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A questão do mal

por Yair Alon

“E o Eterno, Deus, disse: ‘Eis que o homem se tornou como um de nós, co-
nhecedor do bem e do mal, e eis que agora ele pode estender sua mão e tomar do
fruto’” (Gênesis 3:22)
Antes do pecado, Adão e Eva não conheciam o mal, mas tudo mudou quando ambos comeram
da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Nesse momento, costuma-se falar que houve uma
queda, mas lendo o versículo mencionado acima, vemos claramente que nesse momento o homem é
comparado a Deus e aos anjos: ‘o homem se tornou como um de nós’. Como pode ser? O que real-
mente houve nesse momento? Uma queda ou uma elevação espiritual?

O segredo jaz na natureza do bem e do mal.

Na divindade, o bem e o mal existem simultaneamente, numa situação que alguns chamam
de coincidentia oppositorum (coincidência dos opostos). Nesse sentido, o fato de o homem passar a
conhecer o mal é visto como uma elevação, pois se esse mal for integrado ao bem, atinge-se verda-
deiramente um estado divino. No entanto, assim que conhece o mal, as duas polaridades não estão in-
tegradas, mas são duas coisas separadas e distintas, vivendo apenas misturadas (mas não integradas).
O bem influi no mal e o mal no bem, de modo caótico e pouco “puro”.

Esse novo estado interno do homem passa a ser também a realidade do mundo, em que bem e
mal passam a coexistir mas não de maneira harmônica, e sim em uma batalha, um tentando sobrepujar
o outro, cada um às vezes subjugando e às vezes sendo subjugado. Tratam-se de duas forças separadas
e polares, e não duas faces da mesma moeda. Fazer com que os dois estados existam simultânea e
harmonicamente é o trabalho do processo espiritual.

O processo de criação do mundo é, essencialmente, um processo de separação (Deus separa


a luz da escuridão, a água superior da água inferior, a noite do dia etc.). Por outro lado, o trabalho de
retorno e correção do mundo é um de integração e de unidade.

Existe uma vantagem no fato de bem e mal serem forças polares e separadas: o contraste. Um
ser que só conhece o bem, por um lado, é superior a um ser que conhece bem e mal. Mas, por outro,
o ser que só conhece o bem é um autômato e um robô, que tem uma visão parcial e incompleta da
vida. Assim, em certa perspectiva, o ser que conhece bem e mal e ainda assim se une ao bem pode ser
considerado superior ao ser que só conhece o bem.

Esse pensamento, no entanto, não deve servir para mitigar a grandiosidade e elevação de uma
vida sem esse conhecimento. Há um preço bastante alto a se pagar com o conhecimento do bem e do
mal: a perda da inocência e da pureza. Não devemos cair na armadilha que abocanhou alguns filóso-
fos que unilateralmente glorificavam o caminho sofrido da vida em meio ao bem e mal, considerando
que a existência pristina e imaculada é chata e entendiante. Pelo contrário, há perigos bastante reais
envolvidos na descida a um conhecimento do bem e do mal, como bem atesta o nosso mundo. Um dos
maiores riscos, só para citar um caso, é, por exemplo, a possibilidade de que o bem perca a batalha
contra o mal, ainda que temporariamente.

Do ponto de vista cabalístico, mais do que considerar um estado como ótimo e outro como
indesejado, o mais correto é perceber que ambos os estados de existência possuem suas vantagens
e desvantagens.

A questão, então, é: será que os possíveis benefícios do conhecimento do mal justificam os


perigos envolvidos ao assumir o risco da empreitada? A resposta, paradoxalmente, é sim e não. Sim,
ao conhecer o mal o bem que se revela no mundo é muito maior e mais profundo do que o bem que
poderia ser revelado sem a existência do mal. Mas, não, porque a dor e o sofrimento causados pelo
mal são tão intensos que nada pode justificar sua existência.

Assim, em um estado paradoxal que pervade a natureza, chamado pelo Zôhar de mati ve lo
mati (tocando e não tocando), podemos dizer que Deus ao mesmo tempo queria que Adão tivesse o
conhecimento do bem e do mal (e por isso plantou a árvore bem no meio do jardim) e não queria (e
por isso proibiu a ingestão do fruto).

Entre o estado inicial do mundo (conhecimento apenas do bem) e o estágio final (onde bem e
mal passam a viver totalmente integrados), está o trabalho cabalístico de promover essa integração,
chamada, em hebraico, birur.1 O bem e o mal devem ser reconhecidos como entidades existentes e
ambas necessárias em igual medida. É por isso que a Cabalá ensina que essa integração é feita pela
Sefirá de Chochmá (Sabedoria) que, por sinal, é a fonte de Chéssed, o amor e a união. No estado per-
feito, o mundo e o homem devem promover um casamento do bem e do mal.

Esse estado é simbolizado, dentre outras coisas, por Tiféret, a Sefirá equilíbrio entre Chéssed
(bem) e Guevurá (mal). Jacó, como arquétipo máximo de Tiféret, representa a coexistência do bem
e do mal, como é bem fácil ver ao ler a sua história. Nele, o bem não é considerado o oposto do mal,
mas, pelo contrário, bem e mal estão em uma integração dialética que pervade todo seu ser.

O processo de birur que promove a integração de bem e do mal consiste, portanto, em olhar o
mal, reconhecê-lo, enxergá-lo (não ignorá-lo) e ver o que há nele de bom e necessário para a criação
do mundo, apreciando seu valor e importância na estrutura do universo. Esse é o significado de ver e
extrair a centelha de luz do meio da sombra. Nesse momento, o mal deixa de ser mal, pois é possível

1 Segundo a Cabalá, o homem e o mundo hoje vivem em um estado em que há centelhas de luz
(bem) imersas e presas nas Klipot e no Outro Lado (o mal). Assim, bem e mal não estão integrados,
mas em estado caótico e de batalha. O processo de birur consiste em extrair essas centelhas de luz do
meio sombrio em que elas se encontram.

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ver o lado bom dele. Nesse momento, chega-se a um estado de não-dualidade, em que bem e mal não
são duas categorias de valor, mas duas existências que podem, cada uma, ser boas ou más, ou, melhor,
ambas não são nem uma nem outra, apenas são.

Esse é o segredo do ensinamento do Zôhar de que todo ser humano deve “ofertar um presente
ao Outro Lado” (147b a 148b). Esse é o segredo do bode de Azazel ofertado pelo Sumo Sacerdote, da
ida de Israel ao Egito e da descida dos patriarcas para as terras fora de Israel (Egito, Gerar, Haran etc).

O próprio ato de ir até o mal, para reconhecer sua importância e, mais do que isso, sua existên-
cia divina, é considerado dar um presente para o Outro Lado. A pessoa que se separa do mal e o repele
como se ele não existisse está justamente colocando o mal em uma posição especial, ajudando-o;
fazendo com que ele se fortaleça e, posteriormente, retorne com mais força e poder.

Uma grande lição sobre isso se encontra na história de Jó. Cabalisticamente, o grande erro de
Jó foi oferecer sacrifícios de elevação apenas (Jó 1:5), indicando, portanto, seu desejo mais interno de
se conectar apenas com o lado da santidade. Com sua recusa em dar uma porção para o mal, de reco-
nhecer sua existência interna, e de acalmá-lo e subjugá-lo, Jó conseguiu irritar esse seu lado: assim, o
Diabo aparece e toma conta da vida de Jó, fazendo com ele tudo o que o texto descreve.

William Blake ‘Satan Smiting Job with Sore Boils’, c.1826

Todo ser humano precisa acalmar e pacificar o seu lado mal, o que acaba sendo um modo de
subjugá-lo. Ao dar um presente ao mal, o homem atrapalha seus planos e enfraquece sua capacidade
de causar problemas. O mal que convive pacificamente com o bem não é mais mal.

Como bem resume o Zôhar (34a): “Assim como Jó se separou do mal e não integrou bem e
mal, assim Deus o julgou com a mesma medida: Ele primeiro lhe deu o bem, depois o mal, e depois

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o retornou para o bem. Por isso é propício que uma pessoa conheça o bem e o mal e se dirija ao bem
– esse é o segredo da fé”.

Aqui vemos claramente o contraste espiritual entre Jacó e Jó. Jacó se tornou símbolo da colu-
na do meio porque conseguiu integrar bem e mal. Foi nesse quesito que Jó errou, trazendo, portanto,
um grande mal para si e para o cosmos (o mesmo ocorre com Adão antes de comer do fruto). Ao se
recusar a dar uma porção para o mal, Jó e Adão negavam (ou desconheciam) totalmente sua exis-
tência e buscaram focar apenas no bem. Ao fazer isso, ambos separaram o bem do mal, ao invés de
integrá-los em uma totalidade dialética. Cabalisticamente, podemos dizer que é justamente a pessoa
que foge do mal aquela que faz com que o mal a visite.

Na discussão até aqui, vemos, portanto, três níveis de vivência humana:

1) Nível de Jó (e Adão antes de comer do fruto) – onde só o bem é visto e o mal é ignorado

2) Nível de Adão (após comer o fruto) – bem e mal são conhecidos mas não estão integrados

3) Nível de Jacó – bem e mal são conhecidos e vivem em integração.

Falando em termos práticos, o que esses ensinamentos significam no que diz respeito aos
comportamentos que uma pessoa deve manifestar? Cabalisticamente, diríamos que parte do trabalho
de elevação de uma pessoa é entrar no jardim de impureza.

Entrar nesse jardim e conhecer o mal, no entanto, não significa fazer o mal, ou, na linguagem
bíblica, cometer o pecado. Como a própria sabedoria do português nos mostra, quem “faz” o mal está
realmente criando o mal, fortalecendo-o e ajudando-o, mas não integrando-o.

O que a discussão feita acima mostra é que devemos nos aproximar do mal, reconhecer sua
existência, sentir a força de sua vontade e desejo. Precisamos entrar em contato com ele. É esse o
significado de dar uma porção para o Outro Lado. Isso é feito, como dito anteriormente, justamente
para pacificar e, assim, subjugar o mal.

Ao aprender a fazer isso, o ser humano passa a conhecer o bem e o mal não como Adão no Pa-
raíso, mas entendendo sua base comum e unitária. Ao entrar em contato com o mal e reconhecer sua
força e vontade a pessoa consegue domesticá-lo e fazer com que ele viva em harmonia com o bem.
Nesse momento o homem chega ao estado que a Cabalá chama de santidade, que nada mais é do que
um estado de união, de não-dualidade, de integração dos opostos.

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