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FORMAS DE MATAR, DE MORRER E DE RESISTIR

Limites da resolução negociada de conflitos ambientais

1
ANDRÉA ZHOURI e NORMA VALENCIO
(Organizadoras)

FORMAS DE MATAR, DE MORRER E DE RESISTIR


Limites da resolução negociada de conflitos ambientais

Belo Horizonte
Editora UFMG
2013

1
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 07
Andréa Zhouri
Norma Valencio

Parte I - Flexibilização de direitos, novos enquadramentos


normativos e justiça ambiental 17

FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E
JUSTIÇA AMBIENTAL 18
Jean Pierre Leroy

EM NOME DO DESENVOLVIMENTO: UM FUNDAMENTO


POUCO SÓLIDO PARA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS 23
Marijane Lisboa

PROJETO MODERNIZADOR DE CONSTRUÇÃO DA


NAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE REDEFINIÇÃO DO ESTADO
E SUAS MARGENS 46
Eliane Cantarino O´Dwyer

A DESCONSTRUÇÃO DO LICENCIAMENTO
AMBIENTAL E A INVISIBILIZAÇÃO DO SOCIAL
NOS PROJETOS DE USINAS HIDRELÉTRICAS 60
Célio Bermann

MINERAÇÃO E DESREGULAÇÃO AMBIENTAL:


LIMITES DO CONSENSUALISMO E DA MEDIAÇÃO
NEGOCIADA EM SITUAÇÕES DE CONFLITO AMBIENTAL 73
Andréa Zhouri

NÃO SE PODE PROIBIR COMPRAR E VENDER TERRA:


TERRAS DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL EM CONTEXTO
DE GRANDES EMPREENDIMENTOS 98
Ana Flávia Moreira Santos

ENTRE CONTROVÉRSIAS, TENSÕES E RESTRIÇÕES:


DESAFIOS DE PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO
DE GRUPOS SOCIAIS VULNERABILIZADOS EM

0
CONTEXTOS SOCIOAMBIENTAIS DISTINTOS 117
Norma Valencio
Elder Andrade de Paula
Rosemeire Scopinho

Parte II - Banco Mundial e governança: desafios para


a garantia dos direitos em contextos socioambientais críticos 143

AMBIENTALIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS:


DA CRÍTICA REFORMISTA À CRÍTICA CONTESTATÓRIA 144
Fabrina Furtado
Gabriel Strautman

GOVERNANÇA, NEODESENVOLVIMENTISMO E
AUTORITARISMO DIFUSO 176
Klemens Laschefski

DOS DESASTRES RECORRENTES AOS


DESASTRES À ESPREITA 205
Norma Valencio

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A RESOLUÇÃO


EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS AMBIENTAIS 238
Carlos Eduardo Ferreira Pinto

OCUPAÇÕES EM ÁREAS DE RISCO: OPÇÃO OU FALTA


DE OPÇÃO DA POPULAÇÃO SEM MORADIA 251
Mário Augusto Vicente Malaquias

POLO NAVAL DO RIO GRANDE: IDEOLOGIA


NEODESENVOLVIMENTISTA, “ALTERNATIVAS INFERNAIS”
E “AUTORITARISMOS TOLERANTES” 262
Cleyton Gerhardt
Rafael Martins Lopo
Caio Floriano dos Santos

SOBRE OS AUTORES 295

ANEXO: CARTA DE BELO HORIZONTE 298

1
APRESENTAÇÃO

A Rio 92 marcou a institucionalização do tema ambiental na agenda pública do país.


Por um lado, se esta institucionalização significou o reconhecimento da relevância do
meio ambiente como tema que concerne toda a sociedade, por outro, ela implicou tam-
bém a adoção de práticas e técnicas de governo próprias de um regime internacional
que, capitaneado por instituições financeiras internacionais, desqualifica o debate políti-
co interno da nação brasileira, na sua multiplicidade de visões, de trajetórias, de tensões
e de desafios. Nos últimos 20 anos, processos de democratização do país vem sendo
esvaziados e subsumidos por técnicas de governo que, a despeito de utilizarem termos
comuns, a exemplo das categorias participação e parceria, partilham, de fato, de léxicos
e projetos políticos divergentes daquele que aponta para uma perspectiva emancipatória
da sociedade civil. Assistimos, então, à institucionalização de procedimentos de "nego-
ciação/mediação/resolução de conflitos ambientais e construção de consensos" que apa-
rentam aderir às formas democráticas de gestão, mas, em realidade, deslocam o foco de
atuação da esfera dos “direitos” para a dos “interesses”, flexibilizando direitos constitu-
cionalmente conquistados.
A reflexão sobre os limites da perspectiva consensualista que delineia o solo do de-
bate e das ações ambientais na contemporaneidade tem sido tema de pesquisa sistemáti-
ca por parte de um número crescente de pesquisadores reunidos em eventos e publica-
ções há pelo menos uma década. Fazem parte desses esforços reflexivos a organização
de grupos de trabalhos e mesas redondas sobre conflitos ambientais em eventos acadê-
micos, tais como os organizados no âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS),
da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Associação Nacional de Pesquisa
em Planejamento Urbano e Regional (ANPPUR), Associação Brasileira de Geógrafos
(AGB), entre outros. Diferentes gerações de cientistas sociais, geógrafos e demais pes-
quisadores envolvidos com a problemática ambiental a partir de abordagens críticas
alimentaram a existência desses fóruns ao longo dos anos. Um número razoável de se-
minários foi organizado em períodos que se alternaram aos congressos acadêmicos, a
exemplo do seminário nacional Desenvolvimento e Conflitos Ambientais, realizado em

7
2008, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e que deu origem à coletânea
de mesmo nome publicada em 2010. Nesse e nos demais eventos, a troca entre pesqui-
sadores, estudantes, ambientalistas e representantes de movimentos sociais propiciou o
avanço do debate sobre justiça ambiental na sociedade brasileira. O seminário Formas
de Matar, de Morrer e de Resistir, ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), em 2012, veio dar continuidade a este processo reflexivo, ampliando o leque
de interlocutores ao chamar para um diálogo mais sistemático outras instâncias da soci-
edade, como o Ministério Público. Buscou-se, portanto, a ampliação do conjunto hete-
rogêneo de atores concernidos com a persistência e o recrudescimento dos conflitos
ambientais. Tais conflitos foram acrescidos da investida na revisão de normas e leis que
ameaçam os direitos ambientais, fundiários e territoriais dos povos indígenas, quilom-
bolas e demais grupos tradicionais, assegurados pela Constituição do país e em espaços
internacionais, cenário que continua a demandar esforços articulados para se pensar a
noção de conflito e as propostas de concertação e de mediação que, a pretexto de aten-
derem a todos os interesses, resultam na “legalização” de formas de expropriação dos
territórios dos povos vulnerabilizados pela proposta hegemônica de desenvolvimento,
situação que agrava a existência de injustiças ambientais.
Com efeito, os conflitos socioambientais em ocorrência no Brasil contemporâneo
disseminam-se com evidência. Os mesmos emergem e se explicitam num pano de fundo
comum que é o da contestação ao modelo neodesenvolvimentista que vem recrudescen-
do as injustiças sociais e intolerâncias de variados matizes. Essas se explicitam na irre-
solução da questão fundiária e da reforma urbana, no disseminado sentimento de inse-
gurança pública, no desnivelamento reiterado das oportunidades econômicas, no baixo
grau de controle social sobre o modus operandi da máquina burocrática do Estado, na
contínua e, porém, estéril reivindicação do cidadão comum ao acesso e à melhoria dos
serviços de saúde e de educação, ao desrespeito à diversidade sociocultural, dentre ou-
tros. Transversalmente à gradual descrença social nas soluções propostas por esse mo-
delo de desenvolvimento, há o clamor de uma das partes em conflito – aquela que se
encontra em ampla desvantagem – para que cessem decisivamente as práticas de socia-
bilidade que, na esfera pública, persistem relativizando os direitos da pessoa humana e
dos sujeitos coletivos. É, portanto, assaz oportuno que as análises críticas porventura
feitas em torno dos conflitos socioambientais tenham em conta o atual contexto macros-

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social de crise. Crise que é negada pela cúpula de alguns dos poderes institucionalmente
constituídos, mas que é, a cada dia que passa, de difícil acobertamento. No seu cerne, há
o esgotamento de um modelo de desenvolvimento cujo espírito é profundamente desu-
manizador.
Sob o manto de uma desenfreada modernização que quer se fazer passar simultane-
amente por avanço social, proliferam-se e banalizam-se inúmeras formas de violência
que acompanham o processo de desenvolvimento, correlatas aos processos característi-
cos da colonização, sobretudo no que tange a subjugação do Outro, a sua desqualifica-
ção epistêmica, o silenciamento, enfim, das formas alternativas de ver, ser, fazer e dizer.
Há a violência dos jagunços, capangas, pistoleiros de aluguel e afins, protagonistas fun-
cionais da materialidade do desenvolvimento no território. Mas há também o aviltamen-
to do trabalho informal, na cidade e no campo, da moradia precária nas beiradas insalu-
bres e improdutivas do que é visto como paisagem do ‘progresso’ e das vãs buscas do
subcidadão por uma oportunidade fugidia de sobrevivência em relação as quais, quando
se manifesta publicamente para reivindicar tratamento digno, colhe intolerância, espan-
camentos, prisões arbitrárias. Disseminam-se as mortes e desaparecimentos em circuns-
tâncias variadas envolvendo conflitos socioambientais, frente às quais as rotinas do Es-
tado supõe que possam ocorrer e manter-se por longo tempo sem explicação. A violên-
cia física também corresponde à violência simbólica, na transformação do outro em
mera categoria administrativa, como atingido, reduzindo o conflito a abordagem de um
economicismo vulgar, cujas feições são predominantemente quantificáveis e passíveis
de contabilização, conflito sobre o qual se pode colocar um preço (por sinal, pífio) à
parte em desvantagem e assim, supostamente, contê-lo, a despeito de direitos individu-
ais e coletivos inalienáveis e prescritos constitucionalmente.
A insistência do Estado brasileiro nesse modelo de desenvolvimento neodesenvol-
vimentista, perseverando nele como referência para que os vários governos, nos diver-
sos níveis, formulem, implantem ou se omitam quanto às políticas públicas fundamen-
tais para os direitos mínimos vitais e sociais dos povos do Brasil, equivale a uma ilusão
de eficácia da manobra política de negação da existência da referida crise. Mas a manu-
tenção dessa ilusão solapa as bases das conquistas democráticas. A aliança duradoura
entre grupos empresariais dominantes, oligarquias regionais, interesses personalistas
acobertados por legendas partidárias e um saber-fazer técnico-científico hiperfinanciado

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e alienado estabelece um tipo de influência nefasta sobre o aparato do Estado, alcançan-
do preocupante perenidade na condução do processo decisório, o qual segue desalinha-
do com muitos dos clamores sociais. E é de destacar, nesse desalinhamento, o ilusio-
nismo marqueteiro, o qual tenta incrustar no imaginário os propalados avanços econô-
micos, políticos e sociais aos quais, contudo, o cotidiano dos moradores das periferias
urbanas, dos sem-terra e dos sem-teto, das pessoas em situação de rua, dos atingidos por
barragens, dos grupos sociais afetados nos desastres, dos povos indígenas e dos demais
povos tradicionais, no geral, desmente.
Vai daí que, a nosso ver, todos os esforços de produção de reflexões críticas acerca
das especificidades dos conflitos socioambientais em ocorrência no país sejam necessá-
rios ou, mais do que isso, providenciais. Eles podem ensejar um mergulho analítico o-
portuno aos que aspiram ir além dos opacos argumentos que têm justificado desfechos
contra a vida social de certas coletividades fragilizadas e/ou justificado a destruição de
lugares identitariamente significativos. Ademais, reflexões de cunho crítico são as que
permitem conhecer melhor as ações e motivações dos sujeitos envolvidos; identificar os
desequilíbrios de poder subjacentes à interação entre tais sujeitos; destrinçar a natureza
concreta e simbólica das tensões havidas; distinguir que as perdas, os danos e os prejuí-
zos de uma das partes têm como correspondente o êxito da outra parte nas pressões para
a obtenção de consensos aviltantes, de ganhos financeiros, prestígio social e outras be-
nesses. Isto é, permitem ir ao âmago daquilo que se constitui o objeto de disputa aqui e
acolá, subsidiando os projetos emancipatórios dos sujeitos sociais que sofrem continu-
amente tais agravos e cuja deterioração da vida se confirma pela indiferença social.
O entendimento das especificidades dos vários conflitos socioambientais também
traz os elementos indispensáveis para a reflexão em torno das regularidades que os co-
necta, as quais inevitavelmente remetem ao modelo de desenvolvimento perverso que
precisa ser superado.
A coletânea que ora apresentamos traz ao leitor uma fração de tais reflexões em tor-
no de especificidades e regularidades dos conflitos socioambientais hodiernos e se ori-
enta para deslindar, com o aprofundamento analítico devido, as variadas formas de ma-
tar, de morrer e de resistir que têm sido levadas a cabo neste país nos encontros e desen-
contros entre as forças institucionais burocratizadas do Estado e suas parcerias com as
instituições internacionais e multilaterais, as forças econômicas concentradas e globali-

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zadas, as forças políticas de caráter patrimonialista, que se situam num polo, e os sujei-
tos sociais que, no polo oposto, se articulam progressivamente para reivindicar direitos.
É uma publicação que não se explica por si mesma no âmbito científico, mas se oferece
como mais um elo entre os esforços científicos precedentes no tema e aqueles que ainda
merecem ser realizados em prol do desvendamento dos conflitos e das lutas em curso na
nossa sociedade. Os textos dos autores colaboradores, que chegam ao público na forma
dos treze respectivos capítulos dessa coletânea, não nasceram como palavras escritas, da
lavra individual de cada um deles. Antes disso, nasceram como um esforço cooperativo
entre os respectivos autores, como palavra e pensamento compartilhados e na indigna-
ção comum em torno dos rumos da nação brasileira e das instituições de Estado na
chamada “questão ambiental”. A Carta de Belo Horizonte, que se encontra no anexo
dessa coletânea, é um dos documentos mais emblemáticos dessa indignação comum que
une, além dos autores dos capítulos, um conjunto de intelectuais de prestigiadas Univer-
sidades do país e oriundos de áreas de conhecimento diversas, lideranças de movimen-
tos sociais, representantes de organizações da sociedade civil.
A coletânea se encontra, então, organizada em duas partes. A Parte I reúne sete capí-
tulos concernidos com o tema da Flexibilização de direitos, novos enquadramentos
normativos e justiça ambiental. O primeiro capítulo, de autoria de Jean Pierre Leroy,
aborda o contexto de revisão normativa nas várias esferas da sociedade brasileira hoje.
O autor adverte que apesar do direito ao meio ambiente ter sido consolidado no âmbito
da legislação brasileira e no nível internacional, o que possibilita aos povos indígenas,
quilombolas e demais grupos tradicionais afirmarem seu direito à existência com base
nesses direitos inscritos na Constituição e em declarações das Nações Unidas, temos
assistido a uma ofensiva dos governos federal e estaduais e da maioria parlamentar no
sentido da propositura de novas normas legais que, na prática, anulam os direitos anteri-
ormente conquistados por esses grupos sociais. O autor lembra que esses grupos, ao
lutarem por seus direitos, cuidam do que é comum à humanidade em seu nome frente às
correntes que indicam a primazia da privatização e da mercantilização sobre o direito ao
meio ambiente.
No capítulo dois, Marijane Lisboa reflete sobre as contradições inerentes à noção de
desenvolvimento, categoria central nas ordens de justificação que sustentam as proposi-
turas de revisão dos marcos regulatórios no país. Conforme salienta a autora, embora

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vaga e contraditória, e quase sempre servindo apenas a interesses econômicos privados,
a noção de desenvolvimento se constitui em uma poderosa ideologia de nossa época,
fundamentando decisões governamentais que violam o direito de grupos sociais e indi-
víduos a manterem seus modos de vida ao tempo em que justifica a busca de uma solu-
ção negociada em nome de um suposto bem maior.
A partir de experiências etnográficas, Eliane Cantarino O´Dwyer reflete no capítulo
três sobre as formas em que o Estado no Brasil tem sido experimentado, desde suas
margens definidas pelos territórios em que ainda deve penetrar, até as situações nas
quais as margens reconfiguram novas práticas de governança como forma de controle
sobre populações. Ao questionar se as margens ameaçam impregnar o Estado de Direi-
to, o capítulo propõe repensar os limites entre centro e periferia, público e privado, legal
e ilegal no contexto em que propostas de resolução negociada de conflito emergem na
sociedade brasileira atualmente.
A desconstrução do licenciamento ambiental e a invisibilização das dimensões soci-
ais nos projetos de hidrelétricas é tema do quarto capítulo, de autoria de Célio Bermann.
O autor problematiza o conceito de impacto e sua inadequação para o tratamento das
consequências sociais para as populações atingidas pelas barragens. A partir do relatório
final elaborado pela Comissão Especial "Atingidos por Barragens", criada pelo Conse-
lho de Defesa da Pessoa Humana do Governo Federal, em 2010, são identificados 16
direitos que vêm sendo sistematicamente violados e são relatadas iniciativas que têm
sido propostas por diferentes agentes do Governo Federal para modificar o licenciamen-
to ambiental de obras hidrelétricas, algo que tende a obstaculizar a defesa dos direitos,
incluindo as ações do Ministério Público.
No capítulo cinco, Andréa Zhouri retoma a experiência de construção do Mapa dos
Conflitos Ambientais de Minas Gerais para problematizar as categorias de conflito,
meio ambiente e a própria noção de conflito ambiental. Em seguida, a partir das dinâmi-
cas sócio-espaciais observadas no território mineiro por meio do Mapa, elege o caso da
exploração minerária no município de Conceição do Mato Dentro, Região Metropolita-
na de Belo Horizonte, para análise de uma situação que expõe a dinâmica neodesenvol-
vimentista e seus efeitos no território, incluindo o processo de multiplicação de confli-
tos. O caso permite resgatar as disputas em torno da noção de conflito e seus efeitos
reais, incluindo as tentativas de concertação que tenderam à sua redução, escamotea-

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mento ou negação. Conclui que os conflitos expressam processos em que a luta ocorre
pela legitimidade de outras formas de visão e di-visão do ambiente e do espaço social,
entendimento que coloca em questão as noções correntes de justiça, democracia e parti-
cipação, confrontando-as com as categorias de desenvolvimento e modernidade ora im-
postas a grupos subalternizados e silenciados. Na mesma direção, o sexto capítulo desta
parte, de autoria de Ana Flávia Moreira Santos, analisa os processos de expropriação
territorial de comunidades quilombolas, camponesas e outros grupos tradicionais no
contexto da implementação de grandes empreendimentos a partir de três distintas situa-
ções: os licenciamentos ambientais para a instalação de uma usina hidrelétrica e de um
empreendimento minerário, e para a expansão de uma exploração minerária. A autora
caracteriza um conjunto de estratégias e dispositivos que, acionados nas três situações,
delineiam um modus operandi de dupla configuração: em primeiro plano, uma dimen-
são de legalidade formal, produzida por um enquadramento restritivo e homogeneizador
da realidade sociocultural e garantida por uma reiterada flexibilização das normas ambi-
entais; “legalidade” esta que tem seu lastro, por sua vez, em uma verdadeira mecânica
da violência que, sendo paradoxalmente constitutiva dessa legalidade, dificilmente gera
repercussões substantivas na esfera (formal) dos processos administrativos ou judiciais.
Reconhecendo a dimensão territorial como estratégica, o texto demonstra como, na
“gestão cotidiana” dos processos de licenciamento ambiental, operam dispositivos que
visam desconstituir a possibilidade do reconhecimento de direitos territoriais coletivos
compreendidos em marcos regulatórios já existentes, na medida mesma em que constro-
em, por meio da violência (o uso ou a ameaça do uso da força), a realidade formalmente
“enunciada”, qual seja, a de que existem tão somente, em um universo sempre restrito
de “diretamente afetados”, posseiros ou (no máximo) proprietários individuais de terras.
No sétimo capítulo, Valencio, Paula e Scopinho analisam a contínua pressão do Es-
tado brasileiro para que certos sujeitos sociais em desvantagem acatem pacificamente a
dissolução de seus respectivos lugares. Os autores destacam três casos nos quais a resis-
tência local, em prol da garantia de seus respectivos direitos territoriais, suscitou as for-
ças institucionalmente constituídas a agirem de modo parcial, intolerante e por vezes
truculento para suprimirem as territorialidades tidas como incômodas ao neodesenvol-
vimentismo. Os referidos casos de conflitos socioambientais envolvem um assentamen-
to rural no município de Ribeirão Preto/SP, resistentes à concepção de agroecologia que

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referenciava as restrições impostas por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a
expulsão sumária, através do uso de força policial, dos moradores da comunidade do
Pinheirinho, no município de São José dos Campos/SP, e povos indígenas em reivindi-
cação da demarcação de vinte e uma de suas terras e que foram expulsos da sede da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), no estado do Acre.
Já a Parte II da coletânea, que vai do capítulo oitavo ao décimo-terceiro, é dedicada
à problemática que envolve o Banco Mundial e demais instituições públicas, nacionais e
multilaterais que, atualmente, se dedicam a esvaziar a ideia de existência de conflitos
socioambientais inerentes às contradições do atual modelo de desenvolvimento. O fa-
zem através da adoção das concepções de governança e similares, as quais passam a
balizar as relações entre os sujeitos sociais tensionantes. Nos seus respectivos capítulos,
os autores discutem a peculiar fabricação da racionalidade desumanizante no seio de
instituições modernas, financeiras, produtivas e militares, e a mal disfarçada hierarqui-
zação entre os sujeitos sociais e as visões de mundo envolvidos nos contextos socioam-
bientais críticos analisados. Tais circunstâncias faz emergir a noção de governança e
suas correlatas como discurso legitimador de práticas que resultam no desmantelamento
dos direitos humanos e/ou difusos dos grupos sociais que se colocam frontalmente em
oposição ao projeto de desenvolvimento que os primeiros ensejam.
No capítulo oitavo, de autoria de Fabrina Furtado e Gabriel Strautman, são apresen-
tadas diferentes vertentes sobre o debate em torno da adoção de salvaguardas socioam-
bientais por instituições financeiras, tendo como foco privilegiado a política sociambi-
ental do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES). Os autores advertem para a
relevância do referido assunto na medida em que o Banco Nacional do Desenvolvimen-
to (BNDES) não é apenas o maior banco público de investimentos do país, mas porque
a sua política socioambiental tem como referência a política do Banco Mundial e é uma
contrapartida do Empréstimo Programático de Política para o Desenvolvimento em
Gestão Ambiental Sustentável Brasileira. No nono capítulo, Klemens Laschefski parte
de uma problematização acerca da opção neodesenvolvimentista adotada pelos gover-
nos Lula e Dilma, mas não reduzidos ao petismo, cuja orientação econômica voltada
centralmente para os investimentos em grandes obras civis são comparáveis aos da dita-
dura militar. Desde aí, o autor destaca a degradação socioambiental e institucional sub-
jacente a esse tipo de desenvolvimento – indo da desumanização das relações de traba-

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lho nos canteiros de obra à alteração da legislação e ao desmantelamento da estrutura de
licenciamento ambiental – para focalizar a parceria que Banco Mundial deflagrou com o
Ministério Público para incitar uma boa governança fundada na ideia de resolução ne-
gociada de conflitos. Porém, sob uma abordagem teórico-metodológica bourdieusiana, e
tendo como referência conflitos em torno de direitos territoriais no contexto mineiro na
concretização dessa parceria, Laschefski demonstra a impossibilidade desse approach
consensualista lograr êxito.
Carlos Eduardo Ferreira Pinto, no décimo capítulo, trata da atuação do Ministério
Público na defesa do meio ambiente e os atuais desafios de resolução de conflitos ambi-
entais à luz dos instrumentos jurídicos utilizados pelo Ministério Público (MP) na tutela
do bem ambiental, em particular, a importância do Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC). O autor chama a atenção para a existência de um ordenamento jurídico-
ambiental brasileiro com instrumentos sólidos, mas que sozinho não consegue lidar com
a irresponsabilidade ambiental que paira sobre uma sociedade na qual os conflitos am-
bientais são crescentes. No décimo-primeiro capítulo, Norma Valencio problematiza os
nexos simbólicos entre o desastre e a guerra e, quanto ao primeiro, rechaça a demarca-
ção objetivista que os quadros técnicos e científicos fazem em relação a esse tipo de
crise. A autora reflete acerca dos contínuos desencontros entre as autoridades públicas e
os grupos sociais indefesos nos desastres e os interpreta como sendo um sinal da imatu-
ridade da nossa democracia.
No décimo-segundo capítulo, Mário Augusto Vicente Malaquias lida com o tema das
ocupações nas chamadas ‘áreas de risco’ na cidade de São Paulo, cuja existência incita a
ação da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da comarca de São Paulo. Par-
tindo da elucidação do lugar desta Instituição no seio da administração pública, o autor
retoma a importância do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) como instrumento
para lidar com esse tipo de conflito socioambiental e focaliza um caso específico de
deslocamento compulsório para que o leitor compreenda alguns dos aspectos sociais
implicados nessa decisão das autoridades sobre a vida cotidiana dos moradores e nos
seus vínculos com o lugar. E, por fim, no décimo-terceiro, Cleyton Gerhardt, Rafael
Martins Lopo e Caio Floriano dos Santos abordam o novo “boom naval” e os ditos “be-
nefícios” de redenção econômica para uma região historicamente pobre, que ofuscam os
danos socioambientais causados. Os referidos autores se detêm num caso de implanta-

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ção de um polo naval no Rio Grande do Sul para analisar criticamente, a partir de três
diferentes níveis ético-discursivos, os processos sociais perversos subjacentes a mais
essa manifestação regional do neodesenvolvimentismo.
Ao compartilharmos esses múltiplos olhares e facetas da “questão ambiental” com o
leitor, desejamos reafirmar que se trata de um passo apenas num caminho árduo, sendo
fundamental a continuidade dos esforços de enquadramento analítico crítico do proble-
ma a fim de, passo em passo, suscitar uma genuína transformação social no país.

Andréa Zhouri (GESTA e PPGAN/UFMG)


Norma Valencio (NEPED/DS/UFSCar e PPGSEA-USP)

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PARTE 1

FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS, NOVOS ENQUADRAMENTOS


NORMATIVOS E JUSTIÇA AMBIENTAL

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JEAN PIERRE LEROY

FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS E JUSTIÇA AMBIENTAL

Ao preparar esta conferência, atendendo ao convite de Andréa Zhouri e Norma Va-


lencio, organizadoras desse oportuno seminário, pensei em me endereçar primeiramente
às e aos estudantes presentes. Vocês participam aqui de um evento em que se exerce
uma ciência cidadã, colada às grandes questões que afligem o país. A academia, ao se
envolver com os oprimidos e os despossuídos, torna-se caixa de ressonância dos seus
conflitos e, junto com eles, desbrava os caminhos do futuro.
Para cumprir com a essa missão, o seminário está reunindo vários setores: Ministé-
rio Público, representantes de atingidos, entidades de apoio. É deste último lugar que eu
falo. Trabalhando e militando numa Organização Não Governamental (ONG), a Federa-
ção de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), há várias décadas, com-
partilhei com muitos dos que participam deste seminário uma história. Vou começar
mencionando alguns momentos e ferramentas que foram e são importantes e nos quali-
ficaram coletivamente para que pudéssemos realizar este seminário, seguros das nossas
análises e posições, situando-os na conjuntura. Apresentarei brevemente leis e outras
normas recentes, em projeto ou já aprovadas. Enfim, apesar de serem elas, por si mes-
mas, autoexplicativas, chamarei as atenções sobre alguns pontos que me parecem rele-
vantes para nosso propósito.

BALIZANDO O CAMPO

Em 2002, foi realizado em Niterói um seminário sobre Justiça Ambiental, no qual


participaram pesquisadores, ONG e representantes de setores sociais em conflito, povos
indígenas, quilombolas, trabalhadores da indústria. O pesquisador e militante norte ame-
ricano Robert Bullard historiou a criação do movimento pela Justiça ambiental nos Es-
tados Unidos da América (EUA), nascido quando se descobriu que os depósitos de lixo
tóxico se sobrepunham ao mapa das comunidades negras, estabelecendo-se então a co-
nexão entre a luta contra o racismo e a luta ambiental (BULLARD, 2004). Nós, brasilei-

1
ros, logo vimos que o espectro da injustiça ambiental em nosso país era muito mais am-
plo. Criamos então a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA).
A partir daí, foi crescendo na academia o que se convenciona denominar de campo,
mas que eu chamo de movimento, intelectual, certo, mas fortemente enraizado no terre-
no. Menciono aqui, na ordem de data da sua criação, mas atuando em sinergia, o Pro-
grama de Cartografia Social desenvolvido sob a liderança do professor Alfredo Wagner
Breno de Almeida. Ele dá visibilidade às comunidades e povos da Amazônia e hoje se
espalha por outras regiões do país; o Mapa de Conflitos Ambientais do estado do Rio de
Janeiro (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e FASE); antecedido pelo mapa do racismo am-
biental; o Mapa de Conflitos que envolvem Injustiça ambiental e Saúde, (Fundação Os-
waldo Cruz (Fiocruz) e FASE); o Mapa dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais
(Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), o Núcleo de Investiga-
ção em Justiça Ambiental (NINJA/UFSJ) e o Núcleo de Investigação em Injustiças So-
cioambientais (NIISA/Unimontes). É indispensável lembrar igualmente a criação nestes
últimos anos de núcleos em diferentes universidades públicas, a maioria deles inclusive
convocando este seminário, que dedicam boa parte do seu trabalho acadêmico aos con-
flitos sociais e ambientais e à promoção da Justiça ambiental, as relatorias para o direito
humano ao meio ambiente, da Plataforma para os Direitos humanos Econômicos, Soci-
ais, Culturais e Ambientais (DhESCAs) e Dossiê Abrasco sobre agrotóxicos.
Através de alguns representantes desse campo da pesquisa, são centenas e milhares
de grupos sociais feitos de pessoas de corpos ausentes, mas cujas histórias e vidas vão
pairar hoje no meio de nós. Sabemos de conhecimento e de convivência, que o modelo
de produção e de consumo hegemônico não afeta todos por igual. Suas consequências
deletérias atingem principalmente e, na maioria das vezes, unicamente, pobres, traba-
lhadores, moradores de áreas de risco ou de entorno de fábricas, povos indígenas, ne-
gros, mulheres, crianças. E os adjetivos às vezes faltam para descrever o seu estado:
invisíveis, humilhados, descartáveis, feridos ou aniquilados pela marcha da insensatez
que se costuma chamar de progresso, crescimento e desenvolvimento.
Quem visita um dos prestigiosos vinhedos de Bordeaux, na França, antes de passar
pela adega adentra em larga alameda que abre de cada lado para as longas fileiras de
videiras. O que impressiona então não é o vinhedo, mas as opulentas roseiras que enfei-

2
tam o caminho, plantadas no início de cada fileira. Na primavera, o visitante fica inebri-
ado pelas cores e pelo perfume dessas rosas e disposto a louvar o proprietário do Châ-
teau pelo bom gosto... até ser informado que essas delicadas roseiras são prosaicamente
um dispositivo destinado a prevenir as doenças da vinha. Serão atacadas em primeiro
lugar, sinalizando que a doença está atingindo a vinha e que está na hora de tratá-la.
Adeus, rosas, não são vocês que fazem a fortuna do barão de Rotschild.
Essa imagem me vinha à mente quando eu lia os 297 casos de injustiça ambiental
apresentados no “Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça ambiental e Saúde”, da Fio-
cruz e da FASE1. Pois eu vejo tantas comunidades e povos atingidos como essas rosas.
São os primeiros a sofrer, e nos alertam sobre os devastadores impactos do modelo capi-
talista causados à sociedade e aos territórios, ao mundo e ao planeta.
Tenho a sensação que tivemos mais esperança que temos hoje. Lembremos a década
de 80 do século passado e o início dos anos 90: o fim da ditadura e o aprendizado da
democracia; a “Constituição cidadã”, bastante criticada por que queríamos mais, e hoje
quase uma tábua de salvação; a criação de um partido oriundo das lutas sociais; a Rio 92
da sociedade civil. Nasciam, renasciam ou floresciam os movimentos sociais e suas or-
ganizações: movimento sindical dos trabalhadores, Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST), movimentos feministas, ambientalistas, dos negros, dos povos indígenas,
pela moradia.
No plano internacional, liquidados a colonização e o comunismo soviético, crescia a
esperança de um mundo mais pacífico e solidário. A Organização das Nações Unidas
(ONU) parecia fortalecida, exercendo um papel de mediação, coordenação, orientação,
buscando elevar o patamar dos direitos humanos e das exigências para com o futuro das
nações como, seguindo a Rio 92, o mostrou o ciclo das grandes conferências que ela
organizou.
Nessas décadas, crescia uma difusa consciência ambiental, apontando o modelo de
produção e de consumo como culpado pela perda de qualidade de vida ligada aos pro-
blemas ambientais que vinham se acumulando. Consolidavam-se marcos normativos
internacionais e nacionais afirmando o direito ao meio ambiente como direito humano.
Notam-se2:
• a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
conhecida também como Declaração de Estocolmo, de 1972, que reconhece, no

3
Princípio 1, que “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao
desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que
lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar”
• a Constituição Federal Brasileira (BRASIL 1988), rica em princípios que apontam
para uma conformação democrática e ecologicamente equilibrada do desenvolvimen-
to3. A Constituição Federal afirma o direito humano ao meio ambiente, reconhecen-
do-o, materialmente, como um direito fundamental. O meio ambiente ecologicamen-
te equilibrado e a sustentabilidade do desenvolvimento são elevados à categoria de
bem jurídico fundamental, sendo dever de todos, poder público e setor privado, de-
fendê-lo e preservá-lo.
• o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Maté-
ria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dito Protocolo de San Salvador, rati-
ficado pelo Brasil em agosto de 1996, que explicita, em seu Artigo 11: "Direito a um
meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio
contar com os serviços públicos básicos. 2. Os Estados-partes promoverão a prote-
ção, a preservação e o melhoramento do meio ambiente”4
• a Declaração do Rio de Janeiro e a Agenda 21, aprovados pela Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de
Janeiro, em 19925, quando se consolidou internacionalmente o reconhecimento de
que a proteção ambiental é indissociável da redução da pobreza; a Convenção da Bi-
odiversidade, que menciona os direitos coletivos de populações tradicionais sobre a
biodiversidade; e a Convenção sobre Mudanças de Clima que, no Artigo 3.1, chama
à responsabilidade as Partes “para com o sistema climático em benefício das gera-
ções presentes e futuras da humanidade”.
• a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT)6, relativa
aos povos indígenas e tribais. Ela estabelece o dever de os Estados respeitarem a im-
portância especial que, para as culturas e valores espirituais dos povos tradicionais,
possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, conforme o caso,
que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos cole-
tivos dessa relação (Artigo 13.1). A Convenção proíbe o deslocamento compulsório,
salvo em situações excepcionais, desde que obedecidas uma série de condições, co-
mo possibilidade de retorno e, isto sendo impossível, recuperação das condições de

4
vidas anteriores, o direito de as populações escolherem suas terras, controlar seu de-
senvolvimento e participar das decisões políticas.
• a Lei nº 9.985, do 18 de julho de 2000 (BRASIL, 2000), que institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC)7. No seu Artigo 5, reza
que o SNUC será regido por diretrizes que.“assegurem os mecanismos e procedi-
mentos necessários ao envolvimento da sociedade no estabelecimento e na revisão da
política nacional de unidades de conservação; a participação efetiva das populações
locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação;... incentivem as
populações locais e as organizações privadas a estabelecerem e administrarem uni-
dades de conservação dentro do sistema nacional”. E ao lado das Unidades de Prote-
ção Integral, institui “unidades de Uso Sustentável” tais como Reserva Extrativista;
Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e Reserva Particular do Patrimônio Natu-
ral.
Esse arcabouço institucional/jurídico contribuiu para legitimar perante a sociedade e
dar mais força às lutas dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais
agroextrativistas, pequenos agricultores por terra e territórios, suas sementes e seus co-
nhecimentos, suas águas, sua bio e agrodiversidade, por sua existência e sua identidade.
Paralelamente, mas de modo mais disperso e velado, até por não se visibilizar atra-
vés de grandes movimentos e ações, cresce nas cidades a percepção que poluições, con-
taminações e desastres que se somam e se combinam afetam gravemente os direitos dos
mais pobres a uma cidade justa. Nas lutas sociais e na academia, firmam-se como con-
ceitos e ferramentas de ação as noções de justiça ambiental e de direito humano ao meio
ambiente. Este se agrega aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Aqui no Brasil,
a Plataforma da sociedade civil DhESCs se torna Plataforma DhESCAs.
Mas nunca nos iludimos. Sob a liderança de Margaret Tatcher e Ronald Reagan, os
estados começavam já nos anos 80 a se colocar decididamente ao serviço do capitalismo
dito neo-liberal. Vejamos os documentos oficiais da Rio 92, a começar pela Agenda 21.
Ao mesmo tempo em que expressam muitos dos anseios, desejos e vontades da socie-
dade, eles ficam firmemente ancorados no capitalismo, o adjetivo “sustentável” não
sendo mais do que um penduricalho acoplado à economia de mercado global. O “desen-
volvimento sustentável”, apesar da expressão não passar de um oximoro, se impõe en-
tão e quase varre da esfera pública as noções de justiça e de direitos socioambientais.

5
No Brasil, posteriormente à onda neo-liberal e sem aderir a ela, com a eleição do
Presidente Lula, firma-se uma aliança entre o Governo Federal, amplos setores do Con-
gresso e interesses agroindustriais e industriais para implementar uma política desen-
volvimentista baseada sobre atividades intensivas em recursos naturais. Assiste-se a
uma expansão contínua da agricultura industrial, associada ao monocultivo e à volta do
latifúndio, e, mais recentemente, ao avanço acelerado das atividades mineradoras e in-
dustriais ligadas à produção de petróleo e minérios. No antípoda da sustentabilidade,
fica caracterizada a reprimarização da economia.
E estamos aqui, nesse momento em que desabam sobre as pessoas e comunidades
do andar debaixo leis, decretos, normas, projetos de lei, medidas provisórias, esmagado-
ras dos seus projetos e das suas vidas. O que chamamos de flexibilização da legislação e
dos direitos cai sobre eles como lajes de concreto num terremoto. Mas o que se flexibi-
liza mesmo? Os direitos ou a lei? Todos em tese reconhecem as clausulas pétreas da
Constituição e os direitos fundamentais intocáveis, a começar pelo sacro santo direito de
propriedade. Fora isso, os agricultores industriais e pecuaristas e, junto com eles, as
empresas agroindustriais, ou gestores municipais demonstram em permanência, por
exemplo no uso descontrolado do solo, o seu pouco caso pela lei. Ou deveríamos dizer
que, agindo como se fossem operadores de certa vertente do direito, introduzem a lei do
fato consumado, que se torna então um poderoso instrumento jurídico, como bem o
mostrou a introdução da soja transgênica no sul do país?
O discurso dominante nos diz que não estaria acontecendo nem uma flexibilização
nem uma desregulação, mas uma readequação das normas aos interesses da Nação, a
modernização de códigos vetustos, a consolidação da segurança jurídica. Enfim, todas
essas reformas normativas não fariam mais do que consagrar a entrada definitiva, apesar
de tardia, do país na modernidade. Nobres eufemismos que empacotam tais como papel
de presente e paetês injustiças e crimes!

AS AMEAÇAS AOS DIREITOS HUMANOS

Sem pretensão em colocar outra ordem do que cronológica nessa desordem regula-
tória, menciono aqui o que me parece interessar diretamente ao nosso debate de hoje:

6
– A ADI 3239/2004 (BRASIL, 2004): Somado a PEC 215, a ADI 3239, foi proposta
pelo Partido dos Democratas (DEM) em 2004. Seu julgamento pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) foi suspenso em 18 de abril de 2012. Ela contesta o Decreto nº 4.887, de
20 de novembro, de 2003 (BRASIL, 2003), que regulamenta o procedimento de identi-
ficação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades quilombolas, criando mecanismos que facilitam o pro-
cesso de identificação e posterior titulação de comunidades. A ação sustenta a inconsti-
tucionalidade do critério de autoatribuição fixado no decreto para identificar os rema-
nescentes dos quilombos e na caracterização das terras a serem reconhecidas a essas
comunidades.
– A Medida Provisória (MP) 558, de 5 de janeiro de 2012, convertida na Lei nº 12.678,
de 25 de junho de 2012 (BRASIL, 2012). que dispõe sobre alterações nos limites dos
Parques Nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos e Mapinguari, das Florestas
Nacionais de Itaituba I, Itaituba II e do Crepori e da Área de Proteção Ambiental do
Tapajós. Segundo a Agência Brasil, “a alteração dos limites visa a resolver problemas
agrários e viabilizar legalmente usinas hidrelétricas que deverão inundar partes dessas
reservas”8.
– A PEC 71/20119, tramitando no Senado desde o 14 de julho de 2011, pode alterar os
direitos originários dos indígenas sobre suas terras. O texto vai possibilitar que aqueles
que têm títulos de terras concedidas pelo governo até outubro de 1988 e que foram de-
claradas como indígenas, sejam indenizadas não só pelas benfeitorias, como reza a
Constituição (§ 6° do Artigo 231) (BRASIL, 1988), mas também pela terra nua. Outro
detalhe que chama a atenção é quanto ao significado dos termos usados: nulos, que
consta do texto original10 significa que em qualquer época (passado, presente ou futuro)
qualquer ato que leve à ocupação de terra indígena é nulo. No novo texto proposto o
termo nulos foi substituído por anulados, o que reforça a argumentação dos posseiros e
“proprietários” para serem ressarcidos pela terra nua. Pois um ato que é nulo é um ato
sem valor desde sua origem e para sempre; um ato anulado é um ato válido até sua anu-
lação11.
– A Portaria Interministerial nº 419, de 26 de outubro de 201112, dos Ministérios do
Meio Ambiente (MMA), da Justiça, da Cultura e da Saúde. Regulamenta a atuação da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), da Fundação Cultural Palmares (FCP), do Insti-

7
tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do Ministério da Saúde,
incumbidos da elaboração de parecer em processo de licenciamento ambiental de com-
petência federal, a cargo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Natu-
rais Renováveis (IBAMA).
Ela pretende limitar os prazos para a manifestação dos órgãos responsáveis pelos
estudos, análises, avaliação e posicionamento quanto à viabilidade ou não dos empreen-
dimentos que afetam os povos indígenas, os quilombolas e as áreas de preservação am-
biental. Os órgãos e entidades envolvidos no licenciamento ambiental deverão apresen-
tar ao IBAMA manifestação conclusiva sobre o Estudo Ambiental exigido para o licen-
ciamento, nos prazos de até 90 (noventa) dias no caso de EIA/RIMA e de até 30 (trinta)
dias nos demais casos, a contar da data do recebimento da solicitação. Caso não consi-
gam apresentar um parecer no tempo estabelecido, o empreendimento terá continuidade
(Artigo 6º do Capítulo II,). Ele também determina que os órgãos e entidades envolvidos
poderão exigir uma única vez, mediante decisão motivada, esclarecimentos, detalha-
mento ou complementação de informações, com base no termo de referência específico
(Artigo 6 § 6º). Na mesma direção, a manifestação dos órgãos e entidades envolvidos
deverá ser conclusiva, apontando a existência de eventuais óbices ao prosseguimento do
processo de licenciamento e indicando as medidas ou condicionantes consideradas ne-
cessárias para superá-los (Artigo6 § 7º). Vale notar que podem ser feitas recomendações
e pedidas medidas, mas nunca a paralisação definitiva da obra ou empreendimento.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) chama a atenção sobre outro ponto:

No inciso 10, do Art. 2º., é estabelecido que ‘para efeitos desta Porta-
ria’, o governo considera terra indígena somente aquelas que tiveram
seus limites estabelecidos por Portaria do Presidente da FUNAI. Ao
fazer isso, a Portaria nº 419 atenta contra o direito originário, violando
o Artigo 231 da Constituição Brasileira, restringindo o conceito de ter-
ra indígena àquelas previamente identificadas pela FUNAI. Com isso,
de uma canetada, são ignoradas pelo menos 346 Terras Indígenas que
são reivindicadas pelos povos indígenas, mas que ainda não tiveram,
por parte do Estado brasileiro, os procedimentos administrativos ne-
cessários para o seu reconhecimento.13

– A Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011), que define


a divisão de atribuições entre Município, Estado e União na proteção do meio ambiente,
fiscalização, licenciamento e combate ao desmatamento. Destaca-se o Artigo. 5 que o

8
ente federativo poderá delegar, mediante convênio, a execução de ações administrativas
a ele atribuídas nesta Lei Complementar, desde que o ente destinatário da delegação
disponha de órgão ambiental capacitado a executar as ações administrativas a serem
delegadas e de conselho de meio ambiente”14. As “ações administrativas da União” e-
lencadas na Lei deixam claro a extensão da delegação: controle e fiscalização das ativi-
dades e empreendimentos e licenciamento de empreendimentos e atividades antes de
responsabilidade exclusiva da União (Artigo 7 XXIII, XIV).
– A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215. Em 21 de março de 2012, a Comis-
são de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilida-
de da PEC 215/200015. Esta PEC tem o propósito de transferir para o Congresso Nacio-
nal a competência de aprovar a demarcação das terras indígenas, criação de unidades de
conservação e titulação de terras quilombolas, que antes eram de responsabilidade do
poder executivo, por meio da FUNAI, do IBAMA e da FCP, respectivamente. No Sena-
do tramita a PEC 038/99 que tem o mesmo propósito da PEC 215. As raposas buscam
se apoderar do galinheiro.
– A Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU), de 16 de julho de 2012 (BRA-
SIL, 2012), que torna válidas as condicionantes do julgamento pelos STF da Terra Indí-
gena (TI) Raposa Serra do Sol. No dizer do próprio ministro Luiz Adams quando de sua
promulgação, ela preenchia uma lacuna importante, trazendo “segurança jurídica” ao
País. Para o filósofo e consultor ou assessor da CNA, Denis Rosenfeld:

A regulamentação das condicionantes do Supremo não atende somen-


te aos problemas do agronegócio, mas também aos interesses do go-
verno. O agronegócio convive há muito com a insegurança jurídica re-
lativa às questões indígenas. Os interesses do governo estão sendo, por
seu lado, fortemente atingidos, pois as ações da FUNAI contrariam os
projetos governamentais de construção de hidrelétricas na Região
Norte do País.16

Segundo lideranças indígenas, aqui estão os principais pontos da Portaria que trazem
grandes prejuízos aos povos indígenas:
1. Afirma que as terras indígenas podem ser ocupadas por unidades, postos e demais
intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de
cunho estratégico, sem consulta aos povos e comunidades indígenas;

9
2. Determina a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas que não estive-
rem de acordo com o que o STF decidiu para o caso da Terra Indígena Raposa Serra
do Sol;
3. Ataca a autonomia dos povos indígenas sobre os seus territórios. Limita e relativi-
za o direito dos povos indígenas sobre o usufruto exclusivo das riquezas naturais e-
xistentes nas terras indígenas;
4. Transfere para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBIO) o controle de terras indígenas sobre as quais, indevida e ilegalmente, fo-
ram sobrepostas Unidades de Conservação, e;
5. Cria problemas para a revisão de limites de terras indígenas demarcadas que não
observaram integralmente o direito indígena sobre a ocupação tradicional”17.
– Apesar de não ter encontrado documento oficial, menciono uma notícia de jornal so-
bre um “Decreto que está sendo amarrado por uma comissão tripartite – União, Estados
e municípios” e que parece regulamentar a Lei complementar 140.

Por meio [deste], o governo vai detalhar, especificamente, qual é o ti-


po de obra que cada um terá que licenciar a partir de agora... Outra
medida crucial, e que deverá animar o setor privado, diz respeito aos
estudos necessários para se obter o licenciamento de cada empreendi-
mento. Todas as obras de infraestrutura do país deixarão de exigir, ex-
clusivamente, a elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA-
RIMA. 18

A decisão do IBAMA é que, a partir de agora, muitos empreendimentos, tais como


estradas, ferrovias, portos e aeroportos, terão de apresentar apenas um Relatório Ambi-
ental Simplificado (RAS).
– Mineração em terras indígenas: O professor e pesquisador Bruno Milanez identificou
13 Projetos de Lei (PL) tramitando no Congresso, apensados ou ao PL 2.051/1991 que
dispõe sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas ou ao PL 1610/1996 que dispõe sobre
a mineração em Terras Indígenas (MILANEZ, 2012, p.77). Segundo ele:

Uma avaliação geral dos textos sugere que a principal preocupação


dos projetos existentes visa apenas viabilizar a mineração nesses terri-
tórios, ao invés de proteger essas populações dos impactos negativos
sociais e ambientais que a abertura de novas lavras vai trazer.19

10
O governo está propondo um novo código de mineração que permitirá a exploração
em terras indígenas de minérios por empresas. O argumento do governo é que a regula-
mentação é necessária para que se estabeleçam regras e controle sobre a exploração em
terras indígenas, que hoje ocorre de forma desordenada por garimpeiros, causando
grande impacto ambiental e social – e, muitas vezes, provocando conflitos. Além disso,
o Estado deixa de arrecadar tributos sobre a exploração dos recursos nacionais. Especia-
listas, entretanto, alertam que empreendimentos para exploração mineral instalados em
terras indígenas podem causar impactos tão grandes nos povos que podem mesmo levá-
los à extinção (MALERBA, 2012). Vale mencionar a Carta aberta de 7 de março de
2013 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): Preocupa-nos a proposta,
no novo Marco Regulatório [da Mineração], da criação das áreas de relevante interesse
mineral e das regiões de interesses estratégicos. Nestas áreas a mineração seria feita a
partir de procedimentos especiais que podem ferir o bem comum, além de provocar uma
inversão de prioridade entre os direitos individuais e coletivos e o interesse econômico,
público e privado20.
– Mais especificamente na área da produção agrícola, menciono o Código Florestal.
Com o argumento da importância da produção agrícola no Brasil e sob o pretexto hipó-
crita de defender os interesses dos pequenos produtores, ele aumenta as áreas passiveis
de desmatamento, reduz ás áreas de preservação permanente e perdoa multas. A permi-
tir o uso agroindustrial doa apicuns, atinge diretamente as populações do litoral que vi-
vem da pesca e da coleta de mariscos.
– Vale lembrar também o papel normativo da Comissão Técnica Nacional de Biossegu-
rança – CTNBio, que aprova sucessivamente sementes da soja, do milho e recentemen-
te do feijão da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), em detri-
mento da agricultura familiar e das suas sementes tradicionais. Os direitos do agricultor
de produzir e comercializar as suas sementes são progressivamente reduzidos e mesmo
suprimidos, ameaçando a sua autonomia e a sua sobrevivência.
– Segundo o Dr. Paulo Petersen, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
Alternativa (AS-PTA) 21, o Projeto “Conserva Brasil”, da EMBRAPA, abre a possibi-
lidade de transferir à iniciativa privada o acesso aos recursos genéticos que vêm sendo
mantidos há décadas nos bancos de germoplasma da EMBRAPA. Empresas ficariam
livres para introduzir suas modificações genéticas e depois patentear. Enquanto isso,

11
pequenos agricultores e povos indígenas, que forneceram muito desse material e, fre-
quentemente, não o têm mais a disposição nos seus sistemas de cultivo, encontram obs-
táculos ao seu acesso, apesar do Brasil ser signatário do Tratado da Food and Agricultu-
re Organization of the United Nations (FAO) que regula os direitos dos agricultores
sobre seus recursos genéticos.
– Em 19 de julho de 2012, havia sido publicado no Diário Oficial da União (DOU), um
comunicado do IBAMA22 que dava início formal ao processo de reavaliação de agrotó-
xicos associados a efeitos nocivos às abelhas. Quatro ingredientes ativos que compõem
esses agrotóxicos (Imidacloprido, Tiametoxam, Clotianidina e Fipronil) seriam reavali-
ados e sua aplicação por aviões provisoriamente suspensa, como medida preventiva.
Esta iniciativa do IBAMA seguia, conforme informação do IBAMA, diretrizes de polí-
ticas públicas do MMA voltadas para a proteção de polinizadores. As diretrizes do
MMA acompanham a preocupação mundial sobre a manutenção de populações de poli-
nizadores naturais, como as abelhas. A decisão do IBAMA se baseou em pesquisas ci-
entíficas e em decisões adotadas por outros países 23. De fato, segundo a ONG francesa
Pollinis, “a taxa de colmeias abandonadas ou quase desertas alcançava 70 e até 80% nas
regiões e países mais atingidos.”24 No seu portal, Pollinis cita o pesquisador do Instituto
Nacional (francês) de Pesquisa Agronômica (INRA) – Bernard Vassière que informa
que “mais de 75% das culturas que alimentam a humanidade e 35% da produção de
alimentos dependem ainda dos polinizadores, abelhas na sua grande maioria”.
Em 3 de outubro, é divulgado no DOU um Ato do presidente do IBAMA e do secre-
tário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura que suspende temporaria-
mente a proibição da pulverização área dos agrotóxicos que contenham os ativos imida-
cloprido, clotianidina, fipronil e tiametoxam. O Ato coloca algumas restrições ás pulve-
rizações. Chamo a atenção sobre uma delas até divertida para quem acompanha o desca-
so com que as pulverizações aéreas estão sendo feitas. O governo exige que, para pro-
mover as pulverizações, os produtores rurais deverão notificar os apicultores localizados
em um raio de 6 km das propriedades onde os produtos serão aplicados, com antecedên-
cia mínima de 48 horas, e a ocorrência de qualquer fenômeno relacionado à mortandade
de polinizadores ou a colapso de colmeias ocorridos em decorrência da aplicação dos
agrotóxicos por aeronaves deverá ser notificada imediatamente às autoridades. A qual-

12
quer momento e por ação motivada, o Ministério da Agricultura ou o IBAMA poderão
revogar a autorização provisória.25.
O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado federal Homero Pe-
reira (PSD-MT), argumenta que a proibição da pulverização aérea "tira a competitivida-
de de algumas lavouras" e diz que a medida demonstra uma "guerra interna entre minis-
térios, com o Meio Ambiente tentando inibir a produção em escala, porque quem pratica
pulverização aérea é a agricultura empresarial, não a familiar.”26.
– Seria interessante fazer uma pesquisa sobre como andam as leis e normas estaduais.
Aqui vai somente o exemplo do Decreto nº 1.362 do Estado do Mato Grosso (MATO
GROSSO, 2013). Apesar de estudos apontarem contaminação por agrotóxicos no pró-
prio Estado, o seu governo colocou em vigor esse Decreto, que diminui a distância de
aplicação terrestre de agrotóxicos. A distância mínima de aplicação de cidades e ma-
nanciais de captação de água para abastecer a população era de 300 m; de nascentes 200
m; e de mananciais, moradias isoladas e agrupamentos de animais de 150 m. A distân-
cia agora passa para todos para 90 m. O Instituto de Defesa Agropecuária de Mato
Grosso emitiu comunicado informando que o novo decreto traz “tranquilidade” aos pro-
dutores rurais.

(BENS) COMUNS VS MERCANTILIZAÇÃO; REFUGO HUMANO VS


DESENVOLVIMENTO?

Esse conjunto normativo sumariamente evocado27 me leva a fazer algumas breves


observações. Deve se evitar vê-lo como se fosse algo especificamente brasileiro, ligado
tão somente, por exemplo, às escolhas de política econômica ou ao poder da “bancada
ruralista” ou dos empreiteiros. Ele se insere como uma luva na mão invisível do merca-
do mundial. Segundo o geógrafo David Harvey:

Modos de vida não mercantis e não capitalistas são... considerados


uma barreira para a acumulação do capital e, portanto, devem ser dis-
solvidos para dar lugar aos 3% de taxa de crescimento composto que
constitui a força motriz capitalista.28

O capital enfrenta a crise de acumulação com investimentos em inovação tecnológi-


ca, economia verde, subordinação total do estado aos seus interesses, mais poder ao

13
capital financeiro etc. Mas também, com as delocalizações, maior exploração do traba-
lho, cortes profundos nas políticas de bem estar, exploração de novos espaços, continua
na ordem do dia a velha acumulação primitiva. É desta que Harvey chama de “acumula-
ção por despossessão”29 que estamos falando aqui.
A argumentação de que é necessário manter ou restaurar a “segurança jurídica”, no
caso do agronegócio, remete à propriedade privada, juridicamente e de fato inquestio-
nável. Mas porque somente as ditas “elites”, os donos do poder ou seus servidores têm
acesso à propriedade? Com a Lei de Terra de 1850 (BRASIL,1850), eles e elas cuida-
ram para que somente quem tivesse dinheiro pudesse acessar a terra. Se uns compraram,
outros roubaram, esbulharam, fraudaram, maquilharam. O crescimento do Produto In-
terno Bruto (PIB) e as políticas de erradicação da miséria a ele associado têm o condão
de fazer esquecer ou tolerar que as novas regulações em curso expressem também a
perpetuação sob outras formas da velha escravidão, da inequidade, da desigualdade e do
racismo.
A mercantilização e a privatização dos territórios, ao estabelecer a hegemonia da
produção agropecuária em bases industriais, supõem e levam à homogeneização dos
espaços, Se alguns polos de agricultura familiar ainda são tolerados, as formas tradicio-
nais de existência das populações rurais e florestais são vocacionadas para a eliminação.
E com elas, é o nosso futuro que está sendo comprometido. “A conservação e o uso a-
través do tempo das águas, das florestas, dos cerrados, dos manguezais e de outros ecos-
sistemas se deram através das suas estratégias de sobrevivência e de reprodução”30. Os
seus territórios são bens comuns deles, que os gerem, e, através deles são também “co-
muns” da humanidade. Há convergência entre seus direitos individuais e coletivos e os
direitos difusos da humanidade.
Prevalece, no entanto, a ideologia desenvolvimentista. E, com ela, assiste-se ao que
poderia se chamar de relativização dos direitos humanos. Quando foi anunciada a con-
clusão da barragem hidroelétrica de Estreito, no rio Tocantins, um jornal anunciou: “Es-
treito vai fornecer energia para mais de um milhão de pessoas”, quando se sabe que a
principal demanda, mas de menos poder de convencimento, é da indústria eletro-
intensiva. Essa argumentação permitia a um alto funcionário, em reunião do presidente
Lula com Dom Erwin Klauter, bispo de Altamira, sobre Belo Monte que “quinze ou
vinte mil pessoas não podem impedir o progresso de 185 milhões de brasileiros”31. O

14
ministro Marco Aurélio de Mello, como relator da ADI 3987 SP sobre o amianto, profe-
riu nessa linha um voto que reproduz bem o senso comum. Permitam-me, dada a sua
crua clareza, citar longamente a sua sentença:

No momento de fazer opções, a chave é buscar a conciliação entre be-


nefícios e malefícios, distinguir entre riscos gerenciáveis e não geren-
ciáveis, entre eventos danosos reversíveis e irreversíveis... Vivemos
no que Ulrich Beck veio a denominar de sociedade dos riscos [...],
marcada pelo uso de agentes nocivos ao ser humano e ao meio ambi-
ente. Porém, parece inexistir a possibilidade de regresso a um estado
anterior. Não há indicações de que os seres humanos estejam prontos e
desejosos de abandonar aparelhos eletrônicos, medicamentos, meios
de transporte, materiais de construção, enfim, retornar a um “estado de
natureza”, pre-civilização tecnológica, como, alias, se ela própria (a
natureza) não oferecesse riscos, o que só pode resultar de uma visão
romântica... A atividade regulatória pressupõe, portanto, o sopesamen-
to entre o risco e o beneficio resultante da política especifica. As esco-
lhas regulatórias normalmente estão situadas no campo do “suboti-
mo”, ou seja, vão implicar a aceitação de certos danos prováveis em
troca de benefícios maiores.32

A seguir, o Exmo. Ministro cita o exemplo do DDT, reconhece que foi proibido “em
razão dos prejuízos que poderia causar à saúde”, mas, em compensação,

Como é empregado no combate ao mosquito vetor da malária em


países subdesenvolvidos o resultado da redução do uso do produto foi
o incremento exponencial dos casos da doença e do número de mortes
a ela associadas, estas últimas estimadas em 1,1 milhão anuais.

E finaliza curiosamente, “Mesmo nos países desenvolvidos, ocorreu a recente crise decor-
rente da bactéria E. Coli em razão do consumo de alimentos produzidos em lavouras orgânicas,
sem o uso dos agrotóxicos”. O que fez o professor Henri Acselrad observar, em e-mail
destinado aos participantes da lista eletrônica da RBJA:

A defesa dos agrotóxicos por Sua Excelência reproduz o trabalho pro-


pagandístico do Competitive Enterprise Institute (que também defende
a indústria do tabaco) e do Heartland Institute (financiado pela empre-
sa de cigarro Philip Morris), que trabalham por uma cultura anti-
regulatória em nome do livre-mercado.

Cinquenta anos depois de Rachel Carlson chamar a atenção sobre os malefícios dos
agrotóxicos e levar à proibição do DDT, o princípio de precaução e, a fortiori, o “prin-

15
cípio Responsabilidade”33, são largamente ignorados ou subestimados e tratados como
arroubos naturalistas, em prol do progresso. A ideologia desenvolvimentista apoia-se,
no caso brasileiro, na afirmação que o desenvolvimento atual é a única formula capaz de
reduzir a pobreza; mas também ela é portada pelo cientismo. Paradoxalmente, mais a
economia brasileira se reprimariza, mais se difunde a crença que a ciência e a tecnologia
– junto, claro, com a fé nas virtudes de uma sólida economia capitalista – resolverão
nosso futuro. E assim essas flexibilizações que chocam alguns podem aparecer para a
maioria como passos em direção à emancipação da “pré-civilização” tecnológica e à
modernidade. O que pesam, então, os que são vistos como meros testemunhos do pas-
sado?
Eu procurava, frente à tamanha injustiça dissimulada sob os véus da normatização,
palavras que pudessem expressá-la com maior força. Várias dessas normas propostas ou
já aprovadas negam a cidadania desses grupos sociais, silenciando-os, não só retirando-
lhes o seu direito à consulta no presente, mas querendo apagar de novo a sua história,
com a contestação das suas Terras e da sua identidade. São os despossuídos, como já
mencionado e, como os chamou Zygmunt Bauman, o “refugo humano... inescapável
efeito colateral da construção da ordem e do progresso econômico"34. A produção do
refugo humano “à brasileira” não é tão cruel quanto aparenta o termo. Ou será que mos-
tra requintes de crueldade?
Vejam a Instrução normativa nº 2, de 27 de março de 201235. Ela “estabelece as ba-
ses técnicas para programas de educação ambiental apresentados como medidas mitiga-
doras ou compensatórias, em cumprimento às condicionantes das licenças ambientais
emitidas pelo IBAMA”. “Diagnóstico participativo”, “participação dos grupos sociais
na definição, formulação, implementação, monitoramento e avaliação dos projetos so-
cioambientais de mitigação e/ou compensação, exigidos como condicionantes de licen-
ça” Artigo 3) Nada contra essas exigências, a não ser o fato de que elas servem para
orientar o empreendedor obrigado a executá-las “em cumprimento às medidas mitigado-
ras ou compensatórias, como condicionantes das licenças concedidas ou nos processos
de regularização do licenciamento ambiental federal” (Artigo 1), Os que produzem re-
fugo humano são convidados a conscientizar as suas vítimas. O círculo se fecha. O Es-
tado não mata; diz que integra, porém entrega o destino dos refugados às raposas.

16
Em conclusão, é difícil não se perguntar como enfrentar a relativização dos direitos
humanos, a não ser de se deixar invadir pelo desalento ou o cinismo. Vale lembrar que
eles nunca foram outorgados por qualquer dono do poder, mas sempre foram conquista-
dos. O que move as pessoas e comunidades no enfrentamento dos empreendimentos e
setores dominantes que os atingem, é o senso da sua dignidade, a consciência que têm
da sua existência, do seu lugar no mundo. Ao reivindicar justiça e propor alternativas
para uma ocupação sustentável e democrática do território, fazem avançar a fronteira
dos direitos e, afinal, as exigências éticas da humanidade. Com elas, essa terceira gera-
ção de direitos – os “direitos difusos” – toma corpo e consistência como “direitos cole-
tivos”. Quando novas regulações voltam a estreitar o espaço desses direitos, elas se re-
velam como luta não corporativa, mas por uma humanidade que não seja refém do PIB.
A supor que não enxerguemos até aqui a importância das suas lutas, fiquemos aten-
tos ao fato que quando os direitos difusos estão sendo afetados, são também direitos
fundamentais como o direito à liberdade e à vida que são atacados. Tal como se apre-
senta a ofensiva atual dos herdeiros de senhores de escravos, dos bandeirantes e dos
“aventureiros" (HOLANDA, 1995), infelizmente sintonizados com os que depositam a
sua fé no desenvolvimento econômico, o autoritarismo que hoje subjuga uns amanhã
poderá estender sua sombra sobre outros. É por isso que o encolhimento dos direitos de
todas e todos que sofrem injustiça ambiental interpela a todos nós, pois é nosso futuro
que está em jogo.
Os caminhos a percorrer para que a humanidade tome consciência da crise da civili-
zação são longos. No imediato, a defesa dos direitos dessas comunidades e povos neces-
sita de aliados na cidade. Vale lembrar que várias normas podem atingir moradores ur-
banos, a mercê de decisões tomadas a nível municipal ou estadual. Por exemplo, com a
facilitação do licenciamento ambiental, mais moradores da cidade podem ficar expostos
a contaminações e poluições, não raras vezes, da parte das mesmas empresas que atin-
gem comunidades rurais. Outras conexões entre o campo e a cidade convidam a ações
comuns. Ao defender as águas, a biodiversidade, uma agricultura ecológica etc., suas
terras e territórios em síntese, os grupos sociais evocados nestas páginas defendem o
(bem) comum de todos nós. Defendendo seus direitos, defendem nosso futuro.
Um dos elementos mais perversos da crise atual é o amesquinhamento da democra-
cia. Em quase todas as propostas de leis e outras normas, está presente o cerceamento ao

17
direito de expressão. São órgãos públicos obrigados a acelerar suas “manifestações”,
povos indígenas privados da consulta, quilombolas proibidos de se declarar comunida-
des descendentes de escravos. A avalanche de regras não pode esperar. O tempo do ca-
pital torna obsoleto o tempo da decisão democrática. Entre 2005 e 2008, cinco estudos
de caso de grandes empreendimentos que atingiram populações rurais foram feitos no
quadro do “Projeto Avaliação de Equidade Ambiental” (ETTERN/IPPUR e FASE,
2011).
A análise desses casos, corroborada por outras pesquisas dos participantes do Proje-
to, concluía pela precariedade do acesso à informação e da participação nas audiências
públicas, pela extrema dificuldade em barganhar e negociar e pela quase impossibilida-
de de participar efetivamente de qualquer tomada de decisão. Algumas conclusões ób-
vias são que o licenciamento ambiental e qualquer outro processo de consulta deveriam
exigir um tempo maior que permitisse escutar mais os atingidos potenciais, ser mais
atentos à complexidade dos territórios nos quais intervêm reconhecer o protagonismo
dos grupos sociais afetados. Estamos aqui no antípoda dos exercícios pirotécnicos apon-
tados nestas páginas. Mas insistir no aprofundamento da democracia e na preeminência
dos direitos humanos ainda faz sentido para as pessoas de bem.

(Agradeço a contribuição de Julianna Malerba na releitura do texto e coleta das informações.)

NOTAS

1
Ver Firpo Porto M., Pacheco T. e Leroy J.P. (org.). Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: o Mapa de
Conflitos Ambientais. Rio de Janeiro: Fiocruz, no prelo.
2
Essas referências normativas foram extraídas de Leroy J.P. e Silvestre D. Relatório da missão ao Estado
de Mato Grosso, agosto de 2004. Relatoria nacional para o direito humano ao meio ambiente. Projeto
Relatores nacionais em DhESCs.
3
Para exemplificar alguns dispositivos: artigo 1º, incisos II e III; artigo 3º, incisos I a IV; art. 170, caput e
inciso VI; artigo 225: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-
mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
4
Organização dos Estados Americanos, 1988 - A Conferência produziu a “Carta da Terra”, a “Agenda
21”, a “Convenção sobre Mudanças Climáticas”, a “Convenção sobre a Biodiversidade”, uma “Declara-
ção sobre Florestas” e um “Protocolo sobre Desertificação”.

18
5
A Conferência produziu a “Carta da Terra”, a “Agenda 21”, a “Convenção sobre Mudanças Climáticas”,
a “Convenção sobre a Biodiversidade”, uma “Declaração sobre Florestas” e um “Protocolo sobre Deserti-
ficação”.
6
Adotada pela ONU em Genebra, em 1989, foi ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002, entrou em
vigor no país 12 meses depois e foi finalmente promulgada pelo Decreto nº 5051, de 19 de abril de 2004.
7
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm
8
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-05-15/camara-aprova-mp-que-altera-limites-de-unidades-
federais-de-conservacao Acesso em março de 2013.
9
PEC 71//2011.
http://www6.senado.gov.br/mate/servlet/PDFMateServlet?m=101237&s=http://www.senado.gov.br/ativi
dade/materia/MateFO.xsl&o=ASC&o2=A&a=0
10
Constituição Federal. Art.236 § 6 São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração
das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público
da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indeni-
zação ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de
boa-fé.
11
PEC 71/2011 – Não a defendam e tenham cuidado com ela!!! E isto é muito sério!
http://racismoambiental.net.br/2012/11/pec-712011-nao-a-defendam-e-tenham-cuidado-com-ela-e-isto-e-
muito-serio/#.UK-NJj2JBgU.facebook
12
http://www.observatorioeco.com.br/licenciamento-ambiental-funai-fcp-iphan-e-saude/
13
Cimi. Perversidade e Autoritarismo: Governo Dilma edita portarias de restrição e desconstrução de
direitos territoriais indígenas e quilombolas. 09/11/2011. http://www.cimi.org.br/site/pt-
br/?system=news&conteudo_id=5931&action=read
14
BRASIL, 2011.
15
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562
16
Denis Lerrer Rosenfield Avanços e recuos. O Estado de São Paulo, 22 DE OUTUBRO DE 2012
17
“Manifesto contra a violação dos direitos indígenas e pela revogação da Portaria 303/2012 da AGU”
APIB
18
EcoDebate Cidadania e meio ambiente 6 de novembro de 2012.
http://www.ecodebate.com.br/2012/11/06/governo-reformula-licenciamento-ambiental-visando-liberacao-
de-grandes-obras-de-infraestrutura/
19
MILANEZ, 2012, p. 78
20
http://www.canalibase.org.br/cnbb-lanca-nota-sobre-novo-codigo-da-mineracao/. Acesso em março de
2013.
21
Entrevista de 8 de outubro de 2012. As instituições científicas se colocam a serviço das corporações do
agronegócio. http://aspta.org.br/2012/10/as-instituicoes-cientificas-se-colocam-a-servico-das-
corporacoes-do-agronegocio/. Acesso em março de 2013.
22
Comunicado do IBAMA. DOU Pg 112 Seção 3.v http://www.jusbrasil.com.br/diarios/38800981/dou-
secao-3-19-07-2012-pg-112
23
Processo de reavaliação de agrotóxicos é iniciado no IBAMA Talitha Monfort Pires, Ascom IBAMA
http://www.ibama.gov.br/publicadas/processo-de-reavaliacao-de-agrotoxicos-e-iniciado-no-ibama
24
http://www.pollinis.org/

19
25
Revista Globo Rural. Agricultura / agricultura - 03/10/2012. Agência Estado. IBAMA libera pulveriza-
ção aérea de agrotóxico sob condições.
http://revistagloborural.globo.com/Revista/Common/0,,EMI320493-18078,00-
IBAMA+LIBERA+PULVERIZACAO+AEREA+DE+AGROTOXICO+SOB+CONDICOES.html
26
Idem
27
O apetite legislativo não ficou saciado. Posteriormente ao Seminário, surge a PEC 237/2013 com a
seguinte apresentação: “Acrescente-se o artigo 176.A no texto Constitucional para tornar possível a posse
indireta de terras indígenas à produtores rurais na forma de concessão”.
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/AGROPECUARIA/435613-PEC-PERMITE-
CONCESSAO-DE-TERRA-INDIGENA-A-PRODUTOR-RURAL.html
28
HARVEY, 2011, p.65.
29
HARVEY, 2011, p.48.
30
LEROY, 2012.
31
http://xingu-vivo.blogspot.com/2010_01_01_archive.html
32
MELLO, s/d.
33
JONAS, 2006
34
BAUMAN, 2005, p.12. Itálicas do autor.
35
DOU de 29/03/2012 (nº 62, Seção 1, pág. 130)
http://www.lex.com.br/legis_23133441_INSTRUCAO_NORMATIVA_N_2_DE_27_DE_MARCO_DE_
2012.aspx Acesso em março de 2013.

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20
BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei
No 12.678, de 25 de junho de 2012. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/L12678.htm>.

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Legal-da-Mineracao-no-Brasil-FASE.pdf>

21
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LERBA, J. (org.) MILANEZ, B., WANDERLEY L.J. O marco legal da mineração no
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dezembro de 1988. Disponível em:
<http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/e.Protocolo_de_San_Salvador.htm>.

22
MARIJANE LISBOA

EM NOME DO DESENVOLVIMENTO: UM FUNDAMENTO POUCO


SÓLIDO PARA A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

DIREITOS EM CONFLITO

Na última década, temos assistido a diversos julgamentos por cortes superiores de


justiça em que essas instâncias se veem provocadas a decidir sobre conflitos que opõem
o Estado, que pretende realizar obras ou adotar novas tecnologias e, de outro lado, seg-
mentos mobilizados da sociedade, comunidades ou povos e populações tradicionais,
para os quais tais obras e tecnologias constituem uma ameaça aos seus direitos coletivos
e difusos a um meio ambiente saudável, à alimentação adequada, à saúde e à manuten-
ção de formas de vida próprias e uso dos seus territórios. Quer sejam povos indígenas se
opondo à construção de hidrelétricas, quilombolas e outras populações tradicionais in-
surgindo-se contra atividades mineradoras, construção de estradas de ferro ou oleodutos,
ou agricultores familiares e consumidores resistindo ao avanço de uma agricultura
transgênica, todos esses conflitos parecem contrapor direitos coletivos e difusos de gru-
pos determinados a um suposto direito maior, da totalidade de um povo e de uma nação,
o direito ao desenvolvimento, do qual o Estado se faz o promotor e o protetor a um só
tempo. Tanto no caso da liberação comercial da soja transgênica, quanto o Tribunal
Regional Federal (TRF) julgou favoravelmente à Monsanto e à União, contrariamente
ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e ao Greenpeace, como na
decisão do Superior Tribunal Federal (STF) de derrubar liminar concedida para sustar o
início das obras de transposição do rio São Francisco devido às diversas falhas no pro-
cesso de licenciamento, bem como na atuação expedita do STF derrubando as diversas
liminares concedidas pela Justiça Federal contra a União visando suspender o leilão
para Belo Monte, sempre aparece como justificativa o argumento de que tais obras e
tecnologias são indispensáveis ao desenvolvimento do país, quer por fomentar o aumen-
to da produtividade agrícola e da competitividade do Brasil no mercado externo, quer
por garantir o aumento da geração de energia e ou o fornecimento de água para regiões

23
semiáridas, vistos como indispensáveis ao progresso da nação. Diante de propósitos tão
grandes e tão nobres, falhas no processo de licenciamento, perdas locais de biodiversi-
dade, deslocamento de populações indígenas e remanescentes de quilombos, ou eventu-
al contaminação de alimentos não transgênicos e impactos econômicos sobre pequenos
agricultores ou ainda hipotéticos danos à saúde de consumidores são considerados como
efeitos colaterais aceitáveis, porque menores, se comparados aos benefícios de tais o-
bras e tecnologias.
Em todos esses casos, portanto, contrapõem-se de fato não só o direito ao meio am-
biente equilibrado da população brasileira, direito reconhecido pela Constituição Brasi-
leira no seu Artigo 2251 (BRASIL, 1988), e em vários deles também o direito de popu-
lações indígenas às terras que tradicionalmente habitam2, ao dever e ao direito que tem
o Estado de executar obras, adotar tecnologias e políticas que embora possam implicar
danos ao meio ambiente e prejuízos a grupos sociais determinados, são entendidas como
essenciais ao “desenvolvimento” e ao progresso do conjunto do país.
Ao reconhecer que não existe direito absoluto, mesmo entre aqueles direitos funda-
mentais garantidos por uma Constituição, a teoria jurídica recomenda que em caso de
colisão de direitos o juiz trate de decidir de forma a afetar ao mínimo os direitos em
jogo, recorrendo para isso aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Em
caso, contudo, em que não seja possível garantir um desses direitos, sem que o outro
seja inteiramente negado, a justiça terá que se manifestar sobre qual dos direitos preva-
lece em relação ao outro.3

O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

Comumente aceita-se que a história dos direitos humanos como hoje os conhece-
mos, desenrolou-se em três fases: primeiro os direitos civis e políticos, depois uma se-
gunda fase de direitos econômicos, sociais e culturais e finalmente a etapa de direitos de
terceira geração, cujos sujeitos podem ser difusos, genéricos, abarcando coletividades,
todos os indivíduos e até futuras gerações. Esse é o caso do direito ao meio ambiente
equilibrado, à paz, à manutenção de tradições e também do Direito ao Desenvolvimen-
to.

24
A primeira ocasião em que um direito ao desenvolvimento foi mencionado em um
documento internacional foi na Declaração Sobre o Direito ao Desenvolvimento4 da
Organização das Nações Unidas (ONU), formulada em um contexto político no qual a
luta contra o imperialismo e a Guerra Fria desempenhavam um papel fundamental. É
esse contexto que explica as diversas e repetitivas menções ao direito à autodetermina-
ção dos povos, à soberania nacional e à integridade territorial, ao mesmo tempo em que
se condena o colonialismo e o neocolonialismo, o apartheid, a dominação estrangeira e
ocupação, bem como agressões e ameaças contra a soberania nacional de países (AL-
VES, 2001, p. 83).
Também é evidente neste texto o esforço constante por afirmar a indivisibilidade e a
interdependência dos direitos fundamentais, pois enquanto os países do mundo capita-
lista desenvolvido faziam finca pé nos direitos civis e políticos constantes do Pacto so-
bre Direitos Civis e Políticos, os países socialistas e parte dos países do Terceiro Mundo
valorizavam, sobretudo aqueles direitos previstos no outro Pacto assinado em 1966, o
Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Tanto era assim, que apenas em
1976 os dois pactos entraram em vigor, após um difícil processo de ratificação.
Embora não houvesse uma definição clara do que fosse “desenvolvimento”, a De-
claração Sobre o Direito ao Desenvolvimento reconhece que este é “um processo eco-
nômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem
estar da população e de todos os indivíduos com base na sua participação ativa, livre e
significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes”.5
Se no seu preâmbulo e no Artigo 8º, a Assembleia da ONU atribuía aos Estados a res-
ponsabilidade por criar as condições favoráveis ao desenvolvimento dos povos e indiví-
duos, o artigo 9º, provavelmente preocupado em que em nome do desenvolvimento se
violasse direitos fundamentais, declarava:

Nada na presente Declaração deverá ser tido como sendo contrário aos
propósitos e princípios das Nações Unidas, ou como implicando que
qualquer Estado, grupo ou pessoa tenha o direito de se engajar em
qualquer atividade ou desempenhar qualquer ato voltado à violação
dos direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos e nos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos.6

25
A Declaração não foi, contudo, aprovada consensualmente. Os Estados Unidos da
América (EUA) se opuseram e houve ainda sete abstenções de países ocidentais, e do
Japão. Essa falta de consenso datava, a rigor, da primeira conferência das Nações Uni-
das especificamente dedicada ao tema dos direitos humanos, que se realizou no Irã, em
1968, em plena Guerra Fria (ALVES, 2001, p.79). Essa conferência, que apresentou
diversos avanços como a condenação explícita à discriminação de gênero e ao analfabe-
tismo, consagrando, além disso, um novo direito humano – aquele dos pais a determinar
livre e responsavelmente o número de filhos que desejem ter – constituiu, contudo, um
perigoso retrocesso nos princípios da universalidade, indivisibilidade e interdependência
dos direitos humanos, ao afirmar em seu Artigo 13:

Como os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis,


a plena realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos
econômicos, sociais e culturais é impossível. O alcance de progresso
duradouro na implementação dos direitos humanos depende de políti-
cas nacionais e internacionais saudáveis e eficazes de desenvolvimen-
to econômico e social.7

Assim, regimes ditatoriais próprios aos países socialistas e muitos países do Tercei-
ro Mundo encontravam neste artigo a desculpa para as suas inúmeras violações dos di-
reitos humanos políticos e civis dos seus cidadãos, como se esses fossem um luxo que
só pudessem ser gozados ao fim de um percurso histórico de “desenvolvimento econô-
mico e social”. Tal conflito entre direitos econômicos, sociais e culturais englobados
naquilo que se considerava “desenvolvimento” e os direitos civis e políticos dos indiví-
duos só será superado na Declaração e Programa de Ação de Viena, na Conferência de
Viena sobre Direitos Humanos, em 1993, já em um contexto político de distensão, re-
sultante do fim da Guerra Fria. Segundo história que Lingren Alves ouviu nos corredo-
res do centro onde se realizava tal reunião, o acordo só teria sido possível em virtude de
uma barganha: os países desenvolvidos, que se opunham a esse direito, aceitariam a sua
inclusão desde que os países em desenvolvimento, seus defensores, aceitassem a criação
de um cargo de Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (AL-
VES, 2001, p.114). A Declaração efetivamente reafirmou o direito ao desenvolvimento
conforme fora definido naquela Declaração de 1986, embora diga explicitamente que “a
falta de desenvolvimento não poderá ser invocada como justificativa para se limitarem
direitos humanos internacionalmente reconhecidos”. Atendendo ainda a insistência dos

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países em desenvolvimento, a Declaração acrescentou aos termos democracia e direitos
humanos, o termo “desenvolvimento”, que daí em diante se apresentará como uma tría-
de na literatura das Nações Unidas.
A inclusão do “direito ao desenvolvimento” no Direito Internacional foi, pois, fruto
de uma luta de países do Terceiro Mundo, ex-colônias, enfrentando a resistência dos
países de economia capitalista avançada e regimes formalmente democráticos. Por trás
de exigência de reconhecimento de um direito ao desenvolvimento certamente se encon-
travam não só as cobranças de uma dívida histórica das ex-metrópoles em relação às
suas ex-colônias, mas também as expectativas de uma ajuda econômica por parte dos
órgãos e agências internacionais.

DESENVOLVIDOS, SUBDESENVOLVIDOS, EM DESENVOLVIMENTO

A percepção de que o mundo estivesse dividido entre países “desenvolvidos” e paí-


ses “subdesenvolvidos” é, no entanto, um fato recente, datado do fim da II Guerra Mun-
dial. Embora a I Guerra Mundial, a crise de 1929 e a longa depressão que a sucede já
evidenciassem as desvantagens de economias coloniais e ex-coloniais serem altamente
dependentes das economias centrais e das oscilações do mercado internacional, é só
com o fim do conflito mundial, a recuperação das economias europeias e a reconstrução
em ritmo acelerado das economias alemã e japonesa que começa a ficar claro o panora-
ma de um mundo dividido em um grupo de países que passa a ser capaz de oferecer à
sua população uma qualidade de vida até então desconhecida, mesmo a elas, enquanto
outra parte enfrentava dificuldades econômicas crescentes, com períodos de estagnação
e crise frequentes.
O subdesenvolvimento se definia, então, como um conjunto de características faltan-
tes aos países surgidos com o fim do mundo colonial. É um conceito relativo, compara-
tivo e, claramente euro centrado, que aponta a ausência de industrialização, urbaniza-
ção, mão de obra qualificada, tecnologias de ponta de um lado, e de outro, a presença de
um mundo predominantemente rural, do analfabetismo e da miséria como suas caracte-
rísticas mais marcantes.
Duas grandes vertentes teóricas procuraram nos anos 50 e 60 explicar o que veio a
ser considerado como atraso econômico, social e cultural: as teorias dualistas e as teori-

27
as da dependência. Tributária do funcionalismo de Talcott Parsons e tendo tido em Ros-
tow, autor de “Estágios do Crescimento Econômico” seu maior teórico, a teoria dualista
construía “tipos ideais” de inspiração weberiana para descrever as sociedades “tradicio-
nais” e “modernas”. Segundo essa teoria, o subdesenvolvimento seria apenas a mani-
festação de uma fase da evolução social, que superada pela modernização, desapareceria
sem deixar vestígios. Era, pois, uma teoria evolucionista e que supunha apenas um mo-
delo ou uma via de “desenvolvimento” para todas as sociedades. Por ser funcionalista e
atribuir às instituições sociais funções ou papéis determinados, ela irá propor políticas
para “acelerar o desenvolvimento”, que viria, aliás, de qualquer maneira, como o inves-
timento em educação técnica, modernização da administração pública, dos meios de
comunicação e até dos “padrões familiares”, como a política de controle da alta natali-
dade nos países de Terceiro Mundo.
A teoria da dependência se constitui a partir da crítica à teoria dualista do desenvol-
vimento, acusando essa última de ignorar as causas históricas do subdesenvolvimento,
que residiriam justamente no colonialismo e no imperialismo. Ela terá sua origem na
América Latina, continente politicamente independente há mais de cem anos, mas cuja
economia capitalista continuava extremamente mais atrasada em relação às economias
centrais, como acontecia também nas demais partes do 3º Mundo. Embora divididos em
várias tendências, os dependentistas terão em comum um forte viés econômico, propug-
nando por políticas de industrialização enérgicas e aceleradas. Politicamente, os depen-
dentistas constituíam um amplo leque que abarcava desde posturas capitalistas liberais a
outras marxistas e, os representantes destes últimos, no quadro da forte estagnação eco-
nômica do fim dos anos 50 e 60, chegarão a defender a tese do “esgotamento do mode-
lo”, elaborando visões radicais de que só a revolução socialista poderia “desenvolver”
os países Terceiro Mundo. Entre nós, na América Latina, predominava na teoria social
um marxismo estruturalista, que engessava a análise destas sociedades dentro de um
quadro determinista e economicista, impedindo de ver a riqueza e a diversidade de nos-
sas sociedades e suas possíveis alternativas ao que chamavam de “subdesenvolvimen-
to”.
Reforçava esse visão dependentista, que culpava exclusivamente as metrópoles por
seu atraso capitalista, os movimentos nacionalistas e anti-imperialistas que explodiram
no pós II Guerra Mundial na África e na Ásia, aos quais faltava reconhecer que a misé-

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ria, a corrupção e o endividamento nacionais foram consequência de processos de adap-
tação de suas sociedades à economia capitalista mundial, processos implementados não
só pelas potências imperialistas, mas por suas próprias elites locais, que com isso, muito
ganharam. De fato, foram muitas as consequências econômicas, sociais e culturais des-
ses processos de adaptação dos países colonizados à economia mundial: destruição da
economia e sociedade camponesas, especialização em produtos de exportação agrícolas
ou minerais, destruição do artesanato local e dependência das importações, introdução
da escravatura e outras formas de trabalho forçado para sustentação de sistema de plan-
tation, expulsão de populações originais de suas terras ou mesmo seu aniquilamento,
êxodo rural, crescimento desordenado das cidades, miséria, encarecimento dos alimen-
tos e desnutrição, aumento das enfermidades e dependência das importações.
O “subdesenvolvimento” do Terceiro Mundo não era, portanto, um fato natural, e
nem sequer um fato histórico muito antigo. No século XVIII, dificilmente a Europa ga-
nharia da Índia ou China, em uma comparação quanto à riqueza produzida, produção
manufatureira, padrão de vida oferecido à população, aí incluindo-se alimentação, alfa-
betização, bens supérfluos e desenvolvimento tecnológico (DAVID, 2002, p. 302). Mas
tal “subdesenvolvimento” fora o resultado também da atuação das classes de proprietá-
rios de terra e da burguesia comercial que se estabelecem e enriquecessem com a expro-
priação das terras, riquezas e trabalho forçado dos povos originários e escravos trazidos
de outras partes. Na própria América Latina, a época de ouro da expropriação das co-
munidades indígenas é o século XIX, ou seja, a fase posterior às independências, já na
esteira das políticas liberais, que atacam não só a propriedade da Igreja, mas a proprie-
dade coletiva indígena (MARIÁTEGUI, 2008, p. 87; PAZ, 2000, p. 140; SOTELO,
1975, p. 81).
Os movimentos nacionalistas e a ideologia anti-imperialista do pós II Guerra Mun-
dial vem contribuir, além disso, para a percepção do entrelaçamento entre a dependência
econômica e a política. Particularmente na América Latina, continente que alcançara
sua independência política ainda no século XIX, era evidente a percepção de que sem
uma independência econômica, a independência política de pouco valia e sem a inde-
pendência política, era impossível se adotar o que eram consideradas como estratégias
de desenvolvimento econômico consequentes.

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Aliás, havia reforçado o entendimento de que o Estado era o grande demiurgo do
desenvolvimento, o crescimento econômico acelerado da União das Repúblicas Socia-
listas Soviéticas (URSS) e de outros países do mundo socialista nos seus primeiros tem-
pos, que se acompanhava de longe e sem se conhecer e considerar os recursos emprega-
dos nesse crescimento, como a enorme massa de trabalho forçado no caso russo e chi-
nês, e também as condições reais de vida de suas populações, bem como as suas graves
consequências ambientais. A Queda do Muro e o fim do mundo socialista europeu virá,
no entanto, revelar a insustentabilidade e o alto custo social e político de um “desenvol-
vimento” obtido sem democracia.
Contudo, os projetos desenvolvimentistas dos anos 60 e 70, adotados nas jovens
nações africanas, inspirados no modelo de desenvolvimento industrial dos países cen-
trais, ou seja, de uma industrialização em grande escala, fracassaram em boa parte des-
tes países. Negligenciando a agricultura camponesa, os modos de vida e as demandas
reais das suas populações, desperdiçando recursos em armas, projetos faraônicos e cor-
rupção, em muitos destes países o processo de industrialização fracassou, mas, mais
surpreendentemente ainda, naqueles nos quais foi possível criar um setor industrial pu-
jante, como no Brasil, na Índia, no México e na África do Sul, os índices de miséria,
analfabetismo e desigualdade social continuaram altos, senão maiores. Evidenciou-se,
assim, o erro que era acreditar em que o crescimento econômico por si só pudesse trazer
desenvolvimento social, exigindo que se definisse melhor o que se entendia por desen-
volvimento, e como ele poderia ser atingido. Segundo Chico de Oliveira, a ideologia do
desenvolvimento no Brasil teria desempenhado um papel fundamental, que foi o de não
questionar o capitalismo no momento em que a luta de classes se radicalizava em virtu-
de da redução do ritmo de crescimento econômico e da consequente compressão salarial
para manter as margens de lucro do capital (OLIVEIRA, 1975, p.10). Equivocadamente,
acreditava-se na existência de uma aliança entre a burguesia e classe média nacionais e
a classe trabalhadora, que se oporiam aos latifundiários e ao imperialismo norte-
americano. No entanto, a clara adesão dessas burguesia e classe média aos regimes dita-
toriais da década de 60 e 70 na América Latina, irá exigir uma revisão deste ideário de-
pendentista e de suas teorias, e justificar, para alguns teóricos marxistas, a adoção de
estratégias revolucionárias como as únicas capazes de levar adiante o projeto de desen-
volvimento. Mas a realidade política dos anos de chumbo dos 70, também se encarrega-

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rá de desmoralizar tais teses, pois em muitos países dominados por ditaduras anticomu-
nistas há notáveis surtos de crescimento econômico, como no caso brasileiro e chileno,
sem que tais surtos, no entanto, fossem capazes de atenuar a chocante desigualdade so-
cial e reduzir significativamente o setor miserável das suas populações.
Contudo, o fim da década de 80 revela exemplos bem sucedidos de “desenvolvi-
mento”, onde aparentemente houve uma melhor e mais efetiva distribuição dos frutos
do desenvolvimento, melhorando a qualidade de vida de suas populações: os chamados
tigres asiáticos, pequenos países como a Malásia, Coreia do Sul ou Taiwan, ou cidades-
ilhas como Singapura e Hong Kong. Como explicação do seu sucesso, o investimento
em educação e tecnologia, mas salta aos olhos que a sua pequena população em alguns
casos e, sobretudo sua localização estratégica como portos comerciais entre o Ocidente
e o Oriente não são variáveis replicáveis para outros países.

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, SOCIAL E HUMANO

Assim, a percepção de que o crescimento econômico e a industrialização não trazem


por si só a melhoria da qualidade de vida das populações, a superação da miséria e da
exclusão social no Terceiro Mundo fomentou, então, a tentativa de conceituar melhor o
que seja desenvolvimento, adjetivando-o. Desde 1966, as Nações Unidas haviam criado
uma Comissão para o Desenvolvimento Social das Nações Unidas, cujas contribuições
deveriam ser dirigidas ao seu Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (E-
COSOC), este sim criado no mesmo momento de sua fundação, em 1946. Como a pre-
cedência do adjetivo “econômico” antes do “social” deixa claro, o Conselho Econômico
e Social da ONU conferia à economia um papel prioritário em relação às questões soci-
ais, abordagem economicista que se refletirá mais tarde na significativa contribuição
teórica de um dos seus corpos subsidiários mais importantes, a Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe (CEPAL), para as teorias dependentistas. Como ob-
serva Alves, o conceito de “desenvolvimento social” não estava presente na Carta da
ONU, aparecendo aos poucos na medida em que a preocupação com o desenvolvimento
se impunha ao Terceiro Mundo no após Guerra. (ALVES, 2001, p. 183). Por isso mes-
mo, nunca se teve deste conceito uma definição muito clara, subentendendo-se por de-
senvolvimento social um amplo leque de serviços como educação, saúde, trabalho, mo-

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radia, assistência e previdência sociais, parte dos quais foram tratados de forma separa-
da por diversos órgãos e agências da ONU especializados, como a Organização Mundial
da Saúde (OMS), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou a Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), o que prejudicava mais
ainda um entendimento abrangente e holístico do que se deveria conceber como desen-
volvimento social e permitir distingui-lo do mero crescimento econômico.
Papel fundamental na elucidação desta questão desempenhou Amartya Sen, econo-
mista indiano que revolucionou a noção de como se deveria definir a pobreza, ao con-
cebê-la como a privação de capacidades básicas e não apenas como baixa renda. Assim,
morte prematura, subnutrição significativa, analfabetismo, a falta de liberdades políticas
e civis são tão ou mais importantes do que a renda para gerar felicidade ou qualidade de
vida. Vistos por essa ótica, segmentos da população estadunidense, como os afrodes-
cendentes, podem ser considerados menos desenvolvidos do que a população do Estado
indiano de Kerala ou da população chinesa, cuja expectativa de vida é mais alta, mesmo
que a renda per capita dos EUA seja muitas vezes superior a destas outras regiões (SEN,
2004, p.119).
Por isso mesmo, a construção de índices de desenvolvimento humano inspirada nes-
tas ideias de SEN, como o fez o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) a partir de 1990, apresentou muitas dificuldades, pois a própria construção de
uma média entre elementos tão distintos como educação, saúde e renda acaba por pro-
duzir índices que expressam muito pouco sobre a qualidade de vida real da maioria de
uma população, comprometendo, portanto, as comparações entre países. É possível, por
exemplo, que países com alta renda per capita, mesmo que distribuída de forma chocan-
temente desigual, e com baixas taxas de escolaridade e expectativa de vida possam al-
cançar um índice superior a outros que atenderam melhor às necessidades de saúde e de
educação da sua população, embora tenham renda muito inferior aos primeiros (VEI-
GA, 2008, p. 83 e seguintes). Também é preciso reconhecer que possa haver diferenças
substanciais na forma como populações e culturas avaliam quantitativa e qualitativa-
mente, o que seja um padrão aceitável em termos de renda, saúde e educação. Basta
pensarmos em nossos povos indígenas e populações tradicionais, alguns deles com es-
casso ou nenhum contato com a sociedade de mercado em que vive grande parte da po-
pulação brasileira, para entendermos que não faz sentido considerar a sua renda per ca-

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pita como meio para seu acesso à alimentação adequada, saúde e moradia. Em tais gru-
pos sociais, o grosso de sua alimentação é extraída diretamente da caça, pesca, coleta e
cultivo, buscando-se no mercado apenas aquilo que inexiste na região, como sal, óleo e
açúcar. Por outro lado, já Marx comentava que poderia fazer parte do mínimo necessá-
rio à reprodução da força de trabalho elementos de ordem cultural considerados indis-
pensáveis à dignidade humana, como o uso de sapatos e em nossa época, certamente, o
celular. Portanto, são muitas as restrições que podemos fazer ao que significam tais ín-
dices de desenvolvimento humano, por mais que eles sejam aprimorados. Mas é preciso
reconhecer, contudo, que o IDH desempenhou uma função desmistificadora ao eviden-
ciar e permitir comparar carências sociais inaceitáveis como alta mortalidade e analfa-
betismo, déficit de moradia, abastecimento e esgoto, luz e água que se escondiam por
trás de invejáveis índices de renda per capita entre muitos países “em desenvolvimen-
to”, particularmente os chamados newly industrialized countries como o Brasil, a África
do Sul, a China e a Índia.
Amartya Sen, portanto, propôs que se entendesse o desenvolvimento como “um
processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”8 reconhecendo a
semelhança entre a sua perspectiva baseada nas liberdades e aquela que avalia o desen-
volvimento em termos de qualidade de vida. Segundo Sen, na verdade, desde Aristóte-
les, passando-se por boa parte dos economistas influentes, a economia nunca teria res-
tringido a sua atenção exclusivamente à questão da renda, como se fez recentemente. O
sentido da economia sempre teria sido estudar e avaliar as oportunidades para que as
pessoas pudessem desfrutar de uma boa vida. Se é assim, tal perspectiva nos impõe, de
imediato, reconhecer que sociedades e culturas conceberam a “boa vida” de formas
muito distintas ao longo da história, e a construção de um modelo ideal do que seja esta
“boa vida” apenas poderia ser o resultado de um processo social no qual tais sociedades
e culturas refletissem sobre o seu modo e os demais modos de vida de que têm conhe-
cimento neste mundo globalizado e montassem o seu projeto de futuro. Nem a imposi-
ção desde cima de um modelo de felicidade, nem o congelamento de formas de vida,
impostos por comunitarismos reacionários, podem substituir um processo democrático e
participativo de definição do futuro (LEROY, 2010, p.107). É por isso mesmo que uma
das principais críticas que se fez ao IDH é a de que ele não incluiria a dimensão cívica,
ou seja, “a capacidade de participar das decisões que afetam a vida das pessoas e de

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gozar do respeito dos outros na comunidade”, crítica que fez com que o PNUD buscasse
criar um índice de liberdade humana em 1991 e um outro de liberdade política, embora
abandonasse tais tentativas, devido às óbvias dificuldades em quantificar tais liberdades
(VEIGA, 2008, p.87).

NEOLIBERALISMO E DESMONTAGEM DOS DIREITOS SOCIAIS

Mas a recuperação do crescimento econômico na década de 90, o fim do bloco soci-


alista e as novas oportunidades oferecidas à economia capitalista fizeram com que o
liberalismo econômico se impusesse com toda a sua força ideológica no mundo, alimen-
tando as ilusões de que fosse possível um eterno crescimento das economias capitalistas
desde que respeitado um cânone de promoção do investimento privado, contenção de
despesas públicas e livre comércio. É neste contexto que se popularizam as teorias neo-
liberais, que conferem ao mercado e aos capitais o poder de estimular um crescimento
ilimitado e consideram o gasto público como um custo que prejudica a competitividade
entre países no mercado mundial. (HARVEY, 2006).
No mundo dos “países subdesenvolvidos”, que agora já são chamados otimistica-
mente de “países em desenvolvimento”, a nova receita é, portanto, reformular sua legis-
lação, eliminando as políticas protecionistas, financiando a criação de infraestrutura
para as empresas, atrair investimentos estrangeiros e estimular a produção nacional,
gerando as condições para que o país se torne competitivo internacionalmente. Perma-
nece, inalterada, assim, a crença em que crescendo a economia, geram-se os recursos
necessários para a educação, a saúde e demais recursos necessários à qualidade de vida.
Também permanece inalterada a crença de que é possível continuar sempre crescendo.
Por isso mesmo, a realização da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social,
em Copenhague, em 1995, por iniciativa da ONU, em plena época de ascenso da ideo-
logia neoliberal teve grande importância (ALVES, 2001, p.181). Embora os compro-
missos políticos estabelecidos pelos países que compareceram a reunião incluíssem o
reconhecimento de que o desenvolvimento social só poderia ser obtido graças à ação
enérgica de países visando erradicar a pobreza, promover a integração social, fomentar
o pleno respeito à dignidade humana e garantir a educação e a saúde física e mental de
qualidade, seus resultados práticos foram frustrantes, aliás como a maioria dos resulta-

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dos práticos das conferências sociais da ONU, na década de 90, pois o fortalecimento da
ideologia neoliberal conduziu os países em direção inteiramente contrária a essas reco-
mendações. Tratou-se, na verdade, de criar os cenários mais favoráveis possíveis para
os mercados, mesmo que isso implicasse redução dos gastos dos Estados em políticas
sociais e mesmo desmontagem do Estado de Bem Estar Social onde ele já estava razoa-
velmente estabelecido. O resultado das políticas neoliberais foi um evidente retrocesso
na qualidade de vida das populações não só dos países “desenvolvidos”, como daqueles
“em desenvolvimento”. Precarização das relações de trabalho, aumento da desigualdade
social, esgarçamento das relações de solidariedade social, crescimento das diversas for-
mas de intolerância social, como a xenofobia, a intolerância religiosa, a homofobia e os
micronacionalismos excludentes. Periodicamente o mundo enfrenta crises econômicas,
que se abatem indistintamente em todas as regiões do planeta trazendo consigo falências
catastróficas, desemprego, desamparo social e crises políticas: os EUA em 1973, o Mé-
xico em 1982, o Sudeste Asiático em 1997 e 1998, a Argentina em 1999, a recente crise
financeira dos EUA em 2008 e a atual crise interminável dos países do Sul da zona do
Euro: Portugal, Espanha, Grécia e Itália (HARVEY, 2011, p.9 e seguintes). Para cada
crise, busca-se e encontra-se uma explicação específica, equívocos cometidos por suas
autoridades econômicas, lições a serem aprendidas pelos dirigentes de outros países,
sem que, no entanto, se consiga efetivamente evitar que essas crises se repitam.
Além do mais, nenhuma das sociedades que adotaram o neoliberalismo como orien-
tação política pode gabar-se de resultados ao mesmo tempo positivos e duradouros e em
todas elas podemos apontar retrocessos sociais evidentes. Apesar disso tudo, persiste a
crença de que desenvolvimento é antes de tudo crescimento econômico, que todas as
demais benesses podem ser alcançadas graças a ele e que é possível crescer-se ilimita-
damente. Tal crença é tão ou mais notável quando a Realidade com R maiúsculo vem
mostrando desde as últimas décadas que nenhuma destas duas coisas foram verdadeiras.
O extraordinário crescimento econômico da China, saudado e admirado mundialmente,
foi acompanhado da revelação das condições de trabalho as mais aviltantes a que está
sujeita a sua população, da absoluta falta de liberdades políticas e do surgimento de uma
alarmante desigualdade social e corrupção generalizada das autoridades, além de gravís-
sima crise ambiental. Porém, até no mundo já “desenvolvido”, o crescimento econômi-
co se mostrou perverso, incentivando a precarização do trabalho, gerando desemprego,

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desmontagem do Estado de Bem Estar Social, grandes crises econômicas periódicas,
crescimento de xenofobias e racismos, entre outras manifestações preocupantes. Como
afirma Ulrich Beck, devemos reconhecer que o mundo enriqueceu nas últimas décadas,
mas sua população empobreceu (BECK, 1999, p. 20). Nos poucos países onde regis-
tram-se melhoras substantivas na renda, saúde e educação populares – embora não sai-
bamos se duradouras, tais melhoras se deveram a políticas compensatórias adotadas por
governos de fortes traços populistas como o Brasil, a Venezuela e o Equador, que ao
mesmo tempo que endossam o receituário neoliberal da criação de cenários favoráveis
ao mercado e ao aumento da competitividade dos seus países, trataram de desviar parte
da renda obtida com a exploração de suas “vantagens comparativas” – recursos naturais
e mão de obra barata – para políticas sociais de complemento ou fornecimento de renda
mínima, acesso a escolas e saúde (GUDYNAS, 2009).
Como no mundo “desenvolvido” não se trata mais de “desenvolver”, o objetivo de
todas as políticas desses países é simplesmente o eterno crescimento econômico, cres-
cimento que se mostra inconstante e não sustentável, e ainda por cima, exigindo que se
queime no seu altar todas aquelas benesses que antes se supunha que ele deveria assegu-
rar: educação, saúde, previdência social e até democracia. Não esqueçamos que a terra
da democracia, a Grécia, foi eficazmente pressionada pelos países credores a não reali-
zar um plebiscito para ver se pagava ou não a dívida com os países da zona do Euro.

DESENVOLVIMENTO INSUSTENTÁVEL

O outro aspecto que mostra o quanto o projeto de desenvolvimento como cresci-


mento econômico é inviável é a crise, ou melhor a catástrofe ambiental que enfrenta-
mos: as mudanças climáticas, a poluição global de mares e fontes hídricas, de alimentos
e da atmosfera, a extinção de espécies e o desmatamento acelerado entre outros fenô-
menos. Até os anos 70, a questão ambiental não era vista como um problema, pois até
ali não estavam claras as consequências do modo de produção e consumo adotados pela
humanidade com o início da Revolução Industrial. Na verdade, todo o crescimento eco-
nômico só foi possível graças à exploração de uma base física: terras, minérios, matas,
combustíveis fósseis e uma grande população. Esses são elementos essenciais ao “cres-
cimento econômico” e só a presença massiva destes “recursos naturais” é que explicam

36
o notável desenvolvimento dos EUA, e mais tarde da URSS e da China (ALTVATER,
1995). Salta aos olhos que a história do desenvolvimento econômico dos EUA não pode
reproduzir-se em outros países “em desenvolvimento”, pois não há país que reúna hoje
as condições ideais físicas, biológicas, tecnológicas e populacionais para isso. Tampou-
co a crise ambiental atual permitiria uma expansão tão extraordinária de uma outra eco-
nomia fossilista, como a estadunidense. Além disso, a formação de uma economia mun-
dial composta de países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos” não pode ser entendida
efetivamente sem uma análise, não apenas dos fluxos de capitais e populações, mas dos
fluxos de recursos naturais que permitiram ao primeiro grupo de países se industrializar
e sustentar suas populações urbanas: minérios (ouro e prata, mas também cobre, esta-
nho, chumbo), madeira, tintas, algodão, lã, trigo, carne, fertilizantes como o guano e o
salitre, cacau, café, cana de açúcar, arroz. E que teve sua contraparte em uma dívida
ecológica até hoje não reconhecida por ninguém (ALIER, 2007). Mesmo hoje, se obser-
varmos o comércio internacional não do ponto de vista de seu valor monetário, mas do
ponto de vista dos fluxos materiais, é o mundo industrializado, “desenvolvido”, quem
depende de maneira radical do mundo “em desenvolvimento” (PORTO-GONÇALVES,
2006. p.40). O que se reconhece hoje como um alto nível de desenvolvimento de pa-
drões e políticas ambientais em países do Norte, particularmente na Europa Ocidental,
seria inviável sem o baixo nível de desenvolvimento dos padrões e políticas ambientais
dos países do Sul que lhes exportam petróleo, minérios os mais diversos, aço, madeira,
celulose, carne de vaca, soja e milho para ração animal.
Que o planeta não poderia seguir crescendo indefinidamente havia sido já afirmado
pelo “Limites do Crescimento”, o famoso relatório Medows, que tanto alarme causou
em 1972, na primeira conferência mundial sobre meio ambiente, a Conferência sobre
Desenvolvimento Sustentável, ocorrida em Estocolmo. Como sabemos, nenhum dos
três mundos em que se dividia o mundo na época, gostou dessas conclusões. Durante os
anos que se seguiram, muitos outros estudos e conferências foram realizados, até que o
Relatório Brundtland trouxe uma solução satisfatória, ao apresentar a noção do “desen-
volvimento sustentável”. Era possível que se continuasse a crescer, desde que adotás-
semos princípios, métodos e políticas sustentáveis. Como um Drumond de Andrade
ambientalista diria, a noção de “desenvolvimento sustentável” foi mais uma rima, do
que uma solução. A todos os problemas que a noção de desenvolvimento abrigava – o

37
que era, qual a sua relação com o crescimento econômico, era possível? – somaram-se
as novas dificuldades de se definir o que seja sustentável, pois o conceito de sustentabi-
lidade albergava as mais diversas concepções e possibilidades. (VEIGA, 2008). Em um
curto espaço de tempo, todos os tratados internacionais sobre meio ambiente, comércio,
tecnologias e direitos humanos incorporaram essa noção, bem como todas as políticas
nacionais e as estratégias empresariais a mencionam como tópico obrigatório, tornando-
a cada vez mais ambígua, banal e vazia. O que poderia se salvar nesta noção – o com-
promisso ético com as próximas gerações – portanto um princípio que deveria orientar
uma efetiva discussão pública e democrática sobre o que seja “desenvolver” e o que
pode ser “sustentável” foi ignorado, em nome da conveniência de se continuar fazendo
o mesmo, apenas acrescentando uma comovente preocupação com o meio ambiente.
Assim, apesar de tudo, o mundo continuou movendo-se na mesma direção, buscan-
do o crescimento econômico, a retomada do crescimento econômico nos países do Nor-
te, o “desenvolvimento” nos países do Terceiro Mundo. Não há campanha eleitoral nes-
te último, em que o “desenvolvimento” não seja uma promessa indefectível, dele se
esperando quase tudo, como o aumento do emprego, renda, saúde, educação e qualidade
de vida em geral. No mundo desenvolvido, na Europa do Euro em que vários dos seus
países membros enfrentam uma crise econômica pavorosa como a Espanha, a Grécia, a
Itália e Portugal, ou nos EUA que se recupera lentamente de mais uma crise financeira
assustadora, o debate teórico é sobre como retomar o crescimento, não sobre a sua pos-
sibilidade, e a sua desejabilidade.
Por outro lado, nas negociações internacionais de meio ambiente, como na Conven-
ção sobre Mudanças Climáticas, na Convenção sobre Diversidade Biológica e mais re-
centemente na Rio+20, temos assistido esforços ingentes para compatibilizar políticas
ambientais com a lógica do mercado, criando-se mecanismos financeiros que deveriam
ter a função de proteger o meio ambiente, como o Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL) do Protocolo de Quioto, a Redução de Emissões por Desmatamento ou
Degradação (REDD), ou o TEEB (The Economics of Ecosistems and Biodiversity). Há
uma espantosa recusa em ver o óbvio, ou seja, que o capitalismo está encontrando os
seus limites, limites sociais, mas também ambientais (ALTVATER, 1995; BECK, 2010;
GORZ, 2010; HARVEY, 2011; PORTO-GONÇALVES, 2006). Os movimentos soci-
ais, organizações ambientalistas e acadêmicos sérios que estudam a questão o percebe-

38
ram claramente e esta é a razão porque na RIO+20 não foi possível um diálogo frutífero
entre o mundo da sociedade civil, representado pela Cúpula dos Povos e a Conferência
oficial, na Barra. Diferentemente da Eco-92, onde todos os analistas reconheceram a
grande contribuição das ONGs e movimentos sociais para os resultados da reunião ofi-
cial (ALVES, 2001, p.72; VIEIRA, 2001, p.133 e seguintes), em 2012 a reunião oficial
não estava disposta realmente a ouvir o que não queria.
Cabe, portanto, indagar sobre as razões porque nossos governantes, e grande parte
da humanidade reagem de maneira tão cega frente aquilo que diversas ciências, saberes
e realidade estão nos evidenciando. Não basta para explicar tal cegueira o óbvio interes-
se econômico do Capital, que segue tratando de fazer o mesmo, com o simples objetivo
de acumular-se, mesmo que o mundo pereça. Também em Marx estava a crença em um
avanço interminável das forças produtivas que levaria a uma sociedade de abundância,
onde o trabalho seria desnecessário, e sem dúvida essa crença inspirou o esforço dedi-
cado de milhões de indivíduos que contribuíram, e os outros milhões que sucumbiram
na construção dos socialismos realmente existentes. Capitalistas e operários, intelectuais
e gente simples, esquerda e direita, fomos e somos todos tributários de uma concepção
de progresso própria da modernidade. Podemos discutir quando e como ela se consoli-
da, se no que se chamou de Revolução Científica, ou apenas tardiamente, no século
XIX, sob o pensamento evolucionista de um Comte, como quer Paolo Rossi (2000). O
que é fato é que o senso comum é hoje constituído por um Imaginário que crê em um
progresso técnico como fundamento de um progresso social e que acredita que esse a-
contecerá fatalmente, quaisquer que sejam as vicissitudes que ele possa encontrar pela
frente (CASTORIADIS, 1987, p. 235 e seguintes; MORIN, 1984). Substituindo a reli-
gião, a ciência e a técnica aparecem como garantia do nosso futuro luminoso, atribuin-
do-se aqueles que a desenvolvem uma neutralidade e imparcialidade de valores inexis-
tente e aos métodos e teorias empregados uma perfeição que elas estão longe de possuir,
o que explica o aparecimento de indesejáveis efeitos colaterais das suas extraordinárias
invenções (BECK, 2010; JONAS, 2006; MORIN, 1987).
Cabe, portanto, reconhecer, que o “desenvolvimento”, uma espécie de filho do
“progresso” para os países do Terceiro mundo, do Sul, do mundo periférico como se
queira chamar, é a ideologia da nossa época, o imaginário social da modernidade, com
toda a força que uma ideologia ou imaginário têm para cimentar, aglutinar, dar sentido à

39
uma sociedade determinada (CASTORIADIS,1987; BUARQUE, 1991; DUPAS, 2006;
FURTADO, 1974.).
É uma noção confusa, pobre e incongruente (MORIN, 1984) porque se trata de ideo-
logia, e as ideologias, como as antigas religiões, não visam à compreensão profunda das
realidades, mas a amalgamar as amplas massas nas sociedades em torno a algumas ex-
plicações básicas sobre a sua realidade (ARENDT, 1997, p. 520). Os estudos históricos
e sociológicos nos mostram que as ideologias são resistentes, resistem à realidade e
mesmo aos mais profundos sofrimentos. Quantos impérios sucumbiram acreditando
firmemente em suas verdades! Conta-se que nos últimos dias do Terceiro Reich, quando
já era evidente para o povo alemão que a Alemanha estava perdendo a guerra, circulava
o boato de que Hitler tinha guardado na manga uma nova arma altamente destrutiva, e
com ela ele acabaria por vencer a guerra. Assim, não importa que o capitalismo e o pro-
dutivismo enquanto tal deem mostras de que estão morrendo e com eles levando uma
boa parte das condições habitáveis para nós, no planeta. Não importa que em Davos
reine uma certa desorientação sobre o que fazer, como comentam os jornalistas econô-
micos. O “crescimento econômico”, a “competitividade” o “desenvolvimento” continu-
arão sendo os nomes dados ao Santo Graal perseguido com tanta teimosia pelos nossos
governos. E é em nome desse “desenvolvimento” que não sabemos o que é e nem sa-
bemos para onde vai – que os dois governos Lula e o governo Dilma Roussef tem pa-
trocinado obras como hidrelétricas, transposição de rios, mineração, estradas de ferro,
oleodutos, refinarias, portos, monoculturas de soja, cana-de-açúcar, eucalipto e libera-
ção comercial de transgênicos no meio ambiente. Se essas obras e políticas violam o
direito à existência de povos indígenas, quilombolas, populacionais tradicionais, cam-
poneses, agricultores familiares, pescadores artesanais, populações urbanas da periferia,
brasileiras e brasileiros, futuras gerações e mesmo um hipotético, por que não, direito da
Natureza, as autoridades executivas, legislativas e judiciárias creem estar decidindo com
justiça. Entre esses interesses “particulares”, menores, que concernem apenas a algumas
comunidades e grupos sociais e o interesse maior, da Pátria, da Nação, de “todos os bra-
sileiros”, a escolha é fácil (LISBOA, 2011). Atrás desse julgamento, evidentemente,
enfileiram-se felizes as grandes empresas de construção civil, tão poderosas em nosso
país, o agronegócio, as multinacionais brasileiras da mineração, pois podem unir os seus
lucros à consciência tranquila de que estão contribuindo para o Bem do País. É também

40
esse Bem que justifica certas astúcias e mesmo violações da legislação ambiental do
país, pois não seria aceitável que questões burocráticas pudessem atrasar ou mesmo
inviabilizar as grandes obras e atividades necessárias ao progresso do país (ACSEL-
RAD, 2004; ZHOURI, 2005).
Os movimentos de justiça ambiental que tem surgido e crescido em todo o mundo,
mas particularmente nos países em que o “desenvolvimento” tem feito grandes estragos
nos últimos tempos, precisam enfrentar decididamente o mito do desenvolvimento. É
necessário colocá-lo na berlinda, denunciar sua falta de consistência e lógica, revelar
quem ganha e quem perde a curto e longo prazo com essa inconsistência e falta de sen-
tido. Por outro lado, se não há um rumo certo para a humanidade, e nunca houve, aliás,
tampouco é certo assumir uma posição fatalista, de que não haja nada a se fazer. Prova-
velmente encontramo-nos mais uma vez em um momento de bifurcação da História, em
que nos é dada a alternativa de seguir na mesma direção, embora ela nos conduza a um
abismo, ou tentar um desvio. A autonomia, o oposto da ideologia, é justamente a capa-
cidade de decidir sobre os próprios rumos, em vez de sujeitar-se aos novos ídolos da
modernidade, como esse confuso conceito de desenvolvimento.
Celso Furtado, ao concluir pela impossibilidade de estender ao mundo em desenvol-
vimento o padrão de consumo existente nos países “centrais”, denunciava como um
mito a ideia de desenvolvimento econômico. “Graças a ela tem sido possível desviar as
atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletivida-
de e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em
objetivos abstratos como são os investimentos, as exportações e o crescimento”.9 Por
isso, considerava que o Relatório “Limites do Crescimento” havia contribuído para a
destruição desse mito, ainda que não fosse essa a sua intenção.
Contudo, muitos anos depois, o mito ainda sobrevive na crença de que desenvolvi-
mento é sobretudo um padrão de produção e consumo perdulários e insustentáveis, ins-
pirados naquele das economias centrais. Superado o colonialismo, como diz Porto-
Gonçalves, continua imperando entre nós uma mentalidade colonial, a colonialidade,
que faz com que entendamos por desenvolvimento sociedades urbanas, industrializadas,
empregando tecnologias avançadas, produzindo muito e consumindo muito e nos recu-
semos a reconhecer a evidente insustentabilidade social ambiental deste modo de vida.
Tampouco se sustenta a tese de que os países em desenvolvimento precisam crescer

41
economicamente, para poderem sanar os seus terríveis problemas ambientais, como nos
quiseram fazer crer teóricos e políticos que colocam como condição para o enfrenta-
mento da questão ambiental a superação da pobreza. Nem são os pobres os causadores
dos desequilíbrios ambientais, pois, ao contrário, são eles as maiores vítimas de um tipo
de economia e sociedade que lhes rouba o acesso à terra, ao trabalho e à renda, além de
provocar a crise ambiental. A produção de bens supérfluos, descartáveis e exportáveis
para as economias centrais, bem como o desperdício de matérias-primas e insumos e a
dilapidação da sua biodiversidade no chamados países em desenvolvimento mostram
que seu problema não é exatamente o de como produzir riqueza, mas uma questão de
escolhas a respeito do que produzir, e para quem produzir. Uma dos fatos mais notáveis
observados entre os estudiosos dos fenômenos de desigualdade social foi o de que fosse
justamente durante o transcurso das duas Guerras Mundiais, quando se registrou o me-
lhor nível nutricional da população inglesa. Certamente enfrentando enormes problemas
de produção e abastecimento, o Estado inglês, por razões políticas, tratou de garantir por
meio de racionamento e distribuição a preços subsidiados, alimentação adequada a to-
dos os cidadãos (SEN, 2004, p. 66).
Por fim, a história e a antropologia deveriam nos servir para provocar uma reflexão
crítica sobre o nosso modo de vida. Observando como vivem aqueles povos indígenas e
populações tradicionais dos nossos dias ainda razoavelmente protegidos do contato co-
nosco e estudando como viveram tantas sociedades que nos antecederam, deveríamos
considerar se mais do que esta luta insana, interminável e inviável pela aquisição e con-
sumo de bens e serviços materiais, uma vida feliz poderia ser o resultado de vínculos
afetivos fortes, de corpos saudáveis, da participação ativa nos destinos de uma coletivi-
dade, da arte e do trabalho dignificante e gratificante. Se, enfim, está na hora de desfa-
zermo-nos deste mito e de todos os seus adjetivos, para descobrirmos um futuro real-
mente compatível com os limites físicos do planeta e que nos proporcione uma verda-
deira felicidade.

NOTAS

1
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essen-
cial à sadia qualidade de via, impondo-se ao Poder Público a atividade e o dever de defendê-lo e preservá-
lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988).

42
2
“São reconhecidos aos índios suas organização social, costumes, língua, crenças e tradições, e os direi-
tos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 1988).
3
“Partindo-se da premissa de que não existem direitos fundamentais absolutos, surgindo uma situação
que se apresentem em posições antagônicas, impõe-se proceder à compatibilização entre eles, mediante o
emprego do princípio da proporcionalidade, o qual, segundo Steinmetz, p.99, “(....) permitirá, por meio de
juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto (...) _” harmonizá-los,
através da redução proporcional do âmbito de aplicação de ambos – colisão com redução bilateral – ou de
um deles apenas – colisão com redução unilateral – se inviável a primeira providência.” (PACHECO,
2007).
4
ONU. Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento, 1986. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos,
Universidade de São Paulo, USP. <www.direitoshumanos.usp.br>
5
Idem.
6
Idem.
7
Idem.
8
SEN, 2004, p.17.
9
FURTADO, 1974.

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45
ELIANE CANTARINO O’DWYER

PROJETO MODERNIZADOR DE CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E


ESTRATÉGIAS DE REDEFINIÇÃO DO ESTADO E SUAS MARGENS

O objetivo de minha participação neste fórum é fazer uma reflexão sobre o Estado e
suas margens, a partir dos processos de construção moderna do Brasil como Estado Na-
ção, isto é, os processos do chamado “nation building”, nos quais “empreendimentos
capitalistas e estados-nação modernizantes são os dois mais importantes poderes que
organizam o espaço hoje”1. O projeto de construção do Estado-Nação brasileiro é mo-
dernizador e, “não se refere apenas a governantes que tentam implementá-lo, mas tam-
bém aqueles que lutam contra ele”2 em espaços políticos legais estabelecidos. Assim, o
poder hegemônico não elimina ambiguidades, nem homogeiniza, mas diferencia e clas-
sifica práticas, definindo junto com o projeto modernizador certas formas de “fazer his-
tória”, principalmente após a Constituinte de 1988, que, segundo juristas, institui uma
nova ordem jurídica diversa das anteriores, e com ela inaugura-se um novo Estado no
Brasil.
Os direitos culturais protegidos pelo Estado brasileiro, no caso dos “indígenas” e
“afro-brasileiros”, e de outros “grupos” (...), com a “valorização da diversidade étnica e
regional” (Artigos 215 e 216 (BRASIL, 1988)) têm sido interpretados em conexão com
os direitos sobre as terras indígenas e o reconhecimento a propriedade das terras ocupa-
das pelos “remanescentes das comunidades de quilombos”, neste último caso por meio
das disposições constitucionais transitórias, Artigo 68 do Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias (DCT) (BRASIL, 1988), que disciplinam “situações concretas”,
consideradas “análogas”, porém “distintas”, as quais passam a fazer parte integrante da
Constituição. Assim, a noção de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como
sendo as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições, tem sido utilizada igualmente no reconhecimento de direitos constitucionais
de ocupação territorial dos “remanescentes de quilombos” e outros grupos caracteriza-
dos pela legislação infraconstitucional como “povos” e “comunidades tradicionais”
(Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 (BRASIL, 2007)).

46
Neste contexto de reconhecimento de direitos culturais e territoriais, pela nova Carta
Constitucional, as pesquisas etnográficas têm produzido formas de conhecimento que,
segundo argumentação de Veena Das, ao privilegiarem a experiência, possibilitam in-
troduzir-se em domínios do social que não são de fácil acesso seguindo outros protoco-
los de enquete. Assim, o trabalho de campo etnográfico “oferece uma perspectiva única
do tipo de práticas que parecem desfazer o Estado em suas margens territoriais e concei-
tuais”3, e, podemos ainda acrescentar, legais.
Sobre esta questão de onde estão as margens do Estado, pode-se recorrer a exemplos
etnográficos, no contexto brasileiro, que ajudem a delinear o espaço social e político de
reconhecimento e exercício legítimo do poder.
No caso do parecer antropológico realizado em 1989 e publicado praticamente uma
década depois sob o título “Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olhar antro-
pológico”4, fora solicitado a partir de denúncias sobre violação das liberdades pessoais e
formas de constrangimento ilegal perpetrado contra populações seringueiras no Estado
do Acre. De fato, tratavam-se de problemas sociais postos ao antropólogo, em um con-
texto de conflito e intensa mobilização dos seringueiros, após o assassinato de seu líder
Chico Mendes, e não de questões levantadas através da construção de um objeto de pes-
quisa. Enquanto problemas publicamente reconhecidos se transformaram em uma ques-
tão de Estado, o que provavelmente exigiu um tratamento supostamente garantido pela
investigação científica.
Deste modo, se o parecer antropológico sobre formas de trabalho escravo nos serin-
gais do alto rio Juruá não constituía uma pesquisa orientada pelas exigências do campo
acadêmico, por outro lado podia ser situado dentro das ações coordenadas no âmbito da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que envolviam a colaboração entre an-
tropólogos e a Procuradoria Geral da República, no reconhecimento dos direitos de gru-
pos étnicos e sociais.
Ao discutir as denúncias encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF), do
ponto de vista das populações seringueiras, foi possível introduzir a problemática socio-
lógica sobre “quem acusa quem”, como um modo de investigar os tipos de relações so-
ciais em que ocorrem e relacionar casos e incidentes, procurando esclarecer as conexões
entre eles (GLUCKMAN, 1975, p.71).

47
O levantamento antropológico das bacias dos rios Tejo e Breu, tributários do con-
junto hidrográfico do Alto Juruá, incluindo a parte mais à montante do rio em direção às
cabeceiras, tinha como objetivo o reconhecimento in loco das relações sociais e do sis-
tema de dominação caracterizado como forma de trabalho escravo prevalente nos serin-
gais.
O antropólogo, neste caso, tem que mobilizar a metodologia de pesquisa produzida
pela prática do seu saber para responder às questões levantadas através de denúncias
chegadas ao conhecimento do MPF sobre violações das liberdades pessoais e formas de
constrangimento ilegal perpetrado contra as populações seringueiras daquelas áreas.
Quando o antropólogo atua como inquisidor às avessas, a procura das informações
disponíveis, dos testemunhos e depoimentos coletivos, a prática de pesquisa antropoló-
gica oferece caminhos – pelos jogos de transformar, através da experiência de campo, o
exótico em familiar, permitindo a construção de fatos muitas vezes do desconhecimento
dos próprios contemporâneos.
O antropólogo funciona, nesse caso, como observador direto e, até certo ponto, par-
ticipante, ao intermediar uma ação pública, que se pretende nessas circunstâncias sem
intermediários. Já o poder judiciário do Estado atua como representante da sociedade,
encarregando-se de proceder a um inquérito com a possível abertura de um processo
judicial.
Busca-se o testemunho dos que viveram pelo lado das vítimas as situações denunci-
adas. Viveram e/ou viram. O poder que por acaso se faça exercer em excesso sobre gru-
pos sociais, colocando-se fora das fronteiras do Direito, é chamado a dar explicações
dos seus atos. Isso feito a partir da valorização dos testemunhos de uma memória coleti-
va por uma categoria de personagens sociais, despossuídos do prestígio do poder e do
saber, que passam a enunciar a verdade da perspectiva em que a vivenciam.
Até a criação da primeira reserva extrativista do Brasil em 1989, no Alto Juruá, A-
cre; as populações seringueiras encontravam-se marginalizadas das estruturas políticas e
legais do domínio estatal. Tais populações seringueiras submetidas a formas de imobili-
zação da mão de obra, caracterizadas como trabalho escravo, ficavam “às margens da
história” como dizia Euclides da Cunha para se referir ao tipo de poder encarnado na
figura do patrão seringalista local, existindo fora da lei, em grave transgressão ao código
penal brasileiro.

48
Enquanto pesquisadores e etnógrafos, em nossos trabalhos de campo, descrevemos
práticas que podem ser consideradas extrajudiciais, representadas como permanecendo
“por fora” ou com anterioridade ao próprio Estado. Inclusive em condições de pesquisa
na qual participamos como peritos, como no caso de ação civil pública impetrada pelo
MPF, a partir de denúncias sobre violação de liberdades pessoais e formas de constran-
gimento ilegal, perpetrados contra populações seringueiras do estado do Acre. A criação
da primeira reserva extrativista do Brasil – do Alto Juruá, Acre – resultante desta ação
civil pública, teve, como um dos seus efeitos, converter espaços periféricos de práticas
extralegais no exercício de formas específicas de poder jurídico e condição cidadã.
Ainda para responder à questão: onde estão as margens do Estado, outra situação
social pode ser apresentada sobre a invasão madeireira na área indígena Awá-Guajá,
localizada na antiga reserva florestal do Gurupi.
O avanço da frente de expansão madeireira e agropecuária sobre a reserva indígena
Awá, com a diminuição drástica da área de 118 mil ha demarcada pela Fundação Na-
cional do Índio (FUNAI), reduz na prática o território utilizado pelos Awá para ativida-
des de caça e coleta, independentemente da ação judicial então em curso na 5ª Vara da
Justiça Federal do Maranhão (O’DWYER, 2001). Segundo informações dos servidores
do posto indígena e da população regional, em 2004, o então prefeito de São João do
Caru disse em programa de rádio local que a Área Indígena (AI) Awá ia ser alterada
para o limite do igarapé Água Preta e que a população poderia morar e fazer suas roças
dentro da reserva indígena. Assim, políticos locais, conforme disseram os informantes,
incentivam colonos do povoado de Santarém e outras localidades de São João do Caru,
e dos municípios de Zé Doca e Bom Jardim, “a invadir a reserva indígena”. Nem as
contestações judiciais e manifestações anteriores a favor e contrárias aos acréscimos e
diminuições da AI Awá, até a Portaria Ministerial nº 373, de 27 de julho de 1992
(BRASIL, 1992), alcançaram tal efeito restritivo à reprodução do modo de vida e as
práticas culturais dos Awá, considerado um dos últimos povos caçadores e coletores das
terras baixas da América do Sul.
O território de caça e coleta dos Awá – por eles chamados de harakwa –, como no
caso do igarapé Água Preta, tem suas margens invadidas pelos karaí (como chamam os
homens brancos em tupi) e não pode mais ser utilizado pelos Awá do Pin Juriti, só sen-
do possível perambular atualmente na direção do igarapé Mutum, ao sul da AI Awá no

49
limite com a AI Caru, onde vivem os Guajajara e estão situados dois postos indígenas
da frente de atração dos Awá-Guajá, os Pin Awá e Tiracambu. O chefe do posto indíge-
na Juriti – como encarregado local de um órgão do Estado (FUNAI) – acredita que é
nessa direção que devem se encontrar ainda alguns poucos grupos Awá, isolados na
mata.
Tais grupos, considerados ainda “isolados”, foram casualmente vistos no ano de
2005 por Wyroho, que segundo seu relato confundiram-no com um karaí (branco) pelo
calção que trajava e só o largaram quando se comunicou com eles na mesma língua e
saíram juntos em direção a um acampamento onde ouvira vozes e conseguiu fugir em
disparada pela mata de volta ao posto indígena. De acordo com suas palavras, esses
Awá da mata falavam com um sotaque muito rápido e ao segurarem-no com força pelo
braço, disseram para segui-los porque o acharam “muito triste”. A expressão desse sen-
timento atribuído à observação sobre ele – Wiroho – feita por outro Awá, ainda índio
brabo, conforme a classificação dos servidores da FUNAI e assumida pelos Awá do
posto indígena, pode representar a autoatribuição de um sentimento de perda e dor na
nova vida a que foram obrigados a se habituar nas condições de confinamento nessas
áreas de reserva indígena invadidas, por interesses de exploração madeireira.
Os Awá do Pin Juriti foram em parte transformados em agricultores, pelo discipli-
namento de uma prática segundo as diretrizes do posto indígena, que contrata alguns
lavradores entre os regionais para desenvolver o cultivo e conta com a participação pra-
ticamente integral dos homens jovens adultos Awá, que são assim subtraídos das ativi-
dades de caça e coleta, realizadas nesse mesmo período do verão quando se derruba as
capoeiras e/ou a mata para o plantio do roçado. Só os mais velhos, as mulheres, as cri-
anças e alguns que não puderam ser disciplinados mantêm-se afastados das atividades
agrícolas, confinados, contudo, a pequenas caçadas perto do posto, e sem contar com os
jovens adultos, imprescindíveis para os deslocamentos maiores em direção aos harak-
was dos igarapés Mutum e Água Preta, esse último mais recentemente invadido, usados
tradicionalmente pelo grupo inclusive para as atividades de coleta de palmeira para co-
bertura dos haipa (habitação), de coco babaçu, usado como comestível e folhas de tu-
cum, sendo esta última atividade exclusivamente feminina visando à confecção do ves-
tuário e de redes.

50
O cercamento dos antigos territórios de caça e coleta desse grupo indígena ao longo
de uma fronteira étnica e territorial resultou em ações de disciplinamento de suas práti-
cas culturais, segundo as diretrizes da FUNAI, visando transformá-los – forçosamente –
em agricultores indígenas.
Durante trabalho de campo realizado em 2007, os Awá-Guajá queixavam-se muito
do enfermeiro do posto indígena porque, ao solicitarem remédios para dor, não eram
atendidos, sendo-lhes dito que procurassem os “remédios do mato”, dos quais sempre
fizeram uso. Contudo, recorrer ao remédio “dos brancos”, como uma cura dos males
causados por uma atividade física por eles desconhecida até a situação de contato, pode
ser relacionado às disposições corporais próprias para as atividades de caça, esgueiran-
do-se na mata, e na coleta de produtos vegetais. Assim, não suportam sem sofrimento
físico o disciplinamento forçado a outras práticas corporais relacionadas ao trabalho de
derrubada e queima da mata para o plantio dos roçados, o que exige igualmente um no-
vo disciplinamento dos corpos.
A noção de “estado de natureza” aplicada aos povos coletores e caçadores como os
Awá-Guajá – discriminados por práticas sociais e culturais distintas e por vezes consi-
derados como obstáculo ao desenvolvimento – parece justificar as ações de integração
forçada, que podem ser caracterizadas como formas domésticas de genocídio cultural,
que assumem contemporaneamente os massacres do período colonial. Na definição de
genocídio doméstico têm sido considerados os atos cometidos com a intenção de destru-
ir, no todo ou em parte, grupos étnicos, raciais ou religiosos, incluindo formas de geno-
cídio cultural. Nos tipos de genocídio doméstico se encontra aquele praticado contra
povos indígenas. Esta é uma forma contemporânea dos massacres do período colonial,
atualmente perpetrada contra pequenos grupos de caçadores e coletores ameaçados de
extinção, vítimas de uma economia de desenvolvimento predatório (KUPER, 1984, p.
216), como no caso do povo indígena Awá-Guajá que habita a antiga área da reserva
florestal do Gurupi, na pré-amazônia maranhense.
Deste modo, o acompanhamento etnográfico dessas situações sociais, como no âm-
bito do Informe Etnográfico encaminhado à Procuradoria Geral da República no Estado
do Maranhão, realizado em 2007 (O’DWYER, 2010), não deve ser visto como uma
“antropologia do salvamento”, mediante a coleta de costumes exóticos antes que os
grupos tribais como os Awá, considerados os últimos povos coletores caçadores da A-

51
mérica do Sul, desapareçam completamente, ao contrário tais povos representam teste-
munhos vivos de resistência a processos que podem ser caracterizados como contrários
as suas práticas culturais, assim como aos usos e representações dos seus territórios de
ocupação tradicional.
Neste caso, a decisão em 2008 de Juiz Federal no reconhecimento dos limites terri-
toriais da área indígena Awá-Guajá, com a retirada dos invasores, pode representar i-
gualmente o reconhecimento da diversidade cultural e de outras formas de uso e repre-
sentação do espaço no âmbito do Estado brasileiro, segundo a Constituição Federal de
1988, que garante “aos diversos grupos formadores da sociedade nacional os seus mo-
dos de criar, fazer e viver”.
Resta ainda a questão: quais medidas econômicas e políticas têm sido tomadas pelo
poder estatal para controlar o modo de utilização dos recursos ambientais renováveis?
A identificação de problemas, como a diminuição de pescado pela intensificação das
atividades de captura a partir de 1970 e os conflitos pela apropriação de recursos natu-
rais renováveis da várzea do Amazonas, mais especificamente em Santarém/PA, leva-
ram à utilização de instrumentos de intervenção do Poder Público como os Acordos de
Pesca, os Termos de Ajustes de Conduta e à titulação das áreas de várzeas pela conces-
são do direito real de uso. Essas formas de controle do espaço se utilizam igualmente do
inquérito como forma de produção de um saber com participação de ONGs e pesquisa-
dores em universidades para o desenvolvimento de projetos visando a realização do
censo da população e o diagnóstico socioambiental da várzea. O objetivo do Estado no
financiamento e apoio a esses projetos e ações é reunir e manter atualizado um corpus
de informações a respeito dessas regiões de várzea do Amazonas, sendo o trabalho de
informação relacionado com a gestão do território pelo então IBAMA e outros órgãos
de governo, inclusive com a intervenção do Ministério Público Federal.
Os relatórios sobre esse tipo de trabalho de informação vêm orientando a intervenção e
gestão governamental sobre o território de várzea do Baixo Amazonas. Assim, o conhe-
cimento do território tornou-se inseparável do exercício de controle e gestão do Estado.
No que se refere aos efeitos possíveis do uso desses instrumentos de acordo e gestão
do território, pode-se considerar que a pretensão do Estado, ao impor uma regulação ao
conjunto dos atores sociais, é criar uma uniformização jurídica que regule os conflitos
pela apropriação dos recursos naturais renováveis como base de novas relações sociais.

52
Este projeto de uniformização e equalização do espaço ao pressupor uma convergência
de interesses entre as partes em jogo e a possibilidade de uma negociação coletiva, pode
levar ao congelamento de um estado das relações de força a nível local, que tem se ca-
racterizado atualmente pela vulnerabilidade na reprodução sustentável das condições de
uso e manejo dos recursos ambientais renováveis. (O’DWYER, 2005)
Deve-se ressaltar o fraco conceito de negociação, como no caso da possibilidade de
acordo entre interesses conflitantes que opõem o campesinato ribeirinho a outros agen-
tes econômicos no uso das terras e dos mananciais aquáticos na várzea do Baixo Ama-
zonas/PA. O conceito de negociação sugere certo grau de conflitos de interesses dentro
de um quadro de compreensão compartilhada (BARTH, 2000, p. 180), o que nos parece
faltar entre empreendimentos capitalistas e modos de vida, organização social e práticas
culturais distintas que caracterizam as chamadas populações tradicionais.
A essas formas de regulação que supostamente constituem o Estado-Nação moder-
no, as populações ribeirinhas do Ituqui, em Santarém/PA, a partir de suas associações
comunitárias tem reivindicado o reconhecimento territorial como “remanescentes de
quilombo”5, descendentes de Maria Valentina, contemporânea da chegada dos Confede-
rados do sul escravista, depois da Guerra Civil Americana, 1867, em Santarém/PA.
Durante o trabalho etnográfico realizado em 2010, ouvimos, através da memória
social – cuja importância é fundamental na pesquisa antropológica, pois “poder compar-
tilhar do passado do outro é poder participar da sua vida presente”6 – relatos nos quais a
origem comum dos membros das comunidades da região do Ituqui, autoidentificados
como descendentes de Maria Valentina, fundamenta pelo parentesco, mais do que o
fenótipo caracterizado pela cor da pele, a reivindicação de um território coletivo.
De acordo com os relatos, Maria Valentina manteve relação com muitos homens e
com eles teve diversos filhos, inclusive em termos de cor, sendo esse fato acionado
constantemente na construção da origem comum e do pertencimento étnico. Mas a rela-
tiva diversidade “étnica” (leia-se fenotípica) do contexto em questão foi também rela-
cionada a fatos históricos ocorridos na região, principalmente o movimento da cabana-
gem, nos anos trinta do século XIX. A grande diversificação encontrada entre os inte-
grantes do movimento, denominados cabanos, envolvia indivíduos considerados ‘bran-
cos’ – de origem europeia, ‘negros’, de origem africana, trazidos como escravos, indí-
genas, e outros considerados mestiços, ‘caboclos’, ‘cafuzos’, ‘mulatos’. Assim, a dis-

53
cussão sobre a construção da identidade quilombola na situação de trabalho de campo é
compreendida e referenciada a esta origem histórica das comunidades e a descendência
comum de Maria Valentina, uma mulher considerada ‘valente’ e ‘braba’ como os insur-
gentes cabanos.
Essa teoria nativa da miscigenação pode dialogar com o pensamento social brasilei-
ro, como no livro O Negro no Pará, de Vicente Salles (1971), segundo o qual a miscige-
nação se processou intensamente na Amazônia e na capitania do Pará, onde a massa da
população escrava não mais será exclusivamente negra, com exceção dos africanos na-
tos, apresentando o ‘crioulo’ múltiplas combinações étnicas.
Nos estudos de etnogênese, os antropólogos têm mostrado os modos pelos quais
narrativas históricas são usadas como instrumentos na criação contemporânea de identi-
dades políticas (ERIKSEN, 1993, p. 72). Segundo relatos coligidos em trabalho de
campo, Maria Valentina chegou a ser escrava na infância e o levantamento genealógico
indica seu nascimento entre os anos de 1860-1865, sendo ela contemporânea da chegada
dos Confederados depois da guerra civil americana em Santarém/PA.
De acordo com o livro “O sul mais distante” de Gerald Horne (2010), sobre os Con-
federados no Brasil, depois da guerra civil americana (1867) deu no New York Times
que vários fazendeiros sulistas se mudaram para o Brasil e aí se estabeleceram.
A persistência da escravidão africana na América Latina, principalmente no Brasil,
mesmo depois de extinta na América do Norte, continuou a oferecer uma base para os
Remanescentes dos Confederados do sul escravista e seus aliados.
No município de Santarém, no Pará, uma das principais propriedades escravistas era
o engenho Taperinha, pertencente a um português com a insígnia de Barão de Santarém,
ao qual se associou o norte-americano Rhome, radicado naquela região, juntamente com
outros que por ali imigraram, a partir de 1867, logo após o término da guerra civil nos
Estados Unidos da América (EUA), em 1865.
Duas décadas depois (1885) antes da Abolição da Escravatura em 1888, o cônsul
dos EUA no Pará tinha notado a desilusão dos seus antigos compatriotas com a misci-
genação no Brasil. O projeto dos Confederados no Brasil foi considerado uma desgraça
devido, justamente, às relações inter-raciais prevalentes no trópico. Assim, muitos Con-
federados americanos defensores da ideologia da segregação voltaram a viver nos EUA
(HORNE, 2010).

54
Hoje os autodenominados quilombolas em Santarém, afro descentes que se dizem
miscigenados lutam pela autonomia e sustentabilidade camponesa em contraposição ao
fazendeiro descendente dos confederados que eram escravocratas na região do baixo
Amazonas.
Os que se autoidentificam como descendentes de Maria Valentina atualmente cons-
troem o projeto político de titulação coletiva dos territórios que ocupam como meio de
luta pela autonomia dos modos de fazer, criar e viver, contra outros modelos de organi-
zação do espaço e exercício do poder.
Por fim, voltemos à questão: onde estão as margens do Estado? Até agora temos
definido as margens como periferias ou territórios nos quais o Estado ainda deve pene-
trar. No entanto, atualmente o Estado tem sido tanto experimentado quanto desfeito na
ilegalidade de suas próprias práticas administrativas ao se orientar pela perspectiva libe-
ral individualista, adotada no conserto de relações internacionais e academias militares,
sobre a existência de uma suposta natureza humana competitiva, à qual nem costumes e
nem leis podem resistir, em função do suposto inato autointeresse dos seres humanos
em contraposição à construção cultural de formas de vida, como asseguradas pela carta
constitucional brasileira.
Sobretudo diante do foco atual da questão capitaneada pelo Grupo de Segurança
Institucional da Presidência da Repúbica (GSI) ao se manifestar sobre os estudos técni-
cos apresentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
quanto a necessidade de definição do alcance da expressão constitucional “estejam ocu-
pando suas terras”, principalmente nos casos em que a área proposta de titulação é mai-
or do que a terra que a comunidade está efetivamente ocupando no contexto dos estudos
para aplicação do Artigo 68 (BRASIL, 1988).
Nesta perspectiva, a preocupação demonstrada com a definição da “área efetivamen-
te ocupada” está relacionada à possibilidade de agravamento de questões agrária e a
repercussão que possa ter no processo de definição das áreas indígenas e das pretensões
de outros grupos, desde populações tradicionais até trabalhadores rurais sem terra.
O pressuposto, nesse caso, é de que em condições similares as pessoas sempre agi-
rão de forma bastante parecidas, movidas pelos mesmos desejos de poder e ganho, as
mesmas esperanças de obtê-los. Enfim, a cultura não importa, nem tem interesse, quan-

55
do comparada a uma natureza humana subjacente, à qual costumes e leis não podem
resistir, em função do inato autointeresse dos seres humanos.
O antropólogo Marshall Sahlins (2006) em “Apologias a Tucídides” chama atenção
que a noção de natureza humana competitiva, autointeressada, como a mola mestra da
história, é ela própria uma autoconsciência cultural participar, uma ideologia particu-
larmente grega e especificamente ateniense à qual Tucídides deu voz ativa.
A guerra do Peloponeso, tal como descrita por Tucídides, que minimiza as diferen-
ças convencionais entre as culturas, ateniense e espartana, e favorece as semelhanças de
suas naturezas – a natureza humana – faz dele o ancestral dos realistas nas relações in-
ternacionais, leitura obrigatória nas academias militares e na Kenedy Scholl of Gover-
nement de Harvard, como diz Sahlins. De acordo com esse autor, a história da guerra
do Peloponeso, e a racionalidade prática que Tucídides achava simplesmente natural na
humanidade, representa um trabalho seminal sobre a teoria das relações internacionais
em todos os tempos, considerada a primeira obra a introduzir um pragmatismo abran-
gente no discurso político. Assim, suas lições têm sido ampliadas, ainda segundo Sa-
hlins, por escritores como Hobbes, Hamilton, Clausewitz e, em nossa própria era, Hans
Margenthau, George F. Kennan e Henry Kissinger. Deste modo, “aparentes diferenças
culturais (tornam-se) apenas expressões diversas e superficiais de uma natureza humana
básica, autodignificada”.
Sobre “aquele febril desejo de poder pelo poder que apenas a morte faz cessar”
(Hobbes), e a opinião de David Hume de que “em todas as nações e épocas,... a natureza
humana permanece a mesma em seus princípios e operações... A humanidade é tão i-
gualmente a mesma em todos os tempos e lugares que a história não nos conta nada de
novo ou estranho sobre esse particular”. Sahlins argumenta que a atribuição de ação
histórica – e social – a uma natureza humana autointeressada é, decididamente anticul-
tural, e na mesma medida anti-histórica, ao remover de si a própria antropologia.
O recurso à natureza humana deprecia a construção cultural de formas de vida hu-
mana. Ao contrário, Sahlins em sua análise da guerra do Peloponeso em comparação
com a guerra da Polinésia, ocorrida no século XIX, entre os reinos Bau e Rewa, nas
ilhas Fiji, demonstra que os interesses em jogo dependiam de seus esquemas culturais,
seus valores e aquilo que eles valoravam e suas motivações e ações derivavam da ordem
cultural e não da natural.

56
Mudar o foco de uma natureza humana genérica na forma do autointeresse racional,
como propõe Sahlins, e colocar a cultura, as práticas culturais no centro do debate sobre
o território, pode ser uma forma de evitar um fim trágico ao se imaginar que a variedade
etnográfica não existe ou decretar, simplesmente, que ela venha a desaparecer, com a
definição externa e não de dentro, do que são “terras efetivamente ocupadas”.
Na contramão do pleno exercício dos direitos culturais, como preconiza os Artigos
215 e 216 (BRASIL, 1988), segundo a qual as chamadas “necessidades territoriais”
compreendem os espaços necessários à preservação e reprodução de práticas culturais,
modos de vida e territorialidades específicas.
Assim, aplicar estritamente o princípio da igualdade legal e tratar os cidadãos de
igual maneira requer que todos sejam tratados com generalidade e abstração, de tal mo-
do que a suspeita e a dúvida sobre a isenção do Estado passam a ocupar um espaço entre
a lei e sua aplicação. Acaso podemos nos perguntar agora se as margens ameaçam im-
pregnar o Estado de Direito?
Esta resposta só pode ser dada se dirigirmos nossa atenção aos atos de submissão,
seja por coerção ou consenso, a fim de identificarmos quando as margens deixam de ser
espaços periféricos e reconfiguram novas práticas de governança como forma de contro-
le sobre populações. Este trabalho é um convite para repensar os limites entre centro e
periferia, público e privado, legal e ilegal.

NOTAS

1
ASAD, 1993, p 8
2
ASAD, 1993, p 8
3
DAS, 2008, p. 20
4
O’DWYER, 1998
5
Artigo 68 (BRASIL, 1988)
6
FABIAN, 2010

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59
CÉLIO BERMANN

A DESCONSTRUÇÃO DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL E A


INVISIBILIZAÇÃO DO SOCIAL NOS PROJETOS DE USINAS
HIDRELÉTRICAS

O debate sobre licenciamento ambiental, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC),


e as questões que hoje envolvem o reconhecimento de direitos, encontram nos dias de
hoje barreiras que são impostas pelo atual Governo, que pode ser qualificado como au-
tocrático, isto é, um governo onde o espaço da democracia está sendo cada vez mais
restritivo, na medida em que se verifica a destituição dos espaços de debate, dos espaços
de reflexão, e dos espaços em que a população envolvida nos projetos e obras possa
participar de forma efetiva dos processos de decisão.
Sem sombra de dúvida, infelizmente, vivendo a condução do país por um Governo
que, embora se auto-proclame como Popular e Democrático, apresenta essa natureza
autocrática do papel do Estado no que se refere à forma de privilegiar os interesses das
grandes corporações em detrimento da população brasileira.
É preciso chamar atenção, particularmente dos estudantes, sejam eles da área técnica
da engenharia ambiental, ou das áreas biológicas e da ecologia, ou mesmo das áreas das
ciências sociais, para os problemas na sua formação que podem advir da maneira como
lhe são ensinados e de como são elaborados os trabalhos acadêmicos de avaliação de
impactos ambientais.
A atividade de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) foi definida pelo Artigo 90
da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 (BRASIL, 1981) como um dos instrumentos
da Política Nacional de Meio Ambiente estabelecida por essa lei. A partir da Resolução
nº 001, de 23 de janeiro de 1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA)
(CONAMA, 1986) e das várias resoluções que se sucederam relativas ao disciplinamen-
to dos Estudos de Impactos Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA),
disseminou-se a ideia de que o país desenvolvera uma legislação ambiental exemplar
para o mundo, num exercício de pseudo-modernidade, ao associar a questão ambiental à
elaboração de projetos de infraestrutura.

60
É preciso também chamar a atenção, particularmente nos projetos de geração de
energia elétrica a partir do aproveitamento do assim denominado potencial hidráulico
existente nos rios, através da construção de usinas hidrelétricas e de reservatórios, que
não é não é adequado caracterizar como “impactos” os processos sociais e territoriais da
implantação de usinas hidrelétricas, sejam elas grandes barragens ou pequenas centrais.
O problema é que estamos atualmente constrangidos à concepção universal do Envi-
ronmental Impact Assessment, atividade que tornou-se uma referência internacional, e
que a legislação ambiental brasileira reproduz.
Como assinala Sevá (2008) em seu artigo “Estranhas catedrais - Notas sobre o capi-
tal hidrelétrico, a natureza e a sociedade”, a palavra “impacto” tornou-se meramente
administrativa, prescrita para ser utilizada nos processos de licenciamento ambiental,
mas contra-producente em termos científicos e impeditiva para o avanço do conheci-
mento, tornando-se tão somente uma noção desviacionista.
Para nos referirmos aos chamados “impactos” da construção de uma obra hidrelétri-
ca para as populações afetadas ou atingidas, sejam elas populações tradicionais, ou po-
pulações rurais ribeirinhas, ou mesmo populações de áreas urbanas, o correto seria nos
referirmos à Perdas, Prejuízos, Danos, Desastres, Expulsões, Expropriações, Desapa-
recimentos, Privações, Ruínas, Desgraças, Destruições, de vidas e bens, muitas vezes
permanentes e irreversíveis.
Os “impactos” passam a ser qualificados, sob o ponto de vista territorial como “lo-
cais, regionais, nacionais ou globais”; sob o ponto de vista temporal como de “curta,
média ou longa duração”, sob o ponto de vista do seu grau de reversibilidade como “re-
versíveis ou irreversíveis”, sob o ponto de vista da interpretação da sua importância co-
mo “positivos ou negativos” ou “benéficos ou adversos”. Define-se, muitas vezes de
forma arbitrária a assim denominada Área Diretamente Afetada (ADA), qualificando
impactos diretos ou indiretos”.
A questão dos Direitos destas populações aparece, dessa forma, envolta no véu dos
“impactos”, via de regra acompanhados de termos como “mitigação”, redução”, “nego-
ciação”.
A perspectiva deste Seminário é justamente a de se aprofundar a reflexão de que
forma hoje está se desconstruindo o esforço de evidenciar as questões ambientais e so-

61
ciais nesse processo de “neo-desenvolvimentismo”, conforme a qualificação de Jean-
Pierre Leroy, na intervenção que me antecedeu.
Uma importante contribuição para o debate pode ser encontrada no Relatório Final
elaborado pela Comissão Especial “Atingidos por Barragens”, instituída pelo Conselho
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) para acompanhar as denúncias de
violações de direitos humanos em processos envolvendo o planejamento, licenciamen-
to,implantação e operação de barragens, a partir das Resoluções nº 15, 21 e 26 (CDD-
PH, 2006), do Secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e
Presidente do CDDPH.
Na página 15 do Relatório Final, aprovado pelo CDDPH em 22 de novembro de
2011, a Comissão Especial identificou 16 direitos que “parecem ser sistematicamente
violados”, a saber:
1. Direito à informação e à participação;
2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão;
3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida;
4. Direito à moradia adequada;
5. Direito à educação;
6. Direito a um ambiente saudável e à saúde;
7. Direito à melhoria contínua das condições de vida;
8. Direito à plena reparação das perdas;
9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes
e coletivamente acordados;
10. Direito de ir e vir;
11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e
preservação de bens culturais, materiais e imateriais;
12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais;
13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial;
14. Direito de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial;
15. Direito à reparação por perdas passadas;
16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.
Se analisarmos o passado recente, além desses direitos estarem sendo sistematica-
mente violados, particularmente no que se refere às últimas obras hidrelétricas na Regi-

62
ão Amazônica, com as usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, Belo Monte, a
primeira das usinas previstas no rio Xingu, e com a perspectiva de três novas grandes
usinas na bacia do rio Tapajós, o que os fatos têm demonstrado é, antes de tudo, um
processo de criminalização dos movimentos sociais.
Estes não estão sendo apenas expostos à opinião pública como movimentos contrá-
rios ao progresso. Eles estão sendo sistematicamente criminalizados.
Neste contexto, há que se fazer referência, particularmente, aos indígenas. O índio,
que vinha sendo apresentado como “bonzinho e amante da natureza”, tem sido agora
referenciado na mídia como criminoso, como um indivíduo que sequestra funcionários
da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ou funcionários das empresas construtoras.
Em realidade, este recurso vem sendo utilizado pelas populações indígenas para indicar
um “basta” ao processo de empulhação a que elas estão sendo submetidas, num aparente
processo de negociação.
Manifestações dentro dos canteiros de obras também estão sendo apresentadas como
criminosas, como o que ocorreu nas greves nos canteiros, na usina de Santo Antonio, e
mais recentemente, nos canteiros da usina de Belo Monte, quando direitos trabalhistas
foram violentados.
Dessa feita, os operários das obras são apresentados como “arruaceiros que colocam
fogo nos escritórios e alojamentos”, conforme as notícias nos principais jornais do país,
na época em que ocorreram essas manifestações.
Com isso, desenha-se no país um espectro extremamente negativo de quaisquer mo-
vimentos de resistência aos projetos de infraestrutura. As obras são tratadas pelo Gover-
no e pela imprensa como fundamentais para assegurar o desenvolvimento do país a par-
tir do aumento da oferta de energia. O fantasma do “apagão” é lembrado para justificar
os empreendimentos, todos eles capazes de atender as necessidades do povo brasileiro.
Em particular, as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) assumem o
caráter do “interesse nacional”, que não pode ser questionado por ações de uma minoria.
Ainda, este processo de criminalização dos movimentos sociais e redução dos espa-
ços de resistência vem sendo acompanhado de uma sucessão de tentativas de modifica-
ção do licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos.
Em janeiro de 2007, o diretor geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANE-
EL) na época, Gerson Khelman, anunciou durante um debate público reservado exclusi-

63
vamente a empresários do assim chamado Setor Elétrico, um Projeto de Lei para a cria-
ção de Reservas para a Exploração de Potenciais Hidroelétricos. Estas seriam áreas
demarcadas pelo governo, reservadas para a construção de centrais hidroelétricas, sem
considerar as restrições de ordem ambiental.
É interessante notar a inversão de valores que esta proposta de legislação procurava
estabelecer. A exemplo dos espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder
Público Federal, Estadual e Municipal, tais como Áreas de Proteção Ambiental (APA),
de Relevante Interesse Ecológico e Reservas Extrativistas, as Reservas para a explora-
ção de Potenciais Hidroelétricos, segundo seu proponente, também teriam o objetivo de
proteção ambiental contra o processo de degradação em regiões como a Amazônia.
Esta intenção acabou não tendo continuidade, mas foi seguida de outro Projeto de
Lei, anunciado em março de 2007, também em um debate público que reunia exclusi-
vamente representantes de governo e empresas, com o objetivo de Identificação de pro-
jetos de centrais hidroelétricas estratégicas que seriam avaliadas por um Conselho de
Segurança Nacional, sem passar pelo órgão ambiental federal, o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
Tal proposta tinha o agravante de resgatar uma instituição de triste lembrança, cria-
da pela ditadura militar. A avaliação da obra seria restrita aos seus aspectos “estratégi-
cos”, definidos em nome do interesse nacional, relevando ao descaso os aspectos ambi-
entais e sociais de uma usina hidrelétrica.
A esta proposta, que também não teve continuidade, se seguiu em dezembro de
2008, um Projeto de Lei proposto pelo Ministro Roberto Mangabeira Unger, da Secreta-
ria de Assuntos Estratégicos, que procurava instituir um procedimento extraordinário de
licenciamento ambiental para obras de infraestrutura logística definidas como estratégi-
cas pelo PAC na Amazônia Legal com um prazo de até 4 meses para decisão pelos ór-
gãos competentes.
Além de retomar a atribuição definida pelo Governo, através do PAC, da existência
de “obras estratégicas”, tendo como referência territorial o espaço político-institucional
da Amazônia Legal, a proposta ainda procurava impor um prazo limite para todo o pro-
cesso de licenciamento ambiental, cuja demora e burocracia excessiva eram considera-
das como agravantes que dificultavam os cronogramas de obras inicialmente estabeleci-
dos.

64
Cabe assinalar que os prazos para o processo de licenciamento ambiental de obras,
conforme cada uma de suas etapas (Licença Prévia (LP); Licença de Instalação (LI);
Licença de Operação (LO)), estão claramente estabelecidos no Artigo 14 da Resolução
CONAMA nº 237, de 19 de dezembro de 1997 (CONAMA, 1997), bem como os prazos
que o empreendedor deve respeitar quando o órgão ambiental solicitar esclarecimentos
ou complementações ao EIA/RIMA apresentado no Artigo 15 (CONAMA, 1997).
O que se observa é que muitos dos empreendimentos sujeitos ao licenciamento am-
biental devem a demora da sua obtenção ao não atendimento dos prazos pelo próprio
empreendedor. Ainda, um número significativo de obras encontra-se paralisadas, não
por dificuldades de obtenção do licenciamento ambiental, mas por problemas de insufi-
ciência de recursos financeiros para as obras. Entretanto, o prazo excessivo para o início
de construção da obra fica restrito a “dificuldades ambientais”, o que contribui para o
processo de demonização do licenciamento ambiental.
Ainda, a restrição de apenas 4 meses para a aprovação do licenciamento acaba por
transformar o processo em um exercício de “faz de conta” que o órgão ambiental, des-
provido de número de funcionários suficiente, passaria a apresentar ao analisar o EI-
A/RIMA, via de regra caracterizados pela má-qualidade.
Estas três tentativas de modificação do licenciamento ambiental revelam o espírito
com que a questão ambiental tem sido tratada.
Entretanto, ao contrário destas tentativas que não tiveram uma continuidade, encon-
tra-se atualmente em tramitação o Projeto de Lei no Senado Federal (PLS) nº 179, de 11
de maio de 2009 (BRASIL, 2009) que institui a Criação de Resevas Energéticas Nacio-
nais.
Este PLS encontra-se em tramitação (abril de 2013) na Comissão de Assuntos Eco-
nômicos (CAE) e tem o objetivo de disciplinar o licenciamento ambiental de aprovei-
tamentos de potenciais hidráulicos considerados estratégicos.
No corpo da Justificativa deste PLS, lê-se:

A legislação ambiental e as normas aprovadas pelo CONAMA têm ti-


do o indesejável efeito de fazer com que cada potencial hidráulico seja
examinado de per si, sem visão de conjunto, com prevalência do inte-
resse local sobre o nacional. O Projeto de Lei tem o objetivo de corri-
gir essa situação, atribuindo ao Poder Executivo a responsabilidade de
selecionar um leque de obras que produza suficiente energia para o
crescimento econômico e ampliação da oferta de empregos, e que

65
produza impacto socioambiental mínimo, o que é bem diferente de
impacto nulo.
Se este Projeto de Lei for aprovado, o Presidente da República disporá
dos instrumentos para promover o desenvolvimento sustentável, evi-
tando que projetos que tragam benefícios para a maioria da população
possam ser bloqueados pela ação de minorias. E o Poder Judiciário te-
rá a certeza de que cabe ao Governo Federal a responsabilidade de li-
cenciar empreendimentos de relevante interesse público da União, ou
de interesse nacional, cujos benefícios ultrapassem as fronteiras esta-
duais, como é o caso de usinas hidroelétricas conectadas ao Sistema
Interligado Nacional.1

Além de insistir em sua justificativa com termos como o pretenso “relevante interes-
se público da União” ou “interesse nacional”, contrapondo à “ação de minorias”, este
PLS busca colocar obstáculos à ação do Ministério Público (MP).
O tolhimento ao MP, que observa de forma sucessiva o bloqueio de suas diversas
Ações Civis Públicas (ACP) que são impetradas solicitando a interrupção das obras, ou
a satisfação de condicionantes acordadas e não cumpridas, encontra sua fundamentação
na Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992 (BRASIL, 1992), que dispõe sobre a concessão
de medidas cautelares contra atos do Poder Público e dá outras providências.
O Artigo 4º desta referida Lei indica:

Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do


respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execu-
ção da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus a-
gentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de
direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou
de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde,
à segurança e à economia públicas.2

Ou seja, o Juiz que preside o Tribunal pode alegar que a interrupção de uma obra
pode gerar “grave lesão à economia pública”, via de regra mencionando os investimen-
tos já incorridos ou a perda de postos de trabalho em virtude da interrupção.
É por força dessa lei, e da sua natureza em privilegiar a ótica do empreendedor, que
liminares obtidas em primeira instância são derrubadas, não raro em menos de 48 horas,
sem considerar o mérito da ACP interposta pelo MP.
Caso o PLS nº 179 venha a ser transformado em Lei, estará inexoravelmente aberto
o caminho para a implantação de todos os empreendimentos hidrelétricos previstos para
a região amazônica, a despeito da fragilidade do seu ecossistema, e estará contribuindo

66
para o desaparecimento irreversível das populações tradicionais na região, incluindo os
povos indígenas.
Foi nesta direção que a Medida Provisória (MP) nº 558 foi editada no dia 6 de janei-
ro de 2012 (BRASIL, 2012) pela presidente Dilma Rousseff. Com essa medida provisó-
ria o governo alterou os limites de sete unidades de conservação da Amazônia e retirou
delas a área que será alagada pelos reservatórios das usinas. Boa parte da redução dessas
florestas protegidas por lei tem o propósito específico de desobstruir o caminho para o
licenciamento ambiental das duas primeiras hidrelétricas previstas para a Bacia do Ta-
pajós: São Luiz do Tapajós (6.133 MW) e Jatobá (2.338 MW).
Aqui também o MPF em Brasília impetrou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a MP nº 558 (BRASIL, 2012). De
acordo com o MPF, até o processamento e julgamento da ação pelo STF, as garantias
constitucionais para as áreas protegidas amazônicas estão seriamente ameaçadas. Con-
forme o procurador Felício Pontes Jr., do MPF do Pará, “mexer nos limites de unidades
de conservação em uma região sensível como a Amazônia já é complicado, mas fazê-lo
sem estudos ou consulta pública, por meio de canetada, é autoritário e bota em risco as
garantias constitucionais da proteção ambiental” (POVOS, 2012).
Em particular, é importante assinalar que os direitos das populações tradicionais
estabelecidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da
qual o Brasil é signatário, vêm sendo sistematicamente desconsiderados pelo governo
brasileiro. A edição da Portaria nº 303 de 16 de julho de 2012 da Advocacia Geral da
União (AGU) (BRASIL, 2012), que indica que as Terras Indígenas podem ser ocupadas
por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos
hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos e comunidades
indígenas, constitui-se num sério instrumento que extingue os direitos das populações
indígenas na manutenção das suas condições de reprodução física e cultural.
É também nessa direção que o STF, em decisão monocrática do seu presidente, mi-
nistro Carlos Ayres Britto, revogou o acórdão da 5ª Turma do Tribunal Regional Fede-
ral da 1ª Região, o qual tinha determinado a paralisação das obras de construção da usi-
na de Belo Monte (CIMI, 2013). A decisão atendia ao pedido do Ministério Público
Federal no Pará e anulava o Decreto legislativo nº 788 de 13 de julho de 2005 (BRA-
SIL, 2005), e todas as licenças concedidas pelo IBAMA para o empreendimento. Com a

67
revogação, o Ministro Ayres Britto desautorizava os três desembargadores da 5ª Turma
do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, por violação da autoridade da decisão
do STF, decisão esta que até hoje não discutiu o mérito em questão. E num ato autocrá-
tico, decidiu pelo deferimento da liminar que acabou por suspender os efeitos do acór-
dão proferido pelo TRF.
A alegação de que a interrupção da obra poderia gerar “grave lesão à economia pú-
blica”, fazendo referência ao Artigo 4º da Lei 8.437, de 30 de junho de 1992 (BRASIL,
1992), foi o fundamento maior utilizado pelo ministro Ayres Britto para sua decisão.
De nada adiantaram as tentativas de sensibilização do ministro Ayres Britto. A deci-
são estava tomada embora o mérito da causa, que exige a discussão pelo colegiado do
STF, ainda permaneça em aberto, sem uma definição de data. Todos os esforços e ações
de resistência para parar a obra da usina de Belo Monte têm se mostrado insuficientes.
Por fim, cabe assinalar que, no âmbito do CONAMA, assiste-se atualmente a um
intenso movimento de propostas, com novas resoluções do licenciamento ambiental
atreladas a grandes empreendimentos. Dentre elas, surgem propostas de simplificação
dos estudos para obtenção do licenciamento. Em vez da exigência para todas as grandes
obras de um EIA/RIMA, procura-se reeditar a Resolução CONAMA nº 279, de 27 de
junho de 2001 (CONAMA, 2001) que estabelecia procedimentos para o licenciamento
ambiental simplificado de empreendimentos elétricos.
Recorda-se que na época de sua criação, essa Resolução tinha como fundamentos a
crise energética de 2001 e a alegada necessidade de atender com celeridade o aumento
da oferta de energia elétrica no País, através do estabelecimento de procedimento sim-
plificado para o licenciamento ambiental, com prazo máximo de sessenta dias de trami-
tação, dos empreendimentos com impacto ambiental de pequeno porte.
Agora, o Relatório Ambiental Simplificado (RAS) parece ter a intenção de abranger
todas as obras consideradas estratégicas ou de relevante interesse nacional. Os estudos
exigiriam uma quantidade menor de informações, com custos mais baixos e maior rapi-
dez para conclusão.
A avaliação geral do CONAMA, que define novas regulamentações do setor, é que
o atual sistema de licenciamento ficou ultrapassado e não acompanha a atual realidade
do país. Ou, conforme as palavras de Volney Zanardi, presidente do IBAMA, "Não po-
demos continuar a usar tão mal a ferramenta de licenciamento”.

68
É importante assinalar que, para a elaboração de novas resoluções do licenciamento
ambiental, o CONAMA está promovendo reuniões técnicas, limitadas a especialistas do
setor. Ao limitar as discussões aos experts do setor, o CONAMA restringe a questão
energética ao debate de poucos, dos “sábios”, deixando os “ignorantes” relegados a um
papel passivo. A Energia deve ser considerada como uma questão de cidadania, como
uma questão de todos, e cabe às Universidades públicas o papel de capacitar a popula-
ção para se constituir num ator ativo nos debates, de forma a combater e superar o exer-
cício do poder dos “sábios”.
Verifica-se, como conclusão, que o processo de desconstrução do licenciamento
ambiental enquanto um instrumento de gestão ambiental está se configurando como
estratégia política para viabilizar os grandes empreendimentos de infraestrutura no país,
principalmente aqueles relacionados ao setor elétrico, como construção de barragens e
linhas de transmissão, indicados nos planos e programas de Governo.
O planejamento energético no país, apresentado ano a ano através dos Planos Dece-
nais de Energia, contém uma sucessão de obras que não passam pelo crivo de um debate
mais amplo. A consulta pública é um “jogo de cena” protagonizado pela Empresa de
Pesquisa Energética (EPE) que disponibiliza uma “versão preliminar” do Plano, e abre
um período, via de regra extremamente curto, para manifestações através do envio de
mensagens para um sítio na web. As sugestões, proposições e manifestações assim en-
caminhadas não são disponibilizadas para o público. Finalmente, a versão final do Plano
Decenal é disponibilizada com a assinatura do Ministro de Minas e Energia (MME),
com resultado de uma “democrática” consulta pública.
No âmbito da expansão da oferta de eletricidade, cada uma destas obras vem sempre
acompanhada pelo recorrente argumento do “apagão” para justificá-las, e pela também
recorrente alegação de que nosso país precisa de energia para crescer e que essas usinas
vão trazer a energia que o país precisa, ou que nossa população consome pouca energia
e que usinas como Belo Monte são necessárias para assegurar a qualidade de vida para
todos os brasileiros.
Além de tratar-se de um discurso ilusório e falacioso, construído a partir de uma
apregoada existência de um “interesse geral” que o governo brasileiro teria como mis-
são garantir, a argumentação aqui discutida no contexto mais geral do planejamento
energético no país é a mesma e reproduz o mesmo quadro de restrição que o processo de

69
licenciamento ambiental apresenta, e que este trabalho procurou aprofundar ao levantar
os aspectos jurídicos que tolhem a ação do MP.
Enquanto a Lei nº 8.437 (BRASIL, 1992) prevalecer, pouco ou nada se deve esperar
dos esforços dos procuradores da república e desembargadores na defesa das popula-
ções e do meio-ambiente no nosso país.

NOTAS

1
BRASIL, 2009, p.4
2
BRASIL, 1992

BIBLIOGRAFIA

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concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público e dá outras providências.
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BRASIL. Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012. Dispõe sobre as salvaguardas institu-


cionais às terras indígenas conforme entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Fede-

70
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23 de janeiro de 1986. Estabelece as definições, as responsabilidades, os critérios bási-
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como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. Diário Oficial da
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 jan. 1986.

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19 de dezembro de 1997. Regulamenta os aspectos de licenciamento ambiental estabe-
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Belém, 2009.

71
POVOS do Tapajós apelam ao STF e ao Congresso pela reprovação de MP que diminui
unidades de conservação do Pará. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 16 maio
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em: <http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/sl125.pdf> Acesso em: 15 abr. 2013.

72
ANDRÉA ZHOURI

MINERAÇÃO E DESREGULAÇÃO AMBIENTAL LIMITES DO


CONSENSUALISMO E DA MEDIAÇÃO EM SITUÇÕES DE
CONFLITO AMBIENTAL

INTRODUÇÃO

A institucionalização do debate ambiental consolidou-se nos anos 80 do século XX


tendo como base as ideias em torno do desenvolvimento sustentável. Uma das diretrizes
principais foi a gestão participativa com vistas à conciliação dos interesses econômicos,
ambientais e sociais de forma a “adequar” o modelo clássico de desenvolvimento. A
prevenção de impactos ambientais por meios técnicos e a adoção de medidas de mitiga-
ção e de compensação para os danos ambientais tornaram-se a tônica. De fato, a opera-
cionalização das estratégias centradas no desenvolvimento sustentável implicou a im-
plementação de sistemas regulatórios e institucionais em níveis internacional, nacional e
local. Os mecanismos de licenciamento, o reforço da legislação específica e a ênfase na
educação ambiental foram aspectos fomentados por instituições financeiras internacio-
nais. As empresas investiram em novas tecnologias com vistas à eficiência ambiental,
enquanto as iniciativas voltadas para a responsabilidade socioambiental do empresaria-
do incluíam a abertura do diálogo e a construção de parcerias com os movimentos am-
bientalistas e sociais (ZHOURI e LASCHEFSKI, 2010). Não obstante, a adequação
ambiental do desenvolvimento centrado no crescimento econômico - o que no caso bra-
sileiro remete, sobretudo, à exportação de commodities - não se fez acompanhar da re-
dução dos mecanismos de expropriação inerentes aos conflitos ambientais, cada vez
mais em evidência na contemporaneidade, processo registrado no Mapa dos Conflitos
Ambientais de Minas Gerais.
O Mapa, uma parceria entre o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GES-
TA-UFMG), o Núcleo de Investigação em Justiça Ambiental (NINJA-UFSJ) e o Núcleo
de Investigação em Injustiças Socioambientais (NIISA-Unimontes), foi lançado em
2011 em formato eletrônico contendo 540 registros de conflitos ambientais em território

73
mineiro1. Embora significativo, esse número não representa a totalidade dos conflitos
ambientais, tampouco o volume de problemas e/ou impactos ambientais em curso no
estado. A partir de uma proposta qualitativa, centrada nas lutas dos diferentes sujeitos
sociais para legitimar as suas formas de ver, ser e fazer socioambientalmente constituí-
das, o mapa possibilita visualizar as dinâmicas sócio-espaciais conflitivas para além de
uma mera exposição de problemas e impactos ambientais na nossa sociedade.
Este texto retoma o percurso da experiência de realização do projeto Mapa dos Con-
flitos Ambientais de Minas Gerais ao problematizar, inicialmente, as categorias de con-
flito, meio ambiente e, por conseguinte, a noção de conflito ambiental. Em seguida, a
partir das dinâmicas sócio-espaciais observadas no território mineiro por meio do Mapa,
elege o caso da exploração mineraria no município de Conceição do Mato Dentro, Re-
gião Metropolitana de Belo Horizonte, para análise de uma situação que expõe a dinâ-
mica neodesenvolvimentista2 e seus efeitos no território, incluindo o processo de multi-
plicação de conflitos. O caso permite resgatar as disputas em torno da noção de conflito
e seus efeitos reais, os quais envolvem as tentativas de concertação que tenderam à sua
redução, escamoteamento ou negação.
Considera-se, por fim, que os conflitos expressam processos em que a luta ocorre
não somente pela conformação ótima de uma "aritmética das trocas e das reparações"3,
mas, sobretudo, pela legitimidade de outras formas de visão e di-visão do ambiente e do
espaço social. Este entendimento interpela as noções correntes de justiça, democracia e
participação, confrontando-as com as categorias de desenvolvimento e modernidade ora
impostas a grupos subalternizados e silenciados à pretensão de uma uniformização de
classe definida por intermédio de uma mensuração da capacidade de consumo no mer-
cado de bens e de serviços.

A EXPERIÊNCIA DO MAPA

O Mapa dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais reuniu uma equipe interdiscipli-
nar e interinstitucional compreendida por dois sociólogos, uma antropóloga, um geógra-
fo e dezenas de estudantes inseridos em três universidades públicas localizadas em terri-
tório mineiro. A metodologia empregada na pesquisa ensejou processos de investigação
em duas frentes complementares de trabalho. A primeira concentrou-se nos casos insti-

74
tucionalizados de conflito ambiental desde o ano 2000 e compreendeu as seguintes es-
tratégias de coleta de dados: análise das atas das reuniões das Câmaras Técnicas do
Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM), para obtenção dos primei-
ros indícios de conflito na esfera dos processos administrativos, sobretudo nos proces-
sos de licenciamento ambiental; em seguida, foram realizadas entrevistas com técnicos
da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM), principalmente gerentes e funcioná-
rios mais antigos que poderiam, pelo recurso à memória, apontar casos mais polêmicos
ou emblemáticos em cada área ou divisão do órgão (ZHOURI e ZUCARELLI, 2010);
por último, realizou-se um amplo inventário dos casos de conflitos por meio de consul-
tas aos arquivos do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), assim como através
de entrevistas com funcionários da promotoria em cada sede de comarca do estado. As
informações pesquisadas nas comarcas foram seguidas de visitas a campo, nas localida-
des mencionadas nos processos, em que se procurou conversar com os atores diretamen-
te envolvidos e observar as dinâmicas locais por eles apontadas.
A segunda frente de trabalho objetivou a identificação dos conflitos não formaliza-
dos e para tal foram realizadas oficinas, consultas e entrevistas junto aos representantes
de movimentos sociais, movimentos ambientalistas, sindicatos, ONGs entre outros ato-
res da chamada sociedade civil. Dado a extensão geográfica, territorial e administrativa
de Minas Gerais, as oficinas foram realizadas por mesorregiões, de acordo com a divi-
são administrativa do estado e o trabalho distribuído entre os núcleos de pesquisa4.
A ênfase na metodologia participativa para elaboração do mapa e sua posterior atua-
lização (2012-2014) considerou, sobretudo, a perspectiva dos grupos mais vulneráveis e
subalternizados da sociedade (LASCHEFSKI e BARBOSA, 2011). Buscou-se o diálogo
com os sujeitos envolvidos em ações coletivas e estratégias de denúncia e mobilização
para a identificação e o reconhecimento das resistências às condições desiguais de uso e
de distribuição do meio ambiente.
Ao tempo em que se objetivava a obtenção de subsídios para a construção de um
mapa a partir do ponto de vista dos próprios atores mobilizados por dinâmicas e proces-
sos envolvendo danos e/ou riscos socioambientais e a defesa do território, da saúde e
dos meios essenciais para a sua reprodução socioambiental, procurava-se também refle-
tir junto a esses mesmos sujeitos as possibilidades estratégicas de incremento da partici-
pação nas decisões das políticas ambientais do estado. Para tal, a equipe de pesquisado-

75
res se viu diante do desafio inicial provocado pela necessidade de uma reflexão crítica
sobre as categorias “conflito” e “meio ambiente”, relacionando-as ao discurso do senso
comum e das políticas ambientais em vigor.

PRIMEIROS DESAFIOS: UMA COMPREENSÃO SOBRE CONFLITO

A abordagem dos conflitos exigiu, de início, uma problematização epistemológica


acerca do tratamento corrente conferido às categorias de “impactos” e “problemas” am-
bientais no seio da visão hegemônica do campo ambiental (ZHOURI, LASCHEFSKI e
PEREIRA, 2005; CARNEIRO, 2005). Porém, este desafio implicava ainda um enten-
dimento mínimo comum sobre o significado de conflito, tópico que compreende um
vasto universo de reflexões nas ciências sociais. Com efeito, Bobbio (1998) assinala que
a construção de uma polaridade dicotômica entre correntes epistemológicas clássicas no
que concerne à perspectiva do conflito é bastante comum nas ciências sociais. Em um
esforço de síntese e de classificação, o autor identifica um continuum entre auto-
res/escolas que compreendem o equilíbrio ou a harmonia como o estado normal de uma
dada sociedade e aqueles que, de outro lado, entendem o conflito como componente
constitutivo das interações sociais. Para os primeiros, o conflito seria uma perturbação à
ordem, uma anomalia a ser corrigida e/ou eliminada. Desse lado do continuum são ge-
ralmente identificados autores clássicos como Comte, Spencer, Durkheim. Do outro
lado, estariam expoentes de linhagens díspares, entre marxistas e liberais, tais como o
próprio Karl Marx, John Stuart Mill e Simmel, autores, enfim, que considerariam o con-
flito como forma de interação constitutiva das sociedades, nunca em estado de equilí-
brio harmônico.
Em referência a essa leitura dicotômica, no entanto, adverte Bobbio (1998) sobre a
necessidade do reconhecimento de posições imprecisas ou de difícil localização ao lon-
go do continuum. Neste entremeio estariam autores pertencentes a diferentes gerações e
percursos intelectuais, a exemplo de Hegel, Kant, Max Weber e os sociólogos da escola
funcionalista. Para os últimos, inseridos, sobretudo, no meio acadêmico americano, os
conflitos provocariam, ao menos, um mal-estar ao sistema social, apresentando, portan-
to, uma característica disfuncional (BOBBIO, 1998, p. 227-228). De toda forma, é opor-

76
tuno assinalar a advertência feita por Bobbio sobre a possibilidade de eliminação ou
resolução dos conflitos:

A supressão dos conflitos é, contudo, relativamente rara. Assim como


relativamente rara é a plena resolução dos conflitos, isto é, a elimina-
ção das causas, das tensões, dos contrastes que originaram os conflitos
(quase por definição um conflito social não pode ser "resolvido"). As
sociedades organizadas procuram diluir o conflito, canalizá-lo dentro
de formas previsíveis, submetê-lo a regras precisas e explícitas, con-
tê-lo e, às vezes, orientar para o sentido preestabelecido o potencial
de mudança.5

Como se verá adiante, esta ressalva é especialmente pertinente para a compreensão


dos limites colocados às práticas políticas e institucionais que pretendem, quer do ponto
de vista do licenciamento ambiental, quer da perspectiva da defesa dos direitos, “medi-
ar” e “resolver” os conflitos entre sujeitos sociais que detém posições absolutamente
desiguais no espaço social.
Fato é que, seja nas abordagens que consideram o conflito como estrutural à socie-
dade de classes ou naquelas que o compreendem como antagonismo próprio as ações de
indivíduos e/ou grupos de interesse na sociedade ocidental, as análises atribuem aos
conflitos um papel fundamental para os processos históricos de mudança social. Não é
diferente a perspectiva antropológica que, voltada para os estudos das sociedades con-
temporâneas, incorporou às suas análises a categoria tempo e, com ela, a história numa
abordagem diacrônica (OLIVEIRA, 1985). A Escola de Manchester, seguindo a tradi-
ção inglesa, notabilizou-se pelas investigações sobre mudança social em contextos de
conflitos desencadeados pelos processos de descolonização na África, sobretudo entre
as décadas de 40 e 60 do século XX. Ela contribuiu, assim, para a formulação de méto-
dos e técnicas de pesquisa que valorizavam “a observação e a reconstrução do compor-
tamento concreto de indivíduos em situações estruturadas”6. Contra as análises estrutu-
ralistas, a atenção voltava-se para a observação de gente no tempo e no lugar. O estudo
de um caso ao longo de um determinado tempo oferecia uma compreensão de processos
sociais em contextos de rápidas transformações. Respeitadas as diferenças históricas -
globais e regionais - acrescidas da contribuição de novos aportes produzidos pelo co-
nhecimento antropológico desde então, ainda permanecem como válidas as contribui-

77
ções de clássicos como Mitchell, Gluckman, Turner para os registros de gente, no tempo
e no lugar.
Evidentemente, o Mapa dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais, construído a
várias mãos e mentes, não partiu exatamente da análise situacional de casos desdobra-
dos, tal como sugere a tradição antropológica inglesa, mas a inspiração para o registro
das ações de sujeitos coletivizados e seus desdobramentos no tempo e no espaço balizou
a compreensão do grupo a respeito do que observar e anotar como registro de conflito
ambiental. Esta anotação valeu-se principalmente da reflexão acerca das diferenças e-
pistemológicas entre conflito e problema ambiental à luz da teoria da prática desenvol-
vida por Pierre Bourdieu.

GENTE NO TEMPO E NO LUGAR: IMPACTO OU CONFLITO AMBIENTAL?

Para uma equipe constituída por sociólogos, geógrafos e antropólogos, cada qual
orientado por tradições clássicas e contemporâneas próprias às respectivas disciplinas,
mas também inseridos em um vasto campo de reflexões denominado Ecologia Política7,
o ponto comum se apresentava, não obstante, por meio do foco na perspectiva do sujeito
social e na compreensão de que a problemática do conflito ambiental passava necessari-
amente pela distinção desta noção em relação às abordagens epistemológicas correntes
centradas nas categorias de “problema” e/ou “impacto” ambiental. Conjugava-se, por-
tanto, a compreensão de que as categorias “impacto” e “problema” eram normalmente
remissivas a uma realidade pretensamente objetiva e externa ao sujeito social que se
pretendia, então, resgatar. Questionava-se a abordagem epistemológica que parecia jo-
gar o sujeito para fora da história (senão a própria história) e com ele, a política em no-
me da técnica, a pretexto de um consenso presumivelmente objetivista e universal – o
fim das diferenças e das desigualdades e a união de todos pelo meio ambiente.
Com efeito, a linguagem sobre problemas e impactos ambientais está institucionali-
zada hoje em políticas e normas ambientais. Componente da doxa do campo ambiental
(CARNEIRO, 2005) ela remete a um conjunto de processos identificados a partir de um
instrumental técnico que é, de fato, pactuado politicamente na sociedade, mas que se
apresenta, por um efeito de deslocamento na produção de sentidos (BOURDIEU, 1998),
como retrato fiel e inquestionável da realidade. A ideia de conflito ambiental vem jus-

78
tamente problematizar a objetividade aparente das noções de problema e de impacto, o
que implica igualmente no questionamento acerca da noção de meio ambiente como
realidade objetiva e externa à sociedade, portanto, passível de apreensão e mensuração
técnica e científica (ZHOURI, LASCHEFSKI e PEREIRA, 2005; ZHOURI e LAS-
CHEFSKI, 2010). Assim, a noção de conflito ambiental que se apresenta tem como
ponto de partida o processo social e a existência de relações entre sujeitos sociais, indis-
sociados do meio em que habitam. Esboçada desta forma, esta noção possibilitou a aná-
lise das situações em que grupos e classes sociais afetados por diferentes projetos eco-
nômicos contestam o estado de privação e/ou risco a que estão submetidos, enfrentando
seu problema a partir da mobilização com vistas à denúncia, à defesa dos direitos e a
melhoria da sua condição socioambiental de existência. Portanto, esta abordagem é tri-
butária da observação dos processos ambientais como sendo aqueles que envolvem re-
lações marcadas pelo crivo da desigualdade entre os diferentes sujeitos sociais. Não raro
os conflitos eclodem quando o sentido e a utilização de um território por um determina-
do grupo, por exemplo, ocorrem em detrimento dos significados e usos que outros gru-
pos sociais possam fazer de seu território, para, com isso, assegurar a reprodução do seu
modo de vida. O conflito ambiental territorial, central numa sociedade voltada para a
economia de exportação de commodities, como é o caso do Brasil, não é, contudo, a
única modalidade de conflito, articulando-se, pois, na esfera do real, aos conflitos ditos
espaciais e distributivos8. A relação de desproporcionalidade no que se refere ao acesso
dos sujeitos aos recursos da natureza, ou a desigualdade registrada na distribuição dos
riscos ambientais, marca o solo dos conflitos, o que possibilita relacioná-los ao tema da
justiça ambiental e das diferentes modalidades de ambientalismo (GUHA e MARTI-
NEZ-ALIER, 1997). A identificação desses processos no tempo e no espaço permite a
configuração de padrões que, revelados por um mapeamento, possibilita ver a direção
da destinação da natureza e do meio ambiente, assim como da degradação e do ônus
produzido pelos assim chamados projetos de desenvolvimento. Raça, classe social, gê-
nero e degradação ambiental, são, portanto, elementos indissociados de um mesmo pro-
cesso (BULLARD, 1983).
De fato, os poucos trabalhos voltados à cartografia de “problemas ambientais” ten-
dem a assumir um enfoque exclusivamente técnico e quantitativo. Esse modelo deriva
da própria opção metodológica (que é por sua vez, ligada a um determinando enqua-

79
dramento teórico-conceitual), que assume o ponto de vista dos atores que estão em con-
dições de impor sua visão, critérios e categorizações de mundo, de ambiente e de natu-
reza (BOURDIEU, 1998). Entre esses atores estão os técnicos e os dirigentes dos órgãos
públicos do meio ambiente, além dos próprios agentes do capital. Dessa maneira, pode-
se esperar uma forte afinidade entre os levantamentos de “problemas ambientais”, assim
desenvolvidos à pretensão de objetividade, e a promoção de políticas ambientais de cor-
te muitas vezes antidemocrático, que pretendem extrair do “saber técnico”, inacessível a
distintos grupos sociais, as diretrizes e procedimentos de que serão “objeto” os demais
atores envolvidos, notadamente aqueles oriundos dos extratos populares.
Esta visão dominante esta amplamente ancorada no paradigma da modernização
ecológica. Enquanto este paradigma aposta na inesgotabilidade das soluções de caráter
técnico e mercantil para a resolução dos “problemas ambientais” (ZHOURI e LAS-
CHEFSKI, 2010), as mobilizações locais que emergem a partir das situações de conflito
trazem à pauta uma perspectiva distinta fundamentada sobre racionalidades diferencia-
das de apropriação da natureza. Em oposição ao jogo da mitigação e da compensação
estruturante do campo ambiental na atualidade (CARNEIRO, 2005), incluindo também
o instrumento denominado “ajustamento de conduta” (pergunta-se afinal: ajustar quem?
a que? quem estaria, de fato, sendo objeto de ajustamento? a que regras? a que compor-
tamentos ou enquadramentos desejáveis? por quem? para quem?), diversos grupos soci-
ais reivindicam a possibilidade de autodeterminação sobre os territórios que ocupam e a
revisão das diretrizes políticas que coordenam o re-ordenamento espacial das atividades
econômicas no estado. Isso traz à pauta a politização do debate a partir do princípio da
diversidade cultural e da relação de classes que permeia o meio ambiente, possibilitando
explicitar as diferentes visões acerca do que seja “impacto ambiental”, “sustentabilida-
de”, “problema ambiental”, “população atingida”, dentre outras categorizações.
A experiência do Mapa dos Conflitos permite pensar que a apropriação de tecnolo-
gias com finalidade social pode ser um mecanismo efetivo de comunicação e de visibi-
lização dessas diferentes concepções, modos de ser e de fazer territorializados. De outra
parte, ele é produto de uma experiência que relaciona os conhecimentos produzidos no
âmbito acadêmico às demandas práticas desses grupos com vistas à diminuição das as-
simetrias político-participativas características do campo ambiental. Nesse sentido, os
objetivos almejados levaram em consideração as desiguais oportunidades de vocaliza-

80
ção e de participação, de fato, dos diferentes sujeitos envolvidos nos processos de con-
flito ambiental. Ora, as “vozes” das populações política e economicamente subalterni-
zadas estão em geral ausentes dos documentos oficiais (Estudos de Impacto Ambiental e
Relatórios de Impacto Ambiental -EIA-RIMA-, por exemplo), constituindo o mapa em
uma ferramenta típica da técnica hegemônica a ser eventualmente apropriada pelos gru-
pos em suas lutas pela igualdade de vocalização no campo legitimado pelo poder.

UMA ATIVIDADE INDUSTRIAL, MUITOS CONFLITOS: MINERAÇÃO E


DESREGULAÇÃO AMBIENTAL

Ao analisarmos o Mapa dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais, observamos


com destaque os conflitos promovidos pela atividade mineraria. Evidentemente, a mine-
ração não pode ser considerada isoladamente, como um setor da economia apenas, mas
compreendida em relação a todo o complexo técnico-econômico do qual, de fato, ela faz
parte: a construção de hidrelétricas, de infraestrutura de transportes, de ampliação das
monoculturas de eucalipto, enfim, todas são atividades econômicas relacionadas à pro-
dução do espaço urbano-industrial (ZHOURI, LASCHEFSKI e OLIVEIRA, 2010).
Acrescente-se que, em Minas Gerais, a mineração ocupa também um lugar simbóli-
co de destaque no imaginário das elites, como lembra a deputada Luzia Ferreira:

A mineração é um componente muito importante da história de Minas


Gerais, até porque temos Minas no nome. Iniciamos como civilização
por meio do processo de mineração, da extração do ouro, que marca
toda a nossa história e, consequentemente, nossa cultura também co-
mo mineiros. Portanto, somos todos mineiros.9

A partir de uma visão que explicita a doxa do desenvolvimento sustentável e a crença


consensualista prevalecente no campo ambiental, complementa a deputada:

Evidentemente esse é um dos desafios: exercer essa atividade, que é


importante economicamente para o Estado, mas sempre com o olhar
de proteger, em primeiro lugar, os direitos sociais da população, os di-
reitos ambientais das comunidades e das cidades onde ela existe e
nossas nascentes e nossa água.10

81
Em meio às disputas simbólicas pelas representações da mineiridade e de seus valo-
res, destaca em outra direção o representante do Ministério Público Estadual em Con-
ceição do Mato Dentro:

Minas tem sim a vocação da mineração. A mineração se confunde


com a história de Minas. Mas a história de Minas se confunde muito
mais com a liberdade e com os direitos dos cidadãos... O cidadão de
Conceição do Mato Dentro vem tendo os seus direitos vilipendiados
há muito tempo.11

O embate entre o que parece ser o “imperativo econômico” e “a liberdade”, remetida


à esfera dos direitos do cidadão, se desdobra em inúmeros casos, desvelando uma dupla
falácia: de um lado, a da propositura consensualista em torno à noção de desenvolvi-
mento sustentável e, de outro lado, a concepção de uma cidadania individualizada, o que
traz implicações para a definição de “atingido” e o consequente reconhecimento dos
direitos coletivizados, como se discutirá adiante.
Ora, para compreender o lugar da mineração em Minas Gerais atualmente, uma bre-
ve recapitulação da história recente possibilita lembrar o esforço de “modernização re-
cuperadora” da economia mineira empreendido pelas elites econômicas e políticas a
partir de meados do século XX. Centrada no estímulo ao desenvolvimento de indústrias
de base e de bens intermediários do ciclo de acumulação fordista, o projeto da moderni-
zação recuperadora mineira deslocou o centro da industrialização para a Região Metro-
politana de Belo Horizonte (RMBH) e para a região hoje conhecida como Vale do Aço.
Como resultado, a taxa média anual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) mi-
neiro surpreende ao patamar de 16,4% na década de 1970 (DINIZ, 1981, p. 225 apud
OLIVEIRA, 1995, p. 70). Um crescimento sustentado principalmente pelo complexo
industrial mínero-siderúrgico, que demandou um grau elevado de apropriação de vastos
territórios para a alocação urbana das fábricas e de mão de obra para a monocultura do
eucalipto que serviria de combustível aos altos-fornos, para a construção de estradas, de
hidrelétricas etc. (ZHOURI, LASCHEFSKI e OLIVEIRA, 2010). De outra parte, o co-
lapso do esforço desenvolvimentista da modernização recuperadora mineira, ocorrido na
passagem para a década de 1980, determinou a intensificação da produção e da exporta-
ção de commodities, com vistas ao pagamento do serviço da dívida pública. Isso repre-
sentou um aprofundamento da mercantilização de territórios, a exemplo da expansão

82
das monoculturas de exportação nos cerrados do Triângulo e Alto Paranaíba, das mono-
culturas de eucalipto e da construção de hidrelétricas nos vales dos rios Doce e Jequiti-
nhonha, das atividades mineradoras no chamado Quadrilátero Ferrífero.
Hoje, estão em curso prospecções de minério de ferro com vistas a uma nova onda
de exploração mineraria baseada em moderna tecnologia, que permite a exploração em
larga escala de itabiritos com baixo teor de ferro. A Serra do Espinhaço, entre Concei-
ção do Mato Dentro e Serro, e a descoberta de jazidas em Rio Pardo de Minas, Grão
Mongol e Salinas despontam como uma nova fronteira da mineração no estado. Rumo
ao litoral nordeste, projeta-se um mineroduto para o escoamento da produção em Ilhéus,
enquanto no eixo sudeste, outros minerodutos são projetados a partir dos municípios de
Conceição do Mato Dentro e Congonhas para o litoral norte do Rio de Janeiro e para o
Espírito Santo, respectivamente. Atualmente, são ao todo nove minerodutos planejados
para Minas Gerais. Todas essas atividades exigem, enfim, uma infraestrutura energética
adequada, o que explica ainda a intensificação de investimentos em hidrelétricas no
estado.
Com efeito, tais processos implicam a emergência de uma miríade de conflitos am-
bientais, os quais envolvem empresas mineradoras, siderúrgicas, produtoras de celulose,
produtoras e distribuidores de energia elétrica, empreiteiras, grandes e pequenos agricul-
tores, latifundiários, Organizações Não Governamentais (ONG), camponeses, socieda-
des indígenas e quilombolas, pescadores, movimentos sociais rurais e urbanos etc. É
nesse cenário, marcado por políticas econômicas de ajuste fiscal e pela formação de
superávits comerciais, que os instrumentos normativos de regulação ambiental vêm
sendo considerados entraves ao desenvolvimento e estão sendo flexibilizados. Pode-se
observar, de fato, um processo de desregulação ambiental em que normas e regras são
revistas e instituições ambientais deixam de cumprir seu papel precípuo (ZHOURI,
2012). O caso da mineração em Conceição do Mato Dentro é ilustrativo deste processo
mais geral.
O projeto Minas-Rio é constituído por um complexo que envolve: a exploração de
um conjunto de minas, para produção de 56,5 Mtpa (milhões de toneladas por ano) de
minério de ferro (ROM - Run of Mine), configurando lavra a céu aberto que se estende
por cerca de 12 km cortando as Serras do Sapo e da Ferrugem, no Espinhaço, uma uni-
dade de beneficiamento e infraestrutura nos municípios de Conceição do Mato Dentro,

83
Alvorada de Minas e Dom Joaquim, em Minas Gerais; além disso, o projeto compreen-
de um mineroduto com 525 km de extensão perpassando 32 municípios mineiros e flu-
minenses e o complexo industrial-portuário de Açu, localizado no município de São
João da Barra, litoral norte fluminense, onde a empresa Anglo American se torna parcei-
ra da LLX, com 49% de participação. O licenciamento foi todo fragmentado, sendo a
mina licenciada pelo órgão ambiental de Minas Gerais, a Superintendência Regional de
Regularização Ambiental (SUPRAM/Jequitinhonha), o mineroduto licenciado pelo Ins-
tituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o
Porto pelo órgão ambiental do Rio de Janeiro, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA).
Esta fragmentação, por si só, já é reveladora da lógica de apropriação territorial que
promove uma di-visão (BOURDIEU, 1998) instrumental ao controle do meio ambiente
e à fragmentação dos sujeitos e suas eventuais resistências. Afinal, quem são os atingi-
dos pelo mineroduto? Pergunta crucial instaurada no cerne do conflito.
No que se refere ao fragmento de Minas Gerais, a aprovação da Licença de Instala-
ção (LI) ocorreu em 2009 e desde o início o processo foi denunciado por supostas irre-
gularidades junto ao MPMG. Entre as denúncias, vale destacar outro fracionamento
casuístico, desta vez para possibilitar a concessão da própria LI. Com efeito, a Licença
Prévia (LP), fase inicial do licenciamento que supostamente avalia a viabilidade ambi-
ental da obra, foi concedida em 2008 com uma centena de condicionantes que deveriam
ser cumpridas para a concessão da LI do empreendimento. Como muitas condicionantes
não haviam sido cumpridas, a estratégia de fracionamento da LI pela SU-
PRAM/Jequitinhonha em LI-fase 1 e LI-fase 2 foi uma manobra que vinculou as condi-
cionantes cumpridas à LI-fase 1, deixando as condicionantes não cumpridas para o que
fora denominado LI-fase 2. Esta estratégia de fracionamento, inexistente no marco regu-
latório ambiental, possibilitou o avanço do licenciamento com a concessão da LI pelo
Conselho de Política Ambiental (COPAM), o que permitiu que a empresa iniciasse a
instalação do empreendimento mesmo sem ter cumprido todas as condicionantes da
LP12. O casuísmo foi contestado por atingidos e ambientalistas, que ao denunciarem o
fato ao MPMG geraram por parte deste uma ação com pedido de liminar para suspensão
da decisão do COPAM. A liminar foi concedida, porém, no dia seguinte, a Secretária
Estadual de Meio Ambiente ingressou com pedido de sua suspensão obtendo ganho da
causa. Este caso associa-se aos já conhecidos casos das hidrelétricas de Belo Monte,

84
Jirau e Santo Antonio, na Amazônia, bem como o de Irapé, em Minas Gerais (ZUCA-
RELLI, 2011) para exemplificar como a flexibilização das normas ambientais permite a
concessão de licenças a despeito do descumprimento das obrigações ambientais inter-
postas às empresas pelos próprios técnicos das agências reguladoras. Ele expressa ainda
as limitações dos instrumentos jurídicos, acionados e interpretados pelos operadores do
direito, os quais são sujeitos sociais igualmente investidos de um habitus de classe que
conforma as suas visões e, portanto, as razões de decidir (SANTOS, 2010), incluindo a
concepção do que seja meio ambiente, desenvolvimento e justiça.
A flexibilização das normas do licenciamento e a ineficácia na fiscalização das o-
bras abrem ainda brechas para a insurgência, em geral, de ações arbitrárias e violentas
na localidade. Os moradores rurais em Conceição do Mato Dentro há muito relatam
episódios de violação de direitos humanos, como o direito de informação, direito a água
potável, direito de ir e vir, entre outros, e uma postura abusiva da empresa, especialmen-
te em relação àqueles que residem e utilizam áreas a serem desapropriadas. Em visita a
campo, a equipe de pesquisadores pode testemunhar o modus operandi da empresa no
local. Os pesquisadores foram impedidos de passar por uma estrada que dava acesso à
casa de uma moradora da comunidade de Mumbuca que nos acompanhava juntamente
com outros moradores do local (campo em 4 de maio de 2013). Nossos veículos foram
monitorados durante a permanência em campo e quando tentávamos visitar a casa de
Dona Rita, fomos interceptados por uma caminhonete, com o sugestivo número 007. Os
seguranças da empresa, fixados em uma guarita na estrada, em tom ameaçador pediram
o nome completo da moradora, livrando-nos, não obstante, do mesmo ritual, ao tempo
em que nos fotografavam e filmavam. Durante a Audiência Pública realizada pela Co-
missão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em
06 de maio de 2013, Dona Rita denunciou esta violência e aquela provocada pela estra-
tégia de divisão da sua família em função da negociação de terras com apenas uma das
irmãs, excluindo os demais entes familiares.
Ora, além da fragmentação do projeto e das licenças, fragmenta-se também a família
e a unidade social de muitas comunidades atingidas pela imposição de um conceito pa-
trimonialista, portanto, individualizado, de atingido. Em outra manobra casuística, fo-
ram criadas duas modalidades inusitadas de atingido: os atingidos emergenciais e os
não-emergenciais. Assim foram classificados aqueles que poderiam permanecer no local

85
por mais tempo e aqueles que deveriam ser removidos. Esta classificação, feita a partir
dos interesses da empresa no que concerne a construção das suas instalações físicas, se
interpôs às normas de organização social das comunidades locais (GALIZONI, 2000;
ZHOURI e OLIVEIRA, 2012a) e, acima de tudo, a ética camponesa (WOORTMANN,
1985; 1995; OLIVEIRA, 2008) tão bem explicitada no constrangimento indignado de
Senhor José Matozinhos, morador do povoado de Água Quente. Ele fora incluído, à
revelia de sua vontade e a despeito da exclusão de seus familiares (que são seus vizi-
nhos imediatos), em um cadastro de atingidos produzido pela empresa. A este respeito
ele se referiu: “Querer Deus para mim e não querer Deus para os outros? Aqui é uma
família só. Somos todos atingidos”13. De fato, Senhor Matô, como é localmente conhe-
cido, reside na Água Quente, povoado surgido da união entre José dos Reis e Maria
Rosa de Jesus, cujos filhos Juca e Saninha compreendem os dois troncos familiares que
habitam a Água Quente. Saninha, ainda viva e lúcida aos 103 anos de idade, é mãe de
Matô, Geralda, Eleonor e Naná, sendo os dois primeiros vizinhos próximos no povoado,
compartilhando terreno original de Saninha, juntamente com filhos e descendentes de
Eleonor e Naná, a primeira residente hoje no povoado vizinho de Teodoro e a última
falecida a dois anos.
A comunidade de Água Quente, que traz a água como marca identitária no próprio
nome, sofre com a poluição e a redução do córrego Passa Sete, que atravessa a comuni-
dade, pois ela esta localizada a, aproximadamente, 2 km da barragem de rejeitos que
esta sendo erguida pelo empreendimento. Esta atividade tem contaminado a água que é
utilizada nas plantações, na criação de animais, no uso doméstico, no lazer e na pesca.
Segundo uma moradora da comunidade, quando ocorrem incidentes no local, com a
alteração excessiva da água, que fica barrenta e cheia de rejeitos que saem do empreen-
dimento, os técnicos se fazem presentes no povoado, mas essas visitas não resolvem em
definitivo os problemas. Caixas d´água foram instaladas pela empresa na comunidade,
mas elas carecem de manutenção e não permitem abastecer apropriadamente o povoado
de Água Quente, cujos moradores às vezes ficam sem abastecimento de água por cinco
ou mais dias (Registro de campo e Notas Taquigráficas da Audiência Pública na
ALMG, 06 de maio de 2013). Sobretudo, nota-se muita incerteza sobre o futuro, uma
vez que não se sabe até quando a empresa abastecerá a comunidade através dessas cai-
xas d´água. As incertezas vão além deste abastecimento, pois com a proximidade da

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barragem de rejeitos, localizada imediatamente a montante, há dúvidas sobre o risco e a
permanência dos moradores no local.
Em abril de 2012 foi realizada na sede da Associação Comunitária do distrito de São
Sebastião do Bonsucesso, conhecido também como Comunidade do Sapo, uma audiên-
cia pública coordenada pelo MPMG, Ministério Público Federal (MPF) e pela Defenso-
ria Pública do Estado de Minas Gerais (DPMG) com o objetivo de ouvir as denúncias
da população rural atingida pelo empreendimento da Anglo American. Os moradores
questionaram os reassentamentos e os contratos de venda de terras feitos junto à empre-
sa, denunciando também graves impactos devido à:

Contaminação das nascentes de água, envenenamento da criação,


fragmentação e perda de coesão de comunidades e famílias, invasão
de terras e retirada sem autorização de equipamentos como porteiras e
cercas, usados para delimitar as propriedades.14

Na ocasião, foi entregue às autoridades um documento que denuncia a ocorrência de


violações de direitos humanos assinado por movimentos sociais, associações locais e
por grupos ligados a universidades.
No mês seguinte, três recomendações legais, elaboradas em conjunto pelo MPMG,
MPF e DPMG foram dirigidas à mineradora Anglo American, alertando sobre situações,
processos e ações cometidas pela empresa em que se configuraria violação aos direitos
humanos. O que se seguiu a essas recomendações?

NEGOCIAÇÃO OU MEDIAÇÃO DO CONFLITO: CONSENSO PARA QUEM E


PARA QUE?

Em maio de 2012, o MPMG, através da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização


Social (CIMOS), inaugurou a Rede de Acompanhamento Socioambiental (REASA),
espaço proposto para negociação e mediação dos conflitos provocados pelas atividades
da mineradora Anglo American nos municípios mineiros. Foram realizadas reuniões
itinerantes e mensais por um ano, até o início de 2013. Constituída por atingidos, mora-
dores dos municípios afetados, ambientalistas, entes da administração municipal e re-
presentantes da Anglo American, a REASA propôs ser um canal de comunicação entre
os diferentes sujeitos e o próprio MPMG. As atas e materiais das reuniões foram dispo-

87
nibilizados em um blog específico coordenado pela CIMOS15. Para os atingidos, disper-
sos e fragmentados pelo empreendimento fracionado, a REASA foi uma oportunidade
de encontro, a despeito da participação da empresa e dos impasses nas negociações. Ao
longo das reuniões, é possível notar a recorrência do tema relacionado à falta de reco-
nhecimento dos atingidos, tópico associado aos impasses fundiários do projeto (PE-
REIRA, BECKER e WILDHAGEN, 2013). Outro tópico remete a auto-assumida inope-
rância do órgão ambiental no que se refere ao controle e à fiscalização das ações da em-
presa no local.
Por certo, uma análise mais consistente sobre as contribuições e os limites da REA-
SA merece um tratamento etnográfico específico a ser ainda implementado, sobretudo
considerando-se que foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o
MPMG e a empresa responsável pela mineração após a audiência ocorrida na Comissão
de Direitos Humanos da ALMG, em maio de 2013. Porém, após um ano de reuniões e
diante dos impasses no âmbito do licenciamento ambiental, mormente no que se refere
ao problema persistente e central que diz respeito ao reconhecimento dos atingidos, é
possível refletir sobre as limitações colocadas pelas estratégias de negocia-
ção/mediação/resolução de conflitos, análise amparada igualmente no conhecimento
acumulado sobre a governança ambiental nas ultimas décadas.
Com efeito, como já observado (ZHOURI e OLIVEIRA, 2012b), a política ambien-
tal organizada pelo Estado brasileiro ao longo das décadas de 1980 e 199016, centrada
em dispositivos de avaliação de impacto e licenciamento de projetos potencialmente
degradadores17, apresenta uma orientação “participativa” não só na conjugação de uma
avaliação técnica e política sobre a viabilidade dos novos projetos, mas também na aber-
tura de espaço para a oitiva da sociedade civil, em especial, os grupos potencialmente
atingidos pelas prováveis intervenções. Desse modo, organizava-se normativamente o
licenciamento como um espaço de governança e progressiva negociação, através do
exame de três licenças sucessivas que deveriam ajuizar sobre a conformidade das obras
às exigências técnicas e legais.
Os contornos e instrumentos da nova política ambiental incorporavam à sua pauta a
noção de ‘desenvolvimento sustentável’, que se projetava como uma proposta alternati-
va, mais “convergente e otimista” (VIOLA e LEIS, 1995, p.77) capaz de agregar os
diferentes “setores” da sociedade na busca de soluções orientadas para a harmonização

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entre o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental. Com surpreendente ca-
pacidade catalisadora, o crescente prestígio da noção de “desenvolvimento sustentável”
foi acompanhado por um processo de despolitização dos debates e escamoteamento dos
conflitos, abrindo espaço para o paradigma da modernização ecológica e sua lógica ope-
rativa da “adequação” no âmbito do licenciamento ambiental (ZHOURI et al., 2005,
ZHOURI e OLIVEIRA, 2012a).
No entanto, as expectativas participativas com vistas à acomodação de interesses e à
construção de decisões consensuadas se viram progressivamente frustradas devido à
concomitante multiplicação das tensões entre sujeitos atingidos, ambientalistas, técnicos
da burocracia estatal, empreendedores e movimentos sociais, entre os quais os sentidos
‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’ permaneciam contestados. Sincronicamente, à
medida que se consolidava a nova política ambiental brasileira, delineavam-se novas
formas de inserção do país na economia-mundo e suas correspondentes exigências de
ajuste econômico e liberalização. Nesse processo, as conquistas da redemocratização no
campo ambiental foram capturadas e subsumidas por novos constrangimentos conjuntu-
rais que redundaram na hegemonia dos projetos de modernização ecológica e do ambi-
entalismo de resultados (ZHOURI et al., 2005; SACHS, 2001).
Esse horizonte histórico permite resgatar a noção de “conflitos ambientais” que tem
o mérito de destacar dois aspectos importantes: primeiramente, que a interação entre
técnicos, empreendedores e atingidos não se apresenta como processo de negociação,
livre comunicação e construção de consensos, ao contrário, ela é reveladora de um em-
bate entre sujeitos sociais que articulam projetos divergentes de sociedade. Adicional-
mente, a associação com o adjetivo “ambiental” exige interrogar o próprio sentido de
“meio ambiente” institucionalizado nas práticas de licenciamento, nas ações empresari-
ais e dos operadores do direito, problematizando, por esta via, as acepções acerca da
existência de representações indiferenciadas do espaço e seus recursos. Afinal, confor-
me demonstra Fuks (2001), é a própria formulação jurídica da “questão ambiental” que
se esforça para construir um aparente consenso fundado na afirmação do significado de
meio ambiente enquanto bem universal descolado das práticas, projetos e sentidos par-
celares.
Nessa perspectiva, o que o licenciamento ambiental evidencia é um quadro de con-
flitos onde opera uma distribuição diferencial de poder, de forma que os sujeitos sociais

89
em disputa têm suas visões, valores e discursos conformados pelo lugar social a partir
do qual são proferidos. Enquanto campo no sentido bourdiano (BOURDIEU, 1990), o
licenciamento ambiental estrutura as relações entre esses agentes, definindo-lhes o lugar
e as possibilidades de ação. É a distribuição desigual dos capitais econômico, político e
simbólico que localiza os agentes no campo, oferecendo-lhes poderes distintos para e-
nunciar e fazer valer seus respectivos projetos políticos. É neste campo estruturalmente
desigual que as tentativas de negociação e de mediação de conflito acontecem.
O paradigma da adequação ambiental no seio da modernização ecológica extrapola
o âmbito do licenciamento e configura todos os campos da governança ambiental, inclu-
indo o campo jurídico, esfera de atuação do MPMG. O instrumento TAC soma-se a
outros, tais como Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE), comitês de bacia, partici-
pação em conselhos deliberativos. O princípio geral da harmonização entre bens consti-
tucionalmente protegidos rege a interpretação da lei, o que adicionado à ênfase nas a-
ções preventivas e estratégias extrajudiciais, acabam por corroborar com as premissas
consensualistas do desenvolvimento sustentável que têm na negociação um princípio
institucional. Ora, como já analisado (ZHOURI, 2005; 2012), a perspectiva da negocia-
ção instituída pelo paradigma da adequação ambiental (e disseminada internacionalmen-
te pelo Banco Mundial) parte do princípio liberal da individualização dos sujeitos e a
igualdade de tratamento e de fato, o que é presumivelmente garantido pela universalida-
de da lei (soluções win-win, todos ganham).
Entretanto, esses princípios aparentemente democráticos e justos quando aplicados
em uma sociedade estruturada pela desigualdade social, econômica, cultural e ambien-
tal, subsume à lógica hegemônica as desigualdades sociais e as diferenças culturais re-
ais. Desta maneira, no interior do paradigma da adequação, o dissenso é eliminado por
meio das tentativas de restringir a fala dos atingidos ao lugar em que se espera que eles
falem: o lugar da aceitação, do ajuste, da negociação, do consenso. A possibilidade i-
gualitária de que o grande empreendimento retroceda ou pare em nome dos projetos
tradicionalmente existentes no local, ou dos direitos diferenciados da cidadania, esta
fora do horizonte das decisões. A obra é inexorável e se torna ainda mais fortalecida à
medida em que consegue evocar categorias cada vez mais abstratas (progresso, civiliza-
ção, desenvolvimento etc.) e se apresentar em nome de uma coletividade igualmente
abrangente (a nação, o interesse nacional etc.), escamoteando, por esta via, a lógica pri-

90
vada da apropriação e da acumulação capitalista. Neste contexto, por oposição, a cate-
goria de atingido é confinada ao espaço dos “interesses localizados” de “grupos minori-
tários”. O atingido é então fragmentado e individualizado por uma visão cartorial e pa-
trimonialista, viabilizada pelo instrumento padrão denominado cadastro de atingidos. À
pretensão de compensação e de mitigação, o cadastro acaba por produzir uma violência
insidiosa ao reconhecimento das diferenças societárias realmente existentes em um país
pluricultural como o Brasil. De fato, o cadastro conjuga nome, chão e tijolos. Ou seja,
ele é uma listagem constituída preferencialmente pela categoria de proprietários (sujeito
individualizado), seu terreno e suas “benfeitorias”. Ao se tornar “número”, o indivíduo
pode ser contabilizado e possivelmente “indenizado”, conformando-se à padronização e
à racionalização promovidas como instrumento a serviço da regulação e do controle,
lógica da governamentalidade amplamente discutida por Foucault (1986).
Um diagnóstico sobre o modo de vida das comunidades rurais, com suas redes de
parentesco, sua economia interdependente, sua relação com o meio, enfim, comunidades
que são, não raro, tradicional e etnicamente definidas, não encontra ressonância entre os
instrumentos institucionalizados da regulação ambiental. Questiona-se, pois, a possibili-
dade da definição e da aferição, de fato, dos “impactos sociais e ambientais” levada a
cabo pelos instrumentos vigentes, tais como o EIA-RIMA. De outro lado, o TAC, no
âmbito da adequação ambiental, acaba por produzir o ajustamento dos atingidos à lógica
mercantil das empresas, ajustando essas últimas, por conseguinte, às normas sempre
casuisticamente reformadas do licenciamento ambiental. Então, na medida em que não
questiona a condução do licenciamento ambiental e os casuísmos forjados no processo,
o TAC termina por reconhecer a sua validade/legalidade ao intentar tão somente regu-
lar/ajustar os seus efeitos adversos. Esta circunstância provoca-nos o questionamento,
portanto, sobre a eficácia das premissas da prevenção, da correção e da reparação quan-
do no cerne dos conflitos reside a flexibilização recorrente das normas. À crise da regu-
lação ambiental soma-se, pois, uma crise das instituições de defesa dos direitos, assina-
lando um delicado momento para sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

91
O processo de desregulação ambiental em curso tem exigido esforços no que con-
cerne o controle social. Afirma Rancière (1996, p. 26) que a “política existe quando a
ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-
parcela”. Ações e denúncias de irregularidade multiplicam-se junto ao MPMG, proces-
sos que tornam visível uma certa ineficácia das agências de meio ambiente. Neste con-
texto, o MPMG tem sido desafiado por crescente demanda advinda da judicialização
das ações e dos processos ambientais, o que torna o momento igualmente crítico para o
MPMG - órgão responsável pela garantia dos direitos dos cidadãos e do meio ambiente.
Subsumido à lógica da modernização ecológica, o MPMG vem implementando iniciati-
vas e estratégias de resolução ou de mediação de conflitos que são, de fato, gestadas por
instituições econômicas e financeiras com finalidades diversas daquelas que remetem à
defesa dos direitos dos cidadãos. Com efeito, estratégias win-win difundidas pelo Banco
Mundial assentam-se em premissas econômicas que tratam da negociação entre partes
interessadas, igualando, pois, no patamar do mercado, sujeitos sociais que possuem, na
verdade, capitais sociais, políticos, culturais e técnicos muito desiguais. Isso nos permite
considerar a possibilidade da fragilização de direitos que podem ser transigidos pelas
práticas econômicas hegemônicas, a exemplo do reconhecimento do aviltamento dos
direitos dos cidadãos em Conceição do Mato Dentro pelo próprio MPMG na Audiência
Pública da ALMG, em 06 de maio de 2013.
Neste sentido, é oportuno recapitular o argumento de que os conflitos ambientais
decorrem da luta de sujeitos sociais para concretizar as suas formas de ver e interagir
com o meio. Trata-se de uma questão política, desenvolvida no curso do processo soci-
al. Ocorre que a política vem sendo reduzida ao sentido da negociação e a democracia
confundida com a construção de consensos. No entanto, como adverte Rancière (1996,
p.21) “para que a comunidade política seja mais do que um contrato entre quem troca
bens ou serviços, é preciso que a igualdade que nela reina seja radicalmente diferente
daquela segundo a qual as mercadorias se trocam e os danos se reparam.”
Um outro sentido de igualdade e de democracia emerge então como tema da luta
social focada na contestação da submissão da lógica trocadora ao bem comum. Esta
perspectiva implica compreender a justiça como algo que vai mais além do equilíbrio
dos interesses entre os indivíduos ou a reparação dos danos que uns causam aos outros,

92
mas como horizonte que se estende e abarca diferenças geométricas, mais do que opera-
ções de ordem aritmética.

(Agradeço à FAPEMIG e ao CNPq que tornaram a pesquisa possível e, acima de tudo, às dife-
rentes gerações de alunos que desde 2007, no GESTA, vem se empenhando nas diferentes tare-
fas relacionadas a este projeto, de fato, coletivo. Especial agradecimento a Marcos Zucarelli,
Raquel Oliveira, Luana Motta, Max Vasconcelos, Matheus Braga, Rodrigo Madureira, Laís
Jabace e Vanessa Samora.)

NOTAS

1
O endereço do portal é conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br.
2
Para uma discussão sobre desenvolvimento e neodesenvolvimentismo, consultar BRANDÃO (2010),
BOITO Jr (2012), FIANI (2012), GONÇALVES (2011) e VALÊNCIO (2013, mimeo).
3
RANCIÈRE, 1996, p. 27
4
O Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental (NINJA) da Universidade Federal de São João del Rei
ficou responsável pelas oficinas nas mesorregiões Sul, Sudoeste, Campo das Vertentes e Zona da Mata;
pesquisadores da Universidade Estadual de Montes Claros (NIISA-Unimontes) se encarregaram da pes-
quisa nas mesorregiões Norte e Noroeste enquanto o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GES-
TA-UFMG) realizou os levantamentos na demais mesorregiões, a saber: Região Metropolitana de Belo
Horizonte, Vale do Jequitinhonha, Triângulo Mineiro e Alto do Paranaíba, Vale do Rio Doce e Mucuri e
mesorregiões Oeste e Central de Minas.
5
BOBBIO, 1998, p. 228. Ênfases acrescidas
6
FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 8
7
Entre uma gama de autores, vale mencionar Eric Wolf, Jean Pierre Dupuy, André Gorz, Cornelius Cas-
toriadis, Ramachandra Guha, Joan Martinez-Alier, Wolfgang Sachs, Raymond Bryant e Sinead Bayle
entre outros.
8
A este respeito, consultar nota introdutória ao livro Desenvolvimento e Conflitos Ambientais (ZHOURI
e LASCHEFSKI, 2010).
9
Notas Taquigráficas da Audiência Pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa de Minas Gerais, instituída para debater o conflito desencadeado pelo projeto Anglo Ameri-
can, em Conceição do Mato Dentro, em 06/05/2013; págs 24 e 25.
10
Notas Taquigráficas da Audiência Pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa de Minas Gerais, instituída para debater o conflito desencadeado pelo projeto Anglo Ameri-
can, em Conceição do Mato Dentro, em 06/05/2013; pág.25.
11
Notas taquigráficas da Audiência Pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assem-
bléia Legislativa de Minas Gerais, instituída para debater o conflito desencadeado pelo projeto Anglo
American, em Conceição do Mato Dentro, em 06/05/2013; pág 61.
12
Para uma análise sobre o licenciamento ambiental em Minas e o funcionamento do COPAM, consultar
ZHOURI, LASCHEFSKI e PAIVA (2005), CARNEIRO (2005) e ZHOURI (2008). Para uma reflexão
sobre o caso Belo Monte, ver ZHOURI (2012).

93
13
referência à comunidade de Água Quente, impactada pela mineradora, mas não reconhecida como tal.
Registro de campo, em 04 de maio de 2013
14
ESTADO DE MINAS, 2012
15
Consultar o site http://blogs.mp.mg.gov.br/cimos/reasa/
16
Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente (BRASIL,
1981).
17
Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) nº 001, de 23 de janeiro de 1986 e
nº 006, de 16 de setembro de 1987 (CONAMA, 1986; 1987).

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97
ANA FLÁVIA MOREIRA SANTOS

NÃO SE PODE PROIBIR COMPRAR E VENDER TERRA


TERRAS DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL EM CONTEXTO DE
GRANDES EMPREENDIMENTOS

Cheguei à sede local da empresa no horário combinado, acompanhada do motoris-


ta e do Senhor J., que me acompanharia ao local da vistoria. Me apresentei. Um jovem
funcionário – um dos gerentes da área de relações públicas – foi designado para me
receber. Enquanto aguardávamos o chefe da segurança, fez questão de me apresentar o
programa de relacionamento comunitário da empresa. Os princípios e regras de con-
duta tinham um nome do qual já não me recordo, mas lembro de ouvi-lo dizer que eram
produto da larga experiência da empresa – premiada internacionalmente – em outros
países do terceiro mundo. Enquanto eu passava os olhos no calhamaço de páginas, meu
interlocutor manifestava a certeza de que o programa iria minorar enormemente os
impactos, quando estes começassem a ocorrer. Perguntei o que ele achava dos impac-
tos que já estavam ocorrendo. Não sei se ele temeu confirmar a existência de impactos
anteriores à fase de instalação, ou se foi apenas interrompido pela chegada do chefe de
segurança, mas não me deu uma resposta.
Fiz mais uma ou outra pergunta, agradeci a gentileza, enquanto aguardava o “E-
PI”, equipamento de proteção individual. O chefe de segurança retornou, com os equi-
pamentos e dois subordinados. Tensão. Um deles, dizia-se à boca pequena, era uma
espécie de “valentão” local, sujeito “brigador”, que ultimamente andava acompa-
nhando as incursões dos corretores junto a herdeiros de terras familiares, em tentativas
de adquirirem direitos e posses de terrenos considerados estratégicos pela empresa.
Há duas fontes de água quente na Água Santa, assim chamada por possuir, de a-
cordo com a tradição do lugar, efeitos curativos milagrosos. As fontes eram utilizadas
não apenas pela família e parentes de J., mas também por moradores de comunidades
vizinhas, em expedições para cura – envolvendo práticas ritualizadas de banho –, e
também para lazer. Passamos pela guarita de seguranças, armados, que interditava a
antiga estrada. J. me mostrava, ali, uma roça de mandioca por colher; acolá, um local

98
secularmente utilizado para rancho dos tropeiros, meio de comércio relevante na regi-
ão até a década de 1950. Descemos do carro já no terreno que pertencera ao seu avô, e
que, segundo expressão local, permanecera “no bolo da família”, até ser adquirido
pela empresa. Margeamos, a pé, o antigo rego que levava água até a porta dos fundos
da velha casa. Passamos pelo caminhão de L., irmão de J., apreendido (pela empresa?
pela polícia?). O esteio da casa estava perfeitamente visível, e dele se descortinava o
antigo quintal, que percorremos pouco a pouco, desfazendo, no encontro com goiabei-
ras, mangueiras e outras frutíferas, o conjunto genérico de árvores. Depois descemos
até as fontes, onde pude experimentar a quentura da água.
Sentimos a companhia desconfortável dos seguranças durante todo o percurso, ape-
sar de às vezes “apertarmos o passo”, propositalmente. J. só podia estar ali devido à
requisição do MPF, pois havia uma ordem judicial contra ele e o irmão, herdeiros des-
conhecidos no processo de venda da área. Em certo momento, pensei enxergar, de re-
lance, um gravador sob a manga de um dos seguranças. Desconsiderei.1

Pretendo, neste artigo, tomar como objeto de reflexão algumas experiências de atua-
ção em processos de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos, proporcio-
nadas pela trajetória como profissional em antropologia do Ministério Público Federal
(MPF), entre os anos de 1998 e 2010. Tais experiências ensejaram uma participação,
ainda que pontual, em processos conflituosos de expropriação territorial de comunida-
des ribeirinhas, quilombolas e outros segmentos tradicionais. Trata-se dos licenciamen-
tos e instalação da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Vale do Jequitinhonha (entre 2000 e
2003); da expansão da mineração de ouro em Paracatu (entre 2007 e 2008); do comple-
xo minerário do Projeto Minas-Rio, em Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim e
Alvorada de Minas (entre 2009 e 2010), todos no estado de Minas Gerais. O objetivo é
evidenciar, nesses contextos, a existência de estratégias e dispositivos comuns, aqui
tomados como elementos de um modus operandi que se institui na confluência entre
uma certa economia da verdade e um determinado conjunto de práticas, dupla configu-
ração que pode ser assim descrita:

Primeiro, a produção formal de uma legalidade, resultante dos proce-


dimentos jurídico-administrativos compreendidos pelo licenciamento
ambiental, cuja vigência é garantida por uma reiterada flexibilização

99
das normas ambientais. A construção dessa legalidade passa pela con-
formação de um saber técnico que, no plano dos estudos requeridos
para a avaliação dos impactos ambientais dos empreendimentos, esta-
belece um enquadramento restritivo e homogeneizador da realidade
sociocultural.2
Segundo, um conjunto de práticas adotadas por agentes nem sempre
direta e/ou formalmente vinculados aos empreendedores, conjunto que
compreende uma verdadeira mecânica da violência, não raro designa-
da, na arena local, de encurralamento. Essa violência, que perpassa
discursos, pequenos e dispersos atos, ou práticas sistemáticas, dificil-
mente gera repercussões substantivas na esfera (formal) dos processos
administrativos ou judiciais. Acaba, assim, por funcionar, paradoxal-
mente, como uma espécie de lastro da legalidade.

Trata-se de enfatizar não tanto a distância entre o ideal planejado e a prática cotidia-
na, mas, ao contrário, de perceber a solidariedade existente entre essas dimensões3. Ou,
nos termos do relato acima, considerar o ‘segurança’ como um elo concreto nas ações e
relações entre comunitários e empresa, que possibilitam a esta a aquisição das condições
legais, produzidas nos respectivos procedimentos administrativos. E essa legalidade –
engendrada por discursos e saberes autorizados -, como ação capaz de potencializar
atitudes que envolvem o uso ou a ameaça do uso da força, encapsulando-as em uma
dimensão de informalidade, própria a figurar, tão somente, em relatos etnográficos.

JOGOS DE MOSTRAR E OCULTAR: A CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE

Certeau, Revel e Julia (1989) veem, nos episódios de censura e repressão que acom-
panharam a transformação da literatura de colportage4 em objeto de interesse da elite
francesa no séc. XIX, os índices do processo de domesticação de uma existência cultu-
ral autônoma, cujo perigo havia que se eliminar. Uma operação, para os autores, intrín-
seca à própria constituição da cultura popular como campo de saber e objeto científico
― que retira ao povo, e reserva aos eruditos, a legítima autoridade de dizer o autêntico e
o verdadeiro:

Portanto, o que está em causa não são as ideologias, nem as opções,


mas as relações que um objeto e determinados métodos científicos
mantêm com a sociedade que os autoriza. E se os processos científicos
não são inocentes, se os seus objetivos dependem de uma organização
política, o próprio discurso da ciência deve confessar uma função que

100
lhe é autorizada por uma sociedade: esconder aquilo que pretende
mostrar.5

Essa função, nos licenciamentos aqui analisados, aparece como o resultado do entre-
laçamento de decisões e atos de cunho administrativo a um determinado tipo de discur-
so técnico sobre o empreendimento e seus impactos. Esconder aquilo que [se] pretende
mostrar constitui, propriamente, o estofo da legalidade alcançada no licenciamento en-
quanto processo administrativo. Para tanto, parecem contribuir, especialmente, duas
operações: o fracionamento dos licenciamentos e/ou do empreendimento; a restrição da
caracterização do universo sociocultural afetado pelo mesmo. Breves etnografias de
documentos administrativos e peças técnicas nos permitirão acompanhar o encadeamen-
to dessas operações nos casos mencionados.
A fragmentação do licenciamento de grandes empreendimentos é prática frequente,
que assume um sentido bastante simples e claro: diminuir as exigências jurídico-
administrativas relativas à avaliação dos impactos e à formação do juízo de viabilidade
ambiental do empreendimento; subsumir ou ocultar efeitos conjuntos, conexos ou trans-
fronteiriços6. Os licenciamentos da expansão da Mina Morro do Ouro e do Projeto Mi-
nas-Rio (complexo minerário – mineroduto – porto) demonstram como os efeitos dessa
prática podem ser, entretanto, múltiplos e variados.
Explorado industrialmente desde a década de 1980, o Morro do Ouro consistiu, his-
toricamente, em área de refúgio e garimpagem, no entorno do qual se constituíram, com
o declínio da mineração, três comunidades de ex-escravos, Amaros, São Domingos e
Machadinho. Em 1995, São Domingos já requerera o reconhecimento da Fundação Cul-
tural Palmares, obtendo a certificação como comunidade remanescente de quilombo em
2004, juntamente com as comunidades de Amaros e Machadinho7.
Desde 2003, chegavam ao MPF representações de lideranças das três comunidades,
denunciando impactos provocados pela mineração e solicitando a regularização de seus
territórios. A operação da Mina Morro do Ouro já as modificara profundamente, im-
pondo-lhes perdas territoriais, danos aos recursos hídricos e ao patrimônio cultural, mas
o contexto dos primeiros anos da década de 2000 relacionava-se a um agravamento da
situação, devido ao licenciamento da expansão da lavra.
Os processos então instaurados no MPF perseguiram, por determinado período, “o
licenciamento” – marca-fantasia que, abarcando uma miríade de procedimentos admi-

101
nistrativos do mesmo empreendedor no órgão ambiental, compunha um verdadeiro que-
bra-cabeças de peças desconexas e intervenções supostamente diminutas. Extensas zo-
nas de sombra e não-informação permitiram às agências do Estado prestar esclareci-
mentos oficiais que reiteradamente contraditavam as informações encaminhadas pelas
comunidades. O “licenciamento” – ora de uma pilha de estéril, uma supressão de vege-
tação, ou do aprofundamento de uma cava – asseverava a inexistência de comunidades
remanescentes de quilombo no universo afetado pelo empreendimento.
Esgotado o subterfúgio, órgão ambiental e empreendedor passaram a admitir, no
plano formal, a existência de comunidades reconhecidas pela Fundação Cultural Palma-
res (FCP) no entorno do Morro do Ouro. Novos mecanismos invisibilizadores foram
então acionados, iluminando outras dimensões do fracionamento. Tornou-se evidente
que o principal trâmite proporcionado por esse mecanismo fora adiantar o licenciamento
da nova planta industrial, inicialmente formalizado no contexto de uma expansão de
lavra cuja operação não necessitaria da construção de uma nova barragem de rejeitos.
Na sequência, uma mudança no escopo do empreendimento, justificada em termos da
viabilidade econômica do mesmo, viria “exigir”, como complementação, a formação de
um novo e extenso lago.
A geografia típica dos empreendimentos – área de influência direta (ADA), área de
influência indireta (AII) etc. – passou a compor uma nova zona de sombra e não-
informação. A argumentação dos consultores procurava, em resumo, demonstrar que
São Domingos, Amaros e Machadinho, “espacialidades”8 do entorno do Morro do Ou-
ro, eram tangenciais à área diretamente afetada, não decorrendo, do empreendimento,
nenhum grave impacto para as três comunidades. Sociológica e antropologicamente
insustentável, esse argumento continha, sobretudo, um viés tático. Desenvolvido como
parte de um “diagnóstico socioeconômico” das três comunidades, ele era também pro-
duto do segundo tipo de operação acima mencionado – a caracterização restritiva e ho-
mogeneizadora da realidade sociocultural impactada pelo empreendimento.
Compreendendo, segundo a expressão de Certeau, Revel, e Julia, um “processo de
domesticação de uma existência cultural autônoma”, eliminando o perigo representado
pela manifestação autodeterminada de sujeitos coletivos de direito, tal operação ganhou,
neste caso, uma tonalidade própria: o da desqualificação da condição quilombola da
comunidade de Machadinho. Apesar das referências explícitas aos marcos legais que

102
reconhecem os critérios de auto-atribuição como definidores de grupos étnicos, o dis-
curso técnico acerca da comunidade construiu uma etnografia das ausências e do dissen-
so. A inexistência de “expressões culturais” “emblemáticas” – a exemplo da Caretada
nos Amaros e em São Domingos9 –, e de um consenso interno acerca da identidade qui-
lombola, impediria o “respaldo” científico ao reconhecimento dessa identidade, susten-
tada “apenas” pela certificação da Palmares. Não obstante, a mesma peça técnica reco-
mendava que se observassem os impactos que porventura viessem atingir as comunida-
des de Amaros e São Domingos, tendo em vista contarem estas com “atributos culturais
e identitários (...) proeminentes e merecedores de especial atenção”10.
Ora, retomemos os elementos que são da ordem da estratégia e da tática: o vale pre-
tendido para a formação da nova barragem de rejeitos – fato já denunciado pelos qui-
lombolas ao MPF, porém inexistente no plano formal do processo de licenciamento da
expansão da lavra – incidia em cheio no território pleiteado pela comunidade de Ma-
chadinho. As razões para o desconhecimento desta, portanto, se encontravam radicadas
antes na geopolítica que na substância das realidades culturais analisadas. Amaros e São
Domingos eram tangenciais, sim, não à área diretamente afetada, mas a interesses eco-
nômicos primordiais do empreendedor. Essa marginalidade foi que compôs o cálculo de
seu reconhecimento, transformado em critério para o desconhecimento de Machadinho,
sujeito de direitos capaz de contrariar frontalmente tais interesses.
Se, no caso de Paracatu, a fragmentação do licenciamento parece adquirir um signi-
ficado especial, por seus efeitos multifacetados, a criação discursiva de um universo
social esvaziado de concretude histórica e cultural encontra-se especialmente represen-
tada, entre os cenários aqui tratados, pelo caso da UHE Irapé. Construída no Vale do
Jequitinhonha entre 2002 e 2006, após um processo de licenciamento ambiental que
durou 18 anos, e com 360 MW de potência instalada, a usina demandou um reservatório
de 137 km2, cuja formação deslocou cerca de 5.000 pessoas, provenientes de 51 comu-
nidades ribeirinhas, em sete municípios do Alto-Médio Jequitinhonha11.
Conformando um canyon, as margens do rio Jequitinhonha, naquela região, se pre-
cipitavam em grotas íngremes, contornadas, ao alto, por extensas chapadas. Habitavam
as grotas dezenas de comunidades ribeirinhas, que utilizavam as terras de vazante para
plantios diversos, associando-os à prática de um extrativismo também diverso, que se
estendia desde o rio até as chapadas. Uma ocupação de raízes históricas profundas, for-

103
mada ao longo de um processo de territorialização marcado por extrema assimetria entre
formas distintas de apropriação territorial, no decorrer do qual famílias se constituíram
em comunidades de parentesco e vizinhança, desenvolvendo fortes vínculos identitários
com a terra; e construíram uma organização social própria, incluindo complexos códi-
gos locais que, combinando de variadas formas princípios de herança, apropriação fami-
liar e uso coletivo, regulavam os modos de apossamento e uso do território e recursos
naturais12. A reprodução sociocultural dessas comunidades estava assentada em finos
ajustes entre homem, terra e ambiente, bem sintetizou Galizoni (2000, p. 32) ao descre-
ver, etnograficamente, as terras no bolo da família, denominação local desses territórios
de parentesco.
No Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), o
quadro descritivo da região teve sua moldura formada pelas imagens que, no contexto
mineiro, fornecem ao Jequitinhonha o epíteto de Vale da Miséria13. De traços essenci-
almente agrários, essa pobreza, expressa na agricultura tecnicamente ‘rudimentar’, na
baixa comercialização, na indústria ‘inexpressiva’, na pecuária extensiva e na decadên-
cia das empresas capitalistas implantadas na década de 1970 (reflorestamento e cafei-
cultura), seguiria determinantes naturais, como os longos períodos de seca e a configu-
ração geomorfológica em vales estreitos e profundos e chapadas extensas.
Não se trata, há que se observar, de um equívoco metodológico, mas de imagens
autorizadas e estratégias discursivas e metodológicas recorrentes em contextos de licen-
ciamento de grandes projetos. Séries de dados quantitativos ajudavam a projetar sobre
essa população uma plácida imagem de pobreza e rusticidade: isolado e submetido a
uma natureza pouco vantajosa e ao baixo dinamismo de uma economia marginal, o “di-
retamente afetado” por Irapé se encontrava imerso em condições de vida sempre inferio-
res às “médias” do Estado. Avaliado a partir de critérios próprios à lógica de produção
capitalista, à apropriação privada da terra, a uma agricultura empresarial, ao ambiente
urbano, o modo de vida local passava a se definir pela falta (SANTOS, 2011). Tal ope-
ração não passou despercebida pela Comissão de Atingidos, cujos questionamentos de-
nunciavam que o estudo de impacto buscava encobrir, sob o “manto inespecífico da
pobreza”, uma complexidade real que a norma geral utilizada não permitia existir no
licenciamento (GALIZONI, RIBEIRO e SANTOS, 2002).

104
A questão se recolocou com a reivindicação, por parte de uma das comunidades a
serem deslocadas – Porto Corís – do seu reconhecimento enquanto comunidade rema-
nescente de quilombo, trazendo consigo um grande potencial subversor. A primeira e
mais direta repercussão estava relacionada à possibilidade da atribuição de um status
jurídico especial a uma comunidade situada em área absolutamente necessária à instala-
ção do empreendimento, assegurando, àquela, um direito imprescritível e inalienável ao
território. Uma segunda ordem de repercussões advinha do fato de o reconhecimento,
implícita e indiretamente, alterar a correlação de forças na disputa propriamente simbó-
lica em torno da verdadeira definição da realidade local. Em face da flagrante ausência
de informações qualificadas sobre Porto Corís, a descrição etnográfica dessa comunida-
de quilombola14 colocava literalmente a nu tudo quanto restara ocultado nos estudos de
impacto, ferindo, de modo muito preciso e contundente, a construção metodológica da
realidade socioeconômica operada pelo EIA/RIMA. Tratava-se da própria afirmação de
uma esfera coletiva de existência – valores, práticas sociais, visões de mundo –, que
transcendia o mero conjunto das famílias recenseadas, quantificadas e classificadas se-
gundo portassem, ou não, títulos de terra.
As implicações dessa realidade para a compreensão e dimensionamento dos impac-
tos do empreendimento estavam longe de constituir detalhes de menor importância.
Compostas pelas encostas e vales a serem inundados pelo reservatório da Usina, a “área
diretamente afetada”, definida como a estrita área de inundação, traçava uma linha arbi-
trária, estabelecendo uma ruptura absurda do ponto de vista das territorialidades locais.
Ao excluir as chapadas – majoritariamente apropriadas através do extrativismo e do
pastoreio -, esse recorte favorecia o desconhecimento de códigos costumeiros e usos
coletivos da terra e dos recursos. Considerando apenas as grotas – e o uso familiar, pri-
vado e rotativo da terra através da atividade da agricultura –, reforçava o entendimento
equivocado de que o regime de apropriação territorial encontrava-se de fato subsumido
pelo instituto da propriedade privada.
De saída, excluía-se da avaliação dos impactos o cerne mesmo das condições de
reprodução socioeconômica e cultural das famílias atingidas, além de impedir o real
dimensionamento desse conjunto populacional. Não se levava em consideração a ampli-
tude do espaço territorial utilizado pelas famílias na reprodução de seus modos de vida,
ou as atividades ali praticadas. O cálculo se reduzia ao equacionamento das áreas das

105
supostas “propriedades” situadas nas grotas, para indenização em dinheiro ou terra.
Qual um cavalo de tróia, a “ADA” trazia, em si, um dispositivo expropriatório de terras,
recursos ambientais e relações sociais.
Uma vez consideradas as comunidades como instâncias definidoras de sujeitos e
direitos, o contingente “diretamente afetado” passou de um universo estimado em 3.000
pessoas a um patamar de 5.000 pessoas. Não obstante, esse reconhecimento ocorreu
tardiamente no processo de licenciamento, como produto de uma negociação intermedi-
ada pelo MPF, e de uma grande capacidade de mobilização, articulação e atuação da
Comissão de Atingidos. A Licença Prévia (LP) foi concedida sem que o reconhecimen-
to da comunidade quilombola dos Corís fosse formalmente considerado. As comunida-
des ribeirinhas, e todo o seu universo sociocultural, não haviam, enfim, entrado no
cômputo da viabilidade ambiental do empreendimento.

ENCURRALAMENTO: O PAPEL DA VIOLÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA REA-


LIDADE ENUNCIADA

Esta seção tem como intuito demonstrar que a desconstituição de sujeitos coletivos
de direito não ocorre apenas por meio da consecução de graus sucessivos de legalidade,
sustentados por discursos autorizados a afirmar os princípios de (di)visão do mundo
social (BOURDIEU, 2007). Pretende percorrer o elo da dupla configuração anunciada
na introdução a este artigo, procurando novamente na etnografia dos casos, os meios
pelos quais o exercício dessa violência simbólica potencializou, produziu ou se articu-
lou a atos concretos de força na construção da realidade formalmente enunciada – qual
seja, a de que existem tão somente, em um universo sempre restrito de “diretamente
afetados”, meros posseiros, quando muito proprietários, de terras particulares (VAI-
NER, 2008).
Inicio pela ideia-força da inexorabilidade, intrínseca ao campo semântico acionado
por termos como progresso e desenvolvimento (SACHS, 2000). Ela emoldura o que
chamarei aqui – inspirada por usos independentes da expressão para nomear, em distin-
tos contextos, processos similares – de encurralamento. A ideia é a de que a inexorabi-
lidade abstrata do desenvolvimento se constrói, passo a passo, na concretude das vio-
lências que sofre o encurralado.

106
O primeiro passo nessa concretização provém, de certo modo, da própria ideia de
inexorabilidade, ou melhor, dos efeitos de potencialização e reforço que para ela decor-
rem do primeiro dispositivo descrito. Escapar ou diminuir exigências burocráticas, sub-
dimensionar impactos, compõem, via de regra, peças de reforço em justificativas assen-
tadas na ideia da necessidade do empreendimento. O licenciamento da expansão da la-
vra de ouro em Paracatu é significativo: conjugar em tempos distintos licenciamentos
fracionados de um único empreendimento contribui para ocultar impactos e torná-los, a
um tempo, necessários. A planta de beneficiamento desenhada para uma capacidade
condizente com a construção de uma nova barragem de rejeitos oculta os estragos aí
implicados, mas os torna imprescindíveis.
Caso exemplar o do projeto Minas-Rio: envolvendo a instalação de um complexo
minerário para extração de ferro em Minas Gerais, a construção de um mineroduto de
525 km, aproximadamente, e um porto no norte fluminense, o fracionamento determi-
nou o licenciamento em separado das três estruturas, processo iniciado por aquela que,
imediatamente menos impactante – o mineroduto –, reforçava a imprescindibilidade das
outras duas15.
Os efeitos vão, assim, se sucedendo, de modo a comporem o estreitamento das pos-
sibilidades e alternativas. Muito cedo no licenciamento, as zonas de sombra passam a
constituir arenas propícias a intervenções de um conjunto de agentes direta ou indireta-
mente associados ao empreendedor, intervenções estas altamente modificadoras dos
contextos locais. A ‘geografia do empreendimento’, ela própria ocultadora das territo-
rialidades locais16, é ficcional em vários sentidos, inclusive no que a projeta como di-
mensão a se realizar somente quando da instalação, condicionada e fiscalizada, do em-
preendimento.
A apropriação tática do território se inicia, muitas vezes, antes da formalização do
licenciamento, ou, como vimos demonstrando, nos sombreamentos produzidos pelo
modo como o processo é conduzido. Inicia-se pela aquisição de propriedades mais ex-
tensas, inseridas ou mais acessíveis à lógica do mercado, estrategicamente localizadas
em áreas essenciais ao empreendimento. Começam a se formar, por um lado, a ideia de
que o empreendedor “já possui” o que necessita; por outro, um sentimento de solidão,
devido ao esvaziamento do espaço social, que se inicia justamente com a saída daqueles
que, na esfera local, seriam os agentes capazes de estabelecer, face a tão poderoso opo-

107
nente, condições para a negociação. Os fraquinhos, bem disse um morador do entorno
do Morro do Ouro, eles só mandaram recado, se num quiser vender, pode deixar, que
nós tão comprando.
No caso de Machadinho, as fazendas e sítios adquiridos situavam-se sobretudo na
área onde seria instalada o eixo 1 da barragem, a jusante da região em que se situavam
as famílias, aparentadas, parte das quais não se declarava como quilombola. A aquisição
de terras avançou por todo o entorno dessas famílias, e o paulatino abandono dos mora-
dores se refletiu no fechamento da escola local. O processo se fez acompanhar de uma
política de terra arrasada. A destruição imediata e sistemática de casas e benfeitorias
existentes nos terrenos adquiridos, principalmente quando vizinhos à comunidade,
transformou escombros em sinais concretos do isolamento progressivo, cujas marcas
alcançavam os próprios quintais das famílias. A interdição do acesso dos moradores aos
terrenos adquiridos, ou mesmo a caminhos costumeiros, aumentou distâncias, constitu-
indo outro elemento de pressão, assim como a colocação de placas ostensivas de adver-
tência.
O cerco literalmente se fechou quando a empresa, ao comprar “a frente” da comuni-
dade – um terreno interposto entre a rodovia e as casas –, trancou, com cadeado, a can-
cela que lhes dava acesso. Segundo um morador, teria sido uma forma de dizer que aqui
já é dela, (...) consideradamente, quer dizer, pela lei, que eles diz assim, né, o poder
dela (...) Não por acaso a estratégia foi associada à prática dos antigos grileiros da terra,
que faziam igual a RPM tá fazendo. Ela diz que comprou um pedacinho, a frentezinha
num sei lá de quem, e bota cancela e tranca, e pronto!
Medição de terrenos, levantamento e registro fotográfico de benfeitorias, colocação
de marcos, foram realizados antes mesmo da concessão da licença prévia, sem que fos-
sem dados avisos ou explicações prévias, às vezes sem autorização ou ciência do dono.
Contratados de empresas terceirizadas transmitiam às famílias a mensagem de que a
empresa iria adquirir as terras por preço a ser estabelecido de antemão; que melhora-
mentos ou novas benfeitorias não iriam ser considerados na avaliação, incluindo bens de
raiz e culturas permanentes; que, a qualquer momento, necessitariam evacuar a área.
Novos plantios, reformas, formação de pastos, permaneceram em suspenso. Aonde o
pessoal é mais pobrezinho e tal, eles já embargaram para não fazer nada mais, relatou
um morador em 2007, ano de obtenção da LP. O embargo incluiu, no caso de Machadi-

108
nho, a então precária ponte de madeira que servia à comunidade. As estradas que servi-
am à comunidade deixaram de ser encascalhadas pela Prefeitura.
Chefes de família perderam o poder de decisão sobre o destino de seus sítios: não
podiam plantar, não podiam construir, reformar, e tampouco decidir por não vender. Ao
contrário, sentiam-se ilhados no fundo do vale, impotentes diante de um fato inexorável,
cuja concretização, inclusive, independeria da efetiva consideração de seus direitos. A
percepção de um cerco que potencializava o desequilíbrio das forças envolvidas, geran-
do o desconhecimento dos direitos, foi assim expressa: Então é assim que acontece com
pobre. É expulso! Pobre, preto, feio... Sempre é a história.
Por cerca de dois anos, as famílias foram insistentemente procuradas para se desfa-
zerem de suas terras. As estratégias incluíram a recusa à negociação coletiva, a identifi-
cação das áreas que estavam no terreno mas tinham escritura, para negociação em se-
parado, a imposição de sigilo. Tensões, desconfianças, conflitos, inseguranças foram
potencializados por esse método. Desacordos anteriores, associados à afirmação de di-
reitos de parentelas com distintas trajetórias familiares, em um território já diminuído
por processos expropriatórios, foram reacendidos no contexto da atuação da mineradora.
Com o avançar do processo de identificação do território quilombola, a clivagem étnica
acabou por abarcar e expressar alguns desses conflitos, orientando interpretações distin-
tas sobre o passado e diferentes projetos de futuro. A maior parte das famílias que então
permaneciam no território declarou-se não quilombola17.
Ao invés de circunstanciarem etnograficamente os diversos atores e interesses en-
volvidos nessa situação – incluindo o contexto implicado pela operação e expansão da
mina –, de forma a alicerçar a compreensão de todas as posições presentes no campo, os
consultores contratados pela empreendedora elegeram, como legítima, uma das posi-
ções; a partir dessa escolha, procuraram desconhecer a condição quilombola das demais
famílias. A formal inexistência do quilombo possibilitou estratégias de esvaziamento
populacional da “área de influência direta” do empreendimento; os conflitos aí gerados
lastrearam, ao passo, o desconhecimento formal do quilombo.
Em linhas gerais, o licenciamento e instalação da expansão da lavra no Morro do
Ouro ilustra bem o encurralamento – ou como a violência difusa, porém sistemática,
exercida na informalidade da fronteira entre o jurídico-formal e a concretude dos cor-
pos, constrói as realidades socioculturais esvaziadas que se enunciam nos EIA/RIMA. A

109
menção ao licenciamento do complexo minerário do Projeto Minas-Rio, em Conceição
do Mato Dentro, Dom Joaquim e Alvorada de Minas servirá, aqui, para demonstrar a
amplitude das práticas descritas18.
No entorno da Serra da Ferrugem, região de implantação da mina, também se verifi-
ca a presença de pequenos sítios familiares, muitas vezes assentadas sobre terrenos de
herança mantidos em comum, designados, como no Jequitinhonha, terras no bolo da
família. Trata-se de comunidades com antigo lastro na região, a ocupação remontando,
não raro, a muitas gerações. Para as comunidades afrodescendentes visitadas, por exem-
plo, foi possível remontar a um passado de escravidão ou a um tempo próximo à aboli-
ção (SANTOS, 2009).
Terras no bolo não possuíam documento. As estratégias para sua aquisição envolve-
ram um forte assédio aos herdeiros, que eram abordados separadamente e pressionados
a vender seus direitos, sob o argumento da inexorabilidade da obra. Processos extrema-
mente conflituosos, violentos e desagregadores foram desencadeados pelo método de
negociação da empresa, que favorecia ou aprofundava desacordos entre herdeiros, ao
desconsiderar parte dos interesses e dos interessados envolvidos; ao impor a tarefa de
definir o quanto caberia, a cada um, de uma terra familiar, desconhecendo formas tradi-
cionais de apropriação da terra. Houve casos em que a empresa procedeu de modo a
operar a divisão das terras comuns, sem que disso tomassem consciência os próprios
herdeiros19.
Uma vez adquiridas as terras, estas eram imediatamente cercadas, ficando proibida a
circulação em seu interior, ainda que aí existissem caminhos costumeiros20. Esse siste-
ma tipo opressivo, conforme expressão local, envolvia ainda uma série de intervenções
não autorizadas sobre as terras e o cotidiano dos moradores: medições de terra sem o
conhecimento dos proprietários; entrada em propriedades para medir água, sem licença
ou autorização; abertura de caminhos e cercas (para passagem de veículos pesados e
máquinas), também sem pedido de licença ou autorização; remoção de mata-burros e
porteiras, sem o consentimento dos proprietários; colocação de novos mata-burros, sem
autorização e sem a orientação dos donos das mangas, prejudicando o manejo do gado.
Por fim, as atividades de pesquisa – como a construção de acessos até os pontos de son-
dagens, a abertura e o fechamento destas – já provocavam uma série de problemas am-

110
bientais, que atingiam um ponto nevrálgico da vida local: a quantidade e qualidade da
água.
Ao longo de 2009 e 2010, essa situação se agravou. O avanço das obras da área de
partida do mineroduto – já licenciadas, não obstante incidirem em área sobreposta, em
larga medida, à de instalação da mina – faria implodir as condições e a qualidade de
vida das comunidades no entorno da Serra da Ferrugem. A fragmentação do Projeto
Minas-Rio tivera o efeito de tornar invisível aos órgãos ambientais todo um conjunto de
famílias, que em 2010/2011 se encontraria em situação limite (BECKER e PEREIRA,
2011).
Na sequência, o início da instalação ampliou os impactos socioambientais decorren-
tes do empreendimento, cuja multiplicidade e alcance definitivamente não haviam sido
descritos: o estudo de impacto ambiental adotara uma definição extremamente restritiva
para o reconhecimento do universo sociocultural afetado, equivalendo-o à área necessá-
ria à instalação das principais estruturas do empreendimento. Por ocasião da concessão
da Licença de Instalação (LI - Fase 1), colocada diante da grave situação denunciada
pelo movimento local de atingidos, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente exigiu que
se transformasse em condicionante do licenciamento ambiental o termo de ajustamento
de conduta (TAC) negociado no contexto do licenciamento da UHE Irapé, este tomado
como paradigmático devido à incorporação das relações e territorialidades locais no
processo de reconhecimento dos grupos sociais afetados. Determinada a elaboração de
estudo específico por empresa de consultoria independente, a avaliação do conjunto de
atingidos pelo complexo minerário passou de 2 para 22 comunidades21. Elaborado em
2011, até o momento da escrita deste artigo (agosto de 2013) o estudo ainda não havia
sido oficialmente submetido ao órgão licenciador. Enquanto o universo de comunidades
atingidas permanece (formalmente) desconhecido, estratégias de apropriação territorial
de tipo opressivo continuavam em curso22.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vainer (2008), ao mencionar os critérios de definição daqueles que deverão ser con-
siderados para fins das operações de mitigação e compensação, observa que o termo
“atingido” não constitui nem uma noção meramente técnica, nem estritamente econômi-

111
ca, referindo-se, sobretudo, ao reconhecimento – portanto, à legitimidade – de direitos.
Encontra-se, assim, sempre em disputa. No campo ambiental brasileiro, um sentido he-
gemônico é aquele que nasce do cálculo custo-benefício da obra, ou seja, cuja definição
obedece ao critério do menor custo, tendente a delimitar um “mínimo” de contingente
atingido (FASE/ETTERN, 2011:, p. 149).
Esse critério não raro se concretiza, nos estudos de impacto ambiental, no modelo
que Vainer (2008, p, 04).descreve como “territorial-patrimonialista”, a saber, que toma
como perspectiva de definição do atingido a aquisição do domínio, ou seja, da proprie-
dade da área necessária ao empreendimento. Nos casos aqui relatados, esse é o critério
que se encontra expresso nos desenhos geográficos de área diretamente afetada, de in-
fluência direta etc., como aquela a ser ocupada pelas futuras instalações do empreendi-
mento. As etnografias demonstram que o sentido e os efeitos da definição ultrapassam,
entretanto, essa função minimizadora, radicando-se na sua articulação com um conjunto
mais amplo de imagens discursivas e estratégias administrativas.
Discursos autorizados, operações burocráticas como os aqui descritos confluem para
a desconstituição da possibilidade ou da efetividade do reconhecimento de direitos terri-
toriais coletivos compreendidos em marcos regulatórios já existentes, notadamente, mas
não exclusivamente, a regularização de territórios quilombolas. Nos contextos descritos,
as estratégias agressivas de aquisição de terras se reveste claramente do sentido político
de desconstrução de sujeitos de direito. Representam a instrumentalização de uma re-
serva de legalidade, que passa a legitimar o exercício extralegal da violência, na apro-
priação e esvaziamento concretos do território. Porque não se pode proibir ninguém de
comprar ou vender terra – resposta frequente dos operadores do direito às indignadas
observações de campo feitas pela antropóloga –, as ações violentas da expropriação
territorial permanecem encerradas na dimensão cotidiana e costumeira da informalida-
de.
As descrições explicitam, por seu turno, a importância dos princípios de direito que
pautam o reconhecimento legal da diferença sociocultural, e o potencial subversor con-
tido nas reivindicações de reconhecimento dessa diferença no contexto dos grandes em-
preendimentos. Esse potencial segue direção contrária à sugerida pela frequente suspeita
de pragmatismo dirigida a tais reivindicações: tratar-se-ia, nos dizeres de Thompson
(1998, p. 19), da rebeldia da cultura popular, na defesa dos costumes, ou seja, a afirma-

112
ção política de usos, costumes e tradições. Possibilidades se colocam para os antropólo-
gos, agentes subordinados no campo das disputas pelo direito de dizer o direito: seja
pelo instrumental fornecido pelo saber antropológico para a compreensão dos processos
que envolvem esses usos e suas afirmações, seja pela capacidade da narrativa etnográfi-
ca, de capturar e registrar o plano das informalidades e das práticas cotidianas.

NOTAS

1
Comunicação oral apresentada na sessão “Povos tradicionais, marcos regulatórios e garantia de direitos
territoriais”, no Simpósio “Os Antropólogos e os Dilemas do Desenvolvimento”, atividade promovida
pelo Comitê Povos Tradicionais e Grandes Empreendimentos/ABA, no âmbito da 28a Reunião Brasileira
de Antropologia, realizada na PUC – SP, entre 02 e 05 de julho de 2012.
2
Operação também recorrente nos licenciamentos ambientais, constitutiva do chamado modelo da ade-
quação ambiental. Zhouri, Laschefski & Paiva (2005) descrevem uma série de mecanismos que operam,
nos licenciamentos, essa adequação – da legislação e do meio ambiente aos empreendimentos – entre os
quais a aprovação de licenças com pendências não resolvidas, via estabelecimento de condicionantes (op.
cit.: 99; 109).
3
Trata-se de considerar a relação triangular que Foucault (2000) estabelece entre poder – verdade – direi-
to. O poder produz, necessariamente e em seu próprio funcionamento, uma economia da verdade, um
discurso de verdade que, circularmente, produz efeitos de poder: ele hierarquiza, ordena, qualifica e des-
qualifica. Por esses mesmos efeitos, essa economia da verdade se inscreve, por sua vez, no direito, sendo,
os discursos autorizados do saber, cada vez mais chamados a atuar como discursos árbitros (id. bid.: 45).
4
Literatura de venda ambulante, mas também, de cordel (id. ibid.).
5
op. cit: 51
6
Ver, a respeito, FASE/ETTERN/IPPUR (2011).
7
A breve descrição que se segue tem, como fonte, relatórios e pareceres elaborados para o Ministério
Público Federal entre os anos de 2007 e 2008 (SANTOS, 2007/2008).
8
Termo que evitava caracterizar, notadamente para o caso de Machadinho, a existência de um território.
9
Performance realizada tanto nos Amaros como em São Domingos, praticada por um grupo de homens
enfeitados e mascarados. No caso dos Amaros ela é realizada em 23 e 24 de junho, em homenagem a São
João, com a duração de 24 horas.
10
Trecho extraído do estudo intitulado Diagnóstico – Comunidades Remanescentes de Quilombos de São
Domingos, Amaros e Machadinho, realizado em novembro de 2005 pela empresa Paralelo 19 Gestão de
Projetos, anexado ao Procedimento Administrativo Cível de no 386/2005-50, fls. 79 a 169.
11
Ver Zucarelli (2006) para uma análise a respeito do licenciamento da UHE Irapé.
12
Galizoni (2002) traz uma excelente etnografia desse campesinato.
13
Ver, a esse respeito, o capítulo 1 de Moura (1988).
14
Situada no município de Lemos do Prado, compreendendo à época doze famílias, Porto Corís era for-
mada pelos descendentes do escravo Germano Alves Coelho, que ali viera se estabelecer ao final do sécu-
lo XIX. A terra, jamais dividida, constituía patrimônio indiviso do grupo. O direito de herança, o acesso e
permanência na terra assentavam-se na genealogia, conhecida e reproduzida socialmente, a qual vincula-
va cada membro do grupo ao ancestral fundador. Comunidade de exclusividade negra cuja memória esta-

113
va marcada pela resistência à escravidão, Porto Corís se organizava como uma comunidade de herdeiros,
em que a unidade do território reforçava a unidade do grupo, sendo parte constituinte da identidade cole-
tiva (SANTOS, 1999: 26)
15
A formalização, junto ao Sistema Ambiental de Minas Gerais, do pedido de licença prévia do complexo
minerário do Projeto Minas-Rio ocorreu em 2007, um mês após a concessão da LP para o mineroduto,
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
16
Almeida (2006), discute as territorialidades específicas no contexto do reconhecimento das terras de
ocupação tradicional.
17
A complexidade do caso de Machadinho foi descrita e analisada em relatórios elaborados para o Minis-
tério Público Federal (SANTOS, 2007/2008).
18
A breve descrição que se segue tem, como fonte, relatórios e pareceres elaborados para o Ministério
Público Federal entre os anos de 2007 e 2008 (SANTOS, 2009/2010).
19
Instados a assinar declarações de “reconhecimento de limites”, sem o devido conhecimento do teor
desses documentos.
20
A exemplo da estrada de cavaleiros da Água Santa, secularmente utilizada por tropeiros, e ainda muito
importante na vida cotidiana dos moradores das comunidades do entorno da Serra da Ferrugem, fechada
em 2009, quando passou a ser vigiada por seguranças ostensivamente armados (SANTOS, 2009, p. 14 a
16). De acordo com o relatório elaborado pela Diversus (2011, p. 318), essa prática bloqueou toda uma
rede de estradas que ligavam as comunidades entre si e o acesso delas aos distritos e às sedes dos municí-
pios, sem que uma política de mitigação para esse problema tivesse sido criada.
21
Dado levantado pela empresa de consultoria Diversus, no relatório elaborado em 2001, em função da
mencionada condicionante.
22
As descrições anteriores são fruto de observações de campo realizadas no ano de 2009. Em 2012, de-
núncias em Audiência Pública realizada na comunidade de São Sebastião do Bonsucesso (Sapo), indica-
vam a continuidade dessa estratégia agressiva de aquisição de terras.

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116
NORMA VALENCIO

ELDER ANDRADE DE PAULA

ROSEMEIRE SCOPINHO

ENTRE CONTROVÉRSIAS, TENSÕES E RESTRIÇÕES: DESAFIOS


DE PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO DE GRUPOS
SOCIAIS VULNERABILIZADOS EM CONTEXTOS
SOCIOAMBIENTAIS DISTINTOS

INTRODUÇÃO

Desde a década de 1980, tem ocorrido uma intensa mudança do arcabouço legal em
torno da conformação fundiária, produtiva e ambiental do Brasil, a qual atesta a existên-
cia de um tenso campo de lutas, no sentido bourdieusiano. Aquilo que, à primeira vista,
parece tratar-se do resultado promissor de um contexto nacional de redemocratização,
correspondente a uma ampliação do envolvimento político ativo dos mais diferentes
atores nas diversas arenas institucionais recém-proliferadas, não o é de fato. Tampouco
tal mudança do arcabouço legal resulta de uma escuta pública difusa que tivesse consi-
derado a polifonia social, escuta essa tão demandada pelos grupos sociais em desvanta-
gem que há muito reivindicam a renovação das práticas sociais no trato da coisa pública
bem como o alargamento do projeto de nação para respaldar a priorização de proteção à
dignidade humana.
Não tarda constatar-se que, após uma breve pulsão institucional pública, inspirada
pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) e orientada para compensações de injustiças
históricas bem como para a inibição da explícita predação socioambiental praticada pelo
meio empresarial, o arcabouço legal vem sofrendo alterações caracterizadas pelo evi-
dente retrocesso no campo dos direitos humanos e difusos. Confirma-se a manutenção
de uma ordem social anacrônica na qual a naturalização das desigualdades sociais refle-
te-se no espaço, seja no concernente ao aspecto geográfico do país quanto na vida práti-
ca da nação. Daí porque as preocupações que Alfredo Wagner Berno de Almeida levan-

117
ta, em sua conferência intitulada “Práticas antropológicas em tempos de recodificação”,
proferida em 02 de julho de 2012, na abertura da 28ª. Reunião Brasileira de Antropolo-
gia, não seja trivial. Diz ele:

São dezessete códigos no ordenamento jurídico brasileiro e apenas


dois foram aprovados após o processo de redemocratização (...) os
demais códigos, todos eles, estão sendo alterados nesses últimos cinco
anos (...) Os três que afetam mais diretamente a questão da territoriali-
dade: alterações do Código Mineral (...) o Código Florestal e o das
Águas(...) Quando é que são alteradas as normas, regras e preceitos e
códigos que disciplinam a vida cotidiana de uma sociedade? (...)
Quais são as transformação profundas, de longo prazo, como diria
Norbert Elias, ou estruturais, que estariam ocorrendo e criando condi-
ções de possibilidade para que todos esses códigos sejam alterados
simultaneamente? Todos eles que afetam profundamente a vida soci-
al? (...) Em primeiro lugar, todas essas polêmicas concernentes a esse
processo que estamos chamando de recodificações, se manifestam,
sobretudo, por meio de requerimentos para audiências, relatórios, pa-
receres, reivindicações e demandas sociais que escapam um pouco ao
campo de produção de conhecimento (...) essas transformações tanto
apontam para desatar amarras burocráticas quanto para novas relações
entre o público e o privado (...) e também como essas modalidades di-
ferenciadas de codificação interferem no uso tradicional de povos e
comunidades têm dos recursos naturais (...) Qual a transição que está
em jogo hoje? A transição entre proteção e protecionismo (...) efeito
de uma ação de Estado deliberadamente protecionista voltado para a
reestruturação de mercados, disciplinado a comercialização da terra,
dos recursos florestais e do subsolo (...) há um processo de desseman-
tização onde o significado de proteção tem como vigência o seu opos-
to.1

É de notar que ao lado da produção de novos mecanismos protecionistas vicejam


formas enviesadas de interpretação da lei; ou aquilo que Almeida enfatiza, na conferên-
cia supramencionada, como sendo a propagação de um ambiente normativo com pre-
dominância da norma aberta, permitindo ao juiz adotar sua forma particular de conceber
o problema e, inspirado pela mercantilização dos recursos naturais, não raro ir na con-
tramão das reivindicações sociais e dos sentidos de território. O embasamento normati-
vo protecionista às deliberações emanadas pelo Judiciário, como ainda pelo Ministério
Público (MP), permite ao Estado (re)tomar os rumos da intolerância social, flexibilizan-
do os direitos territoriais e relativizando os direitos humanos e difusos, com nítida infe-
riorização dos grupos sociais que têm escassas ligações com o mercado, tal como os
povos tradicionais. Disso decorre a perpetuidade da assimetria das partes envolvidas em

118
conflitos socioambientais e a resistência do ente público em problematizá-la noutros
termos que, eventualmente, propiciassem a reversão das desigualdades historicamente
produzidas. As disparidades referentes à proteção dos distintos grupos sociais pelo ente
público forjam o enodoar das violências com os privilégios e os direitos humanos e di-
fusos somem de vista.
Das muitas violências que a flexibilização de direitos territoriais suscita, há o de
escamoteamento do discurso institucional à existência de um debate acerca da concep-
ção mais densa de espaço, segundo o que o considera Santos (1998), isto é, como o en-
tremear do sistema de objetos - naturais e construídos - e do sistema de ações. Ou, mais
propriamente, o olvidar daquilo que Zhouri (2010) define como lugar, caracterizado
pela simbiose entre os sujeitos conviventes, suas rotinas, o forjamento de suas identida-
des coletivas e a sua territorialidade. No lugar, através de práticas sociais, conformes à
experiência, os vínculos e a memória do grupo, são produzidos enraizamentos objetivos
e simbólicos. Quando um regramento exógeno dissolve arbitrariamente um lugar – obs-
truindo o acesso ao território, destruindo os objetos privados e comunitários ali contidos
e impondo a alteração e/ou proibição das ações ali exercitadas rotineiramente – o que
está em jogo é o risco de esvaziamento das identidades coletivas e da condição de sujei-
to. Tão deletério quanto à arbitrariedade acima mencionada é a simultaneidade de ga-
rantias dadas ao domínio territorial na perspectiva estritamente instrumental. O território
para as práticas econômicas intensivas de capital é disponibilizado pelo Estado; ofertado
com os menores embaraços possíveis relativos à sua disjunção do lugar que ali existiu;
alardeado como oportunidade para um dito ‘progresso’ seja na exploração predatória
dos recursos naturais como também nas finalidades meramente especulativas.
Numa ponta, os grupos sociais fragilizados resistem como podem, vivendo sob a
contínua pressão do Estado para que acatem pacificamente a dissolução de seus respec-
tivos lugares; quando não o fazem, são vítimas de um célere processo de desterritoriali-
zação escorado numa visão particular de legalidade, não raro, municiado por força poli-
cial e diante a face mais truculenta do poder. O contínuo sofrimento coletivo não é ori-
undo apenas daí, mas das muitas manifestações acessórias de rejeição que o meio social
envolvente demonstra em relação a tais grupos através de conotações depreciativas do
mesmo que impregnam o imaginário social. Incisivos discursos de intolerância são, ain-
da, espargidos pelos grandes meios de comunicação e alçados à condição de legítimos

119
no imaginário social, clamam pela célere supressão das territorialidades incômodas,
dissipando as esperanças e os meios de vida daqueles que forjam ali suas raízes e que
tentam, através dessas, conectar-se socialmente com o derredor. Isto é, são submetidos a
um processo contínuo de dilapidação identitária coletiva e da territorialidade onde essa é
vivificada.
Na outra ponta, os setores conservadores constituem e consolidam suas posições
exclusivistas no interior do Estado – se apropriando de espaços estratégicos no processo
decisório bem como esvaziando as iniciativas de participação política -– para defender,
com reiterado sucesso, seus domínios territoriais. Tais setores projetam-se como guar-
dadores do interesse nacional, na verdade, subvertem a possibilidade de um projeto de
nação. Fazem-no com relativo êxito quando dão ensejo à contínua explicitação macros-
social da intolerância, isto é, da negação da condição humana dos grupos que se encon-
tram em desvantagem e nas margens da sociedade. O ambiente político que permite a
explicitação corrente da aversão dos que se sentem plenamente integrados aos que são
considerados irremediavelmente como losers ocorre com frequência preocupante dentro
do que se apresenta como um Estado Democrático de Direito e sob o manto constitucio-
nal. As práticas sociais corriqueiras no espaço público parecem gradualmente prescindir
de ambos. No plano socioespacial, as supressões de direitos mínimos para alguns e os
privilégios territoriais escorados em novos direitos ou em interpretações enviesadas do
direito, para outros, são polos opostos, mas não contraditórios no contexto que Martins
(2011) designa como modernidade anômala: radicam de uma mesma racionalidade que,
embora pretensamente sintonizada com o tempo presente, é inerentemente arcaica, con-
firmando a inautenticidade da modernidade brasileira que segue referenciada pela natu-
ralização das injustiças sociais.
No interior da máquina pública as coisas se passam de modo equivalente ao acima
descrito. Os quadros técnicos que, no campo ambiental, não se coadunam com a natura-
lização das desigualdades sociais passam a ser discriminados com a pecha de serem
expoentes de um ativismo político visto como ideologicamente ultrapassado pelas cir-
cunstâncias pretensamente homogeneizantes da modernidade. Cerceados crescentemen-
te no exercício de suas funções públicas e/ou sofrerem com uma carga exaustiva de tare-
fas, sem condições materiais para executá-las, tais técnicos constatam que a sua atuação
vem sendo nulificada até que os próprios aparatos nos quais atuam passam a ser, eles

120
próprios, esvaziados nas suas missões e competências institucionais naquilo que se refi-
ra ao refreamento dos setores afluentes predatórios. Fica explícito, então, as escolhas
institucionais por um modelo de desenvolvimento desigual.
A modificação do arcabouço legal strictu, em torno do trinômio fundiário-
produtivo-ambiental, não tem provocado embates no interior da sociedade civil capazes
de revertê-la. As diferentes e conflitantes concepções de desenvolvimento já não encon-
tram arenas públicas qualificadas para se explicitarem e virarem o jogo. Os conflitos
sociais existentes são continuamente abafados enquanto proliferam as práticas de dester-
ritorialização de grupos socialmente mais fragilizados ampliando as assimetrias sociais
existentes. Num estranhamento aos direitos mais essenciais da pessoa humana, como o
de proteção à dignidade, à moradia e à diversidade cultural, o imaginário social domi-
nante predispõe-se a ancorar a concepção de modernidade no domínio territorial con-
centracionista, tendendo a reafirmar a legitimidade de nossas raízes oligárquicas na
forma de conceber a extensão e o conteúdo desse domínio como indicativos de ‘pro-
gresso’ social. O faz através da propagação de discursos coletivos eivados de intolerân-
cia, discriminação e preconceito para com os que, historicamente, estão ameaçados na
garantia de suas condições concretas de existência. Os que rejeitam e não se coadunam
às rotas dos grandes projetos de investimentos são estereotipados como incapazes e sem
contributos, efetivos e socialmente válidos, para a garantia da uma imagem de ‘avanço’
da nação. São vistos como descompromissados com o referido ‘progresso’, cujos con-
tornos, embora sem nitidez na distribuição de seus benefícios para o conjunto heterogê-
neo da sociedade brasileira, é perseguido às tontas, pelos poucos caminhos que são ofer-
tados aos que teimam em crer na possibilidade de integração plena. Os que aceitam per-
corrê-los julgam que aqueles que rejeitam tais trajetos, bem como os que ficam à beira
do caminho, não são merecedores de uma vocalização política legítima, nas diversas
arenas públicas que ainda restam, em prol da luta e manutenção de seus direitos territo-
riais.
Conforme ponderou Leff (2003), que a racionalidade de economização do mundo
une, em prol do capital, as pontas dos processos de territorialização: num pólo, intensi-
fica os ritmos de produção e consumo ditados pela urbanização – incluindo as inversões
de capital no campo – e, noutro, assegura que as demais porções de terra, território e de
ecossistemas naturais mantenham-se relativamente intocados e reservados para o pro-

121
cesso de acumulação. Leff (2003) descarta a ingênua percepção de que haja um ‘dilema
de desenvolvimento’ entre a aceleração dos processos concentracionistas, no contexto
urbano-industrial e rural, e uma mudança de rota nos padrões atuais de produção e con-
sumo resultante de um atendimento aos apelos preservacionistas, conservacionistas e
afins. Tal dilema inexiste, diz o autor, o que se torna gradativamente observável quando,
sob o rótulo de sustentabilidade como ainda por reivindicação de direitos de propriedade
e, ainda, por alegados riscos ambientais, o capital limita/impede/cerceia o acesso ao
território a coletivos que produzem outro projeto de existência. A garantia da funciona-
lidade presente ou futura dos projetos de acumulação corresponde a obstruir a legalida-
de e/ou a legitimidade de outros projetos sociais orientados para a produção de um lu-
gar; isto é, corresponde a barrar/dissipar/inviabilizar aspirações coletivas não sintoniza-
das com a lógica econômica de contínua desorganização e reorganização de territórios.
O Estado, como parte constituinte da sociedade, traz para o seu interior essas ten-
sões e contradições das assimetrias socioespaciais: ambiguamente, enquanto avançou
lentamente em escassas práticas em torno da proteção de direitos dos grupos sociais
mais vulneráveis nas ditas disputas, como a do direito à moradia digna e a de proteção à
territorialidade dos grupos tradicionais, retrocedeu rapidamente ao instrumentalizar um
projeto de domínio territorial socialmente excludente. Entre avanços tímidos e retroces-
sos evidentes, os passos para trás tornam-se paulatinamente constatáveis, mais ainda
quando a máquina pública predispõem-se a afastar os que não se coadunam com a visão
neodesenvolvimentista que a domina.
Tendo em vista as considerações supra, esse estudo tenciona subsidiar uma análise
crítica acerca das controvérsias, tensões e restrições relacionadas a processos de territo-
rialização de grupos sociais vulnerabilizados em contextos socioambientais distintos.

DA REFORMA AGRÁRIA À AGROECOLOGIA

Na região de Ribeirão Preto/SP, a problemática recente da reforma agrária tem se


configurado desde meados da década de setenta nos interstícios do crescimento das a-
groindústrias, principalmente a sucroalcooleira, cuja vigorosa expansão oficialmente
subsidiada pelo Estado até os anos noventa, tem monopolizado a paisagem rural e con-
tribuído, substancialmente, para agravar os problemas socioambientais2.

122
Na virada do século, o projeto modernizante do setor sucroalcooleiro, calcado na
mecanização e informatização das lavouras e da indústria com vistas a torná-lo mais
competitivo no mercado de comodities, resultou em índices elevados de desemprego
estrutural. Desta vez, embalados pelos movimentos de ocupação de terras que eclodiam
em nível nacional e organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), os trabalhadores ocuparam terras que estavam sendo irregularmente utilizadas
por usinas da região e que, sistematicamente, descumpriam a legislação social e ambien-
tal. Assim nasceram os Assentamentos Sepé Tiarajú, fruto de ocupação da Fazenda San-
ta Clara, situada entre Serras Azul e Serrana/SP, que havia sido tomada pelo governo do
estado de São Paulo da Usina Nova União a título de pagamentos de tributos sociais, e o
Assentamento Mário Lago, resultado da desapropriação da Fazenda da Barra, em Ribei-
rão Preto/SP, que ao ser utilizada para o plantio de cana-de-açúcar e soja, descumpria os
preceitos constitucionais que tratam da função social da terra causando impactos ambi-
entais de grande monta por estar localizada, justamente, em importante área de recarga
do Aquífero Guarani. Em suma, o desrespeito ao preceito constitucional da função soci-
al da terra foi o que levou o MST a liderar as ocupações dessas fazendas; a falta de
perspectivas de trabalho está entre os principais motivos que levou os trabalhadores a
enfrentarem o poder econômico e político de um dos setores empresariais mais tradicio-
nais e organizados do país para reivindicar terra.
Quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciou o
processo de assentamento das famílias, primeiramente na Fazenda Santa Clara e depois
na Fazenda da Barra, instalou-se uma divergência entre os técnicos a respeito da viabili-
dade dos projetos, porque as áreas localizam-se numa região onde o valor imobiliário é
elevado, o mercado agropecuário é competitivo e os demandantes não tinham perfil de
pequenos produtores rurais. Um acordo foi possível em torno da opção pelo Projeto de
Desenvolvimento Sustentável (PDS), como modalidade de assentamento (BRASIL,
2000). As condições essenciais negociadas entre o INCRA e o MST foram: a concessão
do título de posse (não de propriedade) da terra, para evitar a venda e o arrendamento; o
desenvolvimento da produção cooperada e agroecológica para recuperar as áreas degra-
dadas pela monocultura da cana; a criação de entidade coletiva para receber os recursos
financeiros e realizar a prestação de contas com o Estado e a formação de um comitê
gestor do assentamento. Desta forma, os PDSs Sepé Tiarajú e Mário Lago tiveram na

123
questão ambiental um ponto de convergência entre os negociadores. Destaca-se que no
PDS Mário Lago foi destinado 35% da área para fins de reserva legal.
Dessa breve história sobre os processos de ocupação e regulamentação da posse das
áreas, o fato que importa é que esses assentamentos são tidos como espaços potenciais
para combinar a reprodução social de trabalhadores rurais com a preservação da nature-
za. Neles o associativismo e a agroecologia tem sido objeto de investimento das políti-
cas públicas e condição sine qua non para realizar a reforma agrária nesta região.
Na perspectiva do MST, a luta social pela reforma agrária é também uma luta pela
preservação de direitos sociais e da natureza, que procura reconstruir as suas identidades
sociais com base em valores coletivistas e protecionistas. A cooperação, como forma de
organizar e fortalecer econômica e politicamente os trabalhadores, e a agroecologia,
como forma de desenvolver um sistema produtivo não predatório, organizam as estraté-
gias de resistência política e cultural dos trabalhadores ao modelo de desenvolvimento
rural vigente. Desenvolvimento rural é, assim, definido como um processo que inclui os
trabalhadores na negociação permanente sobre as condições de vida no campo; o assen-
tamento não é só um lugar para produzir valores econômicos, mas é também um espaço
de convivência e participação política. Uma visão idealizada e utópica de comunidade
coexiste com a avaliação de que será necessário o esforço conjunto de várias gerações
para obter não somente uma conversão tecnológica, mas construir uma concepção de
agricultura que combine a preservação ambiental e a segurança alimentar com as habili-
dades profissionais e culturais dos trabalhadores. Do ponto de vista do Estado, adotar o
associativismo e a agroecologia como princípios organizativos poderia ser uma forma
de diminuir os custos da implantação dos projetos e ainda torná-los uma espécie de vi-
trines exemplares da implantação de políticas públicas sustentáveis.
Ocorre que, no processo organizativo desses assentamentos, está sendo imposto um
padrão de desenvolvimento regulado pelas normas técnicas de acesso aos parcos crédi-
tos destinados para a implantação dos projetos e pelo Termo de Ajustamento de Condu-
ta (TAC) que normatizam o cotidiano das pessoas, mas, não garantem as condições ob-
jetivas e intersubjetivas para que as imposições se cumpram. Resulta que os grupos fi-
cam atados e a sua condição de vulnerabilidade social está longe de ser alterada. Apesar
de representarem uma conquista política da luta de trabalhadores migrantes, com traje-
tórias ocupacionais marcadas pela exclusão-inclusão precárias, nesses assentamentos

124
“agroecológicos” observa-se o paradoxo da crescente precarização das condições de
vida dos que vivem numa região de agricultura altamente capitalizada e tecnificada.
De um lado, a cooperação espontânea que se expressa nas redes de solidariedade
criadas para favorecer a resistência e a permanência nos assentamentos tem possibilita-
do a reprodução das famílias e feito vislumbrar algumas potencialidades. No plano eco-
nômico, destaca-se que as experiências produtivas podem gerar recursos para os sujeitos
e as comunidades, mesmo que ainda sejam insuficientes para garantir uma condição de
vida estável e digna. De desempregados, pessoas em situação de rua, trabalhadores da
economia informal, entre outras trajetórias de vida identificáveis, os sujeitos passaram a
produzir o suficiente para garantir o autosustento, para cumprir os compromissos finan-
ceiros assumidos com o Estado e ainda para contribuir com a sustentação de outros a-
campamentos e assentamentos dando continuidade ao movimento social em favor da
reforma agrária. Ocorre uma intensa troca de experiências interpessoais e comunitárias
e, neste contexto, os sujeitos capacitam-se para analisar a dinâmica dos mercados, a
viabilidade econômica dos seus empreendimentos e exercitar a participação no controle
econômico-financeiro deles, entre outras questões. A vivência nos acampamen-
tos/assentamentos é uma espécie de escola de preparação para reconstruir a vida em
comunidade em novas bases, espaços de ressocialização onde se reaprende a criar e re-
criar um conjunto de normas que reorganiza a vida nas suas dimensões individual, fami-
liar e comunitária. É possível identificar ainda o desenvolvimento de práticas de aco-
lhimento e cooperação espontânea, que se expressam na partilha dos poucos recursos
existentes para a alimentação, de materiais para a construção de moradias, de remédios,
de roupas, de ferramentas e de sementes, na ajuda mútua praticada entre vizinhos e ami-
gos dispensando cuidados com as crianças, os jovens, os idosos e os portadores de ne-
cessidades especiais. No plano que abrange a relação da comunidade com o seu entorno,
criam-se novos espaços para a discussão e compreensão das relações sociais, de traba-
lho e políticas que se estabelecem entre a comunidade e os poderes instituídos em dife-
rentes esferas. O relacionamento com os órgãos do governo nas inúmeras negociações
empreendidas no processo de assentamento tem possibilitado aos participantes conhecer
o seu funcionamento no âmbito municipal, estadual e federal, perceber os meandros da
burocracia desde o momento de providenciar a documentação para ser assentado até o

125
de elaborar e executar projetos para receber os recursos para plantar, construir a casa,
comprar insumos e implementos, etc.
No entanto, entre os principais limites e desafios dessas experiências encontram-se
as dificuldades para garantir a participação ativa dos envolvidos. Predominam posturas
individualistas e passivas, herança cultural e ideológica de um processo de socialização
para o trabalho calcado na competição e na submissão. Há grande dificuldade para con-
ciliar, satisfatoriamente, os aspectos econômicos e político e educativos das experiên-
cias. As pessoas tendem a valorizar a cooperação apenas quando ela traz resultados eco-
nômicos; os resultados sociais e educativos não são contabilizados. A democratização
de estruturas e controles é outro obstáculo. As práticas cotidianas e a gestão ainda são
burocratizadas, a pequena produção arca com muitos tributos e a legislação é complexa
e implacável. Não há leis e condições especiais que favoreçam o desenvolvimento dos
pequenos produtores. Quando elas existem, geralmente, não são apresentadas como
direito socialmente adquirido, mas como moeda de troca no jogo de relações políticas e
institucionais. Os assentados, por força das suas circunstâncias e trajetórias de vida, não
estão preparados para lidar com a burocracia e não há recursos financeiros para pagar
profissionais especializados. A ação contábil é voluntária e a formação dos assentados
para lidar, adequadamente, com as exigências formais e burocráticas da gestão ocorre
por ensaio e erro o que, além dos prejuízos financeiros, causa outro problema relaciona-
do ao fato de que nem todos se dispõem a trabalhar com a administração e a contabili-
dade. Quem se dispõe é alvo de críticas porque “não pega na enxada”. Há dificuldades
para lidar com divisão entre trabalho manual e intelectual. Outra ordem de dificuldade
é a de enfrentar as pressões dos mercados e as questões relacionadas ao modo de fun-
cionamento do sistema financeiro. O mercado agropecuário é altamente competitivo e a
produção necessita de subsídios nem sempre existentes. Falta ainda acesso às técnicas
adequadas de produção agroecológica e gestão.
Em suma, no cotidiano dessas comunidades é possível observar as dificuldades rela-
cionadas à insuficiência de políticas fiscais, de crédito e de subsídios adequadas para a
produção e a comercialização dos pequenos produtores, à falta de experiência e de for-
mação cultural dos sujeitos para organizar o trabalho e a vida cotidiana, pautados por
outros valores que não os tradicionais e moldados em atitudes competitivas, autoritárias
e individualistas. Resulta que a situação de trabalho não era muito diferente das já vi-

126
venciadas. A precariedade dos vínculos, a incerteza e a pobreza da remuneração perma-
neciam, apenas mudavam de endereço: das periferias urbanas para o assentamento. Di-
ferença substancial entre um espaço e outro dizia respeito à certeza de endereço fixo e
de ter um mínimo de terra para produzir alimentos e manter uma economia de trocas.
No que se refere ao desenvolvimento do associativismo, esta situação interferia ne-
gativamente porque a existência de um mundo do trabalho paralelo, necessário para as
pessoas “se virarem” enquanto as formas associativas “não viravam”, ou seja, não for-
neciam condições mais dignas de sobrevivência, acabava: 1. consumindo o tempo e a
motivação necessária para investir no processo de formação do grupo, o que poderia
explicar, por exemplo, o esvaziamento das reuniões e o desinteresse (ou impossibilida-
de?) para organizar projetos coletivos; 2. gerando desconfiança, o que poderia explicar
as acusações de uns contra os outros sobre o funcionamento “por fora” do coletivo.
Quanto à agroecologia, falta de infraestrutura, de conhecimento e de orientação téc-
nica para lidar com a produção cuja base técnica deveria transitar para um modelo agro-
ecológico, as restrições impostas pelo TAC quanto ao uso de insumos químicos consti-
tuíam entraves para o desenvolvimento dos planos de produção. O conhecimento sobre
o assunto é novo e amplo e os problemas que surgem no cotidiano não são absolutamen-
te previsíveis e não necessariamente são os mesmos para todos os assentados que, mes-
mo para resolver os problemas comuns (pragas, doenças dos pequenos animais, a recu-
peração e adubação adequada do solo), encontravam dificuldades. Faltava infraestrutu-
ra, sobretudo a água, que sempre foi e continua sendo um grande problema nesses as-
sentamentos, sem a qual não se planta, não se criam animais e não se vive. Os trabalha-
dores queixavam-se de que não tinham autorização do INCRA para cavar poços artesia-
nos porque consta no TAC que se deve proteger o lençol freático. Revoltavam-se com
as medidas que consideravam arbitrárias, porque somente eram aplicadas para os pe-
quenos produtores, e questionavam sobre o fato de proibições deste tipo não serem tam-
bém aplicadas aos usineiros, por exemplo.
Os trabalhadores assentados possuíam certa experiência para trabalhar com agricul-
tura tradicional, mas não com a agricultura agroecológica, o que era fonte de conflitos
porque o TAC lhes impunha as regras, mas não as condições que o INCRA, responsável
pelo projeto de assentamento, deveria oferecer para que eles as cumprissem.

127
Eles querem tudo orgânico. E se não tem ninguém para dar orienta-
ção? Como essa lavoura vai? Se quer lavoura orgânica no lugar tem
que ter o técnico para orientar. Se não tem essa pessoa? Se disser:
‘planta do seu jeito’ eu garanto que as minhas coisas estavam diferen-
te.”(...) “Agroecologia? Como é que é? No papel sei que ela é muito
bonita, não é? Só que pelo que eu vejo é muito pouca. Como? Como
vou fazer agroecologia? Sem investimento? É plantar árvore, certo?
As primeiras árvores morreram, tudo o que não morreu a formiga co-
meu tudo, matar a formiga não pode.3

As falas revelam que os assentados não entendiam, exatamente, onde estavam as


diferenças e as semelhanças entre agroecologia e agricultura tradicional. Agroecologia
era algo vindo de fora, deles, e tanto era sinônimo de plantio de árvore quanto era uma
prática agrícola que não se realizava sem orientação técnica e investimento.
Se dificuldades para produzir foram mencionadas, o mesmo não ocorreu com a co-
mercialização que se realizava, individualmente organizada por meio de, basicamente,
quatro canais que eram utilizados de modo combinado ou não: os pontos de comerciali-
zação instalados em rodovias ou ruas movimentadas, a comercialização domiciliar (por-
ta em porta), o Programa de Abastecimento Alimentar (PAA) da Companhia Nacional
de Abastecimento (CONAB), e as redes de intermediários ou “atravessadores” internas
e as externas. Quanto ao PAA, a questão que se colocava é que ele era um esquema
muito protetor e paternal, que não preparava os trabalhadores para enfrentarem o mer-
cado real. Os preços eram tabelados e qualquer produto que se apresentasse era aceito, o
que dispensava a preocupação com a produtividade, qualidade e o custo de produção.
Os associados avaliavam que depois do “mal costume” adquirido pela participação no
PAA, seria difícil produzir para um mercado mais exigente porque a produção sempre
tinha regularidade e qualidade. Comercializar o que se produzia não era difícil porque o
volume de produção era pequeno e, por ser assim, também era difícil organizar um es-
quema formal e contratual porque nem sempre havia condições de cumprir. Assim, os
assentados “corriam atrás do próprio rabo”, como costumavam dizer, porque não produ-
ziam para comercializar e não comercializavam para poder produzir; não tinham condi-
ções para disputar mercados mais exigentes porque também não tinham garantia de re-
gularidade na produção e, pelo mesmo motivo, nem mesmo podiam atrever-se na cria-
ção de mercados populares alternativos. Os que eram favoráveis à criação de cooperati-

128
vas apostavam que elas viabilizariam a comercialização direta; os que eram contrários
temiam não conseguirem manter a regularidade na produção.
Portanto, no processo organizativo desses assentamentos, o Estado e o MP impõem
um padrão de desenvolvimento regulado pelas normas técnicas de acesso aos parcos
créditos destinados para a implantação dos projetos e pelos TAC que normatizam o co-
tidiano das pessoas, mas, não garantem as condições objetivas e intersubjetivas para que
as imposições se cumpram. Resulta que os grupos ficam atados e a sua condição de vul-
nerabilidade está longe de ser alterada.

DAS TENSÕES ESTRUTURAIS ÀS ESTRATÉGIAS PONTUAIS DE ACOBER-


TAMENTO DOS CONFLITOS

Dos inúmeros acontecimentos que ilustram a problemática das tensões e controvér-


sias entre distintas forças sociais e que se expressam no território podemos, ainda, des-
tacar três outras ocorrências, a saber: a primeira, referente ao processo de dissolução da
comunidade do Pinheirinho, no município de São José dos Campos/SP; a segunda, as
manobras da bancada ruralista no processo de alteração do conteúdo do Código Flores-
tal e a terceira, a paralisação e denúncias dos funcionários dos órgãos ambientais fede-
rais em torno de suas condições de trabalho e do enfraquecimento da gestão das Unida-
des de Conservação no contexto político da Conferência das Nações Unidas sobre De-
senvolvimento Sustentável, a Rio +20.
A expulsão sumária de, aproximadamente, seis mil moradores da comunidade do
Pinheirinho (número estimado de 1.600 famílias), seguida de destruição dos bens mó-
veis e pessoais, promovida pelas forças de segurança pública do estado de São Paulo e
da guarda municipal local, no mês de janeiro de 2012, foi marcada pela violência física,
moral e simbólica sobre as famílias bem como sobre o lugar, que entrelaça o mundo
privado e o público-comunitário. Mais do que uma providência pública visando à deso-
cupação de um imóvel de propriedade de outrem, retomando-o por ordem judicial, tra-
tou-se de um repentino, inesperado e desproporcional uso da força por agentes do Esta-
do para abordar indistintamente o conjunto dos moradores, repelindo-os com fúria do
seu espaço constituído por anos, destruindo ali o sistema de objetos, coletivos e particu-

129
lares, e tudo que nesse sistema conferia direitos de existência e referência identitária
àquela coletividade.
Dos detalhes desse processo de nulificação existencial dos empobrecidos, que cons-
tituíam a comunidade do Pinheirinho, Lemes (2012) destaca, dentre outros, os seguin-
tes:

Trabalhadores espancados, um baleado nas costas, dois óbitos de algu-


ma forma relacionados à reintegração de posse, pais barbarizados (tive-
ram armas apontadas para a cabeça) na frente dos filhos, animais mor-
tos a tiros. Tudo o que tinham – de moradia, móveis, geladeiras, com-
putadores, TV a brinquedos, livros, fotos, filmes, documentos – foi des-
truído. Gente (a maioria) que ficou sem passado, vive um presente mi-
serável (há pessoas morando na rua) e não sabe qual será o futuro (...)
No início de março, o relatório do elaborado pelo Conselho Estadual de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe/SP)
confirmou a chacina: 33 denúncias de agressões e matança de animais
de estimação. Infelizmente, as mortes não pararam aí (…) Essa empresa
[contratada pela prefeitura para cuidar dos animais sobreviventes] rece-
beu 239 animais de estimação: 212 cachorros, 22 gatos e 5 coelhos. Po-
rém, visita ao local feita pela ONG Cão Sem Dono, em 13 de março,
constatou que 114 haviam morrido em menos de um mês após serem
recolhidos. Ou seja, quase 50% foram a óbito!

Complementa o Sindicado dos Advogados de São Paulo (2012):

O Estado de São Paulo foi palco de mais uma operação típica de guer-
ra (...) tropas de choque, cavalaria, três helicópteros, muitas bombas
de gás lacrimogênio, disparos de balas de borracha (...) os resultados:
dezenas de pessoas feridas; centenas, incluindo crianças e idosos,
traumatizados com tamanha brutalidade; milhares de pessoas desabri-
gadas e privadas de seus bens materiais (...) e um terreno vazio cheio
de entulho do que antes eram lares (...) Vale mencionar que esta em
andamento uma iniciativa de regularização fundiária do local com o
intuito de, finalmente, assegurar, o direito fundamental à moradia (art.
6o, CF) das famílias que ali residiam.

O caso expressa como as práticas de interação do Estado com grupos socialmente


fragilizados, visando o cumprimento da lei – relativo à reintegração de posse do imóvel
ao proprietário, a massa falida da empresa Selecta – prescindiram da garantia da cidada-
nia e dignidade da pessoa humana dos moradores locais. E, ainda, na forma indigna de
abordagem dos moradores pelas forças de segurança pública solapou a confiança daque-
la coletividade num genuíno anseio público por uma sociedade redutora das desigualda-
130
des, que consta como objetivo do Estado Democrático de Direito, expresso constitucio-
nalmente. Juristas, articulados com o Sindicato dos Advogados de São Paulo, a Associ-
ação dos Moradores do Pinheirinho e outras entidades apresentaram denúncia à Comis-
são Interamericana de Direitos Humanos. E há, ainda, muitas controvérsias quanto à
decisão judicial que atropelou o processo de negociação da área para fins de regulariza-
ção do bairro, decisão esta que respaldou a operação de despejo e deu lastro às pífias
medidas de compensação – refeições, abrigo provisório, auxílio-moradia e promessas de
nova moradia – às famílias a quem o Estado alterou a condição social de morador para
desabrigado. As medidas compensatórias ínfimas adicionaram humilhação ao sofrimen-
to social do grupo desabrigado, o qual se encontra emocional e moralmente massacrado
pela súbita destituição da moradia e dos bens ali contidos. As relações travadas nesse
processo de destituição, no caso Pinheirinho, sinalizam como a norma aberta predispõe
o operador do direito a levar ao ápice, em sua deliberação, a rejeição social do meio
envolvente ao tipo particular de territorialidade que os empobrecidos reivindicam como
legítima numa sociedade desigual. As práticas restaurativas de direitos, ainda que meri-
tórias, demoram a surtir efeito se é chegam a lográ-lo.
Já no tocante à produção do texto do novo Código Florestal brasileiro, assistiu-se à
assimetria das forças sociais capazes de influenciar o processo e repudiar as práticas
produtivas ambientalmente predatórias. De um lado, e densamente representados no
Poder Legislativo federal, os grupos ruralistas exerceram pressões sobre o texto do pro-
jeto para amoldá-lo aos ditames do agronegócio que, no Brasil, atua sob a égide do ex-
pansionismo territorial a fim de apropriar-se e converter ao máximo o uso dos recursos
naturais – tais como os solos mais férteis, água doce abundante, luz solar prolongada,
clima ameno, dentre outros – em produtos e serviços cuja precificação converta-se em
vantagens comparativas no mercado global, o que o Estado brasileiro apoia explicita-
mente por se tratar de oportunidade para angariar divisas e equacionar o Balanço de
Pagamentos, especialmente, a conta de Transações Correntes. Analisando as votações
do Código Florestal, Vigna (2012) identifica um antagonismo não trivial entre o Execu-
tivo e a Bancada Ruralista – além dos doze anos de engavetamento da proposta, por
obstrução ruralista, seguido de uma tramitação célere que inviabilizou o debate com
diversos segmentos da sociedade civil – visto a última tender a rechaçar os laivos de
prudência ecológica que o primeiro se diz empenhado em solidificar. Conforme o autor:

131
É importante, agora, ressaltar as alterações mais polêmicas que os ru-
ralistas reintroduziram e aprovaram na proposta do Senado: a libera-
ção de créditos aos desmatadores; a dispensa à proteção de nascentes e
várzeas de rios e região com água na caatinga; a desobrigação por par-
te do pequeno proprietário de recompor as áreas desmatadas; a extin-
ção da punição para quem não regularizar a propriedade desmatada; e,
por fim, a delegação para os Estados da competência de definir as á-
reas que devem ter cobertura vegetal recomposta e quais atividades
agropecuárias estarão liberadas para exploração nas Áreas de Preser-
vação Permanente (APP). Enfim, aprovou tudo o que o governo e os
setores ambientalistas e agrários rejeitavam. (...) A diferença entre
ambos é que o governo é a institucionalização do poder nacional, en-
quanto a Bancada Ruralista é apenas um grupo parlamentar informal
suprapartidário de interesse dentro do Congresso Nacional. Essa dis-
tinção coloca em relevo não somente a natureza diversa entre ambos,
mas a seguinte indagação: como a representação maior da vontade po-
pular pode ser derrotada por um grupo de interesse privado? (...) Caso
[o Executivo] continue atuando de forma ambígua e deixando a passar
o tempo de decisões importantes, como foi o caso do Código Flores-
tal, continuará a fortalecer não só os ruralistas, mas um conservado-
rismo negativo que se opõem as políticas que induzam a formação de
sujeitos de direito.4

O veto a 12 artigos e as 32 alterações feitas, por Medida Provisória (MP), pela pre-
sidente da República, ao texto aprovado no Legislativo (PL 1.876/1999, transformado
na Lei nº 12.651 de 25 de maio de 2012 (BRASIL, 2012) e cujos doze anos de tramita-
ção podem ser acompanhados pela página da Câmara dos Deputados)5: faz parte desse
campo de lutas, e teve novos desdobramentos legais após a trégua havida para não gerar
constrangimentos no contexto da Conferência Rio+20.
Por fim, houve o emblemático caso da paralisação dos funcionários dos órgãos am-
bientais federais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM-
BIO), do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBA-
MA) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA) ocorrido em 21 de junho de 2012, que
se aproveitou exatamente do contexto da Conferência Rio+20 para explicitar as contra-
dições entre as posições governamentais nos fóruns multilaterais e as práticas no cotidi-
ano burocrático em torno da questão ambiental.
Semanas antes de deflagrar-se a referida paralisação, a entidade nacional de Associ-
ação dos Técnicos Ambientais dos Órgãos Federais (ASIBAMA), em seu V Congresso
Nacional, produziu uma Carta Aberta em que contradisse as alegadas preocupações do

132
Estado brasileiro relativo ao avanço de um dito desenvolvimento predatório. Segundo a
ASIBAMA (2012), os esforços técnicos que teriam sido cruciais para consolidar os li-
mites das Unidades de Conservação (UC) nos biomas mais sensíveis e, ainda, servido
para garantir os direitos dos povos tradicionais que ali produziram seus respectivos lu-
gares, foram sistematicamente desconsiderados pelo Executivo, o qual estaria dando
passagem para os capitais que tencionam fazer uso direto desses espaços, com práticas
socioambientalmente inamistosas, para garantir essa fase de acumulação.
Na referida Carta Aberta, a ASIBAMA reporta a predileção do Executivo federal
por um modelo econômico de mercantilização da natureza, o qual estaria na base da
estratégia de desestruturação dos órgãos de gestão ambiental, no nível federal; na perda
de atribuições de fiscalização para os demais níveis de governo; na redução de UC’s;
nas condições precárias de trabalho; e, por fim, nas brechas para o cometimento de cri-
mes ambientais devido ao contexto de alteração do Código Florestal.
Num documento intitulado “Desmonte do IBAMA, ICMBio e da Política Ambiental
Brasileira”, divulgado pela ASIBAMA, em 19 de junho de 2012, clarificou-se paulati-
namente as estratégias pela qual as UC’s teriam efetivamente servido como reserva de
valor para os capitais e que as diligentes práticas de uma parte do corpo técnico para
deixar tais territórios fora da zona de influência direta da acumulação teriam sido vãs.
Além do aval do Executivo na concessão à exploração desses domínios, vistos antes
como protegidos, teria esse permitido o desmantelamento das condições mínimas – ma-
teriais e humanas – de funcionamento dos órgãos ambientais para cumprir sua missão
institucional, em especial do ICMBio. O esvaziamento das condições operacionais stric-
tu desse órgão teria sido acompanhado de violência moral praticada contra os servidores
públicos nele lotados e que atuam no terreno, lhes impondo o exercício do trabalho nu-
ma rotina degradante em termos físicos, psicológicos e sociais:

Nós, servidores federais dos órgãos ambientais, organizados em nos-


sas organizações de classe, capitaneadas pela Asibama Nacional,
membros da Carreira de Especialista em Meio Ambiente, vemos dia-
a-dia nossas instituições morrerem aos poucos, e igualmente nossas
condições de trabalho, salários, dignidade. Nosso salário é dos últi-
mos da fila do executivo, como aliás sempre é o orçamento dos órgãos
ambientais neste país, também, dos últimos da fila. Não temos nenhum
apoio ao exercer atividades de alta periculosidade, risco, morar em
regiões remotas sem nenhuma infraestrutura, nem adicionais de quali-
ficação (a pós-graduação não vale nenhum centavo), nem nada. Só so-

133
fremos muito é sobrecarga de trabalho, desvios de função, e, sob cer-
tas chefias locais, assédio moral, perseguição e enorme tristeza em
ver nossos órgãos e a própria gestão e legislação ambiental pública se
esfacelarem a olhos vistos (...)
Foram fechados pela presidência do IBAMA nada menos do que 87
unidades em todo o país, sendo a Amazônia campeã deste golpe, ten-
do 38 fechados (44% do total) (...) Sendo áreas gigantescas de frontei-
ra internacional, alta ocorrência de crimes ambientais e alta biodiver-
sidade a ser conservada, abandonadas à míngua (...) Os servidores
destas unidades fechadas são obrigados a ser removidos para as capi-
tais em 10 dias, e têm sofrido danos imensos e irrecuperáveis às suas
vidas por este fato - imaginem aqueles que residem em interiores lon-
gínquos das capitais, com famílias e todo o vínculo local.6

Os casos supramencionados ilustram as distintas capacidades dos referidos atores de


clamarem por direitos constituídos, influenciarem a mudança do conteúdo do arcabouço
legal e exercerem práticas que a concretizem bem como apontam para alguns dos dife-
rentes mecanismos através do quais, hodiernamente, os agentes do Estado atuam para
reiterar as desigualdades sociais no acesso excludente a terra e aos recursos ali contidos
ou contíguos. Tais mecanismos incluem desde as violências praticadas contra as comu-
nidades em situação de desvantagem social àquela que atinge os quadros públicos com-
prometidos com a erradicação da pobreza e respeito à diversidade socioambiental. Uns,
assistem ao desmantelamento de suas moradias e comunidades; outros, ao desmantela-
mento de seu ambiente de trabalho. Ambos, contudo, lidam com as agruras do desequi-
líbrio que o capital ativa e reitera, por suas mãos ou pelo veio estatal, no atendimento às
suas reivindicações.

ENTRE FRONTEIRAS E SEM LUGARES

Em maio de 2012, a Superintendência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI/AC)


expulsou de suas dependências - via mandato judicial de reintegração de posse - duas
centenas de mulheres, crianças e homens representantes de seis povos: Nawa, Nukiny,
Manchinery, Jaminawa, Apolima–Arara, Huni Kui. Suas mobilizações iniciaram no
“Abril Indígena”, tendo como principais reivindicações a demarcação de vinte e uma de
suas terras, educação com qualidade e saúde humanizada. Sobreviventes do genocídio
colonial e encurralados pela espoliação capitalista, agora na sua versão “verde”, acredi-
taram que seriam acolhidos pelo Estado nas dependências da FUNAI e as vozes das

134
aldeias seriam escutadas pela sociedade. Enganaram-se. Ficaram indignados com a ex-
pulsão do local que acreditavam estar voltado para a sua proteção.
No caso do povo Nawa, foi a segunda vez, em menos de uma década, que experi-
mentaram o gosto amargo da expulsão pelo Estado. A primeira ocorreu no processo de
desocupação do Parque Nacional da Serra do Divisor, quando foram obrigados a sair de
seus territórios ancestrais para assegurar a “proteção integral” daquela unidade de con-
servação de uso indireto. Contudo, em junho de 2012, a Petrobrás já se encontrava na-
quele Parque fazendo prospecção de petróleo e gás e, ao que tudo indica, a exploração
será iniciada em breve. Os demais representantes de povos que ocuparam a FUNAI, em
sua maioria, enfrentam as pressões produzidas pela concentração da propriedade priva-
da da terra via expansão da pecuária extensiva de corte e exploração madeireira sob os
famigerados “Planos de Manejo Florestal Sustentável”.
Acertou Mariátegui (2005) quando propôs, nos “7 Ensayos de Interpretación de la
Realidad Peruana”, que:

La suposición de que el problema indígena es un problema étnico, se


nutre del más envejecido repertorio de ideas imperialistas. El concep-
to de las razas inferiores sirvió al Occidente blanco para su obra de
expansión y conquista (…) La tendencia a considerar el problema
indígena como un problema moral, encarna una concepción liberal,
humanitaria, ochocentista, iluminista, que en el orden político de Oc-
cidente anima y motiva las "ligas de los Derechos del Hombre"(…) El
nuevo planteamiento consiste en buscar el problema indígena en el
problema de la tierra.7

Compreender o problema indígena intrinsecamente associado ao problema da terra


continua uma proposição imprescindível para mais além da realidade peruana. Caberia,
contudo, acrescentar a dimensão do território como elemento importante de reflexão. A
re-territorialização do capital, pautada pela matriz do “desenvolvimento sustentável”
difundida pelo Banco Mundial (PAULA, 2005), têm gerado – via financeirização dos
bens naturais – outra ordem de espoliação dos povos que lograram obter o reconheci-
mento formal de seus domínios territoriais.
Dito de outra maneira, naquelas faixas territoriais – como a formada pela tríplice
fronteira trinacional Brasil/Bolívia/Peru – em que a reconfiguração territorial orientada

135
pela matriz do “desenvolvimento sustentável” se processou de forma mais profunda, os
conflitos assumem o duplo caráter, de conflitos por terra/território.
Numa reunião entre representantes de trabalhadores rurais sem-terra e a Comissão
Pastoral da Terra na Fazenda Campo Alegre, situada às margens da BR 317, no municí-
pio de Capixaba-Acre, os depoimentos apresentados pelos trabalhadores dão conta de
que sabiam que a área havia sido desapropriada pelo INCRA para fins de assentamento,
razão pela qual decidiram ocupá-la para garantir o sustento de suas famílias. Durante
oito meses de ocupação, as famílias construíram pequenas moradas e roças, devolveram
uma vida a uma porção de terras mortificadas, outrora, pelo latifúndio, via pecuária ex-
tensiva de corte. Todavia, passaram a ser pressionados e ameaçados pelo INCRA para
desocuparem o lugar que representa o re-começo de suas vidas. “Aquelas terras”, in-
formaram para eles as autoridades do INCRA, “estão destinadas ao assentamento dos
brasileiros removidos da faixa de fronteiras no departamento de Pando - Bolívia, vocês
não poderão permanecer nelas”. “Lá tem alguns invasores, estão instalados, e o INCRA
vai ter que tirá-los de lá”, confirma o superintendente do INCRA/AC8.
Tal como no caso dos povos indígenas expulsos das dependências da FUNAI, esses
trabalhadores sem terra mostraram extrema indignação diante da truculência dos agentes
do Estado. Diziam eles que “não entendiam por que os brasileiros que estavam na Bolí-
via poderiam ficar naquelas terras e eles, que viviam no Brasil, não tinham esse direito”.
Em realidade, uma parte das famílias de camponeses, que estão de regresso da Bolívia,
faz parte de um contingente de camponeses expropriados durante a expansão da frontei-
ra agropecuária sob o contexto das políticas desenvolvimentistas implementadas pela
ditadura militar. Eles atravessaram a fronteira em busca de um lugar que assegurasse a
possibilidade de continuarem reproduzindo-se socialmente como camponeses. Trata-se,
portanto, da disputa de um lugar para viver entre expropriados em processos distintos,
porém, conectados pela mesma lógica.
O lugar de encontro/desencontro entre esses expropriados, a Fazenda Campo Ale-
gre, figura no primeiro momento como parte da causa que produziu a expropriação dos
que imigraram para Bolívia e no segundo, como parte da solução para os retornados.
Poder-se-ia até pensar em um final feliz no estilo da indústria cinematográfica hollywo-
odiana. Todavia, tanto os retornados quanto os demais sem-terra que porventura logrem
permanecer nela encontrarão uma parte substancial da fazenda com suas terras degradas

136
pela pecuária extensiva de corte. Além disso, se defrontarão com um modelo de expan-
são do agronegócio que tende a reproduzir em escala ampliada a re-concentração da
propriedade fundiária, a produção contínua de mais trabalhadores rurais sem-terra e a
intensificação da degradação ambiental.
Conforme Teixeira (2011), no ano de 2010, 583 grandes propriedades (imóveis com
área superior a mil ha) detinham 6,2 milhões de ha, enquanto 23 mil e quinhentos mini-
fúndios e pequenas propriedades (imóveis com área inferior ou igual a um módulo rural,
que no Acre varia de 50 a 100 ha) somavam apenas 1,4 milhões de ha. Em apenas sete
anos, a grande propriedade teve um incremento de mais de 100% na sua área total, pos-
to que, em 2003, possuía ‘apenas’ 2 milhões e oitocentos mil hectares. Enquanto nas
terras de domínio privado reitera-se a concentração da grande propriedade fundiária, a
expansão do agronegócio da pecuária extensiva de corte e a exploração madeireira, nas
denominadas UC´s de uso direto, povos indígenas e camponeses são cada vez mais “a-
cuados” pelo capital, seja na forma de intensificação da exploração extrativista de pro-
dutos, como a madeira, ou via financeirização da natureza através de Pagamentos por
Serviços Ambientais9. Neste caso, permanecem na terra, mas perdem gradativamente o
controle sobre o território.

PARA CONCLUIR

Nunca é demais retomar a consideração de que, no plano prático ou discursivo, o


tema dos direitos territoriais tende a ser crescentemente fonte de divergências; ou, mais
propriamente, ser objeto de tensões permanentes.
A teoria econômica clássica enfatiza que a terra, em termos strictu, é fator de mono-
pólio, isto é, fator não reprodutível pelo capital o qual, contudo, depende em grande
medida da apropriação plena desse recurso para, então, sobre ele, estabelecer relações
sociais de trabalho que se converterão nas múltiplas formas da mercadoria e da acumu-
lação. A contradição fundamental do capital está na tentativa de levar ao paroxismo o
desenvolvimento das forças produtivas, associando a redução do capital variável em
relação ao capital constante ao mesmo tempo em que acelera a circulação da mercadori-
a, numa autoexpansão que, subtraindo parcelas crescentes do valor do trabalho, corro-
endo os próprios postos de trabalho, comprometendo a capacidade de crédito dos que se

137
provém e ofertam sua força de trabalho através do mercado e avançando resolutamente
sobre territórios e recursos naturais que circunstancialmente lhes garanta uma renda
diferencial, leva ao esgotamento econômico e a crises crescentemente indisfarçáveis.
Conforme se encontra no capítulo 15, do Vol. III, do Capital (MARX, 1983, p. 189) “A
verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital”. Mais do que a terra e
o território, aos lugares não se pode impor um reducionismo à lógica capitalista a não
ser sob o preço de sua irremediável destruição.
No contexto brasileiro, não há como evitar as tensões entre os poucos que conse-
guem estabelecer sua territorialidade plena – entremeando a plenitude do uso privado,
que mescla propriedade e produção, com as favorabilidades ensejadas pelas conversões
de recursos públicos ali depositados – e os muitos que necessitam da explicitação de um
padrão normativo favorável para a garantia os seus lugares, mas fracassam em garanti-
lo. Trata-se de tensões que, apesar de muitas vezes se manifestarem através de eventos
que aparentam pontuais, sinalizam a persistência de oposições estruturais e históricas,
inerentes tanto à natureza socioeconômica da disputa quanto à natureza sociopolítica do
desenho e do cotidiano das instituições públicas nacionais, que historicamente dão va-
zão aos reclames da parte mais forte. O patrimonialismo se mantém como modus ope-
randi na máquina pública, o que se reflete na intimidação, fechamento e redução dos
canais de controle social.
O ambiente político amalgamado em parâmetros pretensamente democráticos é o
que traz para dentro das instituições públicas, particularmente, do Poder Executivo e do
Poder Legislativo, nos três níveis de governo, a representação das forças sociais com o
mesmo desbalanceamento que há na sociedade civil. Replica-se, por assim dizer, através
de tais forças e em seu poder deliberativo, não somente as controvérsias quanto ao direi-
to a terra, mas também aquelas referentes à finalidade social e produtiva bem como rela-
tivo às transformações efetivas na organização do conteúdo do espaço. Tensões, contro-
vérsias e restrições configuram, portanto, elementos integrados do plano sociopolítico,
socioeconômico e socioambiental nacional que explicitam sua especificidade contextual
diante as contradições mais gerais do modo de produção adotado, o que aponta para
algo que vai para além dos conflitos em torno das incoerências retóricas entre um mode-
lo de desenvolvimento dito sustentável ou neodesenvolvimentista.

138
Uma das mais visíveis regularidades na dinâmica socioespacial nacional contempo-
rânea é a que se refere à assimetria presente na força política e econômica dos sujeitos
em embate, seja em contextos urbanos, rurais ou em UC´s.
Em assentamentos rurais, como os do Sepé Tiarajú e Mário Lago, em Ribeirão Pre-
to/SP, os trabalhadores assentados optavam por trabalhar com projetos individuais cujo
retorno econômico fosse de curtíssimo prazo. A falta de capital, de infraestrutura e de
orientação técnica aliada às restrições impostas pelo TAC no que se refere à exploração
dos recursos da natureza condicionavam um jeito de funcionar que levava os assentados
a “dar uns pulos” para sobreviver. Descapitalizados e acostumados com o gratuito, eles
não se reconheciam na agroecologia e o associativismo, que para eles tinham um forte
sentido assistencial e de ferramenta meramente econômica. Sentido de coisa alheia, do
outro, de não pertencimento.
Nos casos da desocupação no bairro Pinheirinho, da redução das UC’s e da aviltan-
tes condições de trabalho dos técnicos ambientais dos órgãos federais, mostra-se que os
horizontes da luta política em torno do direito universal à moradia e à terra – e, em ter-
mos identitários, do direito ao lugar – bem como o que concerne à dignidade ao traba-
lhador, estão enevoados pela reiteração cotidiana da racionalidade que confere prece-
dência ao ambiente de negócios.
No caso havido no estado do Acre – propagandeado como a unidade da federação
que representa um exemplo de “desenvolvimento sustentável”, a ser replicado em outras
partes da Amazônia e do mundo10 – cria-se o mito do “paraíso” e ali, de forma incon-
gruente, parece não haver lugares para uma parcela dos povos indígenas e comunidades
camponesas que seguem submetidos à brutal espoliação capitalista, agora na sua versão
verde.
O reconhecimento mútuo entre os atores mutilados em sua cidadania – e que, ora
pulverizados, se encontram à deriva, nas margens, nas beiradas do progresso – será a-
quilo que, eventualmente, ampliará sua vocalização que, de fundo, reporta à mesma
questão: reivindica a justiça social, torná-la retumbante, luminosa, acima das nuvens
que ainda pairam nesses tempos diferentes, mas não menos sombrios.

(Apoio: CAPES/MEC, Programa PROCAD, processo 080/2007. A versão preliminar do texto


foi apresentada no GT-16 ”Direito ambiental e ordenamento territorial” no VI Encontro Nacio-

139
nal da ANPPAS, ocorrido em Belém do Pará em setembro de 2012. Apoio FAPESP processo
12/02919-9. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são
de responsabilidade do autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CA-
PES.)

NOTAS

1
Disponível em: http://racismoambiental.net.br/2012/09/praticas-antropologicas-no-tempo-da-
recodificacao-palestra-de-alfredo-wagner/
2
Os primeiros assentamentos rurais foram criados em meio às lutas sociais dos boias-frias pela regula-
mentação do trabalho no corte da cana-de-açúcar, tais como as greves de Guariba (ocorrida no ano de
1984) e Leme (ocorrida no ano de 1986), que tiveram ampla repercussão nacional. Tais movimentos
resultaram no fortalecimento de uma estrutura sindical específica que passou a defender os interesses
políticos dos assalariados rurais não apenas pela via da equiparação dos direitos trabalhistas vigentes aos
trabalhadores urbanos, mas também para atender aos anseios da luta pela terra que nunca deixou de estar
na pauta de reivindicação dos trabalhadores rurais. Assim, foram criados os assentamentos oriundos de
ocupação de usina falimentar, como é o caso do Assentamento Bela Vista do Chibarro realizado nas terras
da Usina Tamoio em Araraquara-SP, e de terras públicas, como é o caso do Assentamento Horto Guarani,
situado em Pradópolis-SP.
3
grifos nossos
4
VIGNA, 2012, p. 5-8.
5
Disponível em: www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17338.
6
ASIBAMA, 2012.
7
MARIÁTEGUI, 2005, p. 40-43-44.
8
Disponível em: http://www.jornalatribuna.com.br/Mostrar.jsp?id=24645.
9
Veja Boletim Mensal do Movimento Mundial pelas Florestas (WRM), N° 175, fev de 2012
http://www.wrm.org.uy, dedicado ao tema serviços ambientais).
10
Assim o definiu Mauro Armelin (Coordenador do Programa Amazônia –WWF/Brasil) em entrevista
concedida a emissora de rádio do governo do Acre “Aldeia FM 96,9” no dia 31/03/2012 às 20:30h. De
acordo com ele, o WWF apresentaria na “Rio+20” o Acre como exemplo de economia verde a ser segui-
do no mundo.

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140
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dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de
15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº
2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: <
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141
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142
PARTE 2

BANCO MUNDIAL E GOVERNANÇA: DESAFIOS PARA A


GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS EM CONTEXTOS
SOCIOAMBIENTAIS CRÍTICOS

143
FABRINA FURTADO E GABRIEL STRAUTMAN

AMBIENTALIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS: DA


CRÍTICA REFORMISTA À CRÍTICA CONTESTATÁRIA

INTRODUÇÃO

O ano de 2009 foi um marco para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômi-


co e Social (BNDES): pela primeira vez a instituição ultrapassou a casa dos R$100 bi-
lhões em desembolsos, alcançando a marca de R$137,4 bilhões1. Em novembro deste
mesmo ano o Rio de Janeiro, cidade que abriga a sede do banco, foi também o local do I
Encontro de Populações Sul-Americanas Atingidas por Projetos Financiados pelo BN-
DES.
Ao longo da última década a economia brasileira vem experimentando um virtuoso
ciclo de expansão, caracterizado por consecutivas taxas de crescimento econômico. Di-
ficilmente isso teria sido possível sem a existência do BNDES, instituição financeira
integralmente pública, fundada em 1952, e principal instrumento para a implementação
da política industrial, de infraestrutura e de comércio exterior brasileiras. O BNDES é a
principal, senão a única, fonte de financiamento de longo prazo no Brasil. Para que con-
seguisse cumprir o papel de garantidor de recursos suficientemente capazes de sustentar
a expansão da economia brasileira, o Banco teve seu capital multiplicado por oito em
apenas uma década. O BNDES, no entanto, não se limita a ter um papel de mero finan-
ciador de projetos, pois o seu profundo acúmulo de conhecimento a respeito das caracte-
rísticas dos principais setores da economia brasileira lhe atribui uma enorme capacidade
de planejamento econômico.
Não por outra razão as centenas de representantes de comunidades atingidas por
projetos financiados pelo BNDES no Brasil e na América do Sul (região de crescente
atuação do banco nos últimos anos) se encontraram no Rio de Janeiro. Após três dias de
intensos debates e de um rico processo de intercâmbio de experiências de resistência e
contestação aos grandes projetos de infraestrutura e empresas transnacionais, os partici-
pantes transmitiram uma importante mensagem à opinião pública, qual seja, a de que o
144
BNDES, através dos projetos que financia e ajuda a conceber, é também responsável
pelos irreversíveis impactos causados às comunidades e ao meio ambiente.
A escalada dos conflitos sociais e ambientais em contextos de expansão da econo-
mia é algo que tem sido cada vez mais comum, especialmente nos países do chamado
mundo em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a responsabilização de instituições fi-
nanceiras, a exemplo do que agora acontece com o BNDES, não é algo inédito, visto
que pelo menos desde a década de 1980 instituições como o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), são alvo de críticas pelo seu envolvimento
na formulação de políticas e projetos polêmicos. Em resposta, o Banco Mundial foi o
primeiro a adotar uma política de salvaguardas, passando assim a exigir de seus “clien-
tes”, como são chamados os países, que os impactos socioambientais dos projetos fos-
sem considerados desde a fase de concepção.
Este pioneirismo do Banco Mundial lhe rendeu a posição de modelo a ser seguido
pelas demais instituições financeiras e o papel de porta voz do conceito de desenvolvi-
mento sustentável, que seria capaz de equilibrar o crescimento econômico e a geração
de trabalho e renda com a proteção ao meio ambiente. Entretanto, quase três décadas
após a aplicação das salvaguardas, diferentes segmentos críticos ao caráter da atuação
do Banco Mundial continuam a questionar a suposta responsabilidade ambiental do
banco. De um lado, grupos que acreditam na importância das salvaguardas defendem o
seu aprimoramento, de outro, grupos que veem na sua criação mais um instrumento de
retórica das instituições financeiras.
Considerando o acima exposto, a proposta desse texto é resgatar o debate sobre a
adoção de salvaguardas socioambientais por instituições financeiras, mapeando as dife-
rentes vertentes existentes neste debate. O objetivo central será, pois, o de identificar
elementos para subsidiar o debate sobre a recém anunciada Política Socioambiental do
BNDES, cuja fragilidade e limitação têm sido objeto de análises e questionamentos da
própria Rede Brasil. A proposta do presente artigo se torna ainda mais relevante consi-
derando que a referida Política Socioambiental do Banco se constitui como contraparti-
da do Empréstimo Programático de Política para o Desenvolvimento em Gestão Ambi-
ental Sustentável Brasileira (SEM DPL, sigla em inglês) do Banco Mundial, no valor de
US$ 1,3 bilhão – em que a política ambiental do Banco Mundial serve de referência
para o BNDES.

145
Cabe destacar que o BNDES, um banco público brasileiro, já encontra na legislação
federal os parâmetros para a sua política ambiental. No ordenamento jurídico brasileiro,
existem dispositivos legais que obrigam as instituições bancárias a se preocuparem com
aspectos ambientais em suas operações de crédito, como a lei que instituiu a Política
Nacional do Meio Ambiente, em 1981, e a Lei de Crimes Ambientais, de 1998 (RE-
PÓRTER BRASIL, 2011). Na prática, no processo de aprovação de novos financiamen-
tos, o Banco se limita a verificar se as diretrizes ambientais definidas pela legislação,
tais como consulta prévia, avaliação de impacto ambiental entre outras, foram cumpri-
das ou não pelos órgãos ambientais competentes. Para além disso, com resposta às pres-
sões realizadas pela sociedade civil, o BNDES adotou em 2008 um conjunto de cláusu-
las sociais, que preveem a suspensão antecipada de financiamentos que produzam viola-
ções de direitos humano, mas que só se aplica em condenações de última instancia, e em
2009 o portal da transparência, através do qual começou a divulgar seus dados opera-
cionais, ainda que muito insuficientes.
O artigo será estruturado da seguinte forma. Apresentará primeiramente o debate
sobre salvaguardas, seu histórico e alguns conceitos importantes. Na segunda será apre-
sentada uma reflexão sobre a crítica reformista, questões como transparência, mecanis-
mos de prestação de conta e participação. A terceira seção deste artigo apresenta os ar-
gumentos do que aqui chamamos de crítica contestatória, aproveitando o debate sobre
salvaguardas para realizar uma análise mais estrutural sobre o processo de ambientali-
zação das Instituições Financeiras Multilaterais (IFM), seus mecanismos de participação
e de investigação independente e a relação com a crítica. Acreditamos não ser possível
debater salvaguardas sem passar por essas questões. A última parte apresentará algumas
considerações finais e questões a serem aprofundadas.
A construção deste artigo é resultado de mais de dez anos de experiência dos autores
no monitoramento de IFM, incluindo o papel dos dois como secretário e secretária exe-
cutivos da Rede Brasil sobre IFM, período durante o qual participaram de consultas e
reuniões do Banco Mundial, BID e BNDES, atividades de formação e mobilização de
populações atingidas por estas instituições e processos de monitoramento, avaliação e
denúncias de alguns dos casos aqui citados. O trabalho contou ainda com um esforço de
pesquisa em fontes secundárias para construir os elementos teóricos fundamentais ao
debate sobre salvaguardas, participação e o papel da crítica.

146
O DEBATE SOBRE SALVAGUARDAS: SALVAGUARDANDO O QUE?

A palavra salvaguarda significa, de acordo com o dicionário Houaiss da língua por-


tuguesa, proteção e garantia dadas por uma autoridade ou instituição; o que serve de
defesa, de amparo; ou ainda privilégio ou vantagem de certa classe ou espécie. Quando
o que está em discussão é aplicação de salvaguardas por uma instituição financeira res-
ponsável pelo financiamento de projetos, estamos falando de um conjunto de políticas e
diretrizes que são aplicadas sobre estes projetos de modo a se garantir que os mesmos
“não provoquem dano algum"2.
Subjacente ao conceito de salvaguardas está a noção de que os tomadores de recur-
sos do banco devem ser capazes de se antecipar aos efeitos considerados indesejáveis
nos projetos, procurando evita-los quando possível e mitiga-los quando necessário. Com
efeito, técnicas como a avaliação prévia de impactos ambientais, consulta prévia às co-
munidades, planos de mitigação de impactos, além de políticas específicas para projetos
que envolvam reassentamento involuntário de populações ou impactos sobre comunida-
des indígenas começaram a ser aplicadas. Em alguns casos, a política de salvaguardas
de um banco pode também ser aplicada para impedir o envolvimento do mesmo em
determinados tipo de projetos. A política de salvaguardas do Banco Mundial, por exem-
plo, veda a participação da instituição em projetos envolvendo a conversão significativa
de habitats naturais ou operações com madeireiras comerciais.
O Banco Mundial foi a primeira entre as IFM a formalmente adotar uma política de
salvaguardas (ver TAB 1). Durante a década de 1980 o banco foi alvo de duras críticas
de organizações da sociedade civil por sua omissão e negligência em relação aos danos
sociais e ambientais causados pelos projetos financiados. Pressionado, o Banco acabaria
adotando uma política de salvaguardas socioambientais, sendo posteriormente seguido
por outras agências de desenvolvimento, como o BID e o Banco de Desenvolvimento
Asiático (BDA).
Por sua vez, a Corporação Financeira Internacional (IFC, do original em inglês),
agencia ligada ao Grupo Banco Mundial que financia exclusivamente o setor privado,
possui uma política de salvaguardas específica. Também como resultado da pressão por
parte de organizações da sociedade civil, em 2006 o IFC adotou uma série de Políticas e

147
Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental (ver TAB 2) para orien-
tar seus clientes na gestão de riscos sociais e ambientais em setores como os de petró-
leo, gás e mineração. A política do IFC se diferencia das demais salvaguardas do Banco
Mundial por ser “baseada em resultados”. Assim, seus clientes deverão seguir uma série
de princípios de sustentabilidade mais amplamente definidos ao invés de objetivos es-
pecíficos. Ao proceder dessa maneira, o IFC dá a seus clientes maior flexibilidade, para
escolher que ferramentas utilizar para alcançar estes resultados esperados.
No entanto, a adoção de salvaguardas bem como demais instrumentos de prestação
de contas e democratização não livraram as IFM das críticas. Com o tempo, percebeu-se
que as normas e procedimentos concebidos em resposta às pressões da sociedade civil
como condições essenciais para o financiamento de projetos, terminaram não sendo
adotadas – ou satisfatoriamente adotadas – pelos próprios bancos. A partir daqui, identi-
ficam-se pelo menos duas diferentes interpretações para os problemas de implementa-
ção das salvaguardas entre os grupos críticos das Instituições Financeiras Multilaterais:
o primeiro deles é o dos reformistas, que acreditam nas salvaguardas como instrumento
de reforma do banco e atribuem à falhas operacionais os problemas na implementação;
enquanto isso, os contestatórios argumentam que as salvaguardas são instrumento de
retórica, sendo portanto muito mais um discurso do que necessariamente uma prática.
Para este grupo, o objetivo final das salvaguardas é a e neutralização da crítica ao mode-
lo de desenvolvimento do qual os bancos são um instrumento central.

A CRÍTICA REFORMISTA

Os reformistas consideram as salvaguardas um eficiente instrumento para a promo-


ção de uma performance ambientalmente responsável pelos bancos, mas desde que apli-
cadas adequadamente. Neste sentido, a crítica reformista mira na falta crônica de trans-
parência, canais de participação direta e de mecanismos eficientes de prestação de con-
tas e responsabilização como principais desafios a serem superados pelos bancos multi-
laterais.

TRANSPARÊNCIA

148
A falta de transparência, por exemplo, impede que se saiba como os projetos são
avaliados, seja do ponto de vista econômico-financeiro, mas também do ponto de vista
socioambiental. Logo, sem transparência não há como saber de que forma as salvaguar-
das são efetivamente implementadas nos projetos financiados pelas instituições finan-
ceiras. Embora a maioria das Instituições Financeiras Multilaterais tenham implementa-
do políticas de acesso a informação (ou disclosure) ao longo dos últimos anos, estas
ainda deixam muito a desejar. Uma das críticas que se faz aos relatórios de acompa-
nhamento de projetos divulgados pelo Banco Mundial, por exemplo, é de que estes ape-
nas apresentam dados agregados, que impedem uma visualização mais precisa sobre os
impactos que estão sendo efetivamente provocados pelos projetos. Além disso, a maio-
ria destes relatórios são resultados das chamadas “inspeções de escritório”, ou seja, não
adotam como fonte primária de informação o contato direto com as comunidades (FOX,
2001 e HERBERTSON, 2010).
O caso do IFC é ainda mais grave: o banco é conhecido pela sua prática de imple-
mentar e monitorar projetos de portas fechadas e por deixar por conta das empresas be-
neficiárias de seus empréstimos a comprovação dos resultados definidos pelos seus
“Padrões de Performance”. Isso é particularmente problemático nas operações de finan-
ciamento que o IFC realiza através de intermediários financeiros, pois não há meios de
se certificar se estas instituições aplicam as diretrizes de sustentabilidade exigidas pelo
IFC.

PRESTAÇÃO DE CONTAS: O CASO DO PAINEL DE INSPEÇÃO DO BANCO


MUNDIAL E MECANISMO DE INVESTIGAÇÃO INDEPENDENTE DO BID

Para os críticos reformistas, a existência de canais de prestação de contas e accoun-


tability complementares à política de transparência, é também necessária para uma apli-
cação eficiente das salvaguardas. Neste sentido, mecanismos de mediação de conflitos
como o Painel de Inspeção do Banco Mundial surgem servindo como via para que os
interessados nos projetos e suas comunidades identifiquem e resolvam problemas que se
manifestam quando deixaram de ser observadas salvaguardas sociais e ambientais do
banco (BANCO MUNDIAL, 2009).

149
A criação do Painel de Inspeção pelo Banco Mundial em 1993 foi vista como uma
das principais vitórias da sociedade civil internacional relativas às políticas das IFM,
após intensa mobilização e pressão de redes e ONGs e movimentos sociais de vários
países. A exemplo do que aconteceu com as salvaguardas, outras IFM seguiram a inicia-
tiva do Banco Mundial, criando mecanismos semelhantes ao Painel de Inspeção. O BID,
por exemplo, em 1994 criou o Mecanismo de Investigação Independente (MII) que em
2010 passou a se chamar Mecanismo Independente de Consulta e de Investigação (MI-
CI). Em 1999, o IFC e a Agencia de Garantia de Investimentos Multilaterais (AGIM),
ambas do Grupo Banco Mundial, também criaram o Escritório do Ombudsman para
Verificação da Obediência às Regras (Office of the Compliance Advisor Ombudsman –
CAO) (BANCO MUNDIAL, 2009; BID, 2010).
Tomando como exemplo o Painel de Inspeção do Banco Mundial, o processo de
funcionamento é o seguinte: duas ou mais pessoas afetadas por um projeto financiado
pelo banco, que considerem haver o projeto violado as salvaguardas, podem escrever ao
painel pedindo uma investigação. Uma vez recebido e registrado o pedido, o painel de-
termina a elegibilidade desse pedido, ao qual a gerência do banco tem a oportunidade de
dar uma resposta inicial, concentrada geralmente no fato de terem sido ou não observa-
das as políticas pertinentes da instituição naquele projeto em particular. Caso conclua
que o pedido é elegível, o painel recomenda uma investigação completa à diretoria exe-
cutiva (BANCO MUNDIAL, 2009).
Entretanto, a crítica reformista reconhece que é mais fácil falar do painel do que
usá-lo efetivamente. Mesmo em casos onde as pessoas atingidas estão informadas sobre
o painel e as políticas do banco e seus pleitos ajustam-se às incumbências do painel, os
custos e riscos de registrar uma reclamação podem ser substanciais. Os custos envolvem
recursos humanos limitados necessários para o processo, altamente técnico, de preparar
uma reclamação, registrá-la e fazer lobby por ela. A percepção de riscos também depen-
de de que potenciais reclamantes estejam sujeitos a ameaças de retaliações. Finalmente,
a motivação para usar um canal institucional como o Painel de Inspeção não pode ser
suposta como sempre presente. Os procedimentos do painel e a linguagem política ex-
tremamente técnica do Banco requerem uma proficiência em inglês tanto quanto um
alto nível de familiaridade e tolerância com a cultura legal ocidental, sem mencionar
uma aceitação implícita da legitimidade do Banco enquanto instituição.

150
A experiência revela ainda que raramente as IFM cancelam um empréstimo por uma
falha na obediência de suas próprias políticas de salvaguardas, o que reduz os incentivos
ao encaminhamento de queixas aos mecanismos de mediação de conflitos. Em 1995,
uma queixa feita ao Painel de Inspeção do Banco Mundial pelo financiamento pelo IFC
de uma barragem hidrelétrica no Rio Bío-Bío, no Chile abriu um lamentável precedente:
o Banco provoca e negocia o vencimento antecipado de um empréstimo e a empresa
fica desobrigada a cumprir as salvaguardas. Como já foi dito, o IFC está fora do poder
do Painel, e viria a criar o seu próprio mecanismo apenas quatro anos mais tarde. Mes-
mo assim, a direção do Banco Mundial não quis estender o poder do Painel de Inspeção
sobre o IFC e, assim, recusou permissão para uma inspeção. Porém a reclamação fez
com que o então Presidente do Banco, James Wolfensohn, estabelecesse uma averigua-
ção ad hoc e independente. Mas a companhia de energia chilena pagou, adiantadamente,
a sua dívida evitando assim o escrutínio do Banco Mundial.
Vale lembrar que o IFC já foi alvo de diversas críticas também no Brasil, financian-
do projetos de graves impactos socioambientais como a expansão de plantação de soja
no leste de Mato Grosso do Grupo Amaggi, Aracruz Celulose e a expansão de uma das
maiores empresas do setor de carne bovina do país, Bertim, na Amazônia. No caso da
Aracruz, a empresa antecipou o pagamento da dívida que tinha com o IFC, no valor de
U$ 50 milhões, o que levou o banco a afirmar que assim estava encerrada sua relação
com a multinacional e a sua responsabilidade em torna das questões cobradas pela soci-
edade civil, em especial a Rede Alerta Contra o Deserto Verde e a Rede Brasil. Em re-
lação ao caso Bertim, empréstimo que o Banco foi obrigado a cancelar depois de de-
núncias e dessa vez uma ação movida pelo Ministério Público Federal do Pará de que a
empresa estaria comprando gado de fazendas envolvidas em desmatamento ilegal e de
propriedades localizadas dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, e fornecendo os
produtos derivados dos animais nos mercados brasileiro e internacional (REDE BRA-
SIL, 2004; CARTA MAIOR, 2005; GREENPEACE, 2009).
Caso semelhante ao da hidrelétrica no Rio Bío-Bío aconteceu no Brasil com o então
MII, do BID, no financiamento ao projeto da Hidrelétrica de Cana Brava em 2005. Des-
de o início do projeto, vários conflitos foram gerados e denúncias apresentadas pelos
atingidos pela obra envolvendo a empresa – a Companhia Energética Meridional
(CEM), subsidiária da Tractebel Energia da Bélgica – o governo e os financiadores.

151
Após a realização de uma auditoria social, o BID reconheceu a sua responsabilidade
pelas falhas operacionais do projeto, destacando a violação da sua própria Política Ope-
racional de Reassentamento Involuntário. O Banco também se comprometeu a “conti-
nuar a ter uma obrigação moral em manter uma reputação positiva, garantindo que todos
os atingidos pelo projeto fossem beneficiários da implementação do projeto”. Apesar
disso, um representante do BID observou que dificilmente o BID poderia exigir medi-
das da Tractebel já que esta, em maio de 2005, exerceu o seu direito de pré-pagar o em-
préstimo do BID inteiramente, como estipulado nos documentos de financiamento, se
livrando dessa forma das obrigações assumidas junto ao banco3, incluindo a aplicação
das salvaguardas.

PARTICIPAÇÃO

Diante da observação dos problemas existentes na aplicação das políticas de salva-


guardas bem como da insuficiência dos mecanismos de solução de conflitos das IFM
para fazer com que os bancos respeitem suas próprias diretrizes, as organizações da so-
ciedade civil insistem na importância dos canais de participação direta, como meio de
promover o diálogo sobre o aperfeiçoamento destes instrumentos de reforma das institu-
ições. Como resultado dessa pressão, as IFM tem realizado inúmeros processos de con-
sulta sobre suas políticas setoriais (revisão da política de integração do BID, da política
energética e climática do Banco Mundial) além das suas próprias salvaguardas. No en-
tanto, há um descontentamento por parte da sociedade civil, pois as consultas têm sérios
problemas metodológicos (documentos de discussão são divulgados em cima das con-
sultas, geralmente em inglês e na internet, sem ampla divulgação, levantando dúvidas
sobre o caráter da representação que atende aos convites) e não há meios de saber como
efetivamente os bancos consideram as críticas que lhes são dirigidas.
A crítica reformista argumenta ainda que alguns traços da própria cultura institucio-
nal dos bancos ajudam a entender a razão pela qual as IFM não respeitam seus próprios
procedimentos. Em um banco, os funcionários são recompensados pela quantidade de
desembolsos que consigam realizar, e não necessariamente pela qualidade. Nesta mes-
ma perspectiva, a aplicação de salvaguardas tem impactos diretos nos custos operacio-
nais de um projeto e o mesmo pode ser dito da aceitação de casos pelo painel de inspe-

152
ção. A realização de missões de monitoramento, produção de relatórios, e correta apli-
cação de avaliações de impacto e consulta aumentam os custos operacionais dos proje-
tos e principalmente levam tempo, uma variável chave nos financiamentos de longo
prazo. Na queda de braço entre a eficiência socioambiental e eficiência econômica, a
força da última revela-se, portanto, ainda preponderante.

A CRÍTICA CONTESTATÁRIA: DA EFICIÊNCIA SOCIOAMBIENTAL À


JUSTIÇA

Conceitos são apresentações gerais da realidade, portadores de significados. No en-


tanto, podem ser apropriados de forma distinta, ter representações diferentes dependen-
do do ator, seu contexto histórico cultural, seus interesses e posicionamentos ideológi-
cos. Como define Hajer (2005), o discurso, produzido e reproduzido através de distintas
práticas, é um conjunto de ideias, conceitos e categorias que dão significado aos fenô-
menos sociais e físicos. A análise de discurso rejeita a ideia de uma só realidade base-
ando-se na existência de várias realidades que são socialmente construídas. É capaz de
revelar o papel da linguagem na política; a inserção da linguagem na prática e ilustrar
porque determinadas definições tornam-se mais “populares” e explicar os mecanismos
que resultam em certas políticas e não outras. Em relação ao discurso ambiental, não é o
meio ambiente apenas que está em debate e sim o projeto de sociedade que é promovido
sobre a bandeira da proteção ambiental.
Os significados atribuídos às palavras em torno do conceito de salvaguardas como
proteção, garantia, defesa e amparo são apropriados de formas distintas. O que é prote-
ção, garantia, defesa e amparo para o Banco Mundial é sem dúvida distinto do que re-
presenta para uma comunidade tradicional que há anos vive em um território ameaçado
em todos os sentidos por um projeto financiado pelo Banco. Talvez esta comunidade
veja a política de salvaguarda mais como uma forma de “privilegiar e garantir vantagem
da classe” que propõe, elabora, implementa e financia aquele projeto em nome da prote-
ção, defesa, garantia e amparo da comunidade e de seu território. O que são efeitos in-
desejáveis? O que o Banco Mundial caracteriza como dano? Evitar quando possível e
mitigar quando necessário? Quando é impossível e quando é desnecessário? São ques-
tões das quais a crítica contestatória parte.

153
A crítica contestaria está fundamentada na percepção – também construída como
resultado de anos de monitoramento das IFM – de que estas instituições não podem ser
reformadas e de que mudanças de discurso não têm significado mudanças na prática.
São vários os exemplos de violações de salvaguardas em IFM. Além dos casos acima
mencionados, os seguintes projetos foram alvo de denúncias de violações de salvaguar-
das do Banco Mundial no Brasil: Projeto de Biodiversidade do Paraná, Projeto de Ges-
tão de Recursos Naturais de Rondônia, as hidrelétricas de Yacereta e Itaparica e o Proje-
to de Reforma Agrária para Alívio da Pobreza. No caso do BID, o novo Mecanismo de
Investigação Independente criado em 2010 já recebeu seis denúncias, incluindo o proje-
to de desenvolvimento urbano de São José dos Campos. Além disso, processos de avali-
ação das suas próprias políticas tais como a Comissão Mundial de Barragem (CMB)4 e
a investigação do Grupo de Avaliação Independente sobre o setor extrativista do Banco
Mundial5, geraram recomendações que nunca foram incorporadas pela instituição. No
caso da Comissão Mundial de Barragem cujo resultado evidencia a inviabilidade social,
ambiental e econômica da construção de barragens, pode-se argumentar que o Banco
Mundial reduziu seus empréstimos direto para tais projetos. No entanto, além do Banco
continuar considerando hidrelétricas como energia renovável, não utilizou os resultados
do estudo para eliminar outras formas de participação, inclusive política, na implemen-
tação de um modelo de desenvolvimento baseado na construção de grandes projetos de
infraestrutura, mudando assim a lógica da sua política energética. Quando questionado
sobre o uso dos resultados da CMB no momento da sua participação no complexo do rio
Madeira, mesmo sendo de forma indireta através do financiamento de estudos técnicos
que subsidiaram a liberação do licenciamento ambiental, o Banco respondeu que como
os governos não adotaram os resultados da Comissão, o Banco também não poderia. A
crítica contestatória não defende o uso de nenhuma condicionalidade por parte do Ban-
co, pois isso significaria reconhecer a legitimidade desta instituição, mas uma resposta
como essa poderia ser considerada como dois pesos para uma medida; um posiciona-
mento bastante cômodo.
Portanto, neste debate sobre ambientalização das instituições financeiras, adota-se
como ponto de partida de análise uma crítica sistêmica, para condenar, ao invés de cele-
brar, a adoção de políticas de salvaguardas socioambientais, a criação de mecanismos de
mediação de conflitos e de canais de participação direta pelas IFM. O que fundamenta

154
essa visão é a percepção segundo a qual isto serve de base para a apropriação de um
discurso ambiental que contribui para a antecipação e a neutralização da crítica ao pa-
drão de desenvolvimento dominante. Sendo assim, a incorporação da questão ambiental
por parte das IFM precisa ser contextualizada e problematizada, tendo em mente tam-
bém a fase “social” das IFM, onde a incorporação de questões sociais se deu no contex-
to de um discurso que buscava “humanizar” o capitalismo.
É possível afirmar que a questão ambiental começou a ser percebida como uma
questão pública internacional nos anos 60 quando os desafios da degradação ambiental e
os limites do crescimento econômico foram evidenciados. Este processo foi consolidado
durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocol-
mo em 1972. No mesmo ano, o Clube de Roma, ONG internacional composta princi-
palmente por representantes do setor privado e academia, comissionou um estudo cha-
mado “Os limites do crescimento”. Os autores mergulharam na velha tese de Thomas
Malthus sobre o perigo do crescimento populacional e na teoria da escassez dos “recur-
sos” (entre aspas, pois o uso do termo recursos, atribui uma ideia de mercado para algo
não mercantil; a natureza) naturais. As propostas foram baseadas no controle populacio-
nal e na economia de “recursos” em matéria e energia para garantir a continuidade da
acumulação do capital. O debate sobre as razões pelas quais a natureza é apropriada e
sobre as relações sociais de exploração que fundam tal apropriação é escondido por trás
da teoria da escassez (ACSELRAD, 2010).
Assim, em 1984 a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
criada pelas Nações Unidas, realizou um estudo sobre a degradação ambiental e as polí-
ticas ambientais que resultou no relatório “Nosso Futuro Comum”. O objetivo do estudo
era propor meios de harmonizar o desenvolvimento econômico e a conservação ambien-
tal. O Informe aparece como um instrumento para a introdução de políticas de sustenta-
bilidade ecológica ao processo de globalização econômica, tendo como conceito orien-
tador o desenvolvimento sustentável (LEFF, 2009).
Para Acselrad (2008), a partir dessa construção do processo de ambientalização,
entendido como a existência de novos fenômenos ou novas percepções de fenômenos
relacionados à interiorização da questão pública do meio ambiente pelas pessoas e gru-
pos sociais, que leva à mudanças de linguagem, práticas sociais e processos de institu-
cionalização, “velhos fenômenos são renomeados como “ambientais” a partir dos quais

155
surgem ações unificadas em torno da proteção ao meio ambiente. Com o processo de
ambientalização dos Estados6 e das IFM, a estratégia passou a ser superar a visão de que
a questão ambiental seria uma obstáculo para o desenvolvimento, encontrando formas
de promover os propósitos desenvolvimentistas como a busca por maiores lucratividade
dos capitais em nome da geração de emprego e renda, garantindo assim uma legitimida-
de para a questão.
Este processo é também conhecido como modernização ecológica, definida por Ha-
jer (1996) como uma resposta política-administrativa para a última manifestação do
dilema ecológico, com base na suposição de que a crise ecológica pode ser superada
através da inovação tecnológica e processual, de instrumentos de mercado da colabora-
ção e da construção do consenso. As instituições políticas seriam capazes de internalizar
preocupações ecológicas e conciliar o crescimento econômico com a resolução dos pro-
blemas ambientais. Neste contexto, o meio ambiente deixa de ser um obstáculo ao cres-
cimento, passando a ser seu novo motor. É essa percepção do meio ambiente que a críti-
ca contestatória argumenta ser a das IFM.
A crítica em torno da modernização ecológica se dá em diversos níveis e está rela-
cionada com o uso que é feito do discurso ambiental como também a prática. Ela foi
impulsionada por uma elite de políticos, especialistas e cientistas que impõe suas defini-
ções do problema e soluções, buscando manter o interesse das elites industriais através
de instrumentos políticos como as IFM. Neste caso o discurso ambiental é utilizado co-
mo forma de legitimação e instrumento para garantir a continuação e aprofundamento
de políticas neoliberais: tudo deve ser permitido em nome do meio ambiente. Essa pers-
pectiva adota como pressuposto que a degradação ambiental é uma externalidade, uma
falha do mercado e que consequentemente é preciso “internalizar os custos ambientais”,
valorar bens não econômicos, onde o mercado prevalece sobre o não mercantil. O pro-
cesso de valorização da natureza gera uma nova fonte de renda capitalista, seja através
da redução de custos por causa dos programas de sustentabilidade ambiental corporativa
e ganhos em competitividade, a elaboração, comercialização e dominação sobre novas
tecnologias, isenções fiscais, seja através da criação do lucrativo mercado de “serviços e
ativos ambientais”. A modernização ecológica seria assim um caso de falsas soluções
para problemas reais. Assim, existe uma realidade mais profunda por trás da retórica
oficial da modernização ecológica: a tecnocracia disfarçada que representa um obstácu-

156
lo para as soluções verdadeiras. Como o tema ecológico foi incorporado pelo aparatos
de poder, tornou-se um pretexto e um meio para controlar mais ainda a vida e o ambien-
te social (ACSELRAD, 2010; HAJER, 1996; LEFF, 2009).

SALVAGUARDAS – “MODERNIZAÇÃO ECOLÓGICA PARA A NEUTRALIZA-


ÇÃO DA CRÍTICA”

A diferenciação entre a crítica reformista e contestatória pode ser relacionada com o


que Acselrad (2010), chama de “substituição do ambientalismo contestatório por um
ecologismo de resultados, pragmático e tecnicista” desenraizado que ocorreu ao longo
dos anos 1990. Embora este movimento não tenha sido generalizado, houve uma tenta-
tiva de neutralização das lutas ambientais por parte principalmente de IFM, mas tam-
bém por empresas poluidoras e governos, sobrevivendo aqueles com fortes vínculos
com os movimentos sociais. O autor (ibid, p.13) sugere que:

Parte do “ecologismo desenraizado” respondeu favoravelmente ao


discurso consensualista propugnado por agências multilaterais, de
apologia da parceria público-privada, de deslegitimação da esfera na-
cional em favor da esfera local, de favorecimento das ações fragmen-
tárias em detrimento da coerência articulada da ação política.

A substituição da crítica contestatória pelo tecnicismo seria assim um propósito co-


mum a organismos multilaterais, governos e empresas poluidoras. Em relatório para o
Brasil, o Banco Mundial dizia “reconhecer seu papel de catalizador” na promoção da
participação da sociedade civil (GARRISON, 2000). Atuando de forma antecipada, po-
demos dizer através da elaboração de políticas de salvaguardas, por exemplo, estas insti-
tuições estariam capturando os movimentos de contestação ao modelo de desenvolvi-
mento dominante no contexto do projeto de “modernização ecológica”.
Em relação à ideia de neutralização da crítica, vale citar o trabalho realizado por
Boltanski e Chiapello, na obra “O Novo Espírito do Capitalismo”, onde a crítica é apre-
sentada como grande motor que dinamiza o espírito do capitalismo, fornecendo a sua
justificação moral. Os autores mostram como o capitalismo utiliza-se da crítica, de algo
que lhe é alheio ou até hostil, para se justificar, mesmo quando o objetivo da crítica não

157
seja estabelecer um espírito capaz de possibilitar a acumulação do capitalismo e sim de
reformar ou superar o sistema. Essa apropriação é realizado através de três formas:
1. A crítica serve para deslegitimar o “último” espírito do capitalismo e reduzir a
sua eficácia enquanto justificativa. Por exemplo, no final dos anos 1960 o
capitalismo dos Estados Unidos da América (EUA) encontrou fortes tensões entre o
ascetismo protestante que pregava o valor do trabalho e da poupança e um estilo de
vida baseado no gozo imediato do consumo estimulado pelo crédito e a produção em
massa. A crítica ao ascetismo protestante acabou deslegitimando o espírito capitalista
até então dominante colaborando para um processo de transformação para a fase
materialista da sociedade de consumo do capitalismo. Este processo teve como
resultado uma desmobilização dos trabalhadores como consequência de uma
mudança na suas expectativas e aspirações.
2. Ao criticar o processo capitalista, a crítica obriga seus porta-vozes a se
justificarem em termos do bem comum. Assim, o capitalismo se legitima
incorporando parte dos valores em nome dos quais foi criticado. Podemos dar um
exemplo relacionado ao caso em questão. Depois de muitas críticas ao Consenso de
Washington, instituições como o Banco Mundial e o BID adotaram o discurso da
“humanização” do capitalismo, promovendo políticas setoriais, escolhendo uma
parte dos “pobres” a serem beneficiados, para argumentar a sua preocupação pelo
social. Mais recentemente percebemos um processo de ambientalização destas
instituições. Ou seja, tanto o Banco Mundial quanto o BID elaboraram salvaguardas
ambientais e implementam investigações independentes de seus projetos. Cana Brava
está entre os muitos casos de projetos financiados por estas instituições que resultam
em conflito, mesmo com a existência de salvaguardas ambientais e sociais. Ainda
neste caso, cada vez que o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
elaborava uma crítica ao Banco, esta respondia com uma determinada “ação”, seja
ela uma auditoria social, seja a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional.
Embora o discurso e algumas normas são modificadas, a estrutura, lógica e prática
destas instituições permanece a mesma e a crítica acaba sendo colocada à serviço do
fortalecimento da legitimidade delas.
3. Um outro possível impacto da crítica se refere à possibilidade do capitalismo
escapar da exigência de reforçar suas justificativas, tornando-se assim mais

158
dificilmente decifrável, “embaralhando as cartas”, plantando a confusão e
desarmando a crítica. Neste caso, o capitalismo responde a crítica não através da
incorporação de dispositivos mais justos, mas sim mudando a forma imediata de
obtenção de benefícios, deixando a crítica sem saber como explicar o “novo”. Um
exemplo pode ser a economia verde, argumento central dos governos e das
Instituições Financeiras Multilaterais atualmente para combater o que eles chamam
de crise ecológica. Este movimento está aparentemente, deixando alguns grupos
ambientalistas sem crítica, enquanto no fundo aparece como uma nova “roupagem”
para um velho modo de produção e consumo. Outro exemplo é o fato de que a
agenda de instituições como o Banco Mundial e o BID no Brasil, deixou de ser
dominada por financiamento direto aos projetos, passando a se dar através da
assistência técnica. Ou seja, no lugar de investir diretamente em projetos de
hidrelétricas, fornecem assistência técnica ao governo para implementá-los, se
“esquivando” da crítica.
Embora tendo como base a argumentação de que o capitalismo sempre se renova
com a ajuda da crítica, o objetivo de Boltanski e Chiapello (ibid.) não é reduzir o papel
da crítica à conceder força para o inimigo e sim mostrar a sua importância, a necessida-
de dela sempre recomeçar. O que os autores defendem é o fato da crítica não poder nun-
ca cantar vitória. Não se pode ignorar os defeitos dos novos dispositivos criados para
“atendê-la”. Neste sentido, é possível argumentar que num primeiro momento a criação
de salvaguardas, de mecanismos de investigação independente, de processos de partici-
pação e transparência foram importantes. No entanto, não se pode perder de vista como
no capitalismo, neste caso em relação às IFM através da contínua implementação de um
determinado modelo de desenvolvimento, independente dos mecanismos e políticas
criadas, a crítica inicial se desatualiza e muitas vezes acaba voltando contra si mesma.
No entanto, a crítica é capaz de desnaturalizar os fenômenos sociais, mostrando inclusi-
ve que a mudança é possível, que as decisões – de construir ou não uma hidrelétrica, a
escolha em torno de um projeto de desenvolvimento, por exemplo – podem ser diferen-
tes.
Assim sendo, resta à crítica contestatória, seguir preservando o espaço de crítica
contra o modelo de desenvolvimento tratando de colocar a questão ambiental de tal

159
forma que ela seja parte estruturante da construção de um projeto político contra-
hegemônico.
Vale ressaltar também a discussão de Bolstanski em outra obra onde o autor escreve
sobre a necessidade da crítica. De acordo com o autor, há neste mundo uma nova classe
dominante cada vez mais heterogênea que cria uma nova cultura internacional baseada
na economia e na gestão. Esta elite é responsável por operar o mundo como ele é e por
relativizar as regras; regras que quando necessário são flexibilizadas e violadas. São
regras a serem obedecidas apenas pelos outros, os dominados. Os dominantes – que
pertencem ao mundo das instituições financeiras, grandes empresas e o Estado – divi-
dem em comum uma visão secularizada das regras. Como afirma Boltanski (2009, p.
219): “pertencer à uma classe dominante é antes de tudo, estar convencido que pode-se
transgredir a letra da regra, sem trair seu espírito. Mas esse gênero de crença não vem à
mente senão dos que pensam poder encarnar a regra, pela boa razão que eles a fazem.”
Porque então elaborar salvaguardas sociais e ambientais? Seria porque são elaboradas
para serem violadas?

CANAIS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA – “APROPRIAÇÃO DA CRÍTICA”

Como parte do processo de neutralização da crítica estão também os mecanismos de


participação. Isso porque grande parte do ecologismo pragmático acabou atuando dire-
tamente nos espaços estatais, “prestando serviço” aos aparatos burocráticos do “setor
ambiental dos governos”, fornecendo informação, informação técnica e mediando con-
flitos, colaborando assim para a ambientalização do setor privado e das IFM. A crítica
contestatória respondeu: “a nossa luta original era por um novo modelo de desenvolvi-
mento e não por buscar soluções paliativas”, pois “não somos consultores, queremos
mudar a sociedade” e “nosso papel não é o de trabalhar para o governo; não é o de ocul-
tar o conflito, mas dar-lhe visibilidade” (ACSELRAD, 2010, p. 106).
Relacionado à esta análise, encontra-se o debate sobre a importância da participação
para a manutenção do capitalismo contemporâneo. No contexto de uma reflexão (e pro-
posta) sobre o planejamento insurgente, Miraftab (2009) analisa a participação, através
da inclusão, como instrumento de dominação. Neste sentido, o capitalismo neoliberal
vem se utilizando das relações com a sociedade civil para garantir estabilidade nas rela-

160
ções Estado-Sociedade. Portanto, sugere a autora, o planejamento insurgente torna-se
instrumento importante para contestar o terreno da inclusão e dominação.
No seu artigo sobre planejamento insurgente, Miraftab (2009) fala da necessidade de
superar a dominação realizada através da inclusão do capitalismo neoliberal, a tentativa
de estabilizar as relações estado-sociedade através da inclusão da sociedade civil no
processo de governança. O neoliberalismo é entendido aqui não como um projeto eco-
nômico, mas como um projeto ideológico, um conjunto de políticas, ideologias, valores
e racionalidades. Por ser um projeto ideológico, o capitalismo neoliberal depende de
legitimação e da percepção por parte da sociedade de que existe inclusão.
Diferentemente do capitalismo expansionista mercantil da era colonial, o capitalis-
mo atual não depende mais prioritariamente da força militar ou da coerção para se man-
ter. Quando possível o poder hegemônico é conquistado através do consentimento da
sociedade e da percepção de inclusão. Similar ao pensamento de Boltanski, Miraftab
explica que argumentações econômicas não são suficientes para justificar as políticas
atuais. É necessário criar discursos com base em valores, como a liberdade e o progres-
so (Ibid.).
A autora utiliza-se de leituras Gramscianas para examinar porque instituições como
o Banco Mundial (e o BID) começaram a incluir a participação nas suas agendas insti-
tucionais. A compreensão da hegemonia como relações normalizadas e a contra-
hegemonia como práticas e forças capazes de desestabilizar tais relações ajuda a com-
preender o poder da inclusão neoliberal. São vários os exemplos de como a participação
de comunidades, movimentos e organizações em projetos de desenvolvimento de insti-
tuições como o Banco Mundial e o BID, despolitizam a luta e ampliam o controle do
Estado sobre a sociedade, permitindo a permanência do status-quo através da estabiliza-
ção das relações estado-sociedade; através da eliminação do conflito. No entanto argu-
menta Miraftab, os movimentos também são capazes de se apropriarem das aberturas no
sistema hegemônico para garantir suas ações contra-hegemônicas. Não são limitados ao
que ela chama de invited spaces, espaços de participação criados pelas autoridades para
os quais os movimentos são apenas convidados. Também são capazes de inventar espa-
ços de participação e de se re-apropriarem de velhos espaços para exigir seus direitos e
fortalecer a sua luta contra-hegemônica. Ou seja, é priorizar os espaços resultantes de
mobilizações e ocupações, como ocorreu quando o MAB ocupou a sede do BID em

161
Brasília por causa de Cana Brava, no lugar das consultas das IFM que para a crítica con-
testatória em nada têm resultado a não ser legitimar o ilegitimável.

MECANISMOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS – “AÇÃO ANTECIPADA E


DESJUDICIALIZAÇÃO”

Neste contexto não é difícil compreender porque projetos de disseminação de tecno-


logias de resolução de conflitos tenham sido implementados no continente nos anos
1990. Foram vários os programas do Banco Mundial, do BID, mas também de universi-
dades como a de Harvard, Berkey e Florida (ACSELRAD e BEZERRA, 2009). Como
já mencionado, em 1993 o Banco Mundial criou o Painel de Inspeção com o objetivo de
investigar projectos financiados pelo Banco para determinar o cumprimento ou não das
políticas e procedimentos operacionais, incluindo salvaguardas sociais e ambientais, e
em 1994 o BID criou um mecanismo independente para “aumentar a transparência,
responsabilidade institucional e efetividade” do Banco que em 2010 foi substituído pelo
Mecanismo Independente de Consulta e Investigação (BANCO MUNDIAL, 2009; BID,
2010). Estes mecanismos vêm servindo como instrumentos de mediação de conflito
entre o solicitante impactado pelo projeto, o governo e a empresa envolvida. Em 2011,
debatendo com representantes da sociedade civil os impactos da Copa do Mundo
durante a consulta do Banco Mundial sobre sua nova Estratégia País, o representante
desta instituição afirmou que o Banco estaria fornecendo seu Know-How para o governo
brasileiro em torno da resolução de conflitos como consequência das remoções.7 Não é
a tão que em março deste ano o Comité Popular da Copa, articulação de organizações,
movimentos e militantes que vêm denunciando as violações de direitos decorrentes da
realização de mega eventos, elaborou uma carta criticando o evento realizando pelo
Ministério da Cidades em parceria com o Banco Mundial. O convite dessas instituições
explicita o objetivo:

O objetivo do workshop (Internacional sobre Deslocamentos) é buscar


soluções concretas para o Brasil no enfretamento dos desafios relacio-
nados a deslocamentos involuntários, por meio da reunião de especia-
listas e formuladores de políticas em âmbito nacional e internacional.
Serão compartilhadas experiências e melhores práticas em formulação
e implementação de políticas, legislação e abordagens para reassenta-

162
mentos e deslocamentos involuntários, buscando relacioná-las com os
desafios-chave para as autoridades brasileiras.8

No entanto, o que significa resolver, prevenir ou mediar um conflito? São várias as


perspectivas em torno de conflitos sociais que vão desde a ideia do conflito como sinal
de que algo está errado, resultado de um desequilíbrio que precisa ser eliminado para
garantir a coesão social aos que defendem que a existência de conflito reflete a dinami-
cidade do sistema, sendo este capaz de promover um aperfeiçoamento no sistema ou até
a sua superação através de reformas ou revoluções (VAINER, 2007). O conceito de
resolução de conflito, no entanto, tem como base a perspectiva de que os conflitos ocor-
rem por falta de instituições e que a paz e a harmonia deveriam provir de um processo
de despolitização dos litígios através de táticas de negociação direta capazes de prover
“ganhos mútuos”. Os conflitos devem ser prevenidos e seu tratamento tecnificado atra-
vés de regras e manuais (ACSELRAD e BEZERRA, 2009). Mas de onde surgiram estas
propostas e quais os seus objetivos?
A perspectiva dominante percebe o conflito como um desequilíbrio a ser corrigido.
Neste sentido, é possível compreender porque a resolução, prevenção e mediação de
conflitos ganhou vigência nos dias atuais. Vale lembrar a fala de um ex-presidente do
Chile que em 2003 declarou que “um país sem coesão social é conflitivo. Um país
conflitivo não é competitivo. Para competir no exterior, é preciso coesão social”9. Logo,
para garantir a competição é necessário banir o conflito e para tanto é preciso banir
também a política, considerada uma ameaça à construção de estratégias vencedoras. A
política e a ação coletiva são substituídos pelo consensualismo.
Banir o conflito significa banir a luta social, um meio através do qual grupos sociais
constituem-se como sujeitos políticos, geram identidades, projetos e práticas coletivos e
ação política autônoma (VAINER, 2007). E como ocorre a mediação? De acordo com
Acselrad e Bezerra (2007), os defensores dos mecanismos de resolução e mediação de
conflito os justificam primeiro sem referência à compensação econômica, citando a ca-
rência de instituições, a redução de custos, a necessidade de submeter os litígios à apre-
ciação de experts e a necessidade de participação. Vale lembrar que o documento do
BID (1999) “Reassentamento Involuntário nos Projetos do BID: Princípios e Diretri-
zes”, elaborado para “apresentar os princípios e estratégias a serem seguidas no caso de
projetos de desenvolvimento financiados pelo Banco que resultam em relocação invo-

163
luntária”10, inclui entre outras questões, a necessidade de um painel independente de
peritos para projetos com grande probabilidade de causar significativos impactos de
reassentamento. Considera-se que os peritos agem torno de um bem “maior”. Inclui
também o princípio de “Assegurar Participação da Comunidade”. A auditoria Social
também menciona a necessidade de especialistas sociais e a importância da participa-
ção.
Essas justificativas desconsideram o debate sobre correlação de forças. Desconside-
ram que são as leis e o combate às relações desiguais no exercício do direito, que podem
melhor defender os interesses de grupos sociais em conflito contra empresas e contra o
governo. Como afirma Vainer (2007), a mediação supõem a existência de uma neutrali-
dade, uma isenção de todos os interesses, posições e condições de classe. Se essa neu-
tralidade fosse possível, ela ainda teria que ser baseada em determinados valores e pa-
râmetros, não passíveis de mediação. Usando o exemplo do BID, vejamos que o docu-
mento mencionado acima também defende que “A maneira mais justa de se resolver
disputas é através de procedimento de arbitragem independente envolvendo instituições
e indivíduos considerados neutros por ambos os lados.” Não são os valores do Banco
que orientam os indivíduos que participam dessas iniciativas? O problema também o-
corre ao ver-se que, quando tais mecanismos funcionam, seus resultados, sendo contrá-
rios aos interesses dos criadores, são geralmente ignorados. Isso pode ser verificado
com o caso de Cana Brava quando os resultados do MICI e da primeira auditoria não
foram divulgados, o Banco permitiu que a empresa adiantasse a sua dívida para assim
não ter nenhuma obrigação com as normas do BID e quando as irregularidades divulga-
das não foram corrigidas.
Existe ainda a justificativa com base na compensação econômica. Duas virtudes são
enfatizadas neste caso. Primeiro consideram a possibilidade de que todos os atores en-
volvidos no conflito possam vencer, tendo algum tipo de compensação (ACSELRAD e
BEZERRA, 2009). Pode-se argumentar que no caso de Cana Brava, com a criação do
Fundo de Desenvolvimento Regional, todos os atores ganharam alguma compensação.
No entanto, como pode ser percebido pela fala do Movimento, a compensação não foi
justa e muito menos igualitária.
A segunda virtude se refere ao fato do ganho proveniente da possibilidade de evitar
que os litígios cheguem à esfera judicial, o que seria indesejável (ibid.). No entanto,

164
recorrer ao Ministério Público é uma estratégia central dos movimentos envolvidos em
conflitos. No caso de Cana Brava, a esfera judicial foi claramente evitada pela empresa,
inclusive através do adiantamento do pagamento da sua dívida com o BID.
Vale ressaltar que a compensação econômica pode ser considerada como um ins-
trumento de esvaziamento da possibilidade de evidenciar o confronto entre diferentes
modelos de desenvolvimento. Ou seja, o MAB não luta apenas por compensação eco-
nômica, luta por uma transformação no modelo energético e de desenvolvimento. Essa
questão não apareceu nos documentos do BID ou nos processos de negociação. Ocorre
também que propostas como fechar a hidrelétrica, evitar a construção de outras com os
mesmo impactos, banir a Tractebel de pelo menos receber financiamento novamente do
BID ou do BNDES também são ignoradas a partir da realização da compensação. Na
lógica do “modelo harvardiano” de negociação, conforme escrito por Fisher e Ury
(1985), que o próprio título do livro “Como chegar ao sim: a negociação de acordos sem
concessões” sugere, o objetivo da negociação é superar as resistências, a disputa, o con-
flito e garantir a aprovação de empreendimentos (ACSELRAD e BEZERRA, 2009). O
direito de dizer não ao projeto não é considerado.
O documento do Banco Mundial (2009) sobre o Painel de Inspeção não deixa dúvi-
das sobre o real objetivo da mediação e negociação:

Quando membros da Gerência do Banco ou da Diretoria levantam a


questão do “custo” do Painel de Inspeção em virtude de demoras em
projetos, basta apenas recordar os dias de Narmada, Polonoroeste,
Transmigração e o empréstimo para o Setor da Energia, no Brasil, pa-
ra saber que o Banco não poderia reverter jamais à era anterior ao
Painel. Alguns daquele projetos foram postergados por anos (bem
mais longamente do que uma investigação do Painel), devido a protes-
tos locais, consultas públicas insuficientes, violações de políticas e di-
reitos humanos, falha na elaboração do projeto e falta de supervisão
ambiental e social, entre outros problemas.11

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão ambiental não é uma questão nova. Há muitos anos ecologistas e intelec-
tuais tentam chamar atenção para os impactos do modelo de desenvolvimento sobre a
natureza, levantando questionamentos sobre a relação sociedade e natureza sendo cons-
truída em nomes deste modelo. No entanto foi somente nos anos 1970 que ela se tornou

165
uma questão pública, uma questão política, sendo incorporada pelas instituições públi-
cas e privadas, inclusive as financeiras. Como novos fenômenos são construídos? Como
velhos fenômenos passam a ser concebidos de outra forma? O que gerou e como se deu
a construção dessa “união” de todos pela “proteção ambiental”? É essa a questão central
por trás deste debate sobre salvaguardas ambientais. Se existe algo que o monitoramen-
to de instituições financeiras (e políticas) tem nos ensinado é que nada é a tão. Não é
necessário apelar para teorias da conspiração para perceber que existe algo por trás do
discurso ambiental. Existe algo por trás do debate sobre salvaguardas ambientais porque
afinal como salvaguardar algo que tem significados diferentes, representações materiais
e simbólicas diferenciadas e conflitantes. Como então conciliar diferentes valores, prin-
cípios e estratégias de desenvolvimento? É possível fazer isso através de demandas por
mais transparência, participação, controle social e melhorias técnicas, pela mediação e
resolução de conflito, ou seja, por reformas pontuais? Ou estaremos assim apenas legi-
timando mais uma forma de apropriação e neutralização da crítica, das lutas sociais por
justiça e dando ao capitalismo outra justificativa moral?
O discurso das IFM muitas vezes tenta camuflar a existência de diferentes projetos
de sociedade. Para essas instituições, o conflito ocorre somente quando os diferentes
interesses não foram negociados. Salvaguardas sociais e ambientais além de processos
de consulta seriam suficientes para garantir o interesse de uma comunidade atingida.
Seus interesses estariam salvaguardados e as denúncias em torno da violação de salva-
guardas não estariam sendo realizadas porque os projetos de sociedade são distintos e
sim porque algum interesse escapou da negociação. Para resolver, basta realizar uma
consulta e um processo de negociação. Para tanto, ignora-se, o debate em torno da cor-
relação de forças. A razão do mercado continua predominando e a negociação é contro-
lada pelos dominantes. Ignora-se o fato de que os valores, princípios e projetos de soci-
edade não são negociáveis.
Os interesses econômicos não são mais suficientes para justificar o capitalismo. As
IFM precisaram de mais criatividade para ganharem legitimidade. Transparência, pro-
cessos de participação, consultas, mecanismos de investigação independente, painéis de
investigação, portal da transparência, e a necessidade de participação são alguns dos
instrumentos utilizados. Muitas vezes atores em potenciais conflitos acreditam neste
discurso, inclusive porque algumas das questões surgem das suas próprias demandas,

166
principalmente no que diz respeito ao tema da participação. Assim despolitizam-se os
conflitos, passando uma ideia da possibilidade da neutralidade e do consenso. Mas onde
existem valores, princípios e projetos, não existe neutralidade nem consenso. O objetivo
de tais políticas e instrumentos no fundo acabam sendo a de superar as resistências, a
disputa, o conflito e garantir a aprovação de empreendimentos, de determinados interes-
ses.
O debate sobre a adoção de salvaguardas por instituições financeiras nos ajuda a
perceber e refletir sobre tais aspectos. A participação no processo de elaboração das
salvaguardas e a sistematização das denúncias geradas com a violação das mesmas, sem
dúvida fortaleceu a ação coletiva das organizações da sociedade civil envolvidas no
processo como também das populações atingidas pelos projetos. Cada denúncia exigiu
uma reação da empresa, do Banco e do governo, talvez mais do que os processos de
negociação. Apesar de mostrar diversas irregularidades, os relatórios das IFM nos casos
mencionados aqui neste artigo não foram utilizados para beneficiar os atingidos. Afinal,
como negociar o interesse coletivo de populações atingidas e o interesse de uma trans-
nacional e de uma instituição financeira? Daí surge inclusive o risco de se criar instru-
mentos e políticas para estas instituições que podem servir para evitar o processo judici-
al. Quem poderia defender melhor as populações atingidas, O Banco Mundial, o BID ou
o ministério público? Como poderiam os especialistas do MICI ou do Painel de Inspe-
ção serem neutros? O que precisa um profissional para trabalhar em uma instituição
como esta se não estar de acordo com seus valores e princípios?
Instituições Financeiras Multilaterais como o Banco Mundial e o BID e cada vez
mais o nosso próprio BNDES, estão, sem dúvida, entre os melhores exemplos institui-
ções que se apropriam da crítica promovendo mudanças discursivas ou criando normas
a serem violadas para garantir a legitimação. Depois de anos de críticas aos impactos
sociais e ambientais de seus projetos, criou-se o discurso do capitalismo humano e ago-
ra o capitalismo verde. Criaram-se salvaguardas sociais e ambientais e em alguns casos
não financiam mais diretamente os projetos reconhecidos por gerarem conflitos, forne-
cem “ajuda” técnica. Na maioria dos casos podemos ver não somente a violação de sal-
vaguardas, o uso do Painel de Inspeção ou do MICI e outros instrumentos para banir o
conflito, mas também como, as IFM incorporaram determinadas demandas dos movi-
mentos responsáveis pelas denúncias no plano do discurso, mas que na prática pouco

167
serviram para o fortalecimento da luta para além de demandas materiais pontuais nem
revelaram uma mudança estrutural na atuação da instituição. Tais demandas não deixam
de ser importantes, pois afinal, os atingidos precisam se alimentar e ter um teto sobre a
cabeça, mas como bem explica Boltanski, a luta não pode cantar vitória, precisa reco-
nhecer como o dominante pode utilizar-se desta vitória para debilitar a luta maior em
torno das paixões, valores e princípios. A crítica não pode perder de vista que na tenta-
tiva de se banir o conflito está a tentativa de banir a ação autônoma de sujeitos políticos
que buscam justiça, contrapondo-se às relações desiguais no exercício do direito, das
quais depende o atual padrão de acumulação altamente concentrador da renda e preda-
dor da natureza e da sociedade.
Assim sendo, é possível argumentar que promover e radicalizar os conflitos signifi-
ca reconhecer a sua contribuição. O que teria acontecido se o MAB não tivesse realiza-
do um acampamento na frente da barragem, diversas mobilizações e ocupado a sede do
BID? O que teria acontecido se os moradores de Pinheirinho não tivessem resistido bra-
vamente a reintegração de posse? Pode parecer que pouco mudou, mas a mensagem
enviada por estas lutas aos capitalistas de plantão é de que a vida deles não será facilita-
da, outra barragem não será construída sem resistência, moradores legítimos não serão
retirados das suas terras sem resistência, sem luta; mostram que ainda existem sujeitos
políticos coletivos lutando para romper com o sistema injusto e desigual e construir pro-
jetos de uma sociedade distinta. Isso passa por rejeitar políticas e estratégias de preven-
ção, resolução e mediação de conflitos. O conflito não pode ser resolvido, prevenido
nem mediado, ele deve ser reconhecido, fortalecido e radicalizado.
O conflito é também constitutivo do sujeito. Na vida da resistência e da opressão,
ele serve também para colocar força da resistência à prova, mesmo quando a resistência
não consegue superar a opressão. Sem resistência, somos apenas vítimas das situações.
Como dizia o poeta maranhense Antônio Gonçalves Dias “Viver é lutar”. Isso passa
pela renovação da crítica, por “tomar de volta aquilo que nos foi apropriado”. Mas fi-
cam as questões: quais são as verdadeiras possibilidades de ação? Como atuar em um
contexto onde por mais que a restrição, a opressão e a repressão não sejam total, tam-
pouco é a liberdade. Qual seria o papel de uma rede de monitoramento, denúncia e mo-
bilização frente às instituições financeiras? A transformação do capitalismo e seu siste-
ma de justificação transformaram também o papel dos movimentos de resistência. Tal-

168
vez o desafio esteja na análise das crises como elemento de refundação da crítica, da
radicalização do conflito e da ação.

TABELA 1

Política de Salvaguardas do Banco Mundial

169
Política Principais Características Última Revisão

as consequências ambientais potencias dos projetos deveriam ser identificadas no


início do ciclo do projeto
avaliações ambientais e planos de mitigação são requeridos para projetos com
impactos ambientais ou reassentamento involuntário significativos
OP4.01 Avaliação Ambiental 1999
avaliações ambientais deveriam incluir a análise de desenhos ou localizações
alternativos, ou considerar a “falta de opção”
requer participação pública e o fornecimento substancial de informações
proíbe financiar projetos “envolvendo a conversão significativa de habitats naturais
a menos que não haja alternativas factíveis”
OP4.04 Habitats Naturais requer análises de custo/benefício ambientais 2001

requer avaliação ambiental com medidas de mitigação


proíbe financiar operações de madeireiras comerciais ou a aquisição de
OP4.36 Florestamento equipamento para o uso em florestas úmidas tropicais primarias 2002

apóia manejo ambientalmente correto de pragas, incluindo manejo integrado de


pragas (mas não proíbe o uso de pesticidas altamente perigosos)
OP4.09 Manejo de Pragas 1998
o manejo de pragas é responsabilidade do tomador do empréstimo no contexto
da avaliação ambiental de um projeto
implementada em projetos que deslocam ou removem pessoas fisicamente em
consequência da perda de bens produtivos, mudanças no uso da terra ou da água
OP4.12 Reassentamento requer participação pública no planejamento do reassentamento como parte da 2001
Involuntário avaliação ambiental do projeto
intenciona restaurar ou melhorar a capacidade de gerar renda dos relocalizados
o propósito é assegurar que os povos indígenas beneficiem-se de projetos de
desenvolvimento financiado pelo Banco e evitar ou mitigar efeitos potencialmente
adversos sobre eles

aplica-se a projetos que podem afetar negativamente a povos indígenas (exemplo:


projetos de infraestrutura como estradas, represas, indústrias extrativas, etc.) ou
OP4.10 Povos Indígenas 2005
quando os povos indígenas são definidos como beneficiários
requer a participação dos povos indígenas na criação de planos de
desenvolvimento de povos indígenas
os problemas são frequentemente identificados em EIA-RIMAS
o propósito é dar assistência na preservação do patrimônio cultural, como sítios
com grande valor arqueológico, paleontológico, histórico, religioso e cultural
OP4.11 Patrimônio Cultural política geral é procurar dar assistência na sua preservação e evitar sua destruição 2006

desencoraja o financiamento de projetos que irão causar danos ao patrimônio


aplica-se a grandes represas (15 metros ou mais de altura)
requer acompanhamento por especialistas independentes em todas as etapas do
ciclo dos projetos
OP4.37 Segurança de represas 2001
requer preparação de planos detalhados para a construção e operação e
inspeções periódicas pelo Banco
requer avaliação ambiental
cobre cursos d’água que sejam fronteiras entre dois ou mais Estados, assim como
qualquer baía, golfo, estreito ou canais fronteiriços a dois ou mais Estados

170
TABELA 2

Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental do IFC

171
Política Principais Objetivos Última Revisão

Busca identificar e avaliar os riscos ambientais e sociais e os impactos do projeto


Adota uma hierarquia de mitigação para antecipar e evitar, ou quando a prevenção não é
possível, minimizar e, onde os impactos residuais continuam, compensar os riscos e
impactos para os trabalhadores, as comunidades afetadas e o meio ambiente
Busca promover a melhoria do desempenho ambiental e social dos clientes através do uso
PS1: Sistemas de Gestão e Avaliação efetivo dos sistemas de gestão
2006
Socioambiental
Busca garantir que as reivindicações das comunidades afetadas e de outras partes
interessadas sejam respondidas e gerenciadas apropriadamente
Busca promover e proporcionar meios para o engajamento adequado das comunidades afetadas
durante o ciclo de projeto e garantir que as informações relevantes, do ponto de vista ambiental
e social, sejam divulgadas e disseminadas

Busca promover o tratamento justo, não-discriminatório e com igualdade de oportunidades para


os trabalhadores
Busca estabelecer, manter e melhorar a relação trabalhador-gestor

Busca promover o cumprimento de leis nacional de emprego e direitos trabalhistas


PS2: Condições de Emprego e
Busca proteger os trabalhadores, incluindo as categorias de trabalhadores vulneráveis, como 2006
Trabalho
crianças, trabalhadores migrantes, trabalhadores terceirizados, abrangendo os trabalhadores da
cadeia de fornecimento do cliente
Busca promover condições seguras e salubres de trabalho, e a saúde dos trabalhadores;
Busca evitar o uso de trabalho forçado

Busca evitar ou minimizar impactos negativos na saúde humana e ao meio ambiente por evitar ou
minimizar a poluição proveniente de atividades do projeto
PS3: Prevenção e Redução da
Busca promover o uso sustentável dos recursos, incluindo energia e água 2006
Poluição
Busca reduzir as emissões de GEE relacionadas ao projeto

Busca antecipar e evitar impactos adversos sobre a saúde e a segurança da Comunidade


Afetada durante a vida do projeto sejam de circunstâncias de rotina e não rotineiras
PS4: Saúde e Segurança da
Busca assegurar que a salvaguarda do pessoal e dos bens sejam realizadas em acordo com os 2006
Comunidade
respectivos princípios de direitos humanos e de forma a evitar ou minimizar os riscos para as
comunidades afetadas

Busca evitar e, quando a prevenção não é possível, minimizar o deslocamento ao explorar


alternativas ao desenho do projeto
Busca evitar o despejo forçado

Busca antecipar e evitar, ou quando a prevenção não é possível, minimizar os impactos sociais e
econômicos da aquisição de terras ou restrições no uso da terra por (i) proporcionar uma
PS5: Aquisição de Terra e compensação pela perda de bens ao custo de reposição e (ii) garantir que as atividades 2006
Reassentamento Involuntário de reassentamento sejam implementadas com a divulgação adequada de informação,
consulta e participação informada das pessoas afetadas

Busca melhorar ou restaurar as condições de vida e padrões de vida das pessoas deslocadas
Busca melhorar as condições de vida entre as pessoas fisicamente deslocadas através da
provisão de moradia adequada e com segurança da posse em locais de reassentamento.
Busca proteger e conservar a biodiversidade
PS6: Conservação da Biodiversidade Busca manter os benefícios dos serviços do ecossistema
e Gestão Sustentável de Recursos 2006
Naturais Busca promover a gestão sustentável dos recursos naturais vivos através da adoção de
práticas que integram as necessidades de conservação e prioridades de desenvolvimento
Busca garantir que o processo de desenvolvimento favoreça o pleno respeito pelos direitos
humanos, dignidade, aspirações, cultura e seja baseado em recursos naturais e meios de
subsistência dos Povos Indígenas
Busca antecipar e evitar os impactos negativos dos projetos sobre as comunidades dos Povos
Indígenas, ou quando a prevenção não é possível, minimizar e / ou compensar tais impactos;
Busca promover benefícios de desenvolvimento sustentável e oportunidades para os Povos
PS7: Povos Indígenas Indígenas de maneira culturalmente apropriada 2006
Busca estabelecer e manter um relacionamento contínuo com base em consulta Informada e
Participação com os Povos Indígenas afetados por um projeto durante todo o ciclo do projeto
Busca garantir o consentimento livre, prévio e informado das Comunidades Indígenas Afetadas,
quando as circunstâncias descritas neste Padrão de Desempenho estiverem presentes
Busca respeitar e preservar a cultura, o conhecimento e as práticas dos Povos Indígenas

Busca proteger o patrimônio cultural dos impactos adversos das atividades do projeto e apoiar a
sua preservação.
PS8: Patrimônio Cultural 2006
Busca promover a partilha equitativa dos benefícios provenientes do uso do patrimônio cultural.

172
(Artigo originalmente publicado pela Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais no
livro Ambientalização dos Bancos e Financeirização da Natureza - Um debate sobre a política
ambiental do BNDES e a responsabilização das Instituições Financeiras (BRASÍLIA, 2012).)

NOTAS

1
Este recorde foi novamente superado em 2010, quando o BNDES desembolsou R$ 168,4 bilhões. Só a
Petrobras recebeu um empréstimo de R$25 bilhões em 2010. Em 2011, o volume de desembolso do ban-
co caiu para R$ 139,7 bilhões, uma redução de 17% justificada como esforço do governo para conter a
pressão inflacionária na economia.
2
Tradução livre da expressão original do idioma inglês “do no harm”.
3
Após várias mobilizações no local do projeto e a instalação de um acampamento contínuo em frente ao
portão da barragem, confronto entre a Polícia Militar de Goiás e os agricultores, resultando na prisão de
lideranças do MAB e no ferimento de várias pessoas, no dia 31 de maio de 2005, 300 agricultores atingi-
dos pelas barragens de Cana Brava e Mesa da Serra ocuparam a sede do BID em Brasília. Os agricultores
exigiram uma solução para o impasse em torno das 946 famílias expulsas no processo de construção da
obra. A partir da ocupação, o Banco iniciou um diálogo com as prefeituras dos municípios atingidos pela
barragem para identificar áreas com potencial econômico e social na região, e com o governo federal e a
Tractebel-suez para a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional. O Fundo de Desenvolvimento
Regional Serra da Mesa/Cana Brava previa um amparo de R$ 5 milhões para a implantação de programas
e projetos para garantir a sobrevivência econômica das famílias de seis cidades que perderam suas casas
após a construção das duas usinas hidrelétricas e que não foram enquadradas em auditorias como aptas a
receber a indenização. Para Gilberto Cervinski, da coordenação do MAB, os R$ 4,5 milhões não serão
suficientes para resolver a situação das famílias, deveria haver um programa de moradia, de instalação de
luz. Esse valor corresponde ao faturamento de quatro ou cinco dias de uma empresa só (AGENCIA
BRASIL, 2006). A última informação recebido do Movimento indicava que grande parte dos recursos
estavam sendo usado para atividades que desrespeitavam a historia, tradição e costumes dos agricultores.
4
Ver www.dams.org
5
Ver http://www.worldbank.org/oed/extractive_industries/
6
O que Acselrad (2008) caracteriza como truncado por ter sido ao longo do tempo interrompida, incom-
pleta ou impedida de ser levado a cabo
7
A fala do representante do Banco Mundial foi captada como resultado da participação na consulta do
Banco Mundial em 2010.
8
MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2012, p.1
9
FOLHA DE SÃO PAULO, 2003, p. 27 Apud. ACSELRAD e BEZERRA, 2009, p. 2
10
Ibid., preface
11
BANCO MUNDIAL, 2009, p .117

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173
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175
KLEMENS LASCHEFSKI

GOVERNANÇA, NEODESENVOLVIMENTISMO E
AUTORITARISMO DIFUSO

Recentemente, uma onda de manifestações com dimensões nunca vistas desde a


redemocratização sacudiu o cenário político Brasileiro, que surpreendeu não apenas os
intrigantes do atual governo, mas também todas as instituições clássicas do sistema par-
lamentar de qualquer coloração partidária. Embora não foi possível identificar um foco
claro nas inúmeras reivindicações pontuais, que partiram da redução dos preços do
transporte público, da precariedade do sistema da saúde e da educação e do combate da
corrupção em torno das obras da Federação Internacional de Futebol (FIFA) para a Co-
pa do Mundo em 2014, poderia se sentir certa insatisfação generalizada com a represen-
tação política. Isto surpreendeu por que as manifestações ocorreram num momento em
que um governo “popular” do Partido dos Trabalhadores (PT), que entrou com a eleição
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no poder em 2003, conseguiu apresentar um
balanço econômico aparentemente sólido, mesmo diante das dificuldades enfrentadas
durante a crise econômica mundial de 2008 e dos anos subsequentes. De fato, não há
como negar os avanços em relação a um conjunto de medidas para o combate da pobre-
za que benefício milhões de brasileiros marginalizados e o sucesso das políticas econô-
micas que beneficiaram também a classe média. Cabe lembrar o vigor com que o go-
verno brasileiro se articulou para que o país assumisse um papel crescente no cenário
internacional.
Todos estes sucessos, em princípio, foram reconhecidos pela população como mos-
tram três vitórias nas eleições presidenciais para o governo petista, fato que torna o sur-
gimento das manifestações recentes ainda mais surpreendentes. Sendo cedo demais para
apresentar uma análise deste fenômeno, podemos aqui apenas partir de uma hipótese
vaga em relação à insatisfação sobre as limitações impostas ao exercício da cidadania
plena, que se manifesta na falta de transparência da tomada de decisões e a sensação de
impotência para influencia-la sobre tudo em relação aos gastos públicos.

176
Tal sensação de impotência agrava-se diante as contradições frente os discursos so-
bre a construção de “um novo mundo” que foi o slogan do Fórum Social Mundial
(FSM), em que se o governo se apresentou em 2003. Também cabe lembrar, neste con-
texto, o peso simbólico das biografias do Presidente Lula e da presidenta Dilma na luta
contra a ditadura e pela redemocratização e finalmente a inserção de muitas lideranças
de movimentos sociais e Organizações Não Governamentais (ONG) em cargos do go-
verno, atos que prometeram mais diálogo e participação da sociedade civil no geral.
Porém, ao contrário do que se esperava, em muitos assuntos defendidos por esses sujei-
tos políticos não houve avanço, por exemplo, a reforma agrária, a demarcação de terras
indígenas, a liberação de transgênicos, o combate do desmatamento, entre outros.
Nos últimos anos a discrepância entre as expectativas e atuação do governo se mos-
tra nas obras a serem realizadas nos Planos de Aceleração do Crescimento (PAC), que
envolvem um grande número de empreendimentos polêmicos. Analistas chamam a polí-
tica petista de o “novo desenvolvimentismo” ou “neodesenvolvimentismo” que marca-
ria a época do pós-neoliberalismo (SCHUTTE, 2012, ERBER, 2010; FORTES, FREN-
TES, 2012; BRESSER-PEREIRA, 2011; entre outros). Os pontos centrais são, entre
outros, investimentos em infraestrutura, estimulo de investimento residencial para com-
bater os déficits habitacionais, estabelecendo modalidades de crédito acessíveis para
grupos menos favorecidos (Programa Minha Casa, Minha Vida), uma política interna
que visa o aumento de consumo das famílias através da elevação do salário mínimo,
expansão do emprego formal e uma política de intervenção no mercado priorizando a
distribuição de renda mais equitativa, como por exemplo, o Bolsa Família; a política
externa independente dos países centrais que busca estreitar as relações com as outras
nações da América Latina e com os países BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) (ER-
BER, 2010, p. 29). Com estas linhas básicas a política brasileira insere-se numa tendên-
cia generalizada no nível global da adoção de abordagens keynesianas e estruturalistas
após a crise financeira em 2008-2009 (BRESSER-PEREIRA, 2011). Neste contexto, o
Estado assumiria, segundo o autor, um papel atuante similar àquele da época do desen-
volvimentismo dos anos 1950.
Morais e Saad-Filho (2011, p. 38) afirmam que o governo Lula não trouxe mudan-
ças revolucionárias, pois a transição iniciada por ele não rompeu totalmente com as po-
líticas ditas neoliberais dos anos 1990. De fato, muitas medidas adotadas pelos governos

177
petistas, sobretudo em relação à infraestrutura, já foram idealizadas no governo anterior.
Os Planos para o Aceleramento do Crescimento (PAC I e II), que incluem grandes obras
como hidrelétricas, rodovias, hidrovias e áreas de expansão da agricultura moderna,
tinham os seus antecessores nos programas Brasil em Ação 1996-1999 e Avança Brasil
2000-2003 durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. O exemplo mais sig-
nificante é a barragem Belo Monte, no rio Xingu, no Estado do Pará, a terceira maior
hidrelétrica do mundo. O projeto, então denominado Kararaô, era inserido num conjun-
to de seis grandes hidrelétricas previstas no II Plano Nacional de Desenvolvimento
(PND) do governo Geisel (1974-1979) (FALCÃO, 2010).
Justamente este projeto, que virou um dos mais polêmicos na gestão petista, era
também símbolo para o desenvolvimento não sustentável do regime militar, cujos pla-
nos de integração nacional resultaram, entre outros, em gravíssimos problemas ambien-
tais, a violência contra os povos da floresta e a ocupação desordenada do território pela
grilagem. Durante a "Década da Destruição", como foram chamados os anos 1980, a
crítica internacional ao este tipo do desenvolvimento, levou à mudança das estratégias
das instituições financiadores internacionais. O Banco Mundial optou pelo congelamen-
to do seu apoio por projetos de grande porte e vinculou os seus créditos à elaboração de
estudos de impacto social e ambiental e à existência de planos para a comunicação soci-
al com grupos afetados. Consequentemente, foi estabelecido gradativamente o regula-
mento do licenciamento de grandes projetos, controlado por um sistema de política am-
biental, composto por instituições específicas de prevenção e fiscalização ambiental e da
proteção da natureza. A participação de “interesses ambientais e sociais” foi formalizada
através da instituição de Audiências Públicas e da criação com conselhos deliberativos
nos níveis federal (Conselho Nacional do Meio Ambiente -CONAMA) e estadual (Con-
selho Estadual de Política Ambiental - COPAM no estado de Minas Gerais) compostos
por representantes do governo e entidades da sociedade civil (inclusive do setor priva-
do). Além disso, foram garantidos na Constituição (BRASIL, 1988) direitos específicos
para minorias, inclusive com respeito a demandas territoriais de grupos indígenas, qui-
lombolas e outros povos tradicionais.
A tendência de experimentar formas participativas na elaboração de políticas públi-
cas intensificou-se, sobretudo, a partir da Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, em 1992
(Eco 92), quando foi internacionalmente reconhecida a noção do desenvolvimento sus-

178
tentável. A ideia de alcançar este objetivo era é a conciliação dos “interesses” econômi-
cos, sociais e ambientais para alcançar um “consenso” sobre o caminho a serem toma-
das. Tais premissas permearam o cenário político dos anos 1990, que culminaram nas
ideias da Terceira Via de Antony Giddens (1996), que norteou a política de governos
socialdemocratas europeus e democratas nos Estados Unidos da América (EUA) “para
além da direita e da esquerda”, assim como a do governo do presidente Fernando Hen-
rique Cardoso (1995-2002). Ao contrário das políticas neoliberais, que promoveu a re-
dução das intervenções do Estado no mercado, reconheceu-se a necessidade do regula-
mento moral do mercado, o empreendedorismo com responsabilidade social, a promo-
ção de Parcerias Pública Privada (PPP) e a revitalização da sociedade civil. A última era
considerada importante na busca do desenvolvimento sustentável, já que ela assumiu
diversas tarefas de cunho social e ambiental que seriam da responsabilidade do Estado.
O apoio dessas iniciativas permitia a redução dos gastos do Estado, como recomendado
pelas recomendações neoliberais de instituições como o Fundo Monetário Internacional
(FMI) e o Banco Mundial, sem se retirar completamente da sua responsabilidade social
e ambiental.
Desta forma, já foram criadas as bases do neodesenvolvimentismo que procura à
inserção na conjuntura internacional numa “perspectiva humanista” que seria ”.antes de
tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional” (Fala do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva durante seu discurso de posse, em 2003, apud SCHUTTE, 2012). Os re-
centes projetos desenvolvimentistas, então, já deveriam corresponder ao novo quadro
institucional do sistema ambiental e as instâncias participativas.
Contudo, como mostramos em outros trabalhos, tornaram se cada vez mais frequen-
tes as queixas de determinados setores econômicos sobre a “morosidade de órgãos am-
bientais” e as “barreiras ao desenvolvimento” (ZHOURI, LASCHEFSKI, BARROS,
2005; LASCHEFSKI, 2011; entre outros). Na medida em que a pressão pelos empreen-
dedores aumentou, reforçaram-se as reivindicações dos movimentos sociais e das enti-
dades da sociedade civil relativos aos direitos conquistados na época da redemocratiza-
ção. Em 2006, o próprio presidente Lula tornou o conflito explicito, quando afirmou
durante a inauguração de uma usina de biodiesel no Estado do Mato Grosso que preten-
dia levantar todos os:

179
entraves que eu tenho com o meio ambiente, todos os entraves com o
Ministério Público, todos os entraves com a questão dos quilombolas,
com a questão dos índios brasileiros, todos os entraves que a gente
tem no Tribunal de Contas, para tentar preparar um pacote, chamar o
Congresso Nacional e falar: ‘Olha, gente, isso aqui não é um proble-
ma do presidente da República, não. Isso aqui é um problema do Pa-
ís’.1

Desde então, podemos observar uma série de medidas para agilitar a realização de
obras que afetam grandes extensões. Entre eles são a “desburocratização” do licencia-
mento ambiental, a revisão do Código Florestal e do Código da Mineração, e a criação
do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em torno da
reestruturação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Reno-
váveis (IBAMA), e os questionamentos relativos à constitucionalidade da demarcação
de terras indígenas no geral. Segundo Fortes e French (2012) as reações da sociedade
civil refletem-se:

Nos protestos e nas lutas dos trabalhadores nas grandes obras – tais
como hidrelétricas e construção e reformas de estádios – [que] colo-
cam em foco o impacto social e ambiental dos extensos [...] investi-
mentos em infraestrutura. O Brasil assiste hoje à multiplicação de
grandes projetos de construção civil numa escala que não era vista
desde o “milagre econômico” (1968-1974) durante a ditadura militar.
Os trabalhadores empregados nessas obras – assim como as comuni-
dades e o meio ambiente impactados por elas – são tratados pelas em-
preiteiras responsáveis com brutalidade e desdém. Velhos padrões
persistem, especialmente nas regiões mais remotas: emprego precário,
baixa remuneração, tratamento autoritário, acidentes de trabalho e
descaso pela saúde e segurança, somados a grandes danos ambientais
e destruição de redes sociais locais.2

E ainda afirmam mais adiante:

As controvérsias que cercam a Usina de Belo Monte ou a transposição


das águas do rio São Francisco – remete a conflitos fundamentais so-
bre o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo, com potenci-
al para alienar parcelas significativas da sua base de apoio.3

Cabe lembrar, como mostramos acima, que o neodesenvolvimentismo não pode ser
atribuído apenas ao governo petista, já que os principais elementos são compartilhados e
aceitos pela maioria dos partidos, sejam eles aliados ou da oposição. Consequentemen-

180
te, crescem as críticas também em relação aos governos estaduais, onde se pode identi-
ficar tendências semelhantes.
Quando olhamos os processos históricos em vários países, é possível verificar que
obras de infraestrutura de transporte e energia e a instalação de indústrias chaves como
mineração, exploração de petróleo, entre outros, foram quase sempre realizados por
regimes autoritários, a título de exemplo a Alemanha nazista. De modo geral, a imple-
mentação de tais projetos era acompanhada por políticas populistas justificando a sua
realização pela geração de emprego, garantindo assim o apoio de camadas menos favo-
recidas (política que denominamos “obras e esmolas”).
Obviamente, a situação política atual não pode ser comparado com regimes ditatori-
ais, diante os avanços das instituições democráticas. Não há mais a opressão de opiniões
políticas não desejadas pelo governo, à independência dos meios de comunicação é
formalmente garantida, além do fato que em tempos das redes sociais pelas redes de
informação eletrônicas a liberdade de informação dificilmente pode ser inibida. Devido
às estruturas participativas também e impossível atribuir a responsabilidade de ativida-
des percebidas como autoritárias apenas aos integrantes às instituições políticas formais.
De modo geral, as políticas públicas atuais são baseadas em decisões negociadas
entre os representantes de diversos partidos que compõem o governo e cada vez mais
com representantes da sociedade civil. Tais aspectos necessitam uma análise cuidadosa
quando procuramos esclarecer as origens daquela sensação de impotência que atualmen-
te esta se ampliando na sociedade, não restrito mais aos grupos marginalizados que so-
frem as consequências diretas das obras (neo)desenvolvimentistas. Vivemos então numa
situação de um autoritarismo difuso, em que há formas específicas da reprodução do
poder nas instâncias democráticas.
Dentro deste contexto chamamos atenção ao fenômeno da continuação de altos índi-
ces de violência no campo na última década documentados anualmente pela Comissão
Pastoral da Terra (CPT), entre eles o massacre em Felisburgo/MG, em 2004 com cinco
vítimas, o assassinato da Irmã Dorothy Stang em Anapu/PA, em 2005 (CPT, 2013).
Segundo Hannah Arendt (1985) o poder - aqui falamos do poder formal do estado -
apenas pode ser mantido quando os cidadãos respeitam a sua autoridade. Se o poder do
Estado esta sendo ameaçado, ele procura reestabelecer a ordem social por meio de vio-
lência, executado por instituições legitimados como a polícia ou as forças armadas. Nes-

181
ta situação, a violência acontece em situações de fraqueza e esta sendo aplicada como
último meio para manter o poder. Nos casos supracitados a situação parece ser diferente,
pois a lentidão do julgamento dos culpados ou mesmo a impunidade fazem crer que a
violência “extra estadual” se tornar um elemento estrutural do próprio poder para facili-
tar a implementação de projetos desenvolvimentistas. Isto porque a violência se torna
um fato costumeiro, visto como algo que faz parte da normalidade no cotidiano, que ao
mesmo tempo contribui para o enfraquecimento de eventuais grupos de resistência sem
que a violência legitimada pelo Estado precise interferir. Tal observação se faz necessá-
ria, pois como mostram inúmeros casos registrados no Mapa dos Conflitos Ambientais
em Minas Gerais (GESTA, 2011), há uma crescente atuação duvidosa de empresas mul-
tinacionais que, embora raramente podem ser responsabilizados diretamente, conse-
guem se instalar em regiões caracterizadas pela “ausência de lei”. Às vezes tais empre-
sas atuam como detentores da autorização para promover o “desenvolvimento”, substi-
tuindo o próprio Estado.
É neste contexto em que os Ministérios Públicos ocupam um espaço essencial com
respeito à preservação de direitos e, assim configuram, frequentemente, a última espe-
rança para aqueles negligenciados ou prejudicados pelo desenvolvimentismo. Isto por-
que o Ministério Publico (MP), criado em 1988, é responsável não apenas para as fun-
ções da promotoria mas também para a defensoria do povo no sentido de ombudsman
superpoderoso (HOFFMAN, 2011). Por isso, o órgão foi desenhado com grande auto-
nomia de outras instituições governamentais para facilitar a investigação de entidades
governamentais e privadas que violaram direitos garantidos pela constituição, particu-
larmente nas áreas do meio ambiente, dos direitos de consumidores, idosos e crianças
assim como da propriedade publica. Também cabe ao MP segurar a conformidade das
agências governamentais com a lei infraconstitucional e o combate à corrupção
(HOFFMAN, 2011). Apesar disso, observou-se que o MP não foi apenas alvo de críticas
devido a sua suposta contribuição para a morosidade do licenciamento ambiental, mas
também as dificuldades em relação à Justiça, que, pelo menos em casos de projetos con-
siderados importantes para o desenvolvimento, raramente sustentou liminares ou reco-
mendações do MP. Em consequência, os últimos procuraram caminhos extrajudiciais,
por exemplo, através da elaboração de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), con-
solidados pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (BRASIL, 1985) e a Lei Federal nº

182
8.078, de 11 de setembro de 1990 (BRASIL, 1990), como instrumento da resolução
negociada de conflitos em torno de interesses difusos, interesses coletivos ou interesses
individuais homogêneos.
Diante destes aspectos a instituição chamou atenção do Banco Mundial, que estabe-
leceu em 2009 uma Termo de Cooperação Técnica (TCT) com o órgão, financiado pelo
Institutional Development Fund (IDF): fundo para o desenvolvimento institucional com
U$399.000,00. O coordenador por parte do Banco Mundial, Alberto Ninio, justificou o
projeto como um dos pilares da estratégia do Banco Mundial, "visando à redução da
pobreza, é a governança. O Ministério Público tem como parte de suas funções cuidar
para que a governança se dê de forma transparente e no cumprimento da lei”4.
Os objetivo são 1) o fortalecimento da capacidade institucional para aumentar a efi-
ciência em relação da alocação de recursos humanos e 2) a assistência técnica para pilo-
tar novas metodologias e técnicas para a quantificação de danos ambientais e a capaci-
tação dos promotores para oferecer mediação fora dos tribunais e das cortes da justiça
com o objetivo de resolver as insuficiências da legislação e regulação estadual e a prote-
ção dos direitos difusos constitucionais (HOFFMAN, 2011). Em relação ao último pon-
to, o Banco Mundial considera o MPMG como exemplar por causa da sua postura mo-
derna que adota na solução de conflitos (MPMG, 2010).
Destacamos aqui o componente ambiental da parceria que visa a realização de uma
serie de cursos sobre aspectos técnicos da mediação e negociação de conflitos e a con-
tratação de um estudo para rascunhar uma estrutura para a analise legal-ambiental para
o licenciamento das atividades de mineração no Estado.
O MP, então, esta, assim como as outras instituições públicas, cada vez mais apos-
tando em estratégias da negociação entre diversos interesses com o objetivo de alcançar
consensos entre as partes. Nossa preocupação, é neste contexto, se por meio desses ins-
trumentos os direitos podem ser preservados, que, por definição, devem ser garantidos e
não são passíveis à negociação. Isto porque qualquer processo de negociação é permea-
do por jogos de poder que configuram riscos para os sujeitos mais fracos, que necessi-
tam a intervenção do Estado Democrático de Direito.
Contudo, como a resolução negociada de conflitos e um elemento chave nas abor-
dagens de governança, apresentamos a seguir primeiro uma contextualização histórica

183
desta abordagem, que ocupa um espaço importante nas estratégias do Banco Mundial
para a difusão da ideologia do desenvolvimento em países ditos periféricos.

O CONCEITO DA GOVERNANÇA DO BANCO MUNDIAL

O paradigma da governança consolidou-se a partir dos anos 1970. O ponto de parti-


da foram os resultados insatisfatórios em relação ao crescimento econômico. Segundo
Kaufmann et al., (2010), os resultados desastrosos de políticas desenvolvimentistas le-
varam a instituição a desenvolver políticas de ajustamento com a “face humana”. Neste
contexto, entre as explicações para o baixo desempenho de alguns dos mais pobres paí-
ses apoiados pelo Banco Mundial através do seu braço interno a International Deve-
lopment Association (IDA) foi identificado a gestão fraca do setor público. Inicialmente,
foram formuladas, a partir de visões weberianas, estratégias de desenvolvimento que
focalizaram mais o quadro institucional daqueles países. Durante a onda neoliberal, so-
bretudo depois da queda do muro de Berlim, o conceito da governança sofreu um dire-
cionamento ideológico no sentido do fortalecimento da economia do livre mercado,
embora alguns aspectos institucionais, políticas e sociais foram destacadas como neces-
sários no caminho para sua construção. Ao mesmo tempo a conceituação da boa gover-
nança foi influenciada por acontecimentos como a Eco 92, que destacava a necessidade
da participação da sociedade civil como “watchdog” para enfrentar os problemas ambi-
entais e distorções sociais do modelo de desenvolvimento até então implementado
(KAUFMANN et al., 2010).
Desde a ano 1999 o Banco Mundial esta lançando dados comparativos sobre o esta-
do da governança de todos os países (Worldwide Governance Indicator). A avaliação da
governança, definida como “as tradições e instituições através delas esta sendo exercida
a autoridade num país” abrange:
A) o processo da seleção, monitoramento e substituição de um governo:
1) Voz e Acountability (Voice and Acountability - (VA)) que se refere as possibi-
lidades de participação de cidadãos de um país para a seleção do seu governo, a li-
berdade de expressão, de associação e da imprensa;

184
2) Estabilidade política e ausência de violência /terrorismo (Political Stability
and Absence of Violence (PV)) e a capacidade do governo de formular e programar
efetivamente políticas coerentes, e;
3) A eficiência do governo (Government Effectiveness (GE)) em relação da qua-
lidade de serviços públicos e o grau da independência de pressões políticos, a quali-
dade da formulação e implementação de políticas públicas e a credibilidade do com-
promisso do governo diante tais políticas.
B) a capacidade do governo de formular e implementar efetivamente políticas coe-
rentes, medido a partir da qualidade regulatória (Regulatory Quality (RQ)) que se re-
fere a formulação e implementação de políticas coerentes que permitem e prometem
o desenvolvimento do setor privado.
C) o respeito de cidadãos e do estado às instituições que estão administrando intera-
ções econômicas e sociais entre eles. Os critérios são o funcionamento do “O Estado
de Direito (Rule of Law (RL)) e o controle de corrupção (Control of Corruption
(CC)) (KAUFMANN et al., 2010, p. 4; modificado pelo autor).

Cabe mencionar ainda o “Comprehensive Development Framework" (CDF) criado


pelo Banco Mundial que abrange uma série de princípios para guiar o desenvolvimento
e a redução da pobreza incluindo uma visão de desenvolvimento ao longo prazo. Como
o país e responsável para a coerência e eficiência da aplicação de recursos financeiros
dos doadores, a sua confiabilidade esta sendo avaliada através da existência de parcerias
entre stakeholders diferentes como a sociedade civil, setor privado e financiadores ex-
ternos que devem garantir a “boa governança”.
Na prática, o termo boa governança se refere então a uma nova visão de um Estado
que é reduzido aos suas funções centrais, efetivo e eficiente, orientado para promover o
desenvolvimento, que procura a cooperação com o setor privado e a sociedade civil.
Neste contexto o estado assume o papel de um mediador e regulador entre os atores
supracitados, assim como entre os atores globais e locais.
Frequentemente, uma condição básica para uma boa governança não esta sendo da-
da: a regulamentação clara sobre os meios de cidadãos e da sociedade civil para exercer
o controle social das autoridades e dos processos decisórios em geral, abrem brechas
para o abuso de poder por sujeitos em determinadas posições nas instituições políticas e

185
administrativas, que claramente tem a ver com a falta de transparência e a consequente
fraqueza institucional para combater a corrupção. A governança, então é ineficiente com
respeito à alocação de recursos (capitais ou humanos) e pouco responsivo diante as de-
mandas da população. Nesta situação a responsabilidade social (accountability) - que
significa a “prestação de contas” das autoridades em relação aos seus atos e as formas
como os mesmos são conduzidas ou aos resultados diante os objetivos de determinados
ações - não pode ser garantida.
Para “remediar” situações como estas existem duas possibilidades: reforçar o Estado
do Direito e aplicação rigorosa da legislação em vigor. Contudo, tal estratégia é difícil
de ser realizada em situações em que partes do judiciário estão permeados por relações
de poder de grupos influentes que se apropriam de mecanismos herdados, coronelismo,
como a “troca de favores” e outras formas de negociação fora do contexto formal
(CARVALHO, 1997). A impunidade e a morosidade da justiça desestimulam os cida-
dãos a recorrer aos seus direitos, pois os caminhos oficiais de controle social são inefi-
cientes ou mesmo inexistentes. Estes por sua vez, reproduzem este comportamento nu-
ma forma circunscrita bem apropriadamente como “jeitinho brasileiro”, fazendo com
que no cotidiano a arbitrariedade se supõe às regras formalmente estabelecidas. É nessas
situações em que as políticas de boa governança apostam em formas alternativas de
tratamento de conflitos.
Entre eles é a "mediação entre interesses diferentes na sociedade para alcançar o
consenso amplo sobre àquilo que é do melhor interesse para toda comunidade e a ma-
neira como isso pode ser alcançado”5. A orientação para o consenso já pode ser conside-
rada como uma condição básica para identificar “boa governança” nos esquemas da
avaliação dos países pelo Banco Mundial. Acredita-se então que a resolução de conflitos
pode ser alcançada através da negociação entre interesses diversos, sobretudo em situa-
ções de fraqueza institucional de determinados governos. É neste contexto em que se
insere a parceria entre o MPMG e o Banco Mundial mencionado acima, quando alegam
procurar caminhos extrajudiciais.

POLÍTICAS DE GOVERNANÇA EM MINAS GERAIS

186
Segundo as manifestações públicas do Banco Mundial, Minas Gerais é interessante
para um projeto piloto em torno da Governança, pois configura um microcosmo do país,
dado a sua variedade geográfica e socioeconômica que corresponde a uma grande gama
de situações que promotores enfrentam em outros estados e no nível nacional. De fato,
desta a época da colonização Minas Gerais era sempre alvo de políticas de apropriação
territorial devido as suas riquezas em minerais, metais e pedras preciosas. Testemunha
disso é a região atualmente denominada Estrada Real que passa por Parati atravessando
cidades históricas como Tiradentes e Ouro Preto, se estendendo até Diamantina, que
marcam antigos centros de poder político e econômico. Não surpreende então que nes-
tes também se formaram elites intelectuais que enfrentaram a coroa portuguesa durante
a luta pela independência conhecida como a Inconfidência Mineira. No final do século
XIX já iniciou-se com a fundação da cidade de Belo Horizonte a política de industriali-
zação planejado pelo Estado em torno da mineração em larga escala, que pode ser en-
tendida como antecessor de estratégias que posteriormente foram teorizadas dentro das
grandes correntes da teoria do desenvolvimento. Entre eles destacam-se duas ondas de
investimento público em infraestrutura, que se reflete a construção na malha viária de
ferrovias, hoje sendo substituídos por rodoviárias, e de hidrelétricas no início do século
XX e a partir dos anos 1950, quando surgiram as megabarragens de Três Marias e Fur-
nas (inauguradas em 1962 e 1963, respectivamente). Posteriormente, a região metropo-
litana se formou num centro da siderurgia, indústria de maquinas pesadas e automobilís-
tica, atraídos por políticas de investimento favoráveis para empresas estrangeiras, pro-
cesso que acelerou a urbanização do estado e reestruturação do campo para sustentar
deste centro econômico. A consequência e a concentração maciça da população na Re-
gião Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), enquanto as zonas rurais são domina-
das por áreas monoculturadas para produzir alimentos e carvão vegetal, hidrelétricas e
áreas para a exploração de minério. Em consequência, Minas Gerais já sofreu problemas
e conflitos semelhantes como a região da Amazônia, atualmente.
Quando a Banco Mundial começou a solicitar a Avaliação de Impactos Ambientais
(AIA) e sociais para projetos financiados por ela, foi criada, em 1977, a Comissão de
Política Ambiental. Esta, por sua vez foi transformada em 1983 no COPAM, deliberati-
vo, paritário e normativo. Segundo a entidade ambientalista a Associação Mineira de
Defesa de Meio Ambiente (AMDA):

187
O COPAM foi o primeiro órgão deliberativo de política ambiental cri-
ado no Brasil a contar com participação da sociedade civil organizada
para defesa do meio ambiente. Para um país que estava mergulhado
nas trevas do autoritarismo, tratava-se de um grande avanço.6

Hoje o COPAM faz parte da estrutura orgânica da Secretaria de Estado de Meio


Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) no nível estadual junto com a
Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), do Instituto Estadual de Florestas (IEF)
e do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM). Desde os anos 1970 as reestrutu-
rações subsequente dos órgãos ambientais foram acompanhados por uma forte atuação
de algumas Organizações Não Governamentais (ONG).

Devido a grande atuação do movimento ambientalista no estado de


Minas Gerais, e do princípio constitucional da participação nas políti-
cas de meio ambiente, a atuação junto as entidades parceiras, interes-
sados e usuários das políticas públicas, é uma marca na política ambi-
ental. Isso se reflete na forte atuação dos conselhos junto a política
ambiental, inclusive sendo parte decisiva nos processos de regulariza-
ção ambiental.7

Neste contexto destaca-se a já mencionada AMDA, criada em 1978, que, de certa


forma, delineia bem uma mudança das políticas ambientais que aconteceram nos últi-
mos 20 anos com a consolidação do termo desenvolvimento sustentável desde a Confe-
rência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), a
chamada Rio 92:

O confronto marcou a primeira fase de atuação da entidade, pois am-


bientalistas eram vistos como românticos e excêntricos ou como ini-
migos do progresso. A sede da AMDA chegou a ser visitada pela Po-
lícia Federal, que buscava panfletos contra o governo.
Naquela época, as chaminés das indústrias ainda eram vistas apenas
como sinônimo de progresso, e os ambientalistas que ousassem con-
testar a poluição gerada por elas – e por outras fontes degradadoras –
eram considerados radicais. Num primeiro momento, em função do
contexto, a AMDA e outros movimentos ambientalistas tiveram que
ser radicais nas opiniões e ações para combater, com a mesma intensi-
dade, o setor empresarial que só enxergava o lucro, sem interesse pela
preservação ambiental e uso racional dos recursos naturais.
Marcando uma segunda fase em sua existência, a AMDA abandona a
posição dicotômica que prevalecia no movimento, que debitava ao se-

188
tor produtivo todas as mazelas ambientais, e passa a identificar o papel
negativo de ações ou omissão por parte também do setor público, e as
raízes histórico-culturais da degradação no comportamento dos indi-
víduos.
A partir daí, houve uma lenta e gradual aproximação com o setor em-
presarial, por meio do diálogo transparente e da atuação conjunta em
áreas de interesse comum. Os poluidores tiveram que incorporar ao
desenvolvimento de suas atividades a vertente ambiental, uma vez que
a legislação recém implantada e a sociedade organizada nos movimen-
tos ambientalistas exigiam essa mudança.8

A AMDA idealizou e criou em 2004 o Fórum de ONGs Ambientalistas de Minas


Gerais, que é um grupo de discussão formado por 200 representantes de instituições não
governamentais mineiras que interagem por meio de uma lista de discussão virtual com
e representantes do Sistema Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SISE-
MA), para trocar ideias e opiniões, e debater a política ambiental do Estado (AMDA,
2013). Reflete-se nesta aproximação ideais que poderiam indicar um quadro institucio-
nal que corresponde às ideais de uma “boa governança” de acordo do Banco Mundial.
Outro exemplo para a experimentação de modelos de governança são as propostas
para o Protótipo de Carbono (Prototype Carbon Fund (PCF)) da Valourec & Mannes-
mann Tubes – V&M do Brasil, e a Plantar S.A. apresentadas para o Banco Mundial em
2002 que previu a venda de créditos de carbono no mundo através do International Fi-
nance Corporation (IFC), braço financeiro do Banco Internacional para Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD). Tais projetos foram os primeiros que procuraram o financia-
mento para o plantio de monoculturas de eucalipto através do Mecanismo de Desenvol-
vimento Limpo (MDL), que permite poluidores dos países industrializados comprarem
certificados de equivalentes de carbono de projetos em países em desenvolvimento que
contribuem para a fixação de carbono do ar. Neste contexto, as plantações de eucalipto
com a sua capacidade de fixar carbono na madeira, são consideradas “sumidouros de
carbono”. A condição básica para a elegibilidade desses projetos pelo Banco Mundial
era a certificação florestal do Conselho de Manejo Florestal (sigla em inglês para Forest
Stewardship Council (FSC)), que as duas empresas obterem em 1999.
O FSC foi criado em 1993 pelo World Wide Fund for Nature (WWF) com apoio de
ONGs internacionais como o Greenpeace e os Amigos da Terra para promover a certifi-
cação de florestas “bem manejadas” baseadas em princípios e critérios que abrangem
aspectos da conservação de florestas, assim como os direitos sociais, humanos, políticos

189
e culturais. A certificação esta sendo executados por órgãos privados em empresas flo-
restais que procuram um diferencial no mercado, se apresentando como ecologicamente
correto. O FSC se diferencia em relação a outros esquemas de certificação através de
um mecanismo de resolução de conflitos, o chamado “stakeholder process”, que prevê a
participação de todas as partes que são afetadas de forma positiva ou negativa pelos
empreendimentos florestais. Assim, o FSC é considerada como uma forma de gover-
nança:

Certificação opera na fronteira da globalização (o que tem tendido a


colocar o mercado e/ou os interesses da floresta global em primeiro
lugar) com localização (o que tem tendido a colocar pessoas e/ou de-
senvolvimento em primeiro lugar). Sendo assim, está assentada no
centro de muitos desafios atuais econômicos, sociais, ambientais e po-
líticos, o que envolve pôr trade-offs pelo desenvolvimento sustentável.
Certificação florestal é um instrumento que foi desenvolvido em am-
plos princípios de desenvolvimento sustentável. Ela consta de muitos
elementos que apontam para uma nova forma de governança de múlti-
plos interesses.9

Essa estrutura de governança global pretende, por um lado, corrigir falhas políticas
em relação à proteção das florestas através de incentivos econômicos para estimular as
empresas a respeitar a legislação em vigor e melhorar o seu desempenho ambiental e
social. Isto por que através do selo verde aumentam-se as perspectivas de obter preços
maiores no mercado de consumidores ecologicamente conscientes. Por outro lado, espe-
ra-se corrigir falhas do mercado em relação a problemas ambientais e sociais por meio
da sinalização ao consumidor que se trata de um produto ecológico e socialmente corre-
to, dando ele a possibilidade de contribuir para diminuir as pressões ambientais (LAS-
CHEFSKI, 2010).
As certificações das empresas Plantar e V&M foram também possível por causa das
especificidades da atuação de ONGs mineiras, sobretudo da já mencionada AMDA e da
Biodiversitas. As duas entidades elaboraram os critérios para a certificação de planta-
ções de florestas de rápido crescimento, ou seja, as monoculturas de eucalipto e pinus,
para a representação nacional do FSC, embora no nível internacional a certificabilidade
era alvo de disputas dentro da organização.
Os exemplos supracitados são apenas dois exemplos de estruturas distintas de go-
vernança que permeiam as políticas nacionais e internacionais, estaduais e municipais

190
aplicadas em Minas Gerais, que, certa forma, explicam o interesse do Banco Mundial de
estabelecer uma parceria inédita com o Ministério Público neste estado.
Porém, em ambos os casos observou-se que, ao nosso ver os objetivos de uma boa
governança não foram alcançados. Segundo Carneiro (2003) no COPAM aconteceu ao
longo dos anos um processo da oligarquização do poder entre os conselheiros com re-
gras do jogo bastante consolidadas que dificulta a participação de novos atores na cena
da política ambiental em Minas Gerais, sobretudo quando se trata de representantes de
grupos atingidos por grandes projetos. As assimetrias da representação se tornaram bas-
tante visível nas negociações em torno dos atingidos das indenizações no âmbito dos
processos de licenciamento de grandes projetos, como hidrelétricas. Vários estudos
mostraram que a maioria dos atingidos foram prejudicados em decorrência da realização
de tais projetos (ZHOURI, LASCHEFSKI, PAIVA, 2005; ZHOURI, TEIXEIRA, LAS-
CHEFSKI, 2012; ZUCARELLI, 2006; entre outros).
No caso da certificação pelo FSC, no chamado “stakeholder process”, os moradores
locais sofreram os impactos negativos das plantações de eucalipto, como falta e/ou, con-
taminação de água, exposição de agrotóxicos e perda da sua soberania alimentar devida
a transformação do meio ambiente local foram confrontados com ONGs, empresas e
instituições públicas nacionais e internacionais, que deslegitimaram as experiências vi-
vidas pela população local (LASCHEFSKI, 2005; 2008).

FORUNS PARTICIPATIVOS COMO LOCI DE DISPUTA PELO PODER

Diante dos objetivos deste trabalho não há espaço para detalhar os problemas cita-
dos nestes dois contextos acima, que já foram tratados em outros trabalhos (CARNEI-
RO, 2003; LASCHEFSKI, 2010; 2008; ZHOURI, LASCHEFSKI, PAIVA, 2005). Con-
tudo há alguns aspectos básicos em comum que elucidam as limitações de estratégias da
resolução negociada de conflitos, que procuramos analisar a seguir.
Como mostramos em Laschefski e Costa (2008), entendemos que as estruturas par-
ticipativas configuram campos sociais no sentido do conceito de Bourdieu, em que a-
contecem lutas concorrenciais sobre o poder. O renome e a posição dos integrantes na
hierarquia destes campos dependem seu capital social. Este, no sentido de Bourdieu,
abrange além do capital econômico a formação escolar, diplomas obtidos, formas de

191
conhecimento e habilidades que são necessários para adquirir o reconhecimento dos
outros integrantes do campo. Além disso, os indivíduos podem ganhar ou perder o seu
capital social quando conseguem o reconhecimento por outros integrantes do campo.
Desta forma, é possível acumular ou perder capital social, ou subir ou descer na hierar-
quia. Em consequência, o campo é composto por em atores dominantes ortodoxos e
dominados heteroxos. Cada campo, por si mesmo, está produzindo capital social e habi-
tus, o último entendido como um sistema de disposições duráveis que configura a ma-
triz de percepções, de apreciações e de ações, que se realiza em determinadas condições
sociais. O habitus é um certo modo dos agentes se apresentarem, comportarem e rela-
cionarem entre si de acordo de regras não formalizadas que surgiram por meio da inte-
ração entre os sujeitos ao longo do tempo. Assim, o habitus regula - em parte inconsci-
entemente - o modus operandi do referido campo.
Embora os campos sociais são marcados pela disputa sobre o poder entre os inte-
grantes, existem alguns certos pressupostos comuns que todos compartilham e ordenam
o seu funcionamento. Bourdieu introduziu a noção de doxa para esse conjunto de pres-
supostos que os antagonista da ortodoxia e da heterodoxia compartilham e admitem
tacitamente. Trata-se do fundo necessário para em que os dominantes e dominados man-
tém o dialogo, se tornando adversários-cúmplices. Assim, a oposição da heterodoxia
funciona como reforço da ordem do campo em questão, pois admite-se o debate sobre
os argumentos da ortodoxia, que devem ser rebatidas ou modificadas.
No contexto deste trabalho, interessa a legitimidade de certas “verdades” ou crenças
embutidas na doxa que estão sendo comunicadas para a sociedade afora, aquilo que
Bourdieu chama o “arbitrário social” englobado na doxa. A construção dessa “verdade
oficial” ou opinião hegemônica depende menos da validade do seu fundamento argu-
mentativo, mas, sim, do capital específico e simbólico, ou seja, do poder acumulado
pelos seus protagonistas no campo (BOURDIEU, 1983). Isto refere-se sobretudo ao
desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo, como veremos a seguir.

O AUTORITARISMO DIFUSO NOS CAMPOS DA POLÍTICA AMBIENTAL


MINEIRA

192
Bourdieu oferece, com os conceitos citados acima, a nosso ver, um instrumentário
apropriado para a análise dos novos fóruns participativos. Porém, na análise dos mes-
mos é necessário considerar que se trata de campos artificialmente criados em que al-
guns elementos básicos do conceito de Bourdieu são pré-estabelecidos. Em consequên-
cia, a hierarquia do poder já foi determinado antes do início das atividades do campo,
consolidando assim antecipadamente as assimetrias sociais entre os seus integrantes. É
neste contexto, em que, a nosso ver, se manifesta o autoritarismo difuso nas estruturas
de governança atual. Alguns dos aspectos baseados nas pesquisas realizadas na última
década resumimos a seguir:
1. Definição da doxa: Seja no contexto da certificação florestal, do processo do li-
cenciamento ou do planejamento urbano, a atividade ou a obra já foi definido em e-
tapas de planejamento anterior. O pano de fundo em todos os casos é a crença de um
único caminho para o desenvolvimento, como mostramos acima. Ou seja, o destino
do lugar em que os mesmos seriam realizados já é definido antecipadamente, confi-
gurando assim a parte da doxa, que não é o sujeito de debates do campo. Em situa-
ções nas quais tais projetos implicam em impactos territoriais significativos, como no
caso de monoculturas de grandes extensões ou grandes obras, este procedimento im-
possibilita a reflexão sobre usos alternativos naqueles territórios, que talvez atendes-
sem melhor os desejos daqueles que lá vivem. São invisibilizados os projetos para o
futuro dos grupos atingidos, impedindo assim a construção autônoma da sua própria
história.
2. Definição dos integrantes do campo: De modo geral, a escolha de representantes
ou lideranças para participar em conselhos ou processos de consulta pública acontece
de forma arbitrária por indicação. Os representantes da sociedade civil são escolhidos
através do seu capital específico, que justifica o seu enquadramento do campo, a-
brindo assim possibilidades de influenciar o percurso dos debates pelos atores domi-
nantes do campo. O critério mínimo é ser um representante da “sociedade civil orga-
nizada”, ou seja, de uma entidade sem fins lucrativos formalizada e registrada. Ob-
serva-se também a distribuição desigual de conselhos, composto na grande maioria
de representantes do próprio governo, entre as instituições responsáveis para o plane-
jamento, geração e distribuição de energia, infraestrutura e mineração que são justa-
mente aqueles que administram o “desenvolvimento”. Na conjuntura atual, tais insti-

193
tuições mantêm fortes vínculos com os empreendedores (públicos ou privados), em-
presas mistas, ou são envolvidos em PPP. Observa-se, então o espírito do empreen-
dedorismo nos discursos, em que a geração do lucro (renda) prevalece em detrimento
dos interesses públicos.
3. Contratos diretos entre consultores e empresas que elaboram estudos ambientais, e
outros documentos exigidos no âmbito do licenciamento ambiental ou da certifica-
ção: como consequência, os consultores têm interesses comerciais e estratégicos na
elaboração de avaliações ‘positivas’ para agradar o mandante, mesmo que ele não
cumpra as exigências solicitadas ou se encontra em situações conflituosas com a po-
pulação local. Como detentores de capital específico - as informações que servem,
via da regra, como base na construção da verdade oficial da ortodoxia - os empreen-
dedores e seus consultores tem vantagens em relação dos demais integrantes do cam-
po.
4. Definição dos Termos de Referências (TR) para a execução de estudos ambientais
e sociais: a elaboração dos TR acontece sem a participação dos atingidos, impedindo
assim o controle social sobre a produção de informações no lugar onde vivem.
5. Disponibilização de informações: de modo geral, as informações são providencia-
das numa linguagem técnica que dificultam o entendimento de pessoas menos instru-
ídas. Frequentemente, são tendenciosas, destacando os benefícios do projeto em
questão, incorporados num discurso abstrato sobre as chances do desenvolvimento,
sem trazer informações claras sobre as reais consequências e impactos. Além disso,
as informações são de difícil acesso, que as vezes envolve viagens e recursos finan-
ceiros para obtê-las, limitando as possibilidades de aquisição do capital social para
participar de forma substantiva no campo.
6. Incapacidade de enxergar a avaliação de impactos como construção social: en-
quanto a existência de um impacto pode ser comprovada por dados objetivos, a ava-
liação da sua gravidade depende das representações sociais dos referidos grupos com
o meio em que vivem. A título de exemplo, lembramo-nos de comunidades locais
que dependem da água superficial in natura. Tais grupos avaliam a sua poluição di-
ferente do que a população urbana com acesso à água tratada. Contudo, maior credi-
bilidade em processos decisivos tem especialistas que trabalham com tabelas sobre a
qualidade da água preestabelecidas politicamente, enquanto as experiências de gru-

194
pos locais que relatam a morte de peixes, doenças na pele, entre outros, não são tra-
tados como fatos objetivos.
7. Supervalorização do conhecimento técnico e as suas formas de apresentação em
relação ao saber local: dados técnicos, representados em gráficos, tabelas, mapas e
imagens de satélite por meio de data show, a postura e a forma de falar do apresenta-
dor (habitus) são utilizados como capital social para intimidar e deslegitimar pessoas
de baixa escolaridade que apresentam as seus dados em relatos orais utilizando lin-
guagem simples. Frequentemente, devido as formas distintas de apresentação de in-
formações, este conhecimento técnico fica despercebido pelos demais integrantes do
campo impossibilitando o entendimento mutuo.
8. A escolha dos locais de consultas públicas: os locais das consultas públicas se en-
contram via de regra em locais distantes das comunidades afetadas, as vezes em pré-
dios públicos, centros de convenções ou hotéis, que configuram além das dificulda-
des do acesso físico também uma barreira social para pessoas que nunca circularam
nestes ambientes antes.
9. A tendência de conduzir a mediação entre diferentes "grupos de interesse" de for-
ma abusiva para "democratizar" direitos individuais: nestas situações, a diferença en-
tre “interesses” e “direitos” é vista como um problema de semântica. Audiências pú-
blicas tendem a tornar-se discussões emocionadas entre grupos "pró" e "contra", nas
quais direitos individuais e difusos são tratados como sacrifícios necessários para o
bem-estar geral da sociedade. A reprodução social de populações inteiras pode ser
afetada, incluindo a expropriação de suas terras a mando de uma "maioria" abstrata,
inventada no discurso desenvolvimentista. Esta "cultura moderna de mediação" já é
comum em processos de licenciamento envolvendo grandes projetos como barra-
gens, causando conflitos sociais para as populações atingidas.
10. Necessidade da comprovação do “direito a permanência”: grupos ameaçados por
projetos desenvolvimentistas são obrigados a apresentar provas que pertencem a um
determinado grupo, que tem o seu direito de permanecer no lugar em questão garan-
tido pela Constituição (BRASIL, 1988). Para isso, eles têm que se enquadrar em cri-
térios estabelecidos pelos próprios “invasores” que permitem a sua identificação, en-
tre outros, como índio, quilombola, geraizeiro ou vazanteiro. Entretanto, para usufru-
ir o seu direito de permanência, precisam se subordinar a planos de manejo, os quais,

195
por sua vez, foram elaborados dentro de critérios estabelecidos por agentes de fora. O
“caboclo comum” torna-se invisível no referido processo, sem possibilidade de rei-
vindicar um direito de permanência algum.
11. Obrigação de fazer reuniões da conciliação dos interesses: os conceitos de gover-
nança partem de hipótese que o dialogo entre os portadores de interesses divergentes
é a chave para a resolução de conflitos. Tal visão mostrou ingênua como verificamos
em estudos de campo no contexto da certificação florestal. Isto porque os heterodo-
xos do campo, de modo geral, correm risco real de repressão quando denunciam irre-
gularidades. Esta aparece na maioria dos casos de forma difusa através da provoca-
ção de conflitos dentro das próprias comunidades atingidas. São nestas situações em
que a violência, como descrito acima aparece, sem que os verdadeiros mandantes
possam ser localizados e punidos.

Além dos problemas enunciados anteriormente, é preciso destacar que a questão do


autoritarismo difuso refere se também à cognição dos integrantes da ortodoxia, já que
ela que cria e divulga a verdade oficial do campo. Na conjuntura política atual, as linhas
gerais do neodesenvolvimentismo, como apresentados acima, são compartilhadas pela
grande maioria dos partidos representados no sistema político, sejam nos níveis federal
ou estaduais. Trata-se de uma doxa tacitamente concordada, cuja questionabilidade nem
é percebida pelos agentes dominantes devido a sua socialização no sistema urbano in-
dustrial capitalista, construída sobre os pilares do desenvolvimentismo. Todo sistema de
produção do conhecimento, desde a educação infantil esta desenhado para sustentar esta
visão do desenvolvimento, que é tratado como um processo evolutivo, imutável ou uma
lei natural que nem precisa ser mais verbalizado. Obras, que contribuem para este de-
senvolvimento são consideradas inquestionáveis. Com base neste entendimento são
construídas as visões do mundo, as crenças sobre a modernidade e finalmente as rela-
ções do poder. Integrantes inseridos neste campo, mesmo com as melhores intenções,
tem grandes dificuldades de distanciar desta verdade oficial numa forma que podem
enxergar e validar que existem socializações baseadas em outras visões sobre o mundo.
Este é o dilema das vítimas do desenvolvimento. Em consequência, devido às assimetri-
as de poder nos loci de negociação delineados anteriormente, os sujeitos mais fracos
podem ser privados dos seus direitos.

196
A RESOLUÇÃO NEGOCIADA DE CONFLITOS NO ÂMBITO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO ESTADUAL DE MINAS GERAIS

Diante do exposto fica evidente que os atuais procedimentos na regulação ambiental


estão perdendo a sua função para o controle social de empreendimentos altamente im-
pactantes. Como já dito, o MP nas suas esferas federal e estadual eram a única institui-
ção para recorrer através do instrumento da Ação Pública Civil (ACP) no caso de irregu-
laridades dos órgãos ambientais. Porém, tornaram se frequentes os casos em que limina-
res emitidos pelo MP foram derrubados na Justiça. Como resposta, o MP começou a
utilizar o instrumento dos TAC para concretizar medidas obrigatórias por meio da nego-
ciação das partes. Um exemplo é o TAC acordado em torno da barragem Irapé, vale do
Jequitinhonha, resultando num contrato sobre a indenização dos atingidos que foi cele-
brado por entidades da defesa dos Direitos Humanos como um dos melhores da Améri-
ca Latina. Contudo, o processo de negociação era bastante desgastante para os represen-
tantes dos atingidos (ZUCARELLI, 2006). Posteriormente, com a aproximação da con-
clusão da obra em 2006 surgiram tensões por causa do não cumprimento dos termos.
Em visita de campo num reassentamento em 2011, ainda foram constatadas pendências
em questões significativas como a regularização fundiária.
Contudo, enquanto o TAC da UHE Irapé foi estabelecido numa situação de crise,
pode se observar recentemente a proliferação de TAC e até Pré-TAC por causa da falta
de confiança de representantes nos órgãos licenciadores.
O resultado é a negociação do financiamento de estudos próprios junto com as em-
presas, mas mediatos pelo MPMG. O objetivo é antecipar possíveis contestações no
processo do licenciamento regular. Também foram, em alguns casos, iniciadas reuniões
regulares com grupos potencialmente atingidos e entidades da sociedade civil para evi-
tar o adiamento do tratamento das questões sociais. A estratégia do MPMG é explicável
diante dos problemas enfrentados nos processos do licenciamento. Contudo, o que se
pode observar é a consolidação de um processo paralelo ao licenciamento ambiental e
não a sua fiscalização e correção. Além disso, em assumir a possibilidade da negociação
sobre o tratamento de determinados impactos ambientais e questões sociais, já se assu-
me a doxa hegemônica do campo neodesenvolvimentista delineada acima. Neste con-

197
texto, admite-se também o tratamento de direitos individuais e coletivos num campo
difuso de negociação que impede, na prática, o controle social daqueles que tomam as
decisões.
Porém, direitos não são negociáveis. Isto significa, que o Estado democrático de
Direito deve garantir não somente a proteção aos direitos de propriedade, mas também
defender um conjunto de garantias fundamentais, baseadas no "Princípio da Dignidade
Humana" que é, por sua vez, subordinado ao "império da lei" definida pela Constituição
(MOHL, 1833). A Constituição brasileira é bem clara a respeito: "Art. 5º - (...) LIV –
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"10.
Com a adoção da estratégia da resolução negociada de conflitos por meios extraju-
diciais o MPMG esta abrindo mão da sua função como instância que garante a controle
social. Ao invés de assumir tarefas de outras instituições, como a condução dos proces-
sos decisórios e o controle dos documentos necessários para uma determinada licença
ou certificado, como é a tendência atual do MPMG, seria necessário trabalhar na corre-
ção do regulamento dos procedimentos licenciadores para que os direitos sejam preser-
vados por meio de instrumentos efetivos de controle social e para alcançar uma demo-
cratização verdadeira dos mesmos. A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) já
elaborou algumas propostas nesta direção, que visa ao invés da AIA a Avaliação de E-
quidade Ambiental (AEA) (FASE e ETTERN/IPPUR, 2011). O objetivo é garantir a
participação da população local nas etapas iniciais do planejamento para o referido terri-
tório, que visa averiguar os potenciais locais no sentido social, ambiental e cultural com
base da organização socioambiental dos grupos ali existentes, assegurando o direito de
decidir quais projetos serão realizados para construir as suas próprias histórias. As me-
didas propostas abrangem, entre outros, a inclusão da população local na fase do ma-
croplanejamento deste território e nas decisões sobre alternativas locacionais e tecnoló-
gicas como prevista na legislação ambiental, participação na formulação dos conteúdos
e da escala dos TR para os estudos ambientais e sociais, reformular as audiências públi-
cas numa forma que garante a participação efetiva da população, elaborar mecanismos
de controle social formalizada - como a garantia que eventuais objeções a um determi-
nado projeto sejam adequadamente tratadas e respondidas.
As tendências atuais das atividades do MPMG não caminham nesta direção, ao con-
trário, parece que apenas reproduzem mais uma vez os mecanismos dos campos existen-

198
tes, nas quais a ortodoxia esta estreitamente ligada a atores economicamente poderosos.
Aqueles, que deveriam ser os sujeitos na tomada de decisão sobre o local onde vivem,
são - nestes esquemas de negociação - reduzidos a objetos que - no máximo - são ouvi-
dos sem garantia que a sua opinião seja levada em conta, quando ela não se enquadra na
verdade oficial da ortodoxia desses campos artificialmente criados. Desta forma, ao
implementar projetos neodesenvolvimentistas as instituições democratizantes estão cada
vez mais fragilizadas. Conselhos participativos, audiências públicas e negociações para-
lelas entre empreendedores, financiadores de projetos desenvolvimentistas com Banco
Mundial, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), determi-
nadas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OCIP) com legitimidade
democrática limitada, oficializadas em PPP são, neste contexto, meios para diluir o au-
toritarismo em vários ombros. Isto limita a possibilidade de lutas sociais contra o abuso
de poder pelos atores hegemônicos.
Os conflitos mais graves surgem em torno de disputas territoriais entre grupos com
modos distintos da apropriação do meio, como é o caso de povos indígenas, quilombo-
las e outras comunidades tradicionais. Os seus territórios configuram não apenas o subs-
trato material que garante a sua produção e reprodução social, substituíveis por medidas
de mitigação e compensação. São também a referência de identificação social e cultural
daqueles que construíram os seus laços socioespaciais neles. A retirada de povos tradi-
cionais dos seus territórios significa também a perda da autonomia e consequentemente,
a inserção nos modo capitalista de produção como integrantes heterônomos, subordina-
dos à arbitrariedade do Estado e do capital. Frequentemente, a disponibilidade de em-
prego ou de programas sociais governamentais é insuficiente para garantir o bem estar
das famílias, tornando a mudança social dolorosa. As incertezas da reprodução social no
cotidiano, determinadas por fatores externos, como a conjuntura econômica, que não
podem ser influenciadas por forças próprias, é percebido por estes grupos como perda
de dignidade humana. Neste caso, a última instância para a segurança social seria o a-
cesso ao território, seja na forma de moradia assegurada no espaço urbano ou de sobe-
rania alimentar no campo. É, então, na questão sobre o direito ao território onde se
mostra o lado escuro do neodesenvolvimentismo, que dificilmente pode ser solucionado
através de estratégias da resolução negociada de conflitos. O que acontece, via de regra,

199
em casos de resistência das populações tradicionais é imposição do “(neo) desenvolvi-
mento” por meio de violência.

NOTAS

1
Luiz Inácio Lula da Silva, 21 de novembro de 2006, apud GLASS, 2006.
2
FORTES E FRENCH, 2012.
3
FORTES e FRENCH, 2012, p. 220.
4
MPMG, 2010; grifos nossos
5
UNESCAP, 2007; tradução própria, grifos nossos
6
AMDA, 2013.
7
CARVALHO et al., 2009, p. 19.
8
AMDA, 2013.
9
Bass et al., 2001, apud LASCHEFSKI, 2010.
10
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203
NORMA VALENCIO

DOS DESASTRES RECORRENTES AOS DESASTRES À ESPREITA

Não é o juízo último que importa, mas o juízo de todos os


instantes do tempo em que se julgam os vivos.
EMMANUEL LEVINAS (2008)

Afinal, viver num mudo líquido-moderno conhecido por


admitir apenas uma certeza – a de que amanhã não pode
ser, não deve ser, não será como hoje – significa um en-
saio diário de desaparecimento, sumiço, extinção e morte.
E assim, indiretamente, um ensaio da não-finalidade da
morte, de ressurreições recorrentes e reencarnações per-
pétuas..
ZIGMUNT BAUMAN (2008)

INTRODUÇÃO

Dos inúmeros acontecimentos da vida social em torno dos quais não restam dúvidas
de que haja graves perdas e danos para a coletividade envolvida destacam-se aqueles
denominados desastres. A nosso ver, os desastres deveriam merecer destaque no âmbito
da Sociologia. A referida ciência é dedicada à análise da vida social e os desastres são
uma experiência limite na vida social. A explicação sociológica pode prestar-se à tradu-
ção das entranhas de um povo que produz, partilha e testemunha tal experiência no seu
território e, ainda, possibilita jogar luzes nos modos de representação e nas práticas que
são deflagrados pelos sujeitos envolvidos para lidar com essa grave crise social que está
associada a um acontecimento físico devastador.
É praxe que um sem-número de tecnicalidades delineie, tão rápido quanto possível,
um cenário para o desastre, isto é, um perímetro territorial restrito para este tipo de crise
– dento do qual ocorre uma perturbação aguda e intensa nas rotinas de um dado grupo

204
social que se encontra no centro de um drama movido pela circunstância de devastação
–, o que enseja que as interpretações sobre a ocorrência também aí devam circunscrever
o seu olhar. Dito de outro modo, tal delineamento se presta não apenas para mensurar
danos e prejuízos de maior monta, mas também para orientar os olhos da opinião públi-
ca, dizer-lhe para onde o seu foco deva se dirigir para identificar aqueles que serão con-
siderados vítimas ou responsáveis pelos infortúnios no episódio. Juntamente a esse con-
finamento da crise em uma territorialidade mínima, a visão tecnicista anuncia um timing
para a crise, prevendo uma durabilidade mínima, demarcando o seu começo e o seu
término no menor espaço de tempo possível. O território da crise pode ser rearrumado
ou interditado ad infinitum, os que são culpabilizados podem sofrer sanções, mesmo que
não sejam eles os verdadeiros culpados, ou haverá promessas de que as causas do desas-
tre serão apuradas adiante, num momento incerto, e tudo pode desgastar-se na memória
e, assim, virar rapidamente passado naquela sociedade. Ambas redutibilidades fazem
com que a sociedade prossiga adiante e o seu mundo permaneça em ordem. Essa con-
cepção tem se prestado ao tratamento de diferentes tipos de desastres – desde os que
envolvem a colisão de múltiplos veículos numa rodovia, aos desabamentos de grandes
edificações, passando por explosões numa planta industrial e enchentes em áreas den-
samente habitadas.
Entretanto, a explicação sociológica ancorada num approach crítico propende a des-
confiar da abordagem de cenário aceitando-a, quando muito, como um ponto de partida
para construir outros questionamentos acerca dos nexos causais e o desenrolar desse
tipo de crise, supondo que as respostas, no geral, estejam referidas a um contexto socio-
espacial e sociopolítico ampliado e, ademais, a fatores intangíveis, ao tipo de racionali-
dade operante no interior das instituições implicadas, às dimensões simbólicas e psicos-
sociais da experiência trágica vivida, dentre outros. Ademais, a explicação sociológica
propende igualmente a divergir das tecnicalidades que pautam o desastre num tempo
cronológico e transformam em pós-desastre todos os desdobramentos dramáticos na
vida dos envolvidos. Em contraposição a esse tempo cronológico no debruçar sobre os
desastres, Sorokin (1942) adverte para se operar analiticamente com um tempo social.
No Brasil, o meio técnico atuante se favorece ao adotar e difundir, com êxito, a ra-
cionalidade monológica que propicia outros estreitamentos interpretativos. Um deles é o
enquadramento objetivista da crise, que reduz o acontecimento físico a si mesmo. Isso

205
serve ao propósito de criar contornos palpáveis e limites claros para as eventuais provi-
dências emergenciais a serem tomadas pelo ente público, cuja eficácia da resposta, por
seu turno, tende a ser expressa quantitativamente, tal como através do número de resga-
tes realizados; do número de atendimentos hospitalares prestados; da quantidade de li-
tros de d’água para conter as chamas; dos kits de limpeza distribuídos; das horas utiliza-
ção de tratores e demais veículos em atividade de desobstrução de vias e de contenção
de encostas; da quantidade de colchões destinada aos que perderam os bens móveis na
moradia; das refeições distribuídas aos que ficaram sem mantimentos e sem condições
de produzir suas próprias refeições; do volume de dinheiro destinado ao município para
as ações emergenciais; dos projetos básicos realizados para dar seguimento às obras
civis na localidade; dentre outros. Esse delineamento objetivista serve para fragmentar a
atenção sobre os elementos da cena, hierarquizá-los, suprimir alguns da atenção e adotar
providências para outros e, enfim, oferecer uma mensuração palpável do esforço públi-
co respaldando a narrativa oficial de que tudo foi feito para debelar a crise e que se con-
trapõe aos que, no centro do drama, guardam o sentimento de nada foi feito a respeito.
O discurso acerca do pós-desastre ou do retorno da normalidade também é instrumental
para dissipar da memória local as conexões entre as mortes e desaparecimentos de pes-
soas e as graves falhas nas medidas públicas que poderiam evitá-las.
A pretensa nitidez das fronteiras dessa crise serve, ainda, ao propósito de assinalar,
aos que quem se creem do lado de fora da mesma, a possibilidade de seguir na normali-
dade da vida cotidiana, o que é ainda mais conveniente se há uma visível dimensão de
classe na identificação dos grupos sociais mais prejudicados nos desastres, como os que
têm ocorrido com relação aos que veem os seus meios de vida inviabilizados, destruídos
ou danificados em episódios de tempestades e secas no país, mas que sabem que suas
perdas não se limitam ao evento climático em si. É fato que os grupos sociais empobre-
cidos são os mais afetados nesses desastres que desordenam a sua vida cotidiana a um
ponto tal que, muitas vezes, obstrui a recomposição, social e material, mínima para a-
companhar, ainda que com maior precariedade, o ritmo do mundo que segue à revelia
de suas dores e apuros. Tais grupos fracassam nessa reconexão. Mas, esse empobreci-
mento é uma crise crônica, de natureza social e não climática, e que em larga medida
explica a crise aguda do acontecimento trágico que será denominado como desastre. A
crise crônica referida envolve a preterição dos empobrecidos nas providências públicas

206
preventivas ou preparativas frente aos perigos assim como envolve os setores afluentes
que, protegidos nas relações de mercado, não se atemorizam com os perigos que vem
das nuvens ou da falta delas e tampouco reconhecem a sua vinculação com os grupos
sociais historicamente indefesos. Jogar a explicação do desastre para dentro das frontei-
ras do cenário favorece a tendência da opinião pública em culpabilizar os próprios gru-
pos sociais que ali já se encontram prejudicados para aliviar a consciência dos que se
entendem do lado de fora da crise e coadunados com a ordem em movimento. Mas se as
fronteiras, ao fim e ao cabo, são enganosas, de qual ordem social estamos mesmo a fa-
lar, senão aquela onde nascem os desastres?
Os quadros técnicos e científicos de instituições públicas que agem em prol de uma
demarcação objetivista do desastre no imaginário social – para a qual concorre a parti-
cipação ativa dos meios de comunicação, onde os mesmo tem privilegiado acesso – di-
fundem o seu reducionismo interpretativo porque o mesmo se ajusta e apraz às esferas
decisórias que, imbuídas de um espírito autoritário, sacam números em defesa de seu
esforço para restituir a ordem; mas, o que fazer com a desordem que ali persiste? Sem
passar pelo embaraço do fracasso da ideia de gestão pública da crise, a desordem inspira
a narrativa antimoderna dos mesmos quadros técnicos e científicos mergulhados no de-
sastre e que vem impregnada de um veio moralista e preconceituoso em torno dos gru-
pos sociais indefesos que não tem recursos de voz equiparáveis. Gradualmente silencia-
dos pelo assistencialismo – o colchão, a cesta básica, a vacina, coisas mínimas carrega-
da com o significado de que tudo foi feito a respeito – são levados a despolitizar a luta
por direitos nas circunstâncias que solaparam o pouco que tinham. Ou assumir o discur-
so dos opressores, como os desvalidos da sociedade procuram fazer para antecipar o
mau juízo que deles a sociedade já faz, solapando o seu protagonismo político (MAR-
TINS, 2003).
De desastre em desastre, os dramas coletivamente vividos se sucedem e se intensifi-
cam no país. Porém, há uma teimosia burocrática em dissociá-los uns dos outros, como
se fossem cenários autônomos, receptáculos de sofrimentos, coisa que só ocorre ali e
não respingará para além dali. Os desastres, que as autoridades reconhecem como tal,
tomam cada vez mais proporções catastróficas e estão, gradualmente, se confundindo
com outra experiência limite na vida social, a experiência da guerra. De um lado, essa
similaridade vem reafirmar a historicidade da produção sociopolítica do sofrimento co-

207
letivo em torno de um território arrasado bem como a historicidade das práticas de po-
der que agem sobre os vínculos do homem e sua terra. De outro, tal similaridade trans-
cende a dimensão propriamente histórica ao potencializar aquilo que Levinas (2008)
designa como o encontro entre seres, no qual as ordens em conflito e as desordens ins-
tauradas no limiar entre a vida e a morte ganham importância apenas secundária para os
sujeitos diferentes ou antagonistas, um frente ou outro, permitindo que algo maior, num
plano infinito, seja salvo.
Essas considerações preliminares dão pistas das reflexões que partilharemos com o
leitor mais detalhadamente abaixo, as quais iniciam com uma síntese do debate huma-
nístico em torno do conceito de desastres para, em seguida, enquadrar o contexto políti-
co-institucional brasileiro em torno do problema e, por fim, favorecer a explicitação dos
mecanismos pelos quais os desencontros das autoridades públicas com os grupos sociais
indefesos nos desastres são, nesse ponto da trajetória história da sociedade brasileira,
sinais da imaturidade da nossa democracia e, ultrapassando o aspecto contextual, são
indícios de uma desumanização no encontro entre seres, que essa trajetória reforça ao
invés de superar.

ENTRE O DESASTRE E A GUERRA

Dos muitos blefes da modernidade, destaca-se a disseminação de uma cultura de


segurança e das novas instituições que lhe corresponde. Ambos ensejam a ideia de que
os riscos que se multiplicam podem ser equacionados por medidas eficazes de proteção
ou, ao menos, de reparação dos danos havidos. É dizer que, de um modo ou de outro, a
vida coletiva poderia transcorrer no seu ritmo normal como se nada houvesse a temer,
nem mesmo o fato de que o curso normal deste modo de produção produz novas e co-
lossais ameaças. Autores como Douglas e Wildavski (1983) e Irwin (2001) já o adverti-
am, sabedores, ainda, de que a impregnação dessa cultura de segurança nos afazeres
rotineiros da máquina pública servia mais para visibilizar a existência – real ou ilusória
– de uma coadunação entre as aflições do meio social e as providências do aparato do
Estado, legitimando a ampliação do quadro técnico e a alocação de recursos materiais e
financeiros no tema, do que efetivamente ter meios para fazer desaparecer os riscos
mais temidos no imaginário social. Ponderam, ainda que os discursos sobre os riscos e

208
desastres não emanam primariamente da observação do mundo objetivo, mas do univer-
so cultural de cada povo e, nesse, de cada grupo e mesmo indivíduo, que ajustam sua
observação e atribuem significados ao que veem conforme sua situação de classe, pre-
disposições ideológicas, políticas, inserção espacial, dentre outros vieses. E mesmo os
riscos que muitos enxergam como tal, e em torno dos quais vigoram promessas públicas
de controle, permanecem incontroláveis. Ilustrações disso são inúmeras, mas vale a pe-
na salientar o armamento nuclear que, no desmantelamento da ex-União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), se encontra agora em mãos desconhecidas, o armamento
de grosso calibre e de uso exclusivo militar que se encontra nas mãos de gangues pelas
periferias do planeta e de aviões e panelas de pressão que foram resignificados e se tor-
naram armas em atentados recentes contra civis nos EUA, dentre outros.
Há muitas definições em torno do termo desastre e, de início, convém destacar que
entendemos o desastre como certo tipo de risco que, desdenhado pela cultura de segu-
rança e suas instituições ou extrapolando-as, se concretiza. Muitos são os autores que se
assentam em approaches das ciências sociais para definir o que são os desastres e, so-
bretudo, salientar, em quaisquer circunstâncias, a natureza sociopolítica que se entre-
meia ao acontecimento físico desolador, tais como Quarantellli (1998, 2005, 2006), Oli-
ver-Smith (2006), Acosta (2005), Lavell (1993), dentre outros. Provocado por Quaran-
telli para situar o debate sobre a definição conceitual do termo desastre, um dos autores
nessa linha, Gilbert (1998), circunscreveu o primeiro estágio do debate no tema ao con-
texto de Guerra Fria e percebeu o quanto o discurso em torno da guerra influenciava a
definição do problema, isto é, havia uma forte vinculação dos desastres à ideia de que
fatores de ameaça, mesmo que dito ‘naturais’, se comportariam como um inimigo exter-
no rondando sorrateiramente a territorialidade das diversas comunidades, o que endos-
sava os altos investimentos em tecnologias militares de monitoramento territorial e ata-
que. Nessa vertente, o inimigo sorrateiro tencionaria apagar as fronteiras entre a vida
normal e anormal da comunidade visada através de um perigo que, súbito, poderia sur-
preendê-la. Essa interpretação vinha ao propósito de inculcar no mundo civil uma ideia
de fragilidade e desproteção que via no fortalecimento do aparato militar, com grande
poderio material para controlar, vigiar e eliminar esse inimigo, a garantia de manuten-
ção do ritmo normal da vida cotidiana. Esse primeiro paradigma dos estudos científicos
sobre desastre contribuiu para disseminar, no imaginário social a concepção de que algo

209
similar à guerra poderia intranquilizar a sociedade e colaborou enormemente para dire-
cionar (e concentrar) investimentos para grandes tecnologias e centros de investigação
voltados para o acompanhamento dos passos do inimigo, identificar as suscetibilidades
do terreno e instruir resolutamente os civis, uma relação de autoridade incondicional,
sobre como se portar na situação. Embora Gilbert considerasse que o paradigma inter-
pretativo calcado na similitude entre o desastre e a guerra tivesse sido superado nas dé-
cadas subsequentes, convém lembrar que os desastres de grande vulto na última década
– como os relacionados ao sismo no oceano Índico e tsumanis decorrentes em vários
países da Ásia e costa leste africana, no ano de 2004, o grande terremoto e suas réplicas
no Haiti, no ano de 2010 e também no Chile, no mesmo ano – trouxeram à tona a natu-
ralização de um papel central de forças militares e policiais no dito cenário de devasta-
ção, fosse por razão da debilidade de operação das instituições civis locais, fosse porque
essas simplesmente não sabem tratar o assunto de outra forma.
Entretanto, é oportuno mencionar a inquietação de que foi tomado Bauman (2008)
no tema dos desastres para enquadrá-lo na discussão dos limites da modernidade e o uso
das forças militares nessas circunstâncias. Reportando-se a dois desastres ditos naturais
– aquele associado ao terremoto e maremoto em Lisboa, ocorrido no ano de 1755, e o
ocorrido em Nova Orleans, relacionado à passagem do furacão Katrina, no ano de 2005
– Bauman deparou-se, respectivamente, com dois pontos distintos da modernidade. O
primeiro, no desastre havido em Lisboa, caracterizado pela emancipação da interpreta-
ção dos acontecimentos de devastação em relação a quaisquer calamidades de cunho
moral relativo aos habitantes locais, aleatoriamente afetados, o que teria sido inaugura-
do pela correspondência de Rousseau a Voltaire no assunto. O segundo, caracterizado
pela não aleatoriedade da omissão dos atores públicos quanto à exposição dos morado-
res pobres e negros de bairros suscetíveis de Nova Orleans a graves perigos – pois que
os mesmos dependiam das providências de reforçamento da estrutura de diques contra
inundações, cujas verbas para realizá-lo haviam sido cortadas, o que favoreceu o seu
rompimento na passagem do furacão Katrina – e ao retardamento das ações de resgate
dos sobreviventes (incluindo a falta de água potável, comida, abrigo, medicamentos e
afins) e dos corpos dos que morreram no episódio, ambos imersos a sopa tóxica que se
formou. Se a aleatoriedade da afetação num desastre catastrófico de outrora apontou
para o campo das falhas técnicas, passíveis de serem detectadas e corrigidas com mais

210
aplicação de ciência e inovação, a não aleatoriedade da afetação humana num desastre
catastrófico recente indicou, para Bauman, uma distribuição desigual dos riscos – cola-
da nas injustiças distributivas históricas e respaldada no plano político – que explicitou
as características do grupo social que não tem serventia à ordem, o refugo humano. As
suspeitas que Bauman levanta acerca dessa injustiça foram confirmada pela análise des-
se caso por Bullard (2006), que concluiu:

Uma forma predatória de ‘capitalismo do desastre’ explora o desespe-


ro e o medo criados pela catástrofe e se ocupa de uma engenharia so-
cioeconômica radical. A indústria de reconstrução trabalha tão depres-
sa e eficazmente que a privatização e a ocupação da terra são comple-
tadas antes da população se dar conta (...) Seis dentre dez evacuados
em decorrência do furacão Katrina que vivem em abrigos em Houston
disseram que a resposta tardia ao temporal fez com que sentissem que
o governo não se importa com pessoas como eles.1

As contribuições supramencionadas permitem compreender os desastres como uma


espécie de acontecimento trágico na vida social de uma coletividade sem negar a sua
tessitura num processo sociopolítico mais amplo. Lidar com certas doses de sofrimento
compartilhado faz parte dos desafios da vida cotidiana de uma coletividade, já que o
medo espreita na mesma medida em que os riscos proliferam. E atravessar as adversida-
des, testando e consolidando os modos mais pertinentes para enfrentá-las, faz parte da
construção dos repertórios que identificam culturalmente o grupo. Entretanto, quando é
tamanha a gravidade, a extensão e a simultaneidade dos percalços nos quais uma dada
coletividade se vê envolvida num desastre, nem sempre os repertórios usuais da mesma
dispõe dos meios disponíveis para serem ativados plenamente e respaldarem a recupera-
ção de um sentido básico de sua segurança coletiva. Ao mesmo tempo em que tais debi-
lidades ocorrem e buscam testar modos até então incomuns para operar na precariedade,
a impotência diante dos fatos se destaca como representação predominante entre as for-
ças sociais que ali são levadas a atuar. Descredenciar esses repertórios faz parte do pro-
cesso de por em seu lugar novas estruturas de autoridade, novos sujeitos no controle do
território, novas práticas de interação social e uma esclarecedora performance para dizer
a todos qual ordem está em jogo. Proliferam as situações em que o demérito aos modos
próprios da coletividade de pensar o problema e as soluções é tanto, associado à relati-
vização dos direitos de proteção à dignidade humana, que não lhes resta senão garantir

211
os mínimos vitais à custa de ceder à sua revitimização. Bastaria relembrar, com Bau-
man, quando os homens da Guarda Nacional foram enviados à Nova Orleans,

após uma procrastinação imperdoavelmente longa (....), foram final-


mente enviados à área atingida, para se concentrarem nos saqueadores
e “atirarem para matar” (indiscriminadamente, quer se tratasse de la-
drões de aparelhos eletrônicos ou de pessoas se apossando de alimen-
tos e água engarrafada) antes de prosseguirem para alimentar os fa-
mintos, abrigar os sem-teto e enterrar os mortos. O envio de tropas pa-
rece ter sido estimulado mais pela ameaça às leis feitas pelo homem
do que pelo impulso de salvar as vítimas de desastre (...) quem mais
sofreu foram as pessoas que, bem antes do Katrina, já eram os dejetos
da ordem e o lixo da modernização; vítimas da manutenção da ordem
e do progresso econômico, dois empreendimentos eminentemente
humanos (...) Um pensamento arrepiante: será que o Katrina não aju-
dou, inadvertidamente, os esforços da atormentada indústria da remo-
ção de dejetos humanos?(...) Não teria sido essa utilidade uma das ra-
zões pelas quais a necessidade de enviar tropas não foi pensada até
que a ordem social se quebrasse e a possibilidade de perturbação soci-
al parecesse próxima? Qual desses dois “sistemas de alarme preventi-
vo” teve de ser acionado para garantir o envio de tropas da Guarda
Nacional?2

Situações de desastres em que há a sobreposição das forças das armas para salvar a
ordem, em relação as que estão focalizadas em proteger a substantividade social, inten-
sificam o sofrimento coletivo já em si inusual o qual se caracteriza pelo misto de aspec-
tos palpáveis e invisíveis. Grandes enchentes, por exemplo, tem envolvido, dentre ou-
tros, a perda de vidas, ferimentos graves, moradias danificadas ou destruídas assim co-
mo a destruição ou danificação de bens móveis e meios de trabalho, o que refaz os ne-
xos entre o passado, o presente e o futuro dos moradores diante a visão de terra arrasa-
da. Desde a ótica dos que passam por tais circunstâncias, o turbilhão de danos e prejuí-
zos materiais que convulsiona o seu universo material é, no geral, de secundária impor-
tância frente à trama social que necessita passar por ajustes e reelaborações após o pere-
cimento de membros de sua rede primária, à carga simbólica por detrás do sistema de
objetos perdidos e ao universo emocional em frangalhos. Esses encontros do aparato de
guerra em serviço nos desastres não tardam em virar confrontos e, em sociedades que
experimentam uma práxis democrática, essas tensões são catapultadas para o debate
público ampliado no qual se discute os fatores políticos que desencadeiam esse tipo de
crise e aqueles que servem para evitar ocorrências futuras. O caso do Katrina esteve no
centro dos argumentos que levaram à derrocada dos republicanos e a ascensão de Ba-

212
rack Obama à presidência dos Estados Unidos. Assim, mesmo nações mais comprome-
tidas com o projeto de modernidade, como os EUA, não tem conseguido evitar os de-
sastres e tampouco evitado que a máquina pública seja moldada por uma cultura de se-
gurança que se apoia num aparato militar para garantir as ações de resposta. Porém as
debilidades mais vitais que porventura venham ser experimentadas por alguns grupos
sociais no contexto de desastres eventualmente podem embasar descontentamentos que
se expressam em bloco por meio da legitimação de novas opções políticas.
Ao considerar a guerra como um acontecimento ontológico, a maior das provas à
moral humana, Levinas não põe ênfase na objetividade dos atos em torno da morte do
outro, considerado como inimigo, mas em algo que transcorre no interior dessa experi-
ência limite: o encontro entre seres. Nesse encontro, “a realidade rasga as palavras e as
imagens que a dissimulam para se impor na sua nudez e na sua dureza” e cuja “violên-
cia não consiste tanto em ferir e em aniquilar como em interromper a continuidade das
pessoas, em fazê-las desempenhar papéis em que já não se encontram, em fazê-las trair,
não apenas compromissos, mas a sua própria substância”3. A nosso ver, o encontro entre
seres em contexto de desastres tem tido uma intensidade similar àquele que ocorre nas
guerras: em ambos, a morte espreita e toma centralidade; corpos e lares são subitamente
ameaçados em sua integridade; a esfera privada da vida fica por um triz e se rompe ao
menor sinal de forças exógenas interferentes e ameaçadoras; após o ataque (ou colap-
sos), há desencontros entre as autoridades constituídas e os sobreviventes acerca do que
seja essencial ou destituído de importância para os ínfimos requerimentos de reabilita-
ção da vida prática e, no geral, preponderam as decisões emanadas pelos primeiros; as
descontinuidades abruptas no cotidiano do lugar colocam em xeque o processo identitá-
rio dos que ali fincaram raízes. Nos desastres, os sistemas de objetos públicos e priva-
dos da vida cotidiana, que se integram, são reduzidos, em uma fração de tempo, a des-
troços, tal como ocorre num campo após a batalha. Ainda, é recorrente o paulatino a-
bandono dos grupos sociais que foram duramente afetados, fazendo-os enfrentar por
conta própria os prejuízos maiores, muitos se tornando duradouros, o que os leva a ex-
perimentar a crueza da vida, os medos e incertezas ampliados, além de uma revisão pro-
funda dos respectivos projetos existenciais. E, em ambos, na guerra como no desastre,
há a proliferação de todo o tipo de violência contra os mais prejudicados. Embora, num
sentido oposto, também haja o encontro entre seres que, de um lado, agonizam em meio

213
a escombros ou se afligem em meio aos perigos deflagrados ou iminentes e, de outro, os
que, por obrigação ou voluntariamente, se lançam em direção ao ser desconhecido para
arriscar-se em seu salvamento, dedicarem-se ao seu provimento material mais imediato,
a montagem de estruturas provisórias como abrigo; à cura do seu corpo físico.
As forças institucionais presentes nas guerras e nos desastres se confundem progres-
sivamente em várias partes do mundo, incluindo no Brasil: há um plano macropolítico
civil que gradativamente considera que as crises graves que tem implicações no terreno,
como os desastres, não guardam margem para a palavra e negociações e, portanto, con-
viria acessar os quadros provenientes de estruturas institucionais fincados em relações
de mando e obediência, como o das instituições militares ou militarizadas os quais, con-
tudo, também propendem a replicar essas relações junto aos civis que são por eles aten-
didos. Convencionalmente, se diz que a guerra começa onde a diplomacia falha. Tam-
bém a progressiva legitimação dos desastres como palco de atuação de forças militares
ou militarizadas passa a lembrar aos civis a sua fragilidade para garantir o seu lugar que,
de uma hora pra a outra, se transforma em teatro de operações, o que sujeita o ambiente
social ao escopo de técnicas de gerenciamento adotadas por um pessoal estranho ali
introduzido, que definem outra ordem social diante as circunstâncias, esperando que os
civis ali presentes – em desvantagem material e em extenso sofrimento – se adaptem à
mesma para serem dignos de assistência, uma vez que a precariedade física e material
também toma a conotação de uma desvantagem moral a qual, deste modo, passa a justi-
ficar a impossibilidade de uma negociação de sentidos. O que há de mais profundo na
similaridade entre esses acontecimentos ontológicos, o desastre e a guerra, é que ambos
propiciam o encontro entre seres no limiar entre a vida e a morte, acima da camada con-
textual onde se movimentam os atores para prover substância aos seus papéis historica-
mente elaborados. O eu se coloca frente ao outro para localizar a sua humanidade e nem
sempre, após localizá-la, os resultados do encontro são alvissareiros.
Ao considerar que o estado de guerra tem o potencial de suscitar uma significação
emancipada do contexto histórico que a deflagra, ao ponto de levar ao limite os
questionamentos acerca da manutenção de uma ordem, Levinas propõe que as
identidades podem refazer-se radicalmente na prova suprema de deparar-se com a
perspectiva de sua morte iminente tanto quanto na perspectiva de ver morrer ou matar o
outro. Tal prova reconfiguraria potencialmente a compreensão do viver, continua o au-

214
tor; isto é, permitiria estar em relação com as alegrias, mas também com as dores do
mundo a ponto de discernir que, diante o mal, ou da possibilidade de infligir sofrimento,
o acontecimento do ser pode se realizar como bondade, num tempo infinito, “numa re-
lação que parte do eu para o Outro, em convergência com este”4. Menos otimista em
relação ao potencial redentor do encontro entre seres é Dupuy, que problematiza as
catástrofes em termos similares aos das guerras, isto é, como uma experiência limite na
existência humana. Em entrevista concedida a Philippe Merlant (2009), reflete que a
ideia de gestão do risco faz com que a sociedade se renda a comodismos e se resigne ao
intolerável, do que decorre que, diante a catástrofe, como na guerra, imerso nela ou na
visão dela, o desprezo do homem por seus semelhantes fica sobremaneira explícito. Es-
sa brutalização humana também é destaca por Longuépee, Callens e Duez (2008), para
quem a catástrofe pode ser definida como um acontecimento brutal, com muitas mortes,
perdas econômicas de centenas de milhões e fatores organizacionais e institucionais que
podem reforçar dinâmicas territoriais vulneráveis além de revelar uma gestão calamitosa
para os sobreviventes.
Dito isso, voltamos-nos inteiramente para a especificidade dos desastres no Brasil,
trazendo dois elementos centrais sobre esse tipo de crise social: um deles, o que se refe-
re à contextualização sociopolítica, focalizando a ambígua racionalidade operante no
seio do Estado, cuja forma de sinalizar o enfrentamento do problema é também aquela
que o agrava e perpetua; o outro, ilustrado com aspectos do caso de Teresópolis/RJ, que
parte da experiência do desastre como um desencontro constante entre o Estado e os
socialmente indefesos para qualificá-la como experiência de esvaziamento do humano.

DA TRAGÉDIA SEM PRECEDENTES AO COTIDIANO DE DESGRAÇAS:


QUANDO O DESASTRE É A NORMALIDADE DE UM PAÍS

No Brasil, não nos encontramos na plenitude da modernidade, embora o projeto


modernizador em curso queira se passar por tal. Andamos nas beiradas, onde as elites
econômicas e a classe média copiam maneirismos e estilos de consumo sem abrir mão
de uma sociabilidade, no espaço público, calcada no patrimonialismo, nas prerrogativas
e na adesão aos privilégios em detrimento de direitos de cidadania. Por aqui, atrás da
celeridade das mudanças na paisagem retoricamente denominadas de desenvolvimento,

215
as injustiças distributivas e sociais perseveram de maneira indisfarçável caracterizando
o que Martins (2011) denomina como desmemoria antipolítica, uma dominação patriar-
cal que solapa a fala do povo, mutila seu protagonismo político em todas as iniciativas
de ultrapassar o passado e seguir para um futuro em que pretensamente haveria maior
segurança para todos.
Também no tema dos desastres, as instituições públicas do país estão em processo
de modernização, aperfeiçoando o seu aparato material e técnico; mas tal processo, ao
invés de lograr reduzir o contingente de pessoas que vivenciam dramaticamente essa
crise, apenas o amplia, assim como amplia o estranhamento do aparato em relação ao
sofrimento das mesmas. A performatividade modernizadora que se incrusta nos meios e
modos da máquina pública, nos vários níveis de governo, respalda suas tecnicalidades
cifradas num discurso sobre o aumento dos riscos, e na concretização de muitos desses
em desastres, no mais das vezes para colher benefícios próprios e que resultem na am-
pliação da esfera de poder de seus quadros. Quando se trata de construir possibilidades
de ação pública desde uma escuta ativa aos grupos que passam pela situação de devasta-
ção, os óbices apresentados pela máquina se mostram intransponíveis, pois um modus
operandi próprio dessa política para lidar com a crise já foi adotado. Essa impossibili-
dade de interação dialógica é uma das razões pelas quais há uma distância considerável
entre a modernização anômala em curso (Cf. MARTINS, 2003) e a modernidade.
Nas últimas décadas, a institucionalização de um Sistema Nacional de Defesa Civil
(SINDEC) congregando o nível nacional, estadual e municipal fará duas décadas. Tal
sistema foi concebido e materializou-se institucionalmente pelo esforço de um general
em meados da década de 1990. Na última década (2003-2012), à exceção de um breve
período de dois anos em que a chefia da Secretaria Nacional de Defesa Civil foi ocupa-
da por uma civil e, ainda, uma mulher, todos os demais gestores, homens, procederam
de instituições não civis, onde ocuparam altos postos no comando, a saber, dos Bombei-
ros Militares do Distrito Federal, da Polícia Militar do estado da Bahia e do Corpo de
Bombeiros do estado de Pernambuco, este último também atuante como presidente e
conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nas unidades federativas, a pro-
cedência de quadros das Forças Armadas ou da Política Militar ou do Corpo de Bombei-
ros Militar para forjar o desenho – na forma de secretaria, coordenadoria, assessoria
vinculada ao gabinete do governador e afins – e as práticas institucionais de defesa civil

216
se replica, trazendo o habitus militar, e corporativo, para dentro dessa instituição de
aparência civil. No estado de São Paulo, a defesa civil nasceu sob o comando da Polícia
Militar; no estado do Rio de Janeiro, nas mãos do Corpo de Bombeiros Militar e assim
em diante.
Como a operatividade do Sistema Nacional de Defesa Civil (SINDEC) esteve for-
temente vinculada à resposta nos desastres – o que, na linguagem técnica, equivale a
ações de resgate e reabilitação – tomar de empréstimo os quadros das forças armadas,
bombeiros militares e polícia militar, assim como suas representações de mundo, seus
códigos de conduta e suas práticas nessas ações pareceu algo bastante razoável aos go-
vernos democráticos no pós-1985. Isso se deve, por um lado, à força imagética da figu-
ração herói-vítima no contexto de desastre, a qual prevalece na mentalidade do centro
decisório como também na do cidadão comum. Por outro, e em termos práticos, isso se
deve a uma possibilidade de acomodação de oficiais – no geral, provenientes dos qua-
dros da reserva – em instituições aparentemente civis, compondo com as forças políticas
de todos os matizes ideológicos e para as quais os desastres se mantêm representados
como uma circunstância excepcional que flexibiliza os direitos da pessoa humana. Co-
mo a imagem da guerra consolidou-se como um pano de fundo envolvendo os quadros
humanos institucionais em defesa civil e em forma imitativas de suas ações, isso fragili-
zou o meio civil, sobretudo, aquele composto por grupos organizados de comunidades
que vivenciaram desastres e que anseiam por um aumento do controle social sobre as
políticas e programas em torno do tema. O discurso em torno do sofrimento e da prote-
ção dos direitos da pessoa humana esvaziou-se diante às mirabolantes tecnicalidades
que se referem à imagem da guerra e impingiu autoridade incontestável aos agentes
controladores dos dispendiosos meios para monitorar o inimigo externo, vasculhando o
terreno ou vigiando-o através de imagem de satélite. A partir do ano de 2011, no contex-
to de catástrofes então recém ocorridas, o aparecimento do Centro Nacional de Gerenci-
amento de Riscos e Desastres (CENAD), na estrutura da Secretaria Nacional de Defesa
Civil e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMA-
DEN), na estrutura do Ministério da Ciência e Tecnologia, nas instalações do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), visou ampliar o quadro humano voltado para
monitorar o inimigo sorrateiro, os fatores de ameaça da natureza, numa racionalidade
não apenas impermeável à abordagem humanística, mas deliberadamente voltada ao

217
propósito de tomar para si e para as instituições parceiras no monitoramento do terreno
todo o espaço decisório nacional no tema e, nele, dissolver a legitimidade das vozes da
sociedade civil em processo de organização. A presença dessas tem sido tolerada apenas
na medida em que, passivamente, se apresentem como um desfile de mazelas da vida
nua que, então, apenas reforçam que os problemas existem, os quais serão recortados e
enquadrados pelas matrizes interpretativas da técnica, reduzidos a uma ínfima questão
passível de soluções ditas exitosas as quais, não raro, a vida prática se encarrega de
desmentir.
A consolidação do desenho institucional nos termos acima destacados não foi capaz
de estancar o considerável número de ocorrências de desastres no Brasil. As ocorrências
de desastres são atestadas tanto através de decretos municipais – que os caracterizam
como sendo uma Situação de Emergência (SE) ou um Estado de Calamidade Pública
(ECP), conforme a gravidade dos danos e prejuízos e a incapacidade local de lidar com
os mesmos – quanto, subsequentemente, através do endosso de portarias de reconheci-
mento de desastre publicadas pelo Ministério da Integração Nacional no Diário Oficial
da União. Conforme se constata na TAB. 3 abaixo, no período de 2003 a 2012, o Brasil
registrou oficialmente uma média anual de 1.842,1 ocorrências de desastres, equivalen-
do a 35,10% dos 5.565 municípios atualmente existentes no Brasil, o que dá uma di-
mensão da gravidade do problema.

TABELA 3
Número de decretos municipais de Situação de Emergência (SE) ou Estado de Calami-
dade Pública (ECP), reconhecidos por Portaria do Ministério da Integração Nacional,
período de 2003 a 2012 (*) (**)

218
Ano Decretos municipais de SE ou ECP
2003 1.682
2004 1.585
2005 1.848
2006 1.104
2007 1.738
2008 1.322
2009 2.319
2010 2.765
2011 1.282
2012 2.776
TOTAL 18.421

Fonte: Secretaria Nacional de Defesa Civil/Ministério da Integração Nacional- (SEDEC/MI),


sistematizado pela autora.
*Refere-se ao ano de início da vigência do decreto municipal. / ** Cf. informações consolidadas em 06 de
maio de 2013.

Conforme nossos estudos anteriores apontaram, há uma distribuição relativamente


equânime dos desastres entre localidades (macrorregiões, estados e municípios) que são
tidas como de maior e de menor desenvolvimento econômico e social e que a recorrên-
cia de desastres num mesmo município, e num curto recorte temporal, demonstra que,
por trás das crises agudas que ensejam os inúmeros decretos municipais de emergência,
há uma crise crônica que, por sua vez, caracteriza um preocupante estado normal do
funcionamento da administração pública (VALENCIO e VALENCIO, 2011; VALEN-
CIO, 2012). Sem pretender reduzir o problema dos desastres a essa quantificação e à
parte as questões relacionadas aos conflitos e contradições dos processos de territoriali-
zação em si, notamos que alguns municípios brasileiros, quando estão sob uma emer-
gência, pelejam para receber alguma atenção dos outros níveis de governo enquanto que
outros municípios, sob sucessivos decretos de emergência, descobriram o dito caminho
das pedras; isto é, os mecanismos para tratar a exceção de rotinas da administração pú-
blica local como a regra, adestrando-se nas técnicas de tramitação da papelada e nos
contatos pessoais com quem, nos escalões superiores, faça a coisa fluir. O aumento da
articulação nos três níveis de governo, que regulariza ou ajusta certos fluxos burocráti-
cos e interações do meio técnico para dar uma forma mais ágil de acesso aos recursos
orçamentários e extraordinários ali existentes nem sempre é sinal de que a redução dos
desastres é efetivamente o objetivo visado. A vitalidade da máquina tecnoburocrática, a

219
garantia de manutenção do seu ritmo, de atuação dos seus quadros, de sua importância
no conjunto das forças políticas atuantes, quando não de seu desiderato de expansão
dependem, ambiguamente, de que os desastres continuem ocorrendo por dois meios: o
primeiro, pelo aumento da duração de um mesmo desastre, prorrogando oficialmente a
emergência; o segundo, tornando o reaparecimento oficial da emergência algo comum
na vida dos munícipes.
Outro indício da emergência que vira normalidade se dá através da mercantilização
das tragédias. Simultaneamente à consolidação de algumas vias melhor azeitadas para
trafegar o dinheiro público nos desastres, abre-se um relacionamento direto das autori-
dades públicas com os agentes econômicos que, a partir dos variados préstimos que ofe-
recem, na forma de produtos e serviços, transformam o desastre em um negócio bastan-
te rentável, cujos gastos estão menos sujeitos ao efetivo controle social. Na dispensa de
processos licitatórios e afins, justificados pelo contexto de emergência e com o devido
respaldo legal, quesitos como a concorrência de preços, a garantia da boa qualidade do
produto ou serviço oferecido, dentre outros, se tornam secundários frente ao novo –
porém arcaico – teor que as relações diretas de fornecedores com as autoridades públi-
cas podem tomar, dando ensejo a um ambiente favorável aos desvios de recursos públi-
cos e à corrupção. Assim, casos de calamidades públicas, nos quais há grandes somas de
dinheiro público envolvido e maior fluidez burocrática para a realização dos gastos de
tais recursos, vão mostrando a dupla faceta na qual, de um lado, a máquina pública faz
uso instrumental do drama concreto dos grupos sociais mais prejudicados nos aconteci-
mentos para acessar meios materiais e financeiros em condições céleres ou extraordiná-
rias e, de outro, adota um approach tecnicista que, enveredando pela indecifrável e
complexa máquina burocrática, fatia esses dramas em uma setorialização tal que os es-
vazia, alienando esses mesmos grupos afetados do controle político sobre os meios ma-
teriais disponibilizados para atendê-los. Enquanto recolhem as migalhas de atendimento
que a máquina pública deixa lentamente cair aos que se vinculam, pelas perdas e danos,
ao cenário do desastre, o assédio de agentes econômicos, de todos os portes e vindos de
todos os cantos, não para enquanto houver recursos públicos disponíveis; intentam que
o dinheiro público se esvaia com eles, que são igualmente peritos em atender os requisi-
tos da máquina e abrir ainda mais o campo para a corrupção. Sob o amparo de decretos
de emergência, tais e quais práticas públicas são postas em curso e outras tardam indefi-

220
nidamente e, em ambas, a escalada da falta de transparência inviabiliza indagar a real
coadunação de ambas com as necessidades emergenciais dos que precisam ter suas vi-
das cotidianas restauradas. Dito isso, é preciso indagar de quanta incerteza estamos fa-
lando em torno dos desastres ou, ainda, quais defasagens éticas impedem que a enge-
nhosidade técnica e o gigantismo burocrático, apoiados e construídos pelo Estado sob o
apelo de imagens de escombros e corpos, atuam efetivamente para resolver o problema.
O sucinto panorama acima mencionado serve para que assinalemos que desastres
não são apenas crises em que a morte precoce de um grupo social está presente, mas que
essa presença age como recurso mobilizador de engrenagens do Estado, cujo funciona-
mento não detém novas mortes; ou, o que é ainda pior, cujo funcionamento se torna uma
nova forma de matar, física ou socialmente, pelo misto do uso instrumental da tragédia
com as omissões, as reduções, os equívocos e a indiferença na interação do ente público
com os que se encontram em desvantagem, culminando na crueldade das autoridades
constituídas culpabilizar os ‘matáveis’ por sofrerem as consequências de sua fragilidade
social e política. As formas de morrer são variadas, e delas passamos a tratar.
Três desencontros, de natureza política, marcam a relação entre o Estado e os grupos
sociais mais prejudicados nos desastres e que são perpassados por jogos com linguagem.
Um desses desencontros refere-se, de um lado, à nominação que o meio técnico de defe-
sa civil confere aos grupos prejudicados os desastres e, de outro, a expansão talvez in-
discriminada desse grupo. O segundo desencontro, no interior do próprio grupo prejudi-
cado, caracterizado pela experimentação, nessa fase da construção de seu sujeito políti-
co, de várias autodenominações, algumas das quais ensejando um entendimento de si
como sujeito passivo, o que vai contra os seus acalentados propósitos na luta pela afir-
mação de direitos. O terceiro desencontro é o da mudança de denominação da defesa
civil para a de defesa e proteção civil, sem problematizar que cada qual está referido não
a approaches complementares, mas opostos e que, no âmbito institucional brasileiro, dá
uma fachada de falsa renovação das ideias e das práticas e de uma conciliação imprová-
vel entre visões distintas de mundo.
No âmbito político-institucional, a nominação dos grupos prejudicados nos desastres
e que terá desdobramentos no uso corrente de políticas setoriais complementares, assim
como na interpretação adotada pelo meio técnico, é a de afetados, seja no referente a
pessoas, populações ou comunidades referidas na relação de proximidade ou dependên-

221
cia do o sistema de objetos colapsados ou destruídos ou danificados. Entretanto, apesar
da estabilização representacional referida, é de notar uma crescente ambiguidade no uso
dessa definição, pois tem havido uma tendência do meio técnico ampliar o conjunto de
pessoas afetadas nos desastres para além do cenário de devastação. Desafortunadamen-
te, essa mudança interpretativa tem motivações menos nobres do que a de incorporação
de uma visão mais processual, relacional e transescalar do problema. Um número maior
de pessoas afetadas que aparece nos documentos oficiais tem conexões com a valoriza-
ção de uma visão mercantil do problema, implicando a possibilidade das autoridades
caracterizarem a situação como sendo calamitosa, porém difusa, propiciando a captação
de somas maiores de recursos públicos (sobretudo, financeiros) e a ampliação dos negó-
cios dos desastres os quais, então, podem se espargir (e os recursos sumirem) para além
do palco onde as maiores desolações foram testemunhadas.
O segundo desencontro, que potencialmente dissolve a capacidade reivindicativa de
direitos no interior do próprio grupo prejudicado, caracteriza-se pela experimentação,
nessa fase da construção de seu sujeito político, de várias autodenominações, algumas
das quais ensejando um entendimento do grupo como sujeito político passivo, o que vai
contra os seus acalentados propósitos na luta pela afirmação de direitos. Enquanto o
meio técnico lança mão da designação afetados para delimitar o grupo social prejudica-
do nos acontecimentos, o movimento nacional, que congrega vários movimentos locais
daqueles que passam por grandes adversidades nos desastres, deu a si a designação ori-
ginal de Movimento Nacional dos Atingidos nos Desastres (MONADES), o que permi-
tiu inferir que esse ator poderia estar compreendendo o desastre como uma exterioridade
ao processo social no qual está envolvido. Atingido por algo significa dizer que esse
algo cai em bloco sobre a vida de alguém e a esfacela. Disso deriva que, eventualmente,
sejam vistos como externos os atores sociais com capacidade de controlar o evento e os
seus efeitos. Se alguém é atingido por algo, é de esperar que outro alguém interceda
para tirar esse elemento adverso da cena. Assim é com o Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB), onde se supõem que a introdução física desse objeto técnico no es-
paço possa ser obstaculizada ou que os efeitos deletérios dessa introdução possam ser
minimizados e compensados. Mas, o desastre não é uma barragem, algo que se põe no
lugar e cujo mal-estar que provoca permite retirá-lo. Essa crise social é um enredamento
entre pessoas e instituições, embora associado com a desarruma-

222
ção/danificação/destruição de vários elementos físicos, públicos e privados que, em si-
nergia interferem para que as rotinas tenham difícil continuidade. Outra ilustração é a
Associação das Vítimas de Teresópolis (AVIT), assim como e tantas outras associação
de vítimas que, ao denominar seus congregados como vítimas, reforça no imaginário
social a hipótese de uma figuração de impotência e sujeição política frente aos represen-
tantes do Estado os quais, vistos como uma exterioridade – e não parte constitutiva do
meio social que atravessa o cotidiano no leque de instituições que ali interferem – imbu-
em-se de uma autoridade não interessada em ativar/animar discussões em torno da cons-
trução de um ponto de vista comum, e mais aceitável, sobre as medidas recuperativas a
serem deflagradas.
Por fim, para suscitar a ideia de que os desastres catastróficos recentemente ocorri-
dos tiveram a força de alterar a visão e as práticas do Estado no tema, uma movimenta-
ção ocorreu na transplantação superficial de um novo quadro de referências para o con-
texto institucional nacional, no qual toma destaque os encobrimentos da permanência
das mesmas racionalidades na alteração da designação institucional de defesa civil por
defesa e proteção civil. No âmbito multilateral, o compromisso das autoridades públicas
com a proteção civil implica em participação multidisciplinar e intersetorial e integração
de estratégias do nível nacional ao local e vice-versa e tem em conta o desafio da supe-
ração da pobreza e da vulnerabilidade social e econômica, conforme dispõem a Estraté-
gia Internacional de Redução dos Desastres (ISDR, 2002). Mas consideração pelo outro
não se constituiu pré-requisito do lançamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa
Civil (SINPDEC) no Brasil em substituição ao então denominado SINDEC. A escalada
de poder que associa o avanço da técnica à política oligárquica que se mantém no inte-
rior do Estado suprime o outro e obstrui o fundamento da noção de proteção civil que
concebe desastres como crises na esfera social e suplantáveis por meio de fortalecimen-
to comunitário e não pela continuidade da condição de heteronomia.
Os três desencontros supramencionados caracterizam o estágio imaturo no qual es-
tão as instituições e a organização social sob o regime democrático. A falta de uma con-
ciliação entre as denominações dos próprios sujeitos em disputa, ou de coerência acerca
do que tais denominações significam em relação a atuação de seus portadores, dificulta
a explicitação dos conflitos e a necessidade de construção de certo tipo de arena que
garanta o debate em torno das divergências entre desiguais; ou melhor, desvele os me-

223
canismos político-institucionais pelos quais essa desigualdade se reproduz usurpando
direitos da pessoa humana sob o manto das mais variadas tecnicalidades. Afinal, talvez
não se trate de imaturidade, mas de uma racionalidade que se nutre desses desencontros
e discrepâncias para perpetuar formas autoritárias de investir sobre o outro e sua territo-
rialidade.

A MORTE DA CASA, DO CORPO, DO DEVIR...

A vida exposta à morte não são as ameaças que pairam no ar – na maioria, ditas na-
turais –, mas a presença da morte através da produção social da vida nua. Isto é, através
de um modelo biopolítico do poder caracterizado pelo avanço do ordenamento jurídico
e da consolidação institucional os quais ao invés de reduzir o conjunto dos matáveis os
amplia, aplicando para esses o estado de exceção e evitando que os mesmos participem
ativamente da política, conforme expõem Agamben (2004). Assim, faz todo o sentido
que os grupos sociais que tenham clareza da sua condição de matáveis, como aqueles
que estão no centro dos desastres evitáveis, saibam que são levados ao aprisionamento
no papel de vítimas para que, através de um bom desempenho de um corpus sujeitado,
alimentem o fluir do que será veiculado como uma boa governança de suas carências
biológicas, estabilizando as instituições dedicadas à concretização das políticas de e-
mergências e seus apelos humanitários. Dessa elucidação, há um deliberado abafamento
institucional da multivocalidade em torno dos acontecimentos. Mas, conforme o que
pondera Veena Das (1995) é da elucidação sobre o que está em jogo que aqueles que são
postos à morte não buscam essencialmente suprimentos ao corpo, mas buscam validar
suas vozes na esfera pública, fazendo a opinião pública ver que há controvérsias em
torno do desastre (como também dos atentados). São vozes de um lugar de destituição
que espera concretizar, através da palavra, a segurança ontológica que escapa à vida.
Das e Poole (2008) acrescentam que a obscuridade das estruturas políticas e econômicas
tende a se clarificar quando as medidas de identificação são reiteradamente solicitadas
para suspender, alterar ou negar direitos aos que estão postos nas margens da sociedade,
em cujo cotidiano transparece os limites entre o público e o privado, o legal e o ilegal, o
centro e a periferia.

224
Nos desastres a perda da casa é uma das fontes de maior desolação e de morte soci-
al. Isso porque a casa, no modelo biopolítico de poder, torna-se indistinta do controle
sobre o lugar (a cidade) e sobre o corpo, conforme já indicava Agamben (idem). A casa,
ainda, conecta o espaço público e privado para permitir ao grupo familiar garantir o seu
modo de vida. O seu papel central também é destacado por Levinas, quando afirma que
a casa

Não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a sua


condição e, nesse sentido, o seu começo. O recolhimento necessário
para que a natureza possa ser representada e trabalhada para que se
manifeste apenas como mundo, realiza-se como casa. O homem man-
tém-se no mundo como vindo para ele a partir de um domínio privado,
de um “em sua casa”, para onde pode se retirar em qualquer altu-
ra...Concretamente, a morada não se situa num mundo objetivo, mas o
mundo objetivo situa-se e relação à minha morada.5

A perda da casa – por danificação, destruição ou interdição desse espaço pelas auto-
ridades públicas – é a perda de uma possibilidade de recolhimento do eu no espaço da
sua intimidade, isto, naquele que lhe permite o repouso, o devaneio, o ato amoroso, o
exercício experimental dos papéis na vida pública; enfim, o que Levinas denomina co-
mo a interioridade do ser, o que Bachelard (2003) já havia refletido ao destacar que a
casa e o corpo se confundem e qualquer desventura que abale os alicerces da casa abala
o sujeito que nela vive, ali delineia sua identidade e em cujos porões são guardados os
seus medos indizíveis. Visto sob essa perspectiva, o ato dos agentes do Estado marca-
rem as paredes das moradias abatidas por tempestades, para identificá-la e em seguida
sofrerem os golpes de marretas e tratores que põe abaixo aquilo que restou da constru-
ção resulta em pura crueldade, pois tirar a casa de alguém é uma expressão de poder
para lembrar que quem é dali expulso não tem mais raiz e está solapado no direito de
reivindicar refúgio e proteção. A perda da casa por um ato de força, continua Bachelard,
significa também atacar o mundo interno do morador, colocá-lo a nu e lançá-lo ao exí-
lio, impedi-lo de defender-se do ataque das tempestades da natureza e as tempestades da
vida. Ao citar Rilke,“quem agora não tem casa, não a construirá mais”6, Bachelard lem-
bra que esse exílio significa também obstruir o refúgio essencial para a expansão da
alma do que fica desabrigado, desdenhando da necessidade humana deste de reconfor-
tar-se e reconstituir-se desde o seu espaço de intimidade assim como significa cercear

225
“o devaneio amplificador do homem que sonha atrás da sua janela”7. Se a moradia é
uma fortaleza construída para defender os seus ocupantes das perversidades do mundo,
adiciona Tuan (2005), é também uma concha vital que indica a vulnerabilidade humana,
o medo do imprevisível que se encontra fora desse espaço íntimo. Sendo a casa subtraí-
da, os moradores se sentem expostos a ataques, concordam Bachelard e Tuan, a come-
çar pelo ataque da noite. Por extensão, a contingência de viver sob um teto alheio pela
perda da casa num desastres – seja hospedado na moradia de terceiros, seja em abrigos
provisórios e em acampamentos – são formas de redução do mundo da vida e de expo-
sição a novas tempestades que constantemente aguardam os que vivem, no contexto
brasileiro, em situação de privação material.
A casa combalida pela tempestade é, no universo imaginativo do morador, um ente
social, que aguentar sofrimentos para proteger o morador e a quem, em contrapartida,
não se pode abandonar sem sofrimento. Quando a mesma dá sinais de exaustão na luta
contra o terreno que desmorona, os ventos que levam sua cobertura, a água e lama que
lhe invade, tudo o mais já está igualmente inviável ao derredor, irreconhecível e insegu-
ro. Abandonar a casa ferida pelos golpes dos perigos é uma decisão difícil ao morador,
ainda mais porque sair da casa é enfrentar o mundo lá fora, desde sempre antítese à i-
deia de proteção, claramente hostil. Daí porque as recomendações de defesa civil, ao
sinal de perigo abandone a casa e vá para um local seguro, e variantes, deixam de con-
siderar tanto a paisagem social, simbólica, psicológica e afetiva na qual, no processo
decisório sobre partir ou permanecer na casa, não há equivalências fáceis entre a casa e
a rua – nessa última, incluída os espaços públicos disponibilizados para a função de
abrigo provisório – quanto deixam de considerar que os perigos que penetram a casa, e
os quais o morador tenta enfrentar são, talvez, menos perturbadores do que aqueles que
se apresentarão lá fora, sendo esses últimos, no espaço aberto e em desestruturação da
rua, ainda mais incertos e temidos.
Enquanto enfrenta os perigos que assomam no espaço da casa, o desastre em curso
segue ajustando-se, no próprio imaginário dos moradores afetados, a uma cena de guer-
ra. É nesses termos que D. Odília, moradora de Teresópolis, nos conta a sua experiência
de salvar sua família, na casa ao lado, e assistir a devastação que, sob os seus olhos,
tomou o seu bairro, a Cascata do Imbuí, transformado na frente da sua casa num delta

226
de lama, escombros e corpos que colapsaram desde os bairros mais acima, Posse e
Campo Grande:

A gente percebia que uma coisa monstruosa estava acontecendo... a


gente via muita coisa passando [na águia]...boiava e caia...parecia que
eram pessoas que estavam tentando se salvar, mas a imensidão da á-
gua...a outra imagem foi no outro dia, as pessoas passando por aqui
sem rumo...todos molhados...eles vinham cheios de lama... eles não
queriam nem comer...sem rumo...é uma guerra, que você está ali numa
guerra, que ninguém é dono de ninguém.8

Para sua vizinha, Dona Carmem Lúcia, o perigo tenebrosa, em torno da qual o com-
padecimento imediato se instaurava: as águas invadiram subitamente a sua casa e foi
preciso escapar rapidamente pela janela ao mesmo tempo em que se era tomado pela
aflição em relação ao restante da família, moradora em casa mais próxima ao manancial
de águas que transbordavam incontroláveis. Quando as águas baixaram e a retirada da
lama era o principal na busca de restauração da funcionalidade da casa – imóvel oriundo
do esforço paterno, na carreira militar – o mais relevante, que dava sentido ao ato de
morar ali, era recuperar da lama os objetos de memória aos o risco de ali serem perdi-
dos. O tempo presente, a casa e a família, nas quatro gerações naquela territorialidade,
estavam enredados à participação do pai, já falecido, na guerra e aos bens simbólicos
referentes a esta atuação, os quais aglutinavam diversas escalas de tempo e espaço, en-
tremeando a história familiar e nacional e internacional:

E eu disse assim: “Os quadros!”. Aí ele disse: “Mãe, não dá tempo!”.


Aí, conforme bateu a água, os preguinhos caíram e aquilo me doía
muito, porque ele amava essas coisas dele. Ele tinha um álbum. Muita
coisa, o meu pai. Ele foi um herói, porque ele defendeu o Brasil e ele
contava assim com muito orgulho [combatente da 2ª Guerra, do exér-
cito brasileiro] Esse aqui [um dos quadros] foi a conquista de Monte-
se, no dia 14 de abril de 1945, pelas gloriosas forças expedicionárias
brasileiras nos Apeninos da Itália. Esse outro é o diploma da medalha,
que ele tinha muito orgulho desses quadros, que ele dizia assim: “Isso
é uma coisa que eu vou morrer e fica pra todos vocês. Uma lembrança
que eu lutei pela guerra!”. E aquele ali que foi do Papa, que eles rece-
beram do Papa. Que, como estava falando, quero consertar, mandar
consertar, porque eu falei para os meus filhos: “A hora que eu for, vo-
cês vão permanecer com esses quadros, porque é uma grande relíquia.
Ele não está, mas ele está na memória de uma luta”. Conforme eles
caíram, aqui ficou tudo cheio de lama. E eu, na hora da limpeza, que a
gente teve que ir tirando e jogando tudo pra fora, e eu só disse assim:
“Cuidado com os quadros!”. Graças a Deus, esse aqui, que é o papel,

227
ele não molhou, ele ficou na lama. Isso tudo eu lavei com escova, com
tudo, e quando eu lavei tudo, a gente botou pra ir secando, arruman-
do... O dia que eu botei no lugar eu me senti assim, heroína, porque eu
salvei uma coisa que era dele.9

Nos relatos acima, quisemos destacar o quanto a trama social, espacial e temporal
que conecta o desastre e a guerra é mais intrincada do que parece. Ao fim, ambos vão
além do medo coletivo em torno de algo difuso, pois tomam a forma do sofrimento.
Levinas considera o sofrimento ainda mais que o medo, pois não se trata que algo ruim
que está por vir, algo que se mantém à distância, mas da impossibilidade de proteger a
si próprio já se sentindo encurralado e ferido, sem condições de manifestar a sua vonta-
de. No dia 12 de janeiro de 2013, quando a sociedade teresopolitana rememorava os
dois anos no início da calamidade, ainda se via ex-moradores dos bairros destruídos
visitando os escombros e o terreno onde suas moradias, um dia, existiram e fizeram par-
te da existência dos moradores. Ali essas pessoas lidavam com suas lembranças, suas
dores, faziam as suas preces, dialogavam em pensamento com os familiares e vizinhos
mortos ou desaparecidos. Dona Carmen Lúcia, cuja casa manteve-se em pé no bairro da
Cascata do Imbuí, também sobe ao bairro do Campo Grande nessa data especial de re-
memoração e ali faz suas preces pelos que não sobreviveram e conforta os amigos. Dois
anos é um tempo cronológico que não dissolve a nitidez do testemunho das muitas mor-
tes e desaparecimentos ocorridos sob os olhos da comunidade. As impressões permane-
cem intensas na memória dos que sobreviveram. O tempo social do desastre é assaz
extenso e corre devagar...
Moradores de diversas comunidades do município – dos distritos rurais às periferias
urbanas – se reúnem na praça central de Teresópolis para lembrar, uns aos outros, que o
desastre que ainda vivenciam é um só e que há uma dor imensa e um assombro e mutu-
amente reconhecíveis. Cada qual se aproxima do outro com os seus profundos machu-
cados, os seus cacos materiais e emocionais, e se abraçam. Garantem nesse espaço de
manifestação pública um momento necessário de encontro para o conforto mútuo. Re-
cordam, uns aos outros, que eles têm uma territorialidade compartilhada, apesar da es-
pecificidade de seus dramas. O abraço solidário em volta da praça e da igreja matriz, a
exposição de suas dificuldades materiais e emocionais desde então – comunicada a to-
dos os presentes, pelo microfone no coreto da praça – mantém aceso nos presentes a
tarefa política de rememorar. Oferecem aos que assistem in loco a manifestação e são

228
formadores de opinião – dos meios de comunicação aos pesquisadores – outro prisma
sobre os acontecimentos. Fotos de familiares mortos e desaparecidos são sacadas de
bolsas e bolsos, associadas à narrativa sobre a trajetória desses que se foram. Expressam
o luto, ainda, por meio de cartazes, de camisetas com as imagens dos entes queridos que
partiram. A imagem do outro, assim é carregada junto a si para ser o suporte de uma
narrativa que se deseja expressar sobre a vida, os vínculos e também sobre a morte ines-
perada do outro. Seu Clóvis não se detém apenas na perda de seus filhos, mas na luta
para que seus corpos não ficassem desaparecidos e cavou com as próprias mãos o terre-
no até achá-los: "O resgate dos meus filhos foi eu mesmo que fiz. Então, já é um teste-
munho verídico. O bombeiro falou que não tinha ninguém ali. Eu falei: meus filhos es-
tão aqui!". E Dona Marilda logo se aproxima e nos apresenta as duas gerações perdidas
da família, o filho e os netos, mortos nos deslizamentos havidos no bairro do Caleme,
também em Teresópolis (FIG. 1 e 2).

FIGURAS 1 e 2 - Rememorações: para seu Clóvis e Dona Marilda, a presença do outro


(filhos e netos) junto a si. Teresópolis/RJ.
Autor: Norma Valencio.

Dona Lucineia, moradora do bairro do Caleme elabora um mapa mental dos vizi-
nhos que ela perdeu, moradores da face do morro em frente à sua casa. Enodoa a locali-
zação das casas destruídas, umas em relação à outras e todas com os vínculos que ela
tinha com aquelas pessoas, tornando a rememoração não meramente uma narrativa geo-
gráfica, mas social e afetiva (FIG. 3).

229
Nos desastres catastróficos, assim como nas guerras, corpos de amontoam ou são
menos de corpos: desfigurados, despedaçados, restos humanos, perdidos para sempre...
Seu Maurício, morador da localidade da Posse, conta da tarde em que passou a jovem
vizinha em frente à sua casa, mostrando a todos a sua satisfação, vaidosa, em ter as u-
nhas esmeradamente pintadas. São essas mãos que ele reconhece na manhã seguinte sob
o lama.

FIGURA 3 - O mapa mental de Dona Lucineia sobre a vizinhança mais afetada no de-
sastre no bairro do Caleme, Teresópolis.

Por fim, há a vida reduzida dos sobreviventes pelos mecanismos que o ente público
lança mão para suprimir, através de indenizações insuficientes, algumas das funções
territoriais que são indispensáveis para a reprodução social das famílias. Os novos con-
troladores do território pouco se inquietam com a violência social contida nas práticas
que contundentemente obstruem possibilidades locais de retomar a rotina, o que fica
bem claro no relato de Dona Luciana, moradora da Cascata do Imbuí:

Na verdade, nada foi feito. Nada está sendo feito. A gente tem tentado
acordos. Tem tentado negociações, mas em termos de município, es-
tado, a gente continua na mesma: parado. A gente vê vegetação cres-

230
cendo e encobrindo o que ficou de escombros. E, infelizmente, nada
tem sido feito e é muito triste o descaso social... É completo! A gente
não pode falar só de verba que é desviada. A gente tem que falar que o
ser humano... Muitos deixaram de existir e ninguém mais fala nisso
porque isso não é mais importante. O dinheiro é importante pra gente
sobreviver? Sim! Mas a gente tem muita coisa envolvida nisso. Tem
muita gente que desapareceu. Tem muita gente que perdeu suas casas.
Tem muita gente que perdeu sua residência e seu trabalho. E hoje, eu,
por exemplo, me sinto sem referência. Eu já não sei mais quem é a
Luciana. Por exemplo, eu tinha um codinome, “Luciana do Forró Ti-
ra-gosto”. Hoje, o meu forró não existe mais. Da tragédia de 2011, nós
conseguimos reformar e reabrir. E depois veio a pós-tragédia de 2012,
que chegou o Estado dizendo que a gente não mais pode funcionar.
Então, hoje eu não tenho mais uma referência, não tenho mais um tra-
balho, e eu não sei, na verdade, mais quem eu serei daqui por diante.
Porque todos os meus valores e toda minha história, eles estão conse-
guindo tirar de mim.10

CONCLUSÕES: OS DESASTRES À ESPREITA

Na sociologia, considera-se desastre um acontecimento social trágico no qual se


mesclam dimensões objetivas e subjetivas de perdas e danos. Repetições de tragédias
apontam para padrões sociopáticos espelhados numa territorialidade doentia. O aneste-
siamento do gestor público, que age burocraticamente diante o sofrimento coletivo adia
perigosamente o processo de enfrentamento de nossas mazelas estruturais. Tal procras-
tinação cobra seu preço ao recrudescer a magnitude e intensidade dos desastres daqui
em diante, numa espiral de devastação da qual não se poderemos mais fugir. A opacida-
de em torno da persistência e ampliação dos desastres tem sido forjada no foco midiáti-
co em casos, fazendo-nos pensar que é “lá”, “com o outro” e “ontem” as variáveis a que
o episódio trágico se refere. Tais estratégias surtem o ambíguo efeito de chamar a aten-
ção para a notícia, mas provocar o distanciamento do espectador frente às desventuras
alheias. A narrativa naturalizante em torno do “dia do desastre” faz-nos crer que, quan-
do a chuva intensa passa, todo o mal já se foi com ela. O que tinha que desabar, já desa-
bou. Ocorre que para quem perde seus familiares, a moradia, seus meios de trabalho
(por vezes, tudo isso simultaneamente), o desastre está apenas começando quando as
chuvas caem. O seu mundo interior, bem como suas relações sociais, desaba a cada dia.
Para os empobrecidos, o desastre já estava ali, na luta inglória pela sobrevivência, ape-
nas esperando um momento para eclodir com força. As chuvas não causam o desastre: o
revela, na falta de amparo prévio e posterior por parte do Estado. Milhares de famílias

231
desabrigadas e desalojadas país afora vivenciam o desastre meses ou anos após as chu-
vas que lhes carreou a moradia: são os abandonados nos desastres. Muitas são as ex-
pressões de tal abandono: abrigos provisórios desmanchados pelo Estado sem que uma
solução habitacional tenha sido encontrada para as famílias conviventes; a fragmentação
da família, para que cada membro possa individualmente ser acolhido por sua rede pri-
mária de relações (parentes, amigos, vizinhos); a transformação da subcidadania em
anomia, quando o sujeito é levado à situação de rua, dentre outros.
A nosso ver, desastres e guerras contemporâneos têm se assemelhado uns com os
outros. Ambos emergem como parte integrante de uma natureza social e desde aí lan-
çam mão de mecanismos de desumanização a fim de retirar da cena os que estão fora da
ordem, isto é, aqueles a que Bauman (2005) designa como sendo os refugados do proje-
to social que se desenha ao derredor. A modernidade não nos livrou das guerras como
dos desastres e o referido autor vê em ambos um caos socialmente produzido para lem-
brar aos grupos em desvantagem sobre a existência de uma ordem de limitadas oportu-
nidades, que não é para eles e que os exclui. Para essa lembrança, diferentes meios de
violência são deflagrados e se referem, no conjunto, a legitimação do biopoder. No caso
dos desastres no Brasil, tais mecanismos adquirem os contornos de uma irrefreada ação
técnica para efetivar a desterritorialização compulsória daqueles que, na mão contrária,
precisam de amparo estatal para garantir as suas raízes, que enfeixam a materialidade da
casa e a sua substantividade social, mas cujo direito a ambas é sonegado; passam pelo
uso instrumental que se faz do sofrimento dos que vivenciam as agruras de perdas si-
multâneas, enquadrando-o no ambiente de negócios; levam ao desbastamento dos dra-
mas humanos por ações assistencialistas que preenchem com humilhação e vergonha o
reino da necessidade no qual vivem os grupos de desalojados, desabrigados, os que so-
frem com a morte ou desaparecimento dos familiares, especialmente de crianças, a
quem se desejava um futuro melhor, e de provedores da família que vive sob a econo-
mia informal; e, por fim, tais mecanismos suscitam a mera indiferença do Estado, bem
explícita na morosidade e descaso diante as urgências da vida daqueles que estiveram
no centro da devastação e se veem vexatoriamente esquecidos. Dessa forma, é indiscu-
tível o acerto de Rosso (2012, p. 309) ao dizer, acerca dos desastres no país: “Depara-
mo-nos, assim, com um intolerável estado de coisas inconstitucional. Um estado de coi-

232
sas que não é resultado de forças “naturais” incontroláveis, mas uma consequência não
apenas da ação humana, mas, principalmente, da omissão do poder público”.
Quando os grupos socialmente indefesos recodificam a sua posição de vítima para
subverter a paralisia do medo e reivindicar o direito de ter suas vidas restabelecidas –
isto é, se situam ativamente no escopo da política – a pecha de desordeiros lhes é atribu-
ída quando se manifestam ou sua manifestação simplesmente não resulta em nada. A
ordem se move autonomamente e a ela não irão pertencer. Não é por acaso que, tal co-
mo na guerra, um recurso último dos que vivem sob os agravos de um desastre tem sido
clamar pela paz, supondo que a humanidade de um ou outro ser em posição de poder no
aparato público se descole do ritmo insano da máquina, e da racionalidade monológica
que a rege, e se concilie com a humanidade dos que, no terreno, vivem a vida nua. O
apelo à paz tem sido praxe em manifestações públicas, como as da Associação das Ví-
timas de Teresópolis (AVIT), incluindo a afixação de bandeiras brancas ao longo dos
cenários onde se desenrolaram as tragédias e que foram abandonados pelo Estado, que
nada mais são do que casas onde pessoas viviam a possibilidade de amplificação do ser.
O apelo à paz significa sentir-se desarmado, dispor-se a desarmar o outro, subverter a
racionalidade desumanizante na qual esse outro eventualmente esteja operando, fazê-lo
entender as coisas essenciais que definem o sentido e o conteúdo de uma biografia e
transcende o tempo cronológico e as quais, Levinas diria, tornam a vida vivível como
“pensar, comer, dormir, ler, trabalhar, aquecer-se ao sol. Distintos da minha substância,
mas constituindo-a, esses conteúdos constituem o preço da minha vida”11.

(Apoio: CNPq , FAPESP e CAPES/Programa PROCAD. As opiniões, hipóteses e conclusões ou


recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor(es) e não necessaria-
mente refletem a visão da FAPESP.)

NOTAS

1
BULLARD, 2006, p. 143
2
BAUMAN, 2005, p. 105
3
LEVINAS, 2008, p. 7-8
4
LEVINAS, 2008, p. 304

233
5
LEVINAS, 2008, p.144
6
BACHELARD, 2003, p.93
7
BACHELARD, 2003, p.92
8
Dona Odília em entrevista a autora, julho de 2012
9
Dona Carmem Lúcia em entrevista a autora, julho de 2012
10
Dona Luciana, em entrevista concedida a autora, julho de 2012
11
LEVINAS, 2008, p.102

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236
CARLOS EDUARDO FERREIRA PINTO

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE


CONFLITOS AMBIENTAIS

Quando os conquistadores ingleses chegaram à Austrália,


se assustaram ao ver uns animais estranhos que davam
saltos incríveis. Chamaram um nativo que passava e per-
guntaram qual o nome dos bichos. O aborígene disse
“Kan Ghu Ru” e os ingleses o adaptaram para ”kangaro-
o” (canguru). Depois, os linguistas descobriram o signifi-
cado real da coisa; o aborígene só queria dizer: “Não te
entendo”.
BERKENBROCK (2005)

INTRODUÇÃO

O presente artigo procura abordar a atuação do Ministério Público (MP) na defesa


do meio ambiente. Visa desenvolver as técnicas e formas de resolução de conflitos am-
bientais, bem como apresentar os instrumentos jurídicos utilizados pelo MP na tutela do
bem ambiental, enfatizando a importância do termo de ajustamento de conduta.

DIREITO AMBIENTAL SIMBÓLICO

No Estado de Direito Ambiental deve imperar um ordenamento jurídico que concre-


tize os princípios do desenvolvimento sustentável e da prevenção, com a previsão de um
sistema de responsabilização integral por danos praticados ao meio ambiente.
Canotilho (2004) aponta como pressupostos essenciais ao processo de construção do
Estado de Direito Ambiental: a adoção de uma concepção integrada do meio ambiente;
a institucionalização dos deveres fundamentais ambientais; e o agir integrativo da admi-
nistração.

237
O princípio da responsabilização integral, para ter eficácia e concretude, deve trazer
embutida uma função preventiva, sob pena do direito ambiental deter apenas função
simbólica, garantindo à sociedade uma proteção superficial e artificial do meio ambien-
te.
Nosso ordenamento jurídico assume grande relevância na implementação de um
Estado de Direito Ambiental, na medida em que se busca a efetivação dos comandos e
princípios elencados no Artigo 225 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Entretanto, nossos legisladores têm caminhado em sentido contrário ao estabelecido
na Constituição Federal (CF). Pautados por grandes interesses econômicos, cada vez
mais convertem os diversos componentes do meio ambiente em valores monetários.
Qualquer perda ambiental é tolerada, basta que haja pagamento da respectiva compen-
sação.
A busca do crescimento econômico a todo custo criou um modelo de suposto desen-
volvimento que viola o comando constitucional e desvirtua o princípio da responsabili-
zação integral, invertendo a ordem de prioridades na proteção ao meio ambiente. A
compensação passou a ser a regra a nortear a autorização de atividades e empreendi-
mentos.
Nesse sentido a brilhante exposição do filósofo, jurista e escritor belga François Ost:

A imagem da justiça, associada aos três símbolos do gládio, da balan-


ça e da venda, pode servir aqui de arquétipo de todo o direito. Tome-
mos o gládio. Ele lembra a existência de interesses antagônicos e de
conflitos, a presença do erro e do inaceitável, assim como a necessi-
dade de cortar. Por oposição a um unanimismo enganador («todos são
amigos do ambiente»), o direito não recua diante da manifestação de
conflitos. Paradoxalmente, se ele exerce um papel pacificador na soci-
edade é porque permitiu primeiro, que os antagonismos se manifestas-
sem. Aqui, a linguagem do direito distingue-se da linguagem do di-
nheiro e da linguagem da imagem. O dinheiro induz um modelo de
regulação gerencial, que conduz à negociação e ao compromisso: o
dinheiro é esse «equivalente universal» que permite comprar tudo e
compensar tudo, enquanto que, pelo menos em alguns casos, o direito
fixa os limites do indisponível.1

O direito ambiental, especialmente o sistema jurídico da responsabilidade civil, caso


aplicado de forma equivocada, acabará por exercer uma função meramente figurativa,
operando de maneira simbólica diante da necessidade de uma efetiva proteção do meio
ambiente.

238
Como salienta José Rubens Morato Leite:

Essa manifestação representativa do sistema jurídico-ambiental cria


uma falsa impressão de que existe uma ativa e completa assistência
ecológica por parte do Estado. Com isso, produz-se uma realidade fic-
tícia, na qual a sociedade é mantida confiante e tranquila em relação
aos padrões de segurança existentes.2

Um exemplo que representa bem essa proteção fictícia é o licenciamento ambiental.


Basta aos empreendimentos obterem as licenças e pagarem as compensações legalmente
exigidas para que tenham salvo-conduto para exercerem suas atividades, inexistindo
controle efetivo do cumprimento de suas condicionantes, pois o que se verifica é a ine-
ficácia do controle pós-licenciamento, sobretudo na fase de renovação das licenças.
Assim, faz-se necessária a exata compreensão dos princípios que norteiam o sistema
de responsabilização por danos ambientais, sobretudo a utilização do termo de ajusta-
mento de conduta como forma de resolução de conflitos ambientais. É necessário, ain-
da, fixar claramente os “limites do indisponível” dentro de critérios que privilegiem a
sustentabilidade do meio ambiente e de cada um de seus componentes em longo prazo,
o que significa também definir os limites do que é compensável. Ou seja, se não é pos-
sível compensar determinada perda ambiental, não seria também possível autorizar a
intervenção que lhe daria origem.
Na persecução de um Estado de Direito Ambiental3 a Constituição Federal (BRA-
SIL, 1988) incumbiu ao MP a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis, tendo como função institucional a prote-
ção do meio ambiente (Artigos 1º, 127 e 129, inc. III).

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição Federal (BRASIL, 1988) expressamente consagra o Brasil como


Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos: a soberania; a cidadania; a
dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o plu-
ralismo político. E sendo um Estado respaldado na democracia, reconhece que (Artigo
1º e Parágrafo Único) “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-
tantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”4.

239
Como enfatiza José Afonso da Silva:

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser


um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e soli-
dária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido
em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art.
1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação cres-
cente do povo no processo decisório e na formação dos atos de gover-
no; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias
e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes
e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses
diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa
humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhe-
cimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas
especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de fa-
vorecer o seu pleno exercício.5

Já em seu Artigo 127, caput, a nossa CF preceitua que o Ministério Público é “insti-
tuição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indispo-
níveis”6.
Assim, a mesma ordem constitucional que implementou o Estado Democrático de
Direito, deu nova estruturação ao MP como uma instituição autônoma, munida dos ins-
trumentos necessários para a efetiva realização dos direitos dos cidadãos em face do
Poder Público.
De fato, como esclarece Geisa Assis Rodrigues:

O Ministério Público que emerge da nova ordem constitucional é uma


instituição diferente, com novas atribuições, com importantes garanti-
as institucionais e pessoais, aliando a sua histórica tradição de postu-
lação em juízo, seja no âmbito penal seja no âmbito cível na tutela de
direitos transindividuais e individuais indisponíveis, com a possibili-
dade de uma ampla atuação de defesa extrajudicial da cidadania, e
com poderes de investigação e de utilizar outras medidas extrajudici-
ais para a defesa do patrimônio público e social.7

Assim, com o advento da CF (BRASIL, 1988) surge o MP como instituição perma-


nente e autônoma em relação aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com um
fundamental papel de defesa da ordem democrática e dos direitos da coletividade, regi-
da pelos princípios da independência funcional, da unidade e da indivisibilidade, com
autonomia administrativa e orçamentária.

240
Nesse novo contexto constitucional inaugurado em 1988 houve o rompimento com a
clássica tripartição de poderes que tornou-se inadequada para um Estado que assumiu a
missão de fornecer a todos o seu povo o bem-estar, devendo, pois, separar as funções
estatais, dentro de um mecanismo de controles recíprocos, denominado “freios e contra-
pesos” (checks and balances), segundo Moraes (2003).
A CF atribuiu ao Ministério Público, dentre outras funções, o dever de zelar pelo
equilíbrio e separação dos poderes e respeito aos direitos fundamentais, nesse sentido
são as lições do Ministro Sepúlveda Pertence, in verbis:

Seu Papel fundamental é, e continuará sendo, uma decorrência da ca-


racterística fundamental de ser o Poder judiciário um poder inerte, va-
le dizer, um poder sem iniciativa. E de existirem interesses em relação
aos quais, interesses cujo âmbito se tende a ampliar, em relação aos
quais o exercício da ação, o exercício do direito de ação mão se pôde
deixar à disposição das partes. Aí está o papel fundamental do Minis-
tério Público. É mantida a inércia do Poder Judiciário, considerada re-
quisito indispensável à sua imparcialidade, criar-se, exigir-se um ór-
gão público capaz de exercer a ação quer na área penal, quer em âmbi-
to que se amplia na área civil. Na medida em que a Constituição, a
meu ver acertadamente, de um lado deu ênfase em particular à temáti-
ca dos Direitos Coletivos e dos Direitos Sociais e de outro adotou a
fórmula que, para proteção jurisdicional de toda essa gama de interes-
ses coletivos e direitos coletivos que começam a ganhar cidadania, a
fórmula que me parece a mais adequada da dupla titularidade, já abri-
ga de um lado a sociedade civil e de outro a de um órgão público o
Ministério Público. É essencialmente o órgão mais adequado ao assu-
mir essas funções.8

O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Para se compreender a dimensão do que chamamos de “conflitos ambientais” torna-


se fundamental o entendimento do conceito de desenvolvimento sustentável trazido por
nossa CF, que busca a compatibilização da proteção dos recursos naturais com o desen-
volvimento de atividades econômicas.
O que na teoria parece óbvio se torna complexo na implantação de empreendimen-
tos potencialmente poluidores. Não raro o procedimento de licenciamento ambiental
tem sido o palco para defesa maniqueísta de interesses que deveriam se harmonizar se-
gundo o próprio mandamento constitucional.

241
Na esteira dessa nova compreensão de desenvolvimento, exsurge, al-
gum tempo depois, o conceito de desenvolvimento sustentado. O ter-
mo apareceu pela primeira vez no Relatório da Comissão Brundtland,
de 1987, que mais tarde viria a influenciar profundamente a Conferên-
cia Internacional do Rio de Janeiro, de 1992. Tratava-se de uma evo-
lução do termo eco desenvolvimento, cunhado pelo canadense Mauri-
ce Strong, secretário das conferências de Estocolmo e do Rio de Janei-
ro, e Ignacy Sachs, em sua clássica obra Eco desenvolvimento: crescer
sem destruir, de 1974. Algum tempo depois passou-se a utilizar o ter-
mo desenvolvimento sustentável.9

A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ou Comissão


Brundtland) define como Desenvolvimento Sustentável aquele “que atende às necessi-
dades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as
suas próprias necessidades”.
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1981) colocou a busca do
desenvolvimento sustentável como um dos seus objetivos. Nesse sentido, a CF contem-
plou-o explicitamente na caput e em diversos incisos do Artigo 225, além da previsão
contida no Artigo 170, elencando a defesa do meio ambiente a um princípio da ordem
econômica (BRASIL, 1988).
Ao intérprete cabe a concretização desse conceito, de modo a impedir que as ativi-
dades econômicas sejam exercidas em desacordo com os princípios destinados a tornar
efetiva a proteção ao meio ambiente. Os recursos naturais não podem ser comprometi-
dos por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole mera-
mente econômica.
Nesse contexto, torna-se fundamental o papel do MP na concretização do conceito
de desenvolvimento sustentável, sobretudo na fiscalização e controle da legalidade do
licenciamento ambiental.

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DEFESA DO MEIO AMBIENTE

Nos termos da CF o Ministério Público é uma instituição permanente, essencial à


função jurisdicional do Estado, e que tem como principais atividades a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos chamados interesses e direitos “metaindividuais”,
que são, em linhas gerais, os pertencentes à coletividade como um todo.

242
Essa função insere-se no escopo maior da efetivação dos princípios fundamentais da
República Federativa do Brasil. Como pondera Marcelo Goulart:

O objetivo estratégico do Ministério Público é a defesa do projeto de


democracia participativa, econômica e social delineado na Constitui-
ção de 1988, pela consecução dos objetivos fundamentais da Repúbli-
ca sintetizados no art. 3º, incs. I a IV (construção da sociedade livre,
justa e solidária, na qual o desenvolvimento socioeconômico cultural
deve estar voltado para a erradicação da pobreza e da marginalização,
para a redução das desigualdades sociais e regionais e para a promo-
ção do bem de todos).10

A atuação extrajudicial ganhou amplitude na nova perspectiva do MP, que busca


celeridade e efetividade no resultado de seu trabalho, além da diminuição dos custos
processuais, abarcando as mais diversas matérias, como o meio ambiente.
Com efeito, a complexidade das questões ambientais, e sua estreita ligação com as
políticas de desenvolvimento econômico demonstram a importância da busca por novos
caminhos para solucionar os problemas respectivos. Os instrumentos tradicionais não
são mais suficientes para um resultado que se considere eficaz.
Podemos destacar como instrumentos de atuação extrajudicial utilizados pelo MP o
Inquérito Civil, a recomendação e o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
O Inquérito Civil foi concebido pela Lei da Ação Civil Pública (BRASIL, 1985)
como um procedimento administrativo de investigação exclusivo do MP para verifica-
ção de lesão a direito transindividual, em que se colhem elementos elucidativos do dano
ou perigo de dano a interesses difusos ou coletivos, entre eles o meio ambiente, por
meio de requisições de informações, notificações, oitiva dos envolvidos ou interessados,
além de provas documentais e perícias técnicas.
Assim, o objetivo precípuo do Inquérito Civil é investigar a materialidade dos fatos
potencial ou efetivamente lesivos a um direito transindividual, identificando os respon-
sáveis por sua prática.
O objeto do Inquérito Civil, por sua vez, é o mais amplo possível, mas o fato ou
conjunto de fatos contrários aos interesses da coletividade devem ser bem determinados
para maior precisão das apurações e melhores resultados práticos.
Na atual sistemática pode o inquérito civil ser utilizado para investigar qualquer tipo
de ofensa a direito transindividual, e até de direitos individuais indisponíveis, cuja defe-

243
sa seja atribuição do MP, destacando-se que o objeto da apuração tem que estar fora do
âmbito penal.
Importante registrar que é no âmbito do inquérito civil que o promotor de justiça
formará a convicção acerca do caminho jurídico a ser trilhado para a melhor defesa do
meio ambiente.
A recomendação é um instrumento previsto na Lei Complementar nº 75, de 20 de
maio de 1993 (BRASIL, 1993b) e na Lei Orgânica Nacional dos Ministérios Públicos
dos Estados (BRASIL, 1993a). Esse instrumento consiste na possibilidade do Parquet
recomendar aos responsáveis a adoção de medidas que possam favorecer a adequada
prestação de serviços públicos ou o respeito aos interesses, direitos e bens transindivi-
duais, ou a abstenção de atos que causem prejuízos a tais direitos.
A recomendação não obriga o recomendado a cumprir os seus termos, mas serve
como advertência para as sanções cabíveis pela sua inobservância.
É importante que a recomendação seja devidamente motivada para que se possa
convencer o destinatário da importância e necessidade de seu acolhimento.
Em regra, é expedida nos autos do inquérito civil, após a sua instrução, como forma
de evitar medida judicial, e tentativa de inibir a prática de condutas sob investigação, em
que há fortes indícios de irregularidade, além de ter as vantagens do seu pouco custo,
rapidez e eficácia.
O objeto da recomendação é bastante amplo, podendo versar sobre a adoção de me-
didas que estão sob o juízo discricionário da Administração Pública, ou medidas que só
podem ser determinadas com força de executoriedade pelo Poder Judiciário.
Caso não seja acatada, deve o recomendado expor, por escrito, ao Ministério Públi-
co os motivos que levaram a sua inobservância.
A recomendação difere do TAC porque este tem eficácia de título executivo extra-
judicial o que dá maiores garantias para o cumprimento do ajustado, ao passo que na
recomendação nada protege o seu cumprimento. Todavia, sendo a recomendação unila-
teral é mais fácil a sua concretização do que a de um ajustamento de condutas, que pres-
supõe a conjugação da vontade do responsável.

O TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA E A RESOLUÇÃO DE


CONFLITOS

244
É preciso muito cuidado ao se analisar o termo de ajustamento e a resolução de con-
flitos, sobretudo por uma impressão equivocada que vincula o TAC a “negociação” de
conflitos e a eventual flexibilização da lei na tutela do meio ambiente.
A cautela se impõe na medida em que a crítica desarrazoada e exacerbada ao ins-
trumento pode macular a utilização do maior instrumento jurídico a disposição da cole-
tividade para a defesa do meio ambiente, de maneira a atender somente aos interesses
escusos daqueles “descumpridores contumazes da lei ambiental” que se refugiam na
lentidão e morosidade do judiciário para a mantença de suas atividades ilícitas.
Em 2011 (último dado disponível), tramitaram quase 90 milhões de ações no país,
das quais 25,7 milhões são novas – 7,3% a mais que em 2010. Sendo que o total de ca-
sos baixados (resolvidos numa das instâncias judiciais) chegou a 25,5 milhões.
Portanto, fica fácil de perceber a imagem que se impõe: o Judiciário está enxugando
gelo. Incapaz de dar conta dos processos novos deixa para as calendas gregas a diminui-
ção do estoque, acumulado em mais de 63 milhões de ações. Podemos deixar a tutela do
meio ambiente nas mãos da Justiça processual?
Parece evidente que o enorme volume contribui para a morosidade – benéfica ape-
nas para que deseja retardar a decisão. Para desafogar os tribunais, cada vez mais espe-
cialistas concordam que é preciso incentivar caminhos alternativos para a resolução de
conflitos: mediação, conciliação e arbitragem. Essa é uma agenda que merece ser levada
adiante, sem que se abandone o necessário aperfeiçoamento dos meios processuais de
tutela de direitos.
No tocante, em especial, à implementação do direito ao meio ambiente ecologica-
mente equilibrado, consagrado constitucionalmente, tem ganhado força a resolução ex-
trajudicial dos conflitos que o envolvem, como nova perspectiva da gestão ambiental
com ênfase na concretização do desenvolvimento sustentável.
Nesse contexto, o TAC tem sido utilizado pelo MP como grande instrumento de
resolução de conflitos transindividuais, promovendo a defesa do meio ambiente de ma-
neira célere, mais adequada e de maior utilidade prática, além de revestida de legitimi-
dade, tendo em vista a participação dos envolvidos e, na medida do possível, o equilí-
brio dos interesses em jogo.

245
A opção pela utilização do TAC deve ocorrer no bojo do inquérito civil, após detida
análise de todos os meios de prova obtidos, tendo sempre em vista a indisponibilidade
dos interesses difusos, construindo-se a melhor solução de mitigação dos danos ambien-
tais, em relação às medidas (modo de execução) de caráter reparatório ou compensató-
rio, quando a prevenção não é mais possível.
Ressalta-se que a complexidade cada vez maior das questões ambientais, e sua com-
patibilização com as atividades econômicas, demonstram a importância da busca por
novos caminhos, mais eficazes, para solução desses problemas.
Os instrumentos legais restritos, baseados em padrões técnicos e em teorias de res-
ponsabilidade não se mostram suficientes hodiernamente, a despeito de se ter que ob-
servar sempre os princípios mais caros da sociedade, não se admitindo a solução “nego-
ciada”, a custa de medidas menos protetivas de direitos fundamentais, que são indispo-
níveis.
Por fim, a resolução de conflitos ambientais por meio da abordagem alternativa, na
medida permitida, se faz em menor tempo, e consequentemente, com menor custo do
que por meio da abordagem tradicional, que se caracteriza pela interposição de ação
judicial. De fato, em se tratando de meio ambiente, a reparação do dano e a recuperação
da qualidade precisa ser rapidamente resolvida, para que os recursos ambientais não
pereçam completamente, sendo inviável a sua reparação in natura.
Entretanto, para que o ordenamento jurídico-ambiental garanta a prevalência da fun-
ção preventiva, mister se faz um sistema de responsabilização civil que traga a certeza
de que a sanção será imposta de forma rigorosa ao agente causador do dano. Neste as-
pecto ressurge a grande relevância de TAC e de se estabelecer técnicas que possam ser
utilizadas para a valoração de todas as dimensões dos danos ao meio ambiente.
Assim, de acordo com Benjamin (2011), são consideradas funções a serem cumpri-
das pela responsabilidade civil na área ambiental: “a) compensação das vítimas; b) pre-
venção de acidentes; c) minimização dos custos administrativos do sistema; d) retribui-
ção”.
A escassez e ineficácia dos instrumentos de gestão ambiental tradicionais – como,
por exemplo, o licenciamento ambiental, a avaliação ambiental estratégica, o Zonea-
mento Ecológico Econômico (ZEE), levam a uma falsa expectativa de que o TAC seria
o instrumento capaz de “solucionar” os complexos conflitos ambientais.

246
CONCLUSÃO

Embora o ordenamento jurídico-ambiental brasileiro possua instrumentos que não se


limitam ao controle da produção e da proliferação de riscos, ressalta-se a necessidade de
afastar o Direito Ambiental da irresponsabilidade organizada e desvinculá-lo da inten-
ção do exercício de uma função meramente simbólica (LEITE e AYALA, 2012, p. 117).
Confira-se a doutrina de Benjamin:

Não imaginemos, todavia, que a utilização pelo direito ambiental de


uma responsabilidade civil revitalizada resolverá, de vez, a degrada-
ção do planeta. Inicialmente, é bom lembrar que as técnicas de prote-
ção do meio ambiente são (e precisam ser) complementares entre si e
devem funcionar de maneira integrada, da responsabilidade civil, pe-
nal e administrativa ao planejamento, auditorias e instrumentos eco-
nômicos.11

Segundo Morato Leite, o:

mecanismo da compensação ecológica, como visto, é uma resposta


econômica à questão do dano ambiental. Trata-se, portanto, de uma
solução ainda precária ao problema da crise ambiental, pois não foge
muito da racionalidade utilitarista, quando deveria procurar maior
comprometimento ético com o bem ambiental e as gerações futuras.12

Nesse contexto, a utilização do termo de ajustamento de conduta deve vislumbrar a


prevenção geral, ou seja, que as obrigações mitigadoras, reparadoras e compensatórias
fixadas e exigidas do causador do dano leve em consideração as gerações futuras, assim
como os princípios da equivalência, razoabilidade e proporcionalidade.
É primordial, para que a responsabilidade ambiental aprimore seu aspecto preventi-
vo, que se defina de que forma funcionará como um sistema integrado com os demais
instrumentos de comando e controle do Estado, sobretudo com o estabelecimento de
mecanismos céleres, rigorosos e eficazes de preservação dos recursos naturais.

NOTAS

247
1
OST, 1995
2
LEITE e AYALA, 2012, p.116-117
3
“Em linhas gerais, o Estado de Direito Ambiental pode ser compreendido como produto de novas rei-
vindicações fundamentais do ser humano e particularizado pela ênfase que confere à proteção ambiental”
(LEITE e AYALA, 2012, p. 37).
4
BRASIL, 1988
5
SILVA, 2002
6
BRASIL, 1988
7
RODRIGUES, 2006
8
MARTINS, 1990
9
BECHARA, 2012, p. 17
10
GOULART, 2008, p. 13
11
BENJAMIN, 1998, p. 10
12
LEITE e AYALA, 2012, p. 214

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248
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002. p. 119-120.

249
MÁRIO AUGUSTO VICENTE MALAQUIAS

OCUPAÇÕES EM ÁREAS DE RISCO: OPÇÃO OU FALTA DE


OPÇÃO DA POPULAÇÃO SEM MORADIA

PERFIL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A TUTELA


DA ORDEM URBANÍSTICA

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) traçou um novo perfil para o Mi-
nistério Público (MP), ampliando suas atribuições e seus poderes. Após a sua promul-
gação, o Parquet deixou de se subordinar ao Poder Executivo e passou a ser órgão esta-
tal autônomo e independente, com garantias e vedações similares às concedidas ao Po-
der Judiciário e a seus membros.
A atuação do órgão do MP tem por fim atuar na preservação e implementação dos
valores maiores da sociedade como formar a opinio delictus sendo o titular da ação pe-
nal pública (Artigo 129, I), a legitimação extraordinária para a propositura de ação civil
pública (Artigo. 129, III)e a instauração e presidência do inquérito civil, com a possibi-
lidade de expedir notificações, requisitando informações e documentos (Artigo 129, III
e VI).
Em consequência da legitimação extraordinária para a ação civil pública e o poder
de instauração do inquérito civil, coube ao parquet também a tutela da ordem urbanísti-
ca que para Carlos Ari Sundfeld pode ser entendida em dois sentidos. Primeiramente,
pode significar “ordenamento”, ou seja, o conjunto de normas vinculantes que “condi-
cionam positiva ou negativamente a ação individual na cidade”. Pode significar, ainda, e
esse sentido é o que nos interessa no âmbito deste estudo, um “estado de equilíbrio que
o conjunto dos agentes envolvidos é obrigado a buscar e preservar”.
Permite a exigência de atividades positivas e negativas tanto do Estado, quanto de
particulares:
• necessidade de elaboração de Plano Diretor pelos Municípios (Artigo 39 e seguin-
tes, da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001) e obrigatoriedade de edificação em lo-
cais determinados por este mesmo plano (Artigo 5º) (BRASIL, 2001).

250
• a necessidade de aprovação prévia de parcelamentos urbanos; a definição de zo-
nas de ocupação diferenciada e a instituição de Imposto Predial e Territorial Urbano
(IPTU) progressivo, dentre outros.

Lembra Carlos Ari Sundfeld que o Estatuto da Cidade “expressa a convicção de que,
nas cidades, o equilíbrio é possível – e, por isso, necessário. Deve-se buscar o equilí-
brio das várias funções entre si (moradia, trabalho, lazer, circulação etc.)", bem como
entre a realização do presente e a preservação do futuro (Artigo 2º, I); entre o estatal e o
não-estatal (incisos III e XVI); entre o rural e o urbano (inciso VII); entre a oferta de
bens urbanos e as necessidades dos habitantes (inciso V); entre o solo e a infraestrutura
existente (inciso VI); entre os interesses do Município e os dos demais territórios sob
sua influência (inciso IV e VIII) (BRASIL, 2001).

FORMAS DE ATUAÇÃO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE HABITAÇÃO E


URBANISMO DE SÃO PAULO – AS OCUPAÇÕES EM ÁREAS DE RISCO NA
CIDADE.

As investigações de ocupações em áreas de risco, sujeitas a desmoronamentos, des-


lizamentos e inundações na Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo tiveram
início nos idos de 1996 quando aportou na promotoria representação da então Vereadora
Aldaísa Sposati (Inquérito Civil nº. 08/96 - PJHURB) que, instruída com levantamento
de dados da Administração Municipal da Ex-prefeita Luíza Erundina, indicava à época
do mandato da senhora Prefeita a existência de 240 áreas de risco na cidade ocupadas
por aproximadamente 51.114 moradores e a administração municipal do então Prefeito
Celso Pitta teria (1994-1998) abandonado o programa de contenção de risco elaborado
nos anos de 1989 e 1990.
A Promotoria de Justiça após uma coleta de dados deliberou atuar separadamente
por Administração Regional (Subprefeitura), assim, com base nos levantamentos que já
instruíam os autos cada um dos cinco Promotores de Justiça era responsável por um
número determinado de Subprefeituras e as áreas de risco ocupadas em grande parte por
habitações subnormais nelas inseridas e nesta distribuição cada integrante teria pelo
menos uma Subprefeitura onde as ocupações eram mais gravosas.

251
As peças informativas extraídas do Procedimento nº. 8/96 foram distribuídas e os
Promotores de Justiça instauraram e instruíram os inquéritos civis com laudos elabora-
dos pelo Centro de Acompanhamento e Execução da Procuradoria Geral de Justiça de
São Paulo (CAEx), vistorias requisitadas às próprias Administrações Regionais, a Polí-
cia Militar dentre outros órgãos.
Houve a preocupação de se promover uma instrução eficiente para delimitar a área
de risco e a existência dele, porém, rápida em razão dos períodos mais chuvosos na ci-
dade, em especial nos meses de setembro a março e o consequente risco de perecimento
de vidas humanas.

INSTRUÇÃO DO INQUÉRITO CIVIL E REDAÇÃO DA PETIÇÃO INICIAL

Instruído o inquérito civil a petição inicial se fundamentou na responsabilidade obje-


tiva do município de São Paulo para a eliminação/afastamento do risco e sendo necessá-
ria, a remoção dos moradores expostos a riscos derivados, que se procedesse ao aloja-
mento das famílias em local adequado, sob pena de multa diária em valor compatível a
que a obrigação de fazer fosse cumprida.
As ações civis públicas foram propostas e em grande parte obtiveram liminar para o
afastamento imediato do risco, com remoção dos moradores, se necessário.
Nas primeiras ações propostas deliberou-se requerer ao Juiz assinasse um prazo para
eventual remoção, posteriormente excluímos esses pedidos por entendermos que ele
poderia implicar na discricionariedade, todavia, alguns magistrados determinaram o
aditamento da petição inicial para que o MP indicasse um prazo para o cumprimento da
liminar requerida.

DO COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA

A concessão de liminares conclamou a Prefeitura Municipal de São Paulo a procurar


a Promotoria de Justiça para elaborar um compromisso de ajustamento de conduta.
Condições da Promotoria de Justiça para a celebração do Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) foram:

252
A elaboração de laudos pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas - IPT (Fundação da
USP) e laudos elaborados pela Universidade Estadual Paulista (FUNDUNESP). Nestes
laudos foi realizado um mapeamento das piores situações de risco geológico no territó-
rio do município com a classificação conforme a gravidade (R4 – muito alto; R3 – alto;
R2 – médio; R1 – baixo) para indicar os casos de remoções, obras e intervenções neces-
sárias. Foi elaborado, ainda, um Plano Geral de Intervenções para o monitoramento das
áreas e um cronograma de obras que deveriam ser executadas.
Depois de mais de um ano de reuniões e tratativas, aos 4 de dezembro de 2002 foi
assinado o TAC pela Prefeita Marta Suplicy, Secretário das Subprefeituras Jilmar Tatto,
Procurador Geral do Município Fábio Costa Couto e os cinco Promotores de Justiça de
Habitação e Urbanismo e posteriormente foi homologação pelo Conselho Superior do
Ministério Público.
Principais cláusulas do TAC
• A elaboração de um relatório atualizado da situação de risco existente nas áreas de
ocupação subnormal (comunidades em favelas e parcelamentos irregulares do solo
urbano).
• Identificação e cartografia de todas as áreas de ocupação subnormal onde houves-
se risco de escorregamentos em encostas provocados por deslizamentos do solo ou
depósitos artificiais de encosta ou por rolamento e desplacamento de rochas.
• A Prefeitura do Município de São Paulo e o MP se comprometeram a avaliar a e-
laborar de petição conjunta para requerer a suspensão do andamento das ações civis
públicas propostas até 30 de dezembro de 2002.
• Para os inquéritos civis em andamento a Prefeitura de São Paulo se comprometeu
a reavaliar as áreas investigadas visando à celebração de um TAC para evitar o ajui-
zamento de novas ações judiciais.
• Elaboração de um Plano Geral de Intervenções a ser apresentado até 20 de maio
de 2003 contendo uma ordem de prioridades entre as diversas áreas para implantação
de medidas de controle e eliminação de risco contendo: formas de intervenção; esti-
mativa de custos e cronograma plurianual, alojamento em locais adequados para as
para as famílias que fossem removidas de suas moradias, até que pudessem retornar
às suas residências.

253
• Não reconhecimento pelo MP de que a classificação do risco adotada seja absolu-
ta.
• Possibilidade de verificação técnica por órgãos estranhos ao compromisso cele-
brado, escolhidos pelo MP, outorgando-se à Polícia Militar do estado de São Paulo
(PMSP) o direito de impugnar o laudo elaborado por técnico indicado pelo MP.

O CASO DA OCUPAÇÃO DO JARDIM MATA VIRGEM.

O tema das ocupações em áreas frágeis da cidade inicia um amplo debate sobre os
crescimentos das cidades. Se as cidades representavam na década de 40 uma evolução
que representava tudo o que havia de moderno, o que desencadeou as grandes migra-
ções das áreas rurais, hoje ela não mais atende a todas as necessidades da população e
lamentavelmente temos visto ao longo do tempo, programas sociais voltados à popula-
ção desassistida que prestigiam o retorno dela à terra de origem como se tal fato pudesse
resolver, por exemplo, a falta de moradia.
A pressão pelo consumo é fato e ela ocorre tanto nas cidades onde tudo é mais visí-
vel, quanto no campo onde o consumo pela carência de ofertas é mais contido, todavia,
as áreas rurais nem sempre oferecem condições adequadas para a população viver com
dignidade e a busca por uma vida melhor força os seus moradores a migrar para as cida-
des para a realização deste sonho.
A realidade nas grandes cidades brasileiras é cruel. A elevada competitividade na
busca da excelência afasta do mercado de trabalho aqueles que a vida toda tiveram co-
mo único instrumento de trabalho a enxada, logo, esses trabalhadores e trabalhadoras
rurais ao chegarem às grandes cidades são compelidos para empregos de menor renda e
consequentemente vão habitar as áreas disponíveis dos centros urbanos que são aquelas
na lição de Ermínia Maricato, que estão fora do mercado, são as áreas mais afastadas,
onde o Estado se ausentou.
Falamos das áreas de proteção ambiental, áreas de risco em terrenos de alta declivi-
dade, áreas sujeitas a inundações, dentre outras e estes problemas de formas diversas
chegam ao MP que por sua vez leva estas demandas ao Poder Judiciário.

254
Para ilustrar a nossa exposição, ressalto trabalho que contou com a nossa interven-
ção na Ação Civil Pública nº. 04144-53.1998.8.26.0053, que tramita desde 1998 na 4ª
Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital do estado de São Paulo.
Nesses autos o MP em razão de uma ocupação numa área de encosta de elevado
risco, propôs ação civil pública com a pedido para o afastamento do risco por tratar-se,
também, de área ambientalmente frágil, próxima aos mananciais que abastecem a região
sul da cidade.
Apurou-se uma ocupação em áreas com declividades acima de trinta por cento, co-
mo mostrado na FIG. 4 abaixo:

FIGURA 4. Ocupação em áreas com declividades.

Trata-se de ocupação que se consolidou ao longo do tempo com casas, inicialmente,


construídas em madeira e posteriormente substituídas, paulatinamente, por casas de al-
venaria bem precárias o que retrata a triste realidade brasileira. A falta de uma fiscaliza-

255
ção eficiente aliada à ausência de opções de moradia levam as pessoas a ocupar aquilo
que podem (ver FIG. 5 e 6).

FIGURAS 5 e 6. Ocupação já consolidada.

256
Embora precárias os seus moradores criam laços com o lugar, motivo pelo qual a
aplicação de políticas que estimulem o retorno dessa população aos seus locais de ori-
gem não mais atendem às necessidades dos moradores que se vincularam ao local onde
estão justamente por falta de opção nos seus locais de origem, ou mesmo, pela opção de
também partilhar as benesses das grandes cidades o que não é alcançado por todos (ver
FIG. 7 e 8).

257
FIGURAS 7 e 8. Ocupação já consolidada.

Todos esses fatos nos levaram à tentativa da formulação de políticas públicas para,
ao menos, diminuir os efeitos destas ocupações nefastas e nessa ação civil pública que,
repito, ainda tramita, com o elevado espírito público do magistrado, o Dr. Luís Paulo
Aliende Ribeiro que nos idos de 2002 era juiz titular da 4ª Vara da Fazenda Pública e
com a concordância dos proprietários, da municipalidade de São Paulo e da Fazenda do
Estado de São Paulo, foi acordado que apenas se faria a desocupação apenas nas áreas
absolutamente indispensáveis e as famílias que ocupavam essas áreas seriam deslocadas
para um conjunto habitacional construído pelo governo do Estado de São Paulo em área
próxima disponível, assim, seria facilitada a manutenção dos vínculos da população
com o lugar, as crianças poderiam continuar na mesma escola e os moradores com em-
pregos próximos também não seriam prejudicados (ver FIG. 9).

FIGURA 9. Ocupação já consolidada.

258
Verifica-se no canto direito superior da foto um conjunto habitacional construído
para atender aqueles que seriam removidos das áreas críticas marcadas sob o grifo “re-
moção definitiva”.
A ação ainda tramita para acompanhar a regularização da área, porém, ao contrário
de muitas outras ocupações não teve um desfecho traumático para aqueles que estão em
situação de vulnerabilidade.

CONCLUSÃO

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) preocupado com a questão


das ocupações em áreas de risco publicou o Aviso nº. 35/2010 – Procuradoria Geral de
Justiça (PGJ) que dentre as várias recomendações expedidas especifica a necessidade da
manutenção dos vínculos familiares nas eventuais remoções:

RECOMENDA, também, aos Promotores de Justiça do Meio Ambien-


te, sem caráter normativo, que nos respectivos municípios de suas co-
marcas investiguem e acompanhem junto ao poder público estadual
e/ou municipal: (...) preocupação com os aspectos sociais: ruptura e
desestruturação de laços familiares e comunitários, exigindo-se que
tais aspectos sejam contemplados no planejamento e respeitados nas
intervenções.1

Em artigo recentemente publicado me expressei no sentido de que o MP vem indu-


zindo a realização de políticas públicas para a solução das ocupações em áreas de risco
e reproduzo aquelas observações, plenamente válidas para os propósitos da presente
obra:

O Ministério Público no exercício das suas funções há dezesseis anos


vem induzindo a realização de políticas públicas na solução das ocu-
pações em áreas de risco na cidade de São Paulo, uma das finalidades
do plano de metas da Instituição. Demais órgãos do parquet, além da
Promotoria de Justiça da Capital (São Paulo) têm promovido ações ci-
vis públicas, bem como a celebração de compromissos de ajustamento
de conduta com órgãos da Administração para solucionar os males das
ocupações em áreas impróprias (risco e ambientalmente frágeis). Tra-
ta-se de uma ação de estado que continuará enquanto não tivermos
habitação digna para todos.2

NOTAS

259
1
Cf. DOE de 06, 07 e 09/10/2010.

2
MALAQUIAS (2012).

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.


Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao.htm#adct>. Acesso em: 25 ago. 2013.

BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da


Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras provi-
dências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 25 ago.
2013.

MALAQUIAS, Mário Augusto Vicente, Das Ocupações em Áreas de Risco na Cidade


de São Paulo e o Trabalho Desenvolvido pela Promotoria de Justiça de Habitação e Ur-
banismo In: Temas de Direito Urbanístico 6 – Áreas de Risco. Coord. Jorge Luiz Ussi-
er, Org. Mário Augusto Vicente Malaquias. São Paulo. Ed. IMESP e Ministério Público
do Estado de São Paulo, 2012, p. 285.

260
CLEYTON GERHARDT
RAFAEL MARTINS LOPO
CAIO FLORIANO DOS SANTOS

POLO NAVAL DO RIO GRANDE: IDEOLOGIA


NEODESENVOLVIMENTISTA, "ALTERNATIVAS INFERNAIS"
E "AUTORITARISMOS TOLERANTES"

O sistema capitalista engendra uma série de modos de vida


ideais que excluem a diferença uma vez que, geralmente,
vem anunciado como programa de igualdade ou 'para to-
dos'. Porém, essa fórmula de liberdade que promete equa-
lização guarda secretamente – e com estratégias cada vez
mais sofisticadas – um amplo projeto de dominação e do-
mesticação dos corpos.
FLÁVIA CERA (2012)

INTRODUÇÃO

Pensada enquanto construção sócio-histórica moldada na reconfiguração das rela-


ções de poder globais após a segunda guerra mundial (ESCOBAR, 2007), a ideia de
levar/trazer desenvolvimento a regiões rotuladas como subdesenvolvidas, carentes, atra-
sadas continua forte no imaginário coletivo. Como o “vale da miséria”, como por vezes
se designa o Vale do Jequitinhonha/MG (GALISONI, 2000; ZHOURI e OLIVEIRA,
2007), também a dita Metade Sul do Rio Grande do Sul carrega o estigma de região
pobre, decadente e sem dinamismo econômico. Desta condição negativa, de tempos em
tempos surge entre governantes, mídia, empresários e políticos, propostas de caráter
salvacionista (por vezes messiânico) visando propiciar sua “reestruturação produtiva” e
inseri-la nos circuitos produtivos capitalistas e mercados globais.
O caso mais recente deste fenômeno se dá hoje através das políticas de ampliação e
modernização do complexo portuário de Rio Grande, cidade do litoral sul gaúcho por
onde passa boa parte da produção do estado1. Nos últimos anos, manchetes como “In-

261
dústria Naval em franca expansão”2 e notícias alvissareiras do tipo “além de movimen-
tar a região de Rio Grande, investimentos alcançam municípios em torno de rios Jacuí e
Taquari”3 têm sido recorrentes na mídia local e regional. Tida como redenção econômi-
ca desta parte da Metade Sul, a urgência em se garantir a dinamização do porto de Rio
Grande tornou-se unanimidade para autoridades e parte da população local, invizibili-
zando com isso impactos, danos e conflitos em torno dos empreendimentos.
Para se ter uma ideia do que isso representa para a cidade e municípios vizinhos,
além da reestruturação do Porto Velho (onde se concentra a indústria da pesca e embar-
cações a vela), estão sendo executadas obras de modernização do Porto Novo (que in-
clui o porto público, estaleiro QUIP4 e pátio automotivo), ampliação do chamado Super
Porto (com terminais portuários privados por onde passam contêineres, fertilizantes,
graneis químicos e agrícolas), dos Estaleiros Rio Grande (ERG) 1 e 2 e construção das
futuras instalações dos Estaleiros ERG 3 (em fase de licenciamento). Junto a estas o-
bras, na vizinha São José do Norte, no outro lado do canal que liga o estuário da Lagoa
dos Patos ao mar (ver FIG. 1), há ainda o projeto de expansão dos terminais portuários
da Ilha da Terrapleno, a construção de uma unidade do Estaleiros do Brasil Ltda. (EBR)
e a expansão do Porto de Rio Grande para São José do Norte visando o escoamento da
exploração mineral de titânio e zircônio (em processo de estudos para o licenciamento)
a ser extraído neste município. Se somarmos todas estas mega-obras com o avanço, na
já tradicional área de criação extensiva de gado, dos monocultivos de pinus, eucalipto,
acácia, arroz e soja, vê-se que se está diante de uma série de atividades potencialmente
poluidoras que fazem de Rio Grande e entorno uma grande “zona de sacrifício”5 (SAN-
TOS e MACHADO, 2013). Tais empreendimentos têm deflagrado conflitos entre em-
presas do setor naval, prefeitura, agentes intermediários (Organizações Não Governa-
mentais (ONG), sindicatos, órgãos ambientais, ministério público) e grupos sociais que
se veem levados a resistir a este processo.
Neste artigo analisamos as implicações de outro capítulo do avanço dos mecanismos
de “acumulação por espoliação”6 nesta zona de sacrifício estratégica ao capital e o mo-
delo de desenvolvimento em vigor no país7. Primeiro mostramos como o entusiasmo
por trás da modernização do porto de Rio Grande (apoiado prontamente pelas elites
locais) não está desvinculado do contexto nacional, marcado pela retomada de grandes
projetos de desenvolvimento. A seguir, como recurso analítico para descrever disputas

262
em torno do novo “boom naval”, fazemos uma separação em três níveis ético-
discursivos. Os dois itens seguintes abordam dois aspectos dos empreendimentos: seu
padrão negocial "tolerante", mas autoritário e o caráter “infernal” das opções aos que a
eles resistem. Por fim, descrevemos a “chantagem locacional” imposta à Rio Grande
(ameaçada de perder recursos e empregos para outras zonas portuárias) e como se dá a
formação local de um consenso imposto sobre imaginados “benefícios” (que ofuscam
danos) da ampliação do polo naval.

RIO GRANDE E "O 'BOOM' NAVAL: A EXPLOSÃO DE UM SETOR QUE DES-


CONHECE A PALAVRA CRISE"

Antes de entrar na discussão sobre a modernização portuária em Rio Grande, veja-


mos brevemente o contexto em que este fenômeno está inserido, marcado pelo cresci-
mento da produção naval no país. Comecemos pela própria frase título deste tópico, que
abre matéria do Jornal Brasil Econômico de dezembro de 2012 sobre seminário na Fe-
deração das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS) para discutir potencialidades e
caminhos da indústria naval neste estado. Como se nota, ela traz uma conotação deveras
otimista. Mas de onde viria este ar quase eufórico que, nos últimos anos, tem contagiado
empresários, políticos, intelectuais, jornalistas e responsáveis por elaborar políticas pú-
blicas destinadas ao setor?
Autores que tratam da produção naval no Brasil concordam que o impulso do novo
ciclo de prosperidade teria sido a descoberta, no território brasileiro, de petróleo na
chamada Camada Pré-Sal8. Antes, entre 1985 e 2006, o país teria vivido, para Pinheiro
(2008, p.38), a “idade média” da construção naval, iniciando a partir daí um “período
em que políticas públicas e privadas de incentivo industrial são feitas com a finalidade
de desenvolvimento pessoal, tecnológico e de material, que objetiva construir uma de-
manda constante de navios”. Mas Pinheiro (2008, p. 36) reconhece que este processo
inicia já em 2000 com a criação, pelo governo federal, do Navega Brasil, programa de
incentivo à indústria naval que previa a construção de dois navios (não construídos). Em
2002, ano de eleição presidencial, o mesmo governo encomendou duas plataformas de
um estaleiro de Cingapura, abrindo debate sobre a autonomia do país no que tange ao
setor naval. Carvalho (2011, p.4) julga este o primeiro passo na direção à reestruturação,

263
pois o debate entre presidenciáveis apresentava à nação dois projetos distintos: de um
lado, o então presidente, seu candidato a sucessão e aliados insistiam que o país não
tinha condições tecnológica e financeira para construir plataformas. Já o candidato da
oposição e a frente política que o apoiava argumentavam ser preciso fortalecer a indús-
tria naval via atuação direta do Governo Federal.
Para Carvalho (2011), a vitória petista inicia o processo de valorização da indústria
naval com a renovação da frota da Transpetro9, a descoberta de petróleo em águas pro-
fundas e a mudança na política da Agência Nacional do Petróleo ao rever licitações e
contratos vigentes. Ainda em 2003 foram reestruturados o Fundo da Marinha Mercante
e, em 2004/05, os Programas de Renovação da Frota de Apoio Marítimo I e II. Já em
2005, através do Programa de Modernização da Frota (PROEMF I), inicia a nacionali-
zação da produção naval ao fixar-se o índice de 56% de participação da indústria nacio-
nal na construção de embarcações. A partir daí os 26 navios encomendados pela Trans-
petro e todos os demais teriam de respeitar este índice. Mas a coroação desse processo
se deu em 2006 com a descoberta de petróleo na conhecida Camada Pré-Sal. Conforme
a própria Petrobrás10, embora exija alto investimento, a meta da empresa é produzir um
milhão de barris/dia na área do Pré-Sal até 2017, mais do que triplicando a produção
atual nas bacias de Santos e Campos, em torno de 300 mil barris/dia.
É assim que a indústria naval se consolida como setor estratégico, agora protagonis-
ta de uma trama que põe o petróleo e toda rede de extração, produção e consumo como
um dos grandes salvadores da economia nacional e do futuro desenvolvimento do país.
Todo este esforço governamental produziu seus resultados, sendo que dados enaltecen-
do as políticas adotadas e seu impacto em termos de investimento e empregos não fal-
tam na literatura. Segundo Carvalho (2011), enquanto estaleiros existentes em 2000
ofereciam cerca de 1900 empregos diretos, em 2010 o número saltaria para cerca de 56
mil. Já o investimento do Fundo da Marinha Mercante aumentou de R$ 300 milhões em
2000 para 2,6 bilhões em 2009.
Também chama a atenção informações de alguns autores sobre a potencial criação
de empregos ocorrida com esta mudança nas políticas para o setor naval, dados estes
que, como se verá adiante, configuram-se uma promessa futura a ser usada localmente
como barganha no processo de “chantagem locacional”11. Para Carvalho (2011), se no
Rio de Janeiro as 64 construções em execução em 2012 teriam gerado em torno de 25

264
mil empregos diretos e, em Pernambuco, as 23 finalizadas neste ano 10,5 mil, em Rio
Grande as quinze construções previstas para 2012 totalizariam 5,5 mil empregados dire-
tos ao município. Como veremos, tais dados fortalecem o discurso oficial pró-
desenvolvimento, visto que se tornam verdadeiras “moedas de troca” junto aos municí-
pios (e onde as prefeituras são o principal alvo) para onde se dirigem grandes projetos
de desenvolvimento.
Tal processo se refletiu em locais tidos como mais adequados em termos logísticos.
Se antes a produção se concentrava no Rio de Janeiro, a partir daí Pernambuco, Santa
Catarina, Rio Grande do Sul e Espírito Santo passam a receber recursos, sendo eleito
Rio Grande como “alvo-prioritário” (ver FIG. 10), cujo complexo portuário fica na
margem oeste do Canal do Norte, por onde escoa a bacia hidrográfica da Lagoa dos
Patos e parte da produção do estado. Assim, se na esteira do novo projeto nacional, o
setor naval “explode”, tal fenômeno amplia seu horizonte territorial, deflagrando confli-
tos em áreas eleitas como prioritárias. Tendo como pano de fundo este "boom naval",
passemos à análise de como ele se insere na ótica neodesenvolvimentista em seus distin-
tos níveis e quais suas repercussões locais.

265
FIGURA 10. Município de Rio Grande, estuário da Lagoa dos Patos, complexo portuá-
rio e bairros

Fonte: Imagem produzida a partir do programa Arc Gis 10 - Elaborado por Marcela Mascarello.

MODERNIZAÇÃO DA PRODUÇÃO NAVAL EM RIO GRANDE E SEUS "NÍVEIS


ÉTICO-DISCURSIVOS"

Com base no fenômeno apresentado (dinamização do “setor naval” e suas implica-


ções na região de Rio Grande), um olhar antropológico pode ajudar a entender como a
"utopia-ideologia" do desenvolvimento (RIBEIRO, 1992; 2008) se reconstrói e se veri-
fica na prática para grupos sociais por ela “atingidos”. Para tanto, há vários enfoques
possíveis para pensar a aposta atual na realização de grandes empreendimentos, poden-
do-se partir: da ideia de “ambientalização de conflitos sociais"12 e reprodução de “injus-
tiças ambientais”13; do desenvolvimento como categoria representacional (ESCOBAR,
2007); do “autoritarismo negocial”14 que rege a execução de grandes obras; de uma an-
tropologia dos grandes projetos transnacionais (RIBEIRO, 1992) e sua ligação com a

266
adoção por governos, corporações, ONGs e instituições multilaterais de um novo "para-
digma da adequação"15; da reterritorialização e reafirmação de identidades de resistên-
cia via produção de “novas cartografias sociais”16.
No presente caso delimitamos para efeitos de análise três “níveis de compreensão e
apreensão” tal como proposto por Cardoso de Oliveira (1996). O primeiro, definido
como “macro-ética”, refere-se às grandes justificações sobre a necessidade de moderni-
zar a indústria naval, às políticas nacionais e trans-nacionais de investimento no setor,
suas ramificações e “clusters”, ao papel de grandes corporações e demais formas de
macro-agenciamento público e privado. Aqui se está diante de um discurso que, ao se
legitimar como referência dominante, tende a imprimir, no imaginário coletivo, um lé-
xico auto-referenciado, muitas vezes inviabilizando (por ocultação, desqualificação,
criminalização ou cooptação) a explicitação de discursos que colocam em xeque ou não
seguem a macro-ética estabelecida.
Já o nível da meso-ética refere-se aos espaços sociais em que se articulam (se refor-
çando, amalgamando, confrontando ou mesmo se negando) elementos macro e micro
éticos do fenômeno. Como aqui atuam redes de cooperação técnica ou que fixam algum
tipo de mediação entre setores público, privado e a chamada sociedade civil organizada,
este espaço se configura decisivo no que tange à tradução e legitimação de discursos
voltados para a harmonização assimétrica de interesses antagônicos via, por exemplo,
instrumentos de “gestão” e mecanismos de “resolução de conflitos” (ACSELRAD e
BEZERRA, 2010).
Da mesma forma, seguindo o que Zhouri et al. (2005) chamam de "paradigma da
adequação", entram aqui em ação diversas "entidades-satélite"17 que atuam propondo,
elaborando, planejando e executando políticas que visam adequar os efeitos da moder-
nização naval à realidade local. Gravitando em torno de grandes corporações, agências
governamentais e empresas públicas e privadas, estas "entidades-satélites" atuam de
modo a atender (e por vezes fabricar) demandas requeridas por tais organizações. Ainda
que o vínculo estabelecido seja facultativo e provisório, no caso dos grandes projetos de
desenvolvimento, estas últimas, ao se associarem as primeiras, constituem juntas uma
relação comensalista ao estilo do que na biologia se conhece como interdependência
entre espécies18, visto ser tal pareceria reciprocamente benéfica (e não deletéria) para
ambos.

267
Orientadas a partir de uma ótica pragmática, utilitarista e tecnicista voltada ao que
Acselrad (2010) chama "ecologismo de resultados", profissionais destas organizações
não só prestam serviço, mas ocupam ambientes institucionais e espaços destinados à
participação popular. Como resultado, deslocando potenciais zonas de confronto para o
universo morno e confortável da colaboração, cooperação e parceria, sua atuação se dá
através da: realização de "diagnósticos participativos"; organização de cadastros e ações
de remoção e reassentamento; produção de Estudos de Impacto Ambiental e Relatório
de Impacto Ambiental (EIA/RIMA); elaboração e execução de planos de compensação
e mitigação ambiental; operacionalização de projetos de educação ambiental ou pro-
gramas de responsabilidade socioambiental19; estabelecimento de convênios entre em-
presas privadas ou estatais (como a Petrobrás) e institutos de pesquisa (como a Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (FURGS)).
No caso do fortalecimento da indústria naval, como parte desta meso-ética, além de
instituições de pesquisa/ensino que reiteram o discurso desenvolvimentista e a macro-
política voltada ao setor, também entram em cena ações de órgãos das prefeituras,
ONGs, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sindicatos, coo-
perativas, escritórios locais de órgãos governamentais (como Instituto Nacional de Co-
lonização e Reforma Agrária (INCRA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Secretária de Estado do Meio Ambiente
(SEMA-RS)), ministério público e outros agentes do campo jurídico, certificadoras e
empresas especializadas em prestar serviços, em consultoria ambiental ou realizar proje-
tos, além de outras organizações cuja atuação ocorre junto às populações de algum mo-
do afetadas pelos efeitos das ações executadas em nome da dinamização da produção
naval.
Porém, ainda que muitas vezes tenham pouca articulação com comunidades afeta-
das, na intermediação entre os níveis macro e micro-éticos também circulam entidades,
coletivos e redes sociais com visões críticas a esta atuação funcional e prescritiva, bem
como ao enfoque negocial, disciplinador e consensual. É o caso dos esforços de visibili-
zação e denúncia de injustiças sociais e ambientais feitos através da produção de carto-
grafias nativas, mapas de conflitos, plataformas virtuais de defesa e reparação de direi-
tos ou então por meio da atuação direta de pesquisadores, técnicos e representantes da
defensoria e/ou ministério públicos.

268
Obviamente, são inúmeras as organizações e movimentos da sociedade civil que se
articulam com vistas a atuar junto às comunidades e grupos sociais afetados por grandes
empreendimentos, bem como denunciar arbitrariedades cometidas durante sua realiza-
ção (diversidade que, paradoxalmente, tende a dificultar ações conjuntas e a conforma-
ção de uma agenda comum que se contraponha à ideologia/utopia neodesenvolvimentis-
ta). No que se refere ao caso da produção naval em Rio Grande, tem tido particular re-
percussão as ações empreendidas pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia
(MNLM) e, também, a atuação do Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambien-
tais do Extremo Sul do Brasil. Neste último caso, sua ação se dá mais no sentido de re-
colocar e ressignificar o próprio debate sobre as implicações sociais relativas à moder-
nização do porto de Rio Grande, dando assim maior visibilidade e ampliando a discus-
são para além da crença fiel (repetida como ostinato) acerca das melhorias e benefícios
que tal processo propiciaria. Já no caso da atuação local do MNLM, este tem criticado e
empreendido ações que questionam os critérios adotados na construção, localização e
designação de moradias populares, bem como sobre o modo como as ocupações de á-
reas públicas e/ou privadas tem sido tratadas pelos órgãos competentes.
Por fim, na outra ponta (compondo o que Cardoso de Oliveira chama de micro-
éticas) se encontram narrativas, sociabilidades e práticas articuladas e agenciadas por
grupos sociais específicos (e suas formas organizativas) que vivem nas ou próximo às
“localidades-alvo” desse novo ciclo econômico nacional, sendo afetadas pela constru-
ção/operação de estaleiros, portos, plataformas e tudo que diz respeito à produção naval
(incluindo locais onde circulam navios, cargueiros, petroleiros e outras grandes embar-
cações). Porém, também como parte destas micro-éticas estão comunidades, grupos
étnicos, comunidades tradicionais, operários e demais minorias que, embora vivam lon-
ge de onde se realiza a obra, sofrem seus efeitos.
Portanto, "próximo" e "longe" aqui não diz respeito só a uma distância físico-
espacial, pois um empreendimento como a ampliação de um porto pode desencadear
danos e conflitos a centenas ou mesmo milhares de quilômetros de onde é implementa-
do20. Assim, embora o Super Porto e entorno sejam centrais para a análise, o alcance de
seus efeitos incluem diversos outros "espaços" e "atingidos", não se resumindo, por e-
xemplo: aos bairros vizinhos à obra que passam por processos de gentrificação21 ou cujo
destino (sentenciado e repetido como inexorável) seria seu desaparecimento devido à

269
construção de uma via-expressa ou outro tipo de infraestrutura; ou, ainda, locais próxi-
mos considerados ecologicamente frágeis (mangues, dunas, lagoas, marismas etc.) ocu-
pados por famílias que, sob o argumento de que estarem vivendo de modo "irregular"
em "áreas de preservação permanente", deveriam ser deslocadas para que estas últimas
fossem devidamente "protegidas" da obra e das próprias pessoas.
Além destas situações mais visíveis, também localidades distantes do espaço físico
onde se dará a construção de obras do complexo naval/portuário podem ser potencial-
mente atingidas. É o caso, por exemplo, de comunidades distantes escolhidas para im-
plantação de medidas de compensação ambiental que resultam na criação de uma uni-
dade de conservação integral em cima de suas terras; de pescadores tradicionais que tem
suas áreas de pesca em alto mar ou no estuário da Lagoa dos Patos comprometidas pelo
trânsito constante de navios cargueiros, petroleiros e rebocadores; de um bairro ou vila
que recebe um contingente enorme de migrantes expulsos do lugar onde viviam por
conta das obras de um estaleiro.
A despeito da euforia e do otimismo local por conta da modernização portuária, e-
ventos como estes já são claramente percebidos em Rio Grande. Aqui, o desafio está em
ver como os níveis macro e meso repercutem e reverberam neste universo social marca-
do pela diversidade de micro-éticas resultantes de distintas trajetórias sociais, identida-
des múltiplas e fluidas, diferenças culturais (que, por vezes, chegam a ser cosmológi-
cas), bem como por práticas cotidianas, afetividades e formas de organização e associa-
ção diversificadas. Como era de se esperar, o ambiente de tensão e parte dos conflitos
surgem quando estas lógicas se chocam com sentenças, imperativos e determinações
impostas pela macro-ética dominante e por agenciamentos repressores e adestradores
executados no nível da meso-ética, os quais, por vezes, erguem e impõem fronteiras
simbólicas, linguísticas, técnicas e morais intransponíveis e/ou intraduzíveis para comu-
nidades e grupos sociais afetados pelo empreendimento.
Transpassando os três níveis citados, ganham centralidade as dimensões sociológica,
discursiva e territorial. Sobre a última, como o espaço físico não se acha destituído de
significados, o trabalho de a ele impor sentido irá se dar nas interfaces das macro, micro
e meso-éticas, configurando um campo de disputas em que se chocam distintas territori-
alidades socialmente definidas e delimitados enquanto tais (ACSELRAD, 2004). Po-
rém, territórios se definem sempre de modo difuso no espaço e móvel no tempo, não

270
podendo ser precisamente definidos de uma vez por todas. Portanto, o teor das lutas
pela apropriação de um dado território (como áreas comunais, posse, concessão pública,
propriedade privada ou estatal), por imprimir-lhe significados e por lhe dar um uso prá-
tico - gerando o que autores (ACSELRAD, 2004) têm chamado de conflitos ambientais
– se modificará conforme se alterem as tomadas de posição dos agentes sociais envolvi-
dos. O que significa reconhecer que alianças, antagonismos, indiferenças, ataques, re-
púdios e recuos (inerentes às contradições, ambiguidades e idiossincrasias de grupo so-
cial específico) fazem parte dos episódios envolvendo não só a modernização da produ-
ção naval em Rio Grande, mas qualquer tentativa de realização de grandes empreendi-
mentos.

COMPLEXO NAVAL DE RIO GRANDE: "AUTORITARISMOS TOLERANTES" E


"ALTERNATIVAS INFERNAIS"

Estive aqui quando não tinha nada disso. Era só areia. Agora, ninguém
acredita, mas nós temos, de fato, um dos grandes estaleiros deste Bra-
sil graças a vocês (trabalhadores). E eu agradeço a cada um e a cada
uma aqui presente (...). Tenho certeza que o povo brasileiro, todo ele,
tem muito orgulho do que vocês estão fazendo aqui. Viva este estalei-
ro, a QUIP, os trabalhadores e trabalhadoras deste país. Eles provam
que, quando querem, são capazes de desafiar qualquer obstáculo e fa-
zer o que está sendo feito aqui.22

Exceto talvez pela menção ao termo “QUIP”, o estilo grandioso do trecho acima,
com vivas “ao país” e recheado de menções, apelos e afagos ufanistas ao “povo brasilei-
ro”, ao “Brasil”, ao “orgulho nacional” e aos “trabalhadores deste país”, bem poderiam
ser atribuídas ao ex-presidente Getúlio Vargas (tendo sido retiradas das páginas da Fo-
lha da Tarde e da Revista do Globo) ou mesmo aos generais Emílio Medici e Ernesto
Geisel.
Proferidas em setembro de 2012 pela atual presidenta Dilma Roussef próximo ao
Super Porto (nome de parte do complexo portuário composto por estaleiros e terminais
privados) de Rio Grande durante visita feita ao Estaleiro Rio Grande (ERG1), as frases
acima trazem elementos muito presentes em discursos oficiais proclamados em períodos
ditatoriais23. Entre estes citamos: 1) a recorrente alusão - comum aos discursos populista
e desenvolvimentista – a entidades genéricas e unificadoras (“país”, “Brasil”, “trabalha-

271
dores”, “povo”) as quais remetem à ideia de que estaríamos todos juntos marchando em
uma mesma direção (rumo ao progresso, desenvolvimento e, hoje, sustentabilidade); 2)
o efeito (reforçado pelo "viva este estaleiro") de associar uma dada obra à nação, com o
estaleiro significando pátria e sugerindo, por inferência, que seus críticos estariam indo
contra o interesse nacional; 3) o caráter carismático presente em momentos inaugurais
performáticos, como na referência de “que o povo brasileiro [ente demiurgo], todo ele,
tem muito orgulho” de “vocês” trabalhadores; 4) o reforço indireto à imagem da pessoa
que está no comando, "chefe da nação" que guia e fala com autoridade em nome dos
brasileiros, presente quando a presidenta se dirige aos ouvintes na primeira pessoa di-
zendo: “eu agradeço a cada um e a cada uma aqui presente”24; na mesma linha, 5) o
artifício de igualar os diferentes (no caso, quem manda, quem obedece e quem lucra
com a construção do estaleiro, os quais estão “todos de parabéns”) ao se referir aos pre-
sentes como se fossem eles próprios donos do que ajudaram a construir; quando, de
fato, a imensa maioria deles eram operários braçais destituídos de poder ou possibilida-
de de interferir nos processos decisórios inerentes ao dia-dia de um estaleiro25.
A despeito da semelhança discursiva, é preciso considerar duas diferenças importan-
tes entre o período atual e o vivido nas décadas de 1930/40 e 1970/80. Primeiro que a
progressiva internacionalização financeira e o contexto histórico pós-Consenso de Wa-
shington26 (PEREIRA, 2010) deixaram como marca um país com a economia muito
mais interligada e dependente dos mercados globais, suas turbulências, crises e flutua-
ções sazonais. Segundo: a despeito dos mecanismos autoritários ainda presentes na le-
gislação brasileira, dos retrocessos e barramento de direitos conquistados após constitu-
ição de 1988 (GERHARDT et. al., 2012) e das arbitrariedades e truculências “participa-
tivas” levadas a cabo pelo poder executivo nos últimos anos, os períodos anteriores con-
figuravam um ambiente em que atos de violência (física, material, simbólica, psicológi-
ca) eram muitas vezes cometidos de modo direto, explícito e, até mesmo, declarado. Em
suma, o que chamamos repressão constituía então uma política de Estado executada (e,
por vezes, publicamente enaltecida e festejada) abertamente.
Mas ainda assim é possível ver entre estes três períodos um projeto de nação colo-
cado em jogo sobre a égide da industrialização (ainda que centrada na primarização da
economia via exportação de commodities), da ordem/harmonia social, da centralidade
do trabalho, do crescimento econômico como objetivo central e do desenvolvimento (no

272
caso de Vargas, progresso) como utopia-ideologia dominante (RIBEIRO, 1992). Ade-
mais, ao pensar não na forma de realizá-los, mas na sua efetividade e resultados para
populações atingidas, grandes investimentos em infraestrutura de hoje estão muito pró-
ximos aos de ontem. Apesar dos rituais legais, dos percalços burocráticos a serem ven-
cidos e do modo como o Estado pensa, trata e gerencia grupos locais ter se alterado (ge-
rando uma áurea “democrática”, “participativa”, “justa” e "tolerante" que blinda e pro-
tege o processo de críticas), fato é que está fora de questão (como no passado) sua não
realização. Como tal objetivo (idealizado como no tempo dos generais a portas fechadas
entre alguns técnicos, políticos, burocratas e representantes do setor empresarial) é tido
como indiscutível, as possibilidades oferecidas aos que a ele se contrapõem acabam por
configurar o que Stangers e Pignarre (apud MELLO, 2009, p.28) chamam de “alternati-
vas infernais (...), conjunto de situações que não parecem deixar nenhuma escolha a não
ser a resignação ou uma denúncia que soa um pouco vazia, marcada de impotência, por-
que não oferece nenhuma possibilidade de tomada de ação”.
Em Rio Grande, o caráter infernal revela-se no fato de que toda obra tem como justi-
ficativa o Polo Naval e o desenvolvimento que, em tese, com ele viria. O pretexto de ser
imprescindível (para o bem comum) garantir competitividade ao complexo portuário
deixa poucas opções às pessoas que deverão suportar mudanças drásticas em suas vidas
por conta do caráter obrigatório que assume as obras. Exemplo disto pôde ser visto na
recente “invasão” (considerada "ilegal" por empresas, agências ambientais e órgãos da
prefeitura) de terrenos em um local conhecido como Vila da Mangueira. Esta, localizada
próxima às instalações da QUIP, ERG 1 e ERG2 (que veem a área como estratégica
para suas operações, tendo inclusive enterrado após a chegada dos novos moradores um
ducto que atravessa as atuais habitações), configura-se um local ecologicamente frágil e
que abriga áreas de preservação.
Sobre tais ocupações, pesquisa do Observatório de Conflitos Ambientais do Extre-
mo Sul (SANTOS e MACHADO, 2013) junto à mídia local mostra a clara falta de al-
ternativa de moradia para um grande contingente de pessoas (que já moravam ou chega-
ram a pouco tempo na cidade) causada pelo aumento da especulação imobiliária nas
áreas urbanas e consequente disparada no valor dos aluguéis, alimentação, transporte e
lazer. Algumas falas recolhidos nesta pesquisa mostram a dramaticidade das alternativas
impostas aos ditos invasores:

273
– estamos precisando! Não temos casa própria e nem condições de pagar mais o alu-
guel, que subiu mais de 200% em um ano;
– estávamos desesperados porque não temos onde morar;
– o pessoal vem trabalhar e traz a família, o que é normal. Pouco tempo depois não tem
como permanecer no aluguel e não há como adquirir algo próprio. Os valores se torna-
ram absurdos. É uma verdadeira exploração. Só nos resta conseguir um lote e construir
uma casa própria.
Como se vê, fica clara a falta de opção que não a infernal ocupação de áreas públi-
cas e/ou ecologicamente frágeis como Vila da Mangueira para certos grupos sociais
causada pelo aumento especulativo pós-implantação do Polo Naval. Reforçando este
caráter perverso das opções deixadas aos que sofrem com sua modernização, segue-se a
de criminalização destes últimos, o que fica evidente no fato dessas falas terem sido
retiradas de matéria inserida na Página Policial do Jornal Agora (2013). Paradoxalmen-
te, neste dia (março de 2013) acontecia na FURG a “II Feira do Polo Naval: um mar de
oportunidades”, cujo viés auto-enaltecedor voltado ao mundo dos negócios foi farta e
positivamente repercutido na mídia local.
A despeito do trabalho de, por um lado, enaltecer defensores do Polo Naval e, por
outro, criminalizar minorias por ele atingidas, eventos potencialmente conflituosos co-
mo o ocorrido na Vila da Mangueira são cada vez mais comuns na cidade, a exemplo da
remoção da Vila das Barraquinhas (ver FIG. 1), comunidade com 250 anos de história e
que tinha como principal atividade a pesca artesanal; ou, então, das constantes ameaças
de remoção (provável no futuro próximo, tendo em vista o peso do caráter indiscutível
das alternativas) de moradores de bairros populares vizinhos ao Super Porto como Getú-
lio Vargas (BGV), Barra e Santa Tereza (SANTOS e MACHADO, 2013). Isso sem fa-
lar na pressão sobre pessoas que hoje vivem na Vila da Mangueira, cuja maior parte
veio justamente da Vila das Barraquinhas, mas para onde continuam acorrendo famílias
expulsas pela expansão da estrutura portuária ou mesmo migrantes que chegam atrás do
“mar de oportunidades” vendido pela mídia local e regional. Ademais, considerando
que tais áreas "escolhidas" por estes ocupantes são também alvos prioritários para a
expansão do Super Porto, provavelmente em pouco tempo haverá, dentro do município
de Rio Grande, famílias deslocadas mais de uma vez em virtude da sua ampliação.

274
Apesar do argumento de que as remoções seriam feitas para o próprio “bem-estar”
dos moradores, remetendo a uma imaginária “melhor condição de vida” (promessa ven-
dida como estratégia de convencimento de lideranças locais), fato é que estas famílias
tiveram de se adaptar a toda uma outra realidade nada confortável. Além da destruição
de laços familiares e de vizinhança e de colocar em risco atividades que tradicionalmen-
te exerciam, o imperativo do desenvolvimento (traduzido na indiscutível modernização
do complexo portuário/naval) levou a modificação de modos de vida até então baseados
na pesca artesanal e na relação íntima com mar e com as lagoas (sem falar que, do dia
para a noite, simplesmente se apaga parte do imaginário da cidade, como no caso da
remoção de uma vila com 250 anos de vida).
Evento recente que ilustra a amplitude do caráter obrigatório e infernal das alternati-
vas oficiais à realização de grandes obras deu-se no pronunciamento do autor do substi-
tutivo ao projeto de lei que atualmente tramita no congresso nacional e que visa regula-
mentar (no caso, seria mais apropriado dizer desregulamentar) a mineração em terras
indígenas. Disse então o deputado Édio Lopes (Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB/RR)) sobre protestos e críticas ao PL nº 1.610 de 1996 feitas por li-
deranças indígenas e organizações que defendem seus direitos: “a mineração em terras
indígenas vai acontecer com ou sem consentimento, então, é melhor que eles negoci-
em”27.
Ao contrário da década 1970, agora negociar é oficialmente permitido e até mesmo
incentivado, porém, desde que esta prática não comprometa o objetivo final (flexibilizar
trâmites legais e acelerar ritos burocráticos que assegurem a mineração em terras indí-
genas). A instituição de um “padrão negocial”28 - o estilo do discurso neoliberal dos
anos 1990, que preconizava a “livre” negociação feita no mercado por agentes econô-
micos independentes - entre grupos e interesses políticos cujos capitais simbólicos,
meios materiais, recursos econômicos e posições sociais se acham por demais assime-
tricamente distribuídos, institui um tácito (não percebido) Estado de Exceção (portanto,
fora do Estado de Direito) que passa a ser socialmente aceito. No caso do PL nº 1.610
de 1996, se aprovado pelo Congresso Nacional, literalmente o que seria uma "exceção"
(minerar em terras indígenas), além de virar regra aceita e não discutida, deixa de fora
justamente o debate sobre o fundamento constitucional que a lei contraria, a saber: a
autonomia dos povos indígenas sobre seus territórios. Afinal, a mineração (vista como

275
riqueza nacional "desperdiçada" em baixo da terra) passará a ser feita "dentro da lei",
ainda que esta tenha sido imposta de cima para baixo aos povos indígenas.
Ocorre que este tipo de procedimento se verifica também em Rio Grande quando da
proibição da pesca de arrasto feita historicamente no canal de navegação do porto e no
estuário da Laguna dos Patos por pescadores artesanais. Alegando garantir maior "segu-
rança de navegação" (imperativo da vez) e "proteção ambiental" (acionada como justifi-
cativa legal), esta prática (sobretudo no caso do arrasto de camarão) é vista por autori-
dades portuárias e ambientais, ao mesmo tempo, como "problema ambiental”, "proble-
ma logístico" para o funcionamento do porto e atividade "perigosa" para os próprios
pescadores.
Ora, aqui surge uma dupla inversão de posição que geralmente passa despercebida.
Como notou Viveiros de Castro (1988) já no final dos anos 1980 para o caso da natura-
lização de povos indígenas em conflito com a Eletronorte por conta da construção das
hidrelétricas de Tucuruí e Balbina, também grupos sociais que vivem da pesca no canal
e estuário da Laguna dos Patos são definidos como "parte componente deste ambiente".
Neste caso, são os pescadores que aparecem (para órgãos e organizações ambientalistas,
órgãos da prefeitura, mídia, administração do porto e empresas) impactando tanto o e-
cossistema lagunar como o trânsito de navios e grandes embarcações; e não o contrário.
Só a partir desta inversão de ponto de vista é que se pode compreender como, parafrase-
ando uma frase do próprio Viveiros de Castro, pescadores "ocorrem" com frequência no
estuário da Laguna dos Patos quando, de fato, são navios, petroleiros, portos, estaleiros,
pesquisadores, ambientalistas e técnicos que "ocorrem" nas áreas por eles tradicional-
mente ocupadas, navegadas e exploradas.
Mas há ainda outra inversão. Como nos anos 1950 agências multilaterais impuseram
a condição de subdesenvolvido à maioria dos países do mundo e de pobres a grupos
sociais culturalmente diferenciados para, feito este trabalho de desqualificação, levar-
lhes a salvação via projetos de desenvolvimento e alívio à pobreza (PEREIRA, 2010),
agora se atribui aos pescadores tradicionais a condição de vítimas de suas próprias prá-
ticas. Feito isso, como no caso da acusação de que subdesenvolvidos e pobres seriam
incompetentes, pois não saberiam gerir seus recursos de modo adequado, tendo de ser
devidamente "capacitados", inverte-se outra vez a ordem das coisas culpabilizando os
próprios pescadores29.

276
Mais do que isso, tal retórica termina por ocultar justamente aqueles (administrado-
res, defensores e investidores do complexo portuário/naval) e aquilo (grandes embarca-
ções que cruzam o estuário) que são, de fato, os agentes produtores do perigo tanto para
o ambiente lagunar como para pessoas que nele circulam e retiram seus meios de vida.
Porém, como há o imperativo do desenvolvimento da região, tais problemas não são
vistos como problema, mas como solução, pois seria justamente o crescimento econô-
mico da região que viria a garantir recursos para se "proteger" não só o canal, mas a
própria Laguna dos Patos.
Seguindo padrão negocial "tolerante" e "justo", não se buscou simplesmente proibir
a pesca através de determinação unilateral do executivo ou responsáveis pela adminis-
tração do porto (como ocorreria nos anos 1970), ou seja, não se impediu de uma vez por
todas que ela fosse feita a partir do sistema repressor de um Estado autoritário. Porém,
ocorreu de fato. Só que agora através da "regulamentação" da pesca local (ou melhor, da
não-pesca), dando ao processo a devida legalidade jurídica e legitimidade institucional.
Como no caso da "criação de demanda" por empresas para seus produtos, após criar
demandas sociais aparentemente "justas" (proteger o ecossistema lagunar, os próprios
pescadores e garantir a trafegabilidade às embarcações), fixam-se normas de segurança
de navegação e, junto a elas, fazem-se cumprir normas ambientais. Mas, como efeito
nada justo, tais normas inviabilizaram, ao final, uma prática que é muito mais do que
uma profissão (pescador) que garante meios de vida a quem exerce, pois sem ela põe-se
em risco um universo cultural e simbólico, saberes singulares e modos próprios de se
relacionar com o mundo (ADOMILLI, 2012).
Em suma, sob a áurea da proteção ambiental e de um aparente humanismo por trás
do cuidado com os pescadores, mas, sobretudo, sob o imperativo da operacionalidade
das atividades portuárias, estabelece-se um consenso imposto que, conforme Vainer
(2007, p.4):

Atribui a todos os sujeitos sociais, individuais ou coletivos, o reconhe-


cimento da legitimidade da negociação e, o que é essencial, o reco-
nhecimento de que na cidade, tal como no mercado, todos os agentes
são pressupostos igualmente livres, isto é, igualmente livres para to-
marem decisões. Ora, eis uma igualdade que é uma ficção social, ou
melhor, uma ficção engendrada no e pelo mercado.30

277
Embora hoje haja espaços institucionais e meios jurídicos para que grupos como os
pescadores artesanais de Rio Grande "participem livremente" das decisões tomadas so-
bre quais e como certas atividades deveriam ser exercidas num território peculiar como
o estuário da Lagoa dos Patos, no final elas acabam estabelecidas segundo um viés tec-
nocrático e sem a real interferência (devidamente informada, de caráter deliberativo e
propositivo) dos mais interessados na questão, ou seja, os próprios pescadores. Em
questão aqui está a supremacia de uma razão utilitária (ligada à proteção ambiental, ope-
racionalidade portuária e segurança dos pescadores) que se sobrepõe a outras razões
cuja matriz, geralmente, tem forte conteúdo cultural (portanto, não automaticamente
traduzível segundo padrões tidos como universais).
Como diria Acselrad (2010, p. 108), para esta "razão utilitária hegemônica", o ambi-
ente lagunar por onde circulam navios e grandes embarcações em Rio Grande é visto
como "uno e composto estritamente de recursos materiais, sem conteúdos socioculturais
específicos e diferenciados; é expresso em quantidades; justifica interrogações sobre os
meios e não sobre os fins para os quais a sociedade se apropria dos recursos do planeta".

DESENVOLVIMENTOS, REDES, PODER, TECNOLOGIA E CONHECIMENTO


ESPECIALIZADO

Relações de poder em torno da ideologia-utopia do desenvolvimento - legitimadas


no monopólio do discurso científico e uso de tecnologias - perpassam intervenções ins-
titucionais decorrentes dessa trama. Para Ribeiro (2008, p. 113), em torno do que chama
Projetos de Grandes Escalas juntam-se grandes "quantidades de capital financeiro e in-
dustrial, assim como de elites, técnicos estatais e trabalhadores, fundindo níveis de inte-
gração local, regional, nacional, internacional e transnacional". Veja-se a atuação local
da Petrobrás. Ao operar como estatal cujas diretrizes dependem do contexto político e
forças que gravitam em torno do governo federal e, também, como transnacional com
pretensões mercadológicas orientadas à valorização de ativos, maximização do lucro e
satisfação de acionistas, a Petrobrás articula redes em níveis distintos. Sua atuação recai
tanto sobre o futuro profissional de gerentes que vêm à cidade morar em hotéis, condo-
mínios e casas de luxo, sobre o destino de peões vindos de Pernambuco, Espírito Santo,
Bahia e Santa Catarina que compartilham casas de quatro quartos entre quinze ou mais

278
pessoas, até a vida do morador desempregado da Vila da Barra que busca renovar sua
habilitação e tentar trabalho como motorista na frota de 42 carros alugada para a Eco-
vix31 pela Noiva do Mar (empresa de ônibus) para deslocar operários.
Ocorre que redes de poder geradas na relação assimétrica entre distintas organiza-
ções, grupos sociais e espaços (hotéis, condomínios, empresa de ônibus, Petrobrás, E-
covix, peões, gerentes, moradores nativos etc.) têm sua força na fluidez e no modo co-
mo se dá aparente distribuição desordenada desta heterogeneidade social e no fato de
que conexões entre agentes são incompletas, provisórias e intercambiáveis. O contínuo
trabalho coletivo de incutir como destino inexorável a necessidade de trazer desenvol-
vimento (cuja fonte vem da macro-ética dominante, mas se espalha de inúmeras formas)
é auto-reforçado pela diversidade de agentes locais interagindo e circulando por ambi-
entes diversos e cujas posições sociais se alternam e se alteram conforme contextos es-
pecíficos. Resultado. Eventuais críticos estarão, aos olhos da sociedade local, lutando
"contra o desenvolvimento" da cidade. Daí sobrevirem qualificações atribuídas a grupos
tornados "entraves", "obstáculos", "estorvos" a serem "vencidos", "ultrapassados", "su-
plantados” (rotulação por vezes feita a integrantes do Observatório de Conflitos e do
MNLM, acusados de querer “voltar a quando não tinha empregos”).
De todo modo, a ideia-força de que modernizar e ampliar o complexo portuá-
rio/naval seria algo intrinsecamente positivo passa a ser tacitamente aceita e replicada
no senso comum, gerando o que Bourdieu (2001, p. 118) define como um "fundo de
evidências partilhadas por todos que garante, nos limites de um universo social, um
consenso primordial". O que não significa, porém, que não haja divergências e concor-
rência entre distintas competências, visto que, como lembra novamente o mesmo autor
(BOURDIEU, 2001, p. 119), estabelecido "os lugares comuns, tacitamente aceitos, tor-
na-se possível o confronto, a concorrência e até mesmo o conflito".
No presente caso isso ocorre porque, como lembra Ribeiro (1992, p. 2), "a abran-
gência e as múltiplas faces de desenvolvimento (...) permitem um enorme número de
apropriações e leituras muitas vezes divergentes", o que faz com que o aparente dissen-
so não se dê mais em relação ao fundamento ou à legitimidade das obras (discussão
colocada fora de questão), mas sobre o modo como deveriam ser implantados os meca-
nismos de modernização portuária. Deste modo, eventuais disputas entre diferentes a-
gentes (administração do porto, prefeitura municipal, Engevix/Ecovix ou o Centro de

279
Estudos Ambientais32) não são mais de fundo, mas apenas cosméticas, sendo os desa-
cordos interligados por um acordo maior e mais amplo: a certeza da positividade das
obras de ampliação do complexo portuário/naval de Rio Grande.
Aqui se está aqui diante de um mecanismo de controle segundo o qual, “através da
reorganização permanente do modo de funcionamento do sistema [se] neutralizam os
poderes dos que têm outras lógicas por referência” (ACSELRAD e BEZERRA, 2012, p.
180). Repare-se que “reorganizar” significa, em última instância, embaralhar novamente
e dispor as mesmas cartas de modo distinto, tendo como efeito confundir os que contes-
tavam não a forma de disposição no baralho, mas seu conteúdo, valor e, sobretudo, sua
própria existência. Além disso, o fato de haver divergências e destas serem discutidas e
negociadas nas instâncias decisórias disponíveis confere ao processo um ar democráti-
co, como se tudo fosse possível, menos, é claro, frear ou cancelar obras que levem à
modernização do complexo portuário.
Retomando o caráter infernal da retórica participativa negocial, embora não vivamos
numa ditadura estricto sensu, é justamente a “propensão a aceitação [que] substitui a
política da submissão” (ACSELRAD e BEZERRA, 2010, p. 180) que leva empresários,
técnicos, jornalistas e políticos (como o deputado anteriormente citado) a ter a certeza
de que dada obra, flexibilização de direitos e ritos burocráticos ou desregulamentação
da norma legal “vai acontecer com ou sem consentimento” dos interessados na sua não
efetivação. Ainda que se ponha em prática outros mecanismos (distintos da repressão
declarada dos anos 1970) de disciplinamento e neutralização dos que sofrem e se opõe
aos projetos de desenvolvimento (cuja violência acha-se disfarçada na ideia de que há
opções e espaço de negociação), seus efeitos autoritários continuam parecidos com os
de um passado não muito distante. A diferença é que, se antes uma hidrelétrica, estrada
ou estaleiro simplesmente "caia em cima da cabeça" e da vida das pessoas, agora elas
podem escolher a forma com que tais obras cairão.
É o caso das opções dadas por governos e empresas às populações deslocadas por
conta de empreendimentos aparentemente tão distintos como a construção de rodovias,
ferrovias, termoelétricas, linhas de transmissão de energia, lixões, oleodutos, gasodutos,
jazidas, minas, siderúrgicas, fábricas de pesticidas, parques e reservas biológicas, obras
para olimpíadas e copa do mundo, fazendas de camarão ou agrocombustíveis, "revitali-
zação" de vilas e bairros populares, pacificação de favelas e, obviamente, construção e

280
ampliação de portos e estaleiros. Sem falar na desqualificação de demandas, direitos e
discursos (outra tática recorrente nos períodos ditatoriais) dos "atingidos" por grandes
projetos feitos em nome do desenvolvimento de inúmeras formas que não a deslocaliza-
ção ou cujo procedimento não implique expulsão imediata de suas terras, casas, bairros,
enfim, do lugar onde vivem33.
De fato, além da deslocalização compulsória, para muitos a vinda de grandes obras
significa, entre inúmeros efeitos oficialmente não reconhecidos e, por vezes, proposi-
talmente ocultados: ficar desempregado; fechar seu pequeno comércio por falta de cli-
entela; ter a estrutura de sua casa comprometida por conta da ação de despejo de vizi-
nhos ou execução de obras de saneamento, asfaltamento etc. ou então ter de conviver
diariamente com escombros (como ocorre hoje em favelas cariocas por conta das obras
da copa do mundo); ver se desagregar e desfazer laços familiares e afetivos devido a
desavenças entre parentes, amigos e vizinhos cuja origem tem relação com a vinda do
empreendimento e sua atuação via táticas de aliciamento (sobretudo, dos mais jovens) e
cooptação de lideranças; ter a estrutura já precária de serviços básicos locais (educação,
transporte, saneamento, lazer habitação, segurança, saúde) ainda mais comprometida
pela chegada de enormes contingentes de operários que vem trabalhar no empreendi-
mento; conviver com o aumento dos assassinatos, assaltos, tráfico de drogas, prostitui-
ção infantil e/ou trabalho escravo, recorrente nestes casos; ver morrer peixes de rios
onde brincaram quando crianças, trabalharam quando adultos e sobre os quais muitos
nasceram, casaram e morreram (sem contar o assoreamento que inviabiliza seu principal
meio de locomoção); na mesma linha, perder o acesso à água, terra, floresta, bairro,
vizinhança ou outro bem comum que garantia a reprodução de seu modo de vida; ver
destruir-se espaços de sociabilidade como locais sagrados de devoção (cemitérios, casas
cerimoniais, terreiros), espaços comunitários onde ocorriam reuniões festivas, campos
de futebol ou clubes de bocha onde a comunidade se reunia no final de semana, e, no
caso de crianças e adolescentes, o ambiente escolar por onde circulavam; sem falar no
sofrimento causado por poluição sonora, contaminação por resíduos tóxicos e posterior
desenvolvimento de doenças degenerativas, complicações pulmonares devido à produ-
ção de fuligem, gases e "acidentes" causados por explosões em pedreiras abertas para
construção de rodovias etc. e etc.

281
Mas situações como estas não se limitam às interações claramente verticalizadas
(como na relação entre empresa e operários, entre prefeitura e moradores de bairros po-
pulares ou entre uma mineradora e ribeirinhos). Logo quando da chegada de grandes
obras como as de Rio Grande, uma diferenciação social potencialmente conflituosa se
torna evidente e até muito comentada localmente: a divisão entre nativos que já viviam
na região e outsiders vindos de outros lugares. Neste caso, conflitos cruzam clássicas
diferenças de classe social. Ao terem de interagir em um mesmo ambiente (por demanda
da Petrobrás, Ecovix, QUIP, ERG 1 e 2 etc.), a alteridade já existente, por exemplo,
entre um peão pernambucano e outro que vive a anos em um bairro popular de Rio
Grande pode levar ao acirramento entre ambos cujo desfecho pode ser fisicamente trá-
gico. Afinal, operários vindos de lugares totalmente distintos cujas trajetórias e experi-
ências de vida demarcam diferenças culturais, identitárias, regionais e religiosas, ainda
que pertençam a uma mesma classe social - compondo o que Marx chamaria de proletá-
rios a serviço da reprodução ampliada do capital, estarão sujeitos à estigmatizações,
recriminações, censuras e mesmo ataques diretos não-verbais.
Assim, com a generalização, entre a população local, de um sentimento de antipatia
e repulsa aos “de fora” (aos quais são creditados problemas causados pela ampliação do
porto), intensificaram-se relatos acerca da ocorrência de brigas entre operários nativos e
outsiders. Mas, se aquele mesmo pernambucano sofre as vicissitudes de estar entre rio-
grandinos que o veem como invasor de seu território ou então como aquele que lhes
"rouba" seus empregos, censuras e desaprovações semelhantes (veladas ou diretas) po-
derão ocorrer quando um operário local, agora em minoria, estiver trabalhando no esta-
leiro junto com uma turma de operários cuja maioria vem de estados da região nordeste,
por exemplo.
Mesmo efeito disruptivo se dá com a difusão do ideal desenvolvimentista que, pro-
pagado a partir do nível macro-ético, reverbera nos demais níveis de modo difuso. De-
pendendo de como será e das condições para que ocorra sua apropriação, aceitação,
recriação ou negação (total, parcial ou condicionada) por diferentes agentes (colocados
em posições distintas ou não), gera-se um diferencial de poder até em espaços de intera-
ção mais horizontais. De todo modo, a amplitude das assimetrias e seus desdobramentos
(esperados e inesperados) dependerá dos inúmeros micro-contextos (não necessariamen-

282
te conflituosos34) de interação gerados com a chegada de novos personagens ligados ao
empreendimento.
Mas como se criam e qual a base de ligação entre redes de poder que vinculam os
três níveis ético-discursivos aqui discutidos? Sobretudo através do trânsito do que Ri-
beiro (2008) chama "agentes intermediários" que conectam - retraduzindo, readaptando,
amalgamando e ocultando - fragmentos de ambos os níveis a partir de suas experiências
(passadas e presentes) concretas. Aqui, ocorrem dois movimentos concêntricos. De um
lado, chega à cidade de um batalhão de engenheiros (navais, mecânicos, civis, elétricos,
eletrônicos, da produção), analistas e educadores ambientais, arquitetos, geólogos, geó-
grafos, analistas econômicos, oceanógrafos, advogados, publicitários, projetistas, espe-
cialistas em gestão, "análise de risco", "segurança de máquinas" e "segurança do traba-
lho", sociólogos, biólogos, formados em serviço social, administração, relações públi-
cas, psicologia (muitos atuando como "gerente de pessoas", desenvolvendo “competên-
cias comportamentais", mediando "resolução de conflitos") e demais peritos de diversas
áreas. Mas a estes se soma um contingente de especialistas (muitos atuando na FURG e
Universidade Federal de Pelotas (UFPel)) que, de algum modo, acabam se vinculando
aos inúmeros projetos e demandas que surgem com a modernização da produção naval
local.
Como se vê, não é desprezível o número de "intermediários" que passam a atuar
entre esferas mais amplas de produção, reprodução e legitimação do discurso desenvol-
vimentista e as instâncias micro-sociais por onde circulam trabalhadores em geral, pes-
cadores tradicionais e demais moradores de bairros, vilas e núcleos habitacionais popu-
lares que, a despeito de estarem envolvidos com as obras de dinamização naval, não tem
acesso aos mesmos espaços de intermediação. Para estes entra em cena o discurso da
necessidade de "qualificação da mão de obra" local (que, por inferência, seria desquali-
ficada), criando-se com isso uma distinção entre atividades profissionais de nível mais
"elevado", "complexo" ou que exige maior "responsabilidade" e outros ofícios mais
"simples" vistos como de "segunda classe".
Este público não especializado poderá, no máximo, acessar cursos profissionalizan-
tes (via Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), Serviço Social da
Indústria (SESI), sindicatos, FURG, ONGs ou empresas, terceirizadas e entidades-
satélite) para pintores, marceneiros, pedreiros, mestres de obra, mecânicos, carpinteiros,

283
soldadores, eletricistas, montadores de andaimes, secretárias, operários a cargo de ope-
rações automotivas e uma infinidade de atividades ligadas ao dia a dia de um complexo
portuário. Não por acaso o baixo número de pessoas com formação de segunda classe
entre moradores nativos serve para contrapor críticas de que se estaria desprivilegiando
estes últimos ao incentivar a vinda de trabalhadores “de fora”. Eis aí uma vez mais um
ponto de divergência que, a despeito de sua pertinência, tende a retirar o foco de ques-
tões mais profundas ligadas justamente à opção política que levou a esta disputa local
por empregos nas obras de modernização portuária.
Por outro lado, como o acesso ao saber técnico competente, aos canais que repercu-
tem informações (incluindo boatos, rumores e fofocas) e aos recursos materiais e eco-
nômicos não é o mesmo para todos, certos integrantes desta "segunda classe" sairão
fortalecidos. Através da mediação efetuada na intersecção dos níveis macro, micro e
meso-éticos por organizações diversas (prefeituras, sindicatos, ONGs, entidades-satélite
que atuam junto às comunidades), certas lideranças acendem a uma condição tal que
passam a atuar como ativos "agentes do desenvolvimento" local, adaptando e repercu-
tindo, ao seu modo, fragmentos do discurso hegemônico. Disto cria-se uma rede parale-
la composta de intermediários dos intermediários.
Tais distinções, marcadas pela heterogeneidade dos espaços de sociabilidade, geram
elos de interdependência entre os que por eles transitam; elos reafirmados com o acio-
namento de um sentido de realidade (ainda desigual) compartilhada inerente a uma
grande obra. Afinal, como ilustra o discurso presidencial, a ideia por trás de um projeto
(que se destinaria a "toda população") feito em nome do desenvolvimento, circunscrito
ao nível local, implica incutir o sentimento de que, como trabalhadores (de primeira ou
segunda classe, de fora ou nativo) que dele participam "fazendo a sua parte", estes estão
"todos juntos" sendo "beneficiados".

SUPER PORTO, CHANTAGEM LOCACIONAL E INSUSTENTABILIDADE DO


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Vimos que políticas de dinamização da indústria naval e, em particular, do comple-


xo portuário de Rio Grande fazem parte de um projeto de desenvolvimento levado a
cabo no plano nacional e cuja finalidade está muito clara do ponto de vista das opções

284
adotadas e ações executadas. Segundo Ribeiro (1992), trata-se de um discurso proposi-
tivo marcado por ideias definidas histórica, técnica e culturalmente, sendo possível pen-
sar as políticas ligadas ao setor naval também como perfazendo parte de uma “ideologi-
a-utopia organizativa” mais ampla que faz com que o que seria inaceitável não apareça
como tal ao mesmo tempo em que promete a quem a segue um futuro nunca alcançado
de prosperidade e felicidade.
Sob tal enfoque, a grandiosidade da noção de desenvolvimento remete a um conjun-
to de representações abrangentes e particulares, supra-conceituais e pobres de significa-
do. Tal ambiguidade, comenta Ribeiro (1992, p.2), vem de que a promessa do desen-
volvimento local subentende a fixação de um “universo ideacional de uma plasticidade
tamanha que até faz crer se estar diante de uma caixa-preta ou de noção vazia". Na
mesma linha, Escobar (2007), ao definir esta noção como resultante/criador (espécie de
efeito/causa que se realimenta) de um domínio de pensamento/ação em estado de refor-
mulação e readequação, argumenta ser justamente essa plasticidade o que faz com que o
discurso da busca por desenvolvimento continue vivo e se imponha como necessário.
Com isto, esta “caixa-preta” flexível, moldável e adaptável fixa localmente “regimes de
verdade” (ESCOBAR, 2007) que se revelam como imperativos axiomáticos articulados
dentro de um movimento-ambiente crescente de profissionalização técnica (vide o nú-
mero de profissionais citados parágrafos atrás).
Em jogo estão distintas apropriações e o trabalho de atribuir sentido a esta ideologi-
a-utopia, embate que se dá a partir de pressupostos e objetivos concorrentes dentro de
um amplo e difuso campo de poder político e econômico. No âmbito da macro-ética, a
disputa se dá entre atores coletivos ocupando posições assimetricamente distribuídas
que buscam legitimar com verdadeiros modos de pensar e agir no mundo (seja o planeta
ou uma região como Rio Grande). Assim, com a consolidação, a partir de meados da
década de 2000, de um projeto de país de caráter pragmático, fins básicos do desenvol-
vimento (qualidade de vida, diminuição de desigualdades, democratização de instâncias
decisórias, acesso não só a crédito, mas a direitos básicos como educação, lazer, saúde e
transporte públicos, além de um meio ambiente de qualidade) perderam centralidade em
favor dos meios adotados para atingir tais fins (entre outros, crescimento do PIB, au-
mento da exportação de commodities, investimento no setor energético e infra-estrutura,
incluindo aí, é claro, a modernização do setor naval).

285
Já quando se confrontam meso e micro-éticas, como o sentido de desenvolvimento
subentende uma esperança de algo que trará “benefícios”, entra em cena a luta por de-
terminar, localmente, como eles seriam alcançados e repartidos. Já eventuais prejuízos
("custo de oportunidade" a ser renunciado em nome do bem comum) serão sempre des-
qualificados como de menor relevância, podendo ser reparados, compensados, mitiga-
dos (ZHOURI et. al., 2005). Ocorre que, anunciados em Rio Grande (como diz Flávia
Cera, "como programa de igualdade 'para todos'"), o esforço de modernização do polo
naval passa por cima de inúmeras diferenças socioculturais que não cabem na busca
idílica por um imaginário e universal bem comum. Ato contínuo deixa-se de se pergun-
tar, o que seria este suposto "bem comum"? Quem são, de fato, os "comuns"? Onde
ficam, que lugar ocupam e qual a repercussão para os "não-comuns" que passam à mar-
gem da normalidade e ao largo da regra geral?
Tomando-se enfoque de Wolf (apud RIBEIRO, 1992) sobre grandes projetos de
desenvolvimento, a ampliação do porto de Rio Grande acompanha o que chama de
“moderno sistema mundial”. Sua efetivação (ou não, pois a imposição da inexorabilida-
de de um grande empreendimento é uma das táticas usadas para sua efetivação) não
deriva de tradições ou desejos específicos das "localidades-alvo" destes projetos, mas
respondem a demandas nacionais e internacionais geradas dentro do campo da macro-
ética. Sua localização em dada área parte de uma seleção baseada em critérios eleitos
dentro de uma estratégia anterior elaborada não só fora do contexto local, mas sem que
potenciais "atingidos" possam ter ciência ou interferir nas discussões tomadas sobre seu
próprio futuro. Como o tempo do projeto inicia muito antes deste começar para a popu-
lação, só bem mais à frente é que esta irão “participar” do (e reagir ao) processo inicia-
do, por vezes, vários anos antes.
Foi o que ocorreu em Rio Grande. Vencida a tese do governo petista de nacionalizar
a produção naval em 2002, inicia-se desde aí a elaboração de ações para atingir tal fim.
Aos poucos deu-se localmente o que ocorre desde a invenção dos subdesenvolvidos
(ESCOBAR, 2007) nos anos 1950: a imposição da carência para a posterior chegada da
salvação (não sem penitências e custos de oportunidade). Passou-se então a construir a
imagem de Rio Grande como "atrasada", "parada no tempo" e cuja zona portuária abri-
garia instalações "obsoletas", "ineficientes", “antiquadas" ou, como comentou Pinheiro,
da "idade média da construção naval". Feito este duplo trabalho de desqualificar e criar

286
demanda (por modernização), sobreveio o que Acselrad e Bezerra (2010) chamam
"chantagem locacional". Com a ameaça de levar investimentos e empregos para outro
local caso não seja aceita dada obra tal como a empresa a deseja, alargam-se os "limites
de aceitabilidade dos riscos para a população local" (ibidem, p.181), que se vê constran-
gida pelas condições exigidas a admitir o que até então seria intolerável. Assim, junto à
imposição de alternativas infernais vem a ampliação (direta e indireta) do que até então
seria inegociável pela população, autoridades e governos locais.
Ocorre que em Rio Grande esta chantagem não se deu tendo como "alternativa viá-
vel" outras regiões do país (argumentando-se que Suape, Itaguaí poderiam "levar embo-
ra" recursos e empregos destinados a Rio Grande), mas alegando-se que, caso não fos-
sem dadas as devidas condições e facilidades locais (até então inaceitáveis) aos investi-
dores (sobretudo, Petrobrás e subsidiárias), estes iriam abandonar a cidade e se dirigir
para estaleiros estrangeiros. Como parâmetro para acionar a chantagem, recorria-se ou a
Cingapura e China (lembrados quando se queria enfatizar os valores finais das embarca-
ções) ou a Coréia do Sul, Japão e Noruega (quando o argumento se referia à necessidade
de excelência tecnológica). Não à toa, portanto, que, quando parte de uma obra contra-
tada pela empresa Engevix/Ecovix foi repassada a um estaleiro na China, lideranças
locais do Sindicato dos Metalúrgicos estenderam uma grande faixa na entrada da II Fei-
ra do Polo Naval fazendo referência ao fato e pedindo (junto com a reinvindicação de
reajuste salarial) que a Petrobrás garantisse as Plataformas para Rio Grande.
Ainda que seja possível calcular, em termos absolutos, o saldo (positivo ou negati-
vo) caso se subtraísse das “vantagens” os custos de oportunidade da ampliação do pólo
naval, seria um exercício, no mínimo, reducionista e etnocêntrico (até porque valorar
afetividades e memórias é prática ainda tímida entre economistas). Já a geração de em-
pregos tem sido uma forte moeda usada em situações de chantagem locacional, prática
que também se verifica em Rio Grande. Como postos de trabalho aparecem como um
dado objetivo (e cuja forma de mensurar geralmente não é explicitada ao ser citado),
fica evidente o efeito, sob a população local e o poder de convencimento de matérias
como a publicada pelo Jornal Agora (2013), a qual alegava que “até 2020, 155 mil pos-
tos de trabalho serão criados em Rio Grande”.
A despeito do caráter questionável deste dado (155 mil empregos criados em um
município que, segundo o último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

287
(IBGE), tinha 200 mil habitantes), caso ele venha a se efetivar de fato, isso significaria
no mínimo duplicar, em seis anos, a população da cidade. Ocorre que o enaltecimento
de tal perspectiva (redentora das mazelas riograndinas) deixa de lado o que isso implica-
ria em termos de enormes gastos e problemas para o gestor público municipal (tendo em
vista a infra-estrutura e os serviços que precisariam ser ampliados e criados para dar
conta da vinda destes novos moradores). Além disso, quando pensado em termos prag-
máticos e levando em conta aspirações políticas futuras dos governantes locais, como
recusar este montante de investimentos e empregos (sejam eles fictícios ou reais)?
Por outro lado, o que ocorre hoje em Rio Grande aponta para uma questão essencial
por trás de grandes projetos. Segundo Carvalho (2011), o porto e a área destinada aos
estaleiros é parte de uma política Top Down em que o território serve de local para in-
dução de estratégias de governo. Disto, fica a ser explorado o papel do Estado e como se
dá sua atuação através de regulamentações e políticas públicas de incentivo ao setor.
Porém, já prospectando futuras análises e seguindo enfoque inaugurado por Scotto
(2011), é possível ver o Estado como um meta-regulador-mediador de espaços não-
estatais legítimos, caso de um estaleiro, ambiente por onde circulam e atuam empresas
consorciadas transnacionais que visam suprir necessidades criadas pelo próprio Estado.
Considerando a atualidade da questão, analisar ambiguidades presentes no duplo papel
(de algoz e salvador) exercido através deste último nos parece algo premente nos estu-
dos sobre grandes projetos de desenvolvimento.
Por fim, vê-se que a “evolução” neodesenvolvimentista em Rio Grande está em ple-
no curso e enraizada nas instituições locais. Mas como tentamos mostrar, e como tam-
bém concluem Santos e Machado (2013), incidentes em curso nesta "localidade-alvo"
de grandes projetos evidencia a insustentabilidade (nacional e local) do modelo de de-
senvolvimento em vigor. Tendo isso em conta, pesquisas a partir do campo etnográfico
podem auxiliar a pensar as múltiplas facetas deste processo (incluindo o papel do Esta-
do), bem como nuances inscritas em distintos modos de legitimação. Mas para isso é
preciso deixar de lado a visão meramente vitimizadora de grupos sociais que sofrem
com a modernização portuária ou outro grande projeto de desenvolvimento. Além de
investir na visibilização de conflitos, é preciso insistir em estudos que avancem na aná-
lise das relações de poder e redes de interdependência geradas em distintos espaços so-
ciais e níveis ético-discursivos. Igualmente, dirigir a atenção para formas de sociabili-

288
dade e arranjos sociais dispostos no cotidiano dos aí implicados traz à pesquisa não só
possibilidades acadêmicas, mas enquanto projeto e objeto de ação política.

(Uma primeira versão deste paper foi escrita por um dos autores como trabalho final da disci-
plina Antropologia dos Conflitos Ambientais (PGDR/UFRGS), sob responsabilidade do profes-
sor Cleyton Gerhardt. Porém, é, sobretudo, fruto do diálogo crítico iniciado em 2011 entre pes-
quisadores do PGDR e Observatório de Conflitos Ambientais de Rio Grande (FURG). Tal par-
ceria tem permitido acompanhar de modo sistemático os desdobramentos sociais e ambientais
das políticas de ampliação do complexo naval de Rio Grande.)

NOTAS

1
Outro caso ocorreu entre 2005 e 2008, quanto o governo gaúcho associa-se à Votorantim, Aracruz Celu-
lose e Stora Enso visando transformar a Metade Sul num polo produtor de eucalipto e celulose. Ver Bin-
kowski (2009).
2
CORREIO DO POVO, 2012
3
ZERO HORA, 2012
4
Primeira empresa a operar no Polo Naval, é um consórcio formado pela Construtora Queiroz Galvão,
UTC Engenharia e IESA Óleo e Gás (esta última já investidora do Polo Naval do Delta do Jacuí, Char-
quedas/RS).
5
Expressão originalmente usada por movimentos por justiça ambiental nos Estados Unidos pra designar
locais onde se observa uma superposição de empreendimentos e instalações responsáveis por danos e
riscos ambientais.
6
HARVEY, 2004
7
O estuário da Lagoa dos Patos é estratégico do ponto de vista logístico por se conectar com Porto Alegre
pela própria Lagoa, pelo calado natural que permite navegação de grandes embarcações e por estar pró-
ximo aos Portos de Montevideo (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina), já saturados e com dificuldades de
expansão física.
8
Com 800 quilômetros de extensão, 200 de largura e indo desde as bacias de Santos, Campos e Espírito
Santo até o litoral de Santa Catarina, é assim chamada por constituir uma camada de sal de até 2.000m de
espessura.
9
Subsidiária da Petrobrás e maior armazenadora de granéis líquidos da América, em 2003 a Transpetro
possuía 70% da frota mercante do país, a maior parte então operada com navios estrangeiros (CARVA-
LHO, 2011).
10
Ver www.petrobras.com.br – consultado dia 14/11/2011.
11
ACSELRAD e BEZERRA, 2010
12
LEITE LOPES, 2004
13
ACSELRAD et. al., 2009
14
VAINER, 2007
15
ZHOURI et al., 2005

289
16
ALMEIDA, 2010
17
GERHARDT et. al., 2012
18
A exemplo do mutualismo existente entre tubarões e rêmoras ou seres humanos e urubus.
19
Cada contrato assinado entre estaleiros de Rio Grande e Petrobrás tem cláusula destinando recursos a
projetos sociais. A despeito da contestação acerca do retorno social dos mesmos, estes projetos são usados
como produto de marketing social e ambiental (ou socioambiental) das próprias empresas que patrocina-
ram sua realização.
20
Sobre o uso (corriqueiro e problemático) da categoria "impacto” (seja ecológico, ambiental ou socio-
ambiental), como percebeu Viveiros de Castro (1988, p.10), esta mascara a dominação política que está
por trás da causa que o produziu. Isso porque efeitos de obras como a modernização do complexo portuá-
rio de Rio Grande "são essencialmente políticos, por resultarem de uma vontade de dominação que nega
às populações humanas visadas seu lugar de sujeitos de direitos, isto é, de grupos sociais dotados de uma
positividade política".
21
Trata-se da transformação de territórios ocupados por grupos subalternos que, através de mecanismos
diretos (via remoção forçada) ou indiretos (aumento do custo de vida local), são expulsos de onde vivem,
resultando daí uma valorização, privatização e aburguesamento destas áreas. Sobre o fenômeno, ver NO-
BRE (2003).
22
CORREIO DO POVO, 2012
23
Frases, aliás, proferidas num contexto que cabe bem a cidade de Rio Grande. Além de se zona de segu-
rança nacional com forte presença das Forças Armadas, há, por parte da sociedade local, certo saudosis-
mo da época dos generais, sentimento explícito na tentativa, em 2010, de homenagear com uma estátua
em praça pública o Gal. Golbery do Couto e Silva, forte articulador da ditadura nos anos 1970 e tido
como um ilustre filho da terra.
24
Se o uso do pronome pessoal reforça o caráter personalista do discurso e cria uma distinção, gera cum-
plicidade ao ligar "eu" (que comanda) a “cada um” dos operários (comandados) que assistiam a oradora.
25
Aqui há diferença entre “peões de obra” que constroem estaleiros e portos e os que atuam quando estes
entram em operação. No caso, a presidenta falava para operários da construção de navios e plataformas.
Já a maior parte dos que construíram o estaleiro - “quando (...) Era só areia” - não estava mais presente;
muitos nem mais vivem na região, pois, tendo este sido finalizado, viraram desempregados ou seguiram
para outra empreitada. De fato, para quem a constrói, a inauguração de uma grande obra (momento co-
memorativo saudado por idealizadores, autoridades, mídia e políticos de ocasião) representa a ante-sala
de um período de transição por vezes dramático.
26
Redução do déficit fiscal, abertura ao capital estrangeiro, contenção de gastos públicos, privatizações,
flexibilização de direitos, desregulamentação da economia, fim do controle preços e do subsídio ao con-
sumo.
27
Ver http://extra.globo.com/noticias/economia/empresas-fazem-mais-de-45-mil-pedidos-para-explorar-
de-ouro-cobre-em-terras-indigenas-7726202.html#ixzz2MSwsnpNG (Consultado em 05/03/2013).
28
VAINER, 2007
29
A exemplo da realização via FURG do curso de Educação Ambiental para “capacitação, orientação e
formação” de pescadores artesanais pegos pela fiscalização praticando pesca de forma “irregular”.
30
VAINER, 2007, p.4
31
Responsável pelas construções oceânicas da empresa Engevix/Ecovix, hoje administra as unidades do
ERG 1 e 2.
32
Uma das mais antigas ONGs da região sul, tem forte atuação local, o “CEA prioriza a cooperação com
outras instituições por entender que os ecossistemas se espalham além dos limites municipais (...), reque-
rendo uma aliança entre diversos agentes para implantação de medidas de cuidado ecológico"
(www.ongcea.eco.br).

290
33
Sobre o conceito de "atingido", ver Vainer (2008). A partir do exemplo da luta do Movimento dos
Atingidos por Barragens, este mostra que esta é uma categoria em disputa, descrevendo como executores
de uma dada obra tentam diminuir ao máximo o número de pessoas a ser reconhecida como "atingido,
enquanto grupos sociais e aliados que a ela resistem lutam pelo seu alargamento legal. Inicialmente em-
presas do setor elétrico reconheciam como atingidos apenas os chamados "alagados" com título de pro-
priedade. Com o avanço da luta, passaram a ser incluídos não só proprietários, mas todos com terras ala-
gadas. Hoje a disputa se dá pela ampliação da concepção físico-espacial e incorporação da dimensão
temporal (abrangendo impactos desde o anúncio da obra, durante sua construção e depois que entra em
operação), bem como violências simbólicas, psicológicas e afetivas.
34
Caso da criação de novas sociabilidades de rua, jogos de futebol nos campos de bairros, comércio local
de produtos típicos e bares que usam identidades de outras regiões para atrair público (como o “Carioca
da Ilha”, situado no Mercado Público e único local próximo que abre sextas-feiras à noite onde pessoas
com uniforme das empresas, camiseta de times de futebol e sotaque de várias regiões vão ouvir a “roda de
samba do carioca”.

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do Contra as Sociedades Indígenas. In SANTOS, Leinad e ANDRADE, Lúcia (Orgs..)
Hidrelétricas do Xingu e os Povos Indígenas. São Paulo: Comissão Pró-Índio, 1988,
pp.7-23.

ZERO HORA. Dia 21 de março de 2012, Quinta-Feira. Industria Naval traz Investimen-
tos e Cria Oportunidades para o Estado. Disponível em:
<http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2012/03/industria-naval-traz-
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ZHOURI, Andréa; OLIVEIRA, Raquel. Desenvolvimento, conflitos sociais e violência


no Brasil rural: o caso das usinas hidrelétricas. Ambiente e Sociedade. Campinas: v.
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ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI, Klemens; PEREIRA, Doralice Barros. Desenvolvi-


mento, Sustentabilidade e Conflitos Socioambientais. In: ZHOURI, Andréa; LAS-
CHEFSKI, Klemens; PEREIRA, Doralice Barros. A insustentável leveza da política
ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica.
2005, p. 11-24.

293
SOBRE OS AUTORES

Ana Flávia Moreira Santos é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal


de Minas Gerais e pesquisadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG).
Email de contato: anaflaviam.santos@gmail.com

Andréa Zhouri é professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da


Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambien-
tais (GESTA/UFMG) e pesquisadora do CNPq. Email de contato: azhouri@gmail.com

Caio Floriano dos Santos é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEA/FURGS). Bolsista FAPERGS-CAPES. Pes-
quisador do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil. Email de contato: cai-
o_floriano@yahoo.com.br

Carlos Eduardo Ferreira Pinto é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas
Gerais, Coordenador-Geral das Promotorias de Justiça por Bacia Hidrográfica e Coordenador do
Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais (NUCAM). E-mail de contato: carloseduar-
do@mpmg.mp.br

Célio Bermann é professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IE-
E/USP) e pesquisador do CNPq. Email de contato: cbermann@iee.usp.br

Cleyton Gerhardt é professor do Programa de Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e pesquisador do TEMAS - Tecnologia, Meio Ambiente e So-
ciedade. Email de contato: cleytonge@gmail.com

Elder Andrade de Paula é pós-doutor em Sociologia do Desenvolvimento pela UNAM, doutor em


Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), é professor
associado do Centro de Filosofias e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CF-
CH/UFAC). E-mail de contato: elderpaula@uol.com.br

294
Eliane Cantarino O´Dwyer é professora do departamento e do Programa de Pós-Graduação em An-
tropologia da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Grupo de Estudos Amazônicos
(GEAM/UFF) e pesquisadora do CNPq. Email de contato: elianeantropologia@gmail.com

Fabrina Furtado é doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Uni-


versidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e assessora da Relatoria do Direito Humano ao
Meio Ambiente da Plataforma Dhesca. Email de contato: f.furtado7@gmail.com

Gabriel Strautman é economista, pesquisador da organização de direitos humanos, Justiça Global e


ex-secretário executivo da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais (2008-2012).
Email de contato: gabriel@global.org.br

Jean Pierre Leroy é assessor da Fase – Solidariedade e Educação, autor de Territórios do Futuro:
Educação, meio ambiente e ação coletiva. Email de contato: jpierre@fase.org.br

Klemens Laschefski é geógrafo e professor do departamento de Geologia da Universidade Federal


de Minas Gerais, coordenador do curso de graduação em Ciências Socioambientais, pesquisador do
Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG) e do CNPq. Email de contato: kle-
mens.laschefski@gmail.com

Marijane Lisboa é professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Pontifícia Univer-


sidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Atua como consultora de ONGs para área de meio ambien-
te e é conselheira da Comissão Técnica Nacional e Biossegurança (CTNBio). Email de contato:
mlisboa@pucsp.br

Mário Augusto Vicente Malaquias é Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo na Comarca da


Capital (São Paulo) - Ministério Público do Estado de São Paulo e Mestre em Direito do Estado
pela PUC/SP. Email de contato: mariomalaquias@mpsp.mp.br

Norma Valencio é professora associada do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universi-


dade Federal de São Carlos e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres
(NEPED/UFSCar,). Professora Colaboradora do PPG em Ciências da Engenharia Ambiental (PPG-
SEA) da EESC/USP, pesquisadora do CNPq. Email de contato: normaf@terra.com.br

295
Rafael Martin Lopo é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), pesquisador associado do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais (BIEV), ligado ao Laboratório de Antropologia Social (LAS/NUPECS).
Email de contato: rafaellopo@gmail.com

Rosimeire Scopinho é professora associada do Departamento de Psicologia, credenciada nos Pro-


gramas de Pós-Graduação em Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universi-
dade Federal de São Carlos(UFSCar). Coordenadora do Núcleo de Estudos Trabalho, Sociedade e
Comunidade (NUESTRA/UFSCar). Email de contato: scopinho@ufscar.br

296
ANEXO: CARTA DE BELO HORIZONTE

Os pesquisadores e pensadores signatários deste documento vêm, há mais de uma


década, realizando rigorosas pesquisas que evidenciam, à exaustão, enorme volume e
diversidade de situações empíricas em que populações, comunidades tradicionais, povos
indígenas e classes populares em geral têm seus direitos ambientais, culturais, territori-
ais e humanos flagrantemente violados. Invariavelmente, os agentes dessa violação são
os responsáveis pelos empreendimentos privados orientados para a acumulação de capi-
tal, tais como aqueles investidos no mercado imobiliário, na incineração de resíduos
tóxicos, na produção de commodities agrícolas e minerais, na apropriação de recursos
hídricos para geração de energia elétrica, para a pesca comercial, para o turismo elitiza-
do, para os monocultivos irrigados etc.
Nesses processos, as práticas governamentais do Estado, orientadas por uma ideolo-
gia desenvolvimentista, gestada de modo prevalente no período dos governos autoritá-
rios do Brasil, têm desempenhado papel essencial, geralmente postando-se ao lado dos
interesses predatórios e expropriadores do capital. As formas pelas quais o Estado, se-
gundo esta perspectiva de governança, realiza esse papel são várias: por meio da con-
cessão de licenciamentos ambientais, não raro mediante a desconsideração de pareceres
técnicos e dos protestos das populações vilipendiadas; investindo recursos públicos na
implementação ou rentabilidade de grandes projetos de infraestrutura (como estradas,
ferrovias, portos, transposição de rios etc.); a criação de Unidades de Conservação e
Proteção Integral, que expropriam populações locais; o uso da força das armas para rea-
lizar o deslocamento compulsório de populações urbanas (como nos violentos processos
de “reintegração de posse” de terrenos urbanos ociosos, ocupados por populações de
sem-teto, ou como na realização das obras de transposição do rio São Francisco etc.).
Outro aspecto importante da modernidade anômala que as frações do Estado teimam em
reforçar, em suas políticas/programas equivocados/insuficientes, tem sido a naturaliza-
ção do desbalanço dos direitos territoriais dos diferentes grupos sociais, o que enseja a
desproteção continua dos lugares mais ameaçados, no campo e nas cidades, e redunda
em expô-los a desastres recorrentes e cada vez mais catastróficos. O sofrimento social
dos grupos mais ameaçados e efetivamente afetados nos desastres - no geral, com desta-

297
que aos empobrecidos da sociedade - se amplia quando há a associação das perdas hu-
manas e materiais havidas à desumanização dos processos ditos “de remoção”, isto é,
quando os lugares em contestação pelo ente público são ressignificados como “áreas de
risco”, justificando com tal discurso a expulsão sumária de seus moradores e relegando-
os a um futuro incerto.
Nesse contexto, causa-nos enorme preocupação a disseminação, cada vez mais rápi-
da e acrítica, dos chamados mecanismos de “resolução negociada de conflitos ambien-
tais”, apresentados como solução para a sobrecarga de demandas sobre o Judiciário. Em
primeiro lugar, nossas pesquisas deixam claro que não há negociação justa que reúna
atores entre os quais existem abissais desigualdades, em termos dos recursos econômi-
cos, simbólicos e políticos de que dispõem. Nossos estudos empíricos demonstram far-
tamente que essas negociações, via de regra, implicam o domínio de informações, nor-
mas jurídicas, técnicas e de linguagem que escapa às classes populares e comunidades e
povos étnica e culturalmente diferenciados. A imposição desse domínio exclui, ipso
facto, os conhecimentos, valores e linguagens desses sujeitos sociais, submetendo-os,
assim, a uma verdadeira insegurança institucional e “tortura moral”, ao atingir a sua
dignidade como seres sociais, o que, ao cabo, só serve para emprestar ares de legitimi-
dade a decisões conduzidas pelos atores dominantes do processo de “negociação”.
Em segundo lugar, nossas pesquisas demonstram, com abundância, que há muitas
situações em que os distintos interesses e projetos de apropriação das condições naturais
e territórios são mutuamente excludentes ou mesmo incomensuráveis. Citemos apenas
os casos de pessoas pertencentes a comunidades tradicionais ou povos indígenas que
sofrem deslocamento compulsório de seus territórios e, em consequência, perdem o
sentido da vida, mergulhando em profundos processos depressivos que, não raro, os
levam à morte física e/ou cultural.
Por fim, salientamos que, pelo exposto, os resultados dos processos de “negociação”
em tela são, para os atores econômica e politicamente mais frágeis, quase sempre inferi-
ores ao que se lhes é assegurado pelos direitos de que são portadores. Considerando que
as técnicas de mediação aplicam-se fundamentalmente aos direitos disponíveis de indi-
víduos, enquanto os conflitos ambientais envolvem direitos indisponíveis de coletivida-
des, populações e futuras gerações, opomo-nos às tentativas cada vez mais frequentes de
substituir o debate político e o recurso dos desfavorecidos à justiça pela mediação, pro-

298
movida em muitas circunstâncias justamente por aqueles que poderiam e deveriam as-
sumir a defesa dos direitos dos desfavorecidos.
Reconhecendo o papel excepcional do Ministério Público no ordenamento jurídico
brasileiro como instância a que podem recorrer os grupos sociais menos favorecidos
política e economicamente na defesa dos seus direitos, instamos essa instituição a rejei-
tar as tentativas de transformá-la em instância mediadora, de modo a preservar-se como
aquele órgão capaz de assumir a defesa dos direitos constitucionais públicos, coletivos e
difusos, e em particular daqueles que constituem o lado mais fraco frente a empresas e
ao Estado, inclusive responsabilizando civil e criminalmente os agentes públicos e os
responsáveis técnicos de empresas que se omitem ou atuam na construção de uma “le-
galidade formal” que acoberta violentos processos de negação e violação de direitos, e,
simultaneamente, criminaliza a resistência.
Assim, consideramos decisivo, para o desfecho dos conflitos ambientais e territori-
ais, o papel que podem vir a desempenhar os operadores do direito, como garantidores e
fiscais da estrita e justa observação dos direitos das populações, comunidades e povos
inferiorizados pela economia de mercado e pela dominação política das classes abasta-
das. Concitamos, pois, os mais importantes entes civis e estatais que abrigam advogados
e juristas, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Rede Nacional de Advogados
Populares, o Ministério Público e o próprio Judiciário, em suas múltiplas instâncias, a
assumirem postura intransigente no resguardo desses direitos ambientais e territoriais da
cidadania, somando esforços para evitar que as linhas de defesa da cidadania definidas
por tais direitos sejam flexibilizadas e degradadas pela “negociação” e acordos infra-
legais.

Assinam os participantes e apoiadores do seminário “Formas de Matar, de Morrer e de


Resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais e a garantia dos
direitos humanos e difusos”, UFMG, 19 de novembro de 2012.

Pesquisadores
Andréa Zhouri - UFMG
Ana Flávia Santos – UFMG
Antonio Carlos Magalhães - Instituto Humanitas

299
Caio Floriano dos Santos - FURG
Carlos Alberto Dayrell - CAA
Carlos RS Machado - FURG
Carlos Walter Porto Gonçalves – UFF
Célio Bermann - Prof. Associado do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP
Claudenir Fávero - UFVJM
Cleyton Gerhardt - UFRGS
Cynthia Carvalho Martins - UEMA
Eder Jurandir Carneiro - UFSJ
Elder Andrade de Paula - UFAC
Eliane Cantarino O’Dwyer – UFF
Gustavo Neves Bezerra - UFF
Horácio Antunes de Sant'Ana Júnior - UFMA
Jean Pierre Leroy - FASE
Jeovah Meireles - UFC
Klemens Laschefski - UFMG
Maria de Jesus Morais - UFAC
Marijane Lisboa - PUC-SP
Michèle Sato - UFMT
Norma Valencio - UFSCar
Rosa Elizabeth Acevedo Marin - UFPA
Raquel Rigotto - UFC
Rômulo Soares Barbosa – UNIMONTES
Sonia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos - professora da UFPA

Centros e Núcleos de Pesquisa


Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAANM
Departamento de Sociologia (UFSCar)
Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente – GEDMMA
(UFMA)
Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA (UFMG)
Grupo de Estudos Socioeconomicos da Amazônia - GESEA (UEMA)

300
Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Artes - GPEA (UFMT)
Grupo de Pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade – TEMAS (UFRGS)
Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades - LEMTO (UFF)
Núcleo de Agroecologia e Campesinato (NAC-UFVJM)
Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres – NEPED (UFSCar)
Núcleo de Estudos Trabalho, Sociedade e Comunidade - NUESTRA (UFSCar)
Grupo de Pesquisa sobre a Diversidade da Agricultura Familiar - GEDAF/NCADR/
UFPA
Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental – NIISA (UNIMONTES)
Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental - NINJA (UFSJ)
Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (U-
FAC)
Núcleo TRAMAS - Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (UFC)
Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil (FURG)
Programa de Extensão Centro de Direitos Humanos na Tríplice Fronteira do Acre (BR),
Pando (BOL) e Madre de Díos (PE) (UFAC)

301

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