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A entrevista clínica psicanalítica

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Rui Aragao Oliveira


International Psychoanalytical Association
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A entrevista clínica psicanalítica
Autor: Rui Aragão Oliveira
Psicanalista da Sociedade Portuguesa Psicanálise
raragao@clinipinel.com

Largo de Andaluz, nº 15, 2º Esq.


1050-004 Lisboa
resumo:
A construção da entrevista clínica psicanalítica exprime uma parte da actividade
intrapsíquica de ambos, entrevistador e entrevistado, com realidades inconscientes, a
natureza conflitual e os processos de mudança e de resistência inerentes.
Neste trabalho são analisadas diferentes conceptualizações teóricas da entrevista,
assinalado processo de comunicação inconscientes e técnicas de entrevista.
Por último, desenvolve-se as ligações entre os fins clínicos e de investigação científica
potencializadas pela entrevista.

palavras-chave: entrevista; escuta analítica; clínica e investigação

The psychoanalitic clinical interview

Abstract:
Psychoanalitic clinical interview express parts of intrapsychic world of both, patient and
interviewer: unconscients worlds, conflicts, changing process and resistences.
This paper is about different theoretical conceptualizations of the psychoanalitical
interview, as well as unconscient communication and interview thecniques.
Research and clinical development of the psychoanalitical interview are discuss.

Key-word: interview; analytical listening; clinic and research


A entrevista clínica psicanalítica

Em psicologia, a importância atribuída ao trabalho elaborado pelo entrevistador clínico


parece consensual. No entanto, as justificações dessa mesma importância surgem já com
um grau de dispersão considerável, remetendo para o enquadramento teórico utilizado;
sendo as repercussões técnico-clínicas tão díspares que por vezes se mostram até
antagónicas.
No setting analítico ou em psicoterapia psicanalítica, o lugar da(s) primeira(s)
entrevista(s) assume um valor de extraordinária importância, onde os processos
projectivos e introjectivos comunicacionais se estruturam. Processos onde o terapeuta é
igualmente participante, independente do objectivo principal da entrevista, a saber: 1-
tendo em vista o acompanhamento clínico; 2- a avaliação do dinamismo de
determinadas estruturas e/ou processos do mundo mental ou ainda (ou também) 3- a
investigação científica, com um objecto de estudo prévio bem estabelecido.
Para alcançar a complexidade inerente, parece fundamental perceber o que se passa,
quando se “passa” uma entrevista.
Penso que o elemento fulcral se encontra na preparação do entrevistador, na sua
disponibilidade para suportar o desconhecido, o que não consegue ainda compreender.
O prejuízo maior será o de socorrer-se de um conjunto de metodologias meio estéreis,
que habitualmente pouco ou mais dão do que um mera reunião de factos, úteis sem
dúvida na classificação nosográfica, mas pobres no alcance do dinamismo dos
processos inconscientes e fantasmáticos do sujeito.

Por outro lado, sabemos de há muito que o facto de nos encontrarmos, no âmbito da
entrevista clínica, nas condições de observador participante, nos remete para condições
onde a objectividade e a certeza se tornam paradoxalmente relativas. Os trabalhos
clássicos da psicologia experimental sobre a influência da maior ou menor proximidade
entre entrevistador e entrevistado na capacidade de execução do entrevistador, mesmo
em tarefas simples, objectivas e sem grandes consequências assumem uma clarividência
que não deve ser desprezada pelo clínico: a inerência da comunicação emocional
inevitável entre psicoterapeuta e paciente, mesmo não sendo consciente (diria até,
essencialmente a que não é consciente), interfere na sua observação, nas suas decisões e
na riqueza dos dados obtidos. De tal forma, que torna capaz de “falsear” muitos dos
discursos traduzidos pelos instrumentos de avaliação clássicos, quando aplicados de
forma arbitrária e descontextualizada – um pouco como medir a pulsação ao sujeito
após ter subido 10 andares, não levando esse pormenor em conta: o elevado nível das
pulsões são bem reais, objectivamente comprovadas, mas traduzem somente uma visão
muito parcelar do seu estado de saúde genérico.

A entrevista clínica deve assim balizar toda estrutura planeada de recolha de


informação, de forma a poder usufruir da complementaridade da avaliação dos aspectos
relacionais, da dinâmica do mundo mental, e dos aspectos mensuráveis e objectivos.
Esta observação participante, pela sua elevada complexidade, exige ao entrevistador
maturidade e flexibilidade mental, que lhe permita uma clivagem integrada do Eu, capaz
de em parte se envolver e em parte observar a interacção do seu Eu com o sujeito
observado.
Deve assumir, portanto, um duplo fim: o do envolvimento emocional e do rigor
objectivo (o que fazem, sentem e pensam ambos os intervenientes, entrevistador e
entrevistado).
Decorrente desta premissa, surge um dos problemas maiores, porém nem sempre
assumidos, na metodologia clínica, que se centra na capacidade do entrevistador de
diferenciar qual o objecto de estudo: o dinamismo das particularidades inconscientes em
causa, ou o sujeito em relação. Como ambas se acompanham, envolvendo
obrigatoriamente o entrevistador em relação, torna-se difícil para ele próprio
diferenciar-se e integrar estes processos de clivagem integrada do seu Eu.
Perante a angústia confusional do entrevistador, a utilização de outros modelos de
compreensão das condutas clínicas tende a sobrepor-se procurando: o agrupamento de
sintomas do modelo semiológico descritivo; os factores de risco ambiental, ou os
processos de desenvolvimento. Todos válidos e relacionados, mas porém diferenciados.
Mas não devem ou não podem servir para neutralizar a dificuldade em alcançar os
mecanismos de funcionamento mental conscientes e inconscientes ou a organização dos
processos fantasmáticos implícitos no modelo analítico dinâmico da compreensão da
conduta clínica.
A entrevista clínica surge sem dúvida como um instrumento impar para lidar com a
dificuldade da operacionalização em psicanálise. Embora obrigue a um esforço interno
do sujeito entrevistador, que de seguida iremos procurar sistematizar e justificar.
A entrevista e a comunicação inconsciente

No referencial psicanalítico, a entrevista assume-se essencialmente pelo


estabelecimento da relação entre o intrapsíquico e o intersubjectivo da actividade
mental, indo portanto muito para além da mera e sempre importante partilha de
informação. A construção da relação exprime uma parte da actividade intrapsíquica de
ambos, entrevistador e entrevistado, com realidades inconscientes, a natureza conflitual
e os processos de mudança e de resistência inerentes.
A entrevista clínica contém elementos primários, para além da palavra: transferência,
contratransferência e identificação projectiva serão certamente alguns.
Significa então que nos encontramos para além da mera escuta do sujeito, procurando ir
mais além no alcance da escuta da “escuta do par terapêutico”, isto é, atender à “forma
como cada um do par analítico foi escutado pelo outro” (D. Zimerman, 2006).
Só desta forma se torna possível uma elaboração diagnóstica psicanalítica, retirando
partido de uma comunicação dilógica, como refere Widlöcher (2005), utilizando um
modo informativo de comunicação e um modo interactivo. Mas sem perder de vista o
objectivo último da entrevista: desenvolver no clínico um determinado e sempre
limitado conhecimento da vida mental do paciente.
A interacção psíquica assim constituída na relação reporta-se aos factos do mundo
mental” do processo de pensamento do paciente que ocupam igualmente o do
entrevistador, que então se vê imbuído de inferências e contextos associativos novos. É
também o mundo psíquico do entrevistador que é transformado, assim ele o permita,
pelo processo de comunicação. A entrevista clínica está para além do simples acto
exploratório. É um tempo e um espaço onde “activa em cada um dos participantes
determinadas ansiedades, defesas, estilos de relação, etc” (Aguilar & col. 2003, p.35)

A entrevista, com fins de acompanhamento clínico, não pode então ser utilizada como
um mero instrumento mecânico, pecando por inevitavelmente cair numa reducionista
comunicação lógica apenas.
São necessárias condições mínimas para o seu exercício: as devidas qualificações
profissionais (que certamente dariam outro interessante tema de debate), que
obrigatoriamente deve passar por um conhecimento aprofundado do entrevistador do
seu próprio mundo mental; o respeito humano e a atitude exploratória ou de
investigação; a renúncia ao exercício de influência sobre o paciente; a tolerância à
frustração, principalmente de tolerar ansiedades desintegradoras e ainda o
desenvolvimento da capacidade empática, suportando funções de contenção das partes
mais destrutivas e confusionais do Eu.
O trabalho de equipa interdisciplinar, sem dúvida rico e importante, pode criar no
entrevistador uma pressão (temporal, confirmatório de suposto diagnóstico, ou então
simples de resolução “mágica” como esperança última), mesmo inconsciente, que surge
como uma limitação importante ao desenvolvimento do seu trabalho. Igualmente as
limitações temporais, compreensivelmente frequentes no âmbito institucional, podem
inviabilizar a riqueza expressa pela entrevista clínica.
Por último, mas talvez a mais frequente limitação seja a exigência internalizada do
entrevistador, do que poderíamos designar de “supervisor interno” (P. Casement, 1985),
que o pode cegar ou destruir a sua capacidade de ir à descoberta, e de tolerar o
desconhecido do paciente, mas também o desconhecido em si mesmo.

O conceito da acessibilidade a partes mentais, introduzido por Betty Joseph, como


contraponto aos múltiplos critérios de analisabilidade porventura considerados
(exemplos clássicos são a capacidade de manter confiança básica sem gratificação
imediata, ou descriminar self e objecto), traduzem-se igualmente na estrutura da
entrevista e da sua razoabilidade. Passa a centrar a avaliação proporcionada pela
situação da entrevista nos aspectos contra-transferenciais, portanto no entrevistador, na
sua capacidade de se sentir colocado à prova, de tolerar a incompreensão e a frustração
inerente.
Revela a importância das primeiras consultas para além do modo informativo,
centrando-o no interactivo, nos aspectos transferenciais e contra-transferenciais,
remetendo também para os aspectos narcísicos e masoquistas do entrevistador, onde a
sua capacidade de se poder surpreender com coisas novas, com o que o sujeito
observado desconhece em si mesmo surge como base de compreensão do dinamismo do
mundo mental.
Aspectos técnicos da entrevista

Estes processos não se tornam fáceis de aprender, experimentar e igualmente de ensinar.


São vividos internamente na situação de entrevista, e exigem uma atenção outra do
entrevistador: ao sujeito, ao sujeito em relação consigo e a si próprio.
Talvez por isso, nos suscite uma estratificação da entrevista, em que mais do que partes
ou fase temporais, que não me parecem realmente existirem formalmente diferenciadas,
possam ser consideradas etapas na reflexão e análise do entrevistador.
Num primeiro momento torna-se fulcral conceber a oportunidade de entrevista como
uma escuta inerente à descoberta do outro (desconhecido) e não um interrogatório que
confirme hipóteses precoces (concebidas sempre inconsciente e defensivamente). Sem
dúvida, existem condições materiais impossíveis de desprezar (o tempo, o lugar, a troca
económica, são disso exemplo), bem como condições afectivas (disponibilidade interna
do entrevistador) onde devemos privilegiar a espontaneidade.
O paciente deverá ter oportunidade de organizar naturalmente o seu modo particular de
estruturar a relação, necessitando de tempo para que tal aconteça. Em situações onde a
angústia vivida pelo sujeito se revele insuportável, a entrevista pode ser enquadrada no
contexto de um processo mais longo de conhecimento mútuo, encurtando o primeiro
contacto e possibilitando a continuidade numa outra oportunidade.
Contudo, parece-nos sempre ponto essencial o indagar reflexivo sobre a percepção que
o sujeito tem do conflito ou sofrimento que o mobilizou para a procura de auxílio ou de
entrevista, e igualmente da forma como estrutura as defesas criadas, bem como do grau
de consciência destes dois aspectos.
A avaliação dos momentos críticos evolutivos é também essencial, procurando inferir os
movimentos enriquecedores, críticos e ainda aqueles onde a promoção de estereótipos
desenvolvimentais se salientou.
As faculdades defensivas ou adaptativas no confronto com situações novas e
imprevistas são reveladores de mecanismos complexos que merecem uma atenção
particular. Nesse sentido, as mudanças nas características do vínculo do paciente com o
entrevistador no desenrolar e finalizar da entrevista, permite inferir graus de plasticidade
das funções egóicas e qualidades superegoicas determinantes.
Num segundo momento, não obrigatoriamente um momento diferenciado
temporalmente, o entrevistador deve centrar-se em aspectos estruturantes do sujeito, que
enquadrem elementos formais de maior relevo desenvolvimental, ambiental e familiar
da sua história de vida externa, com a riqueza talvez mais subtil do dinamismo
fantasmático relacional, em que salientamos:
 Funcionamento pré-genital, onde os aspectos da oralidade e analidade assumem
particular importância, porque constituintes primários das formas prevalecentes
inconscientes das relações, e igualmente da relação terapêutica, em que a
capacidade de suportar a intimidade, a necessidade da mesma, ou aspectos da
voracidade são revistos, bem como do controlo do outro e de si próprio e das
trocas proporcionadas pelo vínculos emocionais (o que poderíamos designar por
“digestão afectiva”);
 Funcionamento genital, procurando avaliar a forma como o sujeito sente e vive
emocional e fantasmaticamente as ligações de maior intimidade erotizada (por
exemplo, para fugir à solidão e à dor depressiva ou para evitar o contacto
intimo no plano afectivo);
 Quais as “zonas mentais erógenas” privilegiadas pelo sujeito no seu contacto
relacional (oral, anal, fálico ou genital)? Qual o objectivo predominante do
impulso que organiza a relação (de tirar, esvaziar, reter, ficar contido, oferecer-
se, dar)? E que qualidade assume (destrutivo, de generosidade ou ambivalente)?
E que consequências são expectáveis na fantasia do sujeito relativas a si mesmo
e também ao objecto (relacionar para originar gratificação, diminuir da
ansiedade, libertação do sofrimento)?
 A vida onírica é igualmente um aspecto a aprofundar, pela riqueza que contém,
sem contudo cair na tentação precipitada da interpretação num momento inicial
da relação terapêutica;
 Os relacionamentos sociais (profissionais, com superiores e “inferiores”
hierárquicos, e de amizade) contribuem para uma clarificação da avaliação
diagnóstica das estruturas de relação de objecto e de ansiedades predominantes
no sujeito;
 Por último, parece-nos fundamental a atenção na história evolutiva da entrevista:
por onde inicia, com se desenvolve, o ritmo, o movimento e os momentos de
alteração.
O clínico na entrevista clínica

Os aspectos de carácter mais técnicos atrás expostos, organizadores da estrutura da


entrevista clínica e da leitura que a mesma poderá proporcionar, denotam uma clara e
importante tendência para realçar o lugar da dinâmica mental do entrevistador. A sua
capacidade de comunicação interna tornou-se, desde que Paula Heiman desenvolve o
conceito de contratransferência como instrumento psicoterapêutico (P. Heimann, 1950),
um dos aspectos centrais da actuação do psicanalista (P. Grieve, 2000).
A contratransferência tinha sido primeiramente nomeada por Freud, numa carta a C.
Jung, em 1909 (in R. Michels, 2002), mas sempre enquadrada na referência a partes não
conscientes da mente do analista e capazes de comprometer o sucesso terapêutico. Só na
segunda metade do século XX se aprofunda a sua importância, através do
desenvolvimento da escola de relações de objecto no Reino Unido mas também de
forma notável na América do Sul com Racker (1960) ou Madeleine e Willy Baranger
(1992) entre outros contributos importantes.
A concepção actual da contratransferência remete no essencial para aspectos
inconscientes repetitivos do passado infantil do psicoterapeuta. Mas também, como nos
refere Beatriz Berbardi (2006, p. 27) inclui “diferentes aspectos do seu funcionamento
mental que foram se desenvolvendo em suas experiências pessoas de análise e
formação, em seu diálogo com teorias e colegas e, sobretudo, no contacto com seus
pacientes”. Pode assim oferecer-se ao analista como um oportunidade de crescimento
emocional, mental e profissional, e por isso constituir-se simultaneamente como
instrumento precioso, mas também como obstáculo, segundo momentos e circunstâncias
da sua vivência enquanto clínico.
Introduz-se a ideia de que o entrevistador não é somente um ser reactivo aos sintomas,
classificando consequentemente estes encontros, mas deve ser capaz de em conjunto
com o paciente desenvolver capacidade criativa, e de atribuir novos significados a
novos encontros internos.
A entrevista clínica como encontro emocional, como nos fala Jaume Aguilar (2008)
pressupõem um entrevistador sem memória e sem desejo como Bion o concebeu, onde
o encontro com o desconhecido do entrevistador seja tolerável e possível, procurando
criar sentido a comportamentos, actos ou palavras, numa lógica próxima da “rêverie”; e
em que o sentido criado se organiza a partir da relação continente-conteúdo, onde a
dependência e crescimento é mútuo – dos conteúdos e do continente(s) (do entrevistador
e do entrevistado).
É talvez na entrevista clínica com partes psicóticas da mente em que este registo
paradigmático da contratransferência – instrumento precioso e/ou obstáculo - e dos
processos de comunicação inconscientes se assume na plenitude. São “zonas” em que o
desconforto da presença do desconhecido, do sem sentido e sem significado fazem
realçar a fragilidade identitária, activando defesas inconscientes do sujeito mas
igualmente do entrevistador, favorecendo o falseamento da escuta.
São vivências que recolocam problemáticas do sofrimento identitário-narcísico, e por
isso uma experiência de desintegração identitária, que no seu confronto induz, para
sobrevivência do próprio, a retirada dessa mesma vivência: por exemplo, socorrendo-se
à clivagem (predominantemente no sujeito) ou à intelectualização (predominantemente
no entrevistador). São zonas mentais onde a retirada do afeto e relativa “morte psíquica”
remetem para experiências anterior à linguagem, ou anteriores até ao primado
organizacional desta, nas quais a percepção e a motricidade servem de apoio
prevalecente às primeiras modalidades de simbolização, necessitando de uma verdadeira
mobilização intersubjectiva e transferencial.
O desafio da entrevista irá ser o de criar as condições intersubjectivas de um retorno de
contacto com uma zona abandonada de si mesmo. Deve pertencer ao clínico tomar a
iniciativa de tentar estabelecer contacto com o que sente repugnância em envolver-se na
relação – pensamos que será melhor enganar-se nas conjectures e hipóteses do que não
tentar abarcar parte fundamental da dinâmica do mundo mental!
Ao evocar um aspecto da história do sujeito, permite-se-lhe que ligue a si mesmo aquilo
que se apresentava suspenso em termos integrativos, e assim começar a pô-lo em
contacto com zonas abandonadas ou desinvestidas de si.
São as reacções do sujeito que informam sobre a proximidade destas áreas. Na medida
em que as experiências desorganizadoras passam para o presente do Ego, em que as
vivências de desespero, de sofrimento extremo e sem fim, de aniquilamento do eu, são
transferencialmente reactivadas, sucedem também o retorno de modalidades de defesa
particulares: reacções terapêuticas negativas, ansiedades acentuadas, raiva destrutiva,
vergonha intensa, etc, e em que perante a não simbolização, se socorre da linguagem
como um aparelho de acção ou de evacuação, organizando ataques ao pensamento que
se instalam de forma intensa na entrevista, mesmo que por dimensões temporais
reduzidas.
São momentos de entrevista onde a escuta fica ameaçada de desorganização, e em que o
clínico se vê tentado a desenvolver ou um retraimento (movimento de des-implicação
subjectiva, retirando-se de cena, com sono, apatia ou distracção) ou uma espécie de
retorsão interpretativa (onde o contacto se mantém à custa de uma contra-reacção
exercida pelo entrevistador).
Também na entrevista, tal como na relação analítica, é necessário que o clínico
sobreviva psiquicamente: não só para não se retirar da relação ou não efectuar uma
retorsão, mas especialmente para permanecer na relação de forma criativa na resposta
dada ao seu envolvimento transferencial.

A entrevista psicanalítica e a investigação científica

A utilização da metodologia de entrevista psicanalítica tem essencialmente servido fins


de intervenção clínica, nem sempre sabendo retirar plenamente todo o potencial que
encerra em si mesmo no âmbito da investigação científica.
Como sabemos, a psicanálise, para além de intervenção clínica, não é somente um corpo
teórico, constituindo-se igualmente como metodologia de exploração e descoberta dos
processos inconscientes. A técnica de entrevista pode conceber-se como um elemento
extremamente rico e valioso no acesso à dinâmica do mundo mental, e não
necessariamente associado exclusivamente ao contexto clínico.
É certo que a entrevista, tal como a concebemos neste trabalho, não permitirá por
definição a composição de um método rigoroso, objectivo, invariável, com directivas de
comportamento e de análise claramente estabelecidas. Mas oferece-se como uma
oportunidade extraordinária de acesso privilegiado a áreas do mundo mental.
À semelhança de muitas outras aplicações da teoria psicanalítica fora do contexto
clínico, também a entrevista psicanalítica pode ser utilizada para a compreensão
psicodinâmica e de significados inconscientes de diversos comportamentos, processos
psíquicos, acções sociais e situações de vida (D. Cartwright, 2004). Os exemplos da sua
operacionalização são múltiplos, com limitações evidentes e reducionismos inevitáveis
face à riqueza habitualmente associada ao encontro emocional proporcionada pela
entrevista clínica.
Cartwright (2004) organizou alguns procedimento que intitulou de Entrevista
Psicanalítica de Investigação (Psychoanalytic Research Interview) com o objectivo de
explorar os processos inconscientes, representações do Self e do objecto, defesas
predominantes, bem como a análise das narrativas construídas no contexto da entrevista.
Essencialmente focado na compreensão da construção do significado, baseia-se nos
processos do dinamismo intrapsíquico, construindo directivas e técnicas próprias para a
elaboração da entrevista.
As conceptualizações teóricas assumidas, no âmbito da investigação científica,
influenciam de forma determinante o método de entrevista, reflectindo-se depois no tipo
de questões colocadas pelo clínico, na forma como conduz o processo e os focos de
interesse assinalados. No encontro terapêutico, o paciente procura tratamento e auxílio,
colocando-o num contexto diferente da entrevista, em que o investigador está
interessado em compreender uma questão específica quase sempre pré-determinada.
Temos assim claramente diferenciados o teor e as motivações para ambos os
intervenientes do encontro: sujeito e entrevistador.
É possível ainda utilizar entrevistas clínicas psicanalíticas num procedimento genérico,
e socorrer-se também de métodos cognitivos e neurofisiológicos, como o realizou por
exemplo Shevrin et al (1992), num desenho experimental complexo, procurando testar
hipóteses detalhadas sobre processos inconscientes.
Na investigação científica são ainda escassos os trabalhos de autores psicanalistas que
incluam reflexões e cuidados metodológicos no âmbito da entrevista clínica, como a
análise de consistência interna e externa, ou a validação independente. A complexidade
inerente, remetendo para aspectos transferenciais e contra-transferenciais, justifica as
dificuldades presentes e o afastamento precipitado destes rigores.
Liderando uma vasta equipa de colaboradores, Manfred Cierpka, psicanalista germânico
da Universidade de Heidelberg, retirou partido da metodologia de entrevista,
desenvolvendo o instrumento Operationalized Psychodynamic Diagnostics, para a
resolução do complexo problema de classificação diagnóstica. Criou um sistema multi-
axial, conciliando as descrições fenomenológicas, de base estatística, do DSM e do
ICD, com os sistemas de compreensão psicanalítica actualmente existentes. Baseia-se
em cinco eixos diagnósticos: a experiência de doença e as pré-condições para o
tratamento; a relação; o conflito; a estrutura; e as perturbações psíquica e
psicossomáticas (Cierpka et al., 2007). É no eixo Relações Interpessoais que vemos
aproximar-se da metodologia de entrevista, onde aspectos da transferenciais e contra-
transferenciais são considerados e de algum modo operacionalizados
Como sabemos, o diagnóstico em saúde mental baseia-se em sistemas de classificação
diagnostica definidos internacionalmente, onde se destacam o Diagnostic and Statistical
Manual (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria e a International Classification
of Mental and Behavioral Disorders (ICD) da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Apesar da importante validade e fiabilidade oferecidas por esses sistemas de
classificação diagnostica, nenhum deles contempla plenamente os aspectos
psicodinâmicos de compreensão e avaliação da dinâmica do mundo mental dos
pacientes. Deste modo, os sistemas de classificação do DSM e do ICD apresentam-se
como puramente fenomenológicos, centrando-se nos sintomas e negligenciando os
aspectos subjacentes ao funcionamento mental e enquadramento psicopatológico de um
indivíduo. Por outro lado, é sabido que os sistemas de diagnóstico puramente
psicanalíticos e psicodinâmicos, apesar de úteis para a compreensão diagnóstica,
apresentam alguns dados contraditórios e não têm uma fundamentação experimental e
estatística que lhes confira uma validade e fiabilidade, cientificamente suficientes. Este
tema assume-se como particularmente actual na discussão do meio científico
internacional da especialidade (M. Cierpka et al., 2007; P. Fonagy, 2003, 2007).
A OPD foi criada na procura de uma melhor resolução deste complexo problema.
Encontra-se actualmente validada e adaptada para as principais línguas e culturas onde
os cuidados de saúde mental pública se encontram mais desenvolvidos, bem como a
investigação científica inerente (http://www.opd-online.net/), apresentando na
generalidade bons resultados no que confere à validade e fiabilidade (M. Cierpka,
2007).
Coordenando uma vasta equipa de profissionais em Barcelona, com colaboração de
grupos de trabalho em Milão e em Lisboa, o psicanalista Jaume Aguilar, desenvolveu
um instrumento de avaliação diagnóstica – A Escala de Diagnóstico Psicanalítico
Kleiniano (EDPK) – baseado na teoria das relações de objecto desenvolvida por
Melanie Klein e outros autores. Criada e estudada nos últimos 15 anos, tem sofrido
diversos desenvolvimentos e versões (J. Aguilar et al., 1996; J. Aguilar et al., 2003; J.
Aguilar, 2008).
O seu propósito foi desde o início o de introduzir uma dimensão intrapsíquica e
relacional na investigação clínica e epidemiológica do diagnóstico, considerando que a
compreensão psicodinâmica pode enriquecer a apreciação obtida por outros métodos de
diagnóstico. À semelhança de outros instrumentos centrados nos processos
transferenciais, como os de Gill & Hoffman (1982) ou de Luborsky et al. (1986), a
EDPK enfatiza especialmente as reacções transferenciais e contratransferenciais. A
escala não substitui em caso algum o diagnóstico psicanalítico, pressupondo aliás o
processo psicanalítico como um processo de diagnóstico constante. Tenta apenas
formalizar uma impressão diagnóstica inicial que permita obter um perfil estrutural
intrapsíquico do sujeito e quantificá-lo com finalidades de investigação clínica e
epidemiológica. A avaliação é obtida a partir de entrevistas não estruturadas, nas quais é
possível utilizar algumas questões, esclarecimentos, comparações e até mesmo
interpretações, com o objectivo de explorar sistematicamente os diferentes aspectos
considerados: investigação do Eu (insight, comunicação e cognição social,
reconhecimento das emoções, tolerância à frustração e à complexidade) investigação da
posição esquizo-paranoide (identificação projectiva patológica, tipo de clivagem, super-
eu, áreas de manifestação preferencial da ansiedade, qualidade da ansiedade),
Organização patológica da personalidade, e ainda investigação da dimensão depressiva
(elaboração da posição depressiva, defesas contra o processo de luto, defesas de carácter
maníaco e outras defesas perante a posição depressiva).
A ideia é poder situar o sujeito em níveis diferentes de um continuum, nas diferentes
subescalas consideradas. Tem sido utilizada em diferentes populações, apresentando
resultados satisfatórios quanto à fiabilidade interna, coerência com modelo teórico ou
ainda fiabilidade interavaliadores (Aguilar et al., 2003). Surge como um instrumento
útil nas investigações que se focam nos processos internos de mudança e resultados
psicoterapêutico, e é aplicável a diferentes modalidades de tratamento.
Oferece ainda a possibilidade de estudar aspectos saudáveis dos pacientes, o que parece
especialmente fecundo dada a limitação da descontextualização inerente à categorização
psiquiátrica das diferentes perturbações psicopatológica (Aguilar et al., 2003), tornando
igualmente possível o estudo epidemiológico da evolução longitudinal das diversas
perturbações.
A EDPK pode organizar-se também como um instrumento poderoso no auxílio da
elucidação dos acordos e desacordos entre diferentes clínicos que visem compreender
psicanaliticamente o mesmo material de entrevistas.

* * *
Parece-nos então que a entrevista clínica psicanalítica, complexa na sua
conceptualização, e diferenciada pela inclusão dos processos inconscientes, oferece-se
como um elemento extraordinariamente rico no trabalho clínico e de grande
potencialidade na investigação científica.
Os seus campos de aplicação na compreensão de aspectos inconscientes da dinâmica do
mundo mental são vastos e ainda longe de se encontrarem bem explorados, afirmando-
se como estratégia complementar fundamental em múltiplas acções sociais.
Porém, de manejo difícil, reclama preparação e maturidade do entrevistador, mas
constitui-se sem dúvida como capaz de alcances profundos e frutíferos.
Bibliografia

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