas educadoras sociais, Renata Machado e Cindy
Ribeiro Vaz.

Maria Guerra
No meu caso, acho que existe uma autoridade pedagógica reconhecida pelos
outros profissionais mas que, ao mesmo tempo, me distancia das funções deles.
Todavia, nem sempre foi assim, como fui a primeira funcionária da IPSS,
inicialmente fazia um pouco de tudo. Com o tempo e também com argumentos
certeiros fui convencendo a entidade empregadora de que quando trabalhamos
com as pessoas idosas há aspectos determinantes a ter em conta que vão muito
para lá da produção artística do técnico e dos educandos. Ainda mais quando as
pessoas se encontram numa situação de vulnerabilidade em que não estão
disponíveis para ninguém. Há que fazer um caminho para nos abeirarmos delas,
tornando-nos próximos e tentando sentir os seus problemas.
Por outro lado, há que transformar o espaço, ou os ambientes de trabalho,
num local com diversos cheiros e rostos onde cada um faz voar a sua
singularidade. Há que transmitir-lhes confiança de modo a que aceitem da melhor
forma o processo de envelhecimento e outros factores determinantes. Há que
envolver as famílias em todas as dinâmicas e não apenas nas “visitas”. Há que
despertar a comunidade para a participação. Isto é, há que desenhar com as
pessoas um trajecto individual mas também grupal onde todos se sintam únicos.
E claro… isto não é fácil. Porém, possível!

Rui Amado
Reconheço como valores comuns a perspectiva humanista de encarar a
realidade social; uma perspectiva profissional fundada nos direitos, valores e
dignidade da pessoa humana e uma perspectiva de encarar o trabalho social
como uma prática interprofissional. Como valores diferentes, reconheço a
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educação social como uma ciência humana essencialmente virada para uma
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prática profissional enquadrada na área do trabalho social, enquanto a


antropologia tende a ser mais uma ciência humana de produção de teoria sobre
as especificidades sociais e culturais das populações e sociedades humanas e,
neste sentido, ser uma ciência que tem uma maior abrangência no seu campo de
estudo e prática profissional.

Fernanda Cachada
A educação sempre foi, para mim, uma paixão que se traduzia no acto de
«ensinar coisas», de ajudar os alunos a serem um pouco mais, sobretudo na sua
capacidade crítica sustentada num raciocínio bem elaborado e fundamentado no
conhecimento. Sempre associei a educação aos professores, domínio exclusivo
daqueles que aprendem a ensinar. Agora no TCA descobri outros educadores.
Muito concretamente, a actividade profissional dos educadores sociais ganhou aos
meus olhos pertinência e sentido, não beliscando as competências e as funções
dos professores. Acho até que os educadores sociais podem ajudar muito os
professores e a contribuir de modo decisivo para melhorar a educação, seja
dentro da escola e fora dela.

2) Prática profissional – problemas e desafios

Tomando como referência o que conhecem da situação portuguesa, na vossa


perspectiva quais são os maiores constrangimentos e desafios que a profissão de
educador social enfrenta actualmente? Ou, quais acham que são as dificuldades
mais sentidas pelos profissionais?

Sofia Rodrigues
Os meus maiores constrangimentos são o tempo e a dificuldade em encontrar
resposta imediata e adequada às solicitações e expectativas das pessoas que vêm
ao nosso encontro. Apesar de todo o apoio que recebo da coordenação TCA, tenho
dificuldade em gerir o meu tempo e as minhas ansiedades.
No dia a dia deste projecto de intervenção comunitária deparo-me também
com processos de acção muito estandardizados e sujeitos a directrizes político-
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-económicas. As pessoas que aparecem nos Centros TCA e que tentamos

 Cadernos de Pedagogia Social


encaminhar para os colegas de outras instituições e de outros projectos, muitas
vezes não «cabem» nas tabelas, nos gráficos, na categorização de «populações»
e nos regulamentos que eles têm que respeitar. Com muita conversa e mediação,
conseguimos ultrapassar estes obstáculos, mas normalmente é á custa da boa
vontade dos técnicos que nos atendem e que tentam «dar a volta» ao sistema.
Outro problema que acho que é comum a todos os que trabalham nesta área é o
financiamento dos projectos e a estabilidade salarial. Isso afecta muito a nossa
motivação.

Maria Guerra
Vejo como grande problema e desafio a formação. Confesso que, inicialmente
estava apenas treinada/preparada para a tarefa que me entregaram na valência
ATL. Mas como a intervenção sócio-pedagógica não se faz sem ser através da
“sensibilidade e bom senso”, rapidamente percebi que teria que fazer uma
especialização que me permitisse reflectir sobre a minha prática e que ajudasse
a lançar-me em novos rumos. Encontrei o que precisava aqui na UCP e na
formação em pedagogia social, disciplina que, estranhamente, não tinha tido na
licenciatura. Digo estranhamente porque agora vejo que, de facto, sem noções de
pedagogia social é difícil entender a nossa actividade como educadores. Hoje,
sinto-me mais segura na minha intervenção e com mais maturidade profissional,
assumindo a prática de relação e de mediação social como os principais
propulsores do meu trabalho. Mas penso que são necessários mais encontros e
espaços de formação onde os educadores sociais possam partilhar ideias,
problemas, saberes e experiências.

Maria Ferreira
Para mim o maior desafio é ser capaz de identificar as potencialidades dos
indivíduos capacitando-os de modo a serem autónomos e responsáveis. É nesta
óptica que o educador social consegue fazer com que o educando seja o
protagonista do seu processo de mudança. Isto é um grande desafio.
A maior dificuldade é conseguir transmitir estas ideias aos outros técnicos, de
forma a aceitarem e a entenderem a nossa maneira específica de trabalhar.

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Rui Amado
 Cadernos de Pedagogia Social

O grande desafio da educação social em Portugal é o da afirmação da sua


identidade científica e profissional no âmbito do trabalho social. Esta afirmação deve
ser, sobretudo, em relação a outras áreas e disciplinas do trabalho social, nomeada-
mente, o serviço social, mas, não numa perspectiva de se impor como alternativa,
mas sim para trabalhar em complementaridade, numa perspectiva de trabalho em
conjunto e de união de esforços para tornar o trabalho social mais reconhecido, com
técnicos e profissionais altamente qualificados e competentes, e para, em última
instância, ajudar a promover as mudanças sociais tão necessárias a um país com
cerca de dois milhões de pessoas a viver na ameaça de pobreza eminente.

Fernanda Cachada
Usando de alguma franqueza e confessando desde já a minha ignorância,
assumo que não posso generalizar a partir da minha experiência, mas penso que
o grande desafio dos educadores sociais se prende com o conhecimento e
reconhecimento da sua profissão. Até ao momento em que comecei a trabalhar
no TCA como mediadora e que integrei uma equipa com educadores sociais, não
sabia nada dessa profissão.

3) Valorização e reconhecimento socioprofissional

Atendendo à forma como identificaram a questão do reconhecimento


socioprofissional como um dos problemas ou constrangimentos na actividade dos
educadores sociais, pedimos que falem um pouco mais sobre isso. O que, na
vossa perspectiva, poderia ser feito no sentido de melhorar a situação?

Maria Guerra
Penso que temos que fazer um esforço conjunto. Temos uma identidade
profissional ainda jovem; trabalhamos em contextos partilhados por muitos
profissionais e possuímos competências próprias. Apesar de todas as
contrariedades, trabalhamos diariamente na construção de uma sociedade mais
justa onde existe lugar para todos e penso que é sobretudo a nós, educadores
sociais, que cabe o grande esforço de conseguir reconhecimento.
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Graças ao trabalho que venho desenvolvendo na IPSS, pessoalmente, sinto

 Cadernos de Pedagogia Social


que o meu trabalho é reconhecido. Tanto as pessoas que servimos como os meus
colegas de equipa reconhecem as competências (ao nível do saber fazer, ser e
estar) que impõem um cunho à profissão que eu tento honrar.
Maria Ferreira
A questão do reconhecimento é bastante complicada, por dois motivos. Por
um lado, a própria comunidade profissional está a passar por momentos de crise
de identidade. O facto de ainda não se ter conseguido afirmar perante as
entidades competentes a um nível salarial e de competências específicas, não
ajuda. Não temos ainda um estatuto regulador da profissão.
Por outro lado, concordo que têm de ser os próprios profissionais nos seus
locais de trabalho, através das suas intervenções, projectos e convicções a definir
a categoria profissional de uma forma precisa e clara.

Sofia Rodrigues
Eu tenho uma experiência privilegiada, em todos os sentidos. Sobretudo ao
nível do respeito e do acompanhamento pedagógico da minha actividade. Sinto-
me apoiada, respeitada e reconhecida. Mas tenho consciência de que a realidade
do trabalho social em Portugal não é essa.
Ultrapassar os constrangimentos ligados às questões logístico-financeiras e à
padronização de mecanismos de acção será o maior desafio do técnico de
Educação Social, mas também dos outros colegas que, com ele, trabalham as
questões que envolvem as situações de maior vulnerabilidade social.

Fernanda Cachada
A este respeito só posso reafirmar o que já disse sobre a necessidade de maior
conhecimento desta profissão que, baseando-me na experiência de trabalho com
as colegas do TCA, reconheço como muito importante.
Sustentada numa prática diária, a minha percepção é de que todos os que
lidam comos educadores sociais, aprendentes, colegas de equipa e entidades
promotoras/empregadoras, reconhecem e valorizam muito o trabalho deles. Aliás,
tenho mesmo a certeza disso. O que é preciso é alargar esta percepção e o
conhecimento desta realidade, divulgando mais o que os educadores sociais
fazem.
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Rui Amado
 Cadernos de Pedagogia Social

Pelo que conheço, considero que os educadores sociais são respeitados pelas
suas entidades empregadoras, membros das suas equipas, educandos/utentes e
outros profissionais como são os diversos técnicos e profissionais da área do
trabalho social. Considero ainda que a educação social está perfeitamente
reconhecida e validada enquanto área científica e profissional entre as diversas
disciplinas das Ciências Sociais e Humanas.
Todavia, há muito caminho a fazer pelos próprios profissionais. Apesar das
qualificações e competências técnicas e científicas adquiridas na sua formação,
não basta aos educadores sociais dominarem os conhecimentos, teorias,
conceitos, práticas, etc. adquiridos na sua formação universitária, nos seus
estágios, etc. Penso que o educador social deve ser, ele mesmo, um humanista,
e basear a sua própria vida nos valores da dignidade da pessoa e da vida humana.
Pois, de outra forma, corremos o risco de ter profissionais bastante qualificados,
com o perfeito domínio das práticas e teorias do trabalho social, mas sem a
“alma” e o “coração” que fazem olhar para o outro como um seu
verdadeiramente igual. Esta é a questão mais difícil, pois, exige um conhecimento
de si mesmo bastante grande, uma capacidade de autocrítica permanente e
disponibilidade para aprender mais com os outros, de melhorar sempre, de estar
receptivo à mudança, à dos outros mas também à sua própria mudança pessoal.

Muito obrigada a todos. É grande a responsabilidade que nos confiaram, a de


tentar transformar em texto o conjunto de testemunhos de uma reflexão tão rica
e partilhada como foi esta.
Julgamos que estamos todos de acordo, os tempos e os espaços desta
discussão acabaram por funcionar como mais uma das nossas dinâmicas de
formação-acção. Nesse sentido, da nossa parte, o maior compromisso será o de
procurar dar seguimento, em termos científicos e académicos, a muitas das
preocupações e desejos que manifestaram, sobretudo no que se refere às
exigências de maior preparação técnica e valorização socioprofissional.

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Reflexões finais

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Confirmando muitas das constatações feitas nos últimos anos, concretamente
no acompanhamento das equipas de projecto que actuam sob a supervisão da
FEP/UCP, podemos dizer que o processo de discussão informal aqui relatado
evidenciou o embaraço que os técnicos de intervenção sócio-educativa
experimentam com frequência quando se trata de verbalizar o seu «saber ser e
saber fazer». Mas, como muito bem notou Jean Brichaux (2001) a propósito das
profissões sociais, esta dificuldade em precisar em que consiste exactamente a
sua função não nos autoriza a concluir sobre a inexistência de um saber
específico. Por outro lado, e ainda com o mesmo autor, há que admitir que definir
um determinado território de intervenção teórico-prática é uma coisa, convencer a
sociedade da sua pertinência é outra.
No essencial, o que fica dito contribui para reforçar a convicção comum
quanto ao sentido e valor deste espaço de autoridade profissional, sobretudo num
contexto de sociedade educativa. Tanto do ponto de vista individual como
colectivo, alguns dos passos que reconhecemos necessários dar na direcção de
uma maior valorização socioprofissional surgiram apontados pelos próprios
intervenientes, desde os imperativos de formação inicial e continua, passando
pela promoção de escrita profissional, pela necessidade de espaços de debate e
divulgação pública e indo até às exigências de natureza ético-profissional que
começam na consciência de cada um.
Estas preocupações estão muito presentes nas nossas dinâmicas de
formação-acção, onde a educação social surge como domínio de eleição dentro
do universo vasto e multifacetado da pedagogia social. Neste aspecto, registamos
com apreço a forma como todos os participantes se reconheceram nos valores
que classificam de «proximidade humana» e que, a nosso ver, constitui condição
obrigatória de uma «cidadania social», de acordo com a noção proposta por
Rosanvallon e desenvolvida por outros sociólogos contemporâneos que nos
lembram que a «solidariedade» é um valor e não uma técnica, sendo, portanto,
irredutível aos mecanismos de «segurança social» que alegadamente a servem.
Falar em «social» não é, de facto, o mesmo que falar em «exclusão social».
Esta «marca» de «proximidade humana» ligada a um humanismo relacional,
onde a centralidade da Pessoa e a importância dos laços de solidariedade social
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se impõem em toda a sua grandeza cívica, corresponde ao «ethos» da pedagogia


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social, tal como vem sendo trabalhada no seio da FEP/UCP. Reafirmamos, neste
sentido, o compromisso em relação ao processo de desenvolvimento profissional
dos educadores sociais.

Bibliografia recomendada

BANKS, Sarah (org). 2003. Teaching Ethics for the Social Professions.
ESEP/FESET.
BRICHAUX, Jean. 2001. L’éducateur spécialisé en question(s). La profession-
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CASTEL, Robert. 1995. Les Métamorphoses de la question sociale. Éditions
Fayard. Paris.
CAPUL, Maurice; LEMAY, Michel. 2003. Da Educação à Intervenção Social
Porto Editora, Porto.
CARNEIRO, Roberto. 2001.Fundamentos da Educação e da Aprendizagem.
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NUNEZ, Violeta (org.). 2002. La educación en tiempos de incertidumbre: las
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ROSANVALLON, Pierre. 1995. La nouvelle question sociale. Seuil. Paris
VÁRIOS. Cadernos de Pedagogia Social. UCP Editora.

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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 61-80

O Perfil Profissional do Educador


Especializado (Social) - Uma leitura
sócio-histórica
Fernando Canastra1 | Manuela Malheiro2

Resumo
O presente artigo tem como propósito realizar uma aproximação à
problemática do Perfil Profissional do Educador Especializado (Social).
Partindo da revisitação de alguns elementos genealógicos em torno da
“educação especializada”, no contexto francófono, e convocando alguns
contributos sociológicos no âmbito das mudanças ou transformações que se
estão a operar quer na realidade social, quer nas modalidades de intervenção
social, os autores procuram realçar algumas das implicações históricas e
sociológicas. Neste quadro interpretativo, sugerem-se alguns elementos
reflexivos e interpretativos que possam contribuir para a clarificação
conceptual do perfil profissional, no campo socioeducativo. O artigo termina
com a apresentação de uma proposta relacionada com a emergência da figura
do Educador Social, que tende a configurar-se a partir do seguinte perfil
profissional: (a) a mobilização de uma escuta clínica; (b) a promoção de um
tacto pedagógico; e (c) a convocação de uma postura ética.

1
Docente na área de Ciências da Educação da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de
Leiria canastra@esel.ipleiria.pt
2
Professora Associada na área de Ciências da Educação da Universidade Aberta manuelaf@univ-ab.pt
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Nota de Apresentação
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A Educação Social3, enquanto actividade profissional, tende cada vez mais a


afirmar-se numa via profissionalizante. Hoje, são já muitos os cursos existentes
nesta área, particularmente no ensino superior público - politécnico (para além
do ensino privado). É neste contexto que sugerimos uma aproximação ao perfil
profissional dos Educadores Sociais, tendo como entrada privilegiada a articulação
entre as genealogias históricas relacionadas com a figura do Educador
Especializado e alguns contributos sociológicos, a partir dos quais se pode
compreender e interpretar os processos de profissionalização desta actividade,
tradicionalmente associada ao sector do Trabalho Social.
Numa primeira secção deste artigo, procuramos revisitar alguns dos
elementos genealógicos que, na nossa perspectiva, tendem a (re)configurar a
figura profissional do Educador Especializado. Este, no contexto francófono,
constitui-se como uma referência histórica que importa convocar, de modo a
compreendermos o papel que esta figura teve e ainda continua a ter (no quadro
da nossa interpretação) no contexto actual, embora com denominações distintas
(ANECA, 2005; Carvalho e Baptista, 2004; López Noguero, 2005).
Numa segunda secção, partindo das implicações produzidas no quadro desta
breve incursão sócio-histórica (entre outros, Castel, 1995, 2003; Dubet, 2002; Ion
e Ravon, 2005; Karsz, 2004; Nègre, 1999; Ravon, 2005; Rouzel, 1997; Touraine,
2005), procuraremos problematizar e articular os contributos evidenciados.
Finalmente, numa terceira secção, propomos alguns elementos reflexivos e
interpretativos em torno do processo de profissionalização do Educador Social.
Assim, retomando de uma forma crítica a abordagem realizada ao longo das duas
primeiras secções deste artigo, apresentamos a nossa perspectiva relacionada
com alguns dos traços específicos que poderão estar na base do processo de

3
A problemática que tem vindo a debater-se em torno da distinção entre educação escolar versus
educação social ou entre trabalho social versus pedagogia social não será objecto de discussão no
âmbito deste artigo. Para aprofundar estas questões remetemos o leitor para (entre outras) duas obras
(Caride, 2005; Molina, 2003). No sentido de facilitar o sentido da nossa leitura, optamos por
considerar que a expressão “educação especializada” (contexto francófono) tende a reconfigurar-se na
expressão “educação social” (López Noguero, 2005; Ortega, 1999).

62
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(re)configuração do perfil profissional destes actores, inscritos na actividade

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socioeducativa em vias de profissionalização (Molina, 2003; Sáez, 1997, 2003,
2005).

Educação Especializada (Social):


Alguns Elementos Genealógicos

A Educação (especializada), no contexto francófono, teve as suas origens no


passado séc. XX, mais concretamente a partir da Segunda Guerra Mundial (Ion &
Ravon, 2005). A sua afirmação foi progressivamente ganhando uma certa
autonomia, sobretudo em relação às suas origens confessionais. Neste sentido,
como referem alguns autores (Fabre, 2004; Gauchet, 1985, 1998), a “educação”
é o resultado de um longo processo de secularização (por vezes, com marcas
acentuadas de conflitualidade) que, numa certa interpretação laico-republicana,
procurou “converter” o ideal do humanismo cristão num ideal utópico,
recontextualizado e reinterpretado no quadro do movimento da modernidade. É
neste contexto que François Dubet (2002) considera que o “programa
institucional”4 tinha como propósito legitimar a acção socioeducativa que vários
profissionais (no campo da Saúde, da Educação e do Trabalho Social)
desenvolviam no quadro da socialização (ou ressocialização) dos indivíduos. No
entanto, esta acção inscrevia-se numa postura paradoxal: pretendia-se
(re)socializar os indivíduos em torno da norma vigente, mas ao mesmo tempo
preconizava-se um ideal de liberdade e de autonomia (ideal de emancipação).
Procurava-se, deste modo, socializar com o intuito de emancipar. Esta acção ficou
conhecida como o “paradoxo republicano” (Dubet, 2002).
Neste tipo de interpretação, a “educação” era entendida como uma
determinada forma de socialização que procurava promover uma articulação entre
a necessidade de uma liberdade individual e a exigência de uma igualdade entre

4
Este “programa institucional”, segundo Dubet (2002), reveste o seguinte significado: (a) “o programa
considera o trabalho sobre (o sublinhado é nosso) o outro como uma mediação entre valores universais
e indivíduos particulares; (b) afirma-se como um trabalho de socialização baseada nesses valores e
pressupõe uma vocação; (c) este programa de socialização visa inculcar normas que conforme o
indivíduo e, ao memo tempo, o torne autónomo e livre”.

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todos os indivíduos (integração social). Esta combinação pressupunha que estes


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progredissem para um ideal de autonomia, a partir de valores universais


transmitidos numa determinada sociedade. A legitimidade deste “trabalho sobre
o outro” assentava naquilo que François Dubet (2002) chamou de “programa
institucional”. É esta concepção republicana que, segundo este autor, parece estar
em “crise”.
Para compreendermos algumas das implicações deste “declínio do programa
institucional” (Dubet, 2002), no quadro da emergência de uma profissão social e
educativa (a figura do Educador social) (Molina, 2003), importa revisitar alguns
elementos genealógicos (educação especializada) que, em parte, poderão estar
na base do processo de (re)configuração do actual perfil profissional dos
Educadores Sociais. Contudo, a aproximação mobilizada no âmbito deste artigo
não pretende ser exaustiva, mas tão-somente esboçar alguns elementos de
compreensão de uma problemática deveras complexa e com contornos
disciplinares próprios5.
Numa primeira fase6 (Nègre, 1999), o Educador Especializado, assumindo
ainda uma certa “postura militante” e num “registo tipo-vocacional” (Dubet,
2002), desempenhava uma função essencialmente correctiva (moral), no âmbito
da chamada “infância inadaptada” (Chauvière, 1980). Trabalhando em contexto
institucional fechado (internatos, casas de correcção ou reabilitação, etc.), a sua
actividade centrava-se na reabilitação (ou reinserção) de indivíduos classificados
como “difíceis”, “anormais” (deficientes) ou, ainda, como portadores de
“comportamentos desviantes” (Ravon, 2005).
O trabalho com o handicap deste tipo de indivíduos baseava-se nos
pressupostos pedagógicos inscritos na ideia de uma “pedagogia da essência”
(Suchodolski, 2000). Nesta concepção, cada indivíduo era portador de “dons
potenciais” que deviam ser desenvolvidos (actualizados) no decurso da sua
existência. Porém, nalguns casos, como esse tipo de socialização não produzia os

5
O nosso propósito não é o de realizar a história da Educação Especializada, mas, apenas, identificar
alguns dos elementos genealógicos que podem estar na base da composição actual do perfil
profissional dos educadores sociais. Quanto às diversas fases, embora se demarquem no tempo
(leitura diacrónica), na prática, acabam por coexistirem nas várias lógicas de acção, e que por isso
mesmo são incorporadas em determinadas posturas profissionais.
6
Esta fase, do ponto de vista cronológico, abrange um período que vai dos anos 40 até meados dos
anos 60 (séc. XX).
64
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efeitos devidos, por razões que estavam associados a um diagnóstico com

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“défices” (físico, mental ou sociocultural) (Ravon, 2005), então recorria-se a uma
“intervenção psicopedagógica” 7 (Ravon, 2005). Este tipo de intervenção
desempenhava um papel decisivo, uma vez que era percepcionado como um
dispositivo que visava “formar a natureza corrompida do homem” (Suchodolski,
2000: p. 18).
Esta visão veio reforçar a ideia de que cada ser humano é portador de uma
essência que permanece para além das vicissitudes da contingência humana.
Acreditando neste ideal de perfeição, o Educador Especializado era chamado a
“corrigir” os possíveis desvios que pudessem ocorrer na vida destes indivíduos
(Ravon, 2005). Nesta primeira fase, a Educação Especializada tende a ser
entendida, sobretudo como “reeducação” ou “ressocialização” das crianças
(jovens), com o propósito de as restaurar do ponto de vista moral (Durkheim, cit.
em Ravon, 2005). Neste quadro interpretativo, a “educação” revestia uma função
de controlo social e de normalização dos comportamentos tipificados como
“desviantes”. Nesta concepção educativa a actividade tende a ser perspectivada
no domínio da “moral” (actividade normativa) (Nègre, 1999).
O perfil do Educador Especializado era predominantemente definido a partir
da mobilização de técnicas ou de instrumentos de diagnóstico - importados do
sector médico (Nègre, 1999: p. 39), recorrendo à observação (quase-experi-
mental), este assumia-se como um técnico de “intervenção psicopedagógica”
(Ravon, 2005).
Numa segunda fase8 (Nègre, 1999), o Educador Especializado, sob a
influência quer da psicologia (mais concretamente da psicanálise) (Rouzel, 1997),
quer das “pedagogias não-directivas” (Rogers, 1978), tende a entender-se como
um mediador de uma relação centrada no sujeito. A sua acção, inscrevendo-se
numa relação de “face-a-face” e de “aceitação incondicional” (Rogers, 1978) do
indivíduo, tinha como propósito ajudar o mesmo a emancipar-se das lógicas de
“dominação social” ou dos “determinismos culturais alienantes” (Ravon, 2005).

7
O termo de “intervenção psicopedagógica” (Alfred Binet,1897, cit. em Ravon, 2005) reporta-nos para
a relação que passou a estabelecer-se entre os contributos da Psicologia Experimental e as suas
repercussões no quadro da pedagogia (escolar e, mais tarde, social).
8
Que se situa entre as décadas de 70-80 (séc. XX).
65
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O Educador Especializado, nesta fase, auferindo dos contributos da


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psicanálise, centrava a sua actividade na sua capacidade relacional com o intuito


de criar um espaço de expressão dos sentimentos, a partir do qual cada criança
(jovem) pudesse adquirir a sua autonomia individual (ideal de emancipação). A
sua ferramenta privilegiada passa a ser a “qualidade da sua relação” (qualidades
psicológicas e morais) que se configura como uma “actividade auto-simbólica”
(Dubet, 2002). Embora a sua acção estivesse legitimada pelo “programa
institucional” (Dubet, 2002) no qual estava inscrito, cada Educador tendia a
incorporá-lo um pouco à sua maneira, “psicologizando” o dispositivo de
intervenção socioeducativa (Ion e Ravon, 2005).
A relação educativa (distanciando-se, criticamente, do programa institucional)
corporizava-se de tal forma no estilo pessoal do educador que a eficácia simbólica
tende estar indexada às suas características sociais e psicológicas, em detrimento
da sua capacidade propriamente técnica (Nègre, 1999). Entre outras razões, esta
visão psicologizante da sua postura profissional, leva os Educadores
Especializados a definirem-se mais “por aquilo que são” (saber-ser) do que “pelas
técnicas mobilizadas” (saber-fazer) (Ion & Ravon, 2005, p. 83).
Finalmente, numa terceira fase 9 (Nègre, 1999), num contexto social
atravessado: (a) pela erosão do “edifício simbólico colectivo” (Touraine, 2005); (b)
pela queda dos “ideais educativos e republicanos” (integração versus
emancipação) (Dubet, 2002); (c) pela assunção do “indivíduo negativo” (Castel,
1995) - expressando esta figura uma cada vez maior vulnerabilidade (de massas);
o Educador Especializado confina-se cada vez mais ao “acompanhamento social
personalizado” (Nègre, 1999). Esta postura de acompanhamento inscreve-se
numa concepção dum indivíduo portador de “sofrimento psíquico” de origem
social (como por ex., a perda de objectos sociais: emprego, casa, protecção
laboral, segurança social…) (Ravon, 2005).
Tendo como ferramenta a relação que se constrói nas “situações concretas”
(cada vez mais complexas), o trabalho do Educador Especializado enquadra-se
numa postura de “escuta clínica” (Rouzel, 1997) com vista à compreensão deste
novo indivíduo, portador de um “sofrimento sócio-psíquico” (Ravon, 2005). Neste
contexto, o trabalho educativo (ou psico-pedagógico) tende a ser percepcionado

9
Esta última fase enquadra-se no contexto dos anos 90 e seguintes (séc. XX).
66
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como “acompanhamento clínico”10 (Ravon, 2005), uma vez que o seu objecto de

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intervenção são as situações singulares (experienciais) de cada indivíduo. O
propósito desta clínica educativa visa restabelecer a capacidade de acção dos
indivíduos (e não corrigir, orientar ou modificar a sua personalidade) ou a sua
capacidade para se “tornar sujeito” (Touraine, 2005).
O Educador (especializado) trabalha com um “Sujeito pessoal” (Touraine,
2005) que sofre, mas que é capaz de agir (empowerment) (Ion e Ravon, 2005),
ainda que necessitando de um acompanhamento num determinado momento de
transição (perda de emprego, rupturas familiares, situações várias de risco:
violência doméstica, toxicodependências, imigrantes, etc.). A “ajuda” prestada
reorienta-se a partir do reconhecimento dos recursos de acção mobilizados pelo
próprio sujeito, que tendencialmente é chamado a responsabilizar-se e a constituir-
se como actor do seu próprio desenvolvimento pessoal, social e profissional (Ion
& Ravon, 2005).
O objectivo da acção socioeducativa tende a deslocar-se do seu papel de
“orientação moral”, para se recentrar paulatinamente na criação de condições
favoráveis à apropriação da sua “capacidade para agir” (empowerment) sobre a
sua vida (Ion e Ravon, 2005). Quanto ao papel do Educador, este focaliza-se
predominantemente numa postura de “acompanhamento social personalizado”
do indivíduo, uma postura propícia à co-produção do sentido da sua experiência
singular e concreta (Nègre, 1999).
Num contexto de “ruptura de laços sociais” (Castel, 1995, 2003), a acção
socioeducativa deixa de se centrar na promoção (prevenção) de um ideal de
autonomia individual, para se focalizar na co-produção de sentido, no quadro da
própria trama experiencial da vida.
Nesta terceira fase, o perfil do Educador Especializado, num contexto marcado
de forma acentuada por situações de “vulnerabilidade estrutural” (Joubert, e
Louzoun, 2005), tende a ser perspectivado como um “clínico” (Ravon, 2005) que
procura escutar, reconhecer e acompanhar um sujeito singular, “capaz de se

10
O termo “acompanhamento clínico”, no âmbito da nossa análise, refere-se à articulação de contributos
oriundos de duas disciplinas: a Psicologia e a Sociologia. A expressão “clínica psicossocial” (ver, entre
outros, De Gaulejac, 1993; Ravon, 2005) tende a catalizar estes vários contributos. No entanto, neste
caso concreto, quando se está a utilizar esta noção, o significado da mesma está associado ao
posicionamento “psicanalítico” (Rouzel, 1997).
67
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tornar sujeito” da sua existência (Touraine, 2005). Todavia, este processo, em vez
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de gerar uma maior autonomização (ou emancipação), tem como estratégia


promover uma “cultura de subjectivação” (Autès, 1999).
Nesta interpretação da realidade social, em que tendem a desaparecer os
“sistemas de intermediação” clássicos (Dubet, 2002), será que ainda há
necessidade de um Educador (pedagogo)? Que papel é chamado a desempenhar
este Educador, numa sociedade em processo de “decomposição” (queda das
utopias modernas) (Touraine, 2005)? Que legitimidade tem o educador para
realizar um “trabalho sobre o outro”, num contexto de declínio do “programa
institucional” (Dubet, 2002)? Estas várias interrogações colocam-nos perante a
relevância de que se reveste o debate que se tem vindo a fazer em torno do papel
da figura do Educador social, em vias de profissionalização (Sáez, 2003).

O Perfil Profissional do Educador Social: Alguns


Elementos de Compreensão

Recuperando os elementos de análise convocados anteriormente,


consideramos que o perfil profissional do Educador Especializado, numa primeira
fase, se erigiu numa autoridade moral, legitimada pela missão que lhe era
confiada e tendo por base um Programa Institucional. A sua função centrava-se
essencialmente numa actividade prescritiva, orientando as crianças (ou jovens)
“inadaptadas” para um processo de integração social. O Educador (Especializado)
era entendido como um técnico de intervenção psicopedagógica, no campo da
ressocialização ou da reeducação, tendo como finalidade integrar indivíduos
portadores de um “défice individual”.
Este “controlo social” veio a ser posto em causa, nomeadamente com a
influência da psicanálise representada pela corrente rogeriana, que preconizava
uma “pedagogia não-directiva”. Esta postura crítica, mobilizada no quadro de uma
“clínica psicanalítica” (Rouzel, 1997), procurava ajudar as crianças (jovens) no seu
processo de autonomização (ou emancipação). O perfil profissional do Educador
Especializado, nesta segunda fase, constituiu-se a partir de uma contradição
fundamental: embora a sua legitimidade assentasse num programa institucional,
a sua eficácia simbólica residia fundamentalmente na indexação das suas
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características psico-relacionais. Entre outros aspectos (como já foi referido), isto

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aconteceu devido à “crise” de uma certa concepção de autoridade e ao “declínio”
do programa institucional. Neste sentido, a função do Educador tendia a estar
associada à sua própria capacidade subjectiva (as suas qualidades pessoais), isto,
à sua capacidade para mobilizar as suas disposições pessoais (características
sociais e morais). Podemos, desta forma, concluir que o seu perfil se foi
psicologizando (afastando-se do registo vocacional de origem confessional).
Finalmente, numa terceira fase, o perfil profissional do Educador
Especializado, confrontado com as implicações do que pode ser considerado, por
alguns (Touraine, 2005), como o “fim da sociedade” ou da educação como uma
“certa forma de socialização”, tende a reequacionar-se numa vertente clínica
(psicossocial) (Ravon, 2005). Reabilitando a escuta empática rogeriana, e
combinando-a no quadro da problemática da vulnerabilidade (de massas), o perfil
profissional do Educador (especializado) reconfigura-se como um “clínico” que
procura escutar e acompanhar um “indivíduo negativo” (Castel, 1995).
O paradoxo republicano (integração social versus emancipação individual)
(Dubet, 2002) começa a ser posto em causa, dando origem a uma nova figura de
integração (inclusão): os “direitos culturais” (Touraine, 2005). Para Touraine
(2005, p. 238), “hoje, o paradigma coloca em primeiro plano a reivindicação de
direitos culturais. Tais direitos exprimem-se sempre pela defesa de atributos
particulares, mas conferem a essa defesa um sentido universal”. Este novo
paradigma, proposto por este autor (Touraine, 2005), inaugura um novo ciclo: a
emergência de uma “cultura do sujeito”.
Todavia, a valorização desta cultura da subjectivação esconde por detrás uma
outra preocupação: a assunção de um “sujeito livre” está inscrita (como face da
mesma moeda) na emergência de um indivíduo “desligado” da sua condição
sócio-histórica (Honneth, 2000). Em certa medida, esta dissolução do sentido
entendido como um “sistema homogéneo e unificador” (Touraine, 2005), a par de
uma crescente precarização laboral e enfraquecimento das “protecções
colectivas” (Estado-providência), contribuiu para que cada indivíduo se tenha
constituído como “responsável pela sua vida” (tanto em relação aos êxitos, como
em relação aos fracassos) (Castel, 1995, 2003).
As repercussões desta tendência para a responsabilização individual, quando
em muitos casos a responsabilidade é também colectiva, levaram alguns
69
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sociólogos a criarem uma nova figura para traduzir e expressar este mal-estar
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sócio-psíquico: a figura do “sofrimento social” (por ex., Joubert & Louzoun, 2005;
Ravon, 2005). Esta nova figura sociológica induz-nos numa nova interpretação dos
“problemas sociais”: a interiorização subjectiva das problemáticas oriundas de
um contexto social gerador de “insegurança social” (Castel, 2003).
O papel do Educador Especializado (Social), neste contexto social, começa
progressivamente a ser percepcionado numa “óptica de acompanhamento”
(Nègre, 1999). Trata-se de preconizar uma acção profissional que reconheça a
“capacidade de acção” do indivíduo (Honneth, 2000), mas no quadro de uma
mediação institucional (suporte social) (Castel, 2003). Este tipo de
acompanhamento profissional, mais do que tentar resolver os problemas das
pessoas, procura reabilitar um “espaço de intersubjectividade” (Autès, 1999), a
partir do qual se possa co-produzir uma resposta com os implicados. Importa por
isso mesmo valorizar o papel da “escuta” do sofrimento deste novo “indivíduo
negativo” (Castel, 1995; Ravon, 2005).
A “escuta clínica”, perspectivada a partir da concepção veiculada por alguns
autores (por ex., Karsz, 2004; Ravon, 2005), tende a ser convocada a partir da
articulação entre os vários contributos oriundos quer da psicologia, quer da
sociologia. Esta visão integrada – configurada a partir do conceito “psicossocial”
(Ravon, 2005) ou “transdisciplinar” (Karsz, 2004) - procura superar uma certa
visão estreita da perspectiva “clínica”, na sua versão psicanalítica (Rouzel, 1997),
e que se centra quase exclusivamente na dimensão intrapsíquica do sujeito.
A “postura clínica” (De Gaulejac, 1993) salienta o papel da dimensão relacional
(a relação), a partir da qual se pretende “escutar” (sensivelmente) o sujeito, portador
de uma condição sócio-histórica e de uma inscrição simbólico-cultural. Esta “escuta
clínica”, para Vincent de Gaulejac (1993: p.14), “tem por objecto deslindar os nós
complexos entre os determinismos sociais e os determinismos psíquicos, tanto nas
condutas dos indivíduos e dos grupos, como em relação às representações que
estes se fazem daquelas. Esta (clínica) inscreve-se no coração das tensões entre
objectividade e subjectividade, entre estrutura e acção, entre indivíduo produto sócio-
histórico e indivíduo criador de história, entre reprodução e mudança, entre
dinâmicas inconscientes e dinâmicas sociais…”.
Partindo destes pressupostos, brevemente esboçados, regressamos ao nosso
questionamento inicial: num contexto social atravessado pela “insegurança”, pela
70
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“vulnerabilidade” (de massas) ou pela “dessocialização” (Castel, 1995, 2003;

 Cadernos de Pedagogia Social


Dubet, 2002), mas ao mesmo tempo, quase de forma paradoxal, num tempo em
que se tende a reivindicar uma cultura da subjectivação ou reabilitar o “Sujeito
pessoal” (Autès, 1999; Honneth, 2000; Touraine, 2005), que tipo de perfil
profissional é exigido ao Educador Especializado (Social)?
Reconhecendo o “sujeito social aprendente” (Dumazedier, 2002) como
“agente de educação”11, qual poderá ser o papel do profissional? Que tipo de
mediação pode vir a exercer? Que elementos (re)configuram a composição do seu
perfil quer ao nível das suas genealogias históricas, quer ao nível das
transformações sociais com que se vê confrontado no campo da sua acção
profissional? Como conciliar a sua dimensão técnica (requisito de qualquer
profissão) com a sua dimensão ética (dimensão específica do acto educativo)? Em
nome de quê ou de quem legitima a sua acção profissional, num contexto de
“declínio do programa institucional” (Dubet, 2002)?
Este questionamento indica-nos o tipo de debate que se tem vindo a fazer em
torno da figura do Educador Especializado ou como prefere López Noguero (2005)
do “Educador Social Especializado”. A expressão “Educação Social” (no quadro
da perspectiva) corresponde uma tentativa de incorporar tantos os contributos
oriundos das suas genealogias históricas (Educador Especializado), como os
contributos provenientes da reflexão sociológica, no quadro da reconceptualização
do Trabalho Social (clássico) (Chopart, 2000).
A reconceptualização do Trabalho Social (clássico) convoca novos
pressupostos sociológicos. Já não se trata de “reparar” ou “integrar” um indivíduo
com “problemas de inadaptação” (social) ou um indivíduo que necessita de se
“emancipar” dos seus determinismos sociais ou culturais, mas de nos
confrontarmos com um indivíduo que é chamado a “produzir-se a si próprio” e ao
mesmo tempo a co-produzir os seus “laços sociais” (Castel, 2003; Dubet, 2002;
Ravon, 2005)

11
Esta ideia de que o “sujeito de educação” é agente de si próprio inscreve-se no debate que se tem
gerado em torno do conceito de “autoformação” (Pineau, 2000). Com efeito, o educador ou o
pedagogo, apenas, trabalha com as “condições”, quanto e aos processos de aprendizagem, estes são
de “autoria” do próprio sujeito (Meirieu, 2001. Neste sentido, o conceito de “educação” reveste-se de
um duplo significado: a educação como uma acção pilotada pelo sujeito de educação; a educação
como uma relação de acompanhamento que visa gerar condições para que este se torne “sujeito social
aprendente” (Dumazedier, 2002).

71
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É a partir deste enquadramento que, na secção seguinte, procuramos sugerir


 Cadernos de Pedagogia Social

alguns dos traços específicos que podem estar na base da configuração do perfil
profissional associado a esta nova figura: o Educador Social.

A Construção de um Perfil Profissional: Alguns


Traços Específicos
Em relação à evolução do perfil profissional do Educador Especializado, desde
as suas origens confessionais (numa óptica de militância e num registo
vocacional), passando pela fase mais radicalizada (crítica) - na qual esta figura
profissional sofreu uma psicologização da sua função pedagógica, sendo esta
quase reduzida a uma mera relação empática (rogeriana) - culminando na
revalorização do papel da relação de acompanhamento inscrita numa “postura
clínica”, percepcionada e interpretada a partir da articulação entre os contributos
da psicologia (psicanálise) e o papel da sociologia (do sujeito), o perfil profissional
do Educador Especializado foi-se (re)configurando a partir de vários contributos
disciplinares (Nègre, 1999; Ravon, 2005; Rouzel, 1997).
Procurando evitar tanto o psicologismo, como o sociologismo, a tentativa de
querer conciliar estas duas áreas disciplinares, levou Bertrand Ravon (2005) a
conceber esta “postura clínica” como uma retro-alimentação mútua: a sociologia
tende a recentrar-se no “sujeito singular” e a psicologia passa a focalizar-se na
problemática da “ruptura de laços sociais” (Ravon, 2005, p. 56). A psicologia
começa ocupar-se do sofrimento psíquico, mas atribuindo-lhe uma origem social:
(entre outros) os efeitos do “declínio do programa institucional”, da
“decomposição social”, da “erosão do edifício simbólico colectivo”, do
“enfraquecimento do Estado-providência”, etc. (Dubet, 2002; Castel, 1999;
Touraine, 2005). Quanto à sociologia, partindo do reconhecimento da experiência
singular dos actores que se inscrevem a partir de um ambiente social atravessado
pelo “sofrimento sócio-psíquico”, procura reabilitar a figura do “Sujeito pessoal”
ou do “Sujeito ético” (Canastra, 2005; Joubert e Louzoun, 2005; Ravon, 2005;
Touraine, 2005). Desta forma, a psicologia privilegia uma leitura da realidade
social do sujeito, para além da sua dimensão intrapsíquica; a sociologia tende a
reabilitar o papel da “experiência singular” do sujeito ou de uma “cultura da
subjectivação” (Autès, 1999; Le Gaulejac, 1993).
72
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É partir da articulação entre estas duas disciplinas (psicologia e sociologia) e

 Cadernos de Pedagogia Social


da sua recontextualização no campo da pedagogia-educação (social), que nos
propomos realizar uma aproximação conceptual em torno da figura profissional
do(a) Educador(a) Social, tendo como quadro referencial a articulação entre esta
“leitura transdisciplinar” (Karsz, 2004) e algumas das implicações (provisórias)
evidenciadas no âmbito de uma Investigação Empírica12 .
Os Educadores Sociais, hoje, deparam-se com um “público-alvo” diferente
daquele com o qual trabalhavam há uns anos atrás os Educadores Especializados.
Com efeito, começa-se a reconhecer que os “problemas sociais” (a partir dos
quais o profissional exercia a sua actividade) tendem a ser interpretados e
compreendidos como “problemas de acção” (Ion e Ravon, 2005). Isto significa,
entre outras coisas, que o tipo de “ajuda” prestada aos indivíduos se centra cada
vez menos nos seus défices (sejam eles físicos, mentais ou socioculturais) e cada
vez mais nas suas potencialidades (empowerment), na sua capacidade para “se
tornar sujeito”, tendo como mediação as “transacções simbólico-culturais”, a
partir das quais cada indivíduo “se produz a si próprio” (Dubet, 2002; Ion e Ravon,
2005; Molina, 2003; Touraine, 2005).
Por conseguinte, para além do papel da “clínica psicossocial” (Ravon, 2005),
que destacamos como essencial na construção do perfil profissional do Educador
Social, importa ter presente que a “educação é um acontecimento ético” (Bárcena
e Mélich, 2000) que, ainda que não prescinda da sua dimensão técnica (métodos,
didáctica, tecnologia…), é preferencialmente uma questão de “arte”, de “tacto”,
de “sensibilidade”, numa palavra, de “ética” (Van Vanen, 1998). Por outro lado,
ao convocar o papel da “pedagogia”, não o fazemos nem na lógica
psicopedagógica ou na vertente de uma pedagogia não-directiva, mas sim no
sentido que lhe dá Philippe Meirieu (2001), designando-a por uma “pedagogia das
condições” (e já não uma pedagogia normativa ou uma pedagogia do modelo).
Este tipo de pedagogia procura reabilitar o sujeito enquanto capaz de se
autoproduzir (autoformar) a partir de uma “autorização pessoal” das suas

12
Esta investigação (em fase de conclusão) inscreve-se no âmbito de um Doutoramento em Ciências da
Educação, especialidade Educação Pessoal, Social e Comunitária. Tem como problemática central os
dilemas (tensões/contradições) a partir dos quais um grupo de futuros(as) Educadores(as) Sociais
tende a (re)apropriar-se do sentido de que se revestem os seus processos de profissionalização.

73
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ressonâncias simbólico-culturais, que o constituem e através das quais procura


 Cadernos de Pedagogia Social

tornar-se “sujeito-autor”13.
Neste sentido, o papel da pedagogia tende a deslocar-se da sua “postura
normativa” para se assumir numa “postura de acompanhamento” (Nègre, 1999).
Trata-se, deste modo, de sugerir, mais do que impor; de escutar, mais do que
diagnosticar; de acompanhar, mais do que conduzir (dirigir ou orientar); de
reconhecer, mais do que intervir (sobre ou outro) (Dubet, 2002; Honneth, 2000;
Van Manen, 1998).
É no quadro global desta interpretação que apresentamos a nossa proposta
relacionada com a construção do perfil profissional do Educador Social e que
combina, de forma dinâmica e dialógica, três elementos configurativos: (a) uma
escuta clínica (transdisciplinar) (Karsz, 2004); (b) um tacto pedagógico (Van
Manen, 1998); e (c) uma postura ética (Paturet, 1995; Charlier, 1998).
A “clínica transdisciplinar” (Karsz, 2004) procura mobilizar uma escuta
baseada numa desconstrução das “configurações ideológicas mobilizadas” nas
situações, nos problemas, nas experiências, nas concepções dos indivíduos ou
nos dispositivos de intervenção dos próprios actores profissionais. Com este tipo
de clínica (transdisciplinar), o Educador Social começa por fazer um trabalho de
elucidação com o sujeito, de forma a objectivar (distanciamento) o mais possível
a situação ou o problema que o afecta. Esta “postura clínica transdisciplinar”
tenta explicitar o que, muitas vezes, reside na sombra, está oculto ou não é
verbalizado; ou o que, com alguma frequência, não é tido em conta: o
inconsciente, o desejo, as motivações; ou, ainda, o que em muitos casos está por
detrás das situações (ou problemas) dos indivíduos: os valores, os interesses, os

13
Ferreira-Alves e Gonçalves (2001: p. 66-67) estabelecem, de uma forma clara, a distinção entre os
conceitos de “autonomia” e de “autoria”: “Na noção de autonomia como objectivo educativo para o
nosso tempo repousam, provavelmente, dois grandes equívocos: em primeiro lugar, uma epistemologia
absolutista (positivista), proveniente da crença na superioridade máxima das operações formais na
construção do indivíduo e, em segundo lugar, uma visão que concentra no sujeito individual e
descontextualizado a fonte do seu sucesso no mundo, proveniente do conceito de identidade que lhe
está associado. À autonomia queremos contrapor e propor um novo conceito que nos parece conciliar
em si as exigências pessoais e sociais de uma sociedade pós-moderna: a Autoria. Promover a autoria
é procurar fazer de cada indivíduo um autor da sua história. Só que, por contraponto ao sujeito formado
pela escola da modernidade, a quem se procurou promover a autonomia, o autor é alguém
comprometido e envolvido com as circunstâncias familiares, sociais, culturais e históricas do seu
tempo”.
74
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posicionamentos (parciais, mas percepcionados como absolutos), numa palavra,

 Cadernos de Pedagogia Social


as “ideologias”14. A “clínica transdisciplinar” (Karsz, 2004) visa desconstruir
(explicitar) as omni-explicações produzidas no campo da intervenção social. Seja
qual for a leitura, a interpretação ou a intervenção, estas são sempre parciais,
locais ou provisórias, implicando uma “postura de abertura” para outras
dimensões, registos ou lógicas (Karsz, 2004).
O “tacto pedagógico” (Van Manen, 1998) propõe-nos uma outra abordagem
do papel que deve desempenhar a pedagogia, no contexto actual. Depois da crise
do “trabalho sobre o outro” (Dubet, 2002), entendido no quadro de uma
concepção pedagógica centrada numa acção normativa (orientar, dirigir,
aconselhar, educar…), importa, mais modestamente, encarar a actividade do
pedagogo como alguém que, no “terreno”, nas “situações” ou na própria “acção
profissional”, procura mobilizar uma “sensibilidade ética”, a par de uma
“inteligência situacional” (Larrosa, 2000, Meirieu, 2001).
O tacto pedagógico inscreve-se num trabalho que incide nas “temporalidades
subjectivas” (Pineau, 2000) de cada sujeito singular (concreto) e tem como
propósito sugerir-lhe condições (recursos), interpelá-lo nas suas disposições
(implicação pessoal, desejo, responsabilidade) e procurar induzi-lo na elaboração
do seu próprio projecto de vida (Van Manen, 1998). O tacto pedagógico justifica-
se pelo facto de o educador se confrontar com um sujeito (agente de educação)
que, para além de ser produto e portador de uma “história”, de uma “cultura”,
uma de “memória”, de uma “tradição”… é, também, produtor (recriador) destas
(Larrosa, 2000).
Todavia, devido em grande parte à erosão do sentido colectivo - entendido
como um sistema unitário e homogéneo – e ao tipo de implicações que este
fenómeno tem gerado, a “figura de acompanhamento” (Nègre, 1999) tende a
constituir-se na nova ferramenta dos Educadores Sociais, confrontados cada vez
mais com indivíduos que “sofrem” determinadas perdas, rupturas ou dissociações
(psico-sociais). O papel do(a) Educador(a) Social tende a estar associado à sua

14
Saül Karsz (2004: 146) considera que a actividade educativa é, eminentemente, normativa e, por isso,
ideológica. O autor estabelece, deste modo, uma distinção entre as noções de “objectividade” e a
“neutralidade”. Em relação à primeira, reporta-se ao registo científico; quanto à segunda, remete para
à dimensão ideológica. Na verdade, o autor considera, que a pretensa neutralidade, não passa de uma
ideologia que atravessa quer os discursos quer as práticas da actividade profissional dos trabalhadores
(educadores) sociais.
75
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capacidade para mobilizar Dispositivos de Acompanhamento que facilitem a


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emergência de um Sujeito que seja capaz de “se produzir a si próprio” e ao


mesmo tempo de co-produzir os seus “laços sociais” (Dubet, 2002; Joubert e
Louzoun, 2005; López Noguero, 2005; Ravon, 2005; Touraine, 2005).
A “ética” (Charlier, 1998; Meirieu, 2001; Paturet, 1995), sendo uma das
dimensões específicas de qualquer profissional enquadrado numa “actividade
relacional” (por ex., os trabalhadores sociais ou educadores) (Dubet, 2002),
constitui-se como um dos eixos estruturadores das profissões sociais (Autès,
1999).
Importa, não obstante, clarificar o que pretendemos expressar com a
utilização deste conceito (ética)15. Trata-se de reconhecer que as profissões
enquadradas no “relacional” (Dubet, 2002), desde as suas origens
(confessionais), tiveram como preocupação realçar o papel que revestiam os
valores ético-morais, no âmbito da sua actividade profissional.
Se considerarmos que estes profissionais se confrontam sempre com um
“rosto humano irredutível” (Lévinas, cit. em Charlier, 1998), então o Sujeito nunca
deve ser reduzido a um mero “objecto” de intervenção. A Ética coloca-nos perante
um imperativo: reconhecer a singularidade de cada Sujeito. Um sujeito que se
constitui como “autor-produtor” das suas escolhas, das suas decisões ou das
suas acções.
A Ética, nesta concepção, reabilita o Sujeito como responsável da sua vida
pessoal e social (ou profissional) e como portador de “alteridades” (as
configurações simbólico-culturais) que o formam e a partir das quais “simboliza”
a sua relação consigo, com os outros e com o seu meio-envolvente (Charlier,
1998; Pineau, 2000).
Partindo destes pressupostos, consideramos que o perfil profissional do(a)
Educador(a) Social obedece a uma lógica “construtivista”, uma vez que se vai
construindo na trama da própria acção profissional e a partir de um “trabalho
sobre si próprio” (Dubet, 2002).

15
Paul Ricouer (1990) distingue a moral da ética. Enquanto que a primeira se reporta ao comportamento
ou à conduta concreta dos indivíduos em relação às “normas”; a ética inscreve-nos numa postura
reflexiva relacionada com o sentido de que se reveste essa mesma conduta. Por isso, mais do que
saber se uma determinada conduta é correcta ou justa, a ética procura mobilizar um questionamento
permanente sobre os motivos que levam alguém a construir o sentido do seu posicionamento no
quadro de determinadas normas.
76
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O perfil profissional do(a) Educador(a) Social tende a configurar-se em torno

 Cadernos de Pedagogia Social


da sua capacidade para mobilizar (e integrar) uma escuta clínica, um tacto
pedagógico e uma postura ética. Assim, a sua principal ferramenta de trabalho é
a “escuta sensível” e o “tacto pedagógico”; o seu “objecto” de intervenção é a
própria “relação educativa” que se joga nas situações singulares e concretas; a
sua finalidade é contribuir para a emergência de um Sujeito ético, que se co-
produz a partir das ressonâncias das suas “configurações simbólico-culturais” de
que é portador (Autès, 1999; Canastra, 2005; Molina, 2003).

77
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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 81-100

A Educação Intergeracional no horizonte da


Educação Social: compromisso do nosso
tempo
Cristina Palmeirão 1

Resumo
O artigo que agora se apresenta enfatiza a Educação e intervenção
Intergeracional e fundamenta-se a partir de um projecto – Redes de Encontro
Intergeracionais – especialmente criado e desenvolvido, no âmbito do nosso
trabalho de doutoramento, com a finalidade de aferir a validade sócio
pedagógica de práticas de educação e intervenção intergeracional, em
contexto escolar (1ºCiclo). Cada sessão (semanal) exaltava princípios de
partilha, saberes e competências entre gerações. A análise dos
documentos/testemunhos (quantitativos e qualitativos) indicam que o projecto
ajudou a criar um quadro de ideias mais positivas sobre o envelhecimento e
promoveu atitudes igualmente positivas entre gerações.

Introdução

No desenvolvimento das sociedades, a mulher e o homem têm vindo a


conquistar uma maior longevidade e, embora a ritmos diferentes, a esperança
média de vida continua a crescer (Nazareth, 2004), o que aviva a necessidade de
pensar as políticas de natalidade (cf. Decreto-Lei nº 308-A/2007) e a reflectir a

1
Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/UCP
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problemática da educação e da solidariedade intergeracional. Se é verdade que as


 Cadernos de Pedagogia Social

actuais unidades familiares vivem tempos de grande transformação, é igualmente


verdade que a complexidade das actuais relações sociais (Giddens, 2005),
demandam outro tipo de interacções e de cooperação capazes de possibilitar a
construção de alicerces comunicacionais e relacionais adequados às sociedades
do nosso tempo.
Em termos cronológicos, as raízes de uma mensagem mais científica e,
naturalmente, mais esclarecida a propósito do envelhecimento mundial dos povos
e a necessidade de uma atitude mais participativa, surgem nos anos oitenta do
século passado. Da I Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento (1982),
germinaram princípios orientadores para a construção colectiva de uma sociedade
verdadeiramente inclusiva. Sementes vigorosas e profícuas porquanto fizeram
nascer uma outra consciência e uma atitude mais coerente com os direitos da
pessoa e, em especial, da pessoa idosa. Interdependência, participação e
dignidade, foram máximas expressas na Primeira Assembleia e reiteradas - de
forma peremptória -, em Madrid, durante a Segunda Assembleia Mundial das
Nações Unidas sobre o Envelhecimento (2002), no sentido de invocar um novo
olhar sobre a velhice e o acesso a «ambientes de humanidade» (Azevedo, 2007,
p.15) que propiciem viver melhor.
A deslocalização das famílias associada ao rápido processo de urbanização,
ao número crescente de famílias multigeracionais e a institucionalização da
velhice (Fernandes, 1996) apelam a uma intervenção e inclusão social de maior
latitude e, principalmente, à assunção de uma atitude mais positiva de
interdependência e intercâmbio de comunicação e de convivência intergeracional.
Obviamente, a provisão natural de interajuda deve ser, sempre que possível, de
natureza familiar e alimentada por afectos e por uma ética que transcende a
obrigatoriedade do «velho» pacto geracional. Todavia, há factores que inviabilizam
a existência de vínculos de proximidade naturais e a razão é, na maioria das vezes,
o modus vivendi das actuais composições familiares. Do «Plano de Acção
Internacional sobre o Envelhecimento (2002) ressalta um compromisso que
valoriza, fundamentalmente, o “acesso ao conhecimento, à educação e à
capacitação” e a premência de “fortalecer a solidariedade mediante a equidade e
a reciprocidade entre as gerações”. A intenção é clara, o que se pretende é
reflectir e accionar todas as estruturas de maneira a desenvolver nas pessoas (e
82
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nas instituições) competências relacionais, cognitivas e afectivas que permitam

 Cadernos de Pedagogia Social


olhar o futuro de forma esclarecida e confiante e, assim, aumentar a qualidade e
a satisfação de vida. Mais, para que estes princípios se concretizem há que criar
«instrumentos» consistentes com a especificidade das sociedades
multigeracionais. Nessa perspectiva, há anos que se valoriza a dimensão
educativa, porquanto se acredita ser esta a melhor «bússola» para facilitar o
diálogo entre gerações e, evidentemente, valorizar aspectos éticos e culturais,
enquanto esteios para edificar a sociedade presente e futura.

A partir da educação… intergeracional

Num tempo em que as sociedades vivem momentos de grande ambiguidade


e insegurança (Baudrillard, 2002; Bauman, 2005; Fraga, 2001; Gil, 2005;
Hobsbawn, 2008) a prática dos princípios que «modelam» a sociedade do
aprender e do conhecimento é um exercício complexo, mais ainda quando a
multiplicidade de situações de debilidade, de pobreza extrema e de histórias de
vida que se perdem no vazio de um universo carregado de acontecimentos de
destruição e violência se cruzam e coexistem com um universo fulgente e de um
colossal desenvolvimento científico e tecnológico (Castells, 2005). O que se exige
é o comprometimento e o esforço do próprio indivíduo na sua relação com os
outros (Carvalho, 1994, p.19). De resto, um desafio e um requisito das culturas
integradas, onde “o valor do respeito pela vida de todas as pessoas evidencia a
função sociopedagógica da educação, no sentido de realçar a orientação e a
cooperação intergeracional” (Palmeirão, 2007b, p. 85).
De facto, a sociedade contemporânea, requer atitudes enérgicas e um caminhar
comprometido cuja meta é a de construir uma sociedade plural que “não tem sentido
sem uma referência ao educativo” (Caballo Villar, 2001, p.14), porquanto, explica a
autora, “a educação não é só uma preocupação do sistema educativo mas sim um
instrumento social e cultural imprescindível para a coesão comunitária e pessoal
(idem). Uma sociedade para todas as idades pressupõe uma pedagogia e uma
educação, cuja matriz se fundamente no conhecimento e na interacção enquanto
estratégia educativa para o desenvolvimento de competências relacionais e onde o
afecto é a «essência» para uma efectiva participação.
83
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A evolução do mundo requer uma educação ao longo da vida e uma


 Cadernos de Pedagogia Social

actualização permanente, de forma a responder eficazmente às problemáticas da


nossa contemporaneidade (terrorismo, violência, solidão, desemprego,
discriminação, …). Sendo assim, o desafio é actuar segundo uma lógica que
carece ainda de um melhor conhecimento do processo de desenvolvimento do ser
humano e dos actuais modelos de inserção social a partir da perspectiva
humanista. A par de um cenário pouco optimista e, sobretudo, muito exigente no
que respeita à necessária demolição de preconceitos e estereótipos, erguem-se
esteios no sentido de fazer germinar novos espaços de participação e de
intercâmbio geracional e, obviamente, oportunidades alternativas para fazer brotar
percursos de vida edificados na vontade do indivíduo, enquanto «fazedor» do seu
trajecto de vida e onde o sentido deve seguir o traçado desenhado pela educação,
enquanto «meio» capaz de gerar «lugares de densidade antropológica» (Augé,
2005) e, naturalmente, um rumo e uma «territorialização» singular em prol de
uma maior dignidade e valorização humana.

A pensar nos dias futuros

A necessidade de pensar novas redes de solidariedade tem feito despoletar


um modelo de actuação interactivo e de natureza sócio-pedagógica, onde o que
se deseja é facilitar o contacto intergeracional através do conhecimento efectivo
do processo de desenvolvimento e envelhecimento do indivíduo e pela
aprendizagem recíproca enquanto estratégia capaz de fazer germinar uma
consciência que encoraja o respeito pela diferença e valoriza a história de vida de
cada um dos actores (Aday, McDuffie e Sims, 1993; Bales, Eklund e Siffin, 2000;
Lohman, Griffiths, Coppard e Cota, 2003; Newman, Karip e Falso, 1995). O
mundo presente desfruta de uma capacidade científica e tecnológica sem
precedentes, o que possibilita extraordinárias oportunidades de capacitação para
a mulher e para o homem chegarem à velhice com mais saúde e maior bem-estar.
Mesmo assim, o número de pessoas idosas a viverem sozinhas (INE, 2001) ou
em situação de institucionalização é uma realidade inquietante. A participação dos
idosos nas sociedades implica, antes de mais, reconhecer que todas as idades
são complementares e que cada estádio acontece na sequência das
84
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aprendizagens e experiências precedentes. “Todas as pessoas, sem excepção,

 Cadernos de Pedagogia Social


possuem valor e potencial a desenvolver, independentemente das experiências
negativas que marcam a sua história de vida” reitera Isabel Baptista (Baptista,
2007).

Uma experiência de Educação Intergeracional

O contacto entre pessoas de diferentes idades tem sido uma prerrogativa


estimulada desde meados do século passado e o «território» favorecido é
frequentemente a escola (Palmeirão, 2007, p.79-119), enquanto “lugar” ideal para
aprender a compreender e agir em conformidade com o desenvolvimento e a
interacção solidária entre gerações. Incitar a mudança de paradigma de
comunicação e de entendimento social são, de facto, contributos reconhecidos às
práticas de intervenção intergeracional (Goff, 2004; Klein, Councill e McGuire,
2005; Visser e Mirabile, 2004), já que possibilitam e enfatizam a componente
formativa e socializadora (Middlecamp e Gross, 2002; Marx, Pannel, Parpura-Gill
e Cohen-Mansfiel, 2004; Zeldin, Larson, Caminho e O’Connor, 2005) e, nesse
sentido, facilitam a aprendizagem ao longo da vida. “Os homens [e as mulheres]
não podem viver juntos sem se entenderem e, por consequência, sem fazerem
sacrifícios mútuos, sem se ligarem uns aos outros de maneira forte e durável”
(Durkheim, 1977, p. 261) o que requer uma relação e uma proximidade centrada
na prevalência da interajuda e na assunção de uma qualidade de vida ancorada
no desenvolvimento da sua pessoalidade. Em cada cultura existem códigos e
rituais específicos de cooperação e o pressuposto é, num horizonte possível,
conquistar o direito à felicidade, um desiderato e um desafio permanente à nossa
humanidade. A vida diária é um exercício constante de costumes, práticas,
saberes e memórias que misturados de forma consistente são a essência para
viver mais e melhor. Nesse sentido, o importante é valorizar experiências, saberes
e o potencial humano de cada geração enquanto recursos para criar espaços de
comunicação e participação e assim fazer nascer uma cultura gerontológica que
nos permita viver de forma digna todos os anos da nossa vida.
Redes de Encontro Intergeracionais (REI’S) inscreve-se no projecto do nosso
doutoramento – A interacção geracional como estratégia educativa: um contributo
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para o desenvolvimento de atitudes, saberes e competências entre gerações - e


 Cadernos de Pedagogia Social

tem como finalidade averiguar em que medida um projecto socioeducativo, no


domínio da educação intergeracional, pode contribuir para o desenvolvimento
pessoal e social dos cidadãos, qualquer que seja o grupo etário em que se integra.
Activar a participação entre gerações; criar momentos de partilha de saberes e
experiências; diminuir atitudes negativas e estereótipos sobre adultos mais velhos
e fazer despertar uma nova consciência multigeracional, foram os pressupostos
de partida para justificar a nossa acção.

Participantes/Amostra

O grupo de pessoas participantes foi de cerca de cinquenta pessoas de ambos


os sexos e cujas idades variavam entre os 8 e os 91 anos. O grupo júnior contava
20 crianças - 9 raparigas e 11 rapazes. Relativamente à idade, todos completaram
10 anos até ao final de 2006. Quanto ao grupo das pessoas idosas, trata-se de
um grupo de indivíduos, residentes num lar na cidade do Porto e a média de
idades era de 76,2 anos. Do grupo de comparação contamos 23 crianças – 11
meninas e 12 meninos, do 4º ano de escolaridade e cujas idades não
ultrapassaram os 10 anos. Os restantes elementos participantes, são pessoas
adultas, doze do sexo feminino e duas do sexo masculino, em termos de grupo
etário têm entre os 25 e os 60 anos.

Estratégias de Desenvolvimento

O presente estudo foi concretizado numa Escola Básica do 1º Ciclo (EB1) e


num Lar para Pessoas Idosas (Lar). Relativamente ao modelo de actuação, o
percurso resulta da acção de um grupo de trabalho, da cooperação
interinstitucional e de um plano de actividades edificado numa metodologia de
natureza mista (Braud & Anderson, 1998; Creswell, 2002, Patton, 1980), activa e
participativa (Trilla, 1997). Especificamente, arquitectamos um projecto de
intervenção com a finalidade de modificar e melhorar a forma de pensar e
representar a velhice, o papel do idoso no mundo actual e as relações sociais.
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Em termos de procedimentos, a recolha de informações foi realizada durante

 Cadernos de Pedagogia Social


todo o período de desenvolvimento do Redes de Encontro Intergeracionais e durou
cerca de um ano. Uma vez por semana, preferencialmente, à sexta-feira, o grupo
de crianças e pessoas idosas juntam-se e «trabalham» conforme o articulado na
sessão anterior e tendo em atenção o definido no Projecto Curricular de Turma
(PCT) e o Plano de Actividades do Lar (PAL). É, tendo por base estas matrizes, que
articulamos e implementamos uma série de acções - construção de materiais,
visitas interinstitucionais, encontros e grupos de discussão focalizada - e coligimos
um «corpus» de informações muito diversificado. A heterogeneidade dos materiais
gerados, forçou a aplicação de «ferramentas» de análise e interpretação diversas
- análise de conteúdo, inquéritos, grupos de discussão e observação participante.
No caso das composições escritas e porque se trata de documentos pessoais,
recorrermos à análise do acordo e da fiabilidade correlacional entre juízes, aferida
pelo coeficiente de Kappa de Cohen (Pestana e Gageiro, 1998, 208). Quanto aos
inquéritos por questionário, aplicado a alguns elementos da comunidade
educativa e do lar (pais/mães, professores/professoras e colaboradores do Lar)
utilizamos a análise descritiva. Para aferir a «impressão» do projecto, a técnica
usada foi o grupo de discussão focalizada e, de forma transversal, a observação
participante, foi o «dispositivo» sempre presente, por via presencial e de registos
audiovisuais (Figura 1).

Figura 1 Cronograma Estratégias do Projecto REI’S

Leitura, declamação, visitas, teatro, dança, celebração Direitos da Criança, entretenimento, …

Documentos Inquéritos Grupos Observação


Pessoais Discussão Participante

Composições Pais Prof. Lar Pessoas Crianças Registos


Desenhos Mães Idosas Audiovisuais
Poemas … 14 4 4

Análise/2 juízas Análise Análise Portfólio


Medida/ Kappa descritiva impacto digital

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Sobre as Iniciativas
 Cadernos de Pedagogia Social

O desenho inicial do Redes de Encontro Intergeracional contemplava apenas o


1º trimestre do ano lectivo. Mas, por vontade expressa dos principais actores
(crianças e pessoas idosas), prolongou-se até final do ano lectivo. O grupo de
trabalho reunia, frequentemente, e redesenhava as acções conforme a dinâmica
escolar e o plano de actividades do Lar, visando: 1) articular as actividades com
os conteúdos curriculares definidos no PCT, no sentido de promover a
aprendizagem significativa e cooperativa; 2) propiciar a interacção entre as
pessoas, principalmente, pessoas idosas e crianças, através da realização de
tarefas colaborativas e interactivas; 3) permitir o diálogo e demonstração de
competências e 4) propiciar o diálogo de relações de proximidade emocional.

Entre visitas...

Logo no primeiro encontro e, através de um jogo interactivo - “o encontro”


(Becattini, 2004, p. 29), os participantes (crianças e pessoas idosas)
entrevistaram-se mutuamente. Estimular o diálogo e a comunicação entre
pessoas que mal se conhecem foi o objectivo pensado, juntamente com o convite
para criar o logótipo do REI’S. Das visitas, as crianças e as pessoas idosas,
comentam o entusiasmo e o gosto de conhecerem e partilharem momentos da
vida quotidiana e um tempo diferente de interacção e de aprendizagem. Da
observação, ressalta a forma (quase) natural como se desenvolvem as interacções
e o tipo de afectos que se geram entre grupos. Iniciativas que permitiram
desenvolver conhecimentos e competências de diálogo e de interacção
intergeracional.
“Porto Sentido” de Carlos Tê, “Barco Negro” de David Mourão Ferreira e
“Uma Casa Portuguesa” de Reinaldo Ferreira, foram alguns dos poemas
declamados pelas crianças com a colaboração dos participantes mais velhos.
Encontro após encontro a disponibilidade para «bem receber» no lar e na escola
é uma realidade que conta com a cumplicidade de todos.
O tempo foi passando e em vez de se pensar o fim do projecto, foi necessário
repensar as acções e adiar a festa final. O dia 6 de Janeiro foi a data escolhida
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para celebrar formalmente o fim dos «encontros» e associar a nossa festa à festa

 Cadernos de Pedagogia Social


de REIS. A partir daqui nasce a oportunidade de criar outros momentos de
interacção e de aprendizagem, desta vez, no «mundo das novas tecnologias» em
que as crianças assumem o papel de “professores”.

Festa dos REI’S

Finalmente o dia de REI’S chegou e a festa aconteceu, entre canções de natal,


visionamento do filme gerado durante os encontros - “Entregerações” e um
poema feito (pelos senhoras e senhores idosas) especialmente para celebrar e
homenagear as meninas e os meninos da escola.

A Escola de Costa Cabral Refrão


É uma escola exemplar Os Reis vimos festejar
Tem meninos muito lindos Neste dia especial
Que se fartam de estudar. Queremos continuar
A alegria de Natal.
Refrão
Os Reis vimos festejar Netos vimos conhecer
Neste dia especial Com grande satisfação
Queremos continuar Estamos sempre a aprender
A alegria de Natal Com a nova geração.

Professores sempre a ensinar Refrão


Português e Matemática Os Reis vimos festejar
Sempre sempre, sem parar Neste dia especial
Inglês e Informática. Queremos continuar
A alegria de Natal

Um lanche convívio antecedeu novos momentos de interacção e culminou


com a entrega das lembranças feitas no lar para celebrar o REI’S - bonecas de
trapos, cintos de cabedal e porta-chaves. As crianças fizeram também as suas
ofertas (luvas, livros, lenços).

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Celebrar o Dia Mundial da Criança


 Cadernos de Pedagogia Social

1 de Junho de 2006 foi um dia muito especial para as crianças e para as


pessoas idosas participantes no Redes de Encontro Intergeracionais. A ideia
cresceu e desenvolveu-se durante os muitos momentos de convívio e resulta da
«história» destas crianças a propósito da amizade. Do lar o compromisso para
organizar, juntamente com as pessoas idosas, os jogos intergeracionais (jogo do
saco, dança das cadeiras, jogo da patela, jogo das latas, …) e da escola o desafio
de organizar e ensaiar uma peça de teatro - “No País das Fábulas”. O grande dia
chegou! A peça começa, o silêncio “ouve-se”. Depois, o bater das palmas anuncia
o fim da peça e breves minutos de intervalo. Ao som da música “I Like To Move
It” as crianças dançam e lançam confetis.
No lar, a satisfação e a alegria é uma realidade. A seguir ao lanche (um
momento sempre presente em todas as sessões) começam os «jogos
intergeracionais». O Dia Mundial das Crianças termina num ambiente de grande
alegria (e euforia) onde a idade não é barreira para a «arte de bem receber»,
conviver e aprender a ser mais pessoa.
Já quase no final do ano lectivo e, ainda a propósito do «nosso projecto», foi
lançado um outro desafio. “Ler nos joelhos do Tempo” foi o mote para solicitar a
cada criança uma reflexão sobre o «Redes de Encontro Intergeracional». Mais
tarde e numa iniciativa da escola e da Rede Escolar de Bibliotecas, o grupo sénior
é chamado a participar num evento a realizar na Biblioteca Almeida Garrett. Lá,
as crianças apresentam os trabalhos (poemas) desenvolvidos no âmbito deste
desafio.

Dos Resultados

Fazer a análise dos documentos construídos no percurso deste trabalho -


composições, desenhos, poemas escritos, registos audiovisuais, … - foi uma tarefa
complexa, dado tratar-se do pensamento e imagens da memória de crianças e
pessoas com uma história e experiência de vida longa. Porém, a “arte de
interpretar os textos (…) é uma prática muito antiga” (Bardin, 1979, p.14; Sousa,
2005, p.264) que requer uma atenção cuidada e um sentido crítico que possibilite
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cumprir não só os propósitos do estudo, no caso, averiguar de que forma um

 Cadernos de Pedagogia Social


projecto de intervenção socioeducativa influência e altera o quotidiano destas
pessoas e destas instituições, mas também, reproduzir fielmente os que narram
os «actores» de forma a preservar a palavra dita.
Das composições «retiramos» o perfil e a representação social e gráfica destas
crianças em relação às pessoas maiores de sessenta e cinco anos de idade. Traços
que permitem desenhar com alguma facilidade um «rosto» ímpar de cada uma das
pessoas idosas imaginadas. A necessidade de um olhar isento fez-nos recorrer a uma
avaliação por juízes independentes, privilegiando assim um olhar descomprometido
e aferir, através de uma «medida» – Kappa Cohen (1960), o valor e consistência do
estudo. Os registos apresentam níveis crescentes de concordância: actividades (75%),
características de personalidade negativas (80%), dimensões relacionais (86%),
personalização física (92%) e personalização social (96%) e para as dimensões
“pessoais” e “cronológica” o acordo observado atinge a pontuação máxima (100%),
circunstância que sugere a fiabilidade das avaliações e uma impressão diferente (no
sentido positivo) à medida que o projecto acontece. O que parece dizer que as
crianças estão mais despertas para as questões relacionadas com o envelhecimento,
com a velhice e com a institucionalização do idoso.
No que respeita à representação gráfica, as juízas salientaram: 1) as cores
utilizadas para animarem os desenhos - vermelhos, verdes e azuis; 2) o facto de
a pessoa idosa estar (quase) sempre a sorrir; 3) a circunstância de a pessoa idosa
estar, normalmente, “provida” de bengala, óculos e 4) os homens serem
“carecas”. Da apreciação global das composições ressaltam ainda características
e preconceitos herdados do passado e o facto de ser o grupo de comparação
quem adjectiva de forma menos positiva – vagarosos, rabugentos, frágeis,
deixando uma imagem redutora e estereotipada da pessoa idosa. Os escritos do
grupo de crianças participantes, traçam um novo perfil da pessoa idosa, menos
dependente (sem bengalas, sem doenças, sem corcundas), mais positivas e mais
comunicativas (alegres, conversadoras, participativas, interessadas em aprender),
mais bem-humoradas e sobretudo mais dinâmicas. A pessoa idosa ganha
expressão e a representação traduz uma imagem nova (pelo menos para este
grupo), quando comparamos os escritos dos «encontros» iniciais. É verdade que
os desenhos traçam uma figura fragilizada e, normalmente, «presa» a situações
de debilidade física: de bengala; em cadeira de rodas; acamadas.
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Para mim o idoso é quando uma pessoa tem bastante idade. O idoso chega a uma
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certa idade que já não fala e também já não anda. Alguns idosos quando já não conseguem
andar tem que ficar na cama ou às vezes os vão passear. Os idosos têm os ossos muito
frágeis, por isso quando caem têm que ir logo para o hospital (…) (Doc. 14C_10_05).

Ou,

o idoso é muito doente e têm dores de costas ou tem dores de cabeça (…). O idoso
tem que ir ao médico, os novos não têm esse problema, porque tem um corpo saudável e
os idosos não porque já têm muita idade (Doc 22C_10_05).

Apesar disso, a análise dos documentos pessoais permite observar que as


crianças caracterizam de forma mais positiva as pessoas idosas à medida que o
processo de educação e de intervenção acontece.

Do inquérito aos pais e mães/Encarregados de


Educação

Do inquérito aplicado aos pais/mães sobressai, essencialmente, uma resposta


positiva e o facto de «os encontros» terem possibilitado o conhecimento e o
diálogo intergeracional. Os testemunhos referem que “aconteceu com bastante
frequência o meu filho interessar-se por continuar a visitar as pessoas mais velhas
dizendo que se aprende muito com elas”.
Inquiridas sobre as mudanças verificadas no contexto familiar e a forma como
as crianças percepcionam a figura das pessoas mais velhas, as respostas foram
igualmente positivas. A maioria dos pais/mães, afirmam existir uma “melhor
aceitação dos familiares idosos” e “mais conhecimento e compreensão”. Quanto
à natureza e ao interesse deste tipo de intervenção os comentários foram
absolutos. Na opinião destes pais/mães trata-se, antes de mais, de “um bom
complemento da educação (…) e um bom exercício para “aprender a respeitar e
amar os mais idosos”.
Seguindo o mesmo questionário, inquirimos os professores que connosco
laboraram mais assiduamente na execução do projecto. Questão a questão, os
registos são essencialmente positivos e de estimulo à prossecução deste tipo
aprendizagens e de interacções.
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A turma ficou mais unida, mais compreensiva entre si, mais afectiva e carinhosa (…)

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Em termos pessoais, para professores e para algumas pessoas da comunidade escolar foi
muito gratificante e contagiante esta nova forma de abrir as portas da escola aos outros (…)
(Doc. 4_P_06).

Das potencialidades deste tipo de acção os professores inquiridos declararam


que os aspectos foram positivos, porquanto, “estes projectos incentivam os idosos
a serem mais activos e participativos na comunidade, desenvolvendo a autonomia
e a personalidade de cada indivíduo” (Doc. 1_P_06), ao mesmo tempo, facilitam
a transmissão de valores em idades precoces.
No lar, os elementos inquiridos, referem que a «impressão» do REI’S é muito
positiva. Primeiro, porque os «encontros» estimularam a mudança,
principalmente, em termos de satisfação pessoal e aumentaram a auto-estima
dos participantes. Segundo, porque proporcionaram um agradável clima
institucional e pessoal que se estendeu à restante comunidade do lar. De facto,
“foi um importante contributo para a melhoria dos sentimentos de auto-estima e
integração social (Doc. MIR_2007) e um bálsamo para o “envelhecimento activo
e envolvimento intergeracional (…)”(Doc. CP_2007).

Dos Grupos de Discussão

Da sessão com o Grupo Sénior e depois de explicado o teor da reunião,


organizamos a sessão com a colaboração dos oito participantes. Motivação para
a participação foi a questão de partida para melhor compreendermos a dimensão
privilegiada pelos “actores” seniores implicados. Do diálogo sobressai o forte
sentimento de satisfação, de alegria e de surpresa face à atitude e receptividade
das crianças. A resposta foi unânime. Tratava-se de uma oportunidade diferente
de se relacionarem com outras pessoas e de «fugir» à rotina.

De início não queria participar. Depois, pensei melhor e achei que devia dar-me uma
oportunidade (…). Sempre saía um bocadinho! E assim, passava melhor o tempo. Habituei-
me a estes encontros, a estas crianças, era com grande satisfação (e até ansiedade) que
aguardava a chegada das crianças e a ida à escola. Foi muito bom e importante para mim
(Q1-Sr R).

93
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Um outro elemento do grupo, apressa-se a explicar que:


 Cadernos de Pedagogia Social

fomos convidados a participar. Achei que era interessante e uma coisa diferente. Por
isso aceitei. Não me arrependo. Era muito agradável. Às sextas-feiras lá íamos nós (…). Ou
vinham cá eles (…).O carinho que recebi e a relação que criamos com as crianças e com
as senhoras professoras é o aspecto mais importante a registar (Q1-Sra O).

Dos relatos transparece o grau de satisfação conseguidos pela quebra das


rotinas e pela “forma calorosa” (Q1 – Sra. I) como eram recebidos. Sobre as
aprendizagens, falaram da ideia que tinham em relação aos mais novos. Uma
atitude de distância, diziam. Imagem que os «REI’S» ajudaram a repensar e a
modificar.

As crianças amaciaram-me (…). O que não é fácil. Sou uma pessoa pouco acessível
[os presentes concordaram]. Não gosto de convívios, nem de festas (…). Mudei (…).
Noutros tempos não sei se admitia fazer este convívio (…). Mas, um miúdo em particular
fez-me repensar certas atitudes adoptadas no passado (…). Noutros tempos (…) eu era
uma pessoa diferente (…). Diria que este miúdo me conquistou (…) [olhando para os outros
… que acenaram a cabeça em sinal de confirmação]. É verdade (…) durante a minha
participação, mudei (…) (Q2 - Sr. R).

Todos comentaram o quão importante foi fazer parte do projecto. A razão


evocada foi quase sempre a questão da relação e a possibilidade de partilharem
histórias, conhecimento e experiências. Um dos aspectos interessantes (várias
vezes focado), foi a questão da relação entre professores/as e alunos/as. Um dos
senhores estava particularmente satisfeito “com a forma como as senhoras
professoras falam com os meninos e com as meninas (…). Antes, os professores
não eram tão simpáticos. Tão carinhosos. Hoje há mais comunicação, mais
carinho, mais à vontade” (Q2 - Sr. J). Outra senhora dá conta que:

uma das maiores aprendizagens sentidas tem a ver com os afectos, com o carinho que
aprendemos a ter por aquelas crianças e elas por nós. A relação que se criou é o que de
mais importante aprendemos (Q2 – Sra. L).

A propósito das mudanças sentidas, responderam de forma positiva e que


havia sido uma oportunidade valiosíssima de convívio com pessoas muito mais
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jovens e, sobretudo, a possibilidade de conseguirem percepcionar de forma

 Cadernos de Pedagogia Social


diferente a escola, os meninos e a própria educação.
No final, o grupo refere que gostava de continuar com os «encontros».

Foi um tempo muito bom. Até me esquecia das doenças. Não me doía nada (…) A
sério (…). A vinda das crianças ao lar e nós à escola, fez-me olhar diferente. Deixar algumas
coisas para traz (…). Como as crianças se divertiam! Corriam (…) temos muito espaço (…)
fartavam-se de correr e brincar (…). Não era (…). Se pudesse, gostava de continuar… (Q4
– Sra. L).

Viver os seus dias de forma agradável, onde o convívio pode ser uma
importante estratégia de «bem viver» e de mais aprender são as dimensões
dominantes. O jeito de falar e a troca de olhares permite elaborar um outro
«retrato», onde as emoções, os sentimentos e a esperança «brilha» nos olhos de
cada um.

As viagens à escola (…) a visita das crianças ao lar, (…) as entrevistas que as crianças
nos faziam (…) tão engraçadas! A boa disposição (…) o carinho com que nos tratavam e
nos abraçavam (…). Foi um tempo muito bom (…). Foram momentos inesquecíveis (Q4 –
Sra. I).

Tal como aconteceu com o grupo sénior, também no grupo juvenil começou-se
por fazer referência ao projecto e aos propósitos da “reunião”. No caso, toda a
sessão foi orientada pelo “moderador convidado”. Explicado o âmbito da sessão, as
crianças concordaram em participar. Numa linguagem muito singular, começaram
a dar nota dos aspectos mais significativos deste envolvimento intergeracional.
Todos gostaram muito do contacto que se estabeleceu com as pessoas do lar. O que
mais recordam foi a forma como foram recebidos e o facto de no lar, “haver um lago
com peixinhos, um cão e muito espaço para brincar” (Q1 - V). Ao princípio, dizia um
dos meninos, “parecia uma casa pequenina, mas era muito grande” (Q1 - MT), até
havia “oficinas, onde trabalhavam, de um lado os homens e do outro as mulheres.
Os homens faziam molas, tapetes, …As senhoras faziam bordados e “bonequinhas
muito giras, que nos ofereceram na festa” (Q1 – Mar). Todos foram falando dos dias
que passaram junto e do que fizeram no dia mundial da criança – jogos – sentar no
balão, jogo do saco, teatro, dança, …

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Apurar de que forma a interacção entre os diferentes indivíduos provocou


 Cadernos de Pedagogia Social

mudanças na sua forma de ser e estar foi outro desafio. As respostas foram no
sentido de pensarem de forma diferente, para melhor, o convívio entre as pessoas
mais velhas e a própria velhice. Sobre as aprendizagens, responderam que tinham
sido sobretudo ao nível dos conhecimentos e da percepção de como vivem as
pessoas mais velhas e as “coisas” que fazem e que podem fazer.
Sobre a representação da pessoa idosa, pedimos que usassem quatro
palavras – duas positivas e duas menos positivas, para caracterizar a pessoa
idosa. O consenso é geral, na opinião destas onze crianças, as pessoas idosas
são, sobretudo amigas, inteligentes2 e simpáticas3. Relativamente ao futuro, a
maioria respondeu que gostava que o projecto se repetisse e, se possível, com as
mesmas pessoas.

Conclusão

Para que qualquer sociedade prospere, cada pessoa tem que ser responsável
e comprometida com o devir do seu trajecto de vida e, naturalmente, com o futuro
das novas gerações. Nesse sentido há que «cultivar» uma nova mentalidade e
assim fazer nascer uma solidariedade que responsabilize e possibilite a cada um
sonhar um horizonte germinado por sementes de altruísmo, ética e educação. É
nesse horizonte que interessa reflectir a Educação Social e, evidentemente, a
Educação Intergeracional enquanto eixo imprescindível para “criar condições
diferenciadas para que grupos etários diferentes possam ter acesso e exercer o
poder e o controlo sobre as suas próprias vidas, de forma a potenciar o bem estar
das suas comunidades” (Menezes, 2007, p. 63) e, naturalmente, abrir «lugares»
numa sociedade que se deseja para todas as idades.
«Aprender a ser» é um exercício que nos acompanha desde que nascemos até
que morremos e, nesse sentido, a pedagogia social enquanto ciência preocupada
e voltada para o desenvolvimento do ser humano facilita e promove a inclusão
social, a cooperação e a solidariedade. Por outras palavras, a Pedagogia Social

2
Nesta categoria, agregamos as seguintes subcategorias: esperto, sábio, génio, criativo.
3
Nesta categoria, agregamos as seguintes subcategorias: amoroso, querido.
96
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enquanto saber enfatiza todas as dimensões do saber (informal, formal, não

 Cadernos de Pedagogia Social


formal), porquanto é da articulação e da complementaridade entre saberes que
nasce “uma filosofia de acção” (Baptista, 2008, p. 15) específica e cuja
aprendizagem aponta a «estrada» que garante o acesso ao crescimento e propicia
uma atitude mais positiva e mais feliz. Nesta perspectiva, a Educação
Intergeracional aproxima-se dos propósitos da sociedade educativa, onde a
interacção e as aprendizagens são ocasião para desenvolver e aprender a
estruturar uma sociedade mais esclarecida, mais justa e mais responsável.
No futuro fica a esperança de um diálogo saudável e uma atitude mais positiva
e menos preconceituosa para com as pessoas de diferentes idades da vida e uma
cultura consistente e coerente com os ideais de uma sociedade plural onde a
aprendizagem ao longo da vida não negligencia ninguém e onde o objectivo final
é “o de encontrar estratégias de mediação humana que ajudem a «fazer
sociedade» (Baptista, 2008, p. 15).

97
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CPSocial_2.qxp 23-04-2008 12:14 Page 101

Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 101-115

Espaço, universo de relações e a questão


da alteridade. Uma reflexão sobre a cidade
de São Paulo/ Brasil
Marielys Siqueira Bueno1 | Maria do Rosário Rolfsen Salles2 | Sênia Bastos3

Resumo
Este artigo tem por objectivo caracterizar as relações de alteridade na
dinâmica do espaço e da população dos Bairros centrais da cidade de São
Paulo, destacando os diferentes aspectos de sua modernização no quadro da
evolução capitalista, que intensificaram o seu ritmo de actividades, bem como
as desigualdades espaciais entre áreas urbanas. Esses factores têm
consequências directas sobre as diferentes formas de hospitalidade que a
cidade vem adquirindo através dos tempos. Estereótipos se criaram em função
de sua imagem de “selva de pedra”, e portanto, de inospitalidade, ao lado de
outras que se constituíram no processo de acolhimento aos imigrantes
estrangeiros e aos migrantes internos, de uma cidade que oferece
oportunidades, que acolhe sem discriminação. Resulta dessa reflexão a
constatação da possibilidade de criação de formas de solidariedade e de
espaços ou lugares de hospitalidade na vida colectiva dos Bairros e das festas
comunitárias.

1
Docentes do programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi- UAM/ São
Paulo / BRASIL
2
Universidade Anhembi Morumbi- UAM/ São Paulo / BRASIL
3
Universidade Anhembi Morumbi- UAM/ São Paulo / BRASIL
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Em todas as esferas do quotidiano, no plano da vida institucional ou na diversidade


 Cadernos de Pedagogia Social

de territórios de sociabilidade humana, nos locais de trabalho ou de lazer, nos


espaços privados num tempo assustadoramente complexo, importa conseguir
promover práticas de cidadania assentadas no valor de acolher a diferença no
respeito ao outro enquanto outro
(Baptista, 2005).

Este trabalho resulta das reflexões levadas a efeito pelo grupo de pesquisa:
Socioantropologia da Hospitalidade, do Mestrado em Hospitalidade, da
Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, Brasil. A proposta do trabalho é
reflectir sobre as relações de alteridade no contexto da hospitalidade urbana,
tomando-se como referência o espaço urbano como universo de relações sociais.
A reflexão centra-se num projecto de pesquisa intitulado “São Paulo recebe”,
levado a efeito pelo grupo de pesquisadores com o objectivo de entender a
dinâmica do espaço e da população dos Bairros centrais da cidade de São Paulo,
percorrendo seus arredores (arrondissements), inspirando-se em grande parte, na
pesquisa efectuada por Michel et Monique Pinçon-Charlot para a cidade de Paris.
(Cf. Pinçon e Pinçon-Charloy, 2001) e na reflexão de outros autores que serão
mencionados no decorrer do artigo. O projecto em curso, objectiva levantar
situações de acolhimento e inospitalidade na região central da cidade de São
Paulo.
Para tanto, são necessárias algumas informações sobre a cidade e seus
bairros centrais: centro de comércio e de serviços, intensamente verticalizada, o
Centro de São Paulo caracteriza-se por uma ocupação de intenso dinamismo no
horário comercial, grande adensamento populacional e baixo índice de moradias
em condições subnormais. Concentrando importante património histórico cultural,
destacam-se nessa área, as tradicionais ruas de comércio especializado: 25 de
Março (bijutarias, papelaria e tecidos), Santa Efigénia (equipamentos
eletroeletrónicos e computadores), São Caetano (vestido de noiva), José Paulino,
Oriente e Maria Marcolina (vestuário popular e enxovais).
Parte das edificações (muitas tombadas pelo Conselho Municipal de
Preservação do Património Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo
– Conpresp) encontra-se em um processo de alteração de uso, transformando-se
em centros culturais (prédio dos Correios do Vale do Anhangabaú, Caixa
102
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Económica Federal da rua Roberto Simonsen, entre outros), bem como abrigando

 Cadernos de Pedagogia Social


secretarias dos governos municipais e do estado de São Paulo, acções que visam
revitalizar a região por meio de investimentos no mercado imobiliário com a
conversão de edificações comerciais em prédios residenciais (como a conversão
dos hotéis Britânia e Central em prédios de apartamentos) e programas de
renovação ambiental e paisagística.
Iniciativas no sentido de demarcação de espaços legais para a realização do
comércio ambulante redundam em fracassos subsequentes. Existe uma
permanência histórica da actividade na região. Inicialmente comercializavam-se
produtos de consumo imediato nas vias de acesso e área externa do Mercado
Municipal, então localizado na rua Vinte e Cinco de Março, nas proximidades da
rua General Carneiro. Carrocinhas circulavam pelas ruas, entregando géneros de
porta em porta. Demolido o edifício, o terreno foi convertido em uma praça
ajardinada, hoje intensamente ocupada por vendedores que comercializam toda
sorte de produtos típicos das diferentes regiões brasileiras, bem como artigos
importados e/ou pirateados, que sugerem a prática de contrabando, sonegação
fiscal e ausência de obrigações trabalhistas.
Reunidos principalmente nas ruas de comércio popular, o uso desorganizado
do espaço, com a presença de coberturas improvisadas, ausência de sistema de
depósito do lixo e o grande número de vendedores em áreas restritas
comprometem a circulação dos pedestres, tornando-se uma verdadeira batalha a
circulação por esses locais.
Nas brechas de encerramento das actividades formais, as ruas são ocupadas
por moradores das habitações colectivas, que usam-nas como extensão de suas
casas, mediante instalação de churrasqueiras e aparelhos de som, que divertem
adultos e crianças.
Vai-se ao centro, mesmo quando não há intenção de ir, em virtude de um
sistema de transportes pouco objectivo que mantém linhas de ónibus
centralizadas na região desde o período imperial, quando não havia vias de ligação
entre os bairros e todos os caminhos conduziam ao triângulo histórico.4 Apesar do
metro, o circuito dos ónibus de passageiros reproduz o mesmo traçado, sem
objectivar a distribuição das linhas, que em concorrência com os veículos

4
O triângulo histórico é formado pelas ruas Direita, XV de Novembro, São Bento e adjacências.
103
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particulares, congestionam as principais vias de circulação a qualquer hora do dia.


 Cadernos de Pedagogia Social

Os pontos iniciais localizam-se, sobretudo, nos arredores das praças da Sé e


República, e nos terminais urbanos no parque Dom Pedro e praças da Bandeira
e Princesa Isabel, ou seja, presentes na área delimitada pelo estudo.
A diversidade cultural da cidade materializa-se na constituição de áreas de forte
concentração étnica, como é o caso dos judeus (Bom Retiro) e árabes (25 de
Março), que gradativamente vão sendo influenciados por nordestinos, mineiros,
nortistas e, recentemente, coreanos e bolivianos, alterando a tessitura social e
arquitectónica. Identidades diferenciadas permeiam a trama urbana, configurando-
se em recurso actualmente valorizado pelos programas de exploração turística.
Desta forma, o que se pretende ressaltar e discutir, são os diferentes aspectos
da modernização da cidade de São Paulo no quadro da evolução capitalista, que
intensificam o seu ritmo de actividades e causam uma expansão da divisão de
trabalho. Isso provoca, como consequência natural, um desdobramento em
diferentes núcleos urbanos que, por sua vez, determinam desigualdades espaciais
entre áreas urbanas.
Nessa imensa malha de relações e contradições contínuas, a cidade de São
Paulo se organiza criando espaços para ordenar as relações sociais. Desta forma,
a verdadeira compreensão da cidade passa pela forma de apropriação de seu
espaço e o uso desse espaço pela população.
A imagem de São Paulo aliada ao progresso ou como a locomotiva que conduz
o restante do país, construída ao longo do processo cujas origens remontam ao
desenvolvimento da economia cafeeira e à industrialização, nos remete
necessariamente à história e à trajectória da cidade. É bastante difundida hoje a
imagem de São Paulo como uma “selva de pedra”, uma cidade preferencialmente
voltada aos serviços, aos negócios, aos investimentos financeiros, num processo
de desindustrialização, ainda que assumindo a liderança sobre uma série de
actividades fundamentais do país, no sector financeiro, no aspecto cultural etc.,
mas passando visivelmente por uma desaceleração do seu ritmo de crescimento.
Esse “movimento” tem consequências directas sobre as diferentes formas de
hospitalidade que a cidade vem adquirindo através dos tempos. Estereótipos se
criaram em função dessa imagem de “selva de pedra”, e portanto, de
inospitalidade, ao lado de outras que se constituíram no processo de acolhimento
aos imigrantes estrangeiros e aos migrantes internos, de uma cidade que oferece
oportunidades, que acolhe sem discriminação.
104
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Consequências do desenvolvimento urbano para a

 Cadernos de Pedagogia Social


sociabilidade
O desenvolvimento urbano, como bem mostra Morin (1978), não somente
trouxe o florescimento individual, liberdade e lazer, mas atomização como
consequência das coerções organizacionais. Isso aponta para a importante função
da hospitalidade.
Aqui se adopta a noção de hospitalidade descrita por Camargo (2002) como
“um conjunto de leis não escritas que regulam o ritual social e cuja observância
coloca em marcha o vínculo humano e cuja violação remete os indivíduos e as
sociedades ao campo oposto, da hostilidade”.
Aborda-se a hospitalidade no sentido de uma abertura para a alteridade,
enquanto o primeiro grau de compromisso e de alianças que ampliam, fortalecem
ou rompem vínculos sociais. As modalidades de Hospitalidade que sempre
acompanharam o homem na sua trajectória histórica perduram até hoje mas
agora, ultrapassaram as suas fronteiras tradicionais e permeiam instâncias sociais
colectivas, políticas e económicas.
O espaço pensado como uma construção social, um espaço-tempo
historicamente definido, construído, (Castells, 1983) tem uma função social
primordial como lugar de sociabilidade, pois é o lugar que confere sentido de
pertença e dá ao cidadão a seiva que nutre sua identidade, embora dentro da
diversidade que está subjacente às diferenças no espaço e na estrutura social. A
organização desse espaço, com suas formas de expressão e características de
expansão, determina desigualdades espaciais entre as áreas urbanas. Assim,
como diz Lynch, (1982, p.12) “a cidade é uma construção no espaço, mas uma
construção em grande escala, algo perceptível no decurso de longos períodos de
tempo”. Cada momento encerra muito mais do que é possível uma geração
apreender, uma cadeia de acontecimentos e constructos historicamente
trabalhados por sujeitos sociais diferentes, convivendo num “mesmo palco”. É por
isso que a nossa percepção da cidade não é íntegra, mas parcial e fragmentária,
porque é uma realidade em constante construção.
As cidades surgem num determinado espaço e, enquanto produto social,
surgem ocupando-o progressivamente, dotando-o de uma estrutura de dimensões
sociais estratégicas e simbólicas. Morar numa cidade significa trabalhar, recrear,
compartilhar espaços urbanos, e principalmente supõe interacção, sociabilidade.
105
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M. Maffesoli (1984, p. 27) faz interessantes considerações sobre o espaço


 Cadernos de Pedagogia Social

urbano como suporte da sociabilidade, quando afirma que a cidade é


“potencialmente, rica em aventuras e através do jogo da diferença, pode provocar
situações, encontros, e momentos particularmente intensos”.
Mas, esse aspecto da sociabilidade no quadro da modernização e da evolução
capitalista em seus diferentes aspectos, intensifica o ritmo e a expansão da divisão
do trabalho, o que provoca naturalmente, um desdobramento em diferentes núcleos
urbanos que determinam as desigualdades espaciais entre as áreas urbanas. Os
indivíduos estão claramente delimitados num espaço, - espaço esse que se
confunde com sua identidade. O espaço não é o reflexo da sociedade, mas sua
expressão, como lembra Léfèbvre (2001) a respeito da produção do espaço urbano.
Baptista e Carvalho, (2004), lembrando Bourdieu, salientam que a Sociologia
deve considerar a importância do fato do individuo estar “acantonado num lugar
e num momento”, enquanto propriedade essencial do seu objecto, pois para
Bourdieu, há uma correspondência entre os espaços sociais e os espaços
urbanos. Essa noção está implícita nos conceitos de habitus, que Baptista e
Carvalho (2004, p. 27) resumem como “a incorporação que cada um de nós faz
do social e que condiciona as nossas acções e reacções, assim como nossas
preferências, gestos, aversões e maneiras de pensar, de perceber e de sentir”.
Isso reforça as diferenças entre grupos sociais relacionadas às diferenças entre as
áreas habitacionais.
Para Regina Prosperi Meyer (1979) o regulador dessa ocupação é o valor do
solo urbano e, enquanto a produção do espaço é obra de um trabalho colectivo,
seu consumo tem sido sempre privilégio de classes. As reflexões sobre como se
desenvolve, se ordena e se controla o espaço numa cidade, tocam portanto, não
somente na questão do solo e do trabalho, mas principalmente no significado dos
valores que regem a sociedade em que vivemos.
A cidade, diz Paul Singer (1973) é a sede do poder e, portanto, da classe
dominante. Talvez por isso, as cidades passem por um processo de contínua
destruição e reconstrução, num esvaziamento da região urbana central e
desalojamento do cidadão para regiões periféricas, num processo de “espoliação
urbana” (Kowarick, 2003, p. 81 e segs.). Este autor trabalha com o conceito de
cidadão privado e sub-cidadão público, na análise da noção de exclusão social e
económica. Trata-se de alargar essa noção, diz ele:
106
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[...] ela não é apenas a materialidade objectiva que decorre primordialmente do

 Cadernos de Pedagogia Social


processo de venda da força de trabalho e do seu desgaste, que no caso das cidades supõe
também o acesso aos bens de consumo colectivo [...] As condições materiais objectivas,
de per si, não constituem o motor das transformações sociais, pois o que importa é o
processo de produção de experiências do qual decorrem os significados que ele passa a
ter para múltiplos e frequentemente opostos actores sociais (Kowarick, 2003, p.83).

Nesse processo, residências passam a ser utilizadas comercialmente ou são


destruídas e substituídas por prédios, shoppings–centers etc. Tudo isso em nome
da modernidade.
A função social do espaço urbano é de extrema importância, pois é o lugar de
passagem comunicação, informação e integração. Dessa forma, um espaço
fragmentado se reflectirá na qualidade de vida e nas relações inter-humanas.
Segundo Maurice Godelier, (2002) vivemos num contexto social cujo modelo
económico exclui, em seu processo de produção, um grande número de seus
membros em função do progresso tecnológico, e, além disso, nos países
desenvolvidos a principal fonte de exclusão dos indivíduos é a economia. Mas, a
incapacidade manifesta do mercado e do estado em resolver a amplitude dos
problemas sociais, conduz à busca de formas de uso do espaço urbano que
permitam uma sociabilidade participativa, o que representa as condições
objectivas, socialmente necessárias para a reconstituição da sociabilidade
fundamental à vivência da alteridade.
Assim, na diversidade de espaços de sociabilidade, é importante criar
condições de proximidade que ajudem a consolidar as relações de convivialidade
para superar as condições de isolamento, injustiça e exclusão. O enraizamento, o
sentido de pertença a um grupo social, confere identidade aos indivíduos e isso
lhes dá, em função do uso colectivo e participativo do espaço público, condições
de superação das tendências de desintegração devido à fragmentação do
processo de urbanização.
Espaços que criam vivências de convivialidade são particularmente
importantes para o homem contemporâneo pelos riscos do individualismo que
compromete o equilíbrio entre o publico e o privado.
Jacques Godbout (1999, p. 252) aponta para o fato de que “o homem
moderno se liberta dos vínculos com as pessoas substituindo-os por vínculos com
as coisas”. Mas, diz ele, “o efeito perverso desse processo é que a acumulação
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não só não liberta, como também aumenta nossa dependência em relação às


 Cadernos de Pedagogia Social

coisas e cria uma infinidade de necessidades”. Assim “o moderno pseudo-


emancipado do dever de reciprocidade, desmorona-se sob o peso da acumulação
do que ele recebe sem retribuir, torna-se doente, e sua sensibilidade o torna
incapaz de suportar as relações humanas”.
O fato da cultura moderna estimular a emancipação dos vínculos sociais
concebidos como fardos a serem desvencilhados, aponta para a relevância do
espaço público como suporte para a geração de relações sociais, num tempo social
que resulta da inserção do indivíduo em actividades participativas e inclusivas.

Espaço, alteridade e hospitalidade

Richard Sennet (1989, p. 21), diz que “o triunfo da liberdade individual de


movimento, simultaneamente ao surgimento das metrópoles do século XIX, levou
ao dilema específico e que ainda persiste: cada corpo move-se à vontade, sem
perceber a presença dos demais”. Ou seja, o estilo de vida da sociedade moderna
acarretou o esvaziamento do espaço público. A passagem de uma convivialidade
pública e comunitária para um processo de privatização decretou o que Sennet
chamou de o ‘declínio do homem público’. Para ele, o espaço urbano transformou-
se numa área de passagem, não de uso e isso empobreceu o tecido relacional da
sociedade, com consequências, evidentemente sobre a hospitalidade.
Balandier (1979, p.256), na mesma linha de argumentação, afirma que na
sociedade de indústria avançada encontram-se tendências contraditórias. Há uma
aproximação, uma redução do isolamento devido aos meios de comunicação,
conferindo aos acontecimentos, uma espécie de ‘ubiquidade’ que assegura um
conhecimento do ‘outro’. No entanto, o desenvolvimento das sociedades de
massa, forma, por assim dizer, anticomunidades, cujas complexas organizações
têm funções que ocultam a pessoa, contribuindo para a solidão individual.
Citando P. Schaffer diz: “numa sociedade cada vez mais ‘comunicante’, o
individuo se sente cada vez mais sozinho”.
Atento à disfuncionalidade urbana, Richard Sennet (1989, p. 21), aponta para
os problemas psicológicos decorrentes dessa separação do indivíduo do processo
participativo e de acção em grupo. Ocorre, como consequência, um aumento com
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as questões relativas ao ‘eu’ à medida que a participação em actividades com

 Cadernos de Pedagogia Social


finalidades sociais diminui. Nessa sociedade, diz ele, ‘’as energias humanas
básicas do narcisismo são mobilizadas de modo a penetrarem sistemática e
perversamente nas relações humanas”.
Para ele, a energia básica do narcisismo, no sentido restrito de ser a
“preocupação consigo mesmo, que impede alguém de entender aquilo que é
inerente ao domínio do eu e da autogratificação e aquilo que não lhe é inerente’’
está mobilizada de modo a “penetrar sistematicamente e perversamente nas
relações humanas’’. Quando uma sociedade mobiliza os sentimentos subjectivos
amplia a preocupação privada em detrimento da preocupação pública, ou seja “a
visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio público é
abandonado, por estar esvaziado” (Sennet, 1989, p.26).
A ideia básica da alteridade está na noção do ‘outro’, da diferença que
constitui a vida social e só pode ser efectiva na construção de relações empáticas
em práticas de cidadania em espaço plural e diversificado. Há, portanto um
consenso entre os estudiosos sobre a correspondência entre a forma e qualidade
do uso de espaço urbano e a sociabilidade e relações de alteridade.
Há, também, um consenso de que a modernidade fragmentou o uso desse
espaço provocando isolamento social, formas de exclusão e múltiplos obstáculos
para os relacionamentos comunitários. Tudo isso se soma aos males do mundo
contemporâneo da globalização e urbanização crescente – desemprego, emprego
precário, exclusão etc. e ninguém questiona sobre a repercussão desses factores
nos aspectos sociais e igualmente nos aspectos psicológicos do indivíduo.
No entanto, há, igualmente um consenso quanto à existência de espaços
alternativos nos quais grupos sociais, apesar das dificuldades, dos obstáculos, da
fragmentação e violência urbanas, criam e experimentam novas unidades sociais,
novos estilos e através deles, multiplicam possibilidades de engajamento social.
Os indícios dessas reacções são numerosos. Dentro desse quadro surgem
importantes possibilidades que se contrapõem à deterioração da sociabilidade.
São dinâmicas socioculturais nas quais os atores sociais são portadores de
projectos que imprimem aspirações de actuar, interferir no sentido de provocar
mudanças para uma sociedade mais justa e mais equilibrada.
A emergência desses grupos se situa fora dos sectores tradicionais - o público
e o privado – por isso mesmo é comummente chamado de terceiro sector. Para
109
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Ruth Cardoso (1997, p.8) trata-se de algo novo que está mudando a sociedade e
 Cadernos de Pedagogia Social

que não quer “se submeter nem à lógica do mercado nem à lógica
governamental”.
Há uma grande diversidade de atores. Entre essas organizações o
denominador comum é o carácter voluntário e o compromisso com a
comunidade. Esse novo espaço de iniciativas sociais se abre para a
experimentação de novos modos de actuar, agir na comunidade e interagir com
ela. É o que Isabel Baptista (2005, p.12) chama de “dimensão ética ligada à
responsabilidade de existirmos em sociedade. Esse largo campo de iniciativas
representa um aspecto importante na moderna concepção de solidariedade com
função redistributiva e sua proliferação se explica pelo fracasso do modelo
económico em reduzir as desigualdades e assimetrias sociais e pela impotência
do estado em atender às necessidades básicas da cidadania.

Hospitalidade: O Dom do espaço

A proliferação dos movimentos ancorados no voluntariado e no engajamento


associativo e na criação de solidariedades novas só pode funcionar na opinião de
Alain Caillé (2004), no registo do dom. Allain Caillé faz parte de um grupo de
intelectuais franceses contemporâneos fundadores do grupo M.A.U.SS
(Movimento antiutilitarista em Ciências Sociais), que tem como núcleo de
reflexão, a teoria da dádiva de Marcel Mauss e que se empenha em apontar o
alcance dessa teoria para as sociedade modernas.
Esse grupo, como mostra Martins (2004, p.11) “vem chamando a atenção
sobre o fato de que a dádiva não constitui uma teoria social a mais, na moda, mas
a modalidade específica da produção da convivência não apenas entre os homens
mas entre os seres vivos em geral”. Ao rever a teoria de Mauss, Jacques Godbout
(1999) assegura que a dádiva não é apenas uma característica das sociedades
primitivas mas está presente igualmente nas modernas e contemporâneas e não
se refere apenas a momentos isolados e descontínuos mas, enquanto matriz dos
vínculos sociais, é a instauradora da sociabilidade.
Godbout (1999, p. 252) ainda salienta que “a dádiva é a alternativa à
dialéctica do senhor e do escravo. Não se trata de dominar o outro nem de ser
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dominado, mas de pertencer a um conjunto mais amplo, de restabelecer a

 Cadernos de Pedagogia Social


relação, de se tornar membro”.
A reflexão sobre a permanência da dádiva entre os modernos, juntamente com
a questão da hospitalidade e seus desdobramentos são os temas centrais do
Grupo M.A.U.S.S e de todos os outros que se uniram a eles seguindo, sem
reservas essa linha teórica que Caillé chama de “terceiro paradigma” visando
superar os dois grandes paradigmas das Ciências Sociais: o individualismo e o
holismo.
Caillé (2002, p. 11) justifica a sua proposta: “como o dom é por natureza
aquilo que permite superar a antítese entre o eu e o outro, entre obrigação e
liberdade, entre a parte do herdado e a parte do legado a receber, compreender-
se-á facilmente que pensar segundo o dom implica aprender a superar a tensão
não resolvida entre os dois grandes paradigmas em que se dividem as Ciências
Sociais”. Nesse sentido, entende-se a hospitalidade como uma abertura para a
alteridade enquanto o primeiro grau de compromisso e de alianças que ampliam,
fortalecem ou rompem vínculos sociais.
Definindo hospitalidade como um modo privilegiado de encontro interpessoal
marcado pela atitude de acolhimento, Isabel Baptista (2002, p.158), dimensiona
toda a sua importância ao afirmar:

Ao tentar sublinhar a dimensão ética da hospitalidade procura-se evidenciar a


necessidade de criar e alimentar lugares de hospitalidade, onde, do nosso ponto de vista,
surgem a consciência de um destino comum e o sentido de responsabilidade que motiva
a acção solidária.

Ao sublinhar a necessidade de criar lugares de hospitalidade, Isabel Baptista


confirma a importância que os estudiosos dão às festas populares, consideradas
como um espaço privilegiado para o acolhimento, para a hospitalidade, lugar por
excelência da expansão da sociabilidade. Realmente, a festa supõe o acolhimento
do ‘outro’, numa expansividade colectiva e a hospitalidade que ela supõe, implica
a dádiva do espaço e a doação de si mesmo, estabelecendo assim, uma dinâmica
de reciprocidade que se identifica com a base da teoria de Mauss.
Rita de Cássia Amaral (1998), aponta em seu trabalho sobre a festa Brasileira,
seu poderoso papel mediador entre as estruturas económicas bem como entre as
diferenças sociais, estabelecendo pontes entre grupos. Segundo a autora, a festa
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é capaz de apreender o sentimento de cidadania, contendo uma tríplice


 Cadernos de Pedagogia Social

importância: Cultural, por colocar em cena valores, projectos, arte e devoção


como modelo de acção cultural e como produto turístico capaz de revigorar as
cidades.
O ciclo de festas italianas na cidade de São Paulo: Nossa Senhora da
Acchiropita, São Genaro, São Vito Mártir, Santo Emidio e Nossa Senhora de
Casaluce, demonstra a relevância e o valor de actividades festas no cenário
urbano por dispor de lugares e ocasiões para promover o potencial de inserção do
indivíduo na comunidade. A mobilização da comunidade através das actividades
e funções para a realização da festa, atesta a responsabilidade de pertencer a um
grupo comunitário e tem como função reafirmar o sentimento de comunhão,
pertença e identidade enquanto grupo. Mulheres se juntam para a preparação de
caneloni, pizzas, lasanhas e molhos variados para oferecerem durante a festa.
Casais se reúnem para arrecadar dinheiro através de doações, bingos, rifas etc.
cujos recursos auferidos é redistribuído em assistência social no próprio bairro.
Isso demonstra que o espaço aberto a práticas sociais e expressão cultural,
além de conferir a qualidade de património cultural e integração social e étnica,
oferece a possibilidade de vivência da sociabilidade. Na festa, a comunidade
existe, acontece e indivíduos de diferentes estratos sociais e étnicas se integram
e, num clima de espontaneidade, comungam as diferenças. Carlos Rodrigues
Brandão (1989, p.30), também identifica a festa como um acontecimento social
de efeito identificador, quando ressalta: “A festa é um tipo de ritual e os limites do
ritual podem ser alargados a todas as acções que objectivam e produzem
comunicação social”. Assim, ele confirma que a festa permite a afirmação social
através do seu papel de aglutinadora de esforços e com isso, mostra sua força
social.
Igualmente, Roberto Cipriani (1988), acredita que a “festa coloca em
evidência a reapropriação ou, pelo menos o desejo de recuperação, de uma
solidariedade, de uma vivência intensa, de um exercício de fantasia, que as
mutações das condições sociológicas parecem tornar cada vez mais impossíveis”
e que a festa parece possuir condições ideais para a convivialidade e para o
acolhimento do ‘outro’.

112
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Considerações finais

 Cadernos de Pedagogia Social


O trabalho procurou mostrar a convergência das discussões clássicas sobre a
cidade com as recentes preocupações das discussões sobre as condições de vida
nas cidades contemporâneas em que as questões de identidade, hospitalidade e
alteridade convivem com as discussões sobre as dimensões espaciais e os
condicionantes das relações sociais, tomando-se por base, a cidade de São Paulo.
Procurou-se trabalhar, em primeiro lugar, com autores clássicos do universo de
discussão sobre a cidade, a hospitalidade e os vínculos sociais, e com autores
brasileiros e portugueses preocupados com temas afins e que contribuem para a
constatação de que pouco a pouco se desenvolvem em maior ou menor escala,
situações de convivialidade no universo das contradições próprias ao mundo
urbano e situações de hospitalidade e solidariedade que se contrapõem à lógica
do interesse e do desenvolvimento económico.
Ao constatar, no caso paulista, por exemplo, a possibilidade de criação de
formas de solidariedade e de espaços ou lugares de hospitalidade, caminha-se no
sentido de aprofundar as evidencias sobre as possibilidades de actuação de
movimentos voluntários, no caso de ONGS e mesmo de espaços e lugares de
hospitalidade dentro das situações da vida colectiva dos Bairros e das festas
comunitárias.
Espera-se assim, contribuir para ampliar ou mesmo estimular o debate em
torno de alternativas possíveis de visualizar as possibilidades de criação de um
paradigma da hospitalidade em contraposição ao paradigma utilitarista em
relação ao futuro das relações em sociedade.

113
CPSocial_2.qxp 23-04-2008 12:14 Page 114

Referências bibliográficas
 Cadernos de Pedagogia Social

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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 117-123

Porque necessitamos de um modelo


bioecológico–transaccional para pensar o
futuro?
Maria Raúl Lobo Xavier1

Resumo
Com este trabalho procuramos justificar como o modelo bioecológico de Urie
Bronfenbrenner e o modelo transaccional de Sameroff e colegas poderão ser
utilizados como guias úteis para evidenciar a necessidade de uma atenção
especial para com as crianças e suas famílias.

Consideramos que o maior desafio de uma sociedade – da nossa sociedade -


é o de ser capaz de trabalhar (n)o presente a pensar no FUTURO. E quem melhor
que as crianças para corporizar esta ideia? Todos os envolvidos directa ou
indirectamente nas práticas do cuidar da infância têm um lugar cativo na tarefa
de cumprir este desafio com o máximo de sucesso.
Para fundamentar a necessidade desta atenção sobre a infância – no sentido
de promover o interesse dos profissionais e de quem intervém em situações de
decisão que envolvem famílias e crianças – defendemos que dois modelos de
desenvolvimento são de grande importância: O modelo bioecológico de
Bronfenbrenner e o modelo transaccional de Sameroff e colaboradores.

1
Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/ UCP
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Modelo bioecológico de desenvolvimento


 Cadernos de Pedagogia Social

Nos finais da década de 70, Urie Bronfenbrenner (Universidade de Cornell)


publicou um livro com o título “A ecologia do desenvolvimento humano” (1979)
em que não só pôs em causa as correntes mais em voga na psicologia do
desenvolvimento, como sublinhou – de uma forma inovadora – a importância do
estudo do contexto/ambiente em que o desenvolvimento decorre. O modelo
organiza-se em torno do seguinte princípio: o desenvolvimento humano consiste
na acomodação progressiva e bidireccional entre o ser humano activo e as
características dos contextos em que este age, pensa e sente (Bronfenbrenner,
1979).
Estes contextos são descritos em termos de quatro tipos de sistemas que se
organizam de um modo que o autor descreve metaforicamente como uma espécie
de conjunto de bonecas russas (Bronfenbrenner, 1979): o microssistema, o
mesossistema, o exossistema e o macrossistema.
O microssistema é o sistema ecológico mais próximo, onde acontecem os
padrões de actividades, papeis, relações interpessoais e experiências que envolvem
o próprio indivíduo e outras pessoas com características diferentes quanto ao
temperamento, personalidade ou sistema de crenças (Bronfembrenner, 1979).
Integra a família, a escola, a igreja, a vizinhança, a associação recreativa onde tem
actividades de tempo livres, etc. Quando a criança passa de um microssistema
conhecido, como por exemplo a família, integrando outro microssistema, como por
exemplo quando entra na escola, acontece aquilo que Bronfenbrenner definiu como
“transição ecológica”. Estas transições são ao mesmo tempo consequências e
promotoras do desenvolvimento. Ao mesossitema correspondem as inter-relações
entre dois ou mais contextos próximos em que o indivíduo participa, como por
exemplo a relação entre a escola e a família ou entre igreja e a família. Os
exossistemas são constituídos por um ou mais contextos que indirectamente
afectam o indivíduo e em que pelo menos num deles o indivíduo está inserido.
Podem ser estruturas sociais formais ou informais que influenciam o que acontece
no ambiente mais próximo: por exemplo as características e experiências de
emprego dos pais de uma criança ou as características e funcionamento do bairro
onde uma criança vive. Quanto aos macrossistemas, são sistemas de crenças e
padrões institucionais de cultura que influenciam os outros 3 sistemas.
118
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Uns anos mais tarde, Bronfenbrenner (1995, 1999) introduziu mudanças

 Cadernos de Pedagogia Social


significativas no seu modelo ecológico do desenvolvimento humano,
recombinando-o com novos elementos numa organização que classifica como
mais dinâmica. Três novos factores deverão ser tidos em conta naquilo que definiu
como o modelo bioecológico: a ênfase nas características fenotípicas e
genotípicas dos indivíduos, a ênfase nas relações do indivíduo em
desenvolvimento com as pessoas e situações com que se relaciona e a introdução
de uma dimensão essencialmente temporal do desenvolvimento.
O modo como alerta para a necessidade de ter em atenção as características
dos indivíduos é marcado pelos avanços, por exemplo, da genética, não
traduzindo uma vontade de dar menos atenção aos sistemas que envolvem o
indivíduo, mas sim, o sublinhar da necessidade de integrar as suas características
genotípicas e fenotípicas nas leituras sobre o desenvolvimento. Quanto às relações
que o indivíduo em desenvolvimento estabelece com o seu entorno,
Bronfenbrenner descreveu-as como Processos Proximais – formas de interacção
participativa/relações funcionais, entre o organismo e o meio que se desenvolvem
ao longo do tempo. Quanto mais ricos são os processos proximais, maiores as
probabilidades das potencialidades genéticas dos indivíduos em desenvolvimento
se tornarem realidade. A nova dimensão temporal, cronossistémica, que
Bronfenbrenner defende permite um olhar sobre as influências das mudanças e
das continuidades no desenvolvimento humano, considerando-se o microtempo,
mesotempo e macrotempo (Bronfenbrenner & Morris, 1998, 1999) e, portanto,
abordando o indivíduo e as suas relações com os acontecimentos presentes, e
também uma perspectiva histórica. No âmbito do microtempo, as interacções
devem ser caracterizadas pela reciprocidade e complexidade gradual. O
mesotempo diz respeito à maior periodicidade destes episódios, assumindo-se o
significado desenvolvimental da sua cumulatividade. Assim, consideram-se
intervalos de tempo mais alargados, como por exemplo dias ou semanas. O
macrotempo perspectiva as mudanças no âmbito da sociedade mais alargada, em
cada geração e entre gerações, enquanto influenciando e sendo influenciadas
pelos indivíduos em desenvolvimento ao longo das suas vidas.

119
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Modelo transaccional do desenvolvimento


 Cadernos de Pedagogia Social

Partindo de estudos descritivos sobre a relação pais-criança realizados na


década de sessenta, Sameroff e Chandler (1975) defendem que os processos
transaccionais são parte central do desenvolvimento. Sublinharam o carácter
recíproco das influências, dando importância às características individuais da
criança na organização do seu ambiente. Consideramos então que estamos no
domínio do modelo transaccional do desenvolvimento. Este modelo entende o
desenvolvimento da criança como o produto da interacção contínua, dinâmica e
bi-direccional entre a criança e a experiência fornecida pela família e o contexto
social em que está inserida, dando idêntico peso, quer aos efeitos produzidos pela
criança, quer pelo meio envolvente (e.g. Sameroff e Fiese, 1990; Samerof e
MacKenzie, 2002). Ou seja, a própria criança é agente activo do seu
desenvolvimento, modelando e regulando as experiências do meio, tal como este
regula e modela as experiências da criança.
O que é inovador nesta conceptualização é a ênfase no efeito da criança sobre
o meio ambiente e vice-versa, de forma a que as experiências possibilitadas pelo
ambiente não lhe são independentes. “O resultado da criança em qualquer ponto
do tempo, não é nem em função do estado inicial da criança, nem do estado
inicial do ambiente, mas uma função complexa da acção combinada da criança e
do ambiente ao longo do tempo” (Sameroff & Fiese, 1990, 122-123).
O desenvolvimento não deverá então ser apenas visto como o resultado das
características da criança ou de quem dela cuida. A passagem do tempo e as
experiências que se vão sucedendo, assim como a leitura que cada um faz dessa
experiências e características têm que ser analisados para a sua compreensão.
Pensando na intervenção, Sameroff e MacKenzie (2003, 21) escreveram: “a
complexidade do sistema transaccional abre a possibilidade de muitos caminhos
de intervenção que facilitem o desenvolvimento saudável das crianças e das suas
famílias”

120
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Um olhar bioecológico-transaccional sobre a

 Cadernos de Pedagogia Social


infância

Somos assim da opinião que um olhar bioecológico-transaccional - ao


assinalar que o indivíduo e o ambiente se influenciam reciprocamente, mudando
ambos ao longo do tempo e adaptando-se às alterações um do outro, e que este
ambiente ou contexto pode ser mais próximo ou mais distante - é imprescindível
para entender o desenvolvimento. Este varia de indivíduo para indivíduo, tendo em
conta as suas próprias características e necessidades e o modo como a sociedade
lhes responde. As oportunidades e/ou os riscos para o desenvolvimento que cada
um enfrenta dependem assim das suas características individuais e dos contextos
em que vive.
As oportunidades resultam das relações que cada criança estabelece com os
elementos dos contextos mais próximos ou mais distantes que lhe possibilitam
suporte material, emocional e social (educação e saúde), respondendo às suas
necessidades e capacidades, em cada momento do desenvolvimento. Os riscos
estão relacionados quer com ameaças directas, quer com a ausência de
oportunidades para o desenvolvimento (e.g. Garbarino e Abramowitz, 1992).
Quando o mundo da criança não disponibiliza experiências e relacionamentos
essenciais, referimo-nos a factores de risco socioculturais ou ambientais.
Consideramos que os dois modelos apresentados são da maior importância
para alterar o nosso olhar sobre a infância, dando-lhe mais atenção e assumindo
a urgência de pensar cada criança juntamente com a sua família e os contextos
de desenvolvimento mais alargados. A sua principal contribuição poderá ser vista
no modo como salienta a necessidade de articular os apoios funcionais, sociais,
políticos e culturais que podem responder às famílias e às crianças. Em pleno sec
XXI, a sociedade tem que responder às necessidades que estas apresentam:
Investir na prevenção, na ênfase sobre os pontos fortes e na robustez das famílias,
no desenvolvimento dinâmico de pais e filhos, na relação entre a família e uma
escola que cumpra no saber, saber/ser e saber/estar, na importância dos valores
culturais e nas redes de apoio social (na comunidade) é investir no FUTURO.
A investigação científica, em várias áreas, tem demonstrado claramente a
importância dos primeiros anos de vida naquilo que será a continuação do
percurso desenvolvimental (e.g. Gomes-Pedro, Nugent, Young e Brazelton, 2005;
121
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Karr-Morse e Wiley, 1997; Shonkoff e Phillips, 2000). Há também, pelo mundo


 Cadernos de Pedagogia Social

fora, evidência acumulada sobre as vantagens económicas de investir na infância


(e.g. Shonkoff e Phillips, 2000). O desafio agora é traduzir estes dados em
estratégias práticas e sustentáveis, em situações em que isto compete com outros
investimentos e com as limitações de recursos que se sentem – esta deve ser a
tarefa de todos.

122
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 Cadernos de Pedagogia Social


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123
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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 125-149

Intervenção Social da Ald No Gúruè


Adérito Gomes Barbosa1

Resumo
O presente texto procura apresentar, antes de mais, o distrito do Gúruè2 e o
Centro Polivalente Leão Dehon3, considerado um dos mais organizados e
eficientes em Moçambique, pelas instituições governamentais, não
governamentais e educativas. A ALVD4 como entidade e a sua intervenção em
Moçambique constituem o segundo ponto do nosso desenvolvimento. Em
terceiro lugar, salientamos os princípios pedagógico-sociais desta Associação.

GÚRUÈ

1. Situação em geral
O distrito do Gúruè localiza-se a Norte da Província da Zambézia
(Moçambique), também chamada Alta Zambézia, zona montanhosa, tendo como
limites o distrito de Malema ao Norte, a Sul com o Distrito de Mamarrói, Ile a Este
com o Distrito de Alto Molócué, ao Oeste com os Distritos de Milange e Cuamba.
É no Distrito do Gurúè que se localiza o ponto mais alto da província, o Monte
Namúli, com 2.419 metros de altitude. Este distrito é composto por 22

1
Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/ UCP
2
Os anciãos, classe do povo, que veicula a tradição, referem que a palavra Gúruè (em lomwè) significa
javali, porque, em tempos idos era uma região avassalada por estes animais.
3
João Leão Dehon, francês, fundou a Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus em 1978.
4
Associação de Leigos Voluntários Dehonianos.
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localidades, e 2 postos administrativos. As localidades são: Gurúè com 22 bairros;


 Cadernos de Pedagogia Social

Muaquia com 8 bairros; Mucunha com 7 bairros; Murrimo com 13 bairros; Vehiua
com 10 bairros.
Um dos postos Administrativos é o Lioma, do qual fazem parte as seguintes
localidades: Muximua com 4 bairros, Lioma, Magige, Nintulo, Mualijane, Tetete.
Um outro posto administrativo é o de Mepuagiua, do qual fazem parte as
seguintes localidades: Mepuagiua, Incize, Nicoropale, Nipive, Mugaveia. O bairro
com um maior número de população é o Bairro Mepuariua com 3.869 habitantes,
seguido do Bairro Cooperativo com 3.239 habitantes.
Tem uma superfície de 5.688Km2 e uma população de 241. 303 habitantes
em 2005, o distrito do Gúruè tem uma densidade de 42.6 habitantes por Km2. A
percentagem de mulheres é menor que a percentagem de homens na cidade do
Gurúè. As mulheres constituem 49% enquanto para os homens constituem 51%
da população.
A população é jovem com 46% abaixo dos 15 anos.
Com 74% da população analfabeta, predominantemente mulheres, a taxa
escolarização no distrito é baixa, constatando-se que só 41% dos habitantes
frequentam ou já frequentaram a escola
Só 2% das casas têm água canalizada, 14% já tem casa de banho, só 1% tem
electricidade e 19% têm rádio.
O quadro epidémico do distrito é dominado pela malária, diarreia, DTS e SIDA
que, no seu conjunto representam quase a totalidade dos casos de doenças no
distrito.
Só 24% das mulheres tem o conhecimento da língua portuguesa. A taxa de
analfabetismo na população feminina atinge os 85%. Das mulheres com mais de
5 anos, só 69% frequentaram a escola.
O tipo de habitação modal do distrito é a palhota, com pavimento de terra
batida, tecto de capim ou colmo e paredes de caniço ou paus5.

5
Ministério da Administração Estatal (2005). Perfil do Distrito do Gúruè. Província da Zambézia.
Moçambique. Série: Perfis Distritais.
126
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Mapa 1

 Cadernos de Pedagogia Social


Mapa2

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2. Caracterização da população
 Cadernos de Pedagogia Social

“Miyo Kokhuma oNamuli”. (Eu saí do monte Namúli)

Segundo alguns historiadores modernos, o povo Macua não é mais do que um


dos inumeráveis braços do grande delta das migrações bantas fixadas na África
Austral, depois de terem chegado das savanas camorenesas nos primeiros cinco
séculos da nossa era. No entanto, existe o grande mito macua, que diz que “todos
os homens foram criados no monte Namúli...”. Segundo a lenda, os macuas
multiplicaram-se tanto que se tornou necessário abandonar a montanha e
espalhar-se pelo vale. O que é certo é que as migrações se deram ou atravessando
as montanhas, de nascente, ou fixando-se em locais pantanosos, desde que a
água estivesse assegurada.
Entre o povo Macua, existem grupos bem diferenciados. Os principais são os
Lómwè, na Província da Zambézia e também do Niassa, os Meto (Cabo Delgado
e Niassa) e os Macuas, propriamente ditos, que coincidem com a Província de
Nampula, estendendo-se também em parte para Cabo Delgado e Niassa.
A mulher tem um papel fundamental e segundo o povo, a mãe é tudo. Isto porque
todo o indivíduo, homem ou mulher é integrado desde o nascimento no clã da mãe
(nihimo), a quem por essência pertence. Todo o nihimo tem uma avó comum (apipi).
Todos os indivíduos com a mesma avó são portanto parentes entre eles.
Os homens não podem procurar mulher no seio do próprio clã. A mulher que
ele desposar continuará a ficar estreitamente ligada ao clã a que pertence e
também os filhos do matrimónio serão exclusivamente do clã da mulher.
O marido é um mero agente de procriação de todos os elementos para a
descendência da mulher. Sendo a mulher a essência do clã, é-lhe exigida
fidelidade ao lugar de nascimento, à terra em que habitam os espíritos dos seus
antepassados. Por isso, o casal vai morar para perto dos pais da mulher.
Desde pequena, a mulher começa a ser preparada para a sua missão de
maternidade. Muitas são as suas tarefas orientadas para o bem – estar familiar,
amanhar a terra, fazer panelas, ir à água e à lenha, ao mesmo tempo que,
evidentemente, aprende a cuidar dos filhos.
Sujeita a numerosas responsabilidades e a trabalhos pesados, a mulher
aparece numa situação de inferioridade: a sociedade é certamente matrilinear,
128
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mas não matriarcal. Contudo, é grande o respeito com que a tratam, sobretudo,

 Cadernos de Pedagogia Social


quando velha é rodeada de numerosa descendência.
As tarefas do homem são, entre outras, construir a casa, preparar e
proporcionar as alfaias agrícolas, abater árvores e vegetação para a preparação de
novos campos, fornecer roupa (capulana) e miçangas à mulher, providenciar a
comida nos momentos mais críticos do ano.
A economia macua é essencialmente agrícola, quase uma agricultura de
subsistência. Os produtos básicos de antiga tradição são: os cereais, milho e
mapira. No entanto, a mandioca, em termos de alimentação quotidiana, prevalece
por toda a parte.
À agricultura, junta-se a caça que é uma tarefa do homem e a recolha de
frutos silvestres que é uma tarefa da mulher. A pastorícia não faz parte do estilo
de vida do macua. Limitam-se à criação doméstica de animais de pequeno porte,
tais como galinhas, porcos, cabras. A agricultura poderá ser considerada de semi
– nómada, pois não conhece a rotação dos terrenos, nem o revolvimento da terra.
Para a eliminação das ervas daninhas, utilizam as queimadas, o que, por sua vez,
hoje, origina o desequilíbrio ecológico.
A economia do Distrito do Gurúè depende da produção de milho e da
produção de chá. Neste distrito, existem 12 unidades de produção (UP) de chá.
O sistema comunitário africano está baseado sobre a propriedade privada
como meio de iniciativa para participar activa e livremente na vida comum. ”O
meu trabalho é meu. Não trabalho para a comunidade. Trabalho para mim
mesmo, para poder, por mim próprio, participar do bem comum e ser alguém”.
A pessoa nunca é um instrumento da sociedade, mas um membro que
participa da vida comum executando o melhor possível a sua própria função, para
obter grandeza e consideração.

3. Carências da comunidade

Há falta de cuidados de saúde em geral, nomeadamente na saúde materno-


infantil, na adolescência, na educação para a saúde como higiene, sida e
educação sexual entre outras.
Há a necessidade de uma educação-formação em geral em todos os sectores.
129
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Sendo a agricultura uma “agricultura de subsistência”, há a necessidade de


 Cadernos de Pedagogia Social

formar a mentalidade neste sector em ordem a uma auto-gestão na família e nas


estruturas comunitárias.
Há que preparar e formar recursos humanos. Há que formar ao Desenvol-
vimento Sócio-Cultural.

4. O Centro Polivalente Leão Dehon 6

O Centro Polivalente Leão Dehon abarca fundamentalmente a Escola, a fábrica


e a residência dos directores7.
O sector da formação assenta na Escola Básica e Industrial do Gurúè e na
organização de cursos profissionais mais breves. Os alunos matriculados recebem
livros de texto de apoio que a própria escola policopia gratuitamente para todas as
disciplinas teóricas bem como o material escolar necessário. O facto de ser
gratuito possibilita o acesso aos estudos dos alunos sem recursos económicos. Os
cursos leccionados integram três especialidades; A electricidade, mecânica auto;
serralharia mecânica.
É necessário referir que esta escola envolve cerca de 80 alunos, num horário
das 7 horas às 17.00 horas, com um intervalo para almoço de uma hora e meia.
O plano curricular abrange as disciplinas de História de África, Português,
Matemática, Inglês, Higiene e Segurança no Trabalho, Física, Química, Educação
Física, Educação Cívica. As disciplinas de Formação Específica circunscrevem-se
à Serralharia, à Mecânica Auto, à Electricidade. Pode elencar-se ainda a
Informática como disciplina opcional.
O sector da produção inclui várias oficinas: Serração de madeira; Carpintaria;
Escultura; Serralharia; Sapataria; Alfaiataria; Fotografia; Moagem; Extracção de
Óleos Vegetais. Este é um centro com 150 trabalhadores na parte industrial. É o
único centro da região, onde existe uma escola de carácter técnico.

6
Este centro situa-se mesmo à saída da cidade do Gúruè, incluindo a escola e a fábrica.
7
Os Directores são religiosos da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, italianos ou
moçambicanos, também conhecidos por SCJ ou dehonianos.

130
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O Centro Polivalente apresenta algumas necessidades, tais como, a aquisição

 Cadernos de Pedagogia Social


de máquinas para as oficinas e voluntários tecnicamente qualificados. O Centro
necessita de professores e técnicos para as aulas teóricas e práticas, para a
preparação de pessoal local que num futuro possa vir a trabalhar no próprio
Centro.
O sector da agricultura tem como princípio actuar de uma forma que possa
beneficiar um maior grupo da população. Os objectivos deste sector são:
contribuir para o melhoramento das infra-estruturas existentes no distrito;
estimular a economia, a produção agrícola e a comercialização; cooperar com as
autoridades locais e administrativas e apoiar o desenvolvimento regional
descentralizado e o fortalecimento das estruturas locais8.
Os responsáveis da escola procuram ainda promover encontros de formação
para a família dos alunos e dos trabalhadores, sobretudo na área da higiene,
saúde, alimentação e outros aspectos da formação humana (dignidade, direitos,
deveres, trabalho, cidadania, educação, família, responsabilidade, valores).

ALVD

1. Estatutos
A ASSOCIAÇÃO DOS LEIGOS VOLUNTÁRIOS DEHONIANOS, designada por
ALVD (Artigo 1º) é uma associação privada voluntária, sem fins lucrativos, e tem
por objecto o Apoio Humanitário e o Desenvolvimento Comunitário (Artigo 3º).
A ALVD tem por objectivos: intervir em situações de necessidade; cooperar, em
regime de voluntariado, na formação humana, cultural e social nos países em
desenvolvimento; contribuir para o aprofundamento do sentido da vida humana;
implementar o espírito associativo (Artigo 4º).
Desta forma, a ALVD procura desenvolver projectos de solidariedade para
diminuir as desigualdades sociais. Procura responder também às necessidades
onde está inserida, de uma forma gratuita e solidária, através do trabalho dos
voluntários9.

8
Segundo o relatório de actividades da ALVD (2000).
9
A partir do ano 2000, a ALVD já preparou e enviou cerca de 70 voluntários, a maior parte com
intervenções de um ano e os outros com intervenções durante um mês em Moçambique.
131
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No cumprimento dos seus objectivos, a ALVD desenvolverá, entre outras, as


 Cadernos de Pedagogia Social

seguintes actividades:
 realização de projectos no âmbito da promoção humana, cultural e social;
 desenvolvimento de acções de formação no âmbito da educação para a
saúde;
 promoção da educação e formação das crianças, adolescentes, jovens e
adultos;
 promoção da educação para a cidadania (Artigo 5).

São requisitos necessários para ser membro da ALVD:


 ser maior de idade, com espírito de voluntariado;
 ter capacidade de trabalho em equipa;
 possuir uma adequada formação humana e profissional;
 manifestar estabilidade psicológica e emocional;
 disponibilizar-se para um compromisso temporário ao serviço da
Associação;
 comprometer-se em pleno no cumprimento do projecto assumido;
 participar nas acções de formação indicadas no artigo 7º dos presentes
Estatutos (Artigo 6º).

Os candidatos a membros da ALVD estão sujeitos a um período de formação,


de cerca de um ano, repartida em duas fases:
a) formação geral: discernimento e integração;
b) formação específica: técnica e cultural (Artigo 7º)10.
Em 2008, a ALVD prepara grupos de candidatos a voluntários em
Moçambique em Lisboa, na Madeira e no Porto para intervirem em 2009, 2010 e
2011.

2. Objectivos gerais da intervenção


Minorar as carências sentidas pela população: saúde, educação, agricultura e
outros; elaborar um programa de desenvolvimento e integração que valorize os

10
As intervenções da ALVD circunscreveram-se ao Centro Polivalente Leão Dehon do Gúruè de 2000 a
2007. A partir de 2007, há voluntários da ALVD a intervirem no Centro Juvenil de Alto Mólocuè e em
2008 voluntários da ALVD em Nampula, no Centro Cultural Napipine.
132
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recursos locais; priorizar a formação profissional nomeadamente nos cuidados da

 Cadernos de Pedagogia Social


saúde, na educação e noutras preocupações que se considerem no
Desenvolvimento Social e Cultural; implementar a cultura do povo através de
criação de bibliotecas locais de apoio às estruturas de ensino e à população em
geral.

3. Áreas de intervenção
O Centro Polivalente do Gurué é um centro que emprega 150 trabalhadores na
parte industrial e tem uma escola básica industrial. É o único centro da região,
onde existe uma escola de carácter técnico.
Dada a carência de meios humanos (educadores, professores e outro pessoal
auxiliar para a escola), materiais (livros e todo o material didáctico para a escola),
assim como apoio cultural para a referida cidade e para a região do Gurué, a ALVD
sentiu necessidade de intervir no sentido de ajudar a responder às necessidades
locais.
Área de intervenção (educação). Um primeiro contexto de intervenção na área
da educação, é a Escola Técnico Profissional. O local de intervenção tem como
designação “Escola Básica Industrial do Gúrùe” (EBIG).
A escola abrange um total de 80 alunos, divididos pelas áreas curriculares de
Electricidade Geral, Mecânica - Auto e Serralharia Mecânica. Estes cursos têm a
duração de 3 anos, tendo uma componente prática muito forte.
Os currículos destes cursos têm disciplinas como o português, matemática,
higiene e segurança no trabalho. Pretende-se investir nos recursos humanos, ou
seja, enviar professores especializados nas áreas referidas.
Para além das disciplinas curriculares, existe uma outra componente de
disciplinas como o Inglês a Informática e Secretariado.
Objectivos nesta área:
 Enviar professores especializados nas disciplinas curriculares de carácter
geral.
 Contribuir para aquisição de novos conhecimentos.
 Colaborar para a consolidação das disciplinas curriculares e extra
curriculares.
 Permitir a entrada e a frequência de alunos na escola sem recursos
económicos.
133
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Área de intervenção (educação). Um segundo contexto de intervenção foi o


 Cadernos de Pedagogia Social

apetrechamento de uma Biblioteca que abrange os alunos da Escola Básica


Industrial e os alunos das diferentes escolas.
Objectivos nesta área:
Dinamizar a biblioteca através:
 Da aquisição de livros científicos e de aventuras.
 De fomentar o gosto pela leitura.
 De jogos didácticos.

Área de intervenção (educação). Um terceiro contexto é o da Alfabetização e


Formação Humana e Técnica. Os destinatários são a população em geral do
distrito. Tem como objectivos: continuar e desenvolver o curso de informática já
iniciado em anos anteriores; permitir a redução do analfabetismo; desenvolver
acções de formação ao nível da educação, na promoção da dignidade humana;
possibilitar o conhecimento e valorização dos recursos locais; formação dos
trabalhadores do Centro Polivalente Leão Dehon.
Objectivos na área:
 Continuar e desenvolver o curso de informática já iniciado em anos
anteriores
 Permitir a redução do analfabetismo.
 Desenvolver acções de formação ao nível da educação, na promoção da
dignidade humana.
 Possibilitar o conhecimento e valorização dos recursos locais.
 Dar formação aos trabalhadores do Centro Polivalente Leão Dehon.

No sector da educação, o distrito possui 100 escolas. No entanto, este número


diz respeito às escolas primárias, escola do ensino básico e uma escola do nível
médio, tendo ainda a escola técnico profissional já anteriormente referida.
O sector da primeira infância fica totalmente fora de qualquer plano de
intervenção ao nível do país. Daí pretender-se criar um jardim-de-infância, pois as
crianças desta idade passam o dia na rua, sem qualquer projecto. Nesta área, as
carências são enormes; desde a falta de pessoal à falta de material. No entanto,
a formação e informação da população é uma necessidade sentida na realidade,
pois não existe uma informação adequada e clara à população.
134
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O projecto de intervenção e desenvolvimento, criou uma linha de prevenção.

 Cadernos de Pedagogia Social


No entanto, é necessário manter essa mesma linha para que possa fazer frente à
propagação de várias doenças como a SIDA, a Malária, a Cólera.
Pretende-se trabalhar com o hospital distrital, na área da formação e
informação, no sentido de educar para a saúde.
Objectivos na área:
 Colaborar com o hospital distrital, na área da formação e informação.
 Educar para a saúde na linha da prevenção.

Princípios pedagógico-sociais desta Associação

Educação
Educação e sociedade
Qualquer pessoa, medianamente sensível ao contexto social, detecta que é o
modo completo da vida que educa. O contexto social, no seu conjunto, educa-nos
e cria um espaço em que as nossas escolas operam.
Uma genuína sociedade educadora significa mais do que uma sociedade com
boas escolas. Significa, entre outras coisas, uma sociedade com um sentido do
que é bom para a comunidade, com uma moral social e com uma memória do
próprio passado. As escolas podem contribuir para isto, mas não podem criá-lo
fora de todo o contexto. Alguns poderão pensar que só uma transformação
democrática das instituições tornará possível a sociedade educadora.
A educação só pode ter êxito quando, na escola, os professores tiverem o
conceito solidário da sua missão e também quando outras comunidades
implicadas ajudarem as famílias na organização das escolas.
As implicações no âmbito da educação são múltiplas, diversas e são de
grande interesse as questões que se colocam: a noção de liberdade e a relação
do indivíduo com a sociedade tem implicações educativas; as funções da família,
da escola e a lei na formação moral; os direitos no terreno educativo: a dimensão
social, humana forma parte da essência do homem? Que repercussões tem na
educação? O que é hoje a educação e qual é o seu futuro? Que imagem de pessoa
ou que conceito de sociedade se mantém ou fomenta? Como educar hoje numa
sociedade com tão grande variedade de tradições culturais? Tradição ou
135
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criatividade é uma alternativa adequada em educação? Como fomentar essas


 Cadernos de Pedagogia Social

comunidades de aprendizagem e onde é possível transmitir uma tradição? Que


importância tem a tradição na formação da personalidade humana?
Há uma conexão grande entre educação, pessoa e sociedade. O ensino é uma
prática social realizada de acordo com uma tradição social e não simplesmente
como uma transacção entre indivíduos isolados. Uma prática social é guiada por
um modo de ver a tradição.
Sublinhar a tradição não é negar a possibilidade de criação ou mudança. Sem
tradição não haveria nada que mudar. Na tradição, podemos distinguir dois
elementos: habilidades ou técnicas e os modelos de ver o mundo.
O problema da educação é um problema ético que alcança uma dimensão
política. A educação é a área onde mais se podem apreciar as diferenças entre
endoutrinamento e uma potenciação da dignidade humana. Como deveria ser
entendida e realizada a educação, sobretudo na sua vertente social, para seja um
catalizador neste processo de crescimento vital?
O desenvolvimento de uma série de estratégias educativas pode potenciar ou
dificultar a realização de uma educação plena e afectar a dignidade que o homem
possui. Esta dignidade é algo aberto a possibilidades que manifestam a
capacidade de autodeterminação e de projecto, que o homem possui, já que
humanidade, dignidade e liberdade co-implicam-se.
Enquanto o animal está imerso no seu meio e indiferenciado dele, o homem
está livre frente a um mundo ao qual é irredutível. É digno e livre; deve ser tratado
como um fim e não como um meio. Assim, aparecem a liberdade e a dignidade,
na abertura essencial do homem, enquanto ser que se supera e está aberto ao
universal.
Os efeitos mais característicos são dois: incremento da qualidade do carácter
humano e a construção de um mundo à medida do homem.
A qualidade de vida, autenticamente humana, não tem o seu centro de
gravidade no exterior da sociedade; parece residir na decantação vital da liberdade
razoável.
E que papel tem em tudo isto a educação, a escola, as instituições e a
sociedade?
A educação pode ser uma ajuda para crescer na liberdade e na dignidade.
Será educativo tudo o que favorecer o aperfeiçoamento da pessoa.
136
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A educação pode ser considerada como uma iniciação dos jovens, membros

 Cadernos de Pedagogia Social


de uma sociedade nas tradições públicas.

Educação do cidadão
O conceito de educação individualista deve ser completado junto da polis. Já
Platão aponta uma definição de educação, que pode situar a questão, como
aquela que desde a infância exercita o homem à virtude e inspira o vivo desejo de
chegar a ser um cidadão perfeito que saiba governar e ser governado de acordo
com a recta justiça. A educação deve formar o cidadão. O carácter social da
educação está sempre presente na tradição e no pensamento grego. O homem é
um animal político, diz Aristóteles. A virtude colectiva é a consequência necessária
da virtude individual.
A educação do indivíduo identifica-se com a formação política. O problema
educativo que era para os gregos o problema da vida, devia ser o problema da
vida política. Toda a cidade está empenhada em educar e organizar diversas
actividades com a finalidade de formar as consciências, mediante o contacto
directo e a participação imediata na vida política comunitária.
A educação ateniense na escola e na cidade tinha duas finalidades precisas:
o desenvolvimento do cidadão fiel ao Estado e também a formação do homem
como pessoa que adquiriu plena harmonia e domínio das próprias actividades.
O problema da educação é um problema ético, mas a dimensão política é uma
actividade de cidade.
O homem é, por natureza, um animal político; nele a tendência de viver em
sociedade com os seus próprios semelhantes, não só porque tem necessidade
dos outros para a sua conservação, mas também porque não poderia ser virtuoso
sem as leis e a educação. A sociedade não é uma formação artificial, mas uma
necessidade natural das diversas formas de vida associada; a de Estado é,
cronologicamente, a última a formar-se, mas logicamente é a primeira: defender
os cidadãos e educar física e moralmente a quem participa na vida pública. Em
Aristóteles, ética e política completam-se11.

11
Neste princípio da educação, seguimos de perto Naval (1995).

137
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2. Responsabilidade
 Cadernos de Pedagogia Social

Pode dizer-se que o objectivo da responsabilidade é educar o sujeito para que


adquira a capacidade de tomar decisões responsáveis.
Nesse sentido, deve entender-se a responsabilidade como ser e sentir-se autor
dos próprios actos, como capacidade de presença pessoal, racional e livre para
responder, dar-se conta de si e dos outros; levar para a frente os empenhos que
se assumem; e assumir as consequências pessoais e em grupo da própria acção.
Há também que responsabilizar para a decisão. Esta é o acto pelo qual
acabamos com a indeterminação. Enquanto não decidirmos continuamos na
indecisão. Decidir é acabar com a própria indeterminação a partir de uma energia
que não vem do exterior, mas daquele que decide.
Qual é a responsabilidade face ao outro?
O essencial aqui é que a presença do outro no campo da acção provoca um
descentramento radical da existência: é uma outra existência que vem como apelo
concreto, singular, impondo-se de maneira irrevogável. A missão que é imputada
ao existente vem-lhe de uma alteridade, não de uma instituição, mas de um outro
concreto que a requer precisamente como singularidade, dirigindo-se a uma
singularidade. E ela a requer sob a forma de um apelo que a constitui como
indispensável por relação a uma impotência, relativo a um desejo de ser.
O apelo que vem doutro é reconhecido num sentimento com repercussão
imediata na afectividade, de uma presença que se impõe como requerente e como
estabelecendo uma responsabilidade.

3. Solidariedade
Dizia Tamaro (2002, p. 134-136) que

“a nossa sociedade está doente, considerando o outro como um risco, como um


perigo. Eu possuo. Sou proprietário do meu tempo, da minha casa, dos meus afectos, dos
meus êxitos e não tenho vontade de os partilhar. A vida já não visa a relação com os outros,
mas com as coisas. A gratuitidade que está na base da vida, já não existe ou é olhada com
desconfiança. O desejo torna o homem cada vez mais escravo, já que em vez de se servir
das coisas, passa o tempo atrás e dependente delas. É que mal se satisfaz um desejo
aparece logo outro. É como uma sede que nunca se poderá saciar”.

Fala-se de solidariedade entre as pessoas e os grupos da sociedade do bem-


-estar, mais sensíveis ao sofrimento e ao drama humano. Muitas pessoas no
138
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primeiro mundo praticam-na de forma espontânea. Nas sociedades mais pobres,

 Cadernos de Pedagogia Social


pratica-se a solidariedade como sobrevivência. Nestas sociedades, a solidariedade
é urgente. Torna-se ainda mais urgente quando falta a justiça. Quando falta a
justiça, só a solidariedade é resposta à sobrevivência.
No mundo actual, cresce cada vez mais a sensibilidade frente ao problema da
justiça, frente às injustiças e às suas consequências. Cada vez são mais as
pessoas excluídas dos bens e dos serviços do progresso. Cada vez há mais vítimas
da injustiça. Enquanto há vítimas, todos somos responsáveis pela injustiça,
mesmo não sendo directamente culpáveis. Diante da injustiça, muitas pessoas,
grupos, organizações assumem o compromisso da solidariedade, para exercer
esse “mais” da humanidade e da generosidade, apesar dos esforços dos
organismos oficiais e mesmo não. Portanto, a solidariedade cresceu entre os
muitos sectores da humanidade nos últimos tempos. Pode dizer-se até que esta
projecção global e universal é uma característica da cultura moderna.
Os Meios de Comunicação Social têm contribuído para este espírito de
solidariedade nas pessoas sensíveis ao sofrimento e à necessidade alheia, porque
nos tiraram do nosso pequeno mundo, da nossa casa cercada. Abriram-nos uma
janela para fora, para outros povos, para outros continentes, para outras situações
sociais. Pode então apontar-se que os Meios de Comunicação Social nos
aproximaram das vítimas de dramáticas situações que padece a maioria da
humanidade: a pobreza mundial, fosso entre países pobres e países ricos,
conflitos bélicos, terrorismo, os deslocados, os exilados, os emigrantes, a
agressão às etnias indígenas e a expropriação das terras, exploração laboral das
crianças, processos de marginalização, exclusão das mulheres e de outros grupos
humanos, conflitos étnicos e religiosos, os genocídios, a desertificação, a
poluição, as inundações, os fogos, os terramotos. Surgem-nos algumas questões:
não devemos ser solidários com as vítimas, mesmo que estejam longe? Não
somos responsáveis colectivamente por aquilo de que não somos culpados
directamente? A nossa humanização não depende da humanização e da
dignificação de todas as vítimas? Podemos estar tranquilos, enquanto
contemplamos situações dramáticas? São perguntas para desafiar a nossa
consciência (Díez, 2004).

139
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Não existe o “eu” isolado. Para que haja o “eu”, este deve projectar-se para
 Cadernos de Pedagogia Social

um “tu” que leva ao compromisso entre ambos12. O homem é chamado a


construir um mundo mais humano em que os homens se compenetram como
irmãos.
Como base e fundamento da solidariedade, há que colocar o amor, que passa
por cima de todas as diferenças, que se faz solidário com as necessidades dos
demais.
O amor ao próximo deve ser um amor efectivo que se manifesta nas obras de
solidariedade, porque as obras são expressões de amor e não boas razões.
Escreve João Paulo II13:

“a solidariedade não é um sentimento superficial e vago para os males que sofrem


tantas pessoas próximas e ao longe. É a determinação firme e perseverante de trabalhar
para o bem comum, para o bem de todos e para o bem de cada um, porque todos somos
responsáveis de todos”.

A solidariedade é o próprio esforço ao serviço da colectividade. Desde o


começo da humanidade, o homem sempre necessitou da ajuda dos seus
semelhantes. Nessa altura, as famílias uniram-se para se defenderem dos animais
e dos outros povos. Ao longo dos séculos, os povos uniam-se em vista de
interesses comuns. O homem como ser social não pode viver isolado. Não pode
fazer tudo. Por isso, precisa da ajuda dos outros.
Hoje em dia há muitos movimentos de solidariedade. Em cada 10 europeus,
5 pertencem a uma das quase 3.000 organizações de voluntários. As Nações
Unidas têm 60.000 Organizações Não Governamentais (Moral, 1997, p.3).

12
A etimologia de solidariedade começa na palavra latina solidus que significa moeda forte, estabilidade
económica forte. Posteriormente, o termo passou do campo económico para o jurídico: in solidum é a
obrigação contraída com outros, mas que afecta cada um. Pode também dizer-se que solidariedade é
o modo de direitos ou obrigação in solidum, adesão circunstancial à causa ou à empresa de outros.
No Direito Romano, a solidariedade tem o sentido de obrigação moral, in solidum, de vários sujeitos
em relação a um objecto único e idêntico (por exemplo vários padres párocos in solidum da mesma
paróquia). Actualmente, o termo solidariedade tem um sentido ético para designar a convicção de que
cada ser humano deve sentir-se responsável pelos outros.
13
SRS, nº 38. Este documento de João Paulo II, A solicitude social da Igreja, apresenta-nos os nºs 38,
39 e 40 sobre a solidariedade.
140
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Se definimos a cultura como modo de pensar, sentir e actuar, há que fazer a

 Cadernos de Pedagogia Social


solidariedade no pensar, no sentir e no actuar. Hoje, as principais instâncias de
formação dos modos de pensar, sentir e actuar são a família, o grupo de amigos
e os meios de comunicação social.
A cultura da solidariedade vai-se tornando possível com uma nova cultura da
acção, da participação, da militância e do compromisso específico. A
solidariedade não surge do nada, mas de um determinado cultivo de
mentalidades, sentimentos e vontades. É preciso impulsionar o associativismo
infantil e juvenil de carácter solidário, dado que os valores básicos do indivíduo
cristalizam no período de formação da adolescência e da juventude, antes de
entrar na vida adulta.

4. Voluntariado
Podemos afirmar que os valores mais salientes do voluntariado são a
gratuitidade, a solidariedade, a responsabilidade, espírito de colaboração perante
o ser humano necessitado.
Os jovens e os adultos não têm em geral dificuldade em serem voluntários;
não têm dificuldade em dedicarem parte do seu tempo aos que mais necessitam.
O ser humano possui a capacidade de dar-se com alegria e entusiasmo, ajudando
a dar sentido e razão de viver a quem das mais variadas formas necessita.
O voluntariado é mais do que uma acção. É um movimento. É um estilo de
vida animado pelo amor ao próximo e pela solidariedade com o mais necessitado
e desprotegido. O voluntário procura criar espaços de solidariedade, a fim de
contribuir para a promoção humana integral do outro e favorecer a mudança
pessoal e social na perspectiva da justiça e da solidariedade.
Nanni (1999) afirma que o voluntariado está a assumir um papel cada vez
mais preponderante, sobretudo na escola, porque os jovens têm a necessidade de
propostas novas, de estímulos convincentes e o voluntariado é uma resposta de
empenho.
Ser voluntário é essencialmente uma vocação, porque envolve todo o ser da
pessoa, antes de uma intervenção concreta. O voluntário não é aquele que faz,
mas aquele que é, que está num caminho progressivo de estruturação da sua
personalidade para a oblatividade, para o dom de si. É um processo de
crescimento que se reforça e se orienta para uma nova ocasião de serviço. Este
141
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crescimento é fruto da educação e de escolhas queridas, de modelos e de


 Cadernos de Pedagogia Social

experiências. A liberdade pessoal tem um papel fundamental aqui.


O voluntariado, como facto social organizado, é o primeiro fruto visível desta
maturação porque possibilita várias pessoas num projecto comum. É um modelo
social, donde emergem novos valores, de relações humanas caracterizadas pelo
assumir responsável de situações humanas, de soluções solidárias. Característica
principal do ser voluntário é o envolvimento pessoal, profundo e progressivo num
estilo de partilha e de serviço.
O voluntariado apela normalmente a uma ideia de acção, de laborosidade e
de eficiência. Quando o voluntário é verdadeiro, a sua parte substancial está nas
profundas convicções que constituem a consciência de uma pessoa.
No chamado voluntariado internacional, o elemento caracterizante é a
qualidade da pessoa do voluntário que decide viver alguns anos da sua vida em
serviço desinteressado, numa cultura diferente, em ordem ao crescimento
humano de outras pessoas ou grupos sociais.
A gratuitidade, como atitude para um serviço altruísta e desinteressado, como
tendência a esquecer-se a si mesmo para o bem dos outros, é o aspecto mais
evidente e mais construtivo deste estilo de vida. A gratuitidade não exclui que para
o voluntário esteja previsto um tratamento económico, sobretudo quando é a
tempo inteiro e por muitos anos. Porque, se assim não for, só os reformados, os
consagrados e os que têm bens podem fazer o voluntariado. Seja como for, o
serviço não pode ser fonte de rendimento pessoal.

5. Gratuitidade
A gratuitidade não está, por si, ausente das relações sociais e muitos grupos
humanos praticam-na. Há, no entanto, uma espécie de lógica do intercâmbio. Ao
colocar-se a restituição no interior do intercâmbio, perde-se a dimensão da
gratuitidade. Procura-se a reciprocidade e a equivalência. Presta-se um favor na
intenção de ser recompensado.
No âmbito das actividades económicas, a matriz é o intercâmbio, e nos
chamados mundos vitais14, a gratuitidade funciona como a regra. Na família, há
um cuidado desinteressado pelos outros e, sobretudo, pelos membros mais

14
Os mundos vitais são espaços de experiências gratuitas como a família, voluntariado e outras
instituições com estas características.
142
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débeis, sem esperar nada em troca. A comunidade religiosa funda-se sobre a livre

 Cadernos de Pedagogia Social


pertença e sobre a adesão a um património de valores ideais e espirituais fora do
intercâmbio. Assim, os mundos vitais elaboram uma cultura e uma lógica da
gratuitidade, representam uma espécie de constante apelo à sociedade, para que
não se torne prisioneira exclusivamente da lógica do intercâmbio, sobretudo, nas
relações interpessoais, mas permaneça sempre aberta à lógica do dom.
A gratuitidade indica um dom imprevisto e imprevisível que gera, na relação
com o outro, sentimentos de apreço, de reconhecimento e de gratidão.
As grandes e fortes experiências da vida (da relação de amor à transmissão
da vida, da relação com a beleza natural) são ou devem ser dimensões da
gratuitidade. Nesta dimensão de gratuitidade, coloca-se a vida da família, nas
suas dimensões constitutivas: a relação do casal e a relação pais e filhos; uma e
outra experiência são incompreensíveis fora da lógica do dom, que é o
fundamento da gratuitidade.
A experiência da gratuitidade está na base de uma autêntica experiência de amor.
A maravilha, a surpresa fazem parte da gratuitidade. Às vezes, o amor parece
longínquo. O amor está no horizonte da gratuitidade. Ama-se sem nada pedir em
troca. Quando algo dado é retribuído, esta retribuição aparece como uma surpresa e
como um dom gratuito. A persistência do amor é a permanência desta atitude de
maravilha e de surpresa pelo dom de um outro, sempre novo e diferente, e que nunca
acaba de revelar aspectos até agora inexplorados da sua pessoa.
A sociedade moderna exclui, do próprio horizonte, a gratuitidade. A vida da
sociedade contemporânea está carregada de direitos e de deveres. Desenvolve-se
um trabalho e recebe-se uma retribuição. As próprias relações interpessoais são
substituídas por especialistas de relação. No entanto, fora da esfera da lógica, há
áreas como a beleza, a arte, a contemplação da natureza, a religiosidade e a
família. Esta nasce da experiência da gratuitidade do amor oferecido, aceite e
partilhado. A lógica da família roda à volta da gratuitidade: amor, serviço e
partilha15. A gratuitidade adquire relevo na sociedade. Há que organizar a

15
Há valores éticos fundamentais: a liberdade, como tendência a realizar-se plenamente a si mesmo, no
que se refere à liberdade dos outros; a relacionalidade como tendência a realizar-se, em modo
cooperativo e competitivo, em relação aos outros; a historicidade da existência como tendência a
realizar-se no presente, num diálogo fecundo com o passado, já constituído e herdado, e com um
futuro aberto a novidades e a novas responsabilidades.
143
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sociedade de tal modo que a natureza social e amante do homem não seja
 Cadernos de Pedagogia Social

separada da sua existência social, mas seja uma coisa só. Se o amor é verdadeiro,
é a única solução válida para o problema da existência humana. A sociedade que
exclui o desenvolvimento do amor mais tarde ou mais cedo perece.
O amor, cuja expressão mais alta é a gratuitidade, não pode ser relegado para
a esfera dos sentimentos, mas para a transformação de toda a sociedade. A ideia
de gratuitidade está oculta há muito tempo na sociedade ocidental
contemporânea, mas pouco a pouco vai emergindo. A família é um dos lugares
desta imersão.
Para salvaguardar o espírito da gratuitidade, numa sociedade dominada pela
cultura tecnológica, é necessário defender os espaços de fantasia, de criatividade
e de liberdade, tirados ao dia, que está programado e predeterminado16.
Para Baccharini (2001, p.67-68), o ser humano é constituído segundo uma
lógica de radical gratuitidade. É gratuito. O ser humano é auto-significativo. A
gratuitidade assume-se como sinónimo de totalidade de sentido. A gratuitidade da
pessoa indica uma originalidade, uma principialidade, que a tornam única. A
unicidade e a irrepetibilidade são significativas a partir da lógica da gratuitidade.
A gratuitidade é singularidade. Na gratuitidade ontológica, manifesta-se uma
autosignificatividade absoluta que é o pressuposto da dignidade.

16
A sociedade conhece o momento da alegria, da descontração, do divertimento. Em geral, o princípio
da sociedade não é representado pelo prazer, mas pelo dever e toda a vida social é concebida como
um conjunto de deveres e de obrigações. Nos mundos vitais, esta dimensão de alegria, de
espontaneidade, de liberdade está constantemente presente e constitui a sua alma profunda. Basta
pensar na dimensão do prazer, de alegria, de intercâmbio emocional que caracteriza a relação entre o
homem e a mulher, não só sob o aspecto da sexualidade, e também, a relação entre pais e filhos.
Quando a família é fiel à sua profunda vocação, as relações homem-mulher, pais-filhos são colocadas
no sentido do amor, numa linha de espontaneidade, de liberdade de relações e, não só em direitos e
deveres, obrigações. Na família e na comunidade religiosa, o que conta é a atitude de espontaneidade
nas relações, um contexto de vida relacional, onde há o humor, o riso, aspectos recusados pela
sociedade tecnológica para a qual isto não é útil. Não se entende como a sociedade não conhece a
dimensão da convivialidade. Esta é uma excepção na sociedade, mas uma regra na família. Nesta
atitude à convivialidade, está a força da família. Também a comunidade religiosa é marcada pelas
dimensões de alegria, de criatividade, da espontaneidade de relações que nunca devem ser sufocadas
pela ritualidade da instituição.
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6. Educação para os valores

 Cadernos de Pedagogia Social


Rokeach (1973) divide os valores finais em valores de dimensão pessoal e de
dimensão social. Os valores pessoais ou intrapessoais são centrados na própria
pessoa, e os sociais ou interpessoais são centrados na sociedade.

Valores de orientação pessoal:


 Amor adulto (intimidade sexual e espiritual);
 Dignidade (respeito por si próprio);
 Felicidade (satisfação);
 Harmonia interior (ausência de conflitos internos);
 Igualdade (fraternidade, oportunidades iguais para todos);
 Liberdade (independência, liberdade de escolha);
 Prazer (uma vida agradável e despreocupada);
 Reconhecimento social (admiração e prestígio);
 Sabedoria (conhecimento profundo da vida);
 Salvação (vida eterna);
 Sentido de realização (contributo importante, duradouro);
 Uma vida apaixonante (uma vida activa e estimulante);
 Uma vida confortável (uma vida próspera);
 Verdadeira amizade (companheirismo, camaradagem).

Valores de orientação social:


 Segurança familiar (preocupação com os entes próximos);
 Segurança nacional (protecção contra ataques externos);
 Um mundo de beleza (beleza natural e artística);
Um mundo de paz (sem guerras, nem conflitos).

Os valores instrumentais dividem-se em valores de orientação moral e de


orientação de competência. Os valores de orientação moral referem-se
principalmente a modos de comportamento e não incluem, necessariamente,
valores que dizem respeito à dignidade de cada existência; são os que têm foco
interpessoal e que, quando violados, provocam peso na consciência. Os valores
de orientação de competência ou auto-realização têm um foco pessoal e não
parecem estritamente ligados à moralidade (Rokeach, 1973).
145
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Valores de orientação de competência:


 Cadernos de Pedagogia Social

 Ambicioso (trabalhador, com aspirações);


 Capaz (competente e eficaz);
 Controlado (autodisciplinado e contido);
 Espírito aberto (mentalidade aberta);
 Imaginativo (criativo e ousado);
 Independente (auto-suficiente, autoconfiança);
 Intelectual (inteligente, ponderado);
 Lógico (coerente, racional);
 Responsável (confiança, seguro).
 Valores de orientação moral:
 Afectuoso (terno, carinhoso);
 Alegre (bem disposto, jovial);
 Corajoso (defensor das suas convicções);
 Educado (cortês, com boas maneiras);
 Honesto (sincero, verdadeiro);
 Limpo (metódico, arrumado);
 Obediente (respeitador, cumpridor);
 Prestável (pronto a ajudar);
 Tolerante (tendência para perdoar os outros)17.

Quando se trata de referir outros valores, como proposta da ALVD, não


presentes na escala de Rokeach, predominam os valores, tais como: a
solidariedade, a justiça e a gratuitidade o voluntariado, a partilha, o serviço, a
cooperação, a fraternidade, o diálogo e a disponibilidade, o trabalho, a saúde, a
economia e o sucesso, entre outros.
Os valores encontram-se na família, nos colegas, nos amigos, nos grupos, e
nos conhecidos. É necessário ver de outra maneira, resgatar o carácter quotidiano
do valor. Torna-se necessário descobrir os valores de cada um, tomar consciência
deles e ver até que ponto orientam a própria vida. Se uma pessoa não descobre
o positivo em si, também não o vai descobrir nos demais.
A educação para os valores concretiza-se na experiência e na realização do
valor. O destino do ser humano é, antes de mais, acção. A acção é a forma
fundamental da existência social do homem. Não se dá educação separada da
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acção, da práxis. A apropriação do valor passa, necessariamente, pela sua

 Cadernos de Pedagogia Social


descoberta, através da experiência, na realidade imediata e significativa para o
educando. Só quando o valor é posto em prática pelo próprio sujeito, quando ele
tem experiência da sua realização pessoal, desse valor, pode dizer-se que se dá a
apropriação do valor. Assim, os valores aprendem-se e praticam-se. Além de uma
clarificação do valor, há que propor aos educandos o compromisso para um
determinado valor, para assim perceber a vinculação entre este e práxis e fazer da
práxis o meio privilegiado da educação ou apropriação do valor (Ruiz & Vallejos,
2001), com o apoio imprescindível do educador.

147
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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 151-162

Direito ao trabalho e cidadania social


– A educação ao serviço da solidariedadel1
Maria Helena Magalhães da Silveira Ribeiro2

Resumo
Neste artigo procuramos reflectir sobre o direito ao trabalho e os novos
desafios que se colocam à integração socioprofissional num cenário de
precariedade e vulnerabilidade, tentando evidenciar as possibilidades de
intervenção sócio-pedagógica a este nível. Assumindo uma perspectiva
direccionada para a mudança positiva, entendemos que é urgente promover
dinâmicas sociais conducentes a uma (re)configuração das políticas de
«protecção» social, em conformidade com as exigências de flexibilidade vindas
de uma sociedade laboral em constante mudança. Esta reflexão insere-se
numa investigação em curso sobre o direito ao trabalho num quadro de
cidadania solidária, realizada no âmbito do Mestrado em Pedagogia Social e
tendo por base a nossa experiência profissional na área de promoção da
empregabilidade, concretamente na Associação Metropolitana de Serviços, no
desenvolvimento e implementação de projectos com vista à promoção da
empregabilidade na área metropolitana do Porto, encerrando tipologias
diversas: desde as acções de diagnóstico, à formação profissional e à gestão
de redes institucionais e de parcerias estratégicas na prossecução destes
objectivos.

1
Este artigo surge no âmbito do mestrado em Pedagogia Social, como trabalho de avaliação na
Disciplina de Politicas Sociais, leccionada pela Professora Isabel Baptista.
2
Socióloga, Mestranda em Pedagogia Social na UCP, técnica dinamizadora de um projecto de
intervenção na Associação Metropolitana de Serviços.
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Introdução
 Cadernos de Pedagogia Social

Consideramos que uma estratégia de combate à precariedade do emprego,


subordinada a princípios de desenvolvimento humano obriga a reflectir hoje sobre
a própria natureza dos laços sociais. Neste sentido, o nosso estudo procura lançar
pistas e hipóteses na concepção de propostas, tendo sempre em conta que a
intervenção só ganha sentido num contexto em que se promove a capacitação
humana para a construção de uma cidadania solidária, em que a participação
constitui uma das vertentes.
Esta reflexão parte da identificação de três fenómenos de vulnerabilidade
social, que surgiram naturalmente das inquietações profissionais sentidas: a
“precariedade laboral”, associada ao desemprego e ao emprego precário, a
“discriminação social”, fruto de uma sociedade discriminadora e fragmentada, e
as “dificuldades no acesso a uma educação plural”, associada a práticas
educativas pré-formatadas e desajustadas.
No seguimento destas preocupações, os direitos sociais que identificamos
passam por três vectores fundamentais nos percursos de vida de cada um de nós:
o direito ao trabalho, o direito à diferença e o direito a uma cidadania solidária.
Num terceiro momento, passamos a identificar três desafios de cidadania de
acordo com um enquadramento sócio-pedagógico que busca, antes de mais, o
respeito pelos direitos acima enunciados: a “promoção de desenvolvimento
humano sustentável”; a “construção de uma relação social solidária” e a
“construção de comunidades educadoras e aprendentes”.
É pois a partir destes enunciados que procuramos sustentar algumas
“possibilidades de intervenção sócio-pedagógica”. Importa também clarificar este
conceito a que nos referimos ao longo do artigo: a intervenção sócio-pedagógica
pretende antes de mais uma mudança positiva, ancorada no postulado da
aprendizagem ao longo da vida e na perfectibilidade das pessoas. Intervindo nas
“zonas de interacção humana” (Baptista: 2007), ela aposta na capacitação das
pessoas e no respeito pela especificidade de cada um. Uma intervenção sócio-
pedagógica assume desde logo a importância do laço social e toma como
referência base os valores de proximidade, cidadania, alteridade e comunidade.

152
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Direito ao trabalho e desafios de cidadania

 Cadernos de Pedagogia Social


No que toca aos desafios de cidadania a assumir na garantia do direito ao
trabalho, a intervenção sócio-pedagógica poderá actuar em dois níveis: por um
lado, o reforço (ou mesmo redefinição) das políticas sociais no que concerne os
apoios e acompanhamento das pessoas em situação de desemprego que estão
neste momento fortemente direccionados para quem possuía uma integração dita
estável, (i.e., apenas os contratos de trabalho com um limite mínimo de duração
garantem a protecção social no desemprego por um período igualmente limitado).
Segundo Joaquim Azevedo e António Fonseca, o esbatimento da noção de
compromisso salarial e de vínculo tem sido tão significativo que chega mesmo a
desaparecer. Zygmunt Bauman fala mesmo de um “rompimento irreparável” do
eixo da vida que girava em torno do trabalho e da decadência acelerada da
experiência de comunidade (Bauman em Azevedo e Fonseca: 2007).
No cruzamento deste cenário com as politicas sociais promovidas pelos
poderes públicos, Gilbert Clavel (2004) aponta também contradições claras. É que
“a iniciativa dos poderes públicos, paradoxalmente, e em nome da luta contra o
desemprego e a exclusão, desenvolveu uma série de medidas que são, tanto
formas precárias, como atípicas de emprego.” Os poderes públicos, numa
tentativa remediativa, acabam por reforçar os ciclos da precariedade, propondo
respostas insuficientes e insatisfatórias.
A questão central é que as politicas sociais nesta área apenas se resumem a
uma intervenção institucional que enceta uma contratualização com as pessoas
em situação de desemprego, contratualização essa que apenas as inscreve em
deveres, ignorando os seus objectivos de vida, a sua realização pessoal através do
trabalho, buscando antes mais uma colocação rápida e descaracterizada, assente
no primado económico.
Robert Castel, um dos investigadores de referência nas questões da exclusão,
propõe ele mesmo o “repensar da protecção social” no sentido de inverter a
tendência de uma organização social em que as pessoas “não dispõem de um
mínimo de recursos, de apoios e de direitos para conduzir a sua existência social
com um mínimo de independência” (Castel: 2006). Esta reflexão pode levar-nos
um pouco mais longe, na medida em que lança pistas para a compreensão de um
novo conceito de exclusão; é que “sujeitos integrados tornam-se vulneráveis,
153
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particularmente devido à precarização das relações de trabalho, e as


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vulnerabilidades oscilam quotidianamente para aquilo que chamamos de


exclusão” (Castel: 1995).
A percepção empírica que temos do fenómeno é que a perda do emprego
resulta muitas vezes na perda das protecções e que quanto menor for a força
desta relação, mais fracas se tornam as redes de sociabilidade das pessoas e se
vão reduzindo as possibilidades e as condições para uma nova integração sócio-
profissional.
Esta percepção é também balizada pelo estudo levado a cabo pelos autores
Joaquim Azevedo e António M. Fonseca sobre “os imprevisíveis itinerários de
transição escola-trabalho” em 2007, no qual é possível constatar que, em situação
de desemprego, o recurso a redes sociais e informais de apoio é bem mais
expressivo do que o recurso ao IEFP, o que coloca a tónica na importância das
redes de contactos e solidariedades, às quais os desempregados vão tendo cada
vez menos acesso, com o avançar do tempo.
Retomando a perspectiva de Robert Castel, segundo a qual, as medidas de
protecção social do Estado-Providência se refugiam sobretudo nos imperativos de
natureza sócio-económica ditados pela instabilidade do mercado de emprego, isso
leva-nos a ponderar a necessidade de repensar o próprio conceito de Estado-
Providência, da mesma forma que o autor propõe o repensar das protecções
sociais, balizadas até agora num conceito de pobreza residual, mas que se tem
vindo a modificar ao longo dos anos, e para o qual já não servem as respostas
ditas tradicionais. A “nova pobreza” refere-se, na maioria dos casos, a “situações
que traduzem uma degradação relacionada com um posicionamento anterior.
Assim é a situação de quem vive um trabalho precário ou que ocupa uma moradia
de onde pode ser expulso se não cumprir com os seus compromissos” (Castel:
1995).
Deste modo, as novas políticas poderão ser concebidas num quadro de mais
e melhor desenvolvimento humano, dotando os cidadãos de competências e
capacidades necessárias a uma definição conjunta dos novos lugares sociais
(Dortier: 2001), e sobretudo para que possam ser agentes activos na construção
de uma cidadania solidária.

154
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Emprego e compromisso social das empresas

 Cadernos de Pedagogia Social


Ora, por outro lado, se é um facto que as políticas sociais para o emprego se
encontram fortemente condicionadas pelo mercado de trabalho e pelas
oportunidades que dele vão surgindo, também é verdade que as entidades
empregadoras se habituaram a instrumentalizar as pessoas enquanto recursos
humanos, buscando incessantemente o super-trabalhador detentor de todas a
competências pessoais, sociais e técnicas humanamente possíveis. Num estudo
levado a cabo pela Associação Metropolitana de Serviços entre 2005 e 2006,
junto das entidades empregadoras da Área Metropolitana do Porto, as
características consideradas decisivas para a admissão de um novo funcionário
passam por uma bateria de competências que vão desde a Seriedade/Lealdade
como a mais decisiva até ao Domínio da Função a desempenhar, passando pelo
empenho, a pontualidade e assiduidade, bem como o bom relacionamento com
os outros (Cf. «Entre empresas e trabalhadores: o mercado de trabalho na grande
área metropolitana do Porto», A:M:S: 2006)3
Esta não deixa de ser uma situação paradoxal: o nível de exigência das
entidades empregadoras coloca a tónica em perfis pessoais e sociais, ligados a
valores de integridade e respeito pelo humano, mas também é verdade que temos
assistido, e muito concretamente a partir do final dos anos 90, a uma série de
iniciativas empresariais que “recorrem a modos muito diferenciados de
aproveitamento do conhecimento, da inteligência, e da capacidade criativa dos
seres humanos, e que se cruzam num ambiente social marcado pela cada vez
mais difícil articulação harmoniosa entre o mundo da educação e da formação, e
o mundo da trabalho e do emprego” (Azevedo e Fonseca: 2007).
Neste cenário de aproveitamento e precariedade, o desafio que se coloca à
Pedagogia Social poderá passar por uma intervenção junto das entidades
empregadoras no sentido destas desempenharem um papel relevante na
promoção da empregabilidade, muito concretamente na promoção da educação e

3
Este estudo foi desenvolvido pela Associação Metropolitana de Serviços, no âmbito do PAFE (Plano
Assistido para a Formação e Emprego, financiado ao abrigo da medida 5121 do POEFDS. A questão
relativa às qualidades dos trabalhadores consideradas decisivas para a sua contratação, foi concebida
sob a forma de uma escala de atitudes, na medida em que os inquiridos se posicionavam perante as
competências (variáveis) pré-estabelecidas.
155
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no combate ao emprego precário, invertendo a forte tendência de desfiliação da


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sociedade salarial, recorrendo assim a uma expressão utilizada por Robert Castel.
Trata-se de traçar um caminho de compromissos mútuos, envolvendo as
entidades geradoras de emprego na concepção de novas estratégias que,
acompanhando as transformações do mercado de trabalho e das novas
competências por ele exigidas, assegurem a protecção das pessoas “em situações
de mobilidade, alternância entre dois empregos, mudança de emprego, de
reciclagem…”, em suma, que “associe novas protecções a novas situações”
(Castel: 2006).
Trata-se também de combater a degradação do modelo de sociedade salarial
tradicional e promover a urgente humanização das novas relações de trabalho.
Sendo admissível que as empresas buscam o lucro, e que dele depende a sua
sobrevivência, é também um facto há muito balizado pela sociologia das
organizações, pela psicologia do trabalho e mesmo pela gestão de recursos
humanos, que a promoção de um ambiente de trabalho propício ao
desenvolvimento das pessoas, e as estratégias de motivação individual para as
tarefas (intrínseca e autónoma), contribuem decisivamente para o sucesso
empresarial. De acordo com o estudo acima mencionado, “é possível que as
empresas possam realizar uma gestão mais consciente e clara, conseguindo um
melhor ambiente de trabalho e obtendo um maior comprometimento dos seus
funcionários, com relações mais consistentes com os seus fornecedores e clientes
e uma melhor imagem face à comunidade” (A.M.S: 2006).
A assumpção deste tipo de comprometimento conduz a uma mudança
cultural, de valores e atitudes, contribuindo para a construção de uma sociedade
mais justa e solidária. Mas a introdução de certas premissas éticas nos negócios
pressupõe o respeito pelo direito, os valores, princípios e interesses de todos
aqueles que, de uma forma ou de outra, são por ela afectados, isto é, “valores e
transparência direccionados para os públicos internos, meio ambiente,
fornecedores, consumidores e clientes, comunidade, governo e sociedade”
(ibidem), que muitas das vezes não são “considerados compatíveis” com a
sustentabilidade económica das entidades empregadoras.
Se nas dinâmicas de contratação, as empresas inquiridas pela A.M.S.
manifestaram claramente uma atitude positiva face à prioridade que dão à
contratação de pessoas em situação de desemprego (55,3%), o mesmo não
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acontece em relação às pessoas em situação de desemprego de longa duração

 Cadernos de Pedagogia Social


(agregando apenas 18,2% de respostas). Por seu turno, nas dinâmicas de
modalidade contratual, e estabelecendo aqui uma ponte com os dados presentes
no estudo levado a cabo pelos autores Joaquim Azevedo e António Fonseca, estes,
apontam precisamente para o crescimento da precariedade dos vínculos laborais:
em Portugal, “entre 1994 e 2004, quase duplicou a percentagem de activos com
contrato de trabalho não permanente” (Azevedo e Fonseca: 2007), passando de
12% para 21%.
Ora, neste quadro de precariedade (contratos de trabalho de curta duração,
estágios profissionais que não se concretizam em empregos, a chamada moda
dos recibos verdes, e o trabalho temporário) as empresas cada vez menos se
constituem como espaço de realização pessoal, de acolhimento da diferença, de
enriquecimento humano, mas antes como um espaço de promoção da
precariedade laboral, de insegurança e de instabilidade, o que, em última análise,
conduz as pessoas a um estado de precarização da existência e de gestão do
incerto (na medida em que a instabilidade laboral, como fenómeno macro, afecta
todas as outras dimensões da vida das pessoas).
Gilbert Clavel interpela-nos também neste sentido: “se este movimento da
precarização do trabalho é sintomático da degradação do modelo de sociedade
salarial tradicional, cria as condições que possibilitam um processo de exclusão
de maior amplitude do qual o desemprego representa um termo problemático.”
(Clavel: 2004).
Este não é um contexto desejável para nenhum sector da sociedade, pelo que
o segundo desafio para a Pedagogia Social será então o trabalho com as
empresas na constituição destas como espaço de realização pessoal para os
trabalhadores, na consciencialização de que a segurança profissional conduz à
motivação e satisfação individual dos trabalhadores e que esta constitui um factor
de produtividade e diferenciação estratégica.
Para além disso, é necessária a tomada de consciência de que são as pessoas
que fazem as empresas - capital humano em detrimento do capital-máquina, e
que estas são sobretudo o reflexo do humano, que o acolhimento da diferença e
a relação humana solidária dentro de uma estrutura organizacional produtiva
podem ser também factores de diferenciação estratégica num quadro de
competitividade.
157
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Independentemente das questões de ordem económica e estratégica já


 Cadernos de Pedagogia Social

referidas anteriormente, permanece o ponto central: é que a estabilidade


profissional das pessoas que constroem a empresa, e o respeito pelos direitos que
lhes assistem enquanto trabalhadores são igualmente decisivos, pois é a partir
deles que a empresa se constitui como espaço de acolhimento, de construção de
valores e espaços comuns, em suma, de criação de cultura organizacional. Neste
sentido, qual é a missão da empresa? “Podemos dizer que se trata de gerar lucro.
Ponto Final. Podemos insistir na performance, na tecnologia… mas também
podemos considerar que a empresa é uma forma de vivermos juntos e de
construir sociedade” (Sainsaulieu em Cabin: 2001).
Partindo deste pressuposto, só a permanência potencia a dinamização das
relações de sociabilidade, de construção e partilha de espaço e valores comuns,
em suma, da construção da relação laboral solidária ancorada num conceito de
empresa como “comunidade com lugar à mesa para todos” (Marques em
Baptista: 2007) da qual nos fala Rui Marques, e na qual “se partilha desde logo
a tarefa de pôr a mesa, promovendo-se assim a capacidade de se gerar história
conjunta” (Baptista: 2007).

Capacitação das pessoas: o sentido da intervenção


sócio-pedagógica

No que concerne o “direito à diferença” e à “cidadania solidária”, os desafios


passam por dois vectores fundamentais: por um lado, o fomento das
comunidades educadoras e aprendentes como resposta à situação de
vulnerabilidade decorrente de práticas e respostas educativas pré-formatadas
(prontas a consumir) e desajustadas dos objectivos de vida e de realização
pessoal de cada um. É importante, antes de mais, “perceber no terreno como é
que os homens e mulheres que trabalham e aprendem ao longo da vida estão a
ser capazes na sociedade do conhecimento, de se adaptar a essa sociedade, de
desenvolver as suas capacidades e de se realizar enquanto pessoas” (Azevedo e
Fonseca: 2007).
Por outro lado, a construção de uma relação social solidária só é possível num
quadro de acolhimento, partilha e comunhão da diferença, i.e., das características
158
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de cada um de nós que nos demarcam enquanto seres humanos únicos, que

 Cadernos de Pedagogia Social


enriquecem a dinâmicas das comunidades e das relações entre as pessoas, e
que, em última análise, constroem identidade comum.
No cerne destas questões estão então as práticas educativas (ancoradas no já
referido paradigma da aprendizagem ao longo da vida) e a capacitação humana
para a participação cidadã. Se por um lado, e partindo dos pressupostos
advogados por Isabel Baptista, a comunidade aprendente deve funcionar como
uma “zona de encontro inter subjectivo” e partilha de saberes, talentos e
experiências, tendo por base a relação solidária, em que as pessoas não se
encontram pelas suas similaridades, mas sim pela riqueza que reside nas suas
diferenças – é esta a alquimia da relação humana. Por outro lado, ela só ganha
sentido num contexto de participação cidadã responsável.
O desafio que se coloca é então a construção de uma intervenção sócio-
pedagógica ancorada numa multidisplinariedade e num conjunto de saberes,
abertos à diferença e ao diálogo. Não se trata apenas da necessária “capacitação
subjectiva” (Baptista: 2007) das pessoas para a participação cidadã, mas
também, e acima de tudo, de “cuidar do espaço relacional” (ibidem) onde as
interacções se desenvolvem e onde as intervenções fazem sentido. Atrevemo-nos
até a ir um pouco mais longe, considerando que o fundamental num projecto de
intervenção é a construção com e não a construção para. Não se trata de acolher
e “consumir” a diferença do outro, mas de construir uma nova identidade com
ela.
Concretizando um pouco mais, o objecto da intervenção social (no quadro da
Pedagogia Social) não são as pessoas, nem os lugares (território), mas sim a zona
de interacção entres eles – aquilo que designamos por terceiro lugar e que
podemos aproximar do conceito que Giddens (num enquadramento de alternativa
politica mais solidária) designou por Terceira Via. É neste espaço que a
organização das solidariedades sociais ganha sentido, tendo em conta que todos
somos sujeitos de vulnerabilidade: basta pensar nos fenómenos potenciadores de
vulnerabilidade social como a saúde, o emprego, os afectos, a solidão. Ora esta
ideia não deixa de contrariar a visão clássica dos projectos de intervenção
assentes numa espécie de discriminação positiva, pautados por uma filosofia de
intervenção guiada pelo défice (por aquilo que as pessoas não são, não detêm e
não possuem), mas esta ruptura é tão urgente como necessária, precisamente
159
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porque se quisermos construir novos lugares sociais em prol do desenvolvimento


 Cadernos de Pedagogia Social

humano (e sustentável), temos de partir de uma base positiva, e não de um


enunciado de fragilidades. Podemos partir da mesma ideia na análise do
fenómeno da exclusão: “de tanto se repetir a ladainha da ausência, oculta-se a
necessidade de analisar positivamente no que consiste a ausência. Isto por uma
razão de fundo: os traços constitutivos das situações de exclusão, não se
encontram nas situações em si mesmas” (Castel: 1995).
Ainda no seguimento do que nos é proposto por Isabel Baptista, não podemos
deixar de concordar que é partindo deste pressuposto que se constrói a verdadeira
cidadania solidária, ancorada nos valores de proximidade e comunidade, mas
também defendemos que a via é a participação cidadã, pelo que um dos desafios
que se coloca à Pedagogia Social é a capacitação das pessoas para a participação
activa num “projecto de sociedade” ao longo de toda a sua vida.
Daí a necessidade do construir com, e da criação de condições para a
participação cidadã responsável - uma educação para a cidadania ancorada em
três vectores: mostrar às pessoas os seus direitos e os seus deveres, desenvolver
as suas capacidades, estimular o trabalho em equipa e o sentido de comunidade,
ancorados em dois paradigmas fundamentais – a educação ao longo da vida e a
relação social solidária.

Considerações Finais
No final deste texto, e como matéria de reflexão que tencionamos prolongar
num projecto de investigação conducente ao grau de Mestrado em Pedagogia
Social, importa lançar algumas possibilidades de aprofundamento sócio-
pedagógico às inúmeras inquietações aqui levantadas: desde o repensar as novas
formas de actuação política no que concerne as protecções sociais, à situação de
precariedade laboral que nos obriga a uma quotidiana gestão do incerto. Importa
reflectir sobre o lugar das entidades geradoras de emprego na concepção destas
respostas, e a possibilidades de intervenção que advêm da aprendizagem ao
longo da vida, que pode assumir aqui novos contornos, reforçando o sentido de
empresa-comunidade.
O desafio maior talvez seja ainda a promoção da capacitação das pessoas
para o exercício de uma cidadania solidária quando a nossa vivência está tão
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fortemente marcada por lugares de incerteza. Reconhecendo a importância da

 Cadernos de Pedagogia Social


educação no processo de desenvolvimento humano, concretamente na promoção
de mudanças positivas, pensamos que estas são questões fundamentais para a
Pedagogia Social.

161
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Bibliografia de referência
 Cadernos de Pedagogia Social

Azevedo, Joaquim e Fonseca, António; (2007). Imprevisíveis itinerários de


transição escola-trabalho, Vila Nova de Gaia, Edição da Fundação Manuel Leão.
Baptista, Isabel; 2007. Políticas de alteridade e cidadania solidária - As pergun-
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Cavaco, Paula e Ferreira, Hélder (coord.). 2006. Entre empresas e
trabalhadores: o mercado de trabalho na grande área metropolitana do Porto,
Participação de Cristina Novo, Elvira Lopes, Helena Ribeiro e Hélder Ferreira.
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Sciences Humaines, Hors Série, n. º 33, Junho – Agosto de 2001.
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Giddens, Anthony; 1999. Para uma Terceira via. Lisboa: Editorial Presença.

162
CPSocial_2.qxp 23-04-2008 12:14 Page 163

Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 163-178

Situações de risco: jovens “sem projecto de


vida”, a construção de um objecto de estudo
Maria Sara de Lima Dias2 | Dulce Helena Penna Soares3

Resumo
O presente texto procura articular as temáticas do risco e da vulnerabilidade
social como condições pensadas sob o pano de fundo da inserção profissional
dos jovens universitários. Com a intenção de revelar aproximações possíveis
entre as áreas da Psicologia e da Pedagogia Social sobre um mesmo objecto
de estudo, a vida dos jovens recém-formados e suas expectativas de futuro
profissional, pretende-se evidenciar a trama humana que acompanha
percursos existenciais marcados pela ausência de «projecto de vida».

1
Este artigo surge no âmbito do mestrado em Pedagogia Social, como trabalho de avaliação na
Disciplina de Politicas Sociais, leccionada pela Professora Isabel Baptista e insere-se numa pesquisa
de doutoramento em curso desde o ano de 2005, conforme Programa de Pós-Graduação de Psicologia
da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.
2
Universidade Federal de Santa Catarina – Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Doutoranda do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC.
3
Universidade Federal de Santa Catarina – Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
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“O profeta é aquele que anuncia e denuncia. Anuncia aquilo para que o ser humano foi
 Cadernos de Pedagogia Social

essencialmente criado, e denuncia os esquemas que atentam contra o seu destino.”

Leonardo Boff

Introdução

Ao reflectir sobre as chamadas situações de «risco», somos remetidos para


um conjunto de dificuldades que atingem o ser humano e o colocam em uma
situação de vulnerabilidade social. Do ponto de vista ético é preciso ressalvar que
o uso da expressão «jovens sem projecto de vida» não contempla qualquer
avaliação negativa sobre as trajectórias existenciais e referência. Actualmente a
projecção de si mesmo no tempo e no espaço futuro esvai-se sob a condição de
insegurança vivida por muitos jovens recém formados, traduzindo-se numa falta
de perspectivas de futuro, um viver “sem projecto”. É a partir desta constatação
que desenhamos o nosso objecto de estudo, configurando um campo de possível
acção e intervenção da pedagogia social em interface com a psicologia.
Segundo o dicionário Michaellis, a palavra “risco” deriva do latim resecare que
significa “cortar”. Está ligada à condição de estar em risco, ou seja, à
possibilidade de perigo, incerto, mas previsível, que ameaça de dano a pessoa ou
a coisa. Existe uma abordagem problematizadora das teorias do risco, integrando
os debates mais recentes sobre estas condições sociais. De uma maneira ampla,
as situações de risco são condições de vulnerabilidade social (Castel, 1998), que
se constituem como percepções mais ou menos previsíveis de insegurança
quanto ao futuro.
Os sujeitos em risco, geralmente são pessoas, que podem estar de alguma
forma excluídas de seus direitos sociais. Sofrem, pois, de diversos modos de
exclusão social: do direito ao abrigo, a comida ao trabalho à escola ou à saúde.
Para Robert Castel (1998), o tipo de formação social que conheceu seu apogeu
ao redor dos anos 70, caracteriza-se por uma condição salarial sólida, ligada aos
direitos sociais consistentes como: o direito ao trabalho e à protecção social. Para
este autor falar da sociedade salarial é falar de suas protecções, constituídas a
partir das conquistas históricas dos trabalhadores. Actualmente o capitalismo
encontra-se numa fase muito mais agressiva e individualista, devido à concor-
164
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rência mundial e a falta de trabalho ou à precarização do mesmo, o que afecta os

 Cadernos de Pedagogia Social


indivíduos na sua subjectividade, culpabilizando-os pela sua condição de «seres
em falta». O discurso do desemprego desloca-se para uma justificativa individua-
lista, que recai sobre as pessoas que acabam reafirmando suas incapacidades
para ocuparem postos de trabalho. Permite, portanto a possibilidade de se acusar
a vitima, com um retorno da condição de exclusão e da culpa do desemprego,
sobre a mesma. Diante deste quadro, como nos aponta Castell (1998) o indivíduo,
encontra-se em risco de perder seu estatuto de segurança social, ou de ser capaz
de conduzir sua vida, com um mínimo de recursos materiais necessários Assim
sendo, de certa forma mesmo as pessoas que não se sentem excluídas
socialmente podem estar vivendo diversos tipos de ameaças de riscos sociais.

Da exclusão à vulnerabilidade
No contexto da sociedade contemporânea, o conceito de exclusão social
parece cada vez mais desprovido de significado, uma vez que todos estão imersos
na mesma realidade, conforme alerta Robert Castel (1997), tornando necessário
então explicitar a forma como se vai abordar o conceito. O termo «exclusão» é
aqui usado para descrever processos de degradação de relações sociais de
maneira ampla e de relações referentes ao mundo do trabalho de maneira mais
específica. Remete aos problemas decorrentes da insuficiente oferta de serviços
pelo Estado, como educação, saúde, transporte, saneamento, denunciando a
desigualdade implícita na distribuição destes serviços públicos. Neste trabalho,
usamos o conceito de “exclusão” relacionando-o à retracção do número de postos
de trabalho e em relação a perdas de direitos políticos e direitos sociais dos
trabalhadores, considerando que esta perda ocasiona situações de
vulnerabilidade.
Assim, se a propriedade social permitiu ao indivíduo construir a partir do
trabalho uma certa autonomia pessoal, condição da sua independência, hoje em
dia as pessoas têm dificuldade em encontrar espaços onde possam exercer sua
autonomização por razões derivadas do fenómeno do desemprego. “Para a
maioria dos indivíduos o trabalho, é de todas as actividades, a que ocupa a maior
parte das suas vidas (Giddens, 2007). O trabalho, ou mais exactamente o
«emprego», funciona como elemento estruturador na constituição psicológica das
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pessoas e no ciclo das suas actividades diárias funcionando como condição de


 Cadernos de Pedagogia Social

sua autonomização.
A vinculação laboral cria condições de vida que permitem aos sujeitos serem
actores e autores de sua história pessoal. Como podem as pessoas em situação
de desemprego conduzir a sua existência de forma positiva? É na resposta a esta
questão que procuramos delinear a interface entre a pedagogia social e a
psicologia. Tendo em consideração os pressupostos conceituais da pedagogia
social, de que somos todos os sujeitos do presente e, nessa condição, autores de
futuro (Baptista, 2008), pensamos que a presença da acção sócio-pedagógica se
torna cada vez mais necessária para compreender e enfrentar os desafios
provocados pelas novas relações de trabalho.
Durante muito tempo a via do emprego inscrevia o sujeito num universo de
estabilidade e cultura comum. Actualmente vários problemas afectam o
trabalhador, desde a condição de desemprego ou precariedade, mas também a
própria necessidade de mobilidade dos indivíduos (Cabin, 2001). Os
trabalhadores estão submetidos a formas de remuneração obscuras e flexíveis,
ocasionando um enfraquecimento do compromisso dos indivíduos dentro das
empresas e também dentro da sociedade. O trabalhador encontra-se cada vez
mais isolado, tanto no que se refere ao trabalho em equipa dentro das empresas
quanto no que refere à luta por seus direitos. Consequentemente, encontra-se
cada vez mais desprotegido ou em situação de vulnerabilidade.
De certa forma, toda a humanidade está exposta a situações de risco, desde
as que se referem a dimensões globais como a escassez de alimento no mundo
ou as transformações do ecossistema até às dimensões pessoais.
Especificamente ao pensar no trabalho numa economia globalizada, as pessoas
desprovidas dos meios de produção, aquelas que têm de viver da venda de sua
força de trabalho, não encontram condições de segurança social. Para Sennett
(1998) mesmo as pessoas que hoje se encontram empregadas, sentem a falta de
controlo sobre seu tempo e sobre o seu espaço, devido ao tipo de trabalho flexível
e de curto prazo que tem sido a forma mais privilegiada de contrato. O debate
sobre assuntos de interesse comum relacionados com a vivência ou a expectativa
do risco eminente, constitui um campo de acção da pedagogia social com a
mediação da psicologia e de demais áreas afins. Principalmente no que diz
respeito à possibilidade ou impossibilidade do sujeito trabalhar ou tecer
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expectativas em torno de sua empregabilidade e, a partir daí, se projectar

 Cadernos de Pedagogia Social


plenamente como sujeito de perfectibilidade (Baptista, 2007a). O grande desafio
da sociedade actual passa pela aprendizagem de novas formas de ser, estar,
conviver e fazer de modo a tornar-se capaz de transformar o seu meio social. Esta
é uma questão fundamental para a pedagogia social, considerando a necessidade
de investir na capacitação dos sujeitos e ao mesmo tempo aprendendo a lidar
com o sentimento de vulnerabilidade permanente a que todos estamos sujeitos.

Sobre a vulnerabilidade do trabalhador


Entre os riscos relativos ao trabalho, temos o trabalho precário, em penosas
condições, insalubre, mal remunerado, ou ainda a própria ausência do trabalho,
que pode gerar consequências danosas para o sujeito (Castells, 2002). A vivência
em constante situação de desemprego pode levar à pobreza, à perda de status, à
perda de disciplina temporal e rotina diária, à desagregação da vida familiar. Em
geral, o desemprego contribui ainda para aumentar os índices de criminalidade e
violência. Uma forma de compreender como as mudanças do trabalho afectam a
vida das pessoas em sociedade é confrontar as perspectivas de carreira actuais
com as do passado e compreender que as trajectórias profissionais são
radicalmente diferentes, no espaço de uma única geração (Sennett, 1998). Estas
mudanças de carreira e trabalho posicionam o sujeito num campo de extrema
complexidade, criando contrariedades no que diz respeito a traçar perspectivas de
futuro ou definir um projecto de vida.
Neste artigo, o conceito de «projecto de vida» será analisado na perspectiva
da antropologia, considerando que “a noção de projecto pode ajudar na análise
de trajectórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-histórico, sem
esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades” (Velho, 1994)
A par dessas considerações, utiliza-se o conceito de projecto de vida como uma
orientação colectiva, sempre produzida por reflexões que o sujeito pode ou não
tecer sobre as condições e o contexto em que se encontra inserido. O que resulta
em dificuldades de toda a ordem (Castel, 1998), pois para pensar o futuro, o
sujeito necessita de certa estabilidade no presente. Portanto se os direitos
constitutivos da sociedade salarial é que permitiam ao sujeito planejar a sua vida
e se isto não é possível, podemos dizer que encontraremos jovens sem projectos
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de vida, uma vez que a insegurança social é uma condição geral da grande
 Cadernos de Pedagogia Social

maioria das pessoas no século XXI.


Neste contexto, como podem os jovens reflectir ou o pensar o seu futuro na
sociedade? Para Edgar Morin (2003) “a dificuldade em compreender o Estado-
-Nação reside no seu carácter complexo”. Para pensar o Estado-Nação, o autor
incita-nos a pensá-lo como uma entidade ao mesmo tempo territorial, político,
cultural, histórico, místico e religioso. Associando as noções de comunidade e de
sociedade, valorizamos este carácter cultural/histórico das dinâmicas sociais.
Toda a sociedade é cultural pelos seus valores, usos e costumes, normas e
crenças comuns; é histórica pelas transformações e provações sofridas ao longo
do tempo.
A trajectória profissional desde o início da carreira até a aposentadoria (termo
que no português de Portugal significa estar reforma/aposentação) deixou de ser
algo linear, um caminho seguro a ser percorrido ao longo da vida (Dubar, 2001).
Tanto é que a variável “objectivo” da intervenção pública mais importante desde
a Segunda Guerra nos países da Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Económico (OCDE) é o desemprego. O pós-guerra presencia o
reino das “políticas de pleno emprego” (Gautiê, 1998), como forma de manter o
equilíbrio entre o capital e o trabalho, voltado para produzir e manter a riqueza das
nações. Portanto existe uma preocupação com a questão do desemprego que
passou a ser chamada de uma nova “questão social”. (Castel, 1998). A questão
social do desemprego está directamente relacionada com o conceito de
vulnerabilidade. Conceito este desenvolvido por Robert Castel a partir de uma
concepção de sociedade salarial francesa, para explicitar os factores de ordem
social que influenciam na vulnerabilidade pessoal, representando uma zona de
precariedade e fragilidade dos sujeitos.
Esta fragilidade atinge principalmente os jovens em início de carreira, para
quem a principal questão social é a da sua inserção profissional, conforme
corroboram diversas pesquisas (Pochmann, 1999, 2000, 2001, 2003; Dupas,
1999; Harvey, 2005; Antunes, 2005; Castel, 1998). Inúmeras medidas de
políticas sociais são desenvolvidos pelos governos de todo o mundo, no sentido de
facilitar a inserção do jovem no mercado de trabalho. Tendo em conta que o
trabalho é fundamento do desenvolvimento humano e permite a inscrição do
sujeito como um ser produtivo na sociedade, tais políticas têm um carácter
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positivo, actuando sobre os possíveis riscos sociais que podem advir do

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desencanto e falta de esperanças no futuro que o desemprego juvenil pode
causar. Vários estudos, nos diversos campos do conhecimento mostraram como
o trabalho ocupa um lugar central na vida das pessoas (Antunes, 1995; 1999;
Bauman, 1998; Beck, 1999; Castells, 1999; Harvey, 1993; Rifkin, 1995; Sennet,
1999). Além de ser fonte de identificação social e profissional (Dubar 1998, 2001)
permite ao homem ao desenvolver uma actividade e aprimorar a sua capacidade
de criar. Permite situar o lugar de quem fala e afirmar-se por meio de sua acção.
Ao falar daquilo que se é como pessoa humana, o referente do trabalho, constitui-
se como um dos principais processos de identificação do homem. Por esta razão,
mesmo em países considerados desenvolvidos, existe uma grande preocupação
com a inserção de jovens no mundo do trabalho. Segundo a OIT - Organização
Internacional do Trabalho (2006), hoje existem cerca de 70.000.000 milhões de
jovens no mundo em situação de desemprego. Ora, do ponto de vista da
pedagogia social, importa que nos preocupemos com o «quanto», mas
principalmente com o «como», com a forma como o desemprego afecta os jovens.
Será que a economia consegue gerar novos empregos, na mesma proporção do
número de jovens que pretendem entrar ao mercado de trabalho anualmente?
Como dissemos, as condições desfavoráveis relacionadas com o desemprego
representam uma propensão para a adopção de comportamento de risco,
ocasionando o aumento nos índices de criminalidade e violência. E para além dos
aspectos sociais globais, existem aspectos psicológicos que afectam directamente
o sujeito. Entre os efeitos psicológicos ligados ao desemprego incluem-se:
resignação, auto-estima negativa, desespero, vergonha, apatia, depressão,
desesperança, sensação de futilidade, perda de objectivos, passividade, letargia e
indiferença. Além da perda dos valores morais que a hiper-competitividade pode
trazer para as pessoas, conceito que Sennett (1998) descreve como a “corrosão
do carácter”.

O trabalho e a promoção do indivíduo positivo

Foi através dos suportes sociais garantidos pela condição de assalariado que o
indivíduo moderno se um indivíduo positivo, ou seja, cuja existência não é assegurada
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somente pela capacidade de vender a sua força de trabalho, mas também pelo
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quinhão de propriedade social ao qual tem acesso. (Castel, 1998). Deste modo, o
indivíduo, num tempo não muito remoto, possuía certa segurança em relação ao seu
futuro. A existência de um contrato de trabalho permitiu o aparecimento do indivíduo
positivo, justificando as lutas pelos direitos sociais enquanto «classe-que-vive-do-
trabalho» (Castel, 1998; Antunes, 2005). Questiona-se como hoje o jovem vive sem
a expectativa de conseguir um trabalho digno e repleto de sentido. Houve um tempo
no qual, a inserção do homem no processo produtivo, dependia essencialmente dele
mesmo, de quanto plantaria no seu campo e de iniciativas pessoais. No Brasil vive-
se hoje uma realidade das mais difíceis, nalgumas capitais o desemprego atinge 40%
dos jovens em idade produtiva, segundo o IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (2007). Assim, o jovem candidato a trabalhar, fica em uma situação muito
precária, as poucas oportunidades de trabalho tendem a ficar dominadas por
sistemas integrados em rede (Castells, 2002) num universo de mercado de trabalho
globalizado/globalizante.
Advogamos em favor do trabalho enquanto fonte de identificações e de
inscrição social (Sennett, 1998; Castel, 1998; Dubar, 1998, 2001), tentando
problematizar a situação de risco social a que estão submetidos os jovens,
focando ao mesmo tempo a necessidade de construção de redes sociais de
suporte, construídas a partir de diferentes áreas de saber e de diferentes olhares
sobre a transição entre a vida universitária e o mundo do trabalho.

Os sentidos do trabalho ou o trabalho sem sentido

Quais os novos sentidos do trabalho na sociedade complexa e vulnerável de


hoje? Segundo Antunes (2005) o trabalho perdeu seu sentido na actual fase do
capitalismo por vários motivos, em primeiro lugar pela distância promovida entre
o trabalhador e os meios de produção, ou seja, pela alienação produzida no
processo de trabalho. A questão que orienta a nossa pesquisa prende-se com esta
procura de novos sentidos, concretamente em relação ao sentidosdo trabalho
para os jovens. Partindo de uma perspectiva pedagógica, como poderemos apoiar
os jovens enquanto sujeitos de aprendizagem, aptos para a participação social
livre e responsável?
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Sobre os sentidos do trabalho, desde meados dos anos 50 que se tem

 Cadernos de Pedagogia Social


procurado compreender o significado atribuído pelas pessoas ao trabalho. Os
pesquisadores do grupo Meaning Of Work (MOW, 1987) apresentam resultados
que mostram que o trabalho pode assumir desde uma condição de neutralidade
até de centralidade na identidade pessoal e social. Segundo Morin, Toneli e
Pliopas (2007), o trabalho é essencial na vida das pessoas. Temáticas como a
reestruturação produtiva, as relações de trabalho, a competitividade e o
desemprego, são objecto de reflexão ao discutir-se o significado que o trabalho
vem assumindo (Tolfo, 2005). A questão do trabalho para os jovens está envolta
em realidades múltiplas que delineiam sentidos distintos operando na sua
polissemia (Baktin, 2004). Uma das hipóteses levantadas é de que os jovens
formandos estão mais susceptíveis a aceitar qualquer tipo de trabalho, aceitando
contratos mais precários e com baixas remunerações.
O que se observa no caso dos formandos no Brasil, sobretudo no contexto da
universidade federal pública e gratuita, é que são os jovens de classes
economicamente favorecidas que, geralmente, acedem ao ensino superior. Para
estes jovens, que à partida têm maiores oportunidades, observa-se uma demora em
termos de inserção profissional. Uma outra hipótese que se levanta é de que esta
demora seria mobilizada por distintas configurações contextuais entre elas: o medo
de saírem da universidade e não encontrarem emprego ou aceitarem um emprego e
depois serem demitidos ou não gostarem de suas actividades. Uma das
possibilidades a ser investigada é a de que o trabalho para esta população de
formandos parece estar destituído de sentido pessoal. Ou pelo menos de que o
trabalho não corresponde às expectativas, valores e intenções profissionais que foram
sendo construídas. Junta-se aqui a necessidade de indagar sobre a existência de uma
escolha ou orientação profissional adequada. Existe, portanto a possibilidade de que
a escolha pelo curso superior não tenha sido uma escolha pessoal do sujeito. De
facto, muitos entram na universidade e procuram fazer cursos, para cumprir com os
desejos de seus pais, amigos ou familiares, ou para buscar o status de uma
determinada profissão. Neste caso, e conforme nos propomos demonstrar, justifica-
se a intervenção dos serviços de Orientação Profissional e de Pedagogia Social na
Universidade Federal, permitindo auxiliar o jovem a descobrir e a redescobrir quais
sentidos atribui ao trabalho. Uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma
vida dotada de sentido dentro do trabalho. Antunes (2005).
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A construção de um objecto de estudo


 Cadernos de Pedagogia Social

A construção de um objecto de estudo corresponde a um processo complexo


que se vai desenvolvendo a partir de u olhar sobre o mundo, sobre as questões
que trazem afectos ou com as quais o pesquisador se vê afectado. São
construções subjectivas tecidas de sentidos traçados ao longo da própria vida por
quem pesquisa e por quem olha a realidade e se questiona sobre ela.
Na continuação do que vem sendo dito, a relevância do nosso objecto de
estudo surge justificada a partir da vivência da pesquisadora em actividades
voltadas para a formação e para o emprego, como psicóloga e educadora.
Constitui-se como um olhar da pedagogia social, também devido aos pesados
investimentos sociais, pessoais e familiares, que se fazem em termos do binómio
educação/trabalho. Onde, conforme alerta Joaquim Azevedo (2007) “A educação
surge-nos como campo privilegiado na realização do direito universal à
humanidade de cada ser humano, num contexto tão fortemente marcado pela
desvinculação, pela fragmentação, pela desregulação e pela desigualdade social
e num tempo de grande incerteza face ao futuro”.
Assumindo uma visão que entendemos inserida na pedagogia social,
interessa-nos indagar sobre as estratégicas de ascensão e mobilidade social que
são construídas sobre as expectativas dos jovens. Segundo Morin, (2003) “ a
educação pode ajudar-nos a ser melhores e mais felizes, ensinando-nos a assumir
a parte prosaica e a viver a parte poética das nossas vidas”. Diversas questões
amarram os sentidos do trabalho, congelando significados que foram
historicamente construídos e que sustentam a sua relação com a educação ou
com a formação4 para o trabalho. Com a vivência do desemprego, alteram-se os
campos de sentido, configuram-se novos debates e polémicas nas relações entre
a formação e o trabalho. Emerge um fenómeno nunca dantes observado em tão
grande proporção, a evasão do ensino superior. Mesmo em universidades federais
públicas e gratuitas, alunos com situação económica menos favorável, vêm-se
obrigados a frequentar os seus estudos no período nocturno e muitos acabam por
desistir. A evasão também se deve à percepção de que não conseguem
4
O termos formação, com suas conotações de moldagem e formação, tem o efeito de ignorar que a
missão do didatismo é encorajar o autodidatismo, despertando, provocando, favorecendo a autonomia
do espírito. ( Morin, 2003)
172
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acompanhar as matérias, por problemas pessoais e familiares. Muitos afastam-se

 Cadernos de Pedagogia Social


por desconhecimento da profissão e do mercado de trabalho e por não percebem
sentido naquele tipo de trabalho futuro.
Porém, o que constatamos empiricamente é que após a formação obtida, os
sentidos tecidos em torno do trabalho alteram-se e são processadas novas
expectativas de inserção. É na necessidade de averiguar em que medida tal se
verifica e compreender as mudanças operadas que se centra a nossa pesquisa.
Como se percebem os formandos diante dos novos requisitos do mercado de
trabalho? Na nossa perspectiva vale a pena apreender e compreender o sentido
do trabalho hoje, tendo em vista que ele configura diferentes vivências em torno
do paradigma da aprendizagem ao longo da vida, e das expectativas que cada
sujeito tece quanto o seu futuro.

As contradições do mercado de trabalho na


contemporaneidade: uma situação de risco

As contradições do trabalho na contemporaneidade são potenciadoras de


situações de risco, como vimos. Por um lado, quando mais as relações de
trabalho se complexificam, mais é preciso desenvolver outras habilidades e
competências. Vemos também aqui um possível contributo da pedagogia social.
O desemprego surge cada vez mais como um fenómeno estrutural, ou seja, os
postos que foram substituídos por máquinas nunca mais voltarão a existir
(Pochmman, 1998). Promovem-se qualificações para um trabalho que pode num
tempo relativamente curto deixar de existir.
Partindo desta concepção podemos questionar se as políticas públicas para a
juventude, a grande maioria delas situadas no binómio, educação/formação
profissional, estão atentas à necessidade de novas competências do trabalhador.
Alguns autores, como (Rifkin, 1995; Antunes, 2005; Azevedo e Fonseca, 2007)
trazem dados estatísticos defendendo que o aumento da escolaridade não
significa aumento da empregabilidade dos jovens e sim um distanciamento ainda
maior do mercado de trabalho pela falta de experiência profissional. O que fazer
então? Segundo Giddens (1991) vivemos numa época caracterizada por profundas
incertezas mas também por possibilidades. Segundo Robert Castel (2006) não se
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pode reconstruir o capitalismo industrial, nem o sistema de protecção social que


 Cadernos de Pedagogia Social

estava associado a ele, no entanto, pode-se promover uma «nova ordem social».
O autor considera que é preciso instituir novos mecanismos de protecção ao
sujeito que sejam compatíveis com as novas transformações do trabalho e do
emprego, que dêem conta, por exemplo, das novas situações de mobilidade, de
mudança de emprego e de «reciclagem» que o trabalhador moderno necessita.
Portanto diante da flexibilidade, a segurança social deve assumir um novo
compromisso entre a mobilidade e segurança. É preciso assegurar, frente à
degradação do status de empregado, uma nova ordem e profissional do
trabalhador que garanta os seus direitos de protecção social.
As contradições do mercado de trabalho são muitas e com consequências
invectiváveis para o binómio escola-trabalho. Face a sentimentos de dúvida e de
insegurança gerados pelo mercado de trabalho, os jovens sentem-se mais
abrigados na instituição escola. O tempo de permanência no ensino tende a
alargar-se também por força da competitividade do mercado de trabalho, pois o
critério de selecção busca candidatos com elevada escolaridade. Os alunos
recebem dentro da universidade bolsas de estudo e alimentação e, por vezes,
algum tipo de trabalho ou estágio. Na realidade, são boas condições de
sobrevivência, além disso, permitem garantir o seu estatuto de estudantes. Assim,
a sua identidade pessoal está preservada. Temos então «estudantes profissionais»
que, como tal, possuem um status que é muito mais afirmativo do que o de
desempregados.

Educação: salvaguarda do desemprego versus


promoção do desemprego qualificado?

Resgatam-se aqui as repercussões históricas que as mudanças na educação


superior brasileira possam ter trazido para este contexto. Desde a década de 90
no Brasil (Beato, 1998) e na Europa desde a década de 80 o ensino superior abriu
suas portas, para a iniciativa privada (Fonseca, 2007). Movimento este que fez
com que aumentasse sobremaneira o número de postos ou vagas no ensino
universitário para os jovens. Desde então aumentou o contingente de jovens
qualificados e que, na verdade, engrossam o conjunto de desempregados. No
174
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Brasil um quarto dos formados entre os anos de 1992 e 2002 está desempregado

 Cadernos de Pedagogia Social


(Pochmann, 2004). Em Portugal nos anos de crise económica entre 1990 e 1995,
“revelou-se um cenário nunca antes visto: os licenciados começaram, em número
crescente, a não encontrar emprego”, segundo Azevedo e Fonseca (2007).
Na sua grande maioria, os cursos disponibilizados eram cursos de ciências
sociais, como os cursos de Psicologia, Sociologia, Filosofia e demais áreas,
consideradas como “ciências moles” (Beato, 1998). O apelo dos mercados de
trabalho, no entanto, desde a década de 90, quando os sistemas de informação
passaram a ser amplamente utilizados em todo o mundo, tem privilegiado as
“ciências duras” ou áreas hard, ou seja, as áreas das ciências como as
Engenharias, a Matemática e a Física. O que faz com que o senso comum
divulgue e reafirme a expressão “trabalho há, as pessoas é que não querem
trabalhar”. Até que ponto esta afirmação pode ser conformada ou desmentida?
Vemos como contributo possível da Pedagogia Social a promoção de
competências de inserção laboral, não só as competências que o mercado de
trabalho exige mas também, ou sobretudo, as competências humanas essenciais
para a realização dos jovens. No Brasil, como em Portugal (Azevedo e Fonseca,
2007) os jovens que pertencem ao quadro dos «mais qualificados», são os que
mais sentem as “turbulências” da inserção profissional. Estes jovens talvez se
encontrem capacitados mas sem as competências humanas necessárias, como
as que se situam no âmbito da convivência social, da comunicação, da liderança
e hábitos de trabalho em grupo, entre outras. Por outro lado, o requisito da
experiência profissional é outra grande barreira no ingresso profissional. Existem
no Brasil, de acordo com o estudo do IPEA (2007), 9,13 milhões de pessoas estão
à procura de um emprego, mas somente 1,67 milhões de trabalhadores têm
experiência ou qualificação necessária. Novamente os qualificados /
/ desqualificados para o trabalho, como o trabalho pode ter sentido? Porém este
quadro não se restringe ao Brasil. Segundo a OIT (2006) estima-se que,
mundialmente, uma em cada cinco pessoas com idade entre 15 e 24 anos está
desempregada, ou seja, 88 milhões de jovens, que representam mais de 40% do
total de desempregados. Destes, 85% encontra-se em países em desenvolvimento.
Configura-se, portanto aqui um objecto de estudo para a pedagogia social numa
perspectiva de mudança positiva face aos números apresentados e que nos
confrontam com uma questão social urgente
175
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Considerações finais
 Cadernos de Pedagogia Social

São as problemáticas em torno do sentido do trabalho que movem a nossa


investigação científica centrada nos jovens formandos e considerando as suas
possibilidades de realização humana e inserção social. Considera-se que os
mesmos vivenciam uma situação de turbulência enorme em relação ao mercado
de trabalho que envolve os aspectos mais subjectivos do sujeito, ocasionando um
sentimento constante de falta de segurança e de condições para projectar-se num
futuro próximo.
As várias contradições que cercam o mercado de trabalho na contempora-
neidade, desde a formação profissional até à falta de experiência profissional,
transformam a situação de transição da universidade para o mundo do trabalho
numa situação de risco. Discutiu-se aqui a questão da formação para o trabalho
e apresentaram-se as estatísticas mundiais que alertam sobre o fenómeno do
desemprego juvenil. As nossas preocupações orientam-se no sentido das políticas
públicas que buscam soluções para estes riscos sociais. Privilegia-se a educação
como meio para enfrentar a crise do desemprego juvenil, mas uma educação
considerada no seu todo e não restrita à formação profissional, onde o sujeito
após um período de tempo adquire o estatuto social que a profissão lhe confere.
Importa colocar a educação ao serviço da população, ao longo da sua vida.
Precisamos de uma educação superior que forme para o exercício da cidadania,
para a autonomia dos jovens e para a solidariedade. Precisamos de jovens com
formação superior, com conhecimentos sobre o mundo e sobre as questões
sociais. Um jovem que conheça tecnologias mas que saiba manipular as
informações em prol do próximo e de uma sociedade mais igualitária. Só será
possível diminuir os riscos sociais se chamarmos os jovens a compor um novo
compromisso com o trabalho, onde o seu fazer seja dotado de sentido. Um
sentido na busca de soluções conjuntas para os riscos que afectam o mundo e
em relação aos quais todos estamos sujeitos.

176
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Cadernos de Pedagogia Social


2 (2008) 179-199

Resiliência num grupo de adolescentes de


risco de uma escola secundária do grande
Porto 1

Maria Raul Lobo Xavier2 | Mariana Andresen Abreu3

Resumo
A relação entre factores de risco (acontecimentos de vida stressantes) nas
vidas dos adolescentes, e a presença de factores de protecção faz com que
alunos considerados de risco evidenciem resiliência ou vulnerabilidade em
contextos como a escola. O presente artigo procura evidenciar a forma como
os adolescentes se adaptam ou ultrapassam estas circunstâncias adversas, ao
conseguirem “bons resultados apesar das sérias ameaças ao desenvolvimento
ou à adaptação” (Masten, 2001, p.228).
A escola assume-se como um dos contextos mais importantes de
desenvolvimento, socialização e de promoção de resiliência nos adolescentes.
A forma como actuam os factores e processos protectores presentes nas suas
vidas tendo em conta os riscos e factores de risco, ajudam a compreender os
comportamentos resilientes ou não-resilientes demonstrados pelos
adolescentes. A utilização de uma entrevista semi-estruturada a uma amostra
de dezasseis alunos adolescentes (N=16), com uma média de idades de 13,81
anos, permitiu obter um “fotografia bem detalhada” naquele período das suas
vidas relativamente a ele próprio, ao contexto escola (por exemplo, a relação
com grupo pares, dificuldades na escola,).

1
Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Ciências de Educação – Especialização em
Aprendizagem e Desenvolvimento Psicológico, FEP/UCP
2
Docente da Faculdade de Educação e Psicologia/UCP
3
Doutoranda em Ciências de Educação, Faculdade da Educação e Psicologia/ UCP
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Introdução
 Cadernos de Pedagogia Social

O meio escolar em conjunto com a família e a restante comunidade é, para os


adolescentes, um dos contextos mais importantes para o desenvolvimento da
resiliência (Benard, 1991;1995). Tendo em conta riscos e factores de risco que se
encontram associados às suas vidas, procurámos com este estudo perceber como
é que actuam os factores e processos protectores que justificam os
comportamentos resilientes ou não-resilientes demonstrados pelos adolescentes.
Assim, perceber como os riscos estão presentes nos sistemas ecológicos
(Bronfenbrenner, 1987, 2005) onde se desenvolvem os adolescentes e como
aqueles interferem nas suas vidas constituiu um dos objectivos deste estudo.
Também procurámos compreender como é que perante determinados
acontecimentos nas suas vidas os jovens se adaptam ou ultrapassam as
adversidades, são competentes e encontram-se bem integrados no seu grupo de
pares, apesar da presença de importantes factores de risco.
Na investigação sobre resiliência o grande problema é definir o que são
factores de risco, situações ou ambientes de risco (Kumpfer, 1999). Os riscos
estão presentes em todos os contextos onde se desenvolvem os jovens, pelo que
não existe uma receita para identificar, prevenir e intervir em “riscos”. De ordem
biológica e/ou ambiental, isoladamente ou combinados entre si os factores de
risco contribuem para situações mais negativas ou mais positivas no
desenvolvimento do indivíduo (Howard, Dryden e Johnson, 1999). Analisando o
fenómeno do risco e vulnerabilidade em crianças e jovens, Seidman e Pedersen
(2003), salientam que os muitos estudos existentes referem que o mais
importante neste domínio é o acúmulo de vários riscos na vida de um indivíduo
(Sameroff e Seifer, 1990; Luthar e Cushing, 1999).
Os trabalhos conduzidos por Norman Garmezy (1985), Michael Rutter (1980)
e Emmy Werner (1992, 1993), na década de oitenta e noventa, tiveram como
preocupação estudar indivíduos sujeitos a riscos biológicos ou a acontecimentos
de vida stressantes, constituindo o maior foco de atenção a sua vulnerabilidade e
a resiliência (Perkins e Borden, 2003). A investigação sobre resiliência alterou o
seu foco de atenção passando a valorizar uma adaptação bem sucedida,
promovendo a competência em detrimento de comportamentos desenvolvi-
mentais negativos (Masten e Coastworth, 1998; Perkins e Borden, 2003).
180
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Referimo-nos a resiliência como o conseguir “bons resultados apesar das sérias

 Cadernos de Pedagogia Social


ameaças ao desenvolvimento ou à adaptação” (Masten, 2001, p. 228); à
competência manifestada pelo indivíduo, no seu contexto, onde se operam
desafios à adaptação e ao desenvolvimento (Masten, 2001; Masten & Coastworth,
1998) ou “a um processo dinâmico que envolve uma adaptação positiva a um
contexto de grande adversidade” (Luthar, Cicchetti & Becker, 2000, p.543). À
noção de resiliência é inevitável que se associe por oposição a de vulnerabilidade,
que por sua vez está directamente relacionada com riscos e falta de competência.
Rutter, citado por Anaut (2005, p.51), refere que os factores de protecção
“modificam a reacção à situação que apresenta o risco, ao reduzir o efeito do risco
e as reacções negativas em cadeia”. Para percebermos o carácter ecológico
(Bronfenbrenner, 1987,2005) e transaccional (Sameroff e Chandler, 1975) dos
riscos, protecção e resiliência na vida dos indivíduos devemos considerar: a) que
existe uma multiplicidade de riscos e experiências protectoras, b) que a
sensibilidade ao risco é sentida de forma diferente pelos diferentes indivíduos,
podendo ser influenciada tanto geneticamente como pelo contexto ambiental, c)
que os mecanismos mediadores diferem em função do risco que se apresenta ao
indivíduo, d) que os mecanismos mediadores diferem em função do resultado
psicológico, e) que a protecção pode actuar antes, durante e após a situação de
risco ser vivida pelo indivíduo (Rutter, 2005, p.366). Assim, as relações que se
estabelecem entre os diversos factores protectores sugerem que a investigação
passe a considerar processos ou mecanismos protectores como moderadores dos
riscos e que estes podem ser de quatro tipos diferentes: a) os que reduzem os
impactos dos riscos, b) os que diminuem a probabilidade de reacções em cadeia
como consequência de más experiências, c) os que promovem a auto-estima e a
auto eficácia e d) promovem oportunidades e relações positivas na vida (e.g.
Werner, 1993; Howard et al., 1999; Rutter, 2005).
No estudo qualitativo levado a cabo por Susan Howard e Bruce Johnson em
2000, foram identificados cinco grandes domínios de factores de protecção: os
acontecimentos de vida, os factores individuais, a família, a escola e a
comunidade, que diminuem, modificam ou melhoram a resposta individual a uma
determinada situação que em circunstâncias normais poderia conduzir a
respostas desajustadas.
De acordo com Masten e Coastworth (1998, p.206), resiliência reflecte o lado
positivo da competência no indivíduo e:
181
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“… refers to a pattern of effective adaptation in the environment, either broadly defined


 Cadernos de Pedagogia Social

in terms of reasonable success with major developmental tasks expected for a person of
given age and gender in the context of his or her culture, society, and time, or more nar-
rowly defined in terms of specific domains of achievement, such as academics, peer accept-
ance, or athletics.”

Aplicado aos jovens, este constructo relaciona-se directamente com a


capacidade destes se relacionarem com os pares de um forma mais ou menos
pró-social, podendo através de entreajuda contribuir para uma boa integração na
turma e/ou na escola constituindo-se como factor de protecção no
desenvolvimento, de aceitar e respeitar as normas de conduta estipuladas para
aquela comunidade escolar e de se desenvolver de forma positiva na realização
académica (Masten e Coastworth, 1998).

Material e Método

Participantes/Amostra
Participaram neste estudo um total de 77 alunos adolescentes de ambos os
sexos, 28 (35,6%) raparigas e 49 (64,4%) rapazes, com idades entre os 12 e os
15 anos e uma média de 12,7 anos, depois de ter sido dado o consentimento
informado pelos seus Encarregados de Educação. Os alunos eram provenientes
das quatro turmas do 7º ano de escolaridade de uma escola secundária urbana
da periferia do Grande Porto. A amostra estudada (N=16; idade média de 13,81
aquando das entrevistas) resultou da aplicação dos instrumentos seguidamente
descritos.

Instrumentos
Para a caracterização dos alunos participantes utilizamos uma Ficha de
Caracterização Sociodemográfica que nos permitiu obter informações acerca
deles e dos seus agregados familiares, nomeadamente a nível socioeconómico,
familiar, vida escolar e ocupação dos tempos livres. Para avaliação do estatuto de
risco, utilizamos a Lista de Verificação do Estatuto de Risco baseada na Life Events
Checklist de Werner e Smith (1992). Mais do que quatro, acontecimentos
stressantes na vida de um sujeito constitui-se como suficiente para considerá-lo
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com estatuto de risco (Werner e Smith, 1992). Para a verificação da presença de

 Cadernos de Pedagogia Social


um grupo resiliente e um não-resiliente entre os alunos de riscos utilizamos a Lista
de Verificação de Resiliência (Howard e Johnson, 2000). Foram realizadas
entrevistas semi-estruturadas com questões baseadas nos acontecimentos de
vida e nas suas expectativas para o futuro, na sua vida na escola e relação com
os pares e ainda em questões que procuraram explorar o tipo de relações que
estes adolescentes tinham com as suas famílias. Construímos um guião baseado
no de Howard e Johnson (2000) para a primeira parte da entrevista integrando
questões que se relacionavam com a vida dos alunos em geral. Acrescentamos
ainda dois grandes temas, um relacionado com a escola e grupo de pares e outro
com a família pois referem-se aos principais contextos onde os adolescentes se
movem diariamente.

Procedimentos
Antes de darmos início ao estudo foi solicitado aos encarregados de educação
o seu consentimento informado para a participação dos seus educandos nesta
investigação. A aplicação da Lista de Avaliação do Estatuto de Risco e da Lista de
Verificação de Resiliência foi realizada com a colaboração das directoras de turma
das quatro turmas participantes, no final do segundo período lectivo, altura em
que estas já conheciam bem os alunos das suas turmas. Realizámos as
entrevistas a cada um dos alunos individualmente, numa das salas de aula da
escola, no último trimestre do ano lectivo e para o efeito utilizamos um gravador
para que as suas respostas ficassem registadas e mais tarde pudessem ser
analisadas. Todos os alunos que aceitaram participar na investigação deram
previamente o seu consentimento e permitiram que as entrevistas fossem
gravadas (todas as entrevistas foram consideradas válidas).

Resultados e Discussão
Quanto à caracterização da amostra, verificamos que cerca de 70% dos
agregados familiares apresentam um baixo estatuto socioeconómico e a maioria
dos encarregados de educação possuem como habilitações somente o 4º ano de
escolaridade, algo que parece ser evidenciado pelas profissões exercidas –
maioritariamente a prestação de serviços não qualificada. Da aplicação da Lista
183
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de Avaliação do Estatuto de Risco nas quatro turmas (N=77), verificamos que


 Cadernos de Pedagogia Social

numa turma não existia nenhum aluno que tivesse sido avaliado com estatuto de
risco, sendo os alunos de risco que aceitaram participar (N=16) oriundos das
restantes turmas (N=58). Com a aplicação da Lista de Verificação de Resiliência
(Howard e Johnson, 2000) pretendíamos identificar quem eram de entre os
alunos considerados de risco (N=16), os que apresentavam comportamentos
resilientes e os que apresentavam comportamentos não-resilientes. A utilização
desta lista permitiu-nos verificar que, naquele momento (Fergus e Zimmerman,
2005), dez alunos (quatro raparigas e seis rapazes) apresentavam
comportamentos resilientes (62,5%). Os restantes seis alunos, uma rapariga e
cinco rapazes (37,5%), apresentavam comportamentos não-resilientes. A revisão
de literatura efectuada revelou que, quanto a diferenças de género, as raparigas
são mais resilientes do que os rapazes (e.g. Kumpfer, 1999). Os resultados no
nosso estudo parecem ter confirmado estes dados já que na nossa amostra foram
consideradas resilientes 80% das raparigas e somente 63,63% dos rapazes.
Analisando o grupo de alunos não-resilientes verificámos que somente 50% destes
alunos (N=3) eram apoiados pelo Serviço de Acção Social Escolar (SASE); 80%
dos alunos resilientes (N=8) têm também este apoio, não parecendo na nossa
amostra o baixo estatuto socioeconómico estar evidentemente associado ao grupo
dos alunos não-resilientes. Poderemos associar o baixo estatuto socioeconómico
aos alunos de risco, independentemente de serem considerados resilientes ou não
resilientes, já porque cerca de 70% beneficiam deste apoio.
Nas entrevistas procuramos, para além dos pontos de vista individuais de cada
aluno relativamente às temáticas abordadas, também as diferenças das respostas
dadas pelo grupo dos alunos resilientes e pelo grupo dos alunos não-resilientes.
Depois de analisarmos o conteúdo das respostas obtidas em cada um desses
domínios encontramos diferentes temas, categorias e subcategorias de respostas
que seguidamente apresentamos e discutimos. Para uma mais fácil identificação
no texto, os TEMAS aparecem em letras maiúsculas, negrito e sublinhado, as
CATEGORIAS em letras maiúsculas e negrito e as subcategorias a negrito
(baseado em Yunes, 2001). As questões foram organizadas em três grandes
domínios: “Aspectos da sua vida de uma forma geral”; “Vida na escola e relação
com os pares”; “Relacionamento com a família”.

184
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Aspectos da vida dos alunos

 Cadernos de Pedagogia Social


Este domínio de questões tinha como objectivo procurar conhecer um pouco
mais da vida dos alunos em temas concretos, nomeadamente nos
acontecimentos importantes e pessoas mais importantes nas suas vidas, na
ocupação de tempos livres, no que mais gostam na sua vida, nos acontecimentos
de que se orgulham, no que aconteceu na sua vida e não deveria ter acontecido,
planos para o futuro, ajudas ou obstáculos em alcançar o planeado e conselhos a
dar a outros jovens sobre a vida.
Para os alunos resilientes os ACONTECIMENTOS MAIS IMPORTANTES,
(i.e. aqueles que mais os marcaram nas suas vidas), são os ASPECTOS
RELACIONADOS COM O PRÓPRIO INDIVÍDUO e os ACONTECIMENTOS
FAMILIARES AGRADÁVEIS. Quanto ao grupo dos alunos não-resilientes são os
ASPECTOS RELACIONADOS COM O PRÓPRIO INDIVÍDUO e os
PROBLEMAS FAMILIARES que são nomeados por estes alunos, aos quais
estão associados os seus contextos familiares desestruturados e/ou as relações
familiares desorganizadas e disfuncionais.
A categoria ASPECTOS RELACIONADOS COM O PRÓPRIO INDIVÍDUO
é referida pelos adolescentes (independentemente de se tratarem de alunos
resilientes ou não-resilientes) como a que tem mais significado, e prende-se com
as “suas conquistas” na vida, que naturalmente ocorrem nos diversos contextos
onde se movem e relacionam. Ainda nesta categoria, para alguns alunos, a
participação, envolvimento e valorização das actividades escolares parecem
tornar-se marcantes nas suas vidas, pelo que a escola não pode deixar de as
promover e dinamizar. As categorias que encontramos no tema PESSOAS MAIS
IMPORTANTES NAS SUAS VIDAS foram muito diversas, não tendo sido
encontradas diferenças nas respostas dos alunos dos dois grupos. Para a maioria
dos alunos considerados resilientes bem como para os não-resilientes, são os
seus cuidadores as pessoas mais importantes nas suas vidas. Para estes alunos,
que na sua maioria vivem com pelo menos um dos progenitores parece a família
ser vista como um factor de protecção, pois constitui não só o seu suporte
material, mas também afectivo e emocional. Não é de estranhar que uma aluna
tenha nomeado os seus pais adoptivos depois da insegurança afectiva e ausência
de figuras de vinculação seguras até aos 5 anos de idade. No entanto, há alunos
que procuram noutras pessoas a sua protecção, por vezes como substituto de
185
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uma família (que não é considerada por eles como factor de protecção) ou porque
 Cadernos de Pedagogia Social

já estão numa fase de busca da própria autonomia em relação à família e


procuram na relação com o sexo oposto a sua protecção e apoio e novas figuras
de vinculação (como acontece com dois alunos).
Não encontramos diferenças significativas entre as respostas do grupo
resiliente e não-resiliente quanto à natureza das actividades de OCUPAÇÃO DE
TEMPOS LIVRES realizadas. As principais diferenças encontradas foram em
termos de género/local de actividade: os rapazes ocupam mais os seus tempos
livres fora de casa e as raparigas dentro de casa. Tradicionalmente, na cultura
portuguesa e para este escalão etário, a educação das raparigas é pouco
permissiva comparando com a dos rapazes, quanto a hábitos de “saídas de
casa”. Os alunos da nossa amostra são oriundos de um meio sociocultural
pequeno onde, ainda, nalguns aspectos prevalece uma educação tradicional.
Um dos aspectos que os adolescentes MAIS GOSTAM NA SUA VIDA é ter
AMIGOS E ESTABELECER RELAÇÕES PRÓXIMAS COM O GRUPO DE
PARES, já que afirmam que gostam de estar com os amigos, ajudá-los,
conviver ou ter mais liberdade. Parece haver uma certa coerência quanto às
respostas dadas na categoria OCUPAÇÃO DOS TEMPOS LIVRES, neste
mesmo tema, mas nesta categoria estar com os amigos significa jogar futebol, ou
seja, estar implicado numa actividade desportiva conjunta. Estando envolvido
numa actividade, ou somente “a conviver” com os amigos a relação com os pares
é importante, independentemente da forma e local onde se relacionam,
constituindo-se o grupo de pares, na nossa perspectiva, como um factor de
protecção nas vidas dos adolescentes, pois estão presentes nos vários contextos
onde se movem, nomeadamente na escola, no bairro ou no clube desportivo.
Os cinco alunos, que responderam que o que na sua vida gostavam era de
estar/gostar/ter uma boa relação com a família, apresentam importantes
vulnerabilidades familiares, o que talvez possa ajudar a perceber o porquê das
suas respostas. Comparando o grupo resiliente com o grupo não-resiliente
encontramos algumas diferenças nas categorias onde foram integradas as suas
respostas. Para quatro dos alunos considerados não-resilientes o que gostam nas
suas vidas relaciona-se com actividades de ocupação dos seus tempos livres, tal
como ver televisão/jogar playstation e jogar futebol. As actividades que os
cativam parecem envolver menos competências cognitivas, tais como a realização
186
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académica ou raciocínio moral (Kumpfer, 1999). Dois destes alunos referem,

 Cadernos de Pedagogia Social


também, ajudar os outros, o convívio com elementos do bairro ou estar
com a família, como algo que gostam nas suas vidas. Um outro aluno, também
não-resiliente, responde que não gosta de nada na sua vida. As respostas do
grupo resiliente distribuem-se pelas restantes categorias encontradas,
nomeadamente, a ESCOLA, a FAMÍLIA, ORGULHO NAS QUALIDADES
PESSOAIS, AMIGOS E RELAÇÕES PRÓXIMAS COM O GRUPO DE PARES,
demonstrando não só mais competências cognitivas que se relacionam com a
capacidade de fazer projectos na sua vida, com uma visão positiva de si próprio,
como também com competências comportamentais e sociais, tais como saber
lidar bem com os outros e em diferentes ambientes (Kumpfer, 1999).
Alguns alunos revelaram bastante maturidade nalgumas das suas respostas
relativamente ao tema ACONTECIMENTOS DE QUE SE ORGULHA,
independentemente do género, ou ainda de serem considerados resilientes ou
não-resilientes. Um dos alunos manifesta um desejo, que caso se realize, irá ser
para ele motivo de orgulho um dia mais tarde: não estar preso quase toda a
vida como o seu pai. Este aluno, considerado não-resiliente, demonstra neste
tipo de afirmação algumas características de resiliência, nomeadamente ter
esperança de obter resultados positivos na sua vida para se realizar
pessoalmente. Parece, que se aumentarmos os factores de protecção neste
adolescente, poderemos acreditar que a sua resiliência se venha a manifestar
vencendo de forma positiva as adversidades. Tal enfoque seria sustentado por
exemplo nos trabalhos de Fergus e Zimmerman (2005) ao referirem que as
características de resiliência poderão ser alteradas ao longo da vida e dos
diferentes contextos. Já para uma das alunas, como consequência das suas
experiências negativas no passado e também no presente (ter sido maltratada
pela família biológica e primeira família de acolhimento e ser ainda pontualmente
procurada pela mãe biológica), o que mais lhe dá orgulho é ter-se tornado
numa adolescente mais madura. Quanto a diferenças de respostas entre o
grupo resiliente e não-resiliente, não encontramos grandes discrepâncias. No
entanto, metade dos alunos não-resilientes (todos rapazes) respondeu que não se
orgulham de nenhum acontecimento na sua vida. Estes alunos parecem traduzir
elevados níveis de baixa auto-estima, não acreditando em si próprios e
considerando que nada do que fizeram nas suas vidas deva ser valorizado.
187
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Parecem demonstrar uma falta de capacidade para fazer auto-reflexões acerca


 Cadernos de Pedagogia Social

dos acontecimentos, tal como acontece com os indivíduos resilientes.


A consciência que os adolescentes têm daquilo que NAS SUAS VIDAS NÃO
DEVERIA TER ACONTECIDO é, para a grande maioria dos alunos, muito
concreta. Determinados problemas familiares que se prendem com a ausência de
um dos progenitores da casa de família, parecem causar perturbação nas vidas
de alguns alunos (resilientes) tal como demonstrado na dificuldade em abordar o
assunto durante as entrevistas. A capacidade de análise acerca daquilo que não
lhes deveria ter acontecido vai para além dos problemas familiares e individuais,
passando por uma tomada de consciência de comportamentos de risco. São só
alunos não-resilientes que referem que os comportamentos de risco, tais como
ter começado a fumar e ter problemas na escola, não deveriam ter
acontecido nas suas vidas, constituindo esta a diferença mais evidente entre os
dois grupos de alunos.
À excepção de um aluno, todos os outros têm PLANOS PARA O FUTURO,
não tendo sido encontradas diferenças significativas nas respostas dadas pelos
dois grupos (resilientes ou não-resilientes). Alguns dos alunos resilientes e um não-
resiliente, aspiram exercer no futuro profissões para as quais se exige a frequência
de um curso no ensino superior. Dois dos alunos resilientes querem ser jogadores
de futebol e dedicam-se a esta modalidade num clube local, encontrando aqui a
protecção para algumas das suas vulnerabilidades. Um dos alunos afirmou que
chegou mesmo a modificar o seu comportamento para que o seu pai não o
retirasse da prática desta modalidade. Um aluno considerado não-resiliente
afirmou ser ainda cedo para fazer planos para o futuro, demonstrando uma certa
falta de capacidade de sonhar e de ter objectivos para a sua vida (Kumpfer, 1999).
As respostas às questões que colocámos seguidamente aos alunos iriam
evidenciar as ajudas ou obstáculos para a concretização dos planos que estes
idealizavam para o seu futuro e traduziram alguma incoerência relativamente às
verificadas no tema PLANOS PARA O FUTURO. Os alunos declaram fazer parte
dos seus planos futuros a realização académica e trabalhar no futuro, mas não
expressam nos temas AJUDA/OBSTÁCULOS PARA ALCANÇAR OS
PLANOS, categorias como por exemplo “os professores”, “as disciplinas ou
conteúdos leccionados”, a “escola”. Na nossa opinião tais possíveis categorias
estão directamente relacionadas com a realização académica e deveriam estar na
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“linha da frente” para promover a concretização dos seus planos. A grande

 Cadernos de Pedagogia Social


maioria dos alunos concentra em si a responsabilidade de não conseguir atingir
aquilo que planeia para o futuro, assumindo-se como “únicos” responsáveis por
não serem bem sucedidos na vida académica ou na procura de trabalho. Terem
professores que ensinem bem ou terem nos seus currículos matérias
fundamentais para desempenharem uma profissão são aspectos raramente
referidos pelos alunos. Apenas uma aluna referiu ter de saber mais de uma
disciplina para poder exercer a profissão desejada. A escola, enquanto local de
ensino e aprendizagem e de desenvolvimento de competências essenciais para
vida activa parece (ainda) não ser percepcionada como um factor de protecção
nas suas vidas, apesar de a literatura referir o contrário (e.g. Benard, 1991).
Em termos de realização académica estes alunos possuem já mais
habilitações do que os seus encarregados de educação. As suas respostas
parecem evidenciar um percurso, que apesar de acreditarmos ser apoiado pelos
pais, será sempre solitário tendo em conta que estes não têm qualificações
suficientes para realmente os ajudarem. Será que o lutar por um estatuto na
sociedade depende única e exclusivamente deles próprios (tal como os seus
progenitores parecem ter feito e não foram claramente bem sucedidos) em termos
da realização académica e profissional? Será esse um dos legados da transmissão
do património cultural familiar? Visto nesta perspectiva teremos mais um dos
desafios colocados à escola que, numa posição culturalmente privilegiada, deverá
então encontrar outras soluções (Zenhas, 2004).
Todos os adolescentes à excepção de uma aluna resiliente parecem saber que
CONSELHOS DAR A OUTROS JOVENS NO QUE RESPEITA À VIDA.
Embora não tendo encontrado grandes diferenças entre o grupo resiliente e o não
resiliente (uma vez que em todas as categorias se encontravam respostas de
alunos dos dois grupos), a maioria dos alunos tem a noção que determinados
comportamentos no presente lhes podem ser benéficos no futuro, nomeadamente
o esforçar-se para ser bem sucedido, não roubar ou usar drogas.

A Escola
Neste segundo grande domínio abordado nas entrevistas, percebemos que a
escola tem significados diferentes para os alunos. Comparando as respostas
dadas pelos dois grupos (alunos resilientes e alunos não-resilientes), encontramos
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algumas diferenças importantes relativamente aos temas abordados. A maioria


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dos alunos não-resilientes vê a escola como um LOCAL PARA ESTAR,


CONVIVER COM OS PARES E FAZER AMIGOS, e um deles vê mesmo a
escola como um PESADELO. O grupo resiliente também vê a escola
principalmente como um LOCAL PARA ESTAR, CONVIVER COM OS PARES
E FAZER AMIGOS, mas alguns dos alunos vêem-na também como LOCAL DE
EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E APRENDIZAGEM. As suas respostas parecem ter
sido coerentes com os planos que têm para o futuro, já que muitos dos alunos
resilientes querem exercer profissões para as quais é necessária a frequência de
cursos de nível superior, e será através da escola que vão alcançar os seus
objectivos (realizar-se e ser academicamente competentes). Os alunos
responderam ao tema O QUE GOSTA MAIS NA ESCOLA de uma forma
coerente relativamente ao significado que lhe atribuem, ou seja, ESTAR COM OS
AMIGOS é o que na generalidade os alunos mais gostam na escola. Comparando
os dois grupos (resiliente e não-resiliente), encontramos também algumas
diferenças. O grupo não-resiliente gosta na escola de ALGUMAS DISCIPLINAS
PRÁTICAS e de ESTAR COM O GRUPO DE PARES. Alguns dos alunos
resilientes, para além de gostarem de ESTAR COM O GRUPO DE PARES
também gostam dos PROFESSORES E FUNCIONÁRIOS E DOS ESPAÇOS
DA ESCOLA.
Relativamente às DIFICULDADES APRESENTADAS PELOS ALUNOS NA
ESCOLA, cerca de 50% relacionam-se com COMPREENSÃO E RETENÇÃO
DAS MATÉRIAS LECCIONADAS. Os alunos admitem ter dificuldades nestas
duas dimensões do processo ensino/aprendizagem ao que não nos parece ser
alheio a elevada percentagem de retenções dos alunos da nossa amostra (87,5%),
durante o seu percurso escolar. Comparando os dois grupos de alunos, somente
alunos não-resilientes referem que na escola apresentam ter dificuldades a nível
do RELACIONAMENTO COM OS PARES dentro da sala de aula por falta de
autoconfiança, ou em IR ÀS AULAS ou em COMPORTAR-SE BEM. São
maioritariamente os alunos resilientes a assumir que as suas dificuldades na
escola se prendem com a COMPREENSÃO DAS MATÉRIAS LECCIONADAS.
Dois alunos, também considerados resilientes, referem que têm dificuldade no
RELACIONAMENTO COM OS PROFESSORES por falta de diálogo destes
com os alunos.
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Não estando a tarefa dos professores das escolas secundárias facilitada,

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motivar alunos que não querem estar dentro da sala de aula e/ou que têm
dificuldade em estar concentrados durante tanto tempo, parece ser o desafio com
que diariamente se deveriam debater. Então, cada escola em particular, que
possui uma comunidade única com características próprias, parece ter como
tarefa reflectir sobre o processo de ensino/aprendizagem, sobre as relações
interpessoais e procurar novas estratégias de actuação que conduzam ao sucesso
académico e pessoal de todos os seus alunos. Algumas questões parecem-nos
pertinentes evidenciar neste contexto: relativamente aos alunos mais irrequietos,
que se comportam mal ou que se distraem com facilidade, discutimos se serão
benéficas as aulas com a duração de noventa minutos nalgumas das disciplinas
mais teóricas. Outra questão importante que se coloca à escola é que em
particular os alunos que apresentam um comportamento mais irrequieto e por
vezes desajustado na sala de aula, parecem não beneficiar de ter somente um
momento na semana com o professor das disciplinas cuja carga horária semanal
se resume a um bloco de 90’, onde os laços de empatia e afectividade, bem como
o “fortalecimento de regras coerentes e consistentes” (Estrela, 1994, p. 47)
podem demorar a estabelecer-se. Levantamos também a questão da distribuição
das disciplinas (teóricas e práticas) ao longo dos dias da semana nos horários dos
alunos. Lembremo-nos, igualmente, que alguns dos alunos que as escolas
secundárias recebem são aqueles que as escolas EB 2,3 preferem já não ter nas
suas salas, pois são mais velhos, manifestam elevados índices de mau
comportamento, apresentam dificuldades na realização académica tendo já
retenções no seu percurso escolar, e aos quais estão muitas vezes associados um
conjunto grande de adversidades. Mas, apesar de tudo, será legítimo
questionarmo-nos se o problema estará nesta dimensão de carácter mais
organizacional, de gestão escolar, ou também noutras dimensões da condução do
processo de ensino/aprendizagem e/ou das relações interpessoais. Na realidade,
as tarefas com as quais a escola e os professores se devem debater poderão
conduzir a uma maior motivação dos alunos perante as disciplinas, na promoção
de comportamentos mais pro-sociais em relação aos pares, aos professores e à
própria escola. Os estudos de Michael Rutter e seus colegas (1980) confirmam a
importante influência que a escola tem nos resultados obtidos pelos jovens, mas
lembram-nos igualmente que esta se constitui como apenas um elemento do
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conjunto complexo que faz parte dos microssistemas onde os jovens se movem.
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O carácter transaccional das relações estabelecidas entre alunos e professores é


igualmente evidenciado por estes investigadores. Apesar das diferenças entre
professores e alunos na forma de compreender o contexto escola, será sempre
esta que se poderá organizar em função dos alunos que a frequentam (Rutter et
al., 1980).
Michael Rutter e seus colaboradores (1980) no estudo descrito no livro
“Fifteen Thousand Hours” identificaram e relacionaram algumas das
características dos alunos com um comportamento incorrecto dentro da sala de
aula e o estilo disciplinador do professor: a capacidade que alguns professores
possuem em antecipar comportamentos disruptivos permite que as aulas
decorram com menos interferências por parte de alunos mais perturbadores que
influenciam negativamente o resto do grupo; a utilização de elogios por parte dos
professores aos alunos também se relacionava directamente com o seu bom
comportamento. Os seus estudos revelaram ainda que crianças de meios
familiares desfavorecidos demonstravam características resilientes se na escola
tivessem professores atentos que se interessassem por elas e que acreditassem
nas suas capacidades, obtendo bons resultados escolares ou ainda se a escola
lhes proporcionasse experiências associadas ao sucesso, em áreas culturais,
desportivas, sociais ou outras. Neste mesmo sentido, Benard (1995) no seu artigo
“Fostering resilience in children” definiu três grandes categorias de factores
protectores para os jovens, onde a escola desempenha um papel fundamental,
nomeadamente: nas “relações cuidadoras de apoio”, criando expectativas
elevadas aos alunos e nas oportunidades de participação na escola. Quando na
escola existe um professor, que para além de desempenhar o papel tradicional de
desenvolver as competências académicas, se constitui também como um modelo
para os alunos resilientes pelo apoio e suporte afectivo que presta a esses alunos,
é natural que eles queiram trabalhar mais e melhor. Para os alunos este professor
é um adulto fora do círculo familiar que se interessa por eles, que os apoia e com
quem eles podem contar. Ao nível da sua relação com os alunos, os professores
deverão transmitir a mensagem de que eles têm tudo para ser bem sucedidos e
serem capazes de atingir os seus objectivos, fazendo-os acreditar neles próprios.
Desta forma estarão os professores a contribuir para a promoção da auto-estima
dos alunos, para a sua autonomia, auto-eficácia e motivação para a sua
192
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realização. Para isso, e ainda de acordo com Bonnie Benard (1991; 1995),

 Cadernos de Pedagogia Social


deverão igualmente ser utilizadas metodologias de ensino variadas que promovam
nos alunos oportunidades de desenvolvimento do seu sentido crítico, de auto-
reflexão e capacidade de resolução de problemas. Em suma, que promovam nos
alunos a necessidade constante de fazerem uma meta-análise das suas
competências. As escolas deverão possibilitar oportunidades de participação em
actividades que sejam significativas no desenvolvimento das suas competências,
que envolvam responsabilidade para os alunos, que fomentem o diálogo e que os
impliquem em actividades de avaliação, de aprendizagem cooperativa, de ajuda
aos seus pares e também no serviço comunitário. Lembremo-nos que alguns
alunos da nossa amostra referiram que um dos aspectos mais importantes nas
suas vidas constituía a participação e envolvimento em actividades escolares.
Na escola, os alunos são bem sucedidos a diferentes níveis e não só nas
avaliações quantitativas das disciplinas, constituindo essa a parte visível da
realização académica. Para os alunos que desafiam a autoridade e procuram
quebrar sistematicamente as regras de conduta na escola, não chega somente
redigir num regulamento interno, baseado na legislação em vigor, os seus direitos
e deveres. Se por um lado é fundamental que a escola lhes mostre que estão a
proceder mal, por outro é preciso saber, no momento oportuno, elogiá-los, dar-
lhes um feedback de quando as suas atitudes estão a ser positivas e a contribuir
para o seu desenvolvimento e bem-estar da comunidade escolar. Cabe à escola
procurar modificar atitudes e chamar os pais e encarregados de educação como
parceiros de um mesmo “projecto” – o sucesso escolar dos seus educandos.
Perguntamo-nos, quantas vezes os professores contactam ou escrevem aos
encarregados de educação para elogiar os educandos acerca de qualquer tarefa
que eles tenham desempenhado com sucesso? Parece-nos evidente que os pais
gostem de ter o reconhecimento, por parte da escola, dos êxitos dos seus
educandos e não somente dos seus fracassos. Enquanto professores, o nosso
projecto profissional (e porque não também em parte pessoal), deverá ser sempre
o sucesso educativo e individual dos nossos alunos e para isso temos de promover
as suas competências físicas, cognitivas, psicossociais e de resiliência. A
necessidade manifestada por dois alunos de que a escola deveria promover mais
as relações interpessoais entre professores e alunos, concretamente no sentido de
que os professores deveriam conversar mais com os alunos, parece-nos o reflexo
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de que, provavelmente, nem tudo na escola está a ser bem feito. Aos alunos de
 Cadernos de Pedagogia Social

risco estão frequentemente associadas famílias desestruturadas ou disfuncionais


e são os professores os adultos com quem eles mais se relacionam durante o seu
dia. Os alunos necessitam de um adulto com quem conversar, que os ouça e
procuram alguns professores para o fazerem. Essas conversas, provavelmente,
terão que ocorrer em outros espaços que não sejam a sala de aula pois nessa
altura, reclamam alguns professores (não destituídos de razão) têm programas a
cumprir. Mesmo assim, afirmamos que uns minutos “perdidos” (nós achamos
que são sempre ganhos) numa conversa podem transformar-se num trunfo em
dimensões relacionais e afectivas e na construção da auto-estima dos alunos, que
naturalmente se irão transformar em aprendizagem ao longo do ano lectivo e ao
longo da sua vida. Não nos devemos esquecer que muitas vezes é também na
figura do professor que estes alunos vão procurar um pouco da afectividade que
não têm na família.

O relacionamento com o grupo de pares


Na RELAÇÃO COM OS PARES, os alunos de risco, apesar de se sentirem
adaptados ao contexto turma, são na generalidade os mais rejeitados mas
afirmam gostar dos colegas da turma. Não encontramos diferenças entre as
respostas dos alunos dos grupos resiliente e não-resiliente quanto ao sentirem-se
adaptados à turma, à escola e gostarem dos colegas.
A amizade e o respeito são as CARACTERÍSTICAS MAIS APRECIADAS
no grupo de pares. Considerando que é nesta altura que os jovens procuram uma
autonomia afectiva em relação aos pais, é também a partir de agora que os
adolescentes procuram que as relações com o grupo de pares se tornem
efectivamente mais significativas. O grupo de pares parece constituir um factor de
protecção nas suas vidas e não encontramos diferenças nas respostas dadas
pelos alunos dos dois grupos (resilientes e não-resilientes). As características que
os alunos referem que contribuem para fazer amigos reflectem por um lado
aspectos mais sérios das relações de amizade, tal como ser amigo – conotado
com valores de lealdade ao outro, e por outro o lado mais descontraído dessa
mesma relação, ou seja, o serem brincalhões e alegres. Valores como a
honestidade, que relacionamos com o ser boa pessoa, não são muito valorizados
por estes alunos. Este facto parece poder relacionar-se com o conceito de
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identidade estar ainda em fase de construção. Parece que estes alunos que se

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encontram no início da adolescência ainda não têm o seu sistema de valores
completamente assumido.
Os adolescentes entrevistados diferenciam quem na turma são os amigos e os
colegas e não encontramos diferenças nas respostas dadas pelos alunos
resilientes e não-resilientes. Os conflitos em que os alunos afirmam ter estado
envolvidos na escola devem-se sobretudo à reacção a alguns insultos ou
provocações entre pares. Maioritariamente os alunos afirmam não ser agredidos
na escola. Parece assim que o contexto escolar frequentado não apresenta o
fenómeno de bullying. No entanto, são na generalidade alunos não-resilientes que
se envolvem em situações de conflito entre pares. Estes jovens parecem ter as
suas competências sociais menos desenvolvidas e estão menos motivados para
encontrar respostas adequadas para a resolução dos seus problemas (Kumpfer,
1999).

Conclusões

Aos alunos resilientes associamos características internas de resiliência, para


além de factores de protecção provenientes de outros contextos como a escola,
grupo de pares, família e comunidade em geral. Para os alunos não-resilientes
apenas identificamos como factores de protecção nas suas vidas, aspectos que se
relacionavam com os contextos família e comunidade (Howard e Johnson, 2000).
A escola pode ser um contexto promotor de resiliência nos alunos (e.g. Benard,
1991,1995) a nível da dimensão académica, nomeadamente na promoção da
realização académica, da dimensão pessoal, promovendo por exemplo a auto-
estima dos alunos e da dimensão social, fomentando as competências sociais
com os pares e adultos. Apesar disso, no momento em que realizámos este
estudo e de acordo com os testemunhos dos alunos, a escola ainda não é
percebida como um factor de protecção e eventualmente só o será se significar
estar com os pares. O grupo de pares na escola parece funcionar como um
importante factor de protecção nas suas vidas. Será interessante a realização de
um estudo longitudinal com esta amostra para comparar e perceber até que ponto
as suas opiniões se modificaram ao longo do seu desenvolvimento.
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Trabalhar em parceria com todos os professores da escola e técnicos de outras


 Cadernos de Pedagogia Social

áreas de intervenção, com as famílias, com parceiros na comunidade e ainda,


despender mais horas a delinear estratégias de actuação, a implementar
programas de intervenção, a procurar alternativas na (e à) escola pública, que
sirvam os interesses destes alunos, promovendo os seus factores protectores e de
resiliência, pode contribuir para alterar o rumo das suas vidas, para o sentido
positivo da sua competência pessoal. Estes alunos precisam que os professores e
educadores acreditem que eles conseguem ser bem sucedidos nas suas vidas
uma vez que nem sempre a família nem a comunidade o faz. Percebamos a
importância da Escola na promoção da resiliência na vida dos alunos,
principalmente os de risco.

196
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Normas para colaboração

 Cadernos de Pedagogia Social


Os artigos submetidos para publicação deverão ser enviados ao Editor dos Cadernos de
Pedagogia Social. Com excepção dos artigos escritos “a convite”, todos os restantes trabalhos
recebidos serão avaliados anonimamente por especialistas na área respectiva. O Editor
remeterá o artigo, sob anonimato, para dois membros do Conselho Editorial, os quais emitirão
um parecer acerca da aceitação ou não aceitação do artigo para publicação. A decisão de
publicação terá por base estes pareceres, os quais serão dados a conhecer ao primeiro autor
do artigo. Qualquer sugestão de alteração ao texto proposta pelos membros do Conselho
Editorial será submetida, também, à consideração do primeiro autor do artigo. Não haverá
devolução dos artigos não publicados.
Os autores deverão declarar, por escrito, que autorizam a publicação do seu artigo nos
Cadernos de Pedagogia Social, em regime de exclusividade. A propriedade dos artigos passará,
após a sua publicação, a pertencer à Universidade Católica Portuguesa. Os artigos publicados são
da responsabilidade dos respectivos autores. Qualquer reprodução integral ou parcial dos artigos
(excluindo-se citações breves) apenas pode ser efectuada após autorização escrita do Editor.
Quando for o caso, deve indicar-se no quadro de que provas – de mestrado ou de
doutoramento – ou em que projecto se integra o artigo, explicitando a respectiva inserção
institucional e apoios recebidos para a sua realização.
Os originais submetidos para publicação deverão ser dactilografados num processador de
texto (Macintosh ou Windows). Os autores deverão entregar, juntamente com o ficheiro original,
um exemplar impresso do artigo, cuja extensão não deverá ultrapassar as 30 páginas
dactilografadas a dois espaços em folhas A4, letra TIMES, 12 pt. Nestas 30 páginas incluem-se
resumos, quadros, figuras, notas de rodapé e bibliografia.
Os quadros, tabelas e figuras deverão ser sequencialmente ordenados em numeração
árabe e devem ser referenciados através dessa numeração no texto do artigo, por exemplo,
“...na Figura 10...” e não “...na figura seguinte...”. A edição de figuras é a preto e branco.
A primeira página do texto original deverá iniciar-se com o título do artigo. Deverão anexar-
-se ao original duas folhas separadas, onde constem os seguintes elementos:
Folha A: título do artigo; nome e enquadramento institucional do(s) autor(es), endereço
completo (incluindo telefone, fax e e-mail) do autor responsável por toda a correspondência
relacionada com o manuscrito;
Folha B: título do artigo; resumo em português e inglês (com um máximo de 200 palavras
cada resumo); palavras-chave (no máximo de quatro).
As referências bibliográficas serão integradas no texto de acordo com o sistema autor-data.
Em caso de citações textuais, acrescentar-se-á o número da página. Exemplos:
Foster afirmou que “o desenvolvimento da educação…” (1992, 247). Contudo, Watson
(1994) considera…
Diversos autores (Housen, 1983; Parsons et al., 1987) ...
Deve usar-se a partícula ‘e’ (e não ‘&’), por exemplo, …de acordo com Bechtel e Graham
(1999)… ou (Lakoff e Johnson, 1980) .
A Bibliografia, a incluir no final do texto, será organizada alfabeticamente e deverá obedecer
ao formato dos exemplos seguintes:

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Livro
 Cadernos de Pedagogia Social

Guichard, J., Huteau, M. (2001). Psychologie de l’orientation. Paris: Dunod.

Capítulo de livro
Shantz, C. (1983). Social cognition. In P. Mussen (Ed.), Handbook of child development (pp.
495-555). New York: Wiley.

Artigo
Verdasca, J.L. (2005). Análise de fluxos e produtividade escolar. Revista Portuguesa de
Investigação Educacional, 4, 111-122.

Comunicação em reunião científica


Salmivalli, C., Voeten, M. (2002). Connections netween attitudes, group norms, and
behavior in bullying situations. Comunicação apresentada na International Conference of the
Society for Research on Aggression, Montreal, Canada.

Dissertação não publicada


Baptista, I. (2005). Capacidade ética e desejo metafísico – uma interpelação à razão
pedagógica. Dissertação de Doutoramento não publicada. Faculdade de Letras, Universidade do
Porto.

Referências de artigos on-line


Ribeiro, M. (2000). O optimismo irrealista [Em linha]. Disponível em:
http://www.lse.uk/publish/sciam.htm. [Consultado em 06/09/2002.]

Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar
as normas de publicação da APA - American Psychological Association, última versão.
Cada autor terá direito a 3 exemplares da Revista onde o seu artigo for publicado.

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