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FILOSOFIA RELACIONAL-DIALÓGICA DE MARTIN BUBER E SUAS


CONTRIBUIÇÕES À CIÊNCIA-ARTE DA ENFERMAGEM1

Diego Schaurich2
Maria da Graça Oliveira Crossetti3

Resumo

Trata-se de um estudo teórico-reflexivo que teve por objetivo refletir acerca das
contribuições da filosofia relacional-dialógica de Martin Buber à ciência-arte da Enfermagem.
Inicialmente, explorou-se, brevemente, a biografia de Buber, uma vez que sua trajetória
existencial exerceu importante influência durante o desenvolvimento de seu pensamento
filosófico. Em seguida, apresentou-se os constructos que subsidiam seu referencial teórico,
destacando-se conceitos centrais como relação (EU-TU), palavra, encontro, relacionamento
(EU-ISSO), relação EU-TU Eterno, diálogo e dialogicidade, comunidade, inter-humano e
intersubjetividade. Por fim, teceram-se aproximações – que revelaram os modos-de-
contribuição – entre a filosofia relacional-dialógica buberiana e a ciência-arte da enfermagem,
com especial enfoque ao mundo do cuidado e ao cuidar de comunidades familiares que
experienciam o estar saudável e o estar doente como possibilidades de existência.

1 . Martin Buber: quem é este filósofo?

Martin Buber nasceu em Viena aos 08 de fevereiro de 1878 e passou a primeira


infância ao lado dos avós paternos, na Galícia. Durante a infância pode vivenciar e
experienciar a autêntica tradição judaica e o profundo respeito pelos estudos, sendo que a
palavra falada e sua genuína compreensão despertaram verdadeiro fascínio no ainda infante
Buber. No transcorrer de sua adolescência entrou em contato com a língua hebraica, com
textos bíblicos e com algumas obras filosóficas e teológicas (VON ZUBEN, 2003; YARON,
1993).
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Texto extraído do projeto de pesquisa da Tese de Doutorado intitulado “A Revelação do Diagnóstico de Aids na
Compreensão de Profissionais da Saúde: contribuições da filosofia de Martin Buber”.
2
Enfermeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente do Curso de Enfermagem do Centro Universitário Franciscano
(UNIFRA). Membro do Núcleo de Estudos do Cuidado de Enfermagem (NECE/UFRGS).
3
Enfermeira. Doutora em Filosofia em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente
Associado do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da UFRGS. Coordenadora do
NECE.
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De acordo com Bartholo Jr (2001), foram vários os acontecimentos ocorridos na


infância e adolescência de Martin Buber que influenciaram e direcionaram o desenvolvimento
de sua filosofia, dentre eles o divórcio de seus pais e a figura onipresente de sua mãe que o
abandona de forma inexplicável. O mesmo autor descreve um trecho da obra buberiana
Encontro, Fragmentos Autobiográficos e em seguida tece seu comentário:

... quando, após outros vinte anos, revi minha mãe, que viera de longe me
visitar, à minha mulher e a meus filhos, eu não conseguia olhar em seus olhos, ainda
espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a palavra desencontro
(Vergegnung), como se fosse dita a mim.”
A onipresente ausência da mãe foi fundante para a identidade de Buber,
cuja infância transcorreu na expectativa de que cada instante pudesse vir a ser a
porta de entrada de seu impossível retorno (BARTHOLO Jr, 2001, p. 18).

Portanto, percebe-se que esta separação foi determinante em sua trajetória existencial e
na composição de sua obra. Isso porque pode-se supor que a filosofia de Martin Buber teve
sua gênese na palavra desencontro, aqui entendido como o fracasso de um verdadeiro
encontro entre seres humanos. Contudo, Oyakawa (2005, p. 12) chama a atenção para um
possível exagero analítico que reside em considerar apenas o abandono materno como pré-
determinante de seu pensamento, e acrescenta que as “influências filosóficas e toda a rica
efervescência política de sua época também se eclipsam, em razão da relevância concedida
àquela ruptura”.
Já na adolescência, aos 18 anos, tornou-se acadêmico no Curso de Filosofia e História
da Arte, na Universidade de Viena. No ano de 1901 entrou para a Universidade de Berlim,
vindo a ser aluno de dois importantes pensadores da época: Wilhelm Dilthey e Georg Simmel
(HOLANDA, 1997). Neste período se dedicou aos estudos da psiquiatria e sociologia,
recebendo, três anos após, o título de Doutor em Filosofia. Entre os anos de 1916 e 1924 foi
editor do jornal “DER JUDE” e em 1923 foi nomeado professor de História das Religiões e
Ética Judaica, pela Universidade de Frankfurt.
Após um período em que permaneceu afastado da vida social, cultural e acadêmica
pelo golpe nazista, Buber, então com 60 anos, foi convidado a ministrar aulas de Sociologia
na Universidade Hebraica de Jerusalém. Este período foi marcado por intensa atividade
intelectual, momento em que aprofundou estudos sobre o Hassidismo, sobre a Bíblia e sobre o
Judaísmo, além de pesquisas políticas, sociológicas e filosóficas. Martin Buber faleceu aos 13
de junho de 1965 em Jerusalém (VON ZUBEN, 2003).
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Sua filosofia e pensamento não se filiam a nenhuma corrente filosófica de forma


explícita, pois a preocupação fundamental recaiu em seu movimento cíclico, ou seja, na co-
responsabilidade entre a reflexão e a ação, entre o vivido e o experienciado. Entretanto, alguns
autores associam seus escritos com a corrente existencial-fenomenológica, pois teve
influência de filósofos como Feuerbach, Kierkegaard, Friedman entre outros, e ainda
arriscam-se em afirmar que “na realidade só existiu um existencialista que não foi exatamente
existencialista, e sim, Martin Buber” (VON ZUBEN, 2003, p. 107; BHARTOLO Jr, 2001;
GILES, 1975).
Sua obra de maior relevância – Eu e Tu (BUBER, 1977) – apresenta um caráter dual,
isto é, com nexos que perpassam e permeiam ora o campo da filosofia, ora o da teologia,
revelando-se para além de uma ontologia4 da relação, uma verdadeira antropologia do inter-
humano. Assim, Eu e Tu é a própria experiência vivencial se revelando, sendo uma reflexão
sobre a existência humana. Além disso, produziu escritos acerca de conceitos centrais como
diálogo e dialogicidade (BUBER, 1982), comunidade (BUBER, 1987) e relação ser humano e
Deus (BUBER, 2007), os quais foram fundamentais para elucidar e desvelar sua filosofia
relacional-dialógica.
Ainda, sua obra é composta por estudos de cunho político-filosófico (BUBER, 2005) e
outros voltados ao judaísmo e hassidismo5 (BUBER, 1995; 2003). Sendo assim, para Holanda
(1997, p. 104), Martin Buber produziu

uma vasta obra, calcada no mais profundo espírito da filosofia judaica,


demonstrando uma imensa implicação prática, e uma estrutura totalmente voltada
para o ser humano enquanto pessoa; estruturando uma nova linguagem para o ser
humano, estabelecendo a autêntica comunidade humana, uma linguagem onde se
procura resgatar a verdadeira relação intersubjetiva.

2. A Filosofia Relacional-Dialógica Buberiana

A filosofia de Martin Buber está voltada para o sentido da existência do ser do homem
em todas as suas manifestações, além de propiciar uma reflexão da reflexão e despertar para

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Ontológico diz respeito aos seres em sua existência própria, em contraponto ao conceito ôntico que diz respeito aos
seres tomados como objetos de conhecimento.
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Configura uma das vertentes místicas mais conhecidas e difundidas do judaísmo (juntamente com a cabala e o zohar)
que, de uma forma muito própria – por meio de seus símbolos e rituais –, auxiliou a propagar a filosofia religiosa do
povo judeu (BUBER, 2003; YARON, 1993). O hassidismo foi uma resposta à crise de identidade e espiritualidade
vivenciada pela sociedade européia e surge com o objetivo de unificar a comunidade judaica oriental. Representa um
movimento que defende a existência de uma ligação completa e profunda entre a comunidade terrena e as coisas divinas
e, portanto, Buber pode ser considerado um dos maiores difusores deste pensamento, especialmente pelo fato de que
“sua filosofia do diálogo está calcada no sentido de liberdade, escolha e, principalmente, ação na realidade, que
encontramos no âmago do movimento hassídico” (HOLANDA, 1997, p. 113).
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um compromisso com a experiência vivida, com a vida. Sua obra apresenta como fato
primordial a relação entre os seres humanos e a palavra como sendo dialógica. No entanto, há
que se considerar que o diálogo não é considerado uma categoria do raciocínio dedutivo, mas
é essencialmente um evento de presença e como tal ele acontece (BUBER, 1977).
Ao longo da obra buberiana – especialmente em Eu e Tu (BUBER, 1977) – percebe-se
uma preocupação constante em deixar os conceitos inacabados, isto é, o filósofo preocupou-se
em não delimitar, circunscrever, tolir as inúmeras possibilidades de vir-a-ser contida no
âmago de cada palavra, uma vez que para ele a palavra é presença, é ser-com-o-outro, é modo
de estar-no-mundo. Segundo a compreensão de Oyakawa (2005, p. 46), Buber criticava as
tendências excessivas de manter a linguagem presa à sintaxe e discorre afirmando que a
palavra buberiana possui “antes de mais nada, a possibilidade de fundar algo novo e não se
estabilizar nas estruturas causais do já conhecido, o mundo do Isso”.
É possível depreender que é por meio da palavra “que o ser do homem adentra à
existencialidade, uma vez que ela contém o vivido, é dialógica. É a palavra que situa o
homem no mundo com o outro, que o mantém no ser, que faz do ser, homem”
(SCHAURICH, PADOIN e MOTTA, 2003, p. 35). A própria condição de existência como
ser-no-mundo é a palavra como diálogo e, portanto, o mundo é múltiplo para o homem,
podendo este assumir uma das três possibilidades de existir: poderá adentrar de forma
autêntica na relação instaurada pela palavra-princípio6 EU-TU; poderá experienciar o
relacionamento objetivante da palavra-princípio EU-ISSO; ou, então, poderá vivenciar a mais
genuína de todas as relações, aquela que é expressa pela palavra-princípio EU-TU Eterno.
Para Buber (1977), a palavra-princípio EU-TU somente pode ser proferida pelo
homem em sua totalidade e instaura um modo, uma maneira de ser consigo, com o outro e
com o mundo, pois não existe homem sozinho, independente. O EU é uma pessoa e o TU é
qualquer ente que se apresente à relação existencial EU-TU, podendo ser uma outra pessoa,
um animal, uma árvore, uma nota musical, Deus. Então, o EU, pessoa, se atualiza e se
presentifica no face-a-face de seu TU, e

instaura-se a dimensão da existência, a atitude essencial do homem rumo ao


encontro; encontro de dois parceiros na confirmação mútua e na reciprocidade,
encontro de comprometimento; atitude de escolher e ser escolhido (HOLANDA,
1997, p. 125).

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As palavras-princípio, na concepção do filósofo, referem-se a uma atitude atual, efetiva e atualizadora, pois a palavra é
ato, é o princípio ontológico do homem como ser de diálogo e, assim, assume o seu modo de ser-no-mundo e a sua
atitude no face-a-face existencial com-o-outro. “Quando o homem pronuncia a palavra-princípio, o ser do homem se
lança em direção do outro; sai de seu egotismo e entra em relação com este outro; estabelece sua existência e se
transforma em invocação deste outro” (HOLANDA, 1997, p. 120).
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Na compreensão buberiana o encontro é fundamentalmente um fenômeno e como tal


ele acontece, sendo a essência da inter-relação entre o homem e suas vivências e experiências
existenciais. A reciprocidade, por sua vez, é fundamental para que o ser humano encontre a
sua essência e a essência do outro que se lhe defronta, sendo importante, também, à autêntica
e genuína relação EU-TU de presença no mundo da vida (BUBER, 1977).
A relação configura a livre mútua a-TU-ação entre o EU e o TU em que a presença se
estabelece como modo de ser e estar aí-junto (FERNANDES, 2007). Esta atitude de encontro
entre dois seres, no qual ambos se reconhecem reciprocamente e se confirmam mutuamente,
apresenta como principais características a imediatez, a totalidade, a incoerência espacial e
temporal, a fugacidade e a inobjetivação (BUBER, 1977). Isto porque a relação é algo amplo
e que traz como possibilidade a latência, ou seja, a oportunidade do EU presentificar-se por
meio de um encontro dialógico sempre novo, atual.
Outra atitude possível ao homem é aquela proferida pela palavra-princípio EU-ISSO,
sendo que nesta jamais o ser estará em sua totalidade. Este outro modo de revelar-se configura
uma experimentação, uma objetivação, um uso daquele que se defronta. O ISSO poderá,
também, ser qualquer ente que se apresente ao relacionamento, porém, o TU Eterno (Deus),
jamais será uma coisa entre coisas para um EU (BUBER, 1977). O mundo do ISSO é o lugar
da privação da liberdade e o reino da causalidade, correspondendo ao momento propício à
ordenação do conhecimento e ao desenvolvimento da ciência, e, portanto, importante ao
homem.
Consoante a compreensão de Fernandes (2007), no mundo do ISSO o ser humano
encontra-se preso aos objetos e a convivência passa a ser um mútuo acordo e desacordo de
egoísmos; o mundo do ISSO é instituído por um dizer, que jamais consegue ser essencial,
intrínseco e íntimo. Para Holanda (1997, p. 126) a palavra-princípio EU-ISSO

instaura a dimensão da objetivação, dimensão do discurso científico, do


contato mediato, da consideração a priori, da experiência de qualquer coisa existente
fora de mim, destacada; instaura a dimensão da utilização. Aqui, não há
confrontação, e sim simplesmente uma colocação ante qualquer coisa.

Faz-se, contudo, relevante salientar que as palavras-princípio EU-ISSO e EU-TU são


atitudes fundamentais ao ser do homem, para sua existência. A primeira é essencial para a
construção e elaboração do saber, do conhecimento, da ciência que rege o mundo vivido e
experienciado, enquanto a segunda representa uma forma de presentificação, de encontro, de
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relação entre dois seres que estão abertos e disponíveis para, recíproca e mutuamente, se
atualizarem existencialmente.
Vale ressaltar que cabe ao homem instaurar a mais autêntica e genuína relação, que é
aquela em que a palavra emitida pelo EU busca o diálogo de reciprocidade com o TU Eterno
(BUBER, 1977). Esta relação é o meio através do qual o homem terá a possibilidade de
resgatar a essência de seu ser e entrar em relação com o outro, pois “todo Tu particular é um
reflexo de Tu Eterno. É por intermédio de cada Tu particular da minha experiência que a
palavra-primária dirigi-se ao Tu Eterno” (GILES, 1975, p. 104). Assim, o estabelecimento
deste diálogo com Deus permite o revelar da humanidade e de alternativas para a
compreensão dos problemas existenciais ao estar consigo, com o outro e com o mundo.
O EU tem a possibilidade de entrar em relação dialógica com o TU Eterno por meio de
um encontro inter-pessoal, uma vez que Deus é considerado um Deus-pessoa, isto é, além de
tudo, Ele é também pessoa e, portanto, acessível à relação EU-TU (VON ZUBEN, 2003;
BUBER, 1977). Neste sentido, não caberá ao homem discorrer sistemática e dogmaticamente
sobre Ele, pois o TU Eterno é considerado em sua alteridade absoluta. A significação maior
desta relação não está em descobrir o que Deus é em essência, mas o que é em relação a ele,
ser humano.
Este encontro não ocorre em um espaço e tempo (pré)determinados, mas acontece no
aqui e no agora, na presença autêntica ao estar com o outro e na possibilidade de abertura à
relação existencial. Deus é considerado uma potência transcendente, sem a qual o existir do
ser humano estaria limitado a percorrer o mundo, sem encontrar significados aos fenômenos
que se manifestam ao seu ser-sendo, ao seu devir. Há que se considerar, ainda, que

falar de Deus como Tu eterno, como ser com relação ao devir, exprime a
mesma realidade, pois, para Buber, Deus é ao mesmo tempo transcendente e
imanente, absoluto e relacional. Deus é totalmente Outro; mas é também o
totalmente Mesmo, o totalmente Presente (GILES, 1975, p. 147).

O encontro EU-TU Eterno, portanto, é um fenômeno puro, verdadeiro e autêntico,


uma vez que o ser humano dialoga com o que há de mais supremo em sua existência, com o
que dá sentido ao seu vivido, com o que possibilita que realize as outras atitudes possíveis (a
relação EU-TU e o relacionamento EU-ISSO). Além disso, após sair do “ato essencial da
relação pura, o homem tem em seu ser um mais, um acréscimo sobre o qual ele nada sabia
antes e cuja origem ele não saberia caracterizar corretamente” (BUBER, 1977, p. 126); este
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acréscimo não pode ser compreendido como um conteúdo, mas como uma presença que é
força em seu ser.
Há, então, que se considerar que estas atitudes representam possibilidades para que o
EU perceba e compreenda tanto o TU quanto o ISSO, para, a posteriori, compreender-se e
perceber-se como ser-no-mundo. Assim, o existir do homem está em intrínseca harmonia com
o suceder contínuo destas palavras-princípio, pois no momento em que uma se atualiza como
modo-de-ser, a outra torna-se latente, em um movimento de dinamicidade e exclusividade,
mas em íntima ligação entre si (BUBER, 1977).
Estas atitudes existenciais acontecem por meio da palavra, por meio do dialogal, pois
o homem não conduz a palavra, mas é ela que o mantém no ser. A palavra proferida é uma
atitude eficaz, efetiva e atualizadora do ser do homem. Neste sentido, outra questão central na
obra buberiana compreende-se ser o diálogo, uma vez que este somente pode acontecer na
relação entre dois seres, sendo o „entre-dois‟ uma “esfera não espacial, mas, sim, ontológica,
que será condição de possibilidade de toda relação dialógica inter-humana” (VON ZUBEN,
2003, p. 117).
O „entre‟ nesta compreensão, revela-se um terceiro espaço-tempo de vivência,
representando o lugar da intersecção existente na realidade objetiva do EU e do TU, assim
como da intersubjetividade de ambos. Entende-se que o „entre‟ é um ínterim cheio de
significações, que se estabelece e se presentifica no ato instaurador da relação EU-TU e que
só a eles diz respeito e é plenamente compreensível (RIEG, 2007).
É no „entre‟ que ocorre o diálogo, pois a palavra uma vez proferida pelo EU no
encontro com o seu TU, deixa de pertencer a ele, e também não pertence ao outro, mas passa
a localizar-se no „entre‟ eles, na relação EU-TU. O „entre‟ é o intervalo, o lugar de revelação
da palavra proferida pelo ser. Portanto, a mola-mestra na interpretação da existência humana
“é a relação dialógica, porque ela consegue exprimir que o significado não está no homem,
nem no outro, tampouco no mundo, mas entre os três” (RIEG, 2007, p. 14).
Desta forma, para que os seres entrem em relação há a necessidade da palavra, do
diálogo entre humanos, da relação inter-humana que permite a um EU presentificar e tornar-
se atual no face-a-face com seu TU e vice-versa. Na relação inter-humana o mais

importante é que, para cada um dos dois homens, o outro aconteça como
este outro determinado; que cada um dos dois se torne consciente do outro de tal
forma que precisamente por isso assuma para com ele um comportamento, que não o
considere e não o trate como seu objeto mas como seu parceiro num acontecimento
de vida (BUBER, 1982, p. 137-138).
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Há que se considerar que a relação EU-TU é um encontro existencial em que estão


presentes a reciprocidade, a intersubjetividade, o estar-com-o-outro genuinamente no tempo e
no espaço compartilhados. Esta atitude mostra um modo dialógico de ser e de existir, no qual
a palavra proferida pelo EU recebe a resposta do TU e, então, a resposta é a responsabilidade
de um TU para com a palavra invocada pelo EU. A relação EU-TU revela o “voltar-se-para-o-
outro” sendo, portanto, dialógica, ao passo que o relacionamento EU-ISSO desvela-se pelo
“dobrar-se-em-si-mesmo”, ou seja, um modo monológico de ser (BUBER, 1982, p. 57).
Faz-se importante salientar que o diálogo autêntico somente ocorrerá entre o EU e o
TU no momento em que cada um ver e perceber o outro em sua alteridade, como
essencialmente é, como genuinamente se apresenta como ser-no-mundo. Isto porque no
âmbito do inter-humano, ou seja, das relações dos homens entre si é possível identificar duas
formas de existência humana do EU em relação ao outro; “uma delas pode ser designada
como a vida a partir do ser, a vida determinada por aquilo que se é; a outra, como a vida a
partir da imagem, uma vida determinada pelo que se quer parecer” (BUBER, 1982, p. 141).
E é ao compreender que a palavra é o princípio da existência do homem, de sua
atualização no mundo e de seu reconhecer e ser reconhecido pelo outro, é que Buber entende
que os seres humanos existem na dependência deste outro, porquanto sozinhos não são um
EU e, conseqüentemente, não existe um TU. O homem vive em comunidade (com-unidade)
com outros seres e coisas. A comunidade é algo que abrange toda a existência vivida e
experienciada pelo homem, abrange tudo o que há no viver, não sendo excluído nada
(BUBER, 1987).
A comunidade é a comunhão autêntica do EU com o TU ou com vários TUs, o viver
com outros seres humanos, estando presente, portanto, a relação dialógica, o inter-humano, o
relacionamento objetivante com o ISSO, a intersubjetividade, a experimentação, a presença.
Buber (1987, p. 84) ressalta, ainda, que “é aquilo que se tornou comum, é onde o homem
nasce, aquilo que, por assim dizer, se relaciona com seu subconsciente. Não é resultado de sua
escolha e decisão conscientes”.
Para Holanda (1997, p. 163) “o conceito de „comunidade‟ implica, necessariamente,
num estar em contato, em ligação um-com-o-outro, voltados um-para-o-outro. É um face-a-
face dinâmico, um fluir de um Eu para um Tu”. Este contato tem três importantes
peculiaridades: em primeiro lugar, porque ele nasce da diferença, da alteridade daqueles que
se apresentam à relação. Em segundo lugar, o contato supõe sempre algo novo, desconhecido
a priori, mas que durante a relação torna-se parte de ambos. E, em terceiro lugar, este contato
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que permite a relação e, conseqüentemente, a comunidade, exige que dele emane a mudança,
o crescimento que em si é uma mudança.
Neste sentido, o conceito buberiano de comunidade está relacionado às diferentes e
diversas relações inter-humanas estabelecidas pelo EU no seu mundo da vida. Há que se
compreender, ainda, que a comunidade transcende a união de um EU com um TU ou a união
de vários EUs com vários TUs, uma vez que é essencial que „entre‟ eles esteja presentificada
a percepção do outro em sua alteridade e que vivenciem situações existenciais permeadas por
sentimentos, intersubjetividades e encontros.
O aqui apresentado, portanto, foram os conceitos principais da filosofia e do
pensamento de Martin Buber. Estas idéias e definições encontram-se, em sua obra,
interligadas e são interdependentes. A palavra, a presença, a relação EU-TU, o
relacionamento EU-ISSO, o encontro-com o TU Eterno, o diálogo, o dialógico, a
intersubjetividade, o inter-humano e a comunidade são pressupostos desenvolvidos pelo autor
e que podem vir a servir como subsídios para a ciência-arte da enfermagem.

3. Contribuições da Filosofia Buberiana à Ciência-Arte da Enfermagem

A Enfermagem, como disciplina na área da saúde, é uma ciência do fazer-com


subsidiada pelo conhecimento técnico-científico, ético, estético, epistemológico e filosófico;
mas é, também, arte humana e como tal envolve o encontro, a criatividade, o diálogo, a
intersubjetividade e o inter-humano. Como arte, a Enfermagem pressupõe o estar-com, a
interação entre o ser que cuida e o ser cuidado, a presença autêntica, o genuíno estar-com-o-
outro em sua existencialidade (PATERSON e ZDERAD, 1988).
Neste sentido, pode-se perceber que a arte e a ciência da Enfermagem se revelam por
meio do cuidado, compreendendo-o como o evento que envolve a técnica, o procedimento
prático, o ato administrativo, mas também a relação, o encontro vivido e dialogado entre seres
humanos que compartilham o tempo e o espaço neste mundo do cuidar. Para que este
encontro aconteça, faz-se necessário que existam um ser com disponibilidade para ajudar – o
ser que cuida – e um ser que necessite de ajuda – o ser cuidado – e que ambos estejam abertos
à relação dialógica com o outro, pois entende-se que é o diálogo que conduz ao cuidado
(SCHAURICH e CROSSETTI, 2008).
A Enfermagem, como ciência e arte na área da saúde, tem a possibilidade de, por meio
do encontro vivido e dialogado de cuidado, propiciar o tornar-se mais do ser, seu estar-melhor
no mundo da vida e a oportunidade de escolher de forma livre e responsável. Desvela-se,
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então, ser uma disciplina humana do fazer-com e estar-com, ou seja, que precisa aliar ao
avanço técnico-científico, às normas e rotinas, aos procedimentos e técnicas, a
intersubjetividade, a presença autêntica e genuína, o diálogo vivido e a disponibilidade de um
modo de ajuda (PATERSON e ZDERAD, 1988).
Crossetti (1997, f. 31), em seu estudo que teve por objetivo desvelar o que acontece no
mundo do cuidar em Enfermagem à luz da fenomenologia-existencial heideggeriana, afirma
que fazer Enfermagem “é cuidar do outro, é cuidar do eu, é perceber, é se preocupar e estar
com o outro. É estar para ouvir, ver, experimentar e conhecer”. Assim, entende-se que para
alcançar este cuidado humanístico é fundamental ao ser que cuida estar aberto à relação com-
o-outro, estar presente, com todo o seu ser, no tempo e espaço compartilhados com o ser
cuidado.
Este cuidado autêntico e genuíno deverá acontecer quando o EU do ser que cuida
encontrar o TU do ser cuidado e atualizarem-se mutuamente, adentrando à esfera da relação.
No momento em que ambos compartilharem um único espaço e tempo existencial,
intermediado pela responsabilidade e cumplicidade como ser-no-mundo e ser-no-mundo-com-
o-outro.
Neste sentido, percebe-se que o cuidado emana como resposta a um chamado, a um
pedido de ajuda e, assim, instaura-se a relação dialógica em que está presente a
intersubjetividade e o inter-humano, pois ambos passam a vivenciar sentimentos, emoções,
percepções, valores em comuns e têm objetivos também compartilhados, em uma esfera que
acontece entre eles.
Desta forma, vale destacar a compreensão de von Zuben (2003, p. 11) para o que tange
ao encontro dialógico fundamentado na relação:

a relação mútua que tem como manifestação o contato de responsabilidade,


o vínculo intersubjetivo, concretizado no contato vivido numa situação de dirigir a
palavra e responder ao apelo levam a uma etapa seguinte, vale dizer, ao fenômeno
da responsabilidade, no duplo sentido de resposta a um chamado, e, num segundo
sentido, de suposto respondedor.

O encontro de cuidado surge, então, como resposta a um chamado de ajuda, isto é, o


ser que necessita de cuidado revela por meio do verbal e/ou do não-verbal sua abertura à
relação e o ser que cuida percebe este chamado e responde através da vivência de cuidar,
permeada pelo diálogo. Está, neste momento, estabelecida a relação dialogal entre o EU e o
TU, em que estão preservadas as singularidades de cada um, suas expressividades, suas
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maneiras de ser, mas, também, está inaugurada uma comum-unidade, uma unidade existencial
em que cada um doa e recebe um pouco do que precisa.
Isso porque é importante considerar que além do cuidado ao ser humano que vivencia
o estar doente como modo-de-ser existencial, faz-se necessário transcender o olhar para ver
que há, também, uma família que encontra-se precisando de cuidados. Será, assim, possível
potencializar o vir-a-ser de ambos, perceber as possibilidades e limitações do grupo familiar e
desenvolver um cuidado único e singular visando um viver mais saudável. E é em meio aos
mais distintos e diferentes contextos vividos e experienciados pelas famílias que o cuidado
dialógico em Enfermagem deve desenvolver-se, a fim de dar oportunidades para o ser-com
realizar escolhas livres e responsáveis para seu viver mais saudável e com qualidade.
Pode-se depreender, desta maneira, que as famílias representam unidades de cuidado,
uma vez que desenvolvem o auxiliar, o ajudar, o apoiar, o proteger a seus membros. Portanto,
há que se considerar, no autêntico encontro vivido e dialogado de cuidado em Enfermagem,
as vivências e experiências das famílias, ultrapassando a visão fragmentária e focalizada em
cada um dos seres que a compõe; é preciso estar atento para perceber a unidade existencial
formada pelos seres-no-mundo em família.
O cuidado de um EU para com um TU e o cuidado de um EU para com os vários TUs
familiares, precisa perceber a complexa dinamicidade existente no interior das famílias como
unidades existenciais, assim como seu continuum movimento na coletividade, para, então,
levar em consideração que existe uma rede de significações, comunicações, percepções,
sentimentos, conhecimentos e compreensões que influenciam e direcionam o encontro de
cuidado.
Será possível, desta forma, estar-com as famílias e compreendê-las como formadas por
diferentes seres que apresentam distintas disponibilidades para a relação com o outro (TU) e
diversos modos de ser-no-mundo, portanto, estas diferenciações constituirão unidades
familiares também distintas. O cuidado em Enfermagem, assim, precisará ser vivido na
imediaticidade da relação estabelecida entre o ser que cuida (EU) e o ser-família (TU), por
meio de diálogos existenciais compartilhados na intersubjetividade da com-unidade formada.
Von Zuben (2003) entende ser o conceito buberiano de comunidade o encontro do EU
com o TU ou com vários TUs, constituindo, então, a esfera do nós, em que, preservadas as
individualidades e as singularidades dos EUs, “ambos, eu e comunidade, realizando-se no
encontro dialógico, são interdependentes e „equifundantes‟ da existência humana” (p. 17). Há
que se considerar, portanto, as famílias como com-unidades formadas por indivíduos que
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apresentam laços de consangüinidade e/ou de carinho, afeto e solidariedade e que, ainda, têm
a possibilidade de compartilhar o mesmo espaço físico ou apresentam objetivos em comum.
Isso porque, consoante Buber (1977, p. 53)

a verdadeira comunidade não nasce do fato de que as pessoas têm


sentimentos umas para com as outras (embora ela não possa, na verdade, nascer sem
isso), ela nasce de duas coisas: de estarem todos em relação viva e mútua com um
centro vivo e de estarem unidos uns aos outros em uma relação viva e recíproca.

Portanto, as unidades familiares precisam ser consideradas a fim de que o genuíno


cuidado vivido e dialogado em Enfermagem aconteça, entendendo que para além de um ser-
no-mundo que vivencia o processo de estar saudável e de estar doente, há uma com-unidade
familiar que também o experiencia no dia-a-dia. Sendo assim, será possível que o dialógico,
que o inter-humano, que a intersubjetividade, que a relação EU-TU se instaure a fim de
possibilitar o vir-a-ser de todos e o estar-melhor no mundo da vida em direção a um viver
mais saudável, independente da condição sorológica do(s) ser(es)-no-mundo.

Referência

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