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EMIL STAIGER
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A ARTE DA INTERPRETAÇÃO

A arte de interpretar as obras poéticas de lingua


alemã I) não pode ser reivindicada pelos actuais
historiadores da literatura como mérito exclu-
sivamente seu. Ela é tão antiga ou mesmo mais antiga
investigada e apresentada em profundidade. Com a
mesma minúcia também se investigou as origens e as
fontes onde o poeta se inspir<Ju C).De modo que depois
dos grandes sábios do século passado. nenhum estu-
que a ciencia da literatura alemã Z).Friedrich e August dioso comtemporãneo poderá aspirar á fama com re-
SchlegeI. Schiller nas suas cartas sob~e .Os anos de curso á história dos assuntos e motivos literários'} ou
aprendizagem de Wilhelm Meister., Goethe em muitas então com o estudo das fontes. Em vez de admitir este
recensões, Herder e Lessing nalgumas dissertações estado de coisas declara-se agora que o antigo nada
dão-nos exemplos de interpretacões feitas com a mais vale e estabelece-se um objectivo inatingível para a
delicada sensibilidade artística e por vezes até com ciencia: -
seria possível fixar o conteúdo das ideias
métodos que seria hoje uma perdoável fraqueza con- das obras literárias. tal como tem feito a História das
siderar como modernos. Também Diltbey, Scberer. Ideias - mas aquilo que é autenticamente poético
Haym e Hehn são grandes mestres neste domínio, escapa ás descrições científicãS:-- ---'. --
apesar de terem noções muito diferentes das nossas Pois. de acordo com a expressão favorita que se usa'
quanto ao significado da sua obra critica '). Não exis- neste caso, a poesia é irracional. Isto é comprovado
tirá provávelmente nenhum importante historiador da de modo suficientemente claro a partir da obra dos
literatura a quem não tenha surgido o problema de principais criticos interpretativos, que revelam uma
que agora nos ocupamos. predilecção evidente pelos textos . dif!ceis'. pela poe-
No entanto como direcção científica - devidamente sia repleta de ideias filosóficas, por exemplo, pelos
apoiada por uma dialéctíca polémica e manifestos pro- últimos livros de Hõlderlin, ou, pelos "Sonetten an
gramáticas - a ínterpretação_oJ} a e:x.eg~ILqll_1t.r~v.~la Orpbeus. de Rilke. No entanto, longe de nos ofere-
a imanencia dos textos, só se impós nos últimos dez cerem interpretações suficientemente amplas que cor-
ou quinze anos '): Só agora nos é afirmado que ao respondam a um ideal intrinseco, limitam-se a comen-
investigador da literatura interessa apenas o texto tários ainda feitos no estilo antigo, e exercitam-se
literário e que ele se deve preocupar tão somente com então na história de metafisica. Se uma vez porém ten-
aquilo que se encontra realizado e expresso na lin- tarem compreender a sério um simplicíssimo milagre8)
guagem do poeta 5). A biografia, por exemplo, fica poético - em textos 'fáceis' e imediatamente apreen-
fora do campo de acção do verdadeiro investigador síveis, que para a ciencia são afinal muito mais difí-
da literatura. ceis de entender - se então se esforcarem por com-
A vida não se associa tanto á arte como Goethe acre- preender num pequeno poema aquilo que nos comove,
ditava e como desejava fazer crer aos outros. Em caso raramente conseguem ultrapassar as mais penosas
algum, afirma-se. se pode esclarecer um poema a par- imitações em prosa, e nunca vão para além dum
tir de dados biográficos. A própria personalidade do palavreado impressionista ').
poeta é também destituida de interesse para o filólogo Que nos apresentem mesmo os mais subtis estudos
consciente, pois que e a psicologia que se deve ocu- sobre a métrica, a sintaxe ou os motivos. Ficam ainda
par com o enigma da existencia dos valores artisticos. assim dependentes do seu gosto e dos seus sentimen-
A História das ldeias não atinge também o objectivo tos individuais. No entanto, diga-se a' verdade. além
que se pretende, pois que entrega a obra de arte dos impressionistas não temos senão o enfado. Quem
literária aos filósofos, e só ve por conseguinte num gostará mesmo assim de os ler? Quem dará atenção'
poema apenas aquilo que todo o filósofo compreende a uma mistura tão fatal de pedantaria e de gosto artis-
melhor do que qualquer poeta. O positivista - que se tico? Seria fácil continuar ininterruptamente esta dis-
norteia pela pergunta: .0 que é herdado e o que é puta, mas com mera teoria pouco se conseguirá de
aprendido?" - erra no uso que faz da lei da causali- decisivo 10). Tentarei deste modo dar um exemplo
dade das ciencias da Natureza. e parece esquecer que duma interpretacão, meditando. a cada passo dado,
a obra de criação artística. exactamente porque é para ver aonde este me leva, e para ver ainda se ela
criada, nunca pode derivar, nunca pode descender se justifica em termos da ciencia da literatura.
doutra. Quanto a escolha do nosso objecto de interpretacão
Não é deste modo que se alcanca a essencia especi- é natural que eu já não me sinta inteiramente livre,
fica, nem é assim que se pode fazer justiça a sublimi- Acabamos de ouvir que os .int.é.rpretes p.r~terem. te.x~9s
dade do mundo poético. Somente quem interpreta, dificeis por não serem assim obrigados a tratar tão
quem não olha nem para a direita nem para a esquer- directamente da essencia poética, e por e.ntão se lhes
da, e que sobretudo não espreita o,qu.~ e_stá por trás exigir, antes de mais, que comentem e expliquem tex-
da poesia,fãz inteir_~jl.\.stiçã.'_ã,_.P-gesia. ressalvando tos reconhecidamente difíceis. Impõe-se-me portanto
assim ãso~.!~!~inia'- da cie~,a, lileratm:a. Quer o a escolha de um texto tão "fácil. que qualquer comen-
destino da investigaçao'nne que todo o movimento tário seja sup~rnuo.
desperte imediatamente a mais viva oposicão, mas ao Deverá além disso ser um poema. visto que uma peça
contrário do que seria de supor, esta tem o' condão de teatro ou um romance exigiriam aqui muito tempo.
de manter também vivo o programa desse movimento. Escolho o poema de Mõrike "Auf eine Lampe". Estes
Contra a Interpretação e a sua reivindicação de ser a versos não necessitam ser comentados. Quem souber
única ciencia da literatura com direito a esse nome, alemão compreenderá facilmente o teor do texto. O
tem-se afirmado mais ou menos o seguinte: O inves- intérprete, porém, arroga-se a dizer. em termos ~ientí-
tigador que ve a sua salvação apenas na interpretação ficos. alguma coisa sobre o poema, abranQe'1Ídó '(sem
faz da necessidade uma virtude. os destruirl o mistério e a bl!l~~~ deste, ao mesmo
Pois no dominio da biografia pouco resta hoje que tempo que com o conbecimelito assim adquirido apro-
fazer: a vida de todos os escritores importantes foi já funda o prazer e o valor da obra de arte literária em. .

lU
questão. Será isso possivel? Põe-se aqui o problema Permanece todavia de pé o seguInte: será isso p.ossi-
de sa~':.r..o.ql.!E!.deverá ser afíilãf ã 'ciência. . vel1 Adio para mais tarde uma resposta e chamo agora
'i ;Hã muito tempo nos ensina a hermenêutica que pode- a atenção para algumas consequências desta argumen-
tação. sé a ciência da literatura se basear na nossa
:
r mos compreender o todo a partir da parte. e a parte a
, Ipartir do todo. Trata-se aqui do circulo hermenêutico.
aptidão para sentir e perceber. ou seja. no §entimenta.
e hoje já não lhe chamamos "vitiosus", po~os; imediato que a poesia evoca_~ó~. isso significará,
da ontoloqia.Jie.Beide.g9êL que~..9,.J:õnheçimen~o i em primeiro lugar. que nem todos podem dedicar-se
humano se_desenvol:\l!!~.?im~ Também a física e a. aos estudos literários "). Exige-se talento. e. além da
matemática não conseguem progredir senão deste capacidade de aplicação cienlifica. também um rico e
r
; modo. Não ternos portanto que evitar o circulo; deve- sensivel
i \ "I1lQ.S...JiI1'''S
esforcar-nos por encontrar a forma mais
coração, uma alma_p-Q.liç~ntd.ça em cujas cor-
das se possam fazer sentir os mais variados e diversos
'certa de entrar nele "). Como se processa. porém'uQ tons. Além disso desaparece assim o abismo que ainda
circulo J:1~r~e!1_ê~~c~t!a .qéncia d~ ~iter!!!ura? hoje separa o "mero" amador do perito erudito: im-
põe-se agora que cada sábio da literatura seja também
Nós lemos versos; eles nos invocam e solicitam "). O
ao mesmo tempo um ~te at!\~lltico, que começa
teor pode-nos parecer apreensível. No entanto ainda sempre com o amor mais puro e singelo. acompanhan-
o não compreendemos. Mal sabemos ainda o que é do depois cada gesto seu com profunda veneração e
que no poema verdadeiramente nos enfrenta. e não com desvelado respeito.
sabemos também como o todo se relaciona e unifica.
. I Mas os versos nos invocam e solicitam. Sentimo-nos Se assim proceder. ele não será culpado de nenhu-
incliiiã'cÍõs -ã'~I;;:s -':;utra -~ez. a ~propriar-nos da sua ma falta de tacto. E o que assim fizer já não causará
magia e do conteúdo que entrevemos e pressentimos .nem ofensa nem desânimo ao verdadeiro admirador
da poesia - isto pressupondo-se que o estudioso da
obscuramen!e. Apenas os teóricos racionalistas con-
testarão que assim seja. A principio nada compreen- literatura tenha realmente talento e que os seus senti-
demos verdadeiramente. Senli.mo-nos ,jj.penas tocados mentos. ou melhor. a s.ua_~-2!!~,ãO:piH!!,:!,entire_perce-
ber não tenham errado. J: naturalmente isso que im-
e ~M!..2..!fl:qs, mas esta imDr~-s~ã~injriai"ri.;~
aq~~_.CU!~ta fu.!.u}:~~el1~~~!gl!!f!c~r~para nçs 13). imrta e que sempre se pretende. Deste modo os crité-
"Algumas vezes este contacto e encontro com o poema rios válidos para a nossa aptidão-para-sentir-e-perce-
ber serão tembém os critérios da nossa ciência da
não se realiza logo à primeira leitura. Muitas vezes o
literatura.
::oração permanece-nos fechado. Então para fazer boa
figura conse~imos na melhor das hipóteses papa- Para nos acercarmos mais do ámago deste problema
guear a respeito do poeta algo que aprendemos de perguntemos"- Que apreendemos nó. no tU2.S.SQ.J>.Linu:iU)
cor. Não somos no entanto invocados a renovar. não encontro com um poema? Nesta altura não é ainda o
solicii'ãdõsã aprofundar a apeid~pçãó I4f d'a obra cria- conteúdo total. que só nos será revelado depois duma
o dora. Com isto chego a mais uma razão por que se leitura mais minuciosa e profunda. Não são também
justifica a minha escolha dos versos de Mõrike: pai"). os pormenores. embora alguns pormen<?res se fixem
eles sinto amor e eles solicitam-me "); é.R!?r.-onfi"T "" !: já em nós. TrMA-se antes de um espirito que "nim" e
autenticidade deste encontro Que me atrevo " ;nter-:; vitaliza o todo e QUe...=.~hamos rli7"T por-
p.!&4::!as. Estou bem ciente que nos domíníos solenes qyê. embora o sintamos dis1.in1aJIl.ente_-=-_,~Q.D_s_~n:i~
da ciência uma tal confissão não poderá deixar de t9~uro_nQJ!~9rmenQ[es. Ritmo '"I é o nome que
causar escándalo. P.~!s que o ma~s.~,~bjectivo dos sen~;: eu dou a este espírito ou sentimento. isto no sentido
limentos passa agora a 'vale'r 'como base de trabalho que Gustav Beckíng fixa no seu livro "O ritmo musical
científico. como lonte de apercepção" ").
No entanto não posso nem quero negar que assim seja. Becking pede aos seus leitores paÇa pegarem numa
Acredito mesmo que este sentimento "subjectivo. pequena vara e para baterem descontraidamente ao
esiêjci bem de acordo com a ,ciência - com â ciêncía compasso duma música. Observa-se por exemplo. no
da literatura! - e. que só assím ela entre na posse caso de Mozart. que todo o ouvinte com sensibilidade
dos seus plenos direitos. Não será que repetidamente musical bate com um ritmo diferente daquele de Bach
nos asseguram que a essência dos valores poéticos se ou Schumann. Todo o compositor tem um "bater-dia-
subtrai ás leis do entendimento. e que, por estar para gramálico" !.) característico. Esta "figura de toque-.
além duma explicação causal. ela escapa á zona onde que podemos representar num diagrama. é o ritmo
essas leis gerais são válidas? E não é penoso ver que. tornado visivel. é o ritmo que domina através duma
por tomar em consideração este infeliz estado de coi- fuga ou sonata. ou seja. o tipo de movimento. a entoa-
sas. a investigação da ciência da literatura se veja ção.
obrigada a afastar e a pôr de lado os elementos in-
compreensíveis, ou seja. aquilo que é essencial na Beçking tentou portanto algo de semelhante a Sievers.
poesia. para se entregar. depois de uma desculpa de- Rutz e NohI. Parece-me no entanto que com maior
sastrada, â tarefa de tratar o não-essencial? Ou não êxito pois que na música o bater do ritmo não se
será lastimoso que só com remorsos ela ceda aos segue tão rápidamente como no caso das sílabas acen-
valores poéticos uma posição mais central. afligindo- tuadas dos versos. e também porque a músiç.a ..impõe
-se então com o sentimento de assim quase desertar a sua vontade de modo mais irresistivel que a poesia.
do rigor verdadeiramente cienlifico? que_trmai~ diSêretanes!e --~entJg9. Trata-se no entanto.
Isto não significa senão que seria assâs curiosa a em ambos os casos, do mesmo fenómeno artístico.
situação da ciência da literatura: quem a seguisse Becking expõe entdo. ou pejo menos sugere frequen-
teria de ser infiel ou á ciência ou â literatura. Se esti- temente. COUlQ_RJ'i.1nlo(no sentido que lhe atribuimos)
vermos porém preparados para acreditar em algo a determina o desenvolvimento ou ,até mesmo toda a
que se possa chamar ciéncia da literatura. teremos estrutura interna das compoSiçÕes.
então de a fundamentar de acordo com a essência dos Beethoven. çujo o:b.;t~~-diagram';:i.ico" ê um ~epto á lei
valores poéticos, e de a ':I.Iiç~rS:!!L!!9_1}2S~Q al)Jor, na da gravidade. tem a sua ênfase nos cumes, compondo
nossa veneração pela poesia, ou seja. teremos de num tipo de melodias e de figuras de acompanhamento
b,~..!,o_bre a .'pureza imediata dos sentimentos '0) diferentes de Mozart. cujo ritmo desce sempre com
que a poesia suscita em nós. ' facilidade e ligeireza. O eslilo duma obra musical

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baseia-se portanto no ritmo. O mesmo acontece com algo que rejeite o nosso primeiro encontro. Posso citar
a criação' literária: também aqui o estilo depende do aqui um exemplo passado comigo: entre as ca~ções
ritmo. populares alemãs que Brahms musicou!S1 encontra-se
Perguntemos porém: O que é o eSlilo? li) Chamamos o seguinte poema:
, ~- ~~àquilo que numa obra "perfeita - ou mesmo no "In stH/er Nachl
--- c'ôli}unto da obra completa dum autor ou de toda urna Zur erslen Wachl
época - hilJlDj)niziU2S.-S~u:uij.f~mmt.!t~spe.ctos.Reco- Ein Stimm' begunnl zu k/agenõ
nhecemos o estilo barroco tanto' num pequeno altar Der néichlge Wind
como em todo um palácio. O estilo pessoal de Schiller Hat süss und lind
está expresso tanto no "Wilhelm TeU" como no "Lied Zu mir den K/ang gelragen ..." !")
von der Glocke". O estilo de "Hermann und Dorothea" Evidentemente que a música me seduziu. Em todo o
f~lill!Ír na constrnrão dos versos assj{!L!;.0.D10Jla caso convenci-me que se tratava duma antiga cancão
escolha dos motivos e na seQuéncia das i~Un- popular e estive mesmo disposto a inclui-Ia numa
I di~i~.
/ A. mulliplicidade torna-se urna através do antologia de canções populares. Porém, como filólogo,
I estilo; ele é o que é constante nas mudanças. Por isso tratei de a investigar e não a encontrei em lado algum,
mesmo aquilo que é efémero adquire um significado acabando finalmente por descobrir que nos meados do
eterno através do estilo e por isso mesmo também as século passado Zuccalmaglio se havia inspirado nos
obras de arte são perfeitas quando é completa a har- versos religiosos "Trutz-Nachtigall", da autoria de
monia e unanimidade do seu eslilo. Spee, para escrever este poema de amor. No caso de
Quando o !.!.!!n2 duma poesia !!,2.s move, quando a Spee o lamento nocturno refere-se a Cristo em Gethse-
nossa çapacidade de sel!t!L.!L~rceb.!!.r não emperra e . mane e a primeira estrofe reza assim:
quando o cOraçã..o se nos abre, então, talvez que dum "Bei slilIer Nachl
modo obscuro mas no entanto ainda assim perceptivel. Zur erslen Wachl
apreen'!I!~~.t~. co!!!.<.?~?lid_'!.~~li.bele~a caracteristica Ein Stimm sich gunnl zu k/agen
dessa-poesia. A I:m>!" ri" ;nlprprp',,(";;n ronsisi.I:..J:m.::; /ch nahm in achl.
.ornar clara esta percepcão, em o transformar numa i Was die da sagl.
percepção susceptivel de ser comunicada e entendida. i Tal hin mil Augen sch/agen ")"
eI.!!..-Q_c:l9J:11men1aL..e...cQJJ\Pr.QX!!L...Ç!uantoaos seus por-!
Em consequência desta descoberta noto agora que
menores ""J.
logo a primeira estrofe é demasiado suave e sentimen-
-Neste ponto o investigador afasta-se daquele que é tal para urna antiga cancão popular; o vento doce e
apen,!s amante da literatura. O amante dá-se por satis- ameno que leva consigo o lamento distante toca já
feito com um sentimento generalizado e contenta-se nos limites da feminidade tipica dos ullrarománticos.
com uma posse mais ou menos indistinta. Poderá, - ~E!..l}1aneira alguma é vergonhoso reconhecer um
quando muito. atentar neste ou naquele pormenor lapso destes. O leigo poderá regozijar-se com um tal
.através duma leitura mais minuciosa. Não sente, equivoco por pane dum especialista. Porém a honesti-
-y>orém, a necessidade~rovar a harmon.i~Lç.QI!Lill!e dade e modéstia do perito consciente faz que este se
JS partes se inteqram no todo 011 rnrnn n Indo est-á aperceba. que, embora ele deva estar em condições de
de perleltoacordo com as partes. O factoc!~stiL<te: situar razoàvelmente obras de maior extensão e enver-
mõiiSii-ac~o--;erPOsSlVerCÕÕSmüi a base da nossa gadura, meia dúzia de versos constitui uma base muito
_ciência ~3). -0-' - o' .0.__.- presunçosa para conjecturas históricas. Dep.Qis de me
Também aqui se poderia perguntar se não seria muito convencer a atentar no enquadramento do poema e de
mais seguro comecar imediatamente com a demons- o reforcar com ressonándas históricas posso agora
tracão, quer dizer, com a simples constatacão do facto ouvi:io em todas as suas partiçularidades. SQ.Y..-iISSim
observado. sem fazer do sentimento. vago e indistinto d;L...Qpinião que o pWenrleT limitarm'O.:.!1QsAO...texto
como é, o nosso ponto de partida. A resposta seria de p!W\ tLAdaracio_de um" nbJ:a...de~r~JLli.te[áriaJlão
novo: sem o prilJleiro~nrnnlro "iIU!a vag~gu~ !i!.ste p~~ ~..':~oao.~o.l,-er.:Q.a.
s~j!!.._e.!,I..naJj~...P~[c~p.!;.ionaria_.Nã!LP.oderia.'ée.r. a. .9r- Vollemos porém ao nosso poema. Nós conhecemos
deJ\~ç~çuumi.Qade da (j!Ui!. Não saberia sequer o que o autor: l>1õrike. Saber o nome do autor é já em si
há nesta de impo~tante. O valor e as caracteris=-" importan te 'S) e isto não deixará de facilitar imenso a
licas individuais do poema ficar-me-iam vedadas. nossa tarefa. Sabemos quando este poeta viveu e esta-
Quando muito eu seria apenas capaz de verificar em mos também informados quanto à sua evolucão artis-
que medida a obra é exteriormente párecida com lica. Procuramos deste modo saber em que época. e. se
outras obras. possivel. em que ano foi escrito o poema "Auf eine
E mesmo neste trabalho enladonho eu não estaria Lampe" , e a nossa sensibilidade permite-nos situar
protegido contra aquele -lipo dedesajeilados e pedan- tanto o tom como o conteúdo na úllima fase criadora
tescos erros. que tão fácilmente surgem quando se
pretende estabelecer com critérios mecànicos o paren-
do artista. Não nos enganamos. . Auf eine Lampe"
surgiu depois do "ldilio do lago de Constància", em
tesco ou a dependência de urna obra de arte. A base 1846. juntamente com o "Aceno dos deuses", -A ima-
espiritual da nossa alma e do sentimento ocasionado gem dos amantes", "Datara suavelons., .Presente de
pela obra é indispensável não só ao .primeiro encontro Natal", "Inscrição num relógio.; ou seia para o fim
como também para a própria demonstra cão. Apenas qaquele tardio periodo de floresci.menta de...poesia
quando a voz que vem das profundezas da alma nos clássica a~~.E!_~~~av~.~e.;;~inad.()este.~.m.h9.de. Horácio
guia e acautéla conseguimos evitar todos-os escolhos. e dumaj;!rendada suábia".
todos os becos sem saida e todos os equívocos a que Já no conhecimento destes dados sentimos agora
até os mais inteligentes sucumbem quando confiam maioi"confii;ça -qu~~do tentamos apreender a métrica
apenas no espirito estritamente racional. Como Sche- e o texto !G);
lling uma vez afirmou: -Haverá um erL!L<l.b~oJJ.ttCL.do. "Noch unverrückl, o schõne Lampe, schmücltesl du,
espiri~4?-'I1~':;~~!1ca..~I!I~rro absoluto da alma" !'). An /eichlen Kellen zierlich au/gehangen hiei,
No entanto como se processa esta demonstracão? Die Decke des nun iasl vergessnen Luslgemachs.
Pode mesmo suceder que, quando se submete o texto Auf deiner weissen MarmorschaIe. deren Rand
a um exame histórico e filológico mais exacto, surja Der Efeukranz von goldengrünem Erz umilicht.

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Schlingl trôhlich eine Kinderschar den Ringelreihn. mente impedido de avançar e não conseguirei pôr os
\Vie reizend alies! lachend, und sanHer Geisl versos em acordo com o motivo, nem tão pouco á es-
Des Ernsles doch ergossen um die ganze Form -
trutura sintáxica ou " escolha das imagens com a
Ein Kunslgebild der echlen Arl. Wer achlet sein? métrica. A este repeito apresenta-se-nos um exemplo
Was aber schôn isl, selig scheint es in ihm selbst SO}." muito conhecido e muito pertinente: a leitura de poe-
O poema é sem dúvida..Á!!.i.SQ.e.Jm:onfundível. Enca- mas mais antigos como se estes tivessem sido escritos
deia-se mesmo assim na tradi.Ç~.Jl!!~.S ~b.~~~ no estilo posterior de Goethe.
c.h. G~e Schiller. Notamos qiieSe encontra composto Se tomarmos poemas de Haller, Gryphus ou Hofmanns-
em trimelros jãmbicos, ou melhor, em trimetros sem a waldau poderemos aplicar-Ihes o ritmo de Goethe ").
tésis apõs cada duas silabas e sem a acumulação de O método pode inclusiv~mente lograr algum êxito
ictos pesados. Enfim. o mesmo tipo de pé que Goethe numa leitura superficial, aliás do mesmo modo que um
moldou na segunda parte do "Fausto" e em "Pandora". concerto de rlach pode ser também tocado numa es-
Ao verso regular, que Mõrike emprega aqui com uma cala de Mozart. Porém num dado momento acabare-
con;te alternància de silabas acentuadas e átonas, mos por esbarrar num obstáculo que nos impede de
damos o nome de senário. Corno na maior parte dos avançar. O trecho torna-se-nos então estranho e in-
conceitos métricos este nome não se revela muito compreensível e recusa-se a se.L.JUlquadrj!do Eo.çj'!ixi:
adequado, mas isso pouco nos interessa aqui. Basta- lho demasiado estreito dos nossos precOnCeÜ9J.. e
-nos reconhecer que E:.~~~~tence à tradição clássica. passa a repugnar ao leitor ou passa pelo menos a
O confronto com o yocaJml.ário utilizado no poema deixá-I o frio e indiferente. Neste caso a interpretação
lembra-nos os estudos dê""estética feitos por Goethe e fracassa.
Schiller. Encontramos termos como Geist (espirito), . :'Se pelo contrário um intérprete tiver sido devidamente
Form (forma), Kunstgebilde (estrutura ou formação : ~aliciado pelo poema, conseguirá mostrar então que o
artistica - obra de arte), e reizend (encantador). sen- trecho em questão é coerentp p ..Clpq",,,in,e que o
do este vocábulo utilizado num sentido que hoje geral- culpado da dissonáncia não é o poeta mas sim o leitor
mente nos escapa e que assinala algo de subtil que por causa dos seus preconceitos goetheanos. Se eu me
nos excita, algo que nos estimula e encanta. Além encontrar numa pista certa, se os meus sentimentos
disso a escolha. .yocabular deixa-nos pressentir uma não me tiverem enganhado, então a cada passo serei
certa inclinacão para os preciosismos, predilecção compensado com a felicidade de reconhecer a har- '.
esta que não se fazia ainda sentír durante o período monia da obra e poderei ver aue tudo s~s.onçentra,1 .r
do alto-classicismo e que se manifesta com clareza na completa e reúne numa unidade. De todos os lados o~
palavra "Luslgemach", aposento de prazer. Consul- poemã-grlta-meó se!J..~~c?'rdo;
e cada percepção leva! "-. ,
tando o dicionário de Grimm encontraremos, como a uma outra, e ca..d~.,,-r~Sl?gue se torna então visível: ~,'~.
exemplo onde esta expressão é aplicada, apenas 0_:, ~onfirma aquilo que já era anteriormente cco.nhecido.j '
"Persianische Rosental" de Olearius. Vemos que se' A interpretação torna-se nesse momento evidente. I ; i)
trata portanto de uma derivação tipicamente barroca. Toda a verdade da nossa ciência da literalura baseia- ;". ~ \
Não haverá certamente ninguém. nem aqueles que -se sobre este tipo de evidência. '. ;>
fingem desinteresse, que ouse menosprezar uma ajuda Porém surgem-nos de novo algumas dificuldades. O
tão pertinente e eficaz, mesmo que esta nos seja dada estilo do poema que constitui o nosso objecto de
pelos biõgrafos e por uma filologia .positivista. Aliás estudo não é susceptível de ser apreendido em termos
a arte da interpretação. literária fundamenta-~e sobre de conceitos. Podemos inclusivamente inventar para 7i;õ.Q.~.
o amplo e vasto conhecimento que todo um seculo de este efeito nomes como Biedermeier S5) e classicismo.
ciência de literatura alemã acumulou para nós, reco- No entanto sob tais conceitos estilisticos incluem-se
0_.li'
nhecendo haver aqui somente pouca coisa que rejeitar bons e maus poemas, romances e dramas 30).
e muito que agradecer 31).Quanto mais antiga for uma-o Mas a singularidade e a beleza espe~ífica do poema
poesia. mais ficamos dependentes da ciência da litera- . Auf eine Lampe" não é aqui abrangida. Poderei tal-
tura e mais necessidade teI!!2~..~e )~y~st~g!\r. JiI!!I~_éL vez descobrir uma "figura de toque" "} como a de
1inm~~.9~'!!...~__poe~a co~o o fundo histórico eDLque Becking. Teria nesse caso ao menos um simbolo para
s~i~.)sto é particularmente verdade quanto à litera- a unidade flutuante do poema. Porêm. sem o respec-
tura anterior aos meados do século passado. que está tivo texto, as figuras de toque não passam de hiero-
muito mais exposta a equívocos do que o leitor des- glifos ainda não decifrados e só têm significado para
prevenido poderá supor. quem tenha já antes compreendido o poema.
A .demonstração" processa-se mais ou menos nestes O estilo individual do poema não é a forma, nem o
moldeS. embora nunca da mesma maneira S!). À aper- conteúdo, não é nem a ideia nem o motivo do poema:
cepção inicial 33)junta-se a demonstração, completan- é. sim, todos estes elementos unidos, e por isso dize-..
do-se assim o circulo hermenéutico da interpretação mos que a perfeição duma obra de arte se baseia no
literária. Há no entanto que reconhecer que estamos facto de tudo se unir e harmonizB:L no e~tilo. Não é
apenas no início. A j~~açã2_1?!ogr.1i!iç~_utloI9..: porém conveniente pretend.er deduzir qualquer destes
gica 'poderá, quanto aos aspectos do tempo e do es- elementos a partir dum outro: por exemplo, a forma
paço, revelar-me se me encontro numa pista certa. partindo-se de uma ideia, de urna ideologia ou de uma
. T..Q9.aviaI!ão m,: é~ado apreender ainda a indíviduali- concepção do mundo; ou então. vice-versa, para se
; dade específica desta obra de arte. (Creio que não chegar aos motivos, às ideias e à matéria literária,
haverá ninguém tão louco que acredite ser um poema como se estes fossem determinados e obedecessem a
constituido por uma mera amálgama das mais subtis uma lei ou "mandamento" da forma. Na verdade am-
e variadas correntes e tradições, ou aínda que ele bos os métodos foram já tentados. Todavia o critico
possa ser deduzido a partir do mundo-ambiente que o que não se deixa arrastar para o sectarismo terá de
condiciona.) R~s.tSl::.mePojsY~r.!ftcar...!I.ba:nnonia..~.f.Q!!- afirmar que um poeta procede duma maneira e outro
~ência inte':,"a do poema. O objecto i~e~iato da m.inha ~
mterpretaçao passa agora a ser o eshlo lDconfundlvel- Max Beckmann (1884-19501. "Despedlda-. Extraido di! uma colec-
mente característico do poema. Também quanto a este ç~o particular de Munique, e publicado com a amáv<!l aulorlzacão
aspecto me parece possível uma demonstração. da Edlt6ra R. Plper Verlag. Munique, em cnJo livro, "Relance de
. _ ... Bf'Ckmann - Documenlos e conferências (196ZI aparece. C.Bllde
A mmha apercepçao Inicial pode no entanto estar aul Bedemaun. Dokumenle uud Vorlrage". Herausgegeben von
errada. Nesse caso ficarei a certa altura inesperada- H. M. von Erlfa Qud E. Cllpel.)
Schlingl trõhlich eine Kinderschar den Ringelreihn. mente impedido de avançar e não conseguirei pôr os
\Vie rejzend alies! lachend, und sanHer Geisl versos em acordo com o motivo, nem tão pouco á es-
Des Ernsles doe h ergossen um die ganze Form - trutura sintáxica ou " escolha das imagens com a
Ein Kunslgebild der echlen Arl. Wer achlet sein? métrica. A este repeito apresenta-se-nos um exemplo
Was aber schôn ist, selig scheint es in ihm selbst SO}." muito conhecido e muito pertinente: a leitura de poe-
O poema é sem dúvida..Á!!.if-Q e.)l),çonfundível. Enca- mas mais antigos como se estes tivessem sido escritos
deia-se mesmo assim na tradis~.Jl!!~.S -<;b.~~~ no estilo posterior de Goethe.
c.h. G~e Schiller. Notamos!jiíeSe encontra composto Se tomarmos poemas de HalIer, Gryphus ou Hofmanns-
em trimelros jàmbicos, ou melhor, em trimetros sem a waldau poderemos aplicar-lhes o ritmo de Goethe "").
tésis após cada duas silabas e sem a acumulação de O método pode inclusiv~mente lograr algum êxito
ictos pesados. Enfim, o mesmo tipo de pé que Goethe numa leitura superficial, aliás do mesmo modo que um
moldou na segunda parte do "Fausto" e em "Pandora". concerto de rlach pode ser também tocado numa es-
Ao verso regular, que Mõrike emprega aqui com uma cala de Mozart. Porém num dado momento acabare-
con;tã';íte alternància de silabas acentuadas e átonas, mos por esbarrar num obstáculo que nos impede de
damos o nome de senário. Como na maior parte dos avançar. O trecho torna-se-nos então estranho e in-
conceitos métricos este nome não se revela muito compreensivel e recusa-se a se.L.JUlquadrj!do EC>..Çfiixi:
adequado, mas isso pouco nos interessa aqui. Basta- lho demasiado estreito dos nossos preconce.il9J.~ e
-nos reconhecer que E:J~ertence à tradição clássica. passa a repugnar ao leitor ou passa pelo menos a
O confronto com o yocaJrnl.ário utilizado no poema deixá-l o frio e indiferente. Neste caso a interpretação
lembra-nos os estudos d'ê'"estética feitos por Goethe e fracassa.
SchilIer. Encontramos termos como Geist (espirito), . :'Se pelo contrário um intérprete tiver sido devidamente
Form (forma), Kunstgebilde (estrutura ou formação : ~aliciado pelo poema, conseguirá mostrar então que o
artística - obra de arte), e reizend (encantador), sen- trecho em questão é coerenlp p "ilpqn"iln, e que o
do este vocábulo utilizado num sentido que hoje geral- culpado da dissonáncia não é o poela mas sim o leitor
mente nos escapa e que assinala algo de subtil que por causa dos seus preconceitos goelheanos. Se eu me
nos excita, algo que nos estimula e encanta. Além encontrar numa pista certa, se os meus sentimentos
disso a escolha. .yocabular deixa-nos pressentir uma não me tiverem enganhado, então a cada passo serei
certa inclinacão para os preciosismos, predilecção compensado com a felicidade de reconhecer a har- ,
esta que não se fazia ainda sentir durante o período
do aIto-classicismo e que se manifesta com clareza na
monia da obra e poderei ver aue tudo s~s.oncentra,1
completa e reúne numa unidade. De todos os lados o:
.r;..;;.'
...,
palavra "Lustgemach", aposento de prazer. Consul- poemã""grlta-meó SE;!!J..~ã:"c?'rdo;
e cada percepção leva, "-.;A,
tando o dicionário de Grimm encontraremos, como a uma outra, e c~d~.':.r~.c<?.9:uese torna então visível; ~"~.
exemplo onde esta expressão é aplicada, apenas 0_" ~onfirma aquilo que já era anteriormente cC/.nhecido.j . '
"Persianische Rosental" de Olearius. Vemos que se' A interpretação torna-se nesse momento evidente. I ; i)
trata portanto de uma derivação tipicamente barroca. Toda a verdade da nossa ciência da literatura baseia- ;'( ~ \
Não haverá certamente ninguém. nem aqueles que -se sobre este tipo de evidência. '. ;>
fingem desinteresse. que ouse menosprezar uma ajuda Porém surgem-nos de novo algumas dificuldades. O
tão pertinente e eficaz, mesmo que esta nos seja dada estilo do poema que constitui o nosso objecto de
pelos biógrafos e por uma filologia .posilivista. Aliás estudo não é susceptivel de ser apreendido em termos
a arte da interpretação .literária fundamenta-~e sobre de conceitos. Podemos inclusivamente inventar para !1::..R.~.
o amplo e vasto conhecimento que todo um seculo de este efeito nomes como Biedermeier S5) e classicismo.
ciência de literatura alemã acumulou para nós, reco- No entanto sob tais conceitos estilístic:os incluem-se
nhecendo haver aqui somente pouca coisa que rejeitar bons e maus poemas, romances e dramas 3A).
e muito que agradecer 31).Quanto mais antiga for uma-o Mas a singularidade e a beleza espe~ífica do poema
poesia. mais ficamos dependentes da ciência da litera- "Auf eine Lampe" não é aqui abrangi da. Poderei tal-
tura e mais necessidade teI!!2~.~e )~y~st~g!\r. JiI!!I~_éL vez descobrir uma "figura de toque" "} como a de
Iinm~!!.9!!'!!...~._poe~a co~o o fundo histórico em..que Becking. Teria nesse caso ao menos um simbolo para
s~!!!.)sto é particularmente verdade quanto à litera- a unidade flutuante do poema. Porém, sem o respec-
tura anterior aos meados do século passado. que está tivo texto, as figuras de toque não passam de hiero-
muito mais exposta a equívocos do que o leitor des- glifos ainda não decifrados e só têm significado para
prevenido poderá supor. quem tenha já antes compreendido o poema.
A "demonstração. processa-se mais ou menos nestes O estilo individual do poema não é a forma, nem o
moldeS. embora nunca da mesma maneira 32). À aper- conteúdo, não é nem a ideia nem o motivo do poema:
cepção inicial 33)junta-se a demonstração, completan- é. sim, todos estes elementos unidos, e por isso dize-.
do-se assim o circulo hermenéutico da interpretação mos que a perfeição duma obra de arte se baseia no
literária. Há no entanto que reconhecer que estamos facto de tudo se unir e harmoniz":L no es.tiJo. Não é
apenas no inicio. A jIlY!it~atã2_1?!ogr.1i!iç~_ui.loI9.: porém conveniente pretender deduzir qualquer destes
gica 'poderá, quanto aos aspectos do tempo e do es- elementos a partir dum outro: por exemplo, a forma
paço, revelar-me se me encontro numa pista certa. partindo-se de uma ideia, de uma ideologia ou de uma
. T.Q..<lavial!ão m,: é dado apreender ainda a indíviduali- concepção do mundo; ou então, vic:e-versa, para se
'dade específica desta obra de arte. (Creio que não chegar aos motivos, às ideias e à matéria literária,
haverá ninguém tão louco que acredite ser um poema como se estes fossem determinados e obedecessem a
constituido por uma mera amálgama das mais subtis uma lei ou "mandamento" da forma. Na verdade am-
e variadas correntes e traditões, ou ainda que ele bos os métodos foram já tentados. Todavia o critico
possa ser deduzido a partir do mundo-ambiente que o que não se deixa arrastar para o sectarismo terá de
condiciona.) R~s.t.iI=.m~ pojsY~r.!f!.car...a.ba:nnonia..~.f.~- afirmar que um poeta procede duma maneira e outro
~ência inte':,"a do poema. O objecto i~e~iato da m.inha ~
mterpretaçao passa agora a ser o eshlo lnconfundlvel- Max Beckmann\1884-19501."Despedlda-.Exlraidodi! uma colec-
mente caracteristico do poema. Também quanto a este ç~o particular de Munique,e publicadocom a amáv<!lautorlzacão
aspecto me parece possivel uma demonstração. da EdltllraR. Plper Verlag, Munique,em cujo livro, "Relancede
. _ ... Bf'Ckmann- Documenlose conlerênclas (19621aparece. C"Bllde
A mmha apercepçao Inicial pode no entanto estar aul BedemanD.DokumeDleuud Vorlrage". Herausgegeben vou
errada. Nesse caso ficarei a certa altura inesperada- H. M. von Erfla Qud E. Clipel.)
doutra. Edgar Allan Poe diz-nos por exemplo que de: argêntea que a linguagem tece. E assim por diante I
senvolveu todo o seu poema "The Raven" ") basel:mdo- Os meios cientificos apuraram-se suficientemente
-se no refrão "nevermore". para nos deixar reconhecer diferenças prosódicas. No
Mas já Schiller confessa-nos que partia sempre de entanto mais cedo ou mais tarde chega-se às fron-
ideias. Isto todavia não tem grande interesse para teiras daquilo que é susceptivel de ser provado, e
nós, se, em vez de nos dedicarmos a estudos biográfi- então apenas n.os é P...e.!!.1!!..tid..Q
?~z~ll.!!' ~eg1,!I)do_a
cos, quisermos explicar e aclarar uma obra de arte ",. nossa sensibilidade, os v~x:.s.Q_s_§.QaIILdes1a ou daquela
Só somos forcados a evocar razões quando a obra mélI~~rã: ÚÍna tal-afirmac~<:!J>E.I!eJ!Q.I:~m_c~mE~~r-
demonstra deficiéncias e falhas, pois, se o poeta -se. libertando-se assim do seu subjectivisma se eu
logrou atingir a perfeicão, não se notará na sua obra conseguir unir ó aspecto tonal aos outros que existem
vestígios do processo histórico da sua criação. Neste no poema.
caso não tel.. sentido artistico perguntar se isto de- Por isso atento no modo como Mõrike estrutura os
pende daquilo, pois que um elemento paira livremente seus versos. Na maioria dos casos a divisão versifica
sobre o outro, e tudo se encontra' equilibrado num corresponde a unidades semânticas, sendo por isso
jogo de relações livres '°1. assinaladas com um ponto ou vírgula; porém isto não
Poderemos mesmo dizer d~lma maneira geral que a sucede sempre assim, e por duas vezes a frase não
categoria da causalidade não tem qualquer valor e termina no fim do verso:
aplica cão onde se encontrar e apreender a beleza .AuJ deiner weissen Marmorschale. deren Rond
pura, tal como esta é. "Então não há nada que funda- Der Efeukranz von go/dengrünem Erz umilichl ..." 16)
mentar ou defender, pois causa e efeito caducam aqui. "Wie reizend alies! lachend. und ein sanfler Gefsl
Em vez de recorrer ao "porque", ou então ao "por Des Ernsles doch ergossen um die ganze Form . . ." ")
esta razão" das explicações racionalistas, nós devemos . Numa obra de arte tão curta e tão cuidadosamente'
descrever. Não se trata porém de descrever arbitrária- estruturada tais transbordos de verso para verso assu-
mente mas sim numa tal relacão com o original que mem uma importância muito significativa. Eles tendem.
esta revele tão inalienável e mais profunda e interior a veJar ligeiramente a E:strutura, que nos é mesmo
que qualquer processo de causualidade "). assim visivel. Todo o poema se articuJa de modo
Encontramos o estilo na execução literária, na ideia, semelhante e parece-nos então que o poema se divide
no motivo. O sentido estilislico do modo como se con- em grupos de três versos '~). Os primeiros tres versos
cebe o mundo, ou seja, da "Weltanschauung", não tem constituem uma oracão gramatical:
primazia sobre a rima. nem esta sobre qualquer outro "Noch unverrückl, o schõne Lampe, schmückest du,
elemento da obra. E quanto mais perfeito for um poe-; An leichlen Ketten zierlich auJgehangen hier,
ma maior a paridade dq~ S~1:l!!.JI.~~ctQs. No entanto Die Decke des nun iasl vergessnen Luslgemachs." 40)
e'sses aspectos só ganharão verdadeiro sentido quando Os seguintes tres versos formam a segunda oracão:
integrados no seu contexto. Se eu extrair por exemplo " Aui deiner weissen Marmorschale, deren Rand
algo para efeitos dum exame - em que as suas rela- Der Efeukranz von goldengrünem Erz umffichl,
ções com o todo sejam excluidas, e que o considere Schlingt irõhlich eine Kinderschar d~n Ringelreihn."..)
. isoladamente - acabarei por cair num seco e mesmo Porêm, em seguida. a estrutura torna-se mais solta e
fraudulento esquemalismo. no terceíro grupo aparece-nos um travessão .'j a ter-
Não me devo permitir afirmações tão abstractas como minar o segundo verso:
as seguintes: uma construção sintáctica de natureza "Wie reizend afies! lachend, und ein sonfler Geist
paratáctica exprime sossego e tranquilidade, enquanto Des Ernstes doch ergossen um die ganze Form -'"')
que uma hipotáctica expressa tensão e,. A primeira O terceiro verso contem uma frase a que se segue
também pode ser lírico-volátil, e a segunda rudemente uma frase interrogativa.
circunstanciada. Na "Jungfrau von Orleans" U) de
Schiller. na cena "Johanna-Montgomery" o emprego "Ein Kunslgebild der echlen Ar/. Wer achlet sein?" 53)
de jambos e trimetros renecte um auge patético e uma 1O-nospossível reunir também estes três versos num
intensa emocão. Os mesmos versos regulares e não grupo, e, mais que não seja por uma questão de sime-
rimados, quando empregados em "Auf eine Lampe" , tria, sentimos quase que compelidos a faze-Ia. Este
de Môrike, comunicam-nos a maravilhosa e reclusa grupo é porém mais solto, e. o que é mais importante.
tranquilidade dum já quase esquecido objecto de arte. ele não se torna uma unidade fechada. A pergunta,
I:: certo que se pode aqui replicar que só o esquema embora não exigindo uma resposta, causa no entanto
métrico permaneceu o mesmo. mas que ao fim e ao uma certa intranquilidade e aponta para além do ter-
cabo os versos são diferentes: Schiller tem uma ca- ceiro verso. Por fim, cuidadosamente preparado sob
dência imperial. Mõrike soa-nos cauteloso e prudente. forma de uma sentenca, aparece-nos o último verso a
Mesmo esta afirmacão pode ser comprovada no texto, coroar todo o poema:
por exemplo. chamando a atenção ora para a impor- "Was aber schõn iSl, selig scheinl es in ihm selbs/." 54)
tância das consonantes em Schil1er, ora para a suavi- Serâ que constitui um quarto grupo? Estariamos justi-
dade das modulacões vocálicas em Mõrike. ficados a dizer que sim. Este verso, que ocupa o lugar
Schiller: dum quarto terceto. fica também com o seu peso tri-
"Du bist des Todes! Eine brit"sche Multer zeugte dich. plicado por razão do seu conteúdo sentencioso_ livre-
Hall ein. Furchtbare! Nicht den Unverteidigten mo-nos porêm de insistir demasiadamente numa tal
Durchbohre! Weggeworfen hab ich Schwert und exegese. JJma tal estrutura Cão do poema é sem dúvida
Schild . . ." '" possível mas ela não pretende apresentar-se como
Mõrike: esquema rígido. Aliás, dum modo encantador, o ele-
"Noch unverrückt. o schõne Lampe, schmückest du, mento estático é para o fim eliminado por um movi-
An lefi::hlen Kel/en zierlich auigehangen hier ..." n) mento SS).
Enfim, dois mundos tonais muito diferentes. SchilJer n ,_ ~
permite-se a liberdade de omitir algumas palavras do Bembard Scbullze, "Mlgof IV". Plástico a cores. Colecç~o LIlo.
discurso de Johanna. Isso seria inconcebível no tre- NI~ermayr~ Wlesbaden. Agradecemos a reproducllo A gentileza
da revista -Das KUDslwerk- tA obra de arfe.. de Badea-Badeo.
cho de Mõrike e uma única palavra omitida teria o em cujo número de Outubro de J963 aparece o estudo de HaDDs
efeito de uma pedrada lancada sobre a superfície Tbeodor Aemmtng sobre Bernhard Schultze.

16
Não é que a própria lâmpada se pareça assim 1 Ela Pelo contrário certos estudiosos consideram muitas
está suspensa por correntes que nos oferecem uma vezes uma questão de honra que se renuncie à arte de
configuração linear, de contornos nítidos e bem visí- escrever bem. Sem dúvida isto constitui uma atitude
veis. O poeta atribuiu assim uma "forma" - no sen- sóbria nos tempos idos em que foi preciso cerrar filei-
tido clássico .1) - à própria lâmpada. Mas em tomo ras para distinguir e libertar a história, como ciência,
desta forma derrama-se um espírito sério e sensato, da história como crónica. lenda ou mito.
mas igualmente ligeiro e suave, um espirHo com algo Hoje todavia um investigador já não tem necessidade
de húmido e fluido, que suaviza a rigidez dos contor- de provar a seriedade e objectividade da sua ciência
nos. O bando de crianças que brincam à roda encon- com um péssimo e deselegante estilo. Se tiver ídeias
tra-se "alegremente" constituido, ou seja duma manei- jcí esc1arecidas quanto à :ma tarefa e se já estiver
ra mais livre. E por fim, na coroa de hera verde-dou- seguro quanto ao método a empregar, então poderá,
rada, acrescentam-se novas tonalidades de cor, que de consciência tranquila, esforcar-se por atingir uma
discretamente se distinguem e sobressaem da forma apresenta cão agradável. redigindo os seus trabalhos
plástica distante. do mesmo modo que as modulações de modo a que não sejam apenas os colegas da espe-
vocálicas reduzem o distanciamento causado pelo cialidade a colher beneficios e ensinamentos. Duma
verso sem rima. maneira geral "os mestres do mesmo oficio. nao sao
Espero que seja agora mais fácil reconhecer como inc1usivamente os melhores e mais compreensivos lei-
todos estes elementos se relacionam. O inefável-con- tores, e causaria verdadeiro espanto se pretendêsse-
substancial >7)que serve de objecto às minhas obser- mos dirigirmo-nos exclusiva e precisamente a eles.
vações é o estilo. Se quisermos encontrar um termo A nossa tarefa não consiste apenas em expor o conhe-
para caracterizar este inefável poderemos chamar-lhe dmento,-ie'mos de cuidar que num público mais vasto
.o"encantador""). no sentido prímitivo atribuido a este se mantenha vivo o sentido e o amor pela poesia;
: conceito. Na verdade Mõrike não nos subjuga, não temos de fazer também com que a palavra dum poeta
nos arrebata, não nos embriaga. Pelo contrário, o que - tantas vezes abusada e mal interpretada - seja
nos faz o "tranquilo mágico que vivia nas montanhas.
- assim lhe chamaria Gottfried Keller mais tarde - é vista a uma luz mais justa e pura./ Poucos estarão
todavia verdadeiramente a' altúril duma tão "difícil
en-cantar-nos duma distáncia judiciosamente bem cal- tarefa de protecção quotidiana",") Em qualquer caso
culada.
não podemos ignorar qual o âmbito das nossas respon-
Não seria muito difícil comprovar dum modo diferente sabilidades, e a arte-de-escrever-bem está sem dúvida
o cunho inconfundível e individual do encanto de
incluída nestes requisitos. A própria natureza do
Mõrike. Isto poderia ser conseguido por uma análise nosso assunto torna aconselhável que o crítico-inter-
das modificações constantes que surgem na constru- pretador cultive a arte da expressão.
ção das suas frases, por exemplo, o modo como, a
titulo de experiência. a palavra "reizend" 59)é melho-
rada mas não eliminada pelo vocábulo "Iachend" 10),
como quem procura a expressão adequada quando
fala. Ou então o modo como a partir deste ligeiro tom
de conversa se eleva e sobressai o ponderado juizo
O critico pode ser dotado ao ponto de desenvolver
conl' espirito e inteligência a matéria mais reni-
estético: .uma autêntica obra de arte" "). Eu poderia tente, os aspectos sintâcticos. métricos, a tonalidade,
inclusivamente documentar com toda uma estatistica etc. - não escapará todavia à censura daqueles
de sons a oscilação entre a distáncia e a aproximação a que se dírige se insistir em ver a salvaç~ó da sua
que encontramos no fim. Devo no entanto tomar em pesquisa apenas nos pormenores. Nem todos deixam
consideracão a que público me dirijo. Em certas cir- que a poesia se Ihes insinue deste modo. Compreende-
-se que muitos leitores. mesmc os melhores, afirmem
cunstâncias pode-se justificar que se demonstre num
único exemplo todos os nossos métodos artisticos l'!j, que não Ihes interessam essas minudosidades; ou que
para provar como cada e todo o elemento duma autên- talvez seja interessa11te ouvi-Ias uma vez. mas que
tica obra de arte se concentra e manifesta no estilo. elas cedo perdem o seu atractivo.
No entanto um tal ensaio não exigiria sómente cui- Vamos dar ouvidos a estas vozes. e desta vez de-
dado e paciência, senão também, diria eu, uma certa sistiremos de aplicar aos versos de Mõrike instrumen-
habilidade ou mesmo artimanha no modo da apre- tos de interpretação cada vez mais pormenorizados.
sentação 13). Pois como cada fenómeno se encontra Em vez disso entrevemos urna outra possibilidade de
aqui entre pares &4)raramente se consegue construir tISj projectar uma luz ainda mais clara sobre o texto.
e chegar aos .resultados com a sequência que no de- Começámos esta interpretação abordando do exterior
senvolvimento ou decurso dum problema ou duma bio- o nosso assunto, e só entrámos no espaço artístico do
grafia parecem já estar ditados pelo desenrolar dos poema depois de algumas considerações sobre a vida
factos objectivos. Quem interpreta corre sempre o ris- do poeta e sobre a transmissão de certos dados da
co de apresentar apenas um apanhado de aperçus tradição literária. Trata-se agora de sair novamente do
isolados como se pon,entura estivesse a fazer uma espaço artístico do poema para tomar contacto com o
linda colecção de borboletas. seu ambiente,
Além disso quanto mais nos esforçamos por atingir O jovem Mõrike, autor das canções de "Peregrina. e
detalhes completos e exaustivos maior a probabili- do "MalerNolten", não delineia contornos e áreas tão
dade de sermos acusados de pedantaria erudita e de definidas como em "Aur eine Lampe". O seu elemento
repisar apenas aquilo que todo o leitor entendido preferido é antes o tempo,
compreendeu logo após poucas alusões. Será que Ele vive fascinado por recordacões. último rei de
devemos fazer-nos surdos quando um critico nos diz Orplid "', que escuta os sons que lhe vêm do passado,
não haver no âmbito da ciência da literatura nada da sua infância, de povos distantes. das lendas herói-
mais fastiento e insípído que uma interpretação exaus- cas. A música domina em toda a parte, nos motívos e
tiva, ou. quando afirma que os estudiosos da literatura na linguagem. e os sons revestem-se aqui duma am-
destroem o último resto de elegância que talvez ainda biência romântica que apenas os ouvidos mais sensí-
lhes estivesse reservado? veis pressentem como se fosse um último e remoto
Não é muito vulgar que no âmbito das ciências se eco. A dor da despedida, algumas vezes num sofri-
discutam problemas referentes à elegância de estilo ""). mento passado que não morre, torna-se audível. Ines-

18
..
-" '. ~.:

!\.farla Lulse KaschnJt:t. lac.simUe do poema -Na praia-o

quecivel. a hora da manhã faz-se sentir repetidamente, tonal que no critério de estruturacão. Mesmo assim o
e "então o atrevido dia desafina" "), já ameacando de nosso timido Mõrike não perde nestes trabalhos clas-
irromper no céu. sicistas a sua inconfundivel individualidade.
Acontece o mesmo com as horas da madrugada, pois Não lhe ocorre tornar a arte num padrão, nem procura
a desejada manhã não aparece e não quer libertar orientar a vida de acordo com um modelo válido, tal
dos fantasmas da noite a insone e angustiada alma como o fez Goethe em HHermann und Dorothea.. A
do poeta. Mõrike, com a alma esgotada pelos misté- possibilidade da arte ser um factor educalivo e peda-
rios nocturnos, fita o dia, - e é assim que nos apa- gógico já não o seduzia, estando muito longe de pen-
rece, no limiar dos tempos, no fim do Romantismo e sar que pudesse caber a ele a vocacão de educar e
no principio duma outra época, cuja sobriedade o melhorar a humanidade. Os fins sociais e cosmopolitas
feria, embora talvez lhe tivesse também permitido es- do classicismo alemão já haviam então perdido a sua
quecer os golpes mais profundos e o horror e o en- validade, e no mundo de MDrike falta a presença do
tontecer insuportável do passado. futuro e do devir. Ele reconhece apenas a beleza do
Ele também não foi poupado à necessidade de deixar presente. mas mesmo assim apenas como resto ou ves-
para trás os sonhos da infância e da adolescência, tigio, como espaço que foi poupado e isolado num
para, como homem adulto, fazer frente às dificuldades ambiente sóbrio e hostil. :r:assim o circulo do "silêncio
do dia. Mesmo assim, durante algum tempo, ele con- demoniaco" 71), em que se encontra "a bela faia. 72),
tinuou a entreter-se com os antigos padrões artisticos. assim o túmulo da mãe de Schiller, e também, no jar-
Ao mesmo tempo floresce e atinge uma perfeicão cada dim, a sua árvore favorita, em que gravou o nome de
vez maior um tipo de arte jâ antes ocasionalmente Hõlty a), lugares portanto que se distinguiam por uma
anunciada, a poesia classicista, que se filia consciente- ligação com o passado. ou então -
talvez o lugar
mente em Goethe e nos mestres da poesia lírica da mais puro e ainda intacto - o "aposento do prazer" 74)
antiguidade clássica. Ali domina a dimensão espacial em que se encontra a bela lâmpada. Sim, ela está ali
do presente 70): a observa cão e a visualizacão prepon- "quase esquecida" 75). "permanece ainda 'intacta" 71),
deram sobre as impressões e sobre o ambiente; a rima mas por quanto tempo? Ninguém presta atenção à
cede lugar aos disticos e a outras antigas medidas obra de arte. Sõmente ele, poeta, se apercebe da sua
métricas, cuja virtude consistia menos no seu aspecto discreta beleza.

19
Ele próprio acaba de entrar. vindo lá de fora. do ana" .7), procurando igualmente fazer justiça à sua
mundo' do trabalho. do dia-a-dia. que o emurchece. unidade estilistica em termos das suas relações histó-
como a todos. Quem poderia afinal resistir ao espirito ricas. Trate-se dum caminho que vale sempre a pena
da época ")1 No entanto os mais nobres "órgãos do seguir. Vemos a quem se aparenta um poeta. e vemos
seu espirito" não morreram ainda de todo. Eles são também em que traços ele se distingue daqueles com
excitados pela presença da obra de arte. e. enquanto quem tem mais afinidades.
ele medita 7"), todo o belo mundo do passado ressus- Não nos devemos limitar aqui nem à época em que o
cita de novo. parecendo-lhe mais uma vez vivo e poeta viveu. nem à literatura alemã. Deveriamos mes-
presente, e. para usar aqui uma expressão do poema mo tomar em conta a Iileratura da humanidade in-
"Reminiscência Divina" 70). é como que "cercado de teira, um ideal que na ,verdade ninguém atinge mas
encanto" .0). pois o poeta já não está habituado a tais que não deve ser esquecido pelos germanistas. Neste
vivencias. Sim, apesar de tudo a beleza ainda o en- sentido tendemos a darmo-nos por satisfeitos em nossa
canta, do mesmo modo que também a nós nos encan- própria casa. ficando alheios à importância da tradi-
tam os seus versos. ção a que os anglicistas e romanistas prestam mais
Cremos que a partir da situação histórica da época de atenção.
Morike, nos é agora mais fácil compreender o O poema "A uma Jámpada" oferece-nos pejo menos
encanto do poema. O poeta não se apresenta como um paralelo com a lírica grega. O titulo não foi neste
dono da casa em que está pendurada a lâmpada. Aliás caso concebido á laia de inscricão mas lembra-nos os
já não parece haver ali um dono. No entanto. em vez cabeçalhos da poesia autênticamente epigramática. Na
de se considerar um estranho, ele sente que pertence .. Anthologia Palatina", colectânea de quinze séculos
ali, e atreve-se pelo menos a considerar-se como um de epigramas gregos. encontramos textos espiritual-
espirito afim e como um iniciado. Talvez seja exacta-' mente aparentados á poesia de Mõrike. especialmente
mente nisto que se baseia a bela e melancólica magia do na época da poesia heJenista. sob os nomes de Teó-
poema. Mõrike não considera a lâmpada uma obra de erito. Erina. Anas, Manasalcas, Calimachos - uma
arte do mesmo modo que o faria Goethe. ou seja. em época portanto que Mõrike gostava de abordar, como
venera cão fraterna e como estrutura orgânica, ~ujas demonstram as suas tradueões de Teócrilo. Nesta altu-
leis e co-relações têm semelhança e parentesco com ra a poesia helenista já não se relaciona à Polis. como
aquelas que regem o corpo e o espirito humano. naturalmente acontecia no caso dos poetas do quinto
A coroa de hera e a roda-de-crianças-a-brincar tem século.
sobre o observador um efeito mais decorativo. quer A vida politica tinha entretanto degenerado, o estado
dizer, ele tende a ver a obra de arte mais dum perdera a consagração que gozava antes. e já não
ponto exterior que interior. Ele não se identifica mantinha sequer um vestigio de dignidade. Deste
totalmente com a obra, não se sente completamente modo os poetas voltavam-se para as zonas ainda
unido a ela, como também o não faz em relação â sua poupadas a esta decadência, exaltando a felicidade da
infância. para a qual talvez a roda-dE-crianças seja vida pastoril. enaltecendo os objectos eleitos. distin-
uma evocacão dolorosa: meio-perto. meio-longe. guindo com os seus louvores túmulos e outros lugares
"meio-prazer, meio-dor" .') como nos diz o poema sagrados. Também aqui nos enleva uma suave auréola
"Primavera" r-). de resignação. O destino destes poetas é de certa
t sobretudo no último verso que esta voz se faz ouvir maneira semelhante ao de Mõrike. Eles sentem-se
com maior clareza: . mesmo epigonos. e tendem a procurar casos raros ou
extremos. por dependerem afinal daquilo que é raro
"Porém, o que belo é. parece-nos conter em si mesmo
e invulgar. Eles dominam toda a variedade de tons e
a felicidade" ""). "O Belo mantém-se feliz por si pró-
superam em requintes e subtilezas todos os outros
pno" .'\ diz-nos Goethe na segunda parte do Fausto.
poetas. No entanto já os abandonou. como aliás a
Goethe não tem dúvidas a este respeito e fala-nos de
Mõrike. o conceito da dignidade do poeta que se iden-
modo decidido e sem qualquer ambiguid3de. Mõrike tifica com o povo e que contribui para os fins da
não vai tão longe. Ele já não tem suficiente fé e con- colectividade.
fianca na sua própria pessoa para saber ao certo quais
os atributos do Belo. Arrisca-se. quando muito, a Ao estabe]ecer comparações deste tipo nunca nos
dizer: "Porém. o que belo é. parece-nos conter em si devemos esquecer das profundas diferenças que sepa-
mesmo a felicidade". E. com uma subtileza e um re- ram nações tão distintas e tempos tão distantes. Não
quinte só possivel num epigono 65).Mõrike vai mesmo devemos todavia também depreciar a importância
ao ponto de substituir "por si próprio" por "em si deste encontro de épocas diferentes. Ele confirma-nos
mesmo' ..): 'parece-nos conter em si mesmo a felici- de modo claro. que. para além dos abismos do tempo
dade". Se tivesse escrito "por si próprio" ter-se-ia e do espaço. o Homem permanece sempre aberto para
os eternos valores humanos '"'I. E reconhecer-se esta
identificado demasiadamente com a lâmpada.
verdade é de importáncia fundamental para a inter-
A lâmpada distancia-se de novo quando nos parece pretação. protegendo-a contra um perigo a que ela
conter "em si mesma" a felicidade. Tudo se passa sucumbe com demasiada frequência. Pois quando con-
como se o observador já tivesse deixado o aposento centramos toda a nossa atencão sobre um objecto de
e pensasse agora na lâmpada. Estas meditacões con- estudo. temos a tendência de julgar que o conheci-
dizem perfeitamente com a sua natureza. uma vez que mento e a descrição deste objecto constituem a meta
se sente fora da sua época, como alguém que nasceu final da ciência da literatura. Como atitude. como
demasiado tarde. No entanto a meditação consola-o.
moral. ~omo hipótese de trabalho trata-se aqui duma
pois que o Belo não carece de aprovação. não neces- opinião ponderosa. Poder-se-ia mesmo explicar, que,
sita ser apreciado por estar contido em si próprio. do mesmo modo que a perfeicão constitui a última
por ser auto-suficiente; - uma consolação, sem dúvi- finaJidade de todos os esforços artisticos. também ela
da. mas mesmo assim dolorosa. pois deixa a cada um deve fornecer o último e mais elevado ideal das pes-
o seu próprio reino: â Beleza o aposento quase esque- quisas votadas à arte. E pouco poderemos refutar
cido, ao homem a monotonia e a indiferença do quoti- quando nos disserem que assim é, e que tudo o resto
diano.
não passa de prefácio ou introdução 80).
Com isto acabo de considerar dum modo sucinto o No entanto seria pena que por causa duma tarefa tão
poema de Mõrike em função de toda a "época goethe- aliciante nos esquecêssemos das outras a que também

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somos chamados. Do mesmo modo que a arte de inter- Quanto mais pura, quanto mais perfeita e mais coe-
pretar depende das pesquisas histórkas e filológicas rente a obra, tanto mais fácil será o nosso acesso a
ela deve esforçar-se por servir estes ramos da inves- ela. Nos dramas em prosa podem estar ausentes cer- .I
tigação. Estou convencido que é precisamente assim tos elementos como a prosódia, a métrica. as estrofes
- da aplicar os pT.?cessos da interpretação com o seu e a rima. Talvez até a própria linguagem do diálogo
modo caracteristico de sitiar sem tréguas um deter- tenha apenas um valor estilistico indiferente. Mas por
minado objecto artistico - que melhor conseguiremos outro lado isto é compensado por factores que faltam
superar aquele tipo de divisões esquemáticas DO)que num poema: uma estruturação mais extensa, organi-
ocasionam tantos juizos prévios e que muitas vezes zada em actos, a acuidade da discussão intelectual, a
nos impedem de ler nas palavras de um poeta aquilo possibilidade dum problema ser apreendido com cla-
que ele lá realmente escreveu. Nenhuma pessoa que reza e plena consciência. Naturalmente teremos que
jã tel1ha interpretado exaustivamente as obras tardias proceder aqui de modo diferente do que aCOD\..ce com
de Lessing ou as do jovem Goethe. se apressará a um poema.
fdzer uso dos conceitos -Irracionalismo Literário- e
Não devemos esquecer-nos porém que também cada
-IIuminismo" O'). poema individual exige um tratamento diferente. No
No entanto, sempre que queira expressar-se e sempre caso de Fleming"} não posso tomar em conta aquela
que deseje apropriar-se de toda a imensidade da maté- compreensão imediata que pressUllonho em Goetheõ
ria que a enfrenta, a história literária depende -de tais em C. F. Meyer .1) teremos de discutir longamente o
conceitos. Estes não podem porém ser automática- problema da apreensão artística .1). o que seria des-
mente aceites e necessitam de filtragens e actualiza- cabido para o estudo de Eichendorff 97). E qualquer
ções periódicas o.). Para serem válidas para a ciência tentativa de esquematização rígida é-nos aqui proibi-
da literatura, estas renovações não podem ser mera- da quer por cada uma destas obras de arte quer pelos
mente fundamentadas em especulações da história da nossos leitores. t em mim próprio que encontro final-
filosofia ou doutras artes mágicas, impondo-se mesmo mente razões para proceder diferentemente em cada
que resultem dum novo e profundo exame dos textos, caso individual.
tal como nos é dado pela interpretação.
O salto que demos do despretencioso poema de Não sinto necessidade da despejar todos os meus co-l
nhecimentos sobre cada poema, e não vejo vantagem .
Mõrike para problemas e questões tão vastas parece
em esgotar completamente todos os textos de que me
um quanto exagerado. O poema, pequeno como é, foi
ocupo. Aqui cativa-me uma característica da lingua-
escolhido por razões de ordem prática, mas o método
gem, ali o encanto da estrutura. E. se não houver 0..-
descrito adapta-se igualmente bem a obras maiores.
propósito de apresentar um exemplo escolar ""), pare-
No entanto certos criticas asseveram, que, a partir das
ce-me. que, em vez de ignorar estas primeiras impres-
obras já escritas, se pode concluir que este tipo de
sões '0) devo desenvolvê-Ias. Pois só consigo desper-
arte de interpretação se presta realmente apenas para
a poesia lirica 93).
tar vida onde a vida me desperta a mim ",.
Nesta objecção há que separar as razões puramente Regresso com isto finalmente ao cunho e à. origem
pessoais dos íundamentos objectivos. Pode muito bem pessoal de toda a interpreta cão. Quer eu me limite
ser que a maioria dos actuais criticos se sinta mais á conscientemente àquilo que mais me atrai num poema,
vontade no campo da lirica. Não se depreende dai que quer me esforce por atingir uma visão completa, a
a causa deste estado de coisas esteja necessariamente minha interpretação será sempre unilateral. Pois eU:-
na natureza do método e podemo-Ia encontrar nas vejo sempre apenas aquilo que posso ver e que me
capacidades especilkas destes criticas que mais facil- ocorreu logo no primeiro encontro com a obra de arte.
mente se deixam comover pelo lirico que pelo dramá- Com isto de maneira nenhuma pretendo fazer aqui
tico ou pelo épico. Talvez isto se explique também uma apologia do relativismo histórico. Afinal eu pró-
pelo facto de mesmo um pequeno poema dar tanto que prio, depois de examinar as minhas apercepções ini-
fazer e exigir tanto cuidado e tacto que por enquanto ciais 10'), dei-me ao cuidádo de demonstrar que elas se
apenas poucos criticos se atrevem a tarefas de maior justificavam.
extensão e envergadura. No entanto não fica excluido que apareça um outro
Seria no entanto dificil provar que o drama e a epo- crítico com uma outra aclaração em que demonstre
peia se prestam menos à interpretação que a lirica. que também as suas impressões o não iludiram. Se
Conquanto que nos forem apresentados versos não ambas estas interpretações estiverem certas não have-
necessitamos de estar alarmados. pois o seu ritmo rá contradições entre elas, mesmo que abordem, quan-
logo nos comoverá. Guilherme von Humboldt demons- to ao todo e quanto as particularidades. o poema de
trou numa brilhante exposição como o mundo das modo diferente. Aliás essas interpretações divergentes
personagens homéricas surge da estrutura do hexa- terão mesmo o condão de me fazer pensar que toda a
metro. Mesmo urna peca de teatro em prosa, esteja ela autêntica e viva obra de arte é verdadeiramente in-
escrita na linguagem da alta sociedade ou das mais finita adentro das suas fronteiras definidas. -Indivi-
baixas camadas populares. não nos causa confusão. duum est ineffabile"'
Pois na sequência das cenas, na progressão do tempo, E pomo-nos a refIectir sobre uma insuperável máxima
e na precipitação ou no desenlace dramático estão humanista que nos lembra que sómente os homens
ocultas e são apreensiveis qualidades rítmiças seme-
todos juntos conseguiriam apreender o humano com-
lhantes as de um verso. Hõlderlin interpretou por
pletamente e em toda a sua profundidade 10!).Enquan-
exemplo o ritmo de tragédias inteiras por analogia
com um único verso. Além disso: o ritmo. no sentido to se mantiver viva a tradíção, o progresso deste co-
nhecimento do Homem 103)jamais terá um fim, e é a
que lhe atribui Becking. é o último e mais profundo
fundamento da unidade estilística, manifestando-se nas esse progresso que a interpretação serve dentro dos
imagens, nas ideias, na atmosfera e nas ambiências, quadros da ciência da literatura. Ela mantém vivo não
assim como no verso. Deste modo os romances e as só o interesse pelo Humano que é inerente ~o Homem
novelas estereotipados tal como nos apresenta o mas talvez até uma outra finalidade mais é,levada de
Reader's Digesl. não são susceptíveis de aguentar que o nosso saber ainda não se apercebe. Como re-
uma interpretação metodólogicamente eficaz e ao compensa e prazer é-lhe dado sondar as profundidades
mesmo tempo fiel á arte. inesgotáveis da Arte.

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