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Eunice Prudenciano de Souza

Rauer Ribeiro Rodrigues


Marcos Rogério Heck Dorneles
Pauliane Amaral
Natália Tano Portela
(Organizadores)

Anais do
7º Seminário do GPLV e
2º Seminário de Linguística

Três Lagoas - MS

2017
Anais do 7º Seminário do GPLV
e 2º Seminário de Linguística
© 2017 dos respectivos autores

PRODUÇÃO EDITORIAL

Coordenação Editorial
Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza
Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles
Doutoranda Pauliane Amaral
Mestranda Natália Tano Portela

Periodicidade
Semestral

Divulgação
Eletrônica

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL


GPLV - PPG/Letras/UFMS/Câmpus de Três Lagoas

COMISSÃO ORGANIZADORA COMISSÃO CIENTÍFICA


Rauer Ribeiro Rodrigues Rauer Ribeiro Rodrigues
Eunice Prudenciano de Souza Eunice Prudenciano de Souza
Marcos Rogério Heck Dorneles Marcos Rogério Dorneles
Natália Tano Portela Janaína Zaidan Bicalho Fonseca
Flávio Faccioni Pauliane Amaral
Natália Tano Portela

Contato Principal
E-mail: seminariogplv@gmail.com
Site: http://seminariogplv.blogspot.com.br

SOUZA, Eunice Prudenciano; RODRIGUES, Rauer Ribeiro; DORNELES, Marcos


Rogério Heck; AMARAL, Pauliane; PORTELA, Natália Tano. (Orgs.). SEMINÁRIO
DO GPLV, 7., SEMINÁRIO DE LINGUÍSTICA, 2. 2016-2017, Três Lagoas – MS.
Anais... Três Lagoas – MS: GPLV - Grupo de Pesquisa Literatura e Vida : UFMS, 2017.
441 p. ISSN 2525-7463.
Sumário
Apresentação ...................................................................................... 7

Programação ..................................................................................... 14

Resumos de linguística .................................................................. 19

Resumos de literatura .................................................................... 25

Resumo de minicurso..................................................................... 47

Palestras ............................................................................................ 49

Texto de palestra completo ........................................................... 52

Lendo contos de Luiz Vilela na sala de aula ................................ 52


Karina Torres Machado; Rauer Ribeiro Rodrigues

Artigos completos ......................................................................... 106

A metáfora do eu, no conto O Buraco, de Luiz Vilela .............. 106


Elcione Ferreira Silva

O revelar poético em Claudia Roquette-Pinto ........................... 127


Eloiza Fernanda Marani
Modos de construção do narrador contemporâneo: uma análise
de Mongólia, de Bernardo Carvalho ............................................ 151
Eloiza Fernanda Marani; Maisa Barbosa da Silva Cordeiro

A morte em Luiz Vilela: do provado ao público ....................... 183


Eunice Prudenciano de Souza

A representação da mulher em A Dança dos Cabelos, de Carlos


Herculano Lopes ............................................................................ 207
Lydyane de Almeida Menzotti Silva; Ricardo Magalhães Bulhões

Identidade: uma busca em O Último Conhaque de Carlos


Herculano Lopes ............................................................................ 234
Lydyane de Almeida Menzotti Silva; Ricardo Magalhães Bulhões

Por toda a vida: “memória da biblioteca” de Luiz Vilela ........... 269


Lucas Rodrigues Neves

Aspectos elusivos em contos de A Cabeça, de Luiz Vilela ........ 294


Marcos Rogério Heck Dorneles; Eunice Prudenciano de Souza

20 anos de Amélia: 20 anos de submissão e resistência ........... 326


Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo

Implicaturas e máximas conversacionais: regras inerentes ao


funcionamento da conversação ................................................... 352
Maria Izabel Gerstemberger de Oliveira; Nayra Modesto dos Santos Nunes
Uma leitura de “Mulher em Recesso”, de Alciene Ribeiro ...... 375
Natália Tano Portela

Uma amostra das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela .. 389


Rodrigo Andrade Pereira

O niilismo em “Axilas e outras Histórias Indecorosas”, à luz do


pensiero debole .................................................................................. 414
Ronaldo Vinagre Franjotti
Apresentação

Rauer Ribeiro Rodrigues

A APRESENTAÇÃO destes Anais fugirá ao tom normal

das peças similares, cuja estrutura e intenção prestam-se

normalmente a enumerar e realçar o conteúdo dos volumes que

prefaciam, destacando temas e abordagens texto a texto. Quanto

a esse aspecto, registremos que se trata de uma boa amostra do

conteúdo do evento, ainda que ele tenha sido realizado em duas

etapas e com atraso, devido à ocupação da Universidade pelos

acadêmicos, que protestavam contra medidas políticas ou

educacionais então especuladas pelo governo federal.

Temos 25 resumos, 13 artigos, uma palestra (das três

palestras do evento, uma está aqui reproduzida, trazemos de

outra o link para leitura na Guavira Letras, na qual foi publicada

na edição de dezembro de 2016, e a outra está prometida pelo

7
autor para publicação em breve). Registramos também a

programação completa do evento.

Nosso objetivo central neste momento é trazer a

informação do que foi definido no 1º Congresso do GPLV, um

dos eventos do 7º Seminário do GPLV e 2º Seminário de

Linguística. Apresentado por um integrante do Grupo em uma

das primeiras reuniões de 2016, após consulta prévia a mim,

como fundador e líder do Grupo, tendo na sequência passado

por várias etapas de discussão e de consultas, o Congresso

aprovou alterar a nomenclatura do Grupo sem alterar seu

acrônimo. A nova nomenclatura visa definir com maior clareza

o trabalho realizado pelo GPLV no momento, assim como a

refletir novas pesquisas que os integrantes do Grupo pretendem

iniciar em futuro próximo.

Desse modo, o GPLV ─ Grupo de Pesquisa Luiz Vilela ─

tornou-se GPLV ─ Grupo de Pesquisa Literatura e Vida.

Fundado em maio de 2011 na cidade de Ituiutaba por mim e

8
orientandos dos mestrados em Letras da UFMS de Três Lagoas e

Estudos de Linguagens, da UFMS de Campo Grande, todos nós

naquele momento desenvolvendo pesquisas sobre a obra de Luiz

Vilela, aquele pesquisadores-fundadores, hoje, ampliaram o rol

de pesquisas, e novos pesquisadores introduziram variáveis que

o Grupo incorporou, de modo que a alteração se impunha para

que mantivesse coerência com o trabalho realizado; registre-se,

que o GPLV, o novo, mantem constantes algumas variáveis do

antigo GPLV: deve realizar verticalizada análise narratológica,

com referencial que se mostrar mais adequado, e a análise deve

ser realizada tendo por fundamento a montagem de acervos

literários e deve ter por um dos métodos intermediários a

elaboração de fortunas críticas.

Por outro lado, o projeto de pesquisa do qual nasceu o

Grupo de Pesquisa, e que permitiu os sucessivos eventos

nomeados “Seminários do GPLV”, além de outras atividades,

cobria de 2011 a 2016, concluindo-se com um estudo sobre a

9
metacrítica da recepção acadêmica à obra de Luiz Vilela ─ ora,

embora haja no momento uma pesquisa de mestrado e cinco de

doutorado em desenvolvimento no âmbito do Grupo, há uma

pesquisa de pós-doutoramento sendo desenvolvida pela nossa

co-líder, Profa. Eunice Prudenciano de Souza, exatamente sobre

a metacrítica na recepção crítica à obra de Luiz Vilela.

O próprio registro de que há pesquisas em andamento,

realçando as de doutorado, que serão concluídas após o

fechamento da pesquisa da Profa. Eunice, mostra que o estudo

da obra de Luiz Vilela, assim como o sonho de trabalhar com o

seu acervo (registre-se, en passant, que Vilela é arquivista

compulsivo, guardando tudo que produziu, recebeu ou enviou

ao longo dos, hoje, mais de sessenta anos de atividade literária),

permanecem nucleares nas nossas pesquisas.

No entanto, com um novo projeto de pesquisa, mais

amplo, pudemos incorporar a nossos estudos pesquisas de

conclusão de curso do Câmpus do Pantanal, da UFMS de

10
Corumbá, sobre a escritora mineira Alciene (Maria) Ribeiro

(Leite) (de Oliveira), hoje já na casa de meia dezena, assim como

─ também sobre Alciene ─ dois mestrados em Três Lagoas.

Importa informar aqui que a escritora doou todo o seu acervo

para o Prof. Rauer, e tal acervo tem sido organizado e trabalhado

no Laboratório de Acervos Literários do Grupo de Pesquisa

Literatura e Vida nas dependências do Programa de Pós-

Graduação em Letras Mestrado e Doutorado da UFMS de Três

Lagoas.

Sem a ampliação da nomenclatura do Grupo, não

poderíamos nele ter pesquisas na área da escolarização da

literatura, que já eram realizadas por seus integrantes, tanto na

pós-graduação acadêmica quanto no Profletras da UFMS de Três

Lagoas, e que tem se mostrado fundamentais na discussão

inclusive da literatura do Luiz Vilela, com realce para os volumes

editorialmente direcionados para as escolas e para leitores

jovens.

11
Diga-se, por oportuno, que pesquisas sobre a obra de

Manoel de Barros e de outros autores estão projetadas, sempre

com a preocupação de montar acervos dos autores e de produzir

fortunas críticas atualizadas, criteriosas e acessíveis. Para tanto,

criamos três subgrupos: gpluizvilela, gpalcieneribeiro e

gpmanoeldebarros; cada subgrupo tem um blog, e eles podem

ser acessados diretamente ou a partir do portal

<gpliteraturaevida.blogspot.com.br>; neles, há notícias, acervo,

fortuna crítica, serviços em geral. Fica nosso convite para que

acesse cada um deles.

Ressalte-se, ainda, que o GPLV nasceu com cinco ou seis

mestrandas e um líder, e hoje conta com um rol que inclui outros

professores-pesquisadores, vários PIBICs, vários TCCs, vários

mestres, vários mestrandos, vários doutorandos, diversos

intercâmbios com professores de outras universidades, centenas

de artigos, centenas de participações em eventos, seu líder fez

estágio pós-doutoral na UERJ e o Grupo está próximo de formar

12
um pós-doutorando, o primeiro na área de Letras na UFMS. Uma

visão da variedade e número pode ser constatada pela

programação do evento, logo nas primeiras páginas destes

Anais.

Por favor, releve, leitor, a indeterminação dos sucessivos

“vários” no parágrafo anterior: é que, de fato, a nós importa

menos o número, e mais, muito mais, o amor que todos nós, do

GPLV ─ Grupo de Pesquisa Literatura e Vida ─, dedicamos à

nossa causa, a Literatura, e à nossa missão: aprofundar o estudo

da literatura, a partir da formação de acervos e a constituição de

fortunas críticas, sem perder de vista um qualificado ensino da

literatura para as novas gerações.

Desejamos que estes Anais sejam mais um tijolo no

edifício que estamos construindo para isso.

E desejamos, claro, que tenha uma boa e proveitosa

leitura.

13
Programação

12 de dezembro de 2016

13h30 – Seminário de Pesquisa


Sala de Acervos Literários do GPLV, Câmpus 1, UFMS, Três
Lagoas
Debatedora: Profa. Dra. Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ)
Projetos em debate:
1. Karina de Fátima Gomes, projeto de doutorado sanduíche: A
concepção de infância em contos de Alciene Ribeiro.
2. Letícia Alvarez Mendes, pré-projeto de mestrado: Augusto
César Proença: Acervo e Fortuna Crítica.
3. Nathália Soares Fontes, pré-projeto de mestrado: A consciência
do feminino nos contos de Alciene Ribeiro.
4. Katria Gabrieli Fagundes Galassi, pré-projeto de doutorado:
A Fortuna Crítica de Judith Grossmann.
5. Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo, projeto
de mestrado: Alciene Ribeiro: uma vida registrada em Acervo.

14
20h – Palestra
Anfiteatro, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas
Acervos literários: a prática, a teoria, a experiência - meu caso de
amor com Machado de Assis, por Profa. Dra. Maria Cristina
Cardoso Ribas (UERJ)

13 de dezembro de 2016

19h – Minicurso
Sala do 3º ano da Graduação em Letras, Câmpus 1, UFMS, Três
Lagoas
Literatura e(m) Cinema: por um novo olhar sobre Adaptação, por
Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ)

15
16 de janeiro de 2017

13h30 às 18h – Debate de Projetos


Sala do 1º ano da Graduação em Letras Câmpus 1, UFMS, Três
Lagoas
Debatedor: Prof. Dr. Julio Augusto Xavier Galharte
(CPAN/UFMS)
Projetos em debate:
1. Sueli Aparecida Racanelli da Silva, pré-projeto de doutorado:
Fortuna crítica de Hélio Serejo: trajetória de um memorialista.
2. Marcos Rogério Heck Dorneles, projeto de doutorado: Ruínas
e modos de narrar em A cabeça, de Vilela, e em Sete contos de fúria,
de Vieira.
3. Mateus Antenor Gomes, pré-projeto de mestrado:
Acovardamento e silenciamento em Os novos, de Luiz Vilela: uma
análise da construção narrativa.
4. Natália Tano Portela, projeto de mestrado: Submissão e servidão:
cerceamento do feminino em Alciene Ribeiro.
5. Ronaldo Vinagre Franjotti, pré-projeto de doutorado: O
inferno é aqui mesmo - estudo sobre a presença do niilismo em contos
brasileiros da segunda metade do século XX.

16
17 de janeiro de 2017

8h30 às 10h – Sessão de Comunicações


Salas da Graduação m Letras, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas

10h20 às 12h – Palestra


Anfiteatro, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas
Os desgraçados risos: uma comparação entre "Eu choro do
palhaço", de Alciene Ribeiro Leite, e "Palhaço da boca verde", de
João Guimarães Rosa, por Prof. Dr. Julio Augusto Xavier
Galharte (CPAN/UFMS)

14h às 15h30 – Sessão de Comunicações


Salas da Graduação m Letras, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas

15h30 às 18h – Palestra


Anfiteatro, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas

17
Contos de Luiz Vilela em Sala de Aula, por Me. Karina Torres
Machado e Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
(CPAN/UFMS)

18
Resumos de linguística

A PRESENÇA DO TEXTO NA SALA DE AULA: PORTAS


PARA O INUSITADO?

Aline Rodrigues da Silva (CPTL/UFMS)


Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (CPTL/UFMS)

Resumo: Compreende-se que o melhor lugar de expressão da


dialética entre estabilidade e instabilidade é o texto, pois convive
com imprevistos e acontecimentos. Logo, este trabalho objetiva
analisar como ocorre a interação e o uso do texto em sala de aula
a partir de uma perspectiva sócio histórica e interacionista, a fim
de contribuir no aprendizado da linguagem enquanto formação
social do aluno. A base teórica se sustenta a partir da Linguística
Aplicada, fundamentada em Geraldi (2009, 1993, 2010) e
Kleiman (2008), numa interface com a Psicologia da
Aprendizagem, a partir de Vygotsky (1991) e Leontiev (1978).
Enfim, o córpus pesquisado consistiu nos textos utilizados em
sala, em dados da interlocução que antecedeu a utilização destes
e em entrevistas realizadas com alunos e professor sobre o
desenvolvimento da aula em uma turma de 8º ano na cidade de
Três Lagoas-MS. Ademais, nota-se a excessiva preocupação com

19
o conteúdo em detrimento da prática social de comunicação em
um contexto significativo.

Palavras-chave: Ensino e aprendizagem, texto, acontecimento.

O ALUNO SURDO (NÃO) APRENDENDO ESPANHOL:


UMA OBSERVAÇÃO A PARTIR DA REALIZAÇÃO DO
ESTÁGIO OBRIGATÓRIO EM LÍNGUA ESPANHOLA I

Flávio Faccioni (CPTL/UFMS)


Amaya Abata Mouriño de Almeida Prado (CPTL/UFMS)

Resumo: O estágio obrigatório leva o acadêmico a conhecer o


microterritório da educação, a escola. É neste período que o
aluno observa, com maior ênfase, as relações entre a teoria e
prática, e além disso adquire práticas pedagógicas para sua
docência. Para a realização do estágio em língua espanhola
procedeu-se com as leituras teóricas do ensino de línguas de
Sabino (1994), Leffa (1988), Rojo (2013), entre outros. Durante as
aulas observadas percebeu-se, em especial, que a aprendizagem
de espanhol como L4 se torna muito mais difícil para o aluno
surdo. Observando esta questão, propõe-se neste trabalho
analisar o processo de ensino por parte do professor, observando
suas metodologias e a aprendizagem da língua espanhola pelo

20
aluno surdo. E por fim, pretende-se propor uma sequência
didática, a partir dos moldes de Dolz e Shneuwly (2004), para o
ensino de língua estrangeira para o aluno surdo.

OS GUANÁS – LAYANA, KINIKINAU E TERENA: A


BUSCA PELO MATERIAL DIDÁTICO

Flávio Faccioni (CPTL/UFMS)


Claudete Cameschi de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar os processos


híbridos identitários dos povos indígenas, habitantes do
etnoterritório “Povos do Pantanal”, que se voltam para a
reflexão, produção e aplicação de material didático para a
manutenção dos saberes indígenas. Sendo assim, observa-se a
busca pela manutenção cultural, artística e linguística dos povos
Terena, Kinikinau e Layana (falantes de línguas da família
linguística Aruak). Para tal análise, observou-se os trabalhos de
conclusão de curso da Licenciatura Intercultural Indígena
“Povos do Pantanal” (PROLIND) de Roberto (2014), Silva (2014)
e o material didático produzido por Julio et al. (2015), que
acreditam, a partir das produções e por meio da Educação
Escolar Indígena, no ensino e aprendizagem dos saberes e
vivências indígenas. Por fim, observa-se a busca de cada povo

21
pela continuidade étnica a partir da educação e de materiais
didáticos por eles produzidos.

Palavras-chave: Povos indígenas, Línguas indígenas, Ensino e


Aprendizagem, Material didático.

O DISCURSO KINIKINAU SOBRE CULTURA,


IDENTIDADE E EDUCAÇÃO

Maira Luana Morais (CPTL/UFMS)


Claudete Cameschi de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: Integrado ao Projeto de Pesquisa Koenukunoe: língua


e Cultura, este Plano de Trabalho teve como o objetivo geral
contribuir para a visibilidade do povo Kinikinau, e, por
especifico, analisar o discurso Kinikinau sobre cultura,
identidade e educação. A pesquisa ancorou-se nos pressupostos
da Análise de Discurso para a discussão dos conceitos de sujeito,
formação ideológica e discursiva, interdiscurso e memória
discursiva, sobretudo nos estudos de Foucault (2008), Coracini
(2007); na Linguística Aplicada e no método arqueogenealógico
de Foucault. O corpus foi constituído de recortes extraídos de um
Trabalho de Conclusão de Curso, de um professor indígena
Kinikinau e cinco textos produzidos por alunos do ensino

22
fundamental (2º segmento). Os resultados apontaram que em
decorrência das inúmeras transformações nas estruturas
econômicas e políticas, os povos indígenas tem sua cultura,
língua e identidade afetadas pelos modos de vida do branco e,
portanto, (re) significam suas práticas, crenças e necessidades na
contemporaneidade situando-se no entre lugar conflituoso que,
de um lado, o mantém em uma relação de dependência e
integração com a natureza, com os valores culturais, linguísticos
e identitários de seu grupo, e do outro, o coloca frente a frente
com os valores da sociedade hegemônica que deseja para si.

Palavras-chave: Discurso Indígena; kinikinau; Língua.

IMPLICATURAS E MÁXIMAS CONVERSACIONAIS:


REGRAS INERENTES AO FUNCIONAMENTO DA
CONVERSAÇÃO

Maria Izabel Gerstemberger de Oliveira (CPTL/UFMS)


Nayra Modesto dos Santos Nunes (CPTL/UFMS)

Resumo: O presente trabalho visa discorrer sobre os campos


linguísticos: Semântica e Pragmática, mais especificamente, com
foco na visão teórica das Implicaturas e Máximas
conversacionais. O objetivo consiste em evidenciar as regras

23
inerentes ao funcionamento da conversação. O aporte teórico da
pesquisa está ancorado em autores como Araújo (2007), Cançado
(2005), Crystal (1985), Fiorin (2010), Grice (1975), Oliveira e Basso
(2014), entre outros. Assim, pretende-se, sobretudo, refletir
acerca das funções exercidas pelos elementos que constituem a
linguagem, na construção do seu significado – Implicaturas e o
Princípio de Cooperação, mediante as Máximas conversacionais.
Logo, dispomos apresentar as regras que regem a conversação.
Para tanto, foram analisadas algumas situações da conversação
cotidiana. Os resultados apontam que esses processos
Semânticos e Pragmáticos, dentre vários outros, contribuem para
a produção da interação e para que o falante atinja os seus
propósitos comunicativos.

Palavras-chave: Implicaturas; Máximas conversacionais;


Conversação.

24
Resumos de literatura

A REALIDADE E A VOZ DO LEITOR NO MÉTODO


RECEPCIONAL

Ângela Nubiato Lopes (CPTL/UFMS)


Priscila Feliciano Costa (Unesp-Marília)

Resumo: O método recepcional, cuja fundamentação teórica


reside nos postulados da Estética da Recepção, é descrito no livro
de Maria da Gloria Bordini e Vera Teixeira Aguiar, Literatura: a
formação do leitor ─alternativas metodológicas (1993), e estruturado
como um método de escolarização da literatura. O objetivo do
método é o desenvolvimento de atitude participativa dos alunos
no contato com os diferentes textos, sendo a função mediadora
do docente incentivar e provocar nos alunos a análise crítica de
sua interação com a obra. O livro de Bordini e Aguiar nos coloca
em contato com problemas referentes à formação de leitores
literários e propõe o trabalho com cinco metodologias, entre as
quais o método recepcional. As autoras propõem tais
alternativas para suprir lacunas no trabalho com a literatura em
sala de aula a partir do diagnóstico do crescente desinteresse por
leitura de literatura pelos alunos conforme avanço no grau de

25
escolaridade ─ quadro esse que desde então tornou-se ainda
mais grave. Os métodos estruturados na leitura de literatura
fornecem liberdade ao docente na escolha dos materiais literários
que serão estudados. Escolhemos a obra do escritor Luiz Vilela,
a partir da consideração de que o escritor mineiro desenvolve
temas que permeiam constantemente o imaginário juvenil tais
como as dores da juventude, a sensibilidade das pessoas, a
solidão humana, a incomunicabilidade no contexto social e
conflitos existenciais. Relatamos o desenvolvimento da proposta
entre estudantes do 8° ano do Ensino Fundamental, visando
formação literária tendo por premissa a voz do leitor e sua
realidade. Os resultados da aplicação do método demonstraram
a importância de associar literatura e cotidiano dos alunos como
meio de desenvolver a reflexão crítica e autônoma. Isso provocou
grande interesse e motivação nos alunos, fazendo-os superar o
horizonte de expectativas em que se encontravam antes do
trabalho ser iniciado.

Palavras-chave: Alternativas Metodológicas, Literatura, Luiz


Vilela, Método Recepcional.

26
A CULTURA POP E O SIMBOLISMO RELIGIOSO:
UMA LEITURA SEMIÓTICA

Diego Barcellos de Souza (CCHS/UFMS)

Resumo: Desde o surgimento do videoclipe, uma grande


variedade de linguagens é utilizada com o intuito de transmitir
uma determinada mensagem. Na cultura pop, as produções
audiovisuais são repletas de simbolismos que fazem alusão à
religião e contém várias mensagens que podem ser interpretadas
de diversas formas. O presente estudo pretendeu, por meio da
utilização dos princípios teóricos da Semiótica de Charles
Sanders Peirce, interpretar essas mensagens e compreender de
que forma a linguagem contribui para a transmissão de uma
determinada informação. Como objeto de estudo, foram
utilizados alguns videoclipes antigos e atuais da cultura pop que
contém os elementos citados e a análise foi feita levando-se em
consideração o uso dos elementos simbólicos dentro do contexto
geral da obra audiovisual.

Palavras-chave: linguagem; videoclipe; semiótica; cultura pop.

27
LIVING FOR LOVE: UMA LEITURA SEMIÓTICA DA
PRODUÇÃO AUDIOVISUAL DA CANTORA MADONNA

Diego Barcellos de Souza (CCHS/UFMS)

Resumo: Conhecida por ser uma artista inovadora e versátil, a


cantora norte-americana Madonna surgiu no mercado
fonográfico no ano de 1983 e há mais de 30 anos se mantém em
voga na cena musical. Tida como referência por diversas artistas
atualmente, a cantora se destaca por sua versatilidade e
constante reconstrução. No videoclipe intitulado Living for Love
(2015), a cantora apresenta uma obra audiovisual simples, porém
repleta de significados. Com base na teoria semiótica de Charles
Sanders Peirce, o presente estudo procurou interpretar a
linguagem utilizada no enredo do videoclipe, viabilizando uma
compreensão do contexto geral da obra. A semiótica como base
interpretativa possibilitou uma leitura mais concisa da
mensagem apresentada, comprovando a importância da
utilização desta teoria na compreensão da mensagem
audiovisual.

Palavras-chave: semiótica; videoclipe; Madonna; living for Love.

28
A METÁFORA DO EU, NO CONTO O BURACO, DE LUIZ
VILELA

Elcione Ferreira Silva (CPTL/UFMS)

Resumo: O conto O buraco é uma das peças que compõem a obra


Tremor de terra, do escritor Luiz Vilela (2003).O objetivo deste
artigo é apresentar como procede o processo metafórico, a partir
do título da obra. A postura do narrador é fundamental para
exemplificar o desenvolvimento do percurso
metafórico.Tomamos, como suporte teórico: Paul Ricouer (2000)
com a obra A metáfora Viva, assim como, o capítulo, Para uma
pedagogia da metáfora de José Paulo Paes (1997) .

Palavras-chave: Metáfora; Narrador; Luiz Vilela.

A SOLIDÃO E O VAZIO: EXPECTATIVA DO “OUTRO” EM


LUIZ VILELA

Eliza da Silva Martins Peron (CPTL/UFMS)

Resumo: Esse artigo versa sobre o tema da solidão e o vazio em


dois contos de Luiz Vilela, dentre eles Zoiuda, de Você Verá
(2014), e Bem, do livro homônimo discutindo de que maneira

29
essas temáticas se inscrevem na tessitura do texto. Assinalamos
ainda, as recorrências desses temas na ficção do autor apontados
pela crítica como elementos comuns a seu fazer literário somados
à incomunicabilidade nas relações humanas. Como suporte
teórico, utilizaremos as teorias de Majadas (2011) e Rauer (2006)
no que concerne à solidão bem como Houaiss (2003) na tentativa
de defini-la. Em relação ao outro nos pautaremos em Todorov
(2003) e para elucidarmos os sentidos do vazio, nas definições de
Chevalier & Gheerbrant (2015). Após as considerações e análise
de como os elementos retratados acima se constituem,
procuramos deslindar de que maneira essa própria
incomunicabilidade, o vazio e a solidão também compõem o
mote para o encontro com o outro.

Palavras-chave: Solidão; Vazio; Incomunicabilidade.

O REVELAR POÉTICO EM CLAUDIA ROQUETTE-PINTO

Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS)

Resumo: Claudia Roquette-Pinto, embora tenha publicações


significantes, ainda é uma escritora pouco conhecida nos meios
acadêmicos. Entretanto, o estudo de sua poética revela uma
autora que se apropria de recursos literários, como a metáfora,

30
para sinalizar uma de suas principais características – a
metapoesia –, através de assimilações e exaltações às
simplicidades e insignificâncias do cotidiano, como jardins e
insetos. Para isso, apresentaremos a análise do poema “Nada”,
constituinte da obra Corola, no intuito de exemplificar, ilustrar e
apontar o percurso trilhado pela autora na formação do
constructo poético.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Poesia Contemporânea;


Metapoesia.

MODOS DE CONSTRUÇÃO DO NARRADOR


CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DE MONGÓLIA, DE
BERNARDO CARVALHO

Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS)


Maisa Barbosa da Silva Cordeiro (CPTL/UFMS)

Resumo: Este artigo tem como proposta analisar os modos de


construção do narrador contemporâneo no romance Mongólia, de
Bernardo Carvalho. Por meio do movimento de articulação de
três narrações distintas para compor uma única diegése, a
narrativa se destaca pelo mistério que envolve o encontro das
vozes nela presentes. Trazendo à tona a ideia de que o narrador

31
do romance contemporâneo não se propõe mais a partilhar
aconselhamentos, Mongólia evidencia caminhos distintos pela
busca da própria história. Desse modo, é objetivo deste trabalho
entender de que modo o narrador é construído e de que modo o
foco narrativo é articulado.

Palavras-chave: Narrador contemporâneo; Romance; Mongólia;


Bernardo Carvalho.

A MORTE EM LUIZ VILELA: DO PRIVADO AO PÚBLICO

Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: O presente artigo discute a morte da privacidade na


obra de Luiz Vilela, por meio de alguns contos que colocam em
cena a questão da morte e a atitude dos seres humanos frente à
tragicidade da vida. A reflexão sobre a respectiva temática vai
aparecer em contos como “Vazio”, “Enquanto dura a festa” e
“Velório”, de Tremor de Terra (1967), “Fazendo a barba”, de O fim
de tudo (1973), “A cabeça”, de livro homônimo (2002), “Corpos”
e “O que cada um disse”, de Você verá (2013). Nos primeiros
contos, das coletâneas Tremor de Terra e O fim de tudo, as
narrativas abordam a morte em âmbito mais privado, restritos

32
ao círculo familiar e ao de amigos, enquanto os contos de A cabeça
e Você verá ganham o espaço do público, das ruas e do mundo
virtual, em que é perceptível a banalização da morte como um
dos fenômenos da chamada sociedade contemporânea do
espetáculo. De certo modo, as mídias sociais e as tecnologias
contribuíram para que a solidão na hora da morte, antes restrita
à esfera familiar, adquirisse os contornos do público. Os contos
apontados, a nosso ver, retratam uma mudança de atitude do
homem contemporâneo em relação à Morte. Para nossa
discussão alicerçamo-nos em estudos históricos e sociológicos,
como os de Ariès e Bauman.

Palavras-chave: histórico; Luiz Vilela; morte; sociedade.

AS NARRATIVAS DE POE E A CONSTITUIÇÃO DO


ALUNO LEITOR-AUTOR

Gabriel Lúcius dos Santos (CPTL/UFMS)


Aline Rodrigues da Silva (CPTL/UFMS)

Resumo: Este trabalho é resultado de observação e regência de


aulas em uma sala do oitavo ano em uma escola Estadual de Três
Lagoas-MS, situa-se no campo teórico-metodológico da
Linguística Aplicada a partir de Geraldi (1993), Dolz (2004) e

33
Alarcão (2003) e tem como objetivo descrever e refletir acerca do
ensino de língua portuguesa a partir da prática em sala de aula.
Assim, fomentada pelo Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID), foi elaborada e aplicada uma
Sequência Didática (SD) que objetivou a manipulação, leitura e
compreensão de contos de terror, especialmente, do autor Edgar
Allan Poe, com contação de histórias, leituras na biblioteca e em
sala e, posteriormente, a escrita de contos de terror, que após
algumas etapas de produção resultou em um livro. Por fim,
percebe-se a aparente motivação dos alunos ao vivenciar os
contos e ao os atribuir sentido durante as aulas. Considera-se,
então, que o planejamento e a reflexão acerca das aulas antes,
durante e depois se apresentam como extremamente
importantes para uma boa prática em sala de aula.

Palavras-chave: Leitura; produção de texto; Contos de terror.

“BONÉ VERMELHO”, DE ALCIENE RIBEIRO LEITE:


CHAPEUZINHO VERMELHO REPAGINADA –
METÁFORAS DE ONTEM E HOJE

Karina de Fátima Gomes (CPTL/UFMS)

34
Resumo: O conto “Boné Vermelho” (LEITE, 1988) foi publicado na
coletânea “Um jeito Vesgo de Ser”, fazendo parte da Coleção
Narrativas, da Editora do Brasil S/A. É um texto de leitura
simples, clara, objetiva, com personagens que já são de domínio
público (pelo menos metaforicamente: chapeuzinho vermelho,
lobo, vovó). Boné Vermelho, a personagem central, recebe da
mãe a incumbência de fazer uma entrega para sua avó, em se
tratando de uma releitura moderna, elementos do cotidiano das
grandes cidades aparecem neste percurso: ônibus, becos, bairro
perigosos, homens que fazem insinuações. Neste trabalho, será
realizada um estudo da obra Chapeuzinho Vermelho, e das
metáforas que se encontram de forma generalizada na mesma,
serão apresentadas releituras e apresentações do conto clássico
na contemporaneidade e será realizada a análise do conto “Boné
Vermelho” observando a construção e a presença de metáforas
constantes na trama de Alciene, sendo estas muito relevantes na
trama e no discurso, permitindo verificar a presença de uma voz
narrativa questionadora e irônica. Para o estudo da metáfora, nos
valemos de referencial colhido em Aristóteles, em Paul Ricouer
e em José Paulo Paes.

Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; releitura; Chapeuzinho


Vermelho; metáfora; reconto.

35
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM A DANÇA DOS
CABELOS, DE CARLOS HERCULANO LOPES

Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS)


Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS)

Resumo: A partir da análise do romance A dança dos cabelos,


pretendemos examinar a representação da mulher nesta obra de
Carlos Herculano Lopes. O romance em que a trajetória das três
personagens principais, que se chamam Isaura, é narrada em
primeira pessoa gramatical e apresenta grande penetração na
psicologia feminina, é memorialista. Essas narradoras analisam,
descrevem e comentam o que se passa na vida da família, o que
é muito significativo para a análise proposta, visto que traz à
tona o espaço de submissão que acompanha o sujeito feminino
desde sua infância. Julgamos necessário, apresentar a
representação do espaço na obra, já que este contribuí de forma
significativa para análise como um todo.

Palavras-chave: Romance; Representação; Espaço; Mulher.

36
IDENTIDADE: UMA BUSCA EM O ÚLTIMO CONHAQUE
DE CARLOS HERCULANO LOPES

Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS)


Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS)

Resumo: A globalização, os avanços da era tecnológica do


mundo contemporâneo e o trauma de momentos históricos
sociais, como a ditadura no Brasil, têm provocado sentimentos
de rupturas, fragmentação do indivíduo e tensão na sociedade.
Não é difícil perceber que esses sentimentos tenham se refletido
nas artes, e a literatura enquanto arte tem produzido essas
impressões por meio da palavra. No romance O último conhaque,
do escritor mineiro Carlos Herculano Lopes, o protagonista
recupera antigas lembranças que têm como cenário uma
paisagem tipicamente rural em Santa Marta. Trata-se de um
texto que narra a história desse homem desenraizado e
atormentado pelas memórias de sua infância e que representa a
metáfora do ser deslocado, em busca de identidade. Nos
ancoramos em autores como Antonio Candido (2000), Benjamin
(1994), Hall (2006), Ginzburg (2012), entre outros.

Palavras-chave: Memória; Identidade; Social; Busca;


Contemporâneo.

37
POR TODA A VIDA: "MEMÓRIA DA BIBLIOTECA" DE
LUIZ VILELA

Lucas Rodrigues Neves (CPTL/UFMS)

Resumo: Com o trabalho proposto, pretendemos desenvolver


um estudo onomástico das personagens do conto "Por toda a
vida", do escritor mineiro Luiz Vilela, que está presente em sua
obra inicial, Tremor de Terra (1967). Acreditamos que a
nomenclatura das personagens não ocorre de forma aleatória,
constituindo-se em signos dispostos de significado, o que o torna
primordial na construção do texto. Ao pensarmos no texto
ficcional como uma estrutura, descrevemos os efeitos de sentido
dos contos, nos quais as personagens são nomeadas de forma a
compor um todo significativo com a cena. Tal estudo nos
propicia um modo de aproximação do fazer poético do escritor.
Para embasar teoricamente o estudo, vamos nos valer,
inicialmente, do seguinte referencial: de Ana
Maria Machado, Recado do nome; de Leyla Perrone-Moisés,
Mutações da Literatura no Século XXI; de Antonio Candido e
Anatol Rosenfeld, A Personagem de Ficção; de Autran
Dourado, Personagem, Composição, Estrutura; e de Nelson Oliver,
Dicionário de nomes.

Palavras-chave: Tremor de Terra; Personagens; Onomástica.

38
ASPECTOS ELUSIVOS EM CONTOS DE A CABEÇA, DE
LUIZ VILELA.

Marcos Rogério Heck Dorneles (CPTL/UFMS)


Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: Artigo sobre contos do livro A cabeça, de Luiz Vilela,


com destaque para análise e interpretação dos elementos
constitutivos, e para a percepção de aspectos elusivos na criação
da narrativa literária. Como objetivos principais da atividade
situam-se o levantamento dos procedimentos recorrentes na
produção desse livro, a percepção de camadas textuais que não
se encontram evidentes na superfície de alguns contos e a
associação dessa escrita a uma visão de mundo. O artigo foi
realizado por meio da leitura de contos do autor, e de textos das
teorias narrativas, da recepção crítica e dos estudos filosóficos.
Derivam da pesquisa também o registro de temas, tensões e
intertextos dispostos nas estruturas narrativas.

Palavras-chave: Conto; Literatura; Luiz Vilela.

39
20 ANOS DE AMÉLIA: 20 DE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo


(CPTL/UFMS)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo explicitar como se dá a


construção da personagem Amélia no conto “Vinte anos de
Amélia”, que integra a coletânea Eu choro do palhaço (1989), da
escritora mineira contemporânea Alciene Ribeiro Leite. No
conto, temos o espaço patriarcal da personagem feminina
totalmente submissa ao homem que, após vinte longos anos de
matrimônio e total submissão, resolve libertar-se. A narrativa é
estruturada pelo tempo psicológico, pois é através das memórias
de Amélia que o narrador onisciente relata os fatos, descrevendo
uma mulher submissa, que desempenha, com zelo e
determinação, o papel de dona de casa, mãe e esposa. Amélia
leva uma vida de servidão, imposta pelo casamento, cumprindo
o seu papel social e assim fazendo jus ao juramento de
subserviência que professara ao marido e à sociedade durante a
realização pública do matrimônio. Com o passar do tempo, a
personagem começa a refletir sobre a sua vida e o que fizera dela.
Após as reflexões, a personagem surge com um novo olhar sobre
si mesma, frente à realidade opressora em que vive. O enredo do
conto nos apresenta a mulher contemporânea e sua resistência à
submissão, que lhe foi imposta por normas e regras sociais
oriundas do sistema patriarcal. Deste modo, o conto nos permite

40
observar uma mudança na condição feminina: da absoluta
submissão à possibilidade de um novo reposicionamento,
condizente com as reorganizações sociais do mundo
contemporâneo. Temos no conto a configuração de um grande
problema social presente nos tempos contemporâneos. A
metodologia utilizada foi revisão bibliográfica e como aporte
teórico, utilizamo-nos dos pensamentos de Alfredo Bosi, Simone
de Beauvoir, Stuart Hall, Rose Marie Muraro, dentre outros.

Palavras-chave: Feminismo; Resistência; Sociedade.

UMA LEITURA DE “MULHER EM RECESSO”, DE


ALCIENE RIBEIRO LEITE

Natália Tano Portela (CPTL/UFMS)

Resumo: Dentre 449 trabalhos concorrentes, "Mulher em


Recesso", de Alciene Ribeiro Leite, foi um dos dez contos
indicados para publicação na coletânea 8º Concurso de Contos Luiz
Vilela (1999). O conto, narrado em terceira pessoa, descreve um
dia da vida da personagem “mulher” com seus afazeres
domésticos. Este trabalho pretende uma leitura desse conto a
partir da construção da personagem feminina, tendo por objetivo

41
demonstrar sua tomada de consciência e consequente mudança
comportamental.

Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; conto; feminismo.

ACERVO LITERÁRIO E FORTUNA CRÍTICA: UMA


AMOSTRA DAS ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS DE
LUIZ VILELA

Rodrigo Andrade Pereira (CPTL/UFMS)

Resumo: Ao debruçarmos sobre as entrevistas e depoimentos do


escritor mineiro Luiz Vilela, percebemos a necessidade de
analisarmos as “faces” construídas pelo escritor diante de seus
interlocutores. Estabelecida importância e o lugar da entrevista e
do depoimento diante do acervo literário do escritor, até para
podermos lidar não com todos, mas apenas com os mais
significativos, nos debruçaremos neste artigo em uma pequena
amostragem das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela,
algumas delas já publicadas, sendo uma ainda em arquivo
digital. Tais entrevistas e depoimentos, juntando-se à outras, e
são inúmeras, consistirá em uma parte do acervo literário do
escritor.

42
Palavras-chave: Acervo Literário; Luiz Vilela; Entrevistas;
Depoimentos.

A LEITURA LITERÁRIA COMO ESTRATÉGIA DE


ESCRITA DO TEXTO DISSERTATIVO

Rodrigo Andrade Pereira (CPTL/UFMS)

Resumo: A prática de leitura de textos ficcionais como leitmotiv


para a produção de textos dissertativos é uma prática pouco
usual em muitas oficinas textuais. Este texto, portanto, tem por
objetivo apresentar uma reflexão acerca do trabalho com esse
tipo de leitura nas oficinas de escrita que se efetiva no ensino
médio. Mais especificamente, pretende-se refletir acerca da
importância da leitura do texto literário como responsável pela
construção de repertório e técnicas de escrita, bem como, a partir
dos temas “dissertativos” abordados por alguns contos, neste
caso, contos de Luiz Vilela, refletindo a cerca deles, desenvolver
textos dissertativo-argumentativos mais eficientes do ponto de
vista da força argumentativa e da organização da linguagem.

Palavras-chave: Leitura; Produção de textos; Contos; Luiz Vilela.

43
O NIILISMO EM “AXILAS E OUTRAS HISTÓRIAS
INDECOROSAS”, À LUZ DO PENSIERO DEBOLE

Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS)

Resumo: A presente comunicação visa discutir o volume de


contos “Axilas e outras histórias indecorosas”, do carioca Rubem
Fonseca, especificamente no que tange ao aspecto do niilismo
presente na obra, correlacionando-o com a obra do filósofo
italiano Gianni Vattimo. O principal conceito da obra do
pensador italiano é a noção de pensiero debole (pensamento
fraco/débil). A nomenclatura peculiar se refere a um
enfraquecimento do pensamento, e da própria noção de
finalidade da filosofia na contemporaneidade. Esse
enfraquecimento das noções absolutas da verdade filosófica é
uma marca da flexibilidade moral e ideológica do século XX,
quando, a partir do materialismo histórico, dentre outras
correntes, decretou-se a morte da metafísica. Esse arcabouço
teórico pode iluminar a supracitada obra de Fonseca pois ela, em
sua pluralidade existencial e moral, propõe justamente essa
aniquilação da verdade como conceito absoluto, elegendo novos
conceitos ou mesmo recuperando valores agora desprezados.

Palavras-chave: Niilismo; Pensiero Debole; Rubem Fonseca;


Gianni Vattimo; Conto.

44
SEQUÊNCIA DIDÁTICA: A CONTRIBUIÇÃO À
MELHORIA DO DESENVOLVIMENTO DO ENREDO EM
NARRATIVAS DE CONTOS

Sueli Aparecida Racanelli Da Silva (CPTL/UFMS)


Solange De Carvalho Fortilli (CPTL/UFMS)

Resumo: A produção de um texto coeso, coerente e em


conformidade com os traços do gênero ao qual pertence é um dos
propósitos do ensino da língua portuguesa na Escola Básica. Para
isso, é preciso levar os alunos a construir um caminho em sua
produção textual, a partir de um trabalho específico em sala de
aula. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é verificar, a partir da
aplicação de uma sequência didática, o adensamento do
elemento narrativo enredo no gênero conto literário. Nosso foco
é observar, a partir de estratégias de reescritas direcionadas pelo
docente, o ganho materializado no enredo, que contribui para
um texto mais coeso, coerente, mais denso. A opção
metodológica, a sequência didática, proporcionou ao aluno
escrever um primeiro textos, que permitiu visualizar os pontos a
serem melhorados. Posteriormente, desenvolvemos ações
específicas para saná-los, ou minimizá-los. Essas ações
compreenderam leituras e releituras de contos de Machado de
Assis e Luís Vilela, atividades que aprofundavam os saberes
sobre os elementos da narrativa, e reescrita de textos de outros
alunos, para que, ao corrigi-los, conhecessem o que lhes é

45
cobrado numa produção de texto. Os resultados mostram que,
ao realizar ações específicas a partir de sequência didática
visando um aprofundamento no desenvolvimento do elemento
literário enredo, o aluno reconstruiu seu texto de forma mais
coesa, delimitando informações a partir de segmentação por
períodos mais organizados e substituindo palavras de acordo
com o contexto, o que permite ao autor melhoria na competência
escritora.

Palavras- chave: Enredo; Sequência Didática; Reescrita.

46
Resumo de minicurso

LITERATURA E(M) CINEMA: POR UM


NOVO OLHAR SOBRE ADAPTAÇÃO

Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ)

Resumo: Diante da crescente demanda pelos estudos das


narrativas contemporâneas que recolocam em cena o diálogo
Literatura e outras linguagens, vimos propor uma reflexão sobre
Adaptação de textos literários pelo cinema. Pretendemos
discutir, do ponto de vista do pesquisador da área de Letras, o
conceito de adaptação (Hutcheon, 2006) e seus desdobramentos,
sobretudo quando erigidos a partir de condicionamentos prévios
que direcionam as análises usuais sobre o tema de forma
redutora. No processo de migração entre as narrativas literária e
fílmica, a perspectiva tradicionalista as estigmatiza,
respectivamente, em texto fonte e texto derivado (STAM, 2000),
numa ordem hierárquica quase insolúvel e avessa ao método
comparativista (CARVALHAL, 2006). Tais estigmas serão postos
em xeque a partir de tópicos da teoria literária circunscritos a: (1)
noção de sujeito, autoria; (2) postulados de originalidade,
continuidade e fidelidade; e (3) cadeia linear origem, meio e fim.

47
Como problematização da proposta, faremos, ainda, um breve
estudo comparativo do conto de Machado de Assis “Pai contra
Mãe” (Relíquias da Casa Velha, 1906) e o filme de Sergio Bianchi,
“Quanto vale ou é por quilo” (2005). Esperamos trazer, ao
debate, tópicos usualmente aceitos como dispositivos de
valorização e validação das narrativas em jogo e, em última
análise, da obra artística e do próprio discurso crítico sobre a arte
e que obliteram o nosso olhar sobre a produção artística na
contemporaneidade.

Palavras-chave: Adaptação; Literatura e cinema; Migração de


narrativas; Machado de Assis; Sergio Bianchi.

48
Palestras

OS DESGRAÇADOS RISOS: UMA COMPARAÇÃO ENTRE


"EU CHORO DO PALHAÇO", DE ALCIENE RIBEIRO LEITE,
E "PALHAÇO DA BOCA VERDE", DE JOÃO GUIMARÃES
ROSA
Julio Augusto Xavier Galharte (CPAN/UFMS)

ACERVOS LITERÁRIOS: A PRÁTICA, A TEORIA, A


EXPERIÊNCIA - MEU CASO DE AMOR COM MACHADO
DE ASSIS1

Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ)

Resumo: Relato de pesquisa realizada na Academia Brasileira de


Letras, no Arquivo Machado de Assis, do Centro de Memória da
ABL. A documentação, constituída majoritariamente de

1O texto completo pode ser conferido em edição da Revista Guavira, Três


Lagoas/MS, n. 23, p. 122-138, jul./dez. 2016. Disponível em:
<http://websensors.net.br/seer/index.php/guavira/article/view/461/425>

49
manuscritos, abre um leque de possibilidades interpretativas
sobre os perfis de Machado e permite reconhecer o foco oblíquo
com que o “bruxo” radiografa a sociedade carioca do século XIX
em sua passagem para o XX. A reconhecida obliquidade da lente
machadiana ganha novas cores e máscaras no exame cuidadoso
do acervo.

LENDO CONTOS DE LUIZ VILELA NA SALA DE AULA

Karina Torres Machado (SEE-SP)


Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN/UFMS)

Resumo: Este artigo apresenta a síntese de uma pesquisa-ação,


realizada em uma escola pública de cidade do interior do Estado
de São Paulo, que utiliza alternativas metodológicas de ensino
do texto literário. Buscamos ressignificar o papel ocupado pela
leitura de textos literários no atual Ensino Fundamental II. A área
de Língua Portuguesa em São Paulo oferece material com a
proposta de desenvolver competências de leitura e de escrita por
meio de leituras obrigatórias, textos instrumentais e fragmentos
que se apropriam do texto literário de modo utilitário, em prática
defasada e descontextualizada, aquém de uma proposta que
tenha centralidade no texto literário. Devido a isso, ocorre
descrédito no ensino de literatura e fracasso na formação de

50
leitores. Nosso referencial teórico teve por alicerce as reflexões
de Bordini e Aguiar no livro Literatura: a formação do leitor
- alternativas metodológicas (1993). As cinco propostas elaborados
pelas autoras nos possibilitaram flexibilizar a atuação em sala de
aula, promovendo o contato dos alunos com o texto literário,
formando leitores e despertando o gosto pela leitura literária.
Partimos da concepção de que o texto literário ultrapassa ao
informativo e ao utilitário e que cabe ao educador propor leituras
que promovam, para o aluno, a percepção estética, a ampliação
do horizonte de expectativa e a construção de sentidos de modo
consciente e linguisticamente competente, o que o contato com a
literatura proporciona de modo muito superior à proposta
curricular vigente. Também utilizamos os conceitos de leitura de
literatura na escola de Marisa Lajolo e de Regina Zilberman.
Verificamos que a proposta desenvolvida, com a inserção das
alternativas metodológicas e o trabalho com o texto literário,
contribuiu para a formação de leitores, o que a atual proposta
curricular do estado de São Paulo não tem propiciado.
Como corpus da pesquisa, valemo-nos da obra contística de Luiz
Vilela, inclusa em antologias destinadas ao público infanto-
juvenil, pois são contos com os quais os alunos se identificam,
pelo perfil das personagens, pelo enredo encenado e
pelo pathos vivenciado.

Palavras-chave: Escolarização da literatura; Formação de


leitores; Literatura Brasileira; Metodologias de ensino.

51
Texto de palestra
completo

LENDO CONTOS DE LUIZ VILELA NA SALA DE AULA

Karina Torres Machado (SEE-SP)


Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN/UFMS)

Resumo: Este artigo apresenta a síntese de uma pesquisa-ação,


realizada em uma escola pública de cidade do interior do Estado
de São Paulo, que utiliza alternativas metodológicas de ensino
do texto literário. Buscamos ressignificar o papel ocupado pela
leitura de textos literários no atual Ensino Fundamental II. A área
de Língua Portuguesa em São Paulo oferece material com a
proposta de desenvolver competências de leitura e de escrita por
meio de leituras obrigatórias, textos instrumentais e fragmentos
que se apropriam do texto literário de modo utilitário, em prática
defasada e descontextualizada, aquém de uma proposta que
tenha centralidade no texto literário. Devido a isso, ocorre
descrédito no ensino de literatura e fracasso na formação de
leitores. Nosso referencial teórico teve por alicerce as reflexões
de Bordini e Aguiar no livro Literatura: a formação do leitor
- alternativas metodológicas (1993). As cinco propostas elaborados

52
pelas autoras nos possibilitaram flexibilizar a atuação em sala de
aula, promovendo o contato dos alunos com o texto literário,
formando leitores e despertando o gosto pela leitura literária.
Partimos da concepção de que o texto literário ultrapassa ao
informativo e ao utilitário e que cabe ao educador propor leituras
que promovam, para o aluno, a percepção estética, a ampliação
do horizonte de expectativa e a construção de sentidos de modo
consciente e linguisticamente competente, o que o contato com a
literatura proporciona de modo muito superior à proposta
curricular vigente. Também utilizamos os conceitos de leitura de
literatura na escola de Marisa Lajolo e de Regina Zilberman.
Verificamos que a proposta desenvolvida, com a inserção das
alternativas metodológicas e o trabalho com o texto literário,
contribuiu para a formação de leitores, o que a atual proposta
curricular do estado de São Paulo não tem propiciado.
Como corpus da pesquisa, valemo-nos da obra contística de Luiz
Vilela, inclusa em antologias destinadas ao público infanto-
juvenil, pois são contos com os quais os alunos se identificam,
pelo perfil das personagens, pelo enredo encenado e
pelo pathos vivenciado.

Palavras-chave: Escolarização da literatura; Formação de


leitores; Literatura Brasileira; Metodologias de ensino.

53
INTRODUÇÃO

Este trabalho é o relato de uma pesquisa-ação[1] realizada

com o intuito de estudar práticas de ensino que contribuam para

uma escolarização mais efetiva de literatura no Ensino

Fundamental na rede Estadual do Estado de São Paulo, visto que

os textos literários são pouco explorados nesse nível de ensino,

em especial no ciclo II — e, quando estudados, são analisados

com objetivos que não os da apreensão da especificidade do

literário.

Nosso corpus tem a obra de Luiz Vilela como base literária

e se vale das proposições de Maria da Glória Bordini e Vera

Teixeira Aguiar no livro Literatura: a formação do leitor —

alternativas metodológicas, de 1993, como procedimento

metodológico central. A utilização das alternativas visa formular

caminhos para a inserção do literário nas séries que compõem o

ensino fundamental e resgatar o prazer da leitura nos alunos, tão

presente nos anos iniciais do ciclo I, fase em que a criança

54
demonstra um fascínio pela leitura “que vai diminuindo na

proporção inversa da escolarização da literatura”, como afirma

Claudio Mello (2010, p. 178).

Quanto ao referencial teórico, baseamo-nos nos conceitos

de escolarização postulados por Magda Soares, no livro A

escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil

(2006), e nos conceitos da leitura de literatura no contexto escolar,

de Marisa Lajolo, com os livros Literatura: leitores & leitura, de

2001, e Do mundo da leitura para a leitura de mundo, de 2002, e

Regina Zilberman, com os livros Leitura em crise na escola: as

alternativas do professor, de 1982, A leitura e o ensino da literatura,

de 1988, e A literatura infantil na escola, de 1998, como

questionamento ao ensino centrado no uso sistemático do livro

didático (ou apostilas da Secretaria de Estado da Educação), com

atividades repetitivas e pouco criativas.

Assim, os cinco métodos de ensino elaborados por Bordini

e Aguiar (1993) e os contos de Luiz Vilela construíram, na prática,

ferramentas que propiciaram ruptura e flexibilização do atual

55
currículo do Estado de São Paulo ao promover, no âmbito da

leitura e a partir da leitura literária, uma prática mais centrada

nas necessidades dos discentes, pois constituíram instrumentos

que auxiliaram o professor a promover a familiarização do aluno

com o texto literário, e propiciou, ainda, condições para a

construção do aluno como leitor. Isso porque reinventamos ―

alunos e professor ― as práticas e o currículo, o que nos permitiu

desenvolver, entre outros aspectos, o lúdico, a inventividade, a

plasticidade e a criatividade.

Esta pesquisa-ação promoveu, pois, práticas educacionais

estruturadas por métodos de ensino que privilegiaram a

adequação dos conteúdos veiculados pela proposta curricular e

a recepção do texto literário para a formação de leitores.

Nosso relato, na síntese que aqui apresentamos, procura

seguir o passo a passo da aplicação dos métodos, refletindo

rapidamente sobre os resultados alcançados.

1. NOSSOS PROBLEMAS, NOSSOS CAMINHOS

56
Pela análise dos últimos dados internacionais da avaliação do

ensino brasileiro, como o PISA (Programme for

International Student Assessment)[2], e de dados nacionais, como o

IDESP-2013, observa-se a ineficiência do ensino-aprendizagem

no cenário educacional brasileiro[3]. Fundamentado nos eixos da

leitura e da escrita como objeto das práticas a ser desenvolvidas

em Língua Portuguesa, o país não consegue índices satisfatórios,

o que ressalta a necessidade da inserção de novas práticas

educacionais na tentativa de converter tal cenário assustador do

nosso sistema educacional.

Resultados como esses, nos últimos anos, têm levado teóricos,

pedagogos e especialistas a pensarem em novos caminhos para

melhorar a educação e a eficiência do ensino-aprendizagem;

essas veredas podem ter seu enriquecimento no acesso à leitura

e na promoção de uma escolarização da literatura mais

adequada[4], em que o trabalho com o texto literário não seja feito

somente pela consonância com “uma dada situação de

57
comunicação – com base para o estudo de conteúdos, o

desenvolvimento de habilidades e competências” (BRASIL, 2008,

p. 46), como aponta e estrutura-se a Proposta Curricular do

Estado de São Paulo e a Legislação do Estado de São Paulo (SÃO

PAULO, 2010).[5]

Dessa maneira, na tentativa de despertar o gosto pela

leitura, formar leitores que priorizem a ação de ler e propor

práticas que escolarizem o currículo e acresçam sentido ao

ensino-aprendizagem dos alunos, buscou-se, através dos cinco

métodos elaborados por Bordini e Aguiar, verificar como tais

propostas podem ser válidas no processo de escolarização da

literatura depois de quase trinta anos de sua elaboração, e como

podem ser utilizados como ferramentas significativas para

reverter o atual contexto educacional do qual a leitura faz parte

― ou, como seria mais adequado dizer, do qual a leitura é parte

como discurso nos documentos oficiais, mas não se apresenta de

modo efetivo na prática cotidiana de sala de aula.

58
As atividades realizadas constituíram posturas e práticas

diferenciadas, contemplando ensino-aprendizagem no qual o

texto literário não priorize somente as tipologias textuais

(SCHNEUWLY e DOLZ, 2004), voltadas para as “organizações

internas básicas dos diferentes textos (narrar, relatar, prescrever,

expor e argumentar)” (BRASIL, 2008, p. 46), mas represente

práticas que veem no texto, particularmente, o literário,

propiciando caminho(s) que auxilie(m) os alunos a se tornarem

interlocutores por meio da reformulação argumentativa, da

recepção da obra literária e da adoção de uma postura crítica

quanto ao contexto posto.

Cabe observar, ainda, que os cinco métodos foram

planejados e aplicados através da consideração das carências

dessa classe de alunos, bem como foi respeitado o contexto sócio-

histórico dos discentes, para que a transformação dos mesmos,

por meio de obras literárias, ocorresse de forma significativa e

possibilitasse aprendizagem[6] no sentido mais amplo da palavra.

A execução da pesquisa-ação nos permitiu constatar que a leitura

59
dos contos literários, realizada no âmbito da teoria que a embasa,

foi capaz de recuperar as trocas comunicativas e compartilhar as

experiências de leitura, além de proporcionar aos alunos a

elaboração de diversas tipologias textuais e aperfeiçoar sua

competência comunicacional e social.

Desta forma, as alternativas metodológicas foram

aplicadas e realizadas, segundo as postulações de Bordini e

Aguiar (1993), com o intuito de confirmar sua validade e

atualizar seus procedimentos no processo de escolarização da

literatura no que diz respeito à inserção de textos literários, no

que hoje é denominado Ensino Fundamental II. Os contos de

Luiz Vilela constituíram um material riquíssimo de apropriação,

familiarização e meio para reflexão do real e, consequentemente,

como leitura propiciadora de transformação histórico-social,

devido às temáticas reais e similares às situações humanas e

mundanas vivenciadas diariamente pelos alunos.

Para que os alunos adquirissem essa postura, foram

utilizados contos que em sua maioria[7] integram as antologias de

60
Luiz Vilela destinadas ao público escolar, infantil ou juvenil, por

privilegiar temáticas próximas ao cotidiano dos alunos. Esses

contos tiveram publicação anterior nas coletâneas princeps do

escritor.

Cabe ressaltar que a leitura literária na escola foi

concebida e priorizada pelo simples ato de ler, que, por sua vez,

foi individual, já que a vivacidade da obra foi dada pelo leitor,

pela interação mútua entre sujeito produtor e sujeito

consumidor, sendo o leitor aquele que atualizou a leitura, aquele

que ativou suas instâncias significativas, como propõe Jauss, no

livro Estética da recepção e história da literatura (1989). Assim, o

contato com o texto literário, na íntegra, por meio da leitura

individual, dessacralizada, leitura despida de caráter impositivo

ou ideológico, bem como de qualquer preocupação

conteudística, foi imprescindível.

Nesse sentido, transformando o pressuposto da pesquisa-

ação em um norte de replicação da Sequência Didática aqui

exposta, para que o professor possa formar leitores, ele precisa

61
ser, antes de tudo, um leitor, um apaixonado pela literatura, uma

vez que compete ao profissional da educação criar diferentes

“estratégias que levam à prática da leitura (desde a alfabetização

ao domínio do texto) até a iniciação literária (desde a paráfrase

até a análise mais crítica)” (COELHO, 2004, p. 9) ― o que só é

possível a partir do repertório do professor, que seleciona e

apresenta diversas opções aos seus alunos, assim como prepara

metodologias, as repensa, as atualiza, as modifica, a partir do

convívio no cotidiano da sala de aula.

Adicionalmente, novas práticas educacionais são

necessárias, ou a retomada crítica de práticas exitosas

anteriormente, para a solução dos problemas hoje existentes e

para a promoção de um ensino flexibilizado e significativo,

pensado e planejado a partir do conhecimento do contexto

educacional e das transformações a serem obtidas pelo contato

direto com o texto, a fim de que este não seja visto apenas como

um mecanismo utilitário de compreensão da língua. Há que

desengessar o currículo, há que transformar o espaço-tempo

62
escolar, há que trabalhar com projetos, há que viver na sala de

aula o prazer de ensinar para ser revivido o prazer de aprender.

2. BORDINI E AGUIAR E AS ALTERNATIVAS

METODOLÓGICAS

A pesquisa-ação buscou apresentar práticas que

utilizaram e conceberam o texto literário como “algo que

exprime o homem e depois atua na própria formação do

homem” (SOARES, 1992, p. 75) pelo mecanismo de identificação

e de recepção de tais obras. Para isso, privilegiamos caminhos

que promoveram a dessacralização de tais práticas e formas de

transmissão do conteúdo literário, ao ressaltar maneiras de

propiciar ao aluno/leitor uma escolarização adequada do texto

literário, a fim de efetuar em sua leitura a aprendizagem sobre

literatura ― sua história, teoria e crítica ― e a aprendizagem por

meio da literatura.

63
Com isso, promoveu-se a escolarização da literatura como

um processo de construção de sentidos, ao propormos

alternativas metodológicas que visavam ampliar os parâmetros

curriculares com a utilização de textos literários e nos

possibilitaram, como docentes, práticas para flexibilizar o ensino,

no sentido de um trabalho adequado com o texto literário, que

“conduz mais eficazmente as práticas de leitura que ocorrem no

contexto social e as atitudes e valores que correspondem ao ideal

de leitor que se quer formar” (SOARES, 2006, p. 25), obedecendo

“a critérios que preservem o literário, que propiciem à criança a

vivência do literário, e não uma distorção ou uma caricatura

dele” (SOARES, 2006, p. 42).

Assim, a pesquisa-ação visou privilegiar o contato com a

obra literária, a fim de conduzir os estudantes a perceberem, pelo

contato com o texto literário, o reflexo de seus sentimentos, a

manifestação ativa da cultura de nossa sociedade, percebendo,

no literário, veículo que transmita um ser-estar no mundo,

enfatizando a percepção de que “a leitura, como muitas coisas

64
boas da vida, exige esforço e [...] o chamado prazer é uma

construção que pressupõem treino, capacitação e acumulação”

(AZEVEDO, 2004, p. 38).

Nesse sentido, o primeiro método planejado foi o

científico, por ter em sua fundamentação teórica a busca nas

diversas áreas do conhecimento, nos dados concretos, por ser

uma ciência da confirmação e da refutação de hipóteses,

trabalhando com concepções, explicações pré-concebidas a

serem confirmadas ou não pelo sujeito na sua relação com o

objeto.

Quanto ao segundo método, o criativo, associado a

práticas artísticas, foi utilizado por conceber a criatividade como

método lúdico que ultrapassa o puro saber e se converte em

conhecimento, visto que propõe a apropriação e a transformação

da realidade.

Já o terceiro método, o recepcional, foi organizado por

trabalhar a partir da recepção da obra pelo leitor, colocando em

discussão o próprio conceito de literatura, e exigindo revisão

65
sequencial e reformulação constante do horizonte de expectativa

do aluno; o método se baseia nos postulados de Jauss, que

defende que as concretizações de um texto se modificam

constantemente, segundo a sociedade e as leituras feitas por cada

sujeito histórico.

Por estruturar-se em torno da linguagem, o quarto

método, o comunicacional, visou exteriorizar o pensar, a partir

da teoria comunicacional de Roman Jakobson, para quem a

comunicação é constituída de atos comunicacionais que

compreendem e assumem ordens hierárquicas diversificadas,

determinando a intenção do interlocutor com o interlocutário.

Por fim, nosso procedimento metodológico norteou-se

pelas propostas do método semiológico, tendo por desiderato

“transformar a aprendizagem numa prática cotidiana de

intercâmbio e coexistência de valores diferenciados, que elegem

a linguagem literária ou outras linguagens como veículo de

circulação” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 132).

66
3. LUIZ VILELA CONTISTA E A LEITURA ESCOLAR

Mineiro de Ituiutaba, Luiz Vilela[8] — que aos 13 anos

escreveu seus primeiros contos — nasceu em 31 de dezembro de

1942. O escritor conta, atualmente, com sete coletâneas de contos.

Muitos desses contos estão redistribuídos em quinze antologias,

das quais ao menos doze são, explicitamente, voltadas para o

público do Ensino Fundamental, além de quatro novelas e cinco

romances.

Suas obras são reconhecidas por conter narrativas sempre

“embasadas pelos grandes temas permanentes da cultura

humana: a ética, o amor, a moral, o desejo, a civilização, o

sagrado, o tempo” (RAUER, 2006, p. 289) ― e apresentam, como

estratégia narrativa central, o diálogo.

Desse modo, constrói um enunciado significativo que se

revela na transmissão e na reflexão de valores; estes não buscam

seu sentido na imposição da repressão à sociedade, nem se

67
fundamentam no plano religioso ou na glorificação da violência

entre os seres, mas se centram na valorização da solidariedade,

da compaixão[9], do respeito, ou seja, dos valores que devem ser

solidificados e repensados para a convivência harmoniosa entre

os seres humanos.

A utilização dos contos de Luiz Vilela representou a

tentativa de o homem urbano se desdobrar dentro de suas

aflições, complexidades, isolamentos, na busca de resolver-se, de

se encontrar. Assim, ler as obras do escritor Luiz Vilela cumpriu

diversos papéis no processo formativo de cada aluno como

cidadão e no processo de formação dos alunos como leitores, por

conter e sugerir “o arbitrário da significação, a fragilidade da

aliança entre o ser e o nome e, no limite, a irredutibilidade e a

permeabilidade de cada ser” (LAJOLO, 2001, p. 35), em definição

apriorística, teórica, proposta pela estudiosa, que não se refere

em específico à obra de Vilela, mas ao papel da literatura em

geral no âmbito escolar.

68
Em seus temas, em sua estrutura e em seu engenho com a

escrita, Luiz Vilela mostrou-se o protagonista da trama que

desenvolvemos: a formação de leitores dos anos finais do Ensino

Fundamental do Estado de São Paulo; isso se deveu, em muito,

à circunstância de que sua literatura é próxima aos anseios dos

estudantes, à vivência, às suas existências cotidianas.

Vejamos uma síntese dos pressupostos teóricos do

trabalho desenvolvido ao longo do projeto.

As atividades foram realizadas com os estudantes do 8º

ano de uma escola pública do estado de São Paulo e

evidenciaram como a proposta curricular pode ser ampliada sem

se distanciar dos tópicos que a fundamentam, no que diz respeito

ao ensino de língua portuguesa e literatura para o 8º ano do

Ensino Fundamental II. Em outras palavras, cumprimos o que é

prescrito pela Secretaria de Estado da Educação e adicionamos

ao processo ensino-aprendizagem a leitura literária, o que

propiciou ganhos expressivos para os alunos diante da

69
experiência anterior sem a utilização de leitura literária nos

moldes aqui expostos.

A aplicação das alternativas metodológicas contou com

um interlúdio sobre o autor em estudo, a fim de motivar os

alunos a estabelecer um relacionamento amistoso entre eles e o

tema em estudo, assim como para uma melhor apreensão do

conteúdo proposto. Além disso, os alunos, motivados pelas

diversas temáticas, puderam entrar em contato com vários

contos do escritor Luiz Vilela, selecionados com o intuito de

levar a literatura a cumprir seu papel social, por abordar o tema

em estudo e desestabilizá-lo, questionando seus conhecimentos

internalizados, e suscitando, por meio da investigação do e pelo

texto, o aprimoramento de suas asserções, para confirmá-las ou

modificá-las.

A leitura proporcionou os alunos encontrarem-se na

fragilidade da personagem, gerada pela familiaridade de

incompreensão do mundo dos adultos, devido a suas aflições e

70
infortúnios, levando-os a aprenderem desde cedo como

sobreviver em um mundo nefário e cheio de ingratidão.

Dessa maneira, o texto atualizado por meio da leitura dos

alunos questionava a realidade vigente ao provocar, nas palavras

genéricas sob o impacto da leitura literária proposta por um

escritor cujo trabalho ficcional ou poético é quase sempre

destinado ao público juvenil, “uma espécie de comunhão

emocional que pressuponha prazer, grande identificação e,

sempre, a liberdade para interpretar” (AZEVEDO, 2004, p. 45).

A apreensão pelos alunos da estrutura dos diversos

contos de Luiz Vilela em diálogo com o referente histórico do

narrador e do aluno-leitor constituiu elemento indispensável do

trabalho realizado, por ser matéria-prima capaz de fortificar os

ânimos vividos pela realidade e propor novos caminhos, novas

alternativas na busca da recuperação de valores tão

imprescindíveis para a vida em coletividade, como o amor, a

compaixão, o companheirismo, a solidariedade.

71
Nessa perspectiva, a literatura cumpriu seu papel de ser

uma prática “de transgressão, alimento para o imaginário e

forma de interação com o outro, além de portar uma infinidade

de sentidos e significados que todos os dias são descobertos e que

devem ser sempre compartilhados” (FARIA apud SOUZA, 2004,

p. 58).

A sala foi utilizada como laboratório para a exploração

das iniciativas investigativas dos alunos e pelo levantamento de

hipóteses; a classe desempenhou seu papel de unir proposta

curricular e ensino flexibilizado, além de possibilitar ao

estudante expandir seus conhecimentos de maneira crítica e

ativa; desse modo, atingimos o nível metacognitivo, ao ver o

texto literário ser ferramenta capaz de vivificar experiências

mundanas e superá-las, ampliá-las e materializá-las nos diversos

gêneros textuais como elemento para se comunicar com o

mundo.

Os textos literários auxiliaram a prática de novas

alternativas metodológicas de ensino por romper o imobilismo

72
do professor frente à adoção das propostas e dos materiais de

ensino, por oportunizar um ensino mais ativo e condizente com

as necessidades reais dos alunos, ampliando seus

conhecimentos, seu poder de reflexão e sua capacidade de

comunicar-se por meio de estruturas específicas, como a de

alguns gêneros textuais.

Assim, o trabalho com o texto literário como alternativa

de escolarização coerente e condizente com a proposta curricular

possibilitou a alteração e a expansão dos horizontes de

expectativas dos leitores, por se opor às convenções e por nos

levar a agir criticamente, ao romper a mediocridade em que a

sociedade ― assim como o ensino ― está mergulhada.

Ao final da aplicação dos cinco métodos, percebeu-se a

importância do docente na promoção de um ensino mais

humano e engajado histórica e socialmente, estando em sua

autonomia o poder de transformar e viabilizar o acesso à leitura

literária e mudar, de maneira impactante, o percurso acadêmico

dos discentes, com a leitura de obras que revelam a expressão

73
dos sentimentos vivenciados pelos alunos e desencadearam um

diálogo entre leitor e texto para a constituição de sujeitos mais

críticos e conscientes das vantagens que a leitura pode lhes

proporcionar.

Para verificar em detalhe os passos da sequência didática,

o planejamento das aulas, o dia-a-dia do projeto na interação

entre docente, aluno e sala de aula, consulte a dissertação de

Karina Torres Machado, orientada pelo Prof. Dr. Rauer Ribeiro

Rodrigues, disponível no Banco de Dissertações da UFMS ou na

aba Fortuna Crítica do Blog do GP Luiz Vilela, em

<http://www.4shared.com/office/YTjVr943ba/

KARINA_-_VERSO_DISSERTAO_RAUER.html> (ver

MACHADO, 2015).

4. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE OS RESULTADOS

Com o objetivo de

74
i) incentivar hábitos de leitura por meio da
introdução de textos literários do escritor Luiz
Vilela;
ii) escolarizar mais eficazmente o ensino de língua
portuguesa do atual Ensino Fundamental do
Estado de São Paulo;
iii) formar estudantes mais reflexivos;
iv) formar cidadãos menos passivos;
v) promover o letramento;
vi) promover a cidadania dos estudantes; e
vii) formar leitores literários;

considerando aspectos teóricos da formação do professor que

incluem

 a leitura de centenas de textos literários para


formar um corpus a partir do qual se elege a leitura
significativa para cada turma;
 o diálogo que esses textos literários estabelecem,
como corpus de análise literária no âmbito da
narratologia e da historiografia literária, com
concepções teóricas sobre a literatura e sobre o
texto literário;

75
 o estudo aprofundado das teorias sobre leitura,
em especial as mais contemporâneas;
 os estudos teóricos brasileiros sobre a
escolarização da literatura;
 os relatos de experiências didáticas em sala de
aula com a leitura literária;

foram realizadas atividades em sala de aula ― no âmbito do

projeto que aqui se relata ― com os seguintes pressupostos:

1. a inserção de textos literários coerentes e


próximos às vivências dos estudantes;
2. a utilização de alternativas metodológicas que
pudessem flexibilizar e diversificar as
determinações do currículo;
3. o oferecimento de um ensino-aprendizagem mais
significativo ao discente.

Vejamos os resultados a partir da aplicação de cada um

dos métodos.

MÉTODO CIENTÍFICO

76
O método científico funcionou como uma excelente

atividade, pois ativou no aluno, na sintética proposição de um

estudioso do tema, “cenas suscitadas pelo texto, e as relacionou

aos outros saberes estáveis que nelas estão instanciados”

(GERHARDET, 2009, p. 80). Além disso, a atividade

proporcionou ao professor “meios de compreender quais são e

como se articulam os elementos e processos presentes nas cenas

conceptuais reveladas nas respostas dos alunos” (GERHARDET,

2009, p. 80).

Do modo complementar, o método, além de destacar a

função “formadora da leitura, pois seu desenvolvimento

incrementa no leitor a capacidade de compreender o mundo e

investigá-lo”, simultaneamente, pôs “em tela de juízo o

comportamento que promove obras e as considera boas, porque

transmitem valores socialmente úteis” (ZILBERMAN, 1998, p.

30) ― ou seja, realizamos o que os estudos teóricos sobre

escolarização e leitura apregoam.

77
Com a aplicação do método científico e das produções

finais entregues pelos alunos, vimos que o simples contato com

o texto não gera a explosão do ato de ler, é preciso, antes de tudo,

possuir as competências de leitura, ter a disposição e a intenção

de ler. Essas atitudes foram ativadas e determinadas pela

afinidade entre texto e leitor e geradas pela necessidade de

exteriorizar seu pensamento, em processo conduzido, mediado,

estimulado pelo professor e pelo convívio do debate dos contos

entre todos os alunos.

Os trabalhos apresentados a partir da leitura estimulada

pelo método científico também evidenciaram que os discentes

transpuseram o nível literal dos contos lidos, em movimento

ascendente realizado pelos alunos, na prática de promover

interação de componentes do texto ao conhecimento prévio para

processar as informações.

MÉTODO CRIATIVO

78
A prática do método criativo incitou a percepção das

diferenças existentes entre as duas escritas: a literária e a não

literária ― pois a primeira, além de apresentar uma realidade

conhecida e vivida por todos, como a segunda empiricamente

também é, traz, sobre a temática tratada, uma conclusão, uma

reflexão a mais, de caráter do intrínseco ao humano em sua

complexidade no mundo. A realização das atividades ofereceu

aos alunos modelos e interpretações da realidade social, para

poderem agir criticamente.

Ao término da primeira análise, vimos que as pretensões

das autoras Bordini e Aguiar (1993) na elaboração do método

criativo continuam vigentes, já que os textos produzidos pelos

alunos demonstraram, nos termos por elas preconizados,

“eficácia expressiva”, “domínio técnico” e “inovação formal”,

possibilitando aos alunos a supressão de uma falta, ou seja, a

expressão individual que os revela e, de certo modo, os completa.

MÉTODO RECEPCIONAL

79
Com a aplicação do método recepcional observamos

como a leitura ressalta o desejo dos alunos de transpor normas e

preceitos julgadores, deslocando-se para uma visão mais

humanística e solidária: a necessidade de conceber novas

oportunidades para a reconstrução de sua história e, acima de

tudo, amar a si e ao próximo, como salientam as narrativas de

Luiz Vilela utilizadas, pois, para o autor, o amor manifestado de

todas as formas e por todos os seres é o coração de sua obra,

como enfatiza Wania Majadas em obra que já mencionamos

(MAJADAS, 2000).

Nessa etapa, os textos produzidos pelos alunos souberam

“[ser] persuasivas”, conforme prescrito na proposição dos

métodos, “no apelo, na forma, na ilustração, no layout, na

apresentação”, uma vez que os textos foram persistentes e

incisivos, ao tomarem “consciência das alterações e aquisições,

obtidas através da experiência com a literatura” (BORDINI;

AGUIAR, 1993, p. 90).

80
Ao examinar os textos elaborados pelos alunos no método

recepcional vimos como relacionaram as várias leituras feitas ―

notícias, reportagens, anúncios, manchetes, contos ― com o tema

em estudo, e como assimilaram as concepções sociais e históricas

que constituíam o referente de cada texto, assim como souberam

expressar aquilo que lhes eram intrínsecos quanto à formação

enquanto sujeitos. Tais produções mostram que os alunos

reorganizaram ― conforme proposto pela estética da recepção

― seus “sistemas de referência, [aqueles sistemas que] o

repertório do texto evoca” (ISER, 1996, p. 15) para uma

assimilação das instruções dadas pelo autor, na tentativa de

construir o sentido do texto, o que “requer do leitor atividades

imaginativas e perceptivas, a fim de obrigá-lo a diferenciar suas

próprias atitudes” (ISER, 1996, p. 16).

As cenas criadas pelos estudantes, sempre nos termos

teoricamente previstos, “relacionam o texto à realidade dos

quadros de referência e, em consequência, nivelam com o mundo

o que surgiu através do texto ficcional” (ISER, 1996, p. 35), a fim

81
de enaltecer a fusão de diferentes horizontes que promovem a

libertação para novas percepções.

Tais percepções cognitivas foram ativadas graças à

maestria da escrita do autor Luiz Vilela, que soube, por meio de

narrativas breves, apresentar os dramas das existências dos

homens, conduzindo seus leitores à reflexão pela harmonia

textual de seus contos, narrativas que, por conterem princípios

heterogêneos, apresentam alto “valor estético” (ISER, 1996, p.

43), o que possibilita, conforme teorizou Iser, a emancipação

leitora.

Constatou-se, ao final da análise da produção textual, que

a fusão de horizontes de expectativas do autor, Luiz Vilela, ao

expor o homem em sua fragilidade e isolamento em qualquer

lugar em que ele esteja (MAJADAS, 2000), foi traduzida nos

textos criados pelos alunos, o que, nas proposições de Bordini e

Aguiar (1993, p. 83), consiste na “valorização das obras [...] na

medida em que, em termos temáticos e formais, produzem

alteração ou expansão do horizonte de expectativas do leitor por

82
oporem-se às convenções conhecidas e aceitas [anteriormente]

por ele”.

Observamos, também, que o aluno adquiriu status de

sujeito histórico ao relacionar e interagir com os demais, ao

mobilizar conhecimentos internalizados e do senso comum para

questionar a atuação de seu grupo e confrontar as ideias

discutidas na sala de aula.

MÉTODO COMUNICACIONAL

Quanto ao uso do método comunicacional na

escolarização do texto literário, percebemos que o aluno

apreendeu a dimensão social implicada na esfera linguística e

materializada nas funções da linguagem, sabendo desvinculá-la

do estudo cristalizado do texto, a partir de nossa estratégia de

propor ensino de literatura que resgate, nos termos da

metodologia proposta, “o lado socializante dos fatos

comunicativos literários” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 109).

83
Os trabalhos feitos apontaram que os alunos começaram

a discernir as diferentes formas que os textos podem assumir,

bem como fazer uso de uma linguagem mais apropriada,

criando, assim, uma consciência artesanal um pouco mais crítica

e preocupada, ao observar as particularidades solicitadas para a

escrita, bem como as intenções dos processos comunicativos

existentes na elaboração de um texto.

As atividades realizadas possibilitaram aos estudantes

encontrar as funções comunicacionais presentes em cada texto,

dominar os gêneros utilizados e usá-los com desembaraço, assim

como possibilitou a eles, na práxis, efetivarem a proposta teórica

de “com maior agilidade, [efetivarem] a situação irreproduzível

da comunicação verbal, em que realizamos, com o máximo de

perfeição, o intuito discursivo que livremente concebemos”

(BAKHTIN, 2003, p. 304).

Ao término da atividade e das exposições dos diagramas

(técnica de que nos valemos na ocasião), verificamos que a

utilização do método comunicacional permitiu a projeção do

84
aluno/leitor dentro do texto, agindo e refletindo sobre ele, ao

mesmo tempo em que percebia suas tramas composicionais e o

poder que tinha para modificá-las a partir de suas intenções e

concepções históricas e sociais. Comunicar-se, nesse contexto,

significou a implicação de uma existência social expressada a

outro sujeito a partir de uma vivência real de cada aluno e do

conjunto dos discentes.

MÉTODO SEMIOLÓGICO

O ensino baseado no método semiológico desvencilha o

estudo dos textos denominados clássicos, consagrados, pois

compreende a sociedade como um conjunto de vozes, “atitude e

ações, individualizadas e pessoalizadas, que, sem embargo,

podem conviver mesmo na dissonância e nas contradições,

alimentando-se justamente dos desvios” (BORDINI; AGUIAR,

1993, p. 132). Portanto, proporciona ao aluno a oportunidade de

portar-se como sujeito social e identificar as ideologias

observadas por ele em relação à leitura literária na escola.

85
A conciliação de atividades curriculares que contemplam

o método semiológico constituiu-se em uma prática importante

por possibilitar ao aluno conhecer e expressar sua

individualidade, ao passo que o ensinou a articular os signos

para construir suas trocas linguísticas e seus vínculos sociais.

Desta maneira, a alternativa metodológica aplicada em

sala de aula rompeu os horizontes de expectativas dos alunos, ao

possibilitar a reflexão cognitiva, por meio da obra literária,

através da prática de leitura adotada pela escola e as relações que

se originam da leitura individual coletivamente partilhada. São

atos que denotam uma abordagem do ensino literário menos

formal, que leva em consideração a experiência de vida, a

história e a prática linguística dos alunos, cumprindo as

exigências dos PCNs e ampliando a estreita proposta curricular

padrão.

A entrevista, as discussões realizadas, as atividades orais,

a leitura dos contos e a produção textual permitiram que os

alunos encontrassem, refletissem e formassem uma atitude

86
semiológica, ao materializar no texto as intenções ideológicas

transmitidas nas leituras e ao possibilitar ao leitor realizar o

desiderato teoricamente proposto de “fazer parte de um mundo

social mais complexo, no qual ele pode reconhecer-se como

sujeito ativo do seu grupo social e não um mero observador”

(BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 135).

Os trabalhos materializados nas atividades apresentadas

no jornal, produto final do método semiológico, ressaltaram os

ganhos significativos que a escolarização da literatura no ensino

― por intermédio do projeto que aqui se relata ― despertou, por

promover a atitude criativa e social dos alunos, como sujeitos

históricos e atuantes em sua realidade, que, por meio dos

diversos gêneros textuais estudados, e, em especial, do contato

estreito e continuado com o texto literário; em suma, o processo

possibilitou aos discentes se reconhecerem como sujeitos, de

modo que ganharam e impuseram suas próprias vozes, como

sujeitos e como coletividade.

87
Essa inserção do leitor e do texto na mesma esfera

comunicativa permitiu a criação artística do discente e a

ampliação de seus conhecimentos através da exposição dos

textos literários, fontes para que “o real pudesse converter-se em

objeto de capacitação e tornar-se visível” (CASSIRER, 1972, p.

22).

Neste momento, percebemos que cabe ao professor

evidenciar a leitura literária cotidiana como uma atividade que

permita adquirir saberes, perceber e decifrar as relações

existentes entre os textos, encontrar e posicionar-se ante as

ideologias transmitidas, já que ler literatura acima de tudo é

refletir, é pensar, é reescrever e encontrar no texto significados

para a vida. No entanto, tal ação só será difundida se o docente

tiver internalizado o ato concreto e diário da leitura literária,

quer dizer, se o docente for apaixonado pela leitura, ser leitor

assíduo de poemas, contos, novelas e romances, o que o faz,

também, um leitor do mundo, possibilitando plena liberdade de

acesso aos livros pelos alunos e ampla compreensão da

88
importância da literatura no âmbito escolar e no futuro daqueles

jovens cidadãos.

5. OS MÉTODOS EM 2014

O contato com diversos contos de Luiz Vilela, permeados

pelas teorias que embasaram cada alternativa metodológica e

sua interligação com os conteúdos postulados na Proposta

Curricular do 8 º ano do Ensino Fundamental do estado de São

Paulo, mostraram as trocas de experiências ocasionadas pelo

contato com o texto literário e os processos mobilizados pelos

alunos para possibilitar a compreensão e a intertextualidade com

os temas discutidos, para salientar a reflexão e a importância da

inserção de textos literários em consonância com a proposta

curricular ― e, se eventualmente for o caso, de modo

complementar e para além do currículo mínimo padrão.

89
A pesquisa-ação desenvolvida procurou apontar que a

mudança de atitude no contexto educacional reside na figura e

em iniciativas do professor, que, utilizando de sua autonomia,

pode propiciar aos alunos uma proposta diversificada que

atenda aos objetivos maiores do processo ensino-aprendizagem,

que incite os alunos a agirem por meio do texto literário, a

manifestarem seu posicionamento e suas reflexões em torno de

uma temática. Por isso, o professor deve intervir assiduamente,

dialogar, interagir com os discentes, apontar as melhorias

necessárias, despertar sua reflexão, propor e planejar leituras

diversas, citando livros lidos, promovendo debates, contando

histórias, etc. ― o professor deve sempre ser um desafiador que

permite ao seu aluno romper a cada dia com os horizontes de

expectativa vigentes.

O trabalho, baseado nos métodos, tentou unificar as

incongruências que permeiam a leitura de literatura na escola,

tendo a tarefa de “pensar a obra e o leitor e, com base nessa

interação, propor meios de ação que coordenem esforços,

90
solidarizem a participação nestes e considerem o principal

interessado no processo: o aluno e suas necessidades enquanto

leitor” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 40-41).

Desta forma, a educação que tenha por suporte uma

metodologia que ofereça resultados positivos para o aluno e,

também, para a unidade escolar, tem de considerar, no ato de

aprender, as ações que envolvem aos discentes e suas

necessidades, visando dar uma finalidade ao ensino, contendo

em seus domínios posturas ideológicas diversas e soluções para

as mais inusitadas situações sócio-históricas.

Concluiu-se que o trabalho com métodos, em consonância

ao prescrito pelas autoras das metodologias alternativas, “limita

o autoritarismo do sistema educacional, por não depender de

alvos pré-estabelecidos e imutáveis, e pressupõe uma atuação

docente flexível, pois não permite a repetição rotineira de

atividades” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 42).

Assim sendo, a inserção do texto literário, como forma de

escolarização da literatura, nos termos dos conteúdos postulados

91
pelos PNCs, propiciou flexibilizar a prática docente, indo muito

além do ensino dos gêneros textuais, que tem enrijecido e

apequenado a prática leitora, talvez por utilização mecânica e,

com certeza, por esquivar-se do estudo cotidiano e intenso de

textos literários ― como literatura e não instrumentalizados e

operacionalizados para outros fins ― e, repetimos, por esquivar-

se do estudo cotidiano e intenso de textos literários de grandes

autores, através de reflexão e de planejamento constantes que

aprimorem as competências proporcionadas pelo ensino, dentro

da esfera da transversalidade que permeia os gêneros

discursivos, entre eles com peso maior, intenso e decisivo, o texto

literário.

As práticas desenvolvidas na pesquisa aprimoraram o

conhecimento dos discentes pelas técnicas, teorias e

planejamento utilizados, o que fomentou uma escolarização

literária real e efetiva da turma, conquistada pela

disponibilidade do material de leitura, bem como pela escolha

deste, e pela imersão em um ambiente de letramento, como

92
postula Maria do Rosário Mortatti (2004, p. 107), a fim de romper

a estrutura tradicionalista da escola, ao mostrar que é possível

trabalhar com a literatura no ensino fundamental ― aliás, mais

do que possível, necessário, o que urge se efetivar na sala de aula,

para além dos discursos que enfatizam sua necessidade, mas não

fazem da pregação uma ação cotidiana, reiterada, constante,

imprescindível no dia a dia escolar.

Portanto, consideramos que o gênero literário conto foi o

elemento primordial deste trabalho, visto que permitiu realizar

todas as assertivas mencionadas anteriormente e promover

deleite na leitura literária e formação de leitores literários;

importante também a seleção temática coerente com as

necessidades dos alunos e adequada ao postulado nos PCNs

para a faixa etária dos alunos. Para tanto, foi fundamental, no

âmbito do gênero conto, e por suas características estilísticas e

conteudísticas, trabalharmos com um único autor, Luiz Vilela.

Esse conjunto de fatores motivou os alunos a lerem os textos

literários, sem manifestar a cada nova atividade qualquer fastio

93
ou descontentamento com a leitura, pois, por abranger as mais

variadas temáticas, funcionou, para retomar uma definição de

literatura, como uma espécie de “poliedro capaz de refletir as

situações mais diversas de nossa vida real ou imaginária” (BOSI,

1998, p. 31) ― expressa pela voz do Prof. Rauer, em uma aula de

nosso mestrado, assim é a obra de Luiz Vilela: um poliedro que

refrata infinitas faces do humano.

A experiência com o texto literário foi transformada em

comunicação social a partir de uma postura receptiva das

divergências impostas pela vida, uma vez que foi contemplada

por meio de contação de histórias, rodas de leituras, leituras

individualizadas, dramatizações, interações participativas

fomentadas pelas estratégias de leitura, discussões e debates,

resumos, entrevistas, produção textual, ilustrações,

intertextualidade, etc.

O contato com o texto literário e a leitura individualizada

que priorizou o tempo e a compreensão de cada aluno, levou-os

à abrangência da diversidade dos textos e das obras, tirando-os

94
daquele mundo monocromático em que viviam por não estarem

familiarizados com a leitura.

Desta forma, as alternativas metodológicas aplicadas

mostraram-se vigentes e passíveis de adaptações nos mais

variados contextos, desde que haja vontade e disponibilidade

docente, comprometendo-se com a ação de despertar a

curiosidade nos alunos, bem como pela constatação da

disponibilidade e da validade dos materiais a serem utilizados.

Nesse sentido, é preciso primeiro que os profissionais

adquiram o prazer e internalizem a importância de ler para que

possam, em seguida, despertar o prazer e o gosto pela leitura.

Somente reeducando os profissionais é que conseguiremos

apontar aos alunos o que há de tão fantástico na leitura.

Pressupondo tais ações, o trabalho baseado nas alternativas

metodológicas pode tornar-se uma prática transformadora e

enriquecedora ao conciliar o discernimento da atividade e da

seleção literária coerente com a mediação do professor,

95
propiciando caminhos para despertar o prazer de envolver-se na

atividade proposta e formar o gosto de ler.

CONCLUSÃO

A pesquisa-ação aplicada apresentou uma prática

flexibilizada e escolarizada do currículo, uma vez que a

modalidade de pesquisa-ação concebida dentro do contexto

educacional visou, nos termos teóricos do que é realizar uma

pesquisa-ação, “minimizar os usos meramente burocráticos ou

simbólicos e maximizar os usos realmente transformadores”

(THIOLLENT, 2007, p. 81). Tínhamos sempre presente o objetivo

de promover a participação dos sujeitos na busca de soluções aos

seus problemas e reafirmar “o contato com as situações abertas

ao diálogo com os interessados, na sua linguagem popular”

(THIOLLENT, 2007, p. 81).

96
Assim, as atividades descritas evidenciam a necessidade

de promover a escolarização literária no âmbito do atual

currículo educacional com alternativas metodológicas capazes

de explorar as situações problemas dos participantes de maneira

real, abrangente e significativa, como as elaboradas por Bordini

e Aguiar.

Os métodos analisados motivaram o apreço pela leitura,

porque propiciaram contato direto e instigante com o texto

literário, transpuseram a mesmice diária e fragmentada imposta

pelo uso do livro didático (ou pelas indefectíveis apostilas) e

promoveram aos alunos um caminho de transformação, de

reflexão crítica e de conhecimento.

Nesse sentido, a escolha dos contos de Luiz Vilela foi

essencial para o resultado que pretendíamos, por conterem em

suas tramas narrativas a arte da brevidade, da forma, do diálogo,

da exatidão, da escrita planejada e pensada ― e, em particular, o

que se mostrou decisivo, pela temática que encenam, pelos

dramas que revivem, pelos anseios que mobilizam, pelas ações

97
enredadas ― enfim, pelo complexo literário que engendram na

representação do ser humano de todos os tempos em um hic et

nunc, um aqui e agora empático ao dos alunos, o que lhes

proporcionou identidade com o texto lido e o meio de

transformar a realidade constatada, além de atitude engajada e

crítica no contexto de recepção das obras.

O texto literário deve ser visto e utilizado como aliado

educacional e social, por evidenciar, promover e gerar, em suas

tramas narrativas pessoais e universais, uma identificação ímpar

e de caráter atemporal. Para isso, o gosto literário deve ser

evidenciado, primeiro, pelo professor, pois só ele, amando a

leitura, conseguirá envolver seus alunos e conduzi-los ao mesmo

caminho.

O desenvolvimento das alternativas metodológicas

confirmou ainda que o gosto literário está potencialmente

presente nos alunos, escondido e sufocado na avalanche de

conteúdos inoperantes e mal-sistematizados à qual são expostos

diariamente. Desta maneira, cabe ao professor despertá-lo,

98
resgatá-lo das entranhas em que foi emaranhado pelo currículo

ou por práticas inadequadas, para trazê-lo ao imprescindível

espaço que ele tem nas trocas de experiências que constituem o

ser humano. Mais que um direito, como defende Antonio

Candido (2011), constatamos ― com a realização do projeto aqui

relatado ― que a literatura é uma necessidade, devendo ter

papel preponderante no ensino, caso queiramos ensino que

mereça grau de excelência, caso queiramos que nossas escolas

cumpram o papel humanístico, social, educacional e histórico

que delas esperamos.

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__________

Notas

[1] Conforme Michel Thiollent, no livro Metodologia da pesquisa-ação: “um


dos principais objetivos dessa proposta consiste em dar aos pesquisadores e
grupos de participantes os meios de se tornarem capazes de responder com
maior eficiência aos problemas da situação em que vivem, em particular sobre
forma de diretrizes de ação transformadora” (THIOLLENT, 2007, p. 10).

103
[2] Os dados do PISA (Programme for International Student Assessment)
revelam que de 56 países avaliados, no quesito leitura, o Brasil ocupa a 54ª
posição, ficando abaixo de países com alguma similaridade histórica com
nosso país, como Chile, Costa Rica e México. Disponível em: <
http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2013/coun
try_note_brazil_pisa_2012.pdf >, acesso em 05 ago. 2014.

[3] O IDESP apontou uma diminuição de 0,7 percentuais nos anos finais do
Ensino Fundamental, atingindo a média de 2,50, menor que a do ano anterior
(2011), que foi de 2,57. Índices estes abaixo das metas projetadas pelo IDEB
(Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) para o ano em análise – 5.1.
Disponível em: < http://ideb.inep.gov.br/resultado/ >, acesso em 05 ago. 2014.

[4] Sobre o processo de “escolarização adequada”, ver o artigo “A


escolarização da literatura infanto-juvenil”, de Magda Soares (2006).

[5] Na prática, as propostas apresentadas para modificar os PCNs, ou


atualizá-los, na BNCC ficam muito aquém do desejável, e até mesmo pioram
o quadro. Ao menos é o que se depreende do que foi divulgado até o
momento.

[6] O planejamento da pesquisa-ação desenvolvida teve como suporte teórico


o livro de Bordini e Aguiar (1993); no entanto, não seguimos com rigidez as
etapas, uma vez que “[h]á sempre um vaivém entre várias preocupações a
serem adaptadas em função das circunstâncias e da dinâmica interna do
grupo de pesquisadores”, como afirma Thiollent (2007, p. 51).

[7] Os contos lidos em sala pelos alunos estão reproduzidos no anexo 1 de


Torres (2015).

[8] Outras informações a respeito de Luiz Vilela estão disponíveis no sítio do


Grupo de Pesquisa Literatura e Vida: < http://gpluizvilela.blogspot.com/ >,
acesso em 16 novembro 2016.

104
[9] A propósito, em específico, da compaixão, ver Majadas (2000).

105
Artigos completos

A METÁFORA DO EU, NO CONTO O BURACO, DE


LUIZ VILELA

Elcione Ferreira Silva (CPTL/UFMS)

Resumo: O conto O buraco é uma das peças que compõem a


obra Tremor de terra, do escritor Luiz Vilela (2003).O objetivo
deste artigo é apresentar como procede o processo metafórico, a
partir do título da obra. A postura do narrador é fundamental
para exemplificar o desenvolvimento do percurso
metafórico.Tomamos, como suporte teórico: Paul Ricouer
(2000) com a obra A metáfora Viva, assim como, o capítulo,
Para uma pedagogia da metáfora de José Paulo Paes (1997).

Palavras-chave: Metáfora; Narrador; Luiz Vilela.

Introdução

Propomos, neste artigo, uma leitura de como a metáfora é


apresentada no conto O Buraco do autor, Luiz Vilela. Ao se
construir uma leitura e interpretação da narrativa convém

106
destacar alguns pontos de vistas já bastante referenciado ao
longo dos estudos da metáfora. No processo de construção de
leitura do conto, interessa primeiramente, contextualizar.
Tomamos como ponto de partida apontamentos de diferentes
autores que discorrem sobre esse tema.
Aristóteles acreditava que a metáfora estava atribuída a
competência da retórica e da poética. A definição de metáfora,
para Aristóteles, “[...] consiste no transportar para uma coisa o
nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o
gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por
analogia” (ARISTÓTELES, 1996, cap. XXI, 1457b-6, p. 92).
Aristóteles se reporta detidamente em cada passo de
transposição da metáfora na obra arte poética, não vamos nos
reportar a todos eles por entender que a citação acima da conta
de exemplificar o pensamento de Aristóteles referente à
metáfora. De acordo (Pound, 2006, p.32) “Literatura é
linguagem carregada de significado ou simplesmente linguagem
carregada de significado até o máximo grau possível”.
Na obra A Metáfora Viva Paul Ricouer (2000) discute
longamente sobre metáfora, inicia pela a retórica, mas adverte
que não é para substituí-la pela semântica e esta pela

107
hermenêutica, porém objetiva desenvolver o encadeamento
sistemático dos pontos de vista sobre progressão da palavra à
frase da frase ao discurso. O teórico divide a obra em oito
estudos. Traz pontos de vista teóricos correspondentes, em que o
grau de expressão contribui com a progressão do argumento de
conjunto.
Tanto para Aristóteles como em Fontanier, a metáfora
encontra-se, no nível do desvio, transgressão de sentido que
ultrapassaa denominação substantiva. Retoma-se, então, a noção
de transgressão de sentido, mas esta precisa ser analisada à luz
do uso, para definir se o desvio é comum (catacrese) ou inovador
(metáfora). Portanto, “é necessário, então, ir da palavra ao
discurso, pois apenas as condições próprias ao discurso podem
distinguir o tropo-figura do tropo-catacrese e, no tropo-figura, o
curso livre do curso forçado” (Ricoeur, 2000, p. 105). As
metáforas quando analisadas no nível da palavra, como desvio,
se está concebendo a linguagem de forma taxionômica e
classificatória simplesmente, ou seja, conclui-se que a relaçãode
referência se dá de forma linear e codificada, que as variantesde
uso (como as metáforas) encontram-se no âmbito do desvio e não
abrange a produção de significação.

108
Compreender a metáfora na frase, como “forma
constitutiva da linguagem”, implica em redirecionar a linguagem
do aspecto classificatório para o da significação, “com a frase, a
linguagem sai de si mesma, e a referência indica a transcendência
da linguagem a si mesma” (RICOEUR, 2000, p. 120).
A metáfora segundo (Ricoeur, 2000, p. 13-14) apresenta
uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a
potência criadora da linguagem, preserva e desenvolve o poder
heurístico desdobrado pela ficção. A metáfora é o processo
retórico pelo qual o discurso libera o poder que algumas ficções
têm de redescrever a realidade. Ligando dessa maneira ficção e
redescrição, restituí a plenitude de sentido à descoberta de
Aristóteles, na Poética.
Há três níveis diferentes da enunciação metafórica
segundo Ricouer (2000, p. 458), primeiro: tensão entre os
termos do enunciado, segundo: tensão entre interpretação
metafórica, terceiro: tensa entre é e não é. Se de fato a
significação, sob sua própria forma elementar, está em busca de
si mesma na dupla direção do sentido e da referência, a
enunciação metafórica apenas leva à sua plenitude esse
dinamismo semântico. A enunciação metafórica opera

109
simultaneamente sobre dois campos de referência. Essa
dualidade explica a articulação, no símbolo, de dois níveis de
significação. A significação primeira é relativa a um campo de
referência conhecido: o domínio das entidades às quais podem
ser atribuídos os próprios predicados considerados em sua
significação estabelecida. A segunda, à qual se trata de fazer
surgir, é relativa a um campo de referência para o qual não há
significação direta, e para o qual, por conseqüência, não se pode
proceder a uma descrição identificante por meio de predicados
apropriados.
O texto para Ricouer, é uma entidade complexa de
discurso cujos caracteres não se reduzem aos da unidade de
discurso ou frase. “Por texto não entendo somente nem
principalmente a escritura, embora a escritura ponha por si
mesma problemas originais que interessam diretamente ao
destino da referência; mas entendo, prioritariamente, a produção
do discurso como obra” (RICOEUR, 2000, p. 336).
O texto assume o papel de um discurso que toma a forma
da obra. A obra não se resume a mera junção de frases e
discursos. A obra é singular na sua forma final, quer seja um
poema ou uma prosa. A estrutura interna da obra revela seu

110
sentido, seu campo semântico ocorre, ao mesmo tempo, uma
referência a um mundo que cada obra na sua singularidade
institui. Inquirir sobre a transição do significado de uma obra
para o seu mundo, isto é a hermenêutica.
Quanta o papel da imaginação Ricoeur afirma que na
metáfora, aparece na medida em que sublinha a incongruência
da predicação nova e o desvio de sentido ao nível das palavras
pelas quais tentamos reduzir essa incongruência. Somos levados,
então, a perceber uma nova congruência a partir das ruínas da
que se fragmentou pelos golpes da impertinência semântica da
anterior, tentando buscar um novo sentido fora do seu uso
comum. Ricoeur vê nessa impertinência semântica algo ligado à
semelhança na produção do sentido. O criador de metáforas gera
a metáfora que aparece não apenas como desviante, mas como
algo, no mínimo inquietante. A metáfora não é o enigma de uma
predicação impertinente, mas é a própria solução do enigma.
Segundo Ricoeur, há na metáfora uma inovação semântica e uma
mutação por contiguidade ou semelhança. O que é preciso
compreender é um modo de funcionamento da imaginação que
preenche uma lacuna. Para que isso aconteça, é preciso conceber

111
a imaginação no modo kantiano, como imaginação criadora,
como esquematização de uma operação sintética.
José Paulo Paes no capítulo Para uma pedagogia da
metáfora (1997) pensa a questão a partir da observação da vida
cotidiana. Não deixa também de trazer acepção Aristotélica de
metáfora, como uma substituição de uma palavra de sentido
próprio para uma palavra com sentido conotativo. Para
Aristóteles a metáfora representa a forma mais essencial e
distinta para o embelezamento da linguagem.Aristóteles
introduz duas noções básicas para a descrição do funcionamento
da metáfora. Em primeiro lugar, a noção de desvio do “sentido
ordinário” das palavras como meio de dar elevação ao discurso;
em segundo lugar, a noção de estranheza que tais desvios
suscitam: “importa dar ao estilo um ar estrangeiro, uma vez que
os homens admiram o que vem de longe e que a admiração causa
prazer” (PAES, 1997, p. 15).
Segundo Paes (1997, p.14): “[...] há uma alternância de
presença e ausência a que se associam, concomitantemente,
sensações de prazer e desprazer”, ou seja, a metáfora traz esta
sensação de desprazer quando ocorre o primeiro contato do leitor
com as expressões metafóricas causando certo estranhamento e

112
é aí que acontece o desprazer quando a princípio não há
compreensão de tal analogia. Já o prazer vem logo em seguida,
pois é a identificação dos sentidos atribuídos aos nomes, é a
compreensão se realizando, o entendimento da metáfora.
Metáfora é ausência e presença, isto é, ausência remete ao
desprazer, pois ocorre quando não se identifica o real sentido da
palavra, quando apenas é reconhecido o sentido figurado, dando
a impressão de que não há coerência entre a palavra com o resto
da frase. E a presença é o contrário, é o reconhecimento do
sentido, é a compreensão que nos remete ao prazer, por isso há
uma alternância, ora se entende, ora não se entende.

O processo metafórico no conto O buraco, de Luiz Vilela

No conto O Buraco, a metáfora é apresentada


primeiramente pela palavra que denomina o nome do conto,
visto que proporciona um estranhamento. É a partir dela que
desabrocham várias outras imagens metafórica.
A narrativa é conduzida por um ser, que tem a missão de
contar sobre si mesmo. Faz com competência, pois não se afasta
do seu compromisso na corporação dos relatos. Responsável por

113
direcionar várias conexões que se relacionam, formando o todo
da narrativa. O dono da voz arquiteta um mundo que tem vida
em si mesmo. Norman Friedman (2002, p. 171-172), aponta
algumas considerações quanto à posição do narrador:

1) Quem fala ao leitor? (autor na primeira


pessoa ou na terceira pessoa, personagem na
primeira ou ostensivamente ninguém?); 2) De
que posição (ângulo) em relação à estória ele a
conta [...]; 3) Que canais de informação o
narrador usa para transmitir a estória ao leitor?
(palavras, pensamentos, percepções e
sentimentos do autor; ou palavras e ações do
personagem; ou pensamentos, percepções e
sentimentos do personagem: através de qual –
ou de qual combinação – destas três
possibilidades as informações sobre os estados
mentais, cenário, situação e personagem
vêm?); e 4) A que distância ele coloca o leitor
da estória? (próximo, distante ou alternando?).

As cenas são organizadas por um narrador em primeira


pessoa, denominado Zé, que comanda todo o processo narrativo,
e assim direciona aparição das poucas personagens. A focalização
interna permite ficar o mais perto possível da percepção
subjetiva do protagonista: em um vaivém entre interior e o
exterior. O eu apresentado faz parte integrante de um universo

114
do qual ele imerge nem sempre de modo natural. A
particularidade desse relato tem a ver com o status do
acontecimento. Marcada por uma temporalidade. O narrador
começa sua narração rememorando seus três anos de idade, pois
é a partir desta idade que tem consciência do buraco, porém
nessa fase o vê como brinquedo. O protagonista ressalta que esta
é a lembrança mais remota que ele tem de si mesmo.
Em um tom confessional, Zé reconstrói sua história –
conflitos, incertezas, dispostas em ideias que se fazem, desfazem-
se, refazem-se. Narra várias fases de sua vida, da infância à vida
adulta. E a cada ciclo narrado, o buraco está presente, ou seja, o
buraco vai se transformando conforme a existência do narrador:

Às vezes Mamãe me via cavando-o e dizia:


“Meu filho, deixa esse brinquedo, vai brincar na
rua com os outros meninos.” Mas, às vezes
também, ela me via e não falava nada, não se
importava, e de certo modo até parecia achar
bom: “Assim ele não vai para longe”, dizia.
Dizia, ainda, para os outros: “Ele gosta de
brincar sozinho.” Eu gostava também de
brincar com os outros meninos na rua:
brincava de pequi, de bomba, de esconder, de
bola, de soltar papagaio, de corrida, de biloca,
de tudo. Mas às vezes eu deixava tudo isso e ia
mexer com o buraco. Achava bom ficar ali,

115
sozinho, longe de todo mundo. Até que chegava
um ponto em que também me cansava do
buraco, sentia-me triste, e tinha vontade de
voltar para as pessoas, conversas, falar,
ouvir.(VILELA, 2003, p.20)

A linguagem presente no conto é prenhe de metáforas, o


título é providencial na criação de uma imagem metafórica
magnífica.
Portanto, é a partir do substantivo “buraco” que nos
voltamos para tentar fazer uma leitura do processo metafórico,
nesta narrativa. Arriscamos em dizer, que ele se estabelece,
inicialmente, pela separação entre as ordens semiótica e
semântica que evidenciam alguns traços distintivos,
concernentes a questão da metáfora. Há o fenômeno de
predicação, e de denominação. Diferenciar o semiótico do
semântico implica uma nova organização do paradigmático e do
sintagmático. A metáfora pode ser discutida nas relações de
substituição; e no nível do discurso, a construção de sentido da
metáfora depende das relações de sentido criadas entre as
palavras do enunciado, que cria o todo significativo do discurso.
A metáfora é uma figura de linguagem cujo princípio
repousa numa relação de analogia (semelhança) entre o sentido

116
de dois termos. No processo metafórico, traços semânticos
usualmente atribuídos ao termo A são transferidos ao termo B.
Sua forma linguística também pode variar. A mais simples é a
metáfora que funciona como predicativo do sujeito.
No conto de Luiz Vilela a metáfora produz efeito
analógico: tem-se a palavra “buraco” que de acordo com o
dicionário da Língua Portuguesa que dizer: “qualquer abertura
num corpo; furo, orifício.“Cavidade natural ou artificial, onde
habita um animal; cova, toca”. De acordo com a linguagem
referencial uma das acepções é de que é uma “cavidade natura”.
Esta definição é favorável a primeira percepção que o
narrador tem do buraco, a de algo físico, externo: “De qualquer
modo, uma coisa era certa: aquele buraco existia e era meu,
inseparavelmente meu, tão meu que era como se ele estivesse ali,
fora, mas dentro de mim” (VILELA, 2003, p. 20). O que era
externo, espaço físico, ganha tonalidade interna.

Mas chegava em casa, e bastava ficar um pouco


isolado dos outros e em silêncio, que ele surgia
dentro de mim, como serpente se erguendo no
escuro. Isso me deixava tão desconsolado, que
tinha vontade de morrer. Mas outras vezes, em
situação idênticas, era eu mesmo que invocava
sua lembrança como um último socorro, e

117
então ficava contente por ele existir (VILELA,
2003, p. 21).

No discurso do narrador podemos observar uma analogia


entre buraco e vazio. Metaforicamente, o vazio implica que o
narrador estava isolado e em silêncio, vazio expressão metafórica
que substitui “surgia dentro de mim” (termo metafórico para
buraco). Ou seja, o buraco que ao mesmo tempo representa vazio,
tristeza, medo, solidão, também acalenta, é refúgio. Consistindo
assim, uma dualidade que nem tudo é só bom ou ruim. Essa
postura é adotada pelo narrador em várias fases de transição por
qual a personagem passa.

O buraco, somente eu poderia enchê-lo. Porque


a essa conclusão eu havia chegado: o buraco
estava ali, e não adiantava querer ignorá-lo; o
que eu tinha de fazer era enchê-lo. Foi o que
tentei, já rapaz, e não pude: cada páde terra
atirada dentro do buraco era como se fosse
atirada dentro de minha boca. Eu não podia
fazer aquilo, era como se eu estivesse me
assassinando (VILELA, 2003, p. 20).

Neste trecho, percebemos que a personagem tenta se


desvencilhar do buraco, mas chega à conclusão de que o buraco
já é parte de si, tornando uno. Incompreendido por não aceitar

118
ajuda: “disseram que eu era orgulhoso, que eu desprezava os
outros ou que eu não me importava com eles, e até que os odiava”
(VILELA, 2003, p.21). A visão que as outras personagens têm do
narrador por não aceitar ajuda vai ao encontro da reflexão de
Bakhtin, que é bastante esclarecedora:

Às vezes, saio de mim mesmo no plano dos


valores, vivo no outro e para o outro, e então
posso participar do ritmo, mas nele sou, de um
ponto de vista ético, passivo para mim mesmo.
Na vida, participo do cotidiano, dos costumes,
da nação, da humanidade, do mundo terreno -
em toda parte, vivo aí os valores no outro e para
o outro, eu revesti os valores do outro, e aí
minha vida pode submeter-se a um ritmo
(submeto-me lucidamente ao ritmo), aí minha
vivência, minha tensão interna, minha palavra,
tomam lugar no coro dos outros. Porém, no
coro, meu canto não se dirige a mim, sou ativo
só a respeito do outro e passivo ante à atitude
do outro para comigo; estou ocupado em trocar
dons e faço-o com desinteresse; sinto em mim
o corpo e a alma do outro. (Quando a finalidade
do movimento e do ato se encarna no outro ou
então é coordenada com o ato do outro —
durante um trabalho em comum, por exemplo
—, também minha ação entra no ritmo que não
criei para mim, mas do qual participo para o
outro.) (BAKHTIN, 1997, p. 136).

119
Nessa citação de Bakhtin fica claro que a visão do outro é
como um espelho, isto é, eu sou aquilo que é filtrado pela visão
do outro, muitas vezes, equivocadamente. O narrador mostra-se
desinteressado com o julgamento do outro, e faz o que lhe
convém. Sabendo que somente ele pode resolver a questão do
vazio que cada vez torna-se maior, tenta tampar o buraco físico,
cai nele e sente-se desconfortável no primeiro momento, mas
depois se sente como se estivesse em casa. A partir da queda, a
personagem começa o processo de metamorfose e se transforma
em um tatu, chegando a caminhar de quatro, e a ter unhas
enormes e o rosto (agora focinho) alongado.
Roger Caillois (apud, Todorov) afirma que “todo o
fantástico é uma ruptura da ordem reconhecida, uma irrupção do
inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana”
(TODOROV, 2004, p.161). A personagem em estudo transita
entre o mundo de pessoas reais vacilando entre uma explicação
natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos
elencados. Há uma ruptura com a ordem estabelecida. De ser
humano, passa a ser um animal.
O texto do autor Luiz Vilela, dialoga com o conto
“Metamorfose” de Franz Kafka. Kafka elege um narrador em

120
terceira pessoa para contar as inquietações, de Gregor Samsa,
depois de ser transformado em um inseto gigantesco. Diferente
de Luiz Vilela, que optou por um narrador em primeira pessoa,
que narra paulatinamente como se metamorfoseou em tatu. As
personagens que fazem parte da trama do autor mineiro são
apenas duas: a mãe do narrador e a noiva. São elas que sofrem
com a transformação de Zé. Por outro lado, Zé busca essa
transformação, o essencial, é o silêncio, a incomunicabilidade.
Kafka inicia o conto pelo clímax. Segundo Ricardo Piglia em
Teses sobre o conto (2004), Kafka conta com clareza a história
secreta. Não faz, absolutamente, nenhum suspense quanto a
transformação, de Gregor Samsa, em inseto. O mistério é
revelado, logo, nas primeiras linhas: “Certa manhã, após um
sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama
transformado num inseto monstruoso” (KAFKA, 2001, p. 11). No
entanto, é sigiloso quanto a história visível.
Na narrativa de Kafka, além do personagem central, há
outros personagens que fazem parte da composição da novela.
São denominadas de: pai, mãe, irmã, chefe, gerente. É por meio
deles que Gregor irá perceber que só se tem valor quando se é
útil, e, na atual condição de inseto, percebe que os conflitos

121
existenciais são gritantes, impossibilitado de ir ao trabalhar,
logo, não poderá mais ser o provedor daquela família, o bônus
são as humilhações, advindas dos entes queridos. Portanto, ao
perder sua autonomia passa a outro lugar social. Está a margem.
O conto apresenta a visão de uma sociedade capitalista e
individualista. Conceitos que na visão de Kafka corroem o ser,
tornam-nos menores, mesquinhos e insignificantes. Podemos
arriscar em afirmar que a metamorfose é a metáfora que desvela
a condição humana em desumana. O paradoxo está, não, no
inseto em que, Gregor se transformou, e, sim, nas atitudes dos
humanos que dizem ser sua família.
Cabe ressaltar, que tanto na obra de Luiz Vilela, quanto na
narrativa de Kafka, temos seres metamorfoseados, seja, por
vontade própria, ou, por força do acaso. Em Luiz Vilela, o
personagem se permitiu mudar. Já em Kafka, a mudança gera
conflito, e infortúnio. Em Kafka, o isolamento, o silêncio, a
incomunicabilidade vem pela falta de escolha. Em Luiz Vilela isso
é provocado, é opção. Os metamorfoseados não voltam a
condição de antes, um porque não quer, e outro, por não poder.
São textos que dialogam, entretanto, cada um com suas

122
particularidades. Dois autores excepcionais, logicamente, que
separados pelo tempo, porém, confrontados pelos leitores.
O jogo entre real e fantástico se apóia, segundo Todorov
(1981), essencialmente em uma vacilação do leitor que se
identifica com a personagem principal referida a natureza de um
acontecimento estranho.
Retomando a discussão sobre o conto de Luiz Vilela,
podemos considerar que o processo de metamorfose é
semelhante com o processo metafórico ambos são
transformações que ressignificam algo que estava posto. A
incomunicabilidade é o resultado do processo metafórico, o
narrador sente-se solitário, mesmo convivendo com outras
pessoas. Essa solidão também é consensual, às vezes, ele busca
estar só, já que o silêncio faz-lhe bem. No entanto, é em silêncio
que Zé começa a sentir a presença do outro, e perceber como a
voz do outro é importante. Nos termos metafóricos a ausência e
presença se completam. O não dito é mais importante que o dito.
O narrador significa reinventando-se no silêncio e na solidão, o
buraco, o vazio são preenchidos pela engenhosa forma que o
narrador criou para dá sentido a vida:

123
Maria era minha noiva. Eu não respondia,
mesmo com ela. Então havia um silêncio, que
eu percebia ser o da pessoa esperando ainda
que chegasse lá em cima algum som de baixo;
mas eu ficava bem quieto. Então o silêncio
voltava a ser o de antes, a pessoa tinha ido
embora. No começo esse silêncio era de um
tipo, depois ficou de outro, (eu estava virando
um especialista em silêncios, distinguia
milhares de tipos diferentes). No começo era o
silêncio de quem espera, apenas espera um
som e depois pensa: “é ele não está aí mesmo
não”. Mas depois quando ficaram sabendo que
eu passava ali quase o dia inteiro, quando
sempre me viam indo para ali, esse silêncio era
o de quem espera desconfiando e pensando:
“ele está aí, sei que está aí, e não quer
responder” (VILELA, 2003, p. 24).

Zé percebe a ausência de significação na palavra. Para ele,

o silêncio é forma primeira de sentido. As pessoas que convivem

no mesmo espaço não possuem sensibilidade para perceber, isto

segundo o narrador é porque as pessoas estão esvaziadas de

silêncio. No horizonte do silêncio, como iminência de sentido,

mesmo fora da linguagem, ele é dotado de significado. Nessa

124
perspectiva, Orlandi (1997), compreende que estar em silêncio

corresponde estar no sentido, pois as próprias palavras

transpiram silêncio.

Vale ressaltar, que talvez, a imagem metafórica

apresentada no conto, se aproxima de uma alegoria, pela forma

que o processo metafórico é contemplado no conto.

Referências:

ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica.


(Tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna). 7ª ed. São
Paulo: Cultrix, 1994.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo:


Martins Fontes, 1997.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo, Nova Alexandria,

2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento


dos sentidos. 4. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1997.

125
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: _____. Formas breves.
Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004. p. 87-94.

PAES, José Paulo. Para uma pedagogia da metáfora In: Os perigos


da poesia e Outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.p. 11-
34.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. 11ª ed. Trad. Augusto de


Campos e José Paulo Paes. Org. Augusto de Campos. São Paulo:
Cultrix, 2006.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo.


SãoPaulo: Loyola, 2000.

TODOROV,Tzvetan. As estruturas narrativas. Apresentação


Tradução: LeylaPerrone
Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2004. [1964-1969]

VILELA, Luiz. Tremor de terra (contos). Belo Horizonte: edição,


do autor,1967; 8. ed. São Paulo: Publifolha, 2003.

126
O REVELAR POÉTICO EM CLAUDIA ROQUETTE-PINTO

Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS)

Resumo: Claudia Roquette-Pinto, embora tenha publicações


significantes, ainda é uma escritora pouco conhecida nos meios
acadêmicos. Entretanto, o estudo de sua poética revela uma
autora que se apropria de recursos literários, como a metáfora,
para sinalizar uma de suas principais características – a
metapoesia –, através de assimilações e exaltações às
simplicidades e insignificâncias do cotidiano, como jardins e
insetos. Para isso, apresentaremos a análise do poema “Nada”,
constituinte da obra Corola, no intuito de exemplificar, ilustrar e
apontar o percurso trilhado pela autora na formação do
constructo poético.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Poesia Contemporânea;


Metapoesia.

Introdução

A constituição da identidade humana é pautada na

palavra, recurso de suma importância também para as artes,

127
mais especificamente a poesia, a qual depende exclusivamente

da força e jogo das palavras para ganhar corpo e vida.

Entretanto, para que a poesia se transforme em poema é

necessário o trabalho árduo e difícil do artista para a

transposição de ideias em concreto. A manipulação artística é

executada pelo poeta, artesão que de fio a fio, palavra a palavra,

vai metamorfoseando o abstrato em concreto, externando e

dividindo com o leitor suas vivências e sentimentos emanados

da poesia:

[...] O poeta, no ato mesmo de fazer poema,


expõe seu conceito de poesia, explicitando sua
função catártica, ou seja, aquela de meio de
vazão dos sentimentos, de alivio mesmo de
sofrimentos. Fundem-se, em seus versos, a
ideia de poema e vida e, paradoxalmente, a de
representação da morte [...] É como se o poeta
quisesse fazer um pacto com seu leitor, dando-
lhe uma chave do que entende por poesia
naquele momento [...]. (WALTY; CURY, 1999,
p. 16-17).

128
Fazer poesia é falar das coisas, não como elas são, mas

como as vemos e sentimos em um determinado instante,

momento de inspiração. O poeta consegue enxergar além da

realidade, pois seu ‘mundo’ aproxima-se do encanto e da magia.

Na poesia, podemos visualizar e vivenciar os acontecimentos

inimagináveis do mundo real, que só ganham vida na literatura.

É este poder de dar vida às coisas que faz do poeta um criador

que, mesmo preocupado com as formas, cores e sexo, da ênfase

maior aos sentimentos internos e externos, pois adquire o perfil

de manipulador do discurso.

Autora de sete livros – Os dias gagos (1991), Saxífraga

(1993), Zona de sombra (1997), Corola (2000), Margem de manobra

(2005), Botoque e Jaguar: a origem do fogo (2009) e Entre lobo e cão

(2014) – Claudia Roquette-Pinto versa sobre o papel

imprescindível do escritor no ‘cosmos’ da poesia. A autora

desfruta da utilização de jardins e todos os elementos da

natureza que o compõem, como terra, água, luz e ar, os quais

unidos exibem e estabelecem equilíbrio. O autor é quem

129
consegue transitar entre o abstrato e o concreto e materializar em

palavras o mundo, de maneira que chegue a ser humanizador,

pois a literatura é a única arte que consegue definir intimamente

o ser humano, consegue atingir o âmago do homem, sem deixar

de ser arte.

Considerando a importância da metalinguagem em

estudos poéticos e a relevância de Claudia Roquette-Pinto no

âmbito da literatura brasileira contemporânea, é objetivo deste

trabalho esboçar a análise do poema “Nada” (2000, p. 23),

pertencente a obra publicada Corola, ressaltando em suas

composições a persistência da metapoesia que se instaura como

reflexão sobre a linguagem, o ser e o tempo que o permeiam.

Do “Nada” ao contructo poético

Na configuração das obras de poesia lançadas por Claudia

Roquette-Pinto, segundo Marani (2015), há uma persistência em

retratar em seus versos a preocupação com a forma e a maneira

130
como a poesia é construída. Entretanto, caracteriza também

temas que tratam da vida na sociedade. Uma poeta de imagens,

cujas obras mencionam flores, folhagens, obras de arte,

impessoalismo, feminilidade, violência, além da musicalidade

presente em seus versos.

Este trabalho tem por propósito debruçar-se sob a obra

Corola (2000), penúltimo livro de poesia lançado por Claudia

Roquette-Pinto, é composto por 48 poemas com temáticas

diversificadas: amor; fracassos; críticas à sociedade; essência

humana. Entretanto, o tema que mais se destaca e persiste é a

Metapoesia.

Corola, segundo o dicionário Aurélio da Língua

Portuguesa (2010, p.590), “corola é o verticilo interno do perianto

da flor quase sempre vistoso e de coloração viva. Cada segmento

corolino é chamado de pétala, ou também, conhecida como

“grinalda de flores”.

A título de exemplo dos poemas que versam sobre a

temática reiterante nesta obra, a metapoesia, destacamos o

131
poema “Nada” (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23), transcrito a

seguir:

NADA,
além do som do riacho
e do grilo, esfregando seu pedaço
de lixa no ar estreito,
alheio a outro som, quase inaudível,
que o coração abafa, em disparate
contra a paisagem, organizada e fria
- apesar de um sol que desafia a pele
a abandonar sua letargia
e põe insetos em outros trajetos
varando contra o rosto.
Agora a nuvem se encosta
no morro, cobre o olho impiedoso,
pai do meu desconforto.
Afago de asas, vento diminuto
paro e flagro o que aflora
(borboleta de Wordsworth,
mas bem mais que meia hora),
enquanto cascos se pisam
no céu que hesita entre a chuva e a
indiferença.
Imóvel, vertiginosa,
de fora a dentro me inclino
(os clarões se aproximam)
rede em riste

132
sobre o rosto daquela flor
- a única que existe.

Vejamos que o poema apresentado recebe como título a

palavra “Nada”, que, ao mesmo tempo em que o nomeia,

também, constitui-se como o verso de abertura. O primeiro verso

é transcrito em letra maiúscula para destacar e reforçar uma de

suas funções, que é nomeá-lo. A outra função imposta é

simplesmente da inexistência:

NADA,
além do som do riacho
e do grilo, esfregando seu pedaço
de lixa no ar estreito [...]
(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

A acepção do termo “Nada” como o ‘vazio’ de algo é

revelada neste trecho, em que o eu lírico descreve sua percepção

exterior dos acontecimentos que o cercam, no reconhecer de sons

da natureza. Esses versos carregam a intenção de apontar o vazio

interno do eu lírico, que se apresenta como narrador, pois relata

133
o que vê, imagens configuradas como retratos captados pelo seu

olhar, um relato mimético, em que a arte imita a vida. A

realidade factual é percebida pelo eu lírico através de sons e

imagens da natureza, como a correnteza do riacho e o estridular

do grilo, as imagens da “nuvem encostando-se no morro” e

“insetos varando contra o rosto”.

Entretanto, essas percepções só se completam por meio

da audição e a da visão, que se encontram aguçados e sensíveis

aos acontecimentos externos que cercam o eu lírico e,

consequentemente, o fazem refletir sobre o que ouve, vê e sente,

de tal forma que começa a explanar e compreender sua

sensibilidade, que, a um olhar desatento, pode parecer normal,

mas para um artista torna-se inusitado, os artistas são “míopes”,

captam o imperceptível aos olhos do homem comum, mas

sensível e essencial ao olhar do poeta.

Os aspectos estruturais deste poema revelam a tessitura

poética e significativa que envolve o eu lírico em uma busca pelo

caminho do fazer poético. Esses aspectos compõem-se de rimas,

134
sonoridade, ritmo e a seleção de palavras que embalam a procura

poética.

As rimas são soltas, ocasionando uma sonoridade e

ritmo calmos, advindos da utilização de recursos de pontuações

gráficas, dentre eles as vírgulas, travessões e parênteses. Muitas

são empregadas no poema, as quais na leitura força-nos a uma

pausa ligeira, ocasionando um ritmo lento e, necessariamente,

reflexivo. O travessão, encontrado nos versos oito e vinte e seis,

assinalam orações intercaladas, uma maneira de retomar e/ou

enfatizar um tema já tratado ou que ainda será disposto no

poema, além de retratar pausas mais longas e densas como se

fossem partituras:

[...] - apesar de um sol que desafia a pele[...]


(v. 8)

[...] - a única que existe. (v. 26)


(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

135
No verso “- apesar de um sol que desafia a pele” o

travessão aparece em contradição com o que foi dito no verso

anterior “contra a paisagem, organizada e fria”, pois apesar

dessa paisagem ser organizada e fria existe um sol que o ilumina

e dá vida, esse sol é a metáfora de vida, a qual coloca o eu lírico

diante de situações e paisagens que o forçam a refletir e caminhar

para o processo da criação poética.

Um dos recursos de pontuação utilizados neste poema é

o uso de parênteses[1], os quais aparecem nos versos dezessete,

dezoito e vinte e três transcritos a seguir:

[...] (borboleta de Wordsworth, (v.17)


mas bem mais que meia hora), [...] (v. 18)

[...] (os clarões se aproximam) [...] (v. 23)


(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Os parênteses parecem indicar uma notação, explicação

e/ou intertextualidade literária. A utilização desse recurso,

constantemente, pode explicitar e ressaltar algo de suma

136
importância para a análise semântica de um texto. Uma das

funções denominadas aos parênteses é referenciar um autor,

uma obra, ou até mesmo, fragmentos de versos.

A intertextualidade existente com outros autores situa-

se na expressão contida dentro dos parênteses “borboleta de

Wordsworth”, que remete ao poeta romântico inglês Willian

Wordsworth[2] (1770-1850), mais especificamente ao poema “To

a Butterfly”, transcrito abaixo na versão original e sua tradução:

To a Butterfly[3] A uma Borboleta

Stay near me—do not take thy flight! Fique perto de mim, não tome teu voo!
A little longer stay in sight! Fique um pouco mais à vista!
Much converse do I find in Thee, Eu encontro muito o oposto em ti,
Historian of my Infancy! Historiadora da minha infância!
Float near me; do not yet depart! Voe perto de mim; não parta ainda!
Dead times revive in thee: Tempos mortos revivem em ti:
Thou bring'st, gay Creature as thou art! Tu trouxeste, alegre criatura como és,
A solemn image to my heart, Uma solene imagem ao meu coração,
My Father's Family! A família de meu Pai!

Oh! pleasant, pleasant were the days, Oh! Prazerosos, prazerosos foram aqueles dias
The time, when in our childish plays O tempo, quanto em nossas pueris brincadeiras
My sister Emmeline and I Minha irmã Emmeline e Eu
Together chaced the Butterfly! Juntos caçamos a Borboleta!
A very hunter did I rush Como um verdadeiro caçador, lancei-me
Upon the prey:—with leaps and springs Sobre a presa; - com saltos e trotes
I follow'd on from brake to bush; Eu a segui da mata a moita;
But She, God love her! feared to brush Mas ela, Deus a ame! temeu espalhar

137
The dust from off its wings. A poeira para fora de suas asas.

Como efeito de sentido velado e contido nesta

intertextualidade nota-se a apropriação de algumas

características do poema de Wordsworth para o poema de

Roquette-Pinto. Em ambos há prevalência de imagens,

referências à natureza e, sobretudo, ao processo criativo na

“carpintaria” do poema.

Nos dois poemas apresentados, “To a Butterfly” e

“NADA”, o eu lírico descreve os caminhos percorridos e

necessários para a construção poética, assim como podemos

destacar nos trechos transcritos:

[...] alheio a outro som, quase inaudível,


que o coração abafa, em disparate
contra a paisagem, organizada e fria [...]

[...] (borboleta de Wordsworth,


mas bem mais que meia hora),
enquanto cascos se pisam
no céu que hesita entre a chuva e a
indiferença. [...]

138
(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Fique perto de mim, não tome teu voo!


Fique um pouco mais à vista! [...]

[...] Como um verdadeiro caçador, lancei-me


Sobre a presa; - com saltos e trotes [...]
(WORDSWORTH, 1807)

No fragmento poético de Roquette-Pinto todo som

“inaudível” apresentado no início do poema torna-se “chuva”

em seu ápice. A chuva é símbolo universal da pureza, fertilidade

e fecundidade, é o princípio criador da vida. Neste poema, o

verbete chuva torna-se metáfora de produtividade/criatividade,

ou seja, esse eu lírico transita entre o momento de “seca

intelectual” para um momento chuvoso e criativo.

Assim como também acontece no poema de Wordsworth,

o eu lírico, de início, não possui o domínio completo na

apreensão da poesia, suplicando para que não o deixe; em seu

desfecho relata que se tornou um “verdadeiro caçador”, ou seja,

139
fisga a todo momento a poesia “lançando-se sobre a presa, com

saltos e trotes”.

Nestes dois poemas, o eu lírico retrata a poesia por

metáforas; a metáfora de Roquette-Pinto recai sob a palavra

“Flor”, enquanto que a metáfora de Wordsworth incide sobre a

palavra “borboleta”.

O eu lírico de Roquette-Pinto alude ao momento da

fruição de ideias para a versificação do poema em “mas bem

mais que meia hora” e “os clarões se aproximam”, neste último

torna-se notório o encontro, por completo, da poesia. Já o eu

poético de Wordsworth rememora momentos familiares em uma

profunda e complexa apreensão de conjecturas poéticas, nas

quais se transformam em versos.

Ambos os poemas revelam, através de imagens poéticas,

o procedimento para construir o poema, do qual emana a poesia.

Deste modo podemos afirmar que essa intertextualidade,

empregada por Claudia Roquette-Pinto no poema “Nada”, vem

140
reforçar o pensamento que persiste em todo o seu poema: traçar

um caminho do fazer poético, a partir do encontro com a poesia.

O aspecto antitético persiste por vários momentos como

nas palavras som/inaudível (verso cinco); abafa/disparate (verso

seis); cobre/olho (verso treze); fora/dentro (verso vinte e dois) e o

par antitético sol/chuva (verso oito e verso vinte) que não se

enquadram em um mesmo verso, mas constituem ambiguidade

e divergência na construção significativa do poema, esses pares

tem por objetivo causar uma certa “tensão” na construção do

efeito de sentido que envolve o poema: a disparidade entre o

encontrar da poesia e o concretizar da mesma.

Nesse processo ao encontro da poesia, o eu lírico

demonstra momentos de transformações intelectuais,

necessários na solidificação do percurso poético. Essa

metamorfose apresenta-se no fragmento a seguir:

[...] Agora a nuvem se encosta


no morro, cobre o olho impiedoso,
pai do meu desconforto. [...]

141
(ROQUETTE-PINTO, 2000, p, 23)

Neste trecho a imagem da nuvem encostando-se no morro

representa uma obscuridade/nebulosidade vivida pelo eu lírico.

Nuvem remete a sentido de nebuloso, confuso, indefinido,

tempestuoso. Sua forma de natureza irregular, instável e muitas

vezes turva, reafirmam esse simbolismo de coisa oculta ou mal

definida. Pode, também, representar tempos de transformações,

como é o caso nesse poema, no qual o eu lírico passa por

evoluções de uma letargia poética para um aflorar criativo.

Ainda sobre esse fragmento, temos o uso do pronome

possessivo “meu”, que põe o eu lírico no centro das ações e

marca o início de um segundo momento deste poema. A

primeira fase encontra-se entre o início do poema até o verso “pai

do meu desconforto”, esta primeira etapa é a visualização e

percepção exterior do eu lírico. A partir do uso desse pronome

possessivo, o eu lírico começa a relatar assimilações subjetivas e

insere-se no espaço poético.

142
Na segunda fase o eu lírico passa a relatar e transfigurar

sua compreensão exterior em poesia, em um processo ‘de fora

para dentro’, isto é, a partir de tudo o que viveu apreende e

versifica em forma de poema.

A aliteração na repetição dos fonemas f / fl / g e nas

palavras “Afago”; “flagro” e “aflora”, tem por intuito criar uma

sonoridade ao poema como podemos notar nos versos a seguir:

[...] Afago de asas, vento diminuto


paro e flagro o que aflora [...]
(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Além da sonoridade, essa aliteração tem por intuito criar

um efeito de sentido de confusão do eu lírico, pois esses fonemas

remetem a uma dificuldade de pronúncia. É neste trecho,

exatamente, que o eu lírico transita por uma desordem de ideias,

pois caminha de uma letargia intelectual para uma avalanche de

ideias, no encontro e compreensão de seu percorrer poético.

Outro recurso estilístico que sobressalta nesta análise é a

metáfora, a qual se torna mais envolvente e significativa pelo fato

143
de ressoar na continuidade dos outros poemas que constituem a

obra Corola.

A metáfora mestre neste poema recai sob a palavra “Flor”,

que irá aparecer ao final do poema no verso vinte e cinco e

remete-se a poesia, mais especificamente, ao ato de fazer poesia:

[...] sobre o rosto daquela flor


- a única que existe.
(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Torna-se notório que o eu lírico, do início ao meio do

poema, transitou por momentos de “letargia” intelectual, no qual

nada além dos sons exteriores lhe apreendiam, entretanto, do

meio ao fim o eu lírico, a partir dos atos involuntários e pequenos

da natureza, desperta seu “jardim” intelectual que começa a

florir, resultando no “rosto daquela flor/ a única que existe.”

O último verso, “a única que existe”, enfatiza a

importância de cada ideia e cada minuto na ‘carpintaria’ poética,

porque para os escritores o momento de produção é instigador

e, ao mesmo tempo, sacrificante, vai muito além de apenas

144
escrever, exerce uma função social, assim como relata a própria

poeta Claudia Roquette-Pinto no trecho da entrevista concedida

à Revista Plástico Bolha:

O poeta tem uma função social? Acho que sim.


A função do poeta é falar sobre os assuntos
universais, mas se aprimorar enquanto
instrumento de uma fala que vai tocar, vai
varar os outros; mas isso é função de todo
artista, não só do poeta. É uma função
transformadora, do microcosmo para o
macrocosmo. (ROQUETTE-PINTO, 2006, p. 2).

Por conseguinte, temos um eu lírico que busca nas coisas

mais simples a essência da vida e da poesia, retratada por

palavras que vão se apresentando na leitura, como o “som do

riacho e do grilo”, “a nuvem que se encosta no morro”, o “céu

que hesita entre a chuva e a indiferença”, entre outros.

É notório visualizarmos essas paisagens de jardins e todos

os elementos que o constituem, através da riqueza de detalhes

utilizados pela poeta, os quais fazem toda a diferença na análise

semântica do poema. As imagens nascentes deste poema

145
dependem e completam-se através do recurso metafórico, que ao

final se concretizará em uma única palavra, Flor, no intuito de

demonstrar que o caminho do fazer poético é árduo e repleto de

espinhos, mas o resultado torna-se belo e esplendoroso, assim

como a flor, presentes nos versos:

[...] enquanto cascos se pisam


no céu que hesita entre a chuva e a
indiferença.
Imóvel, vertiginosa,
de fora a dentro me inclino
(os clarões se aproximam)
rede em riste
sobre o rosto daquela flor
- a única que existe.
(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

O poema “Nada” consegue ilustrar com maestria a

proposta de Claudia Roquette-Pinto na obra Corola, salientar as

coisas insignificantes do cotidiano, como jardins e insetos, mas a

metáfora predominante recai sobre a flor, na intenção de formar

e constituir um jardim com todas suas pétalas, tornando-se um

146
“jardim provável”, isto é, um poema completo que consiga

atingir seu objetivo, que é tocar e emocionar seu leitor.

Considerações finais

Todo o preciosismo, construído artesanalmente pelas

mãos do artista, próximos à realidade humana, aproxima o

mundo factual do fictício, servem e reforçam a importância sobre

o que é fazer poesia, principalmente nos dias atuais.

Isto posto, a poesia é o retrato da sociedade atuante, é

produto do meio, e assim como essa sociedade é falha, a

literatura, mais especificamente o poema, também apresenta

labutas obscuras, mas que com muito suor e trabalho, seu artesão

(poeta) vai conseguindo clareá-las.

A utilização de aspectos do mundo real é, exatamente, o

artífice mais utilizado por Claudia Roquette-Pinto, na intenção

de ilustrar e formar um panorama sobre o percurso do encontrar

com o concretizar a poesia.

147
O poema de Claudia Roquette-Pinto, “Nada”, desde o

título já subjaz a aparente inexistência de algo, o qual será

encontrada e preenchida pelo processo de ‘artesania’ poética. O

processo da construção poética, dita e vivida por Roquette-Pinto,

é permeada de ambiguidades, divisões, embates, reflexões,

solidão, adjetivos que se apresentam como respaldo e vida

através das palavras, peça fundamental para sobrevivência do

homem e primordial para a poesia.

148
Referências:

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da


Língua Portuguesa. 5ª Ed. Curitiba: Positivo, 2010.

MARANI, Eloiza Fernanda. Fortuna crítica e Metapoesia em


Claudia Roquette-Pinto. Três Lagoas, 2015, 300 fls. Dissertação
(Mestrado – Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS.

ROQUETTE-PINTO, Claudia. Corola. São Paulo: Ateliê Editorial,


2000, p. 23.

VIRIATO, Lucas; MORAES, Marilena. Poesia é a tecnologia de


ponta da língua. Plástico Bolha, Rio de Janeiro, setembro de 2006.

WALTY; CURY, Ivete; Maria Zilda. Textos sobre textos: um estudo


da metalinguagem. Belo Horizonte: Editora Dimensão, 1999.

William Wordsworth. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível


em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Wordsworth>.
Acesso em: 20 de Abril de 2014.

__________

149
Notas

[1] O uso dos parênteses aparecem em vários poemas da obra Corola (2000),
de Claudia Roquette-Pinto.

[2] Willian Wordsworth (1770-1850) foi o maior poeta romântico inglês que,
ao lado de Samuel Taylor Coleridge, ajudou a lançar o romantismo na
literatura inglesa com a publicação conjunta, em 1798, das Lyrical Ballads
(Baladas Líricas).

[3] “To a Butterfly” é um poema lírico escrito por Willian Wordsworth. Foi
publicado pela primeira vez na coletânea Poems, in Two Volumes de 1807.

150
MODOS DE CONSTRUÇÃO DO NARRADOR
CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DE MONGÓLIA, DE
BERNARDO CARVALHO

Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS)


Maisa Barbosa da Silva Cordeiro (CPTL/UFMS)

RESUMO: Este artigo tem como proposta analisar os modos de


construção do narrador contemporâneo no romance Mongólia, de
Bernardo Carvalho. Por meio do movimento de articulação de
três narrações distintas para compor uma única diegése, a
narrativa se destaca pelo mistério que envolve o encontro das
vozes nela presentes. Trazendo à tona a ideia de que o narrador
do romance contemporâneo não se propõe mais a partilhar
aconselhamentos, Mongólia evidencia caminhos distintos pela
busca da própria história. Desse modo, é objetivo deste trabalho
entender de que modo o narrador é construído e de que modo o
foco narrativo é articulado.

Palavras-chave: Narrador contemporâneo; Romance; Mongólia;


Bernardo Carvalho.

Introdução

151
Mongólia, romance do carioca Bernardo Carvalho (2003),

chama atenção devido ao modo particular por meio do qual é

composto: a narrativa é construída a partir da junção de diários

de dois narradores: o primeiro, o Ocidental, apelido que recebe

dos Mongóis, povo com o qual tem contato durante a sua

trajetória; e o segundo, o Desajustado, também classificação

impelida pelos mongóis, que ironizam o fato de ele não se ajustar

às regras. Por meio da seleção e organização de informações

presentes nos diários dos dois, o diplomata aposentado direciona

a narração, constituindo a narrativa por meio da articulação

entre três vozes principais: a do narrador, o ex-diplomata, o

Ocidental e o Desajustado.

O escritor de Mongólia é nascido no Rio de Janeiro, na

década de 1960. Em sua carreira, atuou como romancista e

jornalista. Sua estreia na literatura foi em 1993 com o livro de

contos Aberração. Já seu primeiro romance, Onze, foi publicado

em 1995. No ano seguinte publica Os Bêbados e os sonâmbulos e,

152
em 1999, As iniciais. As publicações permitem que Carvalho se

firme como um dos mais importantes escritores da nova geração,

principalmente, em 2002, quando o título Nove noites lhe rende o

prêmio “Portugal Telecom de Literatura Brasileira”. Sua

literatura tem como característica marcante a mistura de ficção e

realidade, o que contribui para a verossimilhança,

principalmente, no que tange à descrição de lugares físicos.

Mongólia, objeto de nosso estudo, conquista o prêmio da

“Associação Paulista de Críticos de Artes” e, também, o “Prêmio

Jabuti” de 2002. Carvalho lança, ainda, os títulos O sol se

põe em São Paulo (2007), O filho da mãe (2009) e Reprodução (2013).

Entre as publicações de Carvalho, Mongólia ganha

destaque devido ao forte vínculo instituído entre ficção e

realidade. Para tanto, em nossa análise, pautaremo-nos,

prioritariamente, em Adorno (2003) e Benjamin (1994) para

analisar a construção do narrador, e em Friedman (2002) e Leite

(2002) para investigar de que modo o foco narrativo é

desenvolvido.

153
Entre conflitos e labirintos: a construção do narrador em
Mongólia

O início da diegése de Mongólia é marcado pelas reflexões

de um diplomata aposentado que, morando no Rio, começa a

recompor os passos de um antigo subordinado com o qual, há

tempos, não mantém relações. O interesse se dá por dois fatos: o

recente assassinado do ex-funcionário, bem como a relação

conflituosa que tiveram, e volta à tona devido à sua morte.

O contexto conturbado que marca o fim da vida do antigo

subordinado faz com que o diplomata elabore reflexões sobre si

próprio, o que culmina com a lembrança da existência de antigos

documentos do ex-funcionário em sua casa. Ao buscá-los,

descobre dois diários. Em um deles, o Ocidental narra sua

trajetória em terras mongóis na missão dada pelo antigo chefe:

encontrar um rapaz brasileiro que desapareceu na Mongólia:

“Virei a noite a ler os papéis, na verdade um diário que ele

154
escreveu na forma de carta (...)” (CARVALHO, 2003, p. 14). No

outro, pertencente ao próprio rapaz, fotógrafo, o narrador

descobre as motivações para a viagem empreendida por ele e que

provocou em seu desaparecimento: “[...] É o começo da minha

viagem. Meu objetivo é fotografar os tsaatan, criadores de rena

que vivem isolados na fronteira com a Rússia, entre a taiga e as

montanhas. Estão em vias de extinção” (CARVALHO, 2003, p.

39).

Por meio da leitura dos manuscritos, o romance parece

indicar a busca do narrador por si próprio, e, ao lado disso,

reconstrói a trajetória labiríntica que leva os dois viajantes a

revelarem suas próprias histórias. Nesse contexto, é por meio dos

documentos encontrados que o narrador concretiza um desejo

antigo: tornar-se escritor.

A narrativa de Mongólia parece evidenciar o porquê das

narrativas sempre terem seduzido o homem. Estas, por meio de

uma abordagem simbólica ou direta, tratam da condição

155
humana, seja em relação aos deuses, à natureza ou em relação

aos próprios homens.

Por meio da narrativa, é possível conhecer novos modos

de realização de tarefas, organizações sociais e também

diferentes lugares e pessoas, o que confere a narrativa um caráter

utilitário: “[...] Essa utilidade pode consistir seja num

ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num

provérbio ou numa norma de vida – de qualquer modo, o

narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BENJAMIM,

1994, p. 200). De fato, a atração do homem em relação à narrativa

está associada, em boa parte, ao seu desejo de dominar o que

desconhece. Nesse sentido, as histórias de cunho folclórico são

as que melhor exemplificam essa questão. Nelas estão sempre

presentes a ânsias do homem para decifrar problemas oriundos

da relação com a natureza, questionamentos sobre o seu eu

interior – existencial – ou exterior – social, entre outros.

O narrador postulado por Benjamim (1994), contudo, é

problematizado por Adorno (2003) em A posição do narrador no

156
romance contemporâneo. Como defende Adorno (2003), o quadro

intelectual em que nasce o romance se insere na era burguesa,

momento em que se crê na razão, à luz do iluminismo, para

expressão de soluções de conflitos da sociedade. Desse modo, as

produções literárias refletiam tais crenças, tornando a partilha de

experiências e vivências não tinha mais espaço.

A frase inaugural do importante ensaio de Adorno (2003,

p. 55) remete diretamente ao narrador benjaminiano: “Ela se

caracteriza, hoje, por um paradoxo: não se pode mais narrar,

embora a forma do romance exija a narração.”. Por meio da

citação, Adorno elucida um conflito importante que paira sobre

o narrador: como narrar, já que as experiências não são mais

cambiáveis? O que narrar no romance, tendo em vista que este

exige a narração?

A leitura de Mongólia inicia-se com uma narrativa que, à

primeira vista, irá nos remeter ao narrador benjaminiano: o

diplomata aposentado teve uma carreira sólida, tendo em vista

que permaneceu nela sua vida toda; como diplomata, viajou

157
muito, motivo que faz com que pressuponhamos que tenha

muitas experiências para partilhar. Aos poucos, suas reflexões

acerca de sua própria vida vão emergindo, contudo, um homem

com inúmeras incertezas sobre sua trajetória, seus desejos não

concretizados e seu medo de se lançar para o novo:

A literatura já não tem importância. Bastaria


começar a escrever. Ninguém vai prestar
atenção no que eu faço. Já não tenho nenhuma
desculpa para a mais simples e evidente falta
de vontade e de talento. O fato é que a notícia
da sua morte me deixou ainda mais prostrado.
Foi uma razão a mais para não sair. Não sou
um homem especialmente corajoso, e os anos
foram me deixando cada vez menos.
(CARVALHO, 2003, p. 11).

O narrador do referido romance inicia suas reflexões

elucubrando o fato de que não tem experiências, não tem uma

vida marcada por aventuras ou por ações extraordinárias. Talvez

por isso a fonte da narração do romance seja justamente as

histórias de outrem, mais especificamente, de dois homens que

158
empreenderam uma viagem rumo ao desconhecido e, nesse

trajeto, tornaram-se possuidores de experiências: “‘Quem viaja

tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador

como alguém que vem de longe”, decide cumprir o adiado plano

de se tornar escritor:

Não me resta muito a fazer senão protelar mais


uma vez o projeto de escritor que venho
adiando desde que entrei para o Itamaraty aos
vinte e cinco anos, sendo agora, aos sessenta e
nove, já não tenho nem mesmo a desculpa
esfarrapada das obrigações do trabalho ou o
pudor de me ver comparado com os
verdadeiros escritores. (...) Foi pensando nisso
que, de repente, lembrei que ainda deviam
estar comigo as coisas que ele tinha deixado na
embaixada de Pequim antes de voltar para
Xangai e retomar as funções de vice-cônsul,
não por muito tempo. (CARVALHO, 2003,
p.11).

Se o narrador de Mongólia busca na experiência de outrem

para construir a sua própria – tornar-se escritor –, os

responsáveis pela escrita dos diários partem para viagem

159
motivados por objetivos pré-definidos, porém, o que vem a tona,

durante a leitura, é justamente a impressão de que, nesse

processo, os dois acabam sendo desviados de seus objetivos

iniciais e pouco a pouco são lançados para caminhos que fazem

com que se encontrem . Entre desertos e caminhos labirínticos

um se afasta (no caso do jovem), e o outro é afastado (no caso do

estrangeiro) do seu objetivo inicial, pois dependem

exclusivamente dos outros para concretizarem seus destinos.

A narrativa de Mongólia é organizada em três capítulos:

no primeiro, ‘Pequim – Ullanbaatar’, o narrador empreende as

reflexões acerca da morte do Ocidental e inicia a leitura dos

diários encontrados. Por meio das leituras, começa-se a entender

os motivos que tornam a relação entre eles conturbada: além da

extrema diferença de opiniões entre eles, está o fato de que o

diplomata o envia para uma missão e encontra resistência no

cumprimento da ordem. Diante da negativa sem explicação do

Ocidental, o diplomata expressa a ordem de modo taxativo. As

160
motivações para a negativa são expressas somente no final no

livro, o que faz com que a narrativa guarde certo ar de mistério.

O narrador de Mongólia, portanto, encontra as reflexões de

Ginzburg (2012, p. 200), quando defende que:

É comum encontrar na narrativa brasileira


contemporânea a constituição de imagens da
vida humana pautadas pela negatividade, em
que as limitações e as dificuldades de
personagens prevalecem com relação à
possibilidade de controlar a própria existência
e determinar seu sentido.

O diplomata pode, com efeito, ser percebido dessa forma,

tendo em vista que desde o início da narrativa evidencia a

ausência de coragem que permeou sua história.

Se Benjamin defende incisivamente a morte do narrador

devido ao isolamento dos homens uns dos outro, Adorno

empreende importantes reflexões acerca da temática, quando

aborda a posição do narrador no romance contemporâneo:

161
Nesse processo, a própria alienação torna-se
um meio estético para o romance. Pois quanto
mais se alienam uns dos outros os homens, os
indivíduos e as coletividades, tanto mais
enigmáticos eles se tornam uns para os outros.
O impulso característico do romance, a
tentativa de decifrar o enigma da vida exterior,
converte-se no esforço de captar a essência, que
por sua vez aparece como algo assustador e
duplamente estranho no contexto do
estranhamento cotidiano imposto pelas
convenções sociais. O momento antirealista do
romance moderno, sua dimensão metafísica,
amadurece em si mesmo pelo seu objeto real,
uma sociedade em que os homens estão
apartados uns dos outros e de si mesmos. Na
transcendência estética reflete-se o
desencantamento do mundo. (ADORNO, 2003,
p. 58).

Com efeito, é justamente o caráter enigmático que envolve

as relações expostas em Mongólia que parece validar a narrativa.

O narrador mostra-se frustrado com sua própria trajetória, o que

indica que está apartado de si mesmo; é somente ao final do

romance que parece, de fato, ter concretizado algo válido, mas

162
que, do mesmo modo, trata com certo desmerecimento: “[...]

Escrevi este texto em sete dias, do dia seguinte ao enterro até

ontem à noite, depois de mais de quarenta anos adiando o meu

projeto de escritor. A bem dizer, não fiz mais do que transcrever

e parafrasear os diários, e a ele acrescentar a minha opinião”

(CARVALHO, 2003, p. 182).

Se, para Adorno (2003), é por meio da busca da

compreensão acerca da alienação dos homens que está a base do

romance, e através do desejo de decifrar a vida exterior, para

Benjamin:

[...] “o sentido da vida” é o centro em tomo do


qual se movimenta o romance. Mas essa
questão não é outra coisa que a expressão da
perplexidade do feito quando mergulhado na
descrição dessa vida. Nesse caso, "o sentido da
vida", e no outro, "a moral da história": essas
duas palavras de ordem distinguem entre si o
romance e a narrativa, permitindo-nos
compreender o estatuto histórico
completamente diferente de uma e outra
forma. (1994, p. 14).

163
Além de Benjamin e Adorno (2003), Bakhtin (2003)

também analisa o modo como os sujeitos apreendem uns aos

outros e de que modo isso se dá na construção estética. Com

efeito, o narrador, por meio da leitura dos documentos, busca, o

tempo todo, assimilar não somente a história que ambos narram,

mas, sobretudo, procura entender o modo como pensam, como

se comportam, como reagem às diversas adversidades. Um e

outro são, também, alvo de críticas do diplomata que, por

diversas vezes, repreende suas atitudes.

Para Bakhtin, esse processo se dá pelo conceito de

enformação da alma: como o ex-diplomata não consegue olhar

para sua própria vida de modo a considerá-la relevante, busca

fazê-lo por meio das vidas representadas nos documentos que

tem em mãos. A enformação da alma, portanto, se revela por

meio de uma vida alheia, por outra consciência. Assim,

conseguimos enformar a alma de outra pessoa exatamente por

nos encontrarmos no plano externo. Isso se manifesta através da

164
“compreensão simpática que diz respeito ao ativismo de olhar

para o outro de modo a tentar compreender seu mundo interior”

(BAKHTIN, 2003, p 120).

Bakhtin, portanto, nos conduz à reflexão de que é somente

por meio de uma pré-disposição, diante do valor axiológico da

vida do outro, que compreendemos não somente o outro, mas,

também, a nós mesmos. É somente ao projetar nosso olhar ao

outro que podemos, diante da totalidade da vida, constituí-lo.

O conceito de enformação discutido por Bakhtin,

portanto, leva-nos a entender de que modo construímos as

relações com o outro, mas, também, como se efetua, na

construção estética, a relação entre o narrador e as personagens,

tendo em vista que o primeiro é responsável, em Mongólia, por

desatar os nós que regem boa parte da narrativa.

Ocorrida, majoritariamente, em Mongólia, a narrativa

conduz o leitor pelo deserto no qual se desenvolve a diegése. Ao

iniciar a leitura dos diários, o narrador deixa claro que as

dificuldades que enfrentarão tanto o rapaz quanto o Ocidental

165
serão extremamente desafiadoras. Por meio da articulação das

vozes, portanto, o ex-diplomata permite entrever os percalços

pelos quais ambos passaram, mas, também, as dificuldades

inerentes ao próprio local, revelando um país com tradições

bastante demarcadas. O que torna Mongólia ainda mais

relevante, contudo, é o fato de os caminhos empreendidos pelas

personagens promovem um encontro deles com suas próprias

histórias.

Foco narrativo: a linguagem dialógica de Mongólia

Se o ser humano, em sua história, sempre buscou nas

narrativas maneiras para partilhar experiências, o advento do

romance marcou o início da construção de uma nova forma de

narrar, ou, ainda, inaugura possibilidades de distintas formas de

narrar. Dentre essas transformações, hoje, no romance

contemporâneo, é possível perceber que nem sempre a narrativa

precisa conter um aconselhamento: por vezes, as narrativas se

166
constituem na reflexão do sujeito sobre si próprio, em

elucubrações acerca das relações sociais. Estruturalmente, em

algumas obras, vislumbra-se a existência de um narrador, em

outras, de mais de um narrador, como em Mongólia. Para

Chiappini, apreende-se essas mudanças que:

No decorrer da História [...] as histórias


narradas pelos homens foram-se complicando,
e o narrador foi mesmo progressivamente se
ocultando, ou atrás de outros narradores, ou
atrás dos fatos narrados, que parecem cada vez
mais, com o desenvolvimento do romance,
narrarem-se a si próprios; ou, mais
recentemente, atrás de uma voz que nos fala,
velando e desvelando, ao mesmo tempo,
narrador e personagem, numa fusão que, se
apresenta diretamente ao leitor, também os
distancia, enquanto os dilui. (CHIAPPINI,
2002, p. 5-6).

O processo de velar e desvelar, por meio da fusão entre

narrador e personagem fica bastante evidente em Mongólia: por

meio das vozes de três narradores, a diegése apresenta, até certo

167
ponto, três histórias distintas, mas que se cruzam e se encontram

no desfecho da história. O narrador principal é um homem

aposentado de 69 anos que vive sozinho no Rio de Janeiro. A

tragicidade que circunda a morte de um ex-funcionário, o

Ocidental, o conduz a voltar-se para sua própria trajetória,

pessoal e profissional. Do mesmo modo, quando entende as

motivações para o antigo subordinado ter se negado em um

primeiro momento (tais motivações são esclarecidas ao leitor

somente no desfecho da diegése) a percorrer a Mongólia em

busca de um rapaz desaparecido, faz com que seu interesse pela

intricada história aumente.

A narrativa é construída in ultima res, quando a diegése

começa a ser contada pelo final. O narrador é onisciente intruso,

tendo em vista que, por meio dos diários a partir dos quais o

narrador consta a história, ele tem acesso ao pensamento das

personagens. Seguindo a classificação de Ligia Chiappini em O

foco narrativo, o narrador “onisciente intruso”:

168
[...] tem a liberdade de narrar à vontade, de
colocar-se acima, ou, como que J. Pouillon, por
trás, adotando um Ponto de Vista divino, como
diria Sartre, para além dos limites de tempo e
espaço. Pode também narrar da periferia dos
acontecimentos ou do centro deles, ou ainda
limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou
de frente, podendo, ainda, mudar e adotar
sucessivamente várias posições. Como canais
de informação, predominam suas próprias
palavras, pensamentos e percepções. Seu traço
característico é a intrusão, ou seja, seus
comentários sobre a vida, os costumes, os
caracteres, a moral, que podem ou não estar
entrosados com a história narrada [...]. (2002, p.
26-27)

Por ter acesso ao pensamento das personagens, é possível

classificar a visão como “Visão por Trás”, a partir da classificação

retomada por Chiappini a partir da obra de Jean Pouillon, tendo

em vista que, desse modo, o narrador tem acesso ao pensamento

e ao sentimento das personagens.

A partir da morte do Ocidental, o narrador empreende

uma série de reflexões acerca de sua carreira, que considera sem

169
sucesso, e de seu desejo em tornar-se escritor. Vê nos

documentos encontrados uma oportunidade para, enfim,

cumprir seu desejo, “Se pelo menos pudesse me orgulhar de uma

carreira de destaque, mas nem isso” (2003, p. 12).

Diante do olhar negativo em relação à sua carreira, e da

ausência de desculpas, tendo em vista a presente aposentadoria,

também menciona que o impedimento de escrever é apenas falta

de coragem. Sua decisão de escrever é novamente retomada ao

final do livro, e, talvez por ter se revelado um homem sem muita

coragem, minimiza a sua escrita.

O ponto central da narrativa é justamente o acesso do

narrador aos diários, o que valida não só o início de sua carreira

como escritor, mas, também, sua autoridade para partilhar a

história, tendo em vista que não é do narrador tradicional,

benjaminiano, que visa à partilha de experiências, mas, sim,

refletir sobre os caminhos labirínticos que marcaram não

somente a diegése, mas, também, sua própria carreira como

escritor.

170
Isso clarifica as relações dialógicas que permeiam a

construção da narrativa de Mongólia. Segundo Bakhtin (1986), os

enunciados surgem como produtos da interação entre sujeitos

socialmente, culturalmente e historicamente localizados. Diante

disso, no contato com o outro, imprimimos, em nossos discursos,

a carga social, cultural e histórica que irá nos constituir. Em

consequência, nessa relação, nos deparamos, da mesma forma,

com a carga social, cultural e história do outro. Assim: “reagimos

àquelas (palavras) que despertam em nós ressonâncias

ideológicas ou concernentes à vida.” (BAKHTIN, 1986, p. 95). Tal

processo é constante e ininterrupto, produzimos discursos que

respondem a outros discursos, e outros discursos surgirão

reagindo aos nossos.

Constatamos, então, que as relações dialógicas permeiam

o surgimento de qualquer enunciado: pronunciamo-nos em

resposta a algo, e/ou seremos respondidos ao nos

pronunciarmos. Pensar sobre tal processo torna-se fulcral por

que vai além da interação face a face ou momentânea. Do mesmo

171
modo, as produções escritas são passíveis de tal processo

dialógico: “[...] o discurso escrito é de certa maneira parte

integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele

responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas

e objeções potenciais, procura apoio, etc. (BAKHTIN, 1986)”.

Concretizando a presença do dialogismo na obra, nota-se

que o narrador se compara, em diversos momentos, com o

Ocidental, tanto no que tange às ideias quanto no que diz

respeito ao comportamento. Quando o diplomata aposentado

está utilizando da própria voz para narrar, evidencia uma série

de apontamentos e reflexões nessa perspectiva:

Procurei ajudá-lo como pude, reconhecia nele


alguma coisa de mim, achava que ainda era
tempo de salvá-lo, mas até a minha paciência
tinha limites. Faltavam dois anos para me
aposentar. Cometi muitos erros na vida.
Abandonei projetos pessoais pela segurança e
pela comodidade que o Itamaraty me dava,
não sem levar em troca parte da minha alma.
Não tive coragem de assumir compromissos,
não me arrisquei, e acabei só. Se pelo menos

172
ainda pudesse me orgulhar de uma carreira de
destaque, mas nem isso. (CARVALHO, 2003, p.
12).

A comparação é acentuada quando a própria carta-diário

do Ocidental é tomada pelo narrador como uma resposta aos

argumentos e ideias dele: quando o narrador insere, em algum

momento da narrativa, recortes da carta-diário do Ocidental, faz

questão de problematizar e refletir acerca das ideias e

posicionamentos do mesmo.

Outro momento que deixa a comparação evidente é o

momento em que ele se previne do que possa encontrar no

diário: “Não sei até que ponto posso confiar no que escreveu, já

que ele mesmo, como acabei entendendo, não confiava nas

próprias palavras. Seus olhos distorciam a realidade. Eu já sabia

o que ele tinha visto na China, que não correspondia ao que eu

via” (2003, p. 34). Em vista disso, o narrador não deixa de

elucidar que considera seu modo de observar as relações sociais

de forma mais crítica que o Ocidental. O narrador possui uma

173
visão divergente, em relação à do Ocidental, no que diz respeito

ao olhar sobre as cidades. Para revelar tal dissonância, o narrador

principal cede a voz à personagem para, na sequência, contrariá-

la, “o mais trágico e irônico de tudo isso é que as ‘belezas do

Brasil’ não foram capazes de salvá-lo. Tivemos mais de uma

discussão sobre a cultura na China. Ele acabava de chegar e já

estava cheio de ideias. Eu estava acostumado.” (CARVALHO,

2003, p. 22).

Dos donos dos diários encontrados, o narrador dialoga,

principalmente, com o Ocidental, tendo em vista que é a partir

de sua morte que se inicia a narrativa. Nessa perspectiva, a

narrativa reafirma à defesa de Bakhtin (2003) para a importância

da morte enquanto valor axiológico: é somente após a morte do

Ocidental que o narrador se aventura a buscar os papéis há

muito guardados.

Em Mongólia, o foco narrativo é organizado

prioritariamente para articular três histórias distintas, a partir da

voz de três narradores, mediados por um narrador principal, o

174
ex-diplomata. Por ser o responsável em reger a narrativa, utiliza-

se dos diários de modo a elucidar uma série de conflitos e

dificuldades enfrentadas pelo Ocidental, principalmente, devido

a sua visão de mundo bastante estereotipada, e que o impede

diversas vezes de compreender a cultura mongol, e, no caso do

diário do Desajustado, permite que se entrevejam as descrições

dos espaços percorridos e de sua trajetória rumo às descobertas

das histórias locais.

As anotações dos diferentes viajantes estão presentes no

livro. Para serem identificadas, o autor usou de artifício gráfico:

cada narrativa tem um formato de fonte tipográfica diferente.

Assim, as vozes do diplomata aposentado, do Ocidental e do

fotógrafo são descritas no decorrer da trama narrativa de acordo

com a seguinte ordem de apresentação: Times New Roman;

Itálico e Arial. Esse recurso direciona os interlocutores para uma

leitura dinamizada e ilustrativa. Além disso, é possível perceber

distinções no estilo de escrita dos três: a do Ocidental é mais

reflexiva, dialogal – pois se trata de uma carta; e a do fotógrafo

175
se caracteriza pelos períodos mais curtos, objetivos, detalhados,

pois se trata de um texto para uma revista.

É pertinente destacar que o narrador não menciona, em

nenhum momento, seu próprio nome e o nome dos outros dois

narradores. Em relação a eles, refere-se somente por meio dos

estereótipos que enfrentaram durante a viagem: um era o

Ocidental, que necessita em diversos momentos comprovar sua

honestidade; o outro era tratado como Desajustado, devido a sua

impaciência para ter seus desejos atendidos e pela dificuldade de

aceitar regras.

As motivações para a viagem empreendida pelo fotógrafo

são abordadas em tom de mistério durante boa parte da

narrativa: inicialmente, percebe-se que foi escrever uma

reportagem para uma publicação de turismo, contudo, aos

poucos, nota-se que o interesse pela reconstrução de uma

experiência religiosa, mística e sexual de um lama fugitivo do

comunismo, além de nos revelar sua decepção com o Budismo:

176
Autoritária e repressiva, a igreja budista, como
a católica ou qualquer outra, pode ser moralista
e hipócrita em extremo. Por que seriam
diferentes do resto dos homens? Ao contrário
do que se pensa, no budismo também há
representação do inferno para os pecadores.
Noutro templo de ErdeneZuu, deparo com
uma pintura sobre um tecido roto. É uma tanka
em que reconheço a mesma deusa vermelha
sobre a qual uma guia passou horas
discorrendo, no Museu de Belas Artes de UB,
sem que eu tivesse lhe perguntado nada. É uma
entidade demoníaca, com uma coroa e um
colar de cinquenta crânios, que tenho a
pachorra de contar. Tem o sexo exposto e
entreaberto. Numa das mãos, traz o tampo de
um crânio cheio de sangue, como uma cuia da
qual ela bebe. Na outra, segura um cutelo. Com
o pé direito pisa num corpo vermelho e com o
pé esquerdo, num corpo negro. (CARVALHO,
2003, p. 59).

Por meio dos diários, o narrador também entrecruza

informações obtidas, permitindo-nos desenvolver análises

acerca das condições nas quais o rapaz desapareceu. Por meio

disso, é possível se envolver na história como se tivesse

177
participado e estabelecer um jogo entre informações reais e

ficcionais, obtendo acesso aos sentimentos e pensamentos das

personagens.

Por meio dos documentos, o narrador identifica também

algumas semelhanças no que tange ao modo de pensar entre eles:

“O horror que o desaparecido demonstrava pela religião em seu

diário vinha da desilusão e do descompasso que, em apenas três

dias e sem maior conhecimento de causa, como de costume, o

Ocidental também já podia confirmar.” (CARVALHO, 2003, p.

103).

A confluência de pontos de vista entre os donos dos

diários não é um dado aleatório: por meio dele, os caminhos

percorridos, até então, em um labirinto se confluem e torna

possível a compreensão da negativa inicial por parte do

Ocidental para procurar o rapaz desaparecido: ele e o

Desajustado são irmãos e, antes do encontro na Mongólia, o

havia visto somente anos antes, na única vez em que procurou o

178
pai. O Ocidental é fruto de uma relação passageira entre seu pai

e sua mãe:

Da janela, ao meu lado, Buruu Nomton


[Desajustado] acompanha toda a cena em
silêncio. Nossos olhares e, pela primeira vez,
ele sorri. Como na primeira e única vez que o
vi antes desta viagem, quando ele tinha apenas
cinco anos e não podia entender quem eu era
nem o que estava fazendo ali. (CARVALHO,
2003, p. 181).

Além desse encontro, que parece provocar um dos

desfechos para a trama, o ex-diplomata também se encontra:

finalmente se torna escritor, e, também, tem a oportunidade de

devolver os diários à viúva, na missa de sétimo dia da morte do

Ocidental.

Considerações finais

Ao refletirmos acerca dos modos de construção do

narrador em um romance contemporâneo, foi possível percorrer

179
os caminhos por meio dos quais se constroem o narrador

atualmente. É possível entrever que, para narrar, já não é

possível exclusivamente veicular ensinamentos: o narrador, hoje,

reflete as marcas da constituição do sujeito no século XXI: nem

sempre dono de certezas e raramente transmissor de

experiências.

O foco narrativo contribui para elucidar essa questão, ao

mostrar que o narrador, diversas vezes, precisa do auxílio de

outros narradores e outras histórias para narrar a sua própria.

Dentro dessa perspectiva, Mongólia se constrói justamente por

meio da articulação de vozes distintas, tendo em vista que três

narradores contribuem para a construção de uma única

narrativa.

Por fim, Mongólia é uma interessante reflexão acerca dos

sujeitos em busca de si próprios, tendo em vista que nos permite

construir a ideia de que precisamos, por vezes, percorrer

caminhos impensados para encontrar nossa história, ou

concretizar desejos antigos. Do mesmo modo, deixa clara a

180
importância do narrador no romance contemporâneo, porém,

construído de modo bastante distinto da apresentada pelo

narrador benjaminiano.

Referências:

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance


contemporâneo. In: Nota de Literatura I. Tradução de Jorge de
Almeida. Duas Cidades; Ed. 34. São Paulo. 2003. p. 55-63.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da


linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira, com a colaboração de Lucia Teixeira Wisnik e Carlos
Henrique D. Chagas Cruz. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de


Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a
literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo: Companhia das


Letras, 2003.

181
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o
desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução Fábio
Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n.53, p.166-182,
março/maio 2002.

GINZBURG. O narrador na literatura brasileira contemporânea.


Tintas. Quaderni di letterature iberiche e iberoamericane, 2
(2012), p. 199-221. Disponível em: <
http://riviste.unimi.it/index.php/tintas >. Acesso em: 5 set. 2016.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes Leite. O foco narrativo. São Paulo:


Àtica, 2002.

182
A MORTE EM LUIZ VILELA: DO PRIVADO AO PÚBLICO

Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: O presente artigo discute a morte da privacidade na


obra de Luiz Vilela, por meio de alguns contos que colocam em
cena a questão da morte e a atitude dos seres humanos frente à
tragicidade da vida. A reflexão sobre a respectiva temática vai
aparecer em contos como “Vazio”, “Enquanto dura a festa” e
“Velório”, de Tremor de Terra (1967), “Fazendo a barba”, de O fim
de tudo (1973), “A cabeça”, de livro homônimo (2002), “Corpos”
e “O que cada um disse”, de Você verá (2013). Nos primeiros
contos, das coletâneas Tremor de Terra e O fim de tudo, as
narrativas abordam a morte em âmbito mais privado, restritos
ao círculo familiar e ao de amigos, enquanto os contos de A cabeça
e Você verá ganham o espaço do público, das ruas e do mundo
virtual, em que é perceptível a banalização da morte como um
dos fenômenos da chamada sociedade contemporânea do
espetáculo. De certo modo, as mídias sociais e as tecnologias
contribuíram para que a solidão na hora da morte, antes restrita
à esfera familiar, adquirisse os contornos do público. Os contos
apontados, a nosso ver, retratam uma mudança de atitude do
homem contemporâneo em relação à Morte. Para nossa
discussão alicerçamo-nos em estudos históricos e sociológicos,
como os de Ariès e Bauman.

183
Palavras-chave: histórico; Luiz Vilela; morte; sociedade.

A temática da morte está presente em grande parte da

obra de Luiz Vilela. Chamamos a atenção, em especial, para

algumas narrativas curtas, em que o debate sobre a morte dá

lugar para o desnudamento das relações humanas na sociedade

contemporânea. Nos contos em questão, podemos perceber que

não há apenas uma discussão filosófica sobre a morte e a falta de

sentido dos atos ritualísticos; a temática surge como pretexto

para outros questionamentos acerca das relações humanas, como

a falta de sensibilidade, o egoísmo e as máscaras sociais, que

levam a comportamentos preconcebidos.

A reflexão sobre a temática da morte vai aparecer em

alguns contos de Luiz Vilela, como “Vazio”, “Enquanto dura a

festa” e “Velório”, de Tremor de Terra (1967), “Fazendo a barba”,

de O fim de tudo (1973), “A cabeça”, de livro homônimo (2002), e

“Corpos” e “O que cada um disse”, de Você verá (2013). Nos

184
primeiros contos, das coletâneas Tremor de Terra e O fim de tudo,

as narrativas abordam a morte em âmbito mais privado, restritos

ao círculo familiar e ao de amigos, enquanto os contos de A cabeça

e Você verá ganham o espaço do público, das ruas e do mundo

virtual, em que é perceptível a banalização da morte como um

dos fenômenos da chamada sociedade contemporânea “do

espetáculo”. De certo modo, as mídias sociais e as tecnologias

contribuíram para que a solidão na hora da morte, antes restrita

à esfera familiar, adquirisse os contornos do público. Os contos

apontados, a nosso ver, retratam uma mudança de atitude do

homem contemporâneo em relação à Morte.

O historiador Philippe Ariès, em História da morte no

ocidente (1977), vê quatro momentos que marcaram atitudes

diferenciadas do ser humano em relação à Morte: primeira idade

média, em que não havia preocupação com o destino dos corpos,

sendo enterrados em valas comuns; século XII ao XVIII, em que

a percepção sobre a própria morte se altera, com início das

sepulturas individuais e origem dos cemitérios; século das luzes,

185
em que a percepção sobre a morte se torna mais dramática e o

homem adquiri a dimensão de seu aniquilamento, são criados

rituais e cultos aos mortos, com a presença inclusive das

carpideiras nas cerimônias fúnebres; e, finalmente, a partir de

1950, em que a morte é separada do convívio íntimo e, além de

indesejada, precisa ser ocultada. Assim, a partir da segunda

metade do século XX, com o advento da sociedade industrial e

crescimento das cidades, o indivíduo já não morre mais em casa,

mas sim no hospital.

Os sociólogos e historiadores da morte apontam, além da

transferência da morte da casa para o hospital, a extinção do luto.

Houve uma perceptível mudança no modo de se encarar a morte

na sociedade moderna. Até o início do século XX, a morte de cada

indivíduo constituía um evento público, sendo velado em casa,

com visitas de familiares e amigos, ou daqueles que assim faziam

por convenção. Seguia-se um considerável período de luto. Com

a modernidade tardia,

186
Nada mais anuncia ter acontecido alguma
coisa na cidade: o antigo carro mortuário negro
e prateado transformou-se numa limusine
banal cinza, que passa despercebida no fluxo
da circulação. A sociedade já não faz uma
pausa: o desaparecimento de um indivíduo
não mais lhe afeta a continuidade. Tudo se
passa na cidade como se ninguém morresse
mais. (ARIÈS, 1982, p. 613)

A nosso ver, o luto saiu de cena, cedendo lugar a uma

visão banalizada da morte. Na chamada “sociedade do

espetáculo”, busca-se pelo momento da morte, o que pode ser

verificado pelas constantes viralizações de imagens de

momentos trágicos. O individualismo desenfreado, ocasionado

pelo capitalismo, o tempo escasso, a fluidez e a superficialidade

das relações promovidas pelas mídias sociais, entre outros

fatores, contribuíram para a mudança de atitude do homem

contemporâneo frente à Morte.

No conto “Fazendo a barba”, de O fim de tudo (1973),

temos um narrador heterodiegético, que relata o trabalho de dois

187
homens, um adolescente e um barbeiro, que barbeiam um

defunto, morto durante a madrugada. A narrativa é sob o ponto

de vista do garoto que acompanha espantado os procedimentos

do barbeiro.

Ao encostar a mão, o homem constata: “– Ele está quente

ainda.” (VILELA, 1973, p. 53). O rapazinho, então, pergunta

apreensivo “– Que hora que foi? (VILELA, 1973, p. 53). Somos

informado que ele sempre fora rápido no serviço, “mas aquela

hora sua rapidez parecia acompanhada de um certo

nervosismo.” (VILELA, 1973, p. 54). Descontrolado, termina por

derrubar o pincel de espuma. Ao perceber o constrangimento do

garoto, o barbeiro pergunta se ele quer esperar fora do quarto, ao

que ele nega. O barbeiro justifica seu oferecimento: “– A morte

não é um espetáculo agradável para os jovens. Aliás, para

ninguém.” (VILELA, 1973, p. 54).

Na sequência, “Através da porta fechada vinha o

murmúrio abafado de vozes rezando um terço.” (VILELA, 1973,

p. 54). Percebe-se as ações ritualísticas que envolvem um funeral:

188
o cuidado com o morto, as rezas, o terço. Em O homem diante da

morte (1982), Ariès chama a atenção para os aspectos ritualísticos

que envolviam os funerais até o início do século XX, podiam

envolver toda a comunidade:

a morte de um homem modificava


solenemente o espaço e o tempo de um grupo
social, podendo se estender a uma comunidade
inteira, como, por exemplo, a uma
aldeia.Fechavam-se as venezianas do quarto
do agonizante, acendiam-se velas, punha-se
água benta; a casa enchia-se de vizinhos e
parentes, de amigos e sérios. O sino dobrava a
finados na igreja de onde safa a pequena
procissão que levava o Corpus Christi...
(ARIÈS, 1982, p. 613)

Assim como o rapazinho, o barbeiro tem uma atitude

diferenciada diante do morto:

O barbeiro afiava a navalha. No salão era


conhecido seu estilo de afiar, acompanhando
trechos alegres de música clássica que ele ia
assobiando. Ali no quarto, ao lado de um

189
morto, afiava num ritmo diferente, mais
espaçado e lento; alguém poderia quase
deduzir que em sua cabeça o barbeiro
assobiava uma marcha fúnebre. (VILELA,
1973, p. 55).

Por tratar-se de momento triste, o homem muda seu ritmo

de assobio (talvez em respeito ao morto, alguém que ele não

conhece?). E o garoto então afirma: “– É tão esquisito [...] Deus

me ajude a morrer com a barba feita – disse o rapazinho, que já

tinha alguma barba. – Assim eles não têm de fazer ela depois de

eu morto. É tão esquisito...”. (VILELA, 1973, p. 55). O barbeiro,

no entanto, age com mais naturalidade, comentando “–Ele, nós,

a morte, a vida; quê que não é esquisito?” (VILELA, 1973, p. 55).

O acontecimento impulsiona os pensamentos do garoto

sobre uma série de reflexões sobre a morte e os mistérios da vida:

– Será que ele está vendo a gente de algum


lugar? [...] Olhou para o teto – o teto ainda de
luz acesa – como se a alma do morto estivesse
por ali observando-os; não viu nada, mas

190
sentia como se ela estivesse por ali. [...].– Por
que a gente morre? [...] – Por que será que a
gente não acostuma com a morte? [...] – A gente
não tem que morrer um dia? Todo mundo não
morre? Então por que a gente não acostuma?
(VILELA, 1973, p. 57).

A seguir, as vozes e os choros aumentam e o rapaz alegra-

se por estarem quase terminando o serviço, logo poderia respirar

o ar fresco da manhã.

De todos os contos analisados, “Fazendo a barba” é o

único em que se percebe a reflexão sobre o ato de morrer e certa

atitude de respeito e contemplação com o corpo do morto.

Depois de cortar um fiozinho do bigode do morto, os dois ficam

olhando para o corpo e o barbeiro constata: “– A morte é uma

coisa muito estranha.” (VILELA, 1973, p. 57).

Ao saírem para a rua, ainda impregnados pelo clima de

morte, caminham longo tempo em silêncio, até que, à porta de

um buteco, o barbeiro convida o rapazinho para tomarem “uma

pinguinha”, dizendo “é bom para retemperar os nervos”

191
(VILELA, 1973, p. 58). E permanece a ideia de que a vida

continua; independente do morto, a roda da vida continua a

girar.

Em “Velório”, um narrador homodiegético relata alguns

acontecimentos do velório do amigo Valico. Inicialmente cada

amigo fala das qualidades de Valico e de como “um homem

[daquele] é difícil de encontrar hoje em dia.” (VILELA, 1972, p.

82). O diálogo entre os quatro amigos do defunto é sempre bem

humorado, deixando entrever o perfil de cada um deles. A hora

do enterro se aproxima, mas o caixão não chega a tempo; depois

de muita discussão com a funerária, não há outra alternativa a

não ser transferir o enterro para o dia seguinte.

Com o passar do tempo, as caras de tristeza vão sendo

substituídas por cansaço e desolação, afinal era madrugada e

todos queriam dormir. Os quatro amigos chegam à conclusão de

que seria sacanagem com o morto deixá-lo sozinho, então

decidem passar a noite em vigília. Para passar o tempo, enquanto

esperam o dia amanhecer, resolvem jogar sete e meio. Em meio

192
a um diálogo hilário, os amigos continuam a jogar e a beber

cervejas e pinga, e o que era para ser um velório começa a se

aproximar de uma animada noitada de jogos entre amigos. Ao

final, eles acabam ferrando no sono e, quando acordam, o

defunto já tinha sido levado. Indignado, o narrador afirma: “Sim

senhor; a gente faz aquilo tudo, espera aquele tempo todo e ainda

fazem o enterro sem a gente; sim senhor. Fiquei puto. — Foda-

se. (VILELA, 1972, p. 95).

Em “Enquanto dura a festa” temos um relato em primeira

pessoa de um rapaz diante da morte do próprio pai, seguido dos

acontecimentos que envolvem seu funeral: “Na hora que ele

morreu minha irmã veio gritando pela casa como se fosse o fim

do mundo, acordei com o coração na garganta, quase que eu

morro também.” (VILELA, 1972, p. 131). Já pelo título

percebemos o olhar desse narrador sobre as atitudes das pessoas

que participam desse momento, visto que “festa” não seria a

denominação mais apropriada para o acontecido.

193
Perplexo com a hipocrisia dos presentes no velório, reflete

sobre comportamentos socialmente preestabelecidos: “‘Meus

sentidos pêsames’ — os palhaços. Um chegou com a cara mais

caprichada do mundo e na hora de me estender a mão: ‘meus

parabéns’ — e nem deu pela coisa. Quase estourei numa risada.”

(VILELA, 1972, p. 132). As pessoas sempre fazem o que esperam

delas, muitas vezes sem a mínima reflexão sobre o ato em si. De

dentro da história, o narrador ocupa a posição de quem não

concorda com a teatralidade e os exageros que tomam os

velórios. “É como uma festa, uma festa fúnebre em que em vez

de rir todo mundo chora e se embriaga com lágrimas, enquanto

piedosas mentiras são ditas à meia-voz por rostos falsamente

compungidos; e no meio de tudo isso o morto: a causa, o

pretexto, o ornamento.” (VILELA, 1972, p. 133).

Podemos perceber, nos dois contos, que o funeral se torna

mais importante que o próprio morto. Escondido em seu quarto,

o narrador de “Enquanto dura a festa” repudia as normas e

convenções sociais, pertence ao rol de narradores de Vilela que

194
questionam a hipocrisia das relações de uma sociedade cada vez

mais individualista. As ações sociais são organizadas por

modelos pré-estabelecidos e os indivíduos revestem-se de

máscaras para “atuarem” de acordo com o esperado a cada

situação. Muitos dos que participaram dos funerais certamente

prestaram condolências sinceras às famílias, mas grande parte

dos presentes “[...] estavam lá apenas como figurantes de uma

festa ensaiada, em que todos devem ‘entrar no clima’, ou seja,

chorar, dar sentidos pêsames à família, elogiar o morto [...].”

(CEREZOLI, 2012, p. 8).

No conto “Vazio”, de Tremor de terra (1967), em que

também predomina o diálogo, é encenado o enredo e um homem

que volta mais cedo para casa e diz a sua mulher que não vai

mais trabalhar (“hoje e sempre”). A esposa não o compreende e

o homem, estirado em uma poltrona, calado e enigmático, não

chega a explicar o porquê de sua decisão. Ao perceber que o

marido não vai falar, a esposa se enfurece e lança contra ele um

jarro, que o atinge no rosto acaba atingindo-o com um jarro no

195
rosto, matando-o. A tragédia fica restrita ao âmbito familiar, não

há testemunhas do incidente.

No conto O que cada um disse, de Você verá (2013),

também é encenada uma tragédia familiar. Conto inovador pela

forma e conteúdo, traz vários fragmentos de entrevistas que

formam um mosaico em relação à imagem do autor de um

assassinato. O que fica subentendido é que um homem de classe

média alta matara toda a família — a mulher e dois filhos —

suicidando-se em seguida. Ao contrário de “Vazio”, não

sabemos o motivo das ações do homem, temos apenas as

especulações sobre as possíveis motivações para tal violência. Ou

seja, enquanto em “Vazio” a narração é de dentro dos fatos,

privado, em “O que cada um disse” só temos o externo, o

público.

Precisamos de vários depoimentos para tentar entender o

perfil de um pai de família que toma uma atitude —

aparentemente injustificada —, visto que era rico, tinha uma

mulher bonita, filhos bonitos, bom emprego. No entanto, são

196
conjecturas, nada é esclarecido, não chegamos a conhecer sua

real motivação. O que vai ao encontro das ideias de Zymunt

Bauman (2001) sobre a “modernidade líquida”, marcada por

relações sociais fluídas e instáveis. Segundo o autor, vivemos em

uma sociedade em que as relações não duram, o tempo pode ser

superado pela velocidade e as tecnologias permitem conhecer o

mundo em instantes. As noções de tempo e espaço já não são as

mesmas e a velocidade passa a ser uma característica marcante

da contemporaneidade. Em consequência, os vínculos sociais se

tornam frágeis, líquidos, as pessoas não mais estreitam os laços.

As mídias sociais permitem o conhecimento de muitas facetas do

ser, mas não sua individualidade.

As respostas dos entrevistados sobre o que teria motivado

o ato separam-se por lacunas em branco, o que também podemos

entender como espaços que nunca são preenchidos na busca pela

identidade e pela compreensão dos acontecimentos. Seja pelo

que afirma o dono da banca, o integrante da irmandade religiosa,

o colega de trabalho, a empregada doméstica, o jardineiro ou o

197
dono do restaurante frequentado pela família o que se pode

concluir é que “A gente não conhece ninguém: essa é a conclusão

que eu tiro. A gente não conhece ninguém. Às vezes nem a

própria pessoa se conhece. Somos um bando de desconhecidos –

uns para os outros e cada um para si mesmo.” (VILELA, 2013, p.

19).

Em “A cabeça” há verdadeira banalização a respeito da

violência e da morte. No meio da rua, uma cabeça torna-se objeto

de observação e curiosidade dos passantes. Ninguém sabe como

fora parar ali, e alguns populares — identificados como “um

homem de terno e gravata”, “o da bicicleta”, “o baixote”, “o

gordo”, “o barbicha”, “a moça”, “a ruiva”, “o preocupado” e

“dois meninos” — se juntam para tecer comentários sobre o

ocorrido.

Esse conto nos obriga a citar uma das características

marcantes de Vilela que é a força do diálogo na construção da

narrativa. A originalidade reside no entrecho encenado, na

profunda ironia dos diálogos, que surgem a respeito da

198
motivação do crime e do que fazer com aquela cabeça. De certa

forma, a predominância dos diálogos concretizados nas falas das

personagens, delimitadas por aspas, aproxima a narrativa do

texto dramático. O conto é construído quase que unicamente por

diálogos, neutralizando-se a voz do narrador, que tem poucas

intervenções, com o que se permite às personagens, como que

serem apresentadas por suas intrusões e falas.

Em meio a conjecturas de como e quando alguém viria

tirar a cabeça dali, um personagem, “o preocupado”, nota que

“[a] sorte é que ela não está fedendo”; ao que “o gordo”

pergunta: “vocês já repararam que gente morta fede mais que

bicho morto?...”; então “o de óculos” explica: “[d]eve ser porque

gente é pior do que bicho”. Segue-se diálogo hilário sobre Deus

e a existência, ao que um observador, não demarcado, conclui:

“Deus uma cagada, o homem uma cagada, a vida uma cagada:

tudo uma cagada.” (VILELA, 2002, p. 128).

De repente, “a moça” grita, identificando a cabeça como

sendo de Zuleide, uma frequentadora do salão. Segue diálogo

199
tenso sobre violência contra a mulher e adultério. “‘Sou capaz de

apostar um milhão’, disse o gordo. ‘A mulher estava chifrando o

cara, e aí ele: sssp!...’” (VILELA, 2002, p. 129). Então “a ruiva” e

“a moça” saem em defesa das mulheres e os homens, a maioria

na rodinha, fazem observações depreciativas a respeito do sexo

feminino.

Para coroar o tom de deboche do diálogo, dois meninos,

vestidos com camisetas de seus times, imaginam fazer uma bola

da cabeça. O primeiro diz: “Dá vontade de correr e encher o pé”

; “Dá vontade de dar um balão”, o outro responde; ao que o

primeiro acrescenta: “Aí eu corro lá pra frente e mato no peito”

(VILELA, 2002, p. 132). Em vários momentos da narrativa, os

populares se perguntam sobre o pipoqueiro e o picolezeiro,

aproximando a cena de um momento de lazer e diversão.

Há banalização da violência e da morte no conto. As

perguntas feitas inicialmente pelo narrador, sobre a cabeça —

“De quem era? Quem a pusera ali? Por quê?” —, ficam sem

respostas. A cabeça continuará anônima e a vida de cada um dos

200
curiosos seguira seu curso. Da crueza dos diálogos exala a

brutalidade de um tempo em que a violência passou a ser traço

característico dos centros urbanos, e, como tal, tratada com

preocupante naturalidade pelos indivíduos. Cria-se uma

atmosfera de horror e de humor, amalgamados pelo cenário

cotidiano da vida na cidade. Sobre isso, Vilela mesmo afirma: “A

realidade cotidiana brasileira é a matéria-prima da minha ficção”

(VILELA, 1981). Tudo isso regado por ironia cortante. Em Luiz

Vilela, a ironia é “vista como necessidade do mundo

contemporâneo”, pois “espelha uma sociedade cética, produto

da perda de seus valores e referências”, de modo que “[o] riso

irônico liberta-se do sentimentalismo para ler a sociedade de

modo inteligente e frio [...]” (PEREIRA, 2010, p. 46).

O conto “Corpos”, de Você verá (2013), será marcado pela

mesma banalização presente no conto “A cabeça”. O enredo é

simples: dois homens, provavelmente diante do computador de

uma sala com ar condicionado, conversam sobre fotos de um

acidente aéreo, no qual morreram quase duzentas pessoas,

201
postadas na rede virtual. O conto é totalmente em forma de

diálogo, sem qualquer intromissão do narrador, dispensando

inclusive os verbos dicendi. Pelas fotos, os dois personagens vão

tecendo considerações sobre como poderia ter sido o acidente e

quem seriam os passageiros. A atitude dos dois e o conteúdo do

diálogo chamam atenção pela naturalidade com a qual

discorrem sobre os corpos mutilados.

“Olha esse aqui: as tripas. Que coisa mais


horrorosa...”
“O cara era gordo; ele morreu segurando a
barriga...”
“É...”
“Coitado... Será que ele já caiu com a barriga
aberta assim, por causa da pressão da queda,
ou será que foi depois que o avião caiu?”.
[...]
“Está parecendo barriga de porco; é igual
quando meu tio matava porco, lá na fazenda,
aquela tripaiada em cima da mesa da
madeira.” (VILELA, 2013, p. 85).

202
Este é o tom, em certo momento um deles diz: “Tinha uma

moça muito bonita, eu vi no jornal. Acho que ela estava viajando

para participar de um concurso de miss”. (VILELA, 2013, p. 88),

ao que ele passa a querer encontrá-las entre os corpos. O que

indica que, antes de verem as fotos, se informaram sobre a

tragédia. Ao passarem pela imagem de um corpo feminino, um

deles acredita ver a calcinha de uma das vítimas. Em meio à

conversa, percebemos algumas falas que indicam medo ou

reflexão sobre a morte.

“Sei lá, poxa. Não sei nem quero saber. Só


espero que isso nunca aconteça comigo.”
(VILELA, 2013, p. 85).
“A gente fica pensando, né? A gente fica
pensando: o sujeito está lá, curtindo a sua Coca
e comendo o seu sanduíche, ou então recostado
na poltrona, feliz da vida, olhando, pela
janelinha, o céu azul lá fora, a aeromoça
passando...”
“Não é mais aeromoça: agora é comissária;
comissária de bordo”
“Tudo tranquilo, tudo perfeito. E de repente
um barulho, o susto, o pavor, o desespero, a

203
gritaria. E então o estrondo, a dor, e pronto,
mais nada, acabou-se tudo, fim.” (VILELA,
2013, p. 90).
“E que, quando o nosso dia chegar, tenhamos
uma morte tranquila.” (VILELA, 2013, p. 91).

Ao refletirem sobre a morte, as personagens parecem

compreender que a fatalidade da existência é a única certeza que

permeia a vida humana. Reconhecem a inevitabilidade: “E que,


quando o nosso dia chegar, tenhamos uma morte tranquila.” (VILELA,

2013, p. 91). A aparente falta de sentido da morte faz com que

reflitam sobre o fenômeno. O que nos leva a pensar se a

naturalidade com a qual tentam ver os corpos não seria uma

forma de lidar com um assunto ainda tão assustador como a

morte. Afinal, quando rimos de algumas situações elas parecem

se tornar menos complicadas ou assustadoras. Um deles conclui

que não gostaria de ter de passar de modo tão trágico pela morte,

enquanto o outro se indaga sobre a falta de respeito da exposição

das fotos pela internet para, logo em seguida, constatando: “’Não

há mais nada proibido. A internet mostra tudo: de gente

204
transando a gente morrendo, de gente matando a gente

nascendo. Tudo’”. (VILELA, 2013, p. 91). Com a internet,

consolidou-se o fim da privacidade.

Zygmunt Bauman, em Medo líquido (2009), coloca o medo

da morte como um dos principais que permeiam a sociedade

atual. Segundo o estudioso, é próprio das culturas humanas

encontrar estratégias que tornem a vida suportável com a

consciência da morte. E, na modernidade líquida, a banalização

do inevitável surge como uma dessas estratégias, visto que a

morte, principalmente em decorrência do aumento da violência

e da vida atribulada, é encenada cotidianamente, tornando-se

um evento banal. As mídias e o mundo virtual contribuem para

a propagação desta ideia. No contexto de medo e incertezas da

modernidade, os vínculos sociais tornaram-se frágeis. De acordo

com Bauman, a fluidez e a fragilidade das relações humanas

acabam sendo uma espécie de ensaio rotineiro da experiência da

morte, devido à sua facilidade de rompimento.

205
Segundo Elioenai Ferreira, em "Nunca mais”: a morte nos

contos de Luiz Vilela, a morte “representa o desconhecido. O fim do


homem. É a única experiência do homem que ele não pode

compartilhar com o outro, depois que a tem, ou que o outro possa

compartilhar com ele, para minimizar seu medo.” (2008, p. 13).

Podemos dizer que os contos das últimas coletâneas, “O

que cada um disse”, “A cabeça” e “Corpos”, são verdadeiros

retratos da contemporaneidade, são perpassados pela fluidez e

pela fragilidade das relações sociais do mundo atual. A nosso

ver, a banalização da violência e da morte desses contos pode ser

uma resposta à condição imposta pelas relações da modernidade

líquida e pelo medo gerado pela consciência da fragilidade da

vida e da escassez de segurança, a despeito das tentativas

infrutíferas do homem pela manutenção do controle.

Referências:

206
ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média
aos nossos dias. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1977.

ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Trad. Luiza Ribeiro.


Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto


Medeiros .Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

FERREIRA, Elioenai Padilha. "Nunca mais”: a morte nos contos de


Luiz Vilela. 2008. 130 p. Mestrado. Universidade Federal do
Paraná – Letras. Orientadora: Raquel Illescas Bueno.
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM A DANÇA DOS
CABELOS, DE CARLOS HERCULANO LOPES

Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS)


Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS)

Resumo: A partir da análise do romance A dança dos cabelos,


pretendemos examinar a representação da mulher nesta obra de
Carlos Herculano Lopes. O romance em que a trajetória das três
personagens principais, que se chamam Isaura, é narrada em

207
primeira pessoa gramatical e apresenta grande penetração na
psicologia feminina, é memorialista. Essas narradoras analisam,
descrevem e comentam o que se passa na vida da família, o que
é muito significativo para a análise proposta, visto que traz à
tona o espaço de submissão que acompanha o sujeito feminino
desde sua infância. Julgamos necessário, apresentar a
representação do espaço na obra, já que este contribuí de forma
significativa para análise como um todo.

Palavras-chave: Romance; Representação; Espaço; Mulher.

Introdução

Entendemos que todo o ser humano desempenha uma

função em uma determinada comunidade como sujeitos, assim

formando juntos uma comunidade discursiva. Esse discurso é

visto como interlocução que os sujeitos estabelecem entre si e

compartilham questionamentos que variam nas diversas

comunidades, situadas em tempos e espaços particulares. Assim,

segundo Antonio Candido (2000), quando tratamos do discurso

literário também lidamos com o discurso de um dada sociedade.

208
Tratamos de uma lembrança que também une essa comunidade

discursiva enquanto voz que se manifesta sobre o texto.

Ademais, esse discurso mesmo que possa ser analisado como um

objeto exclusivo de si, constitui também um diálogo com outros

textos e comunidades discursivas, desencadeando um conjunto

de associações diversas. O discurso literário de que aqui se fala é

levado à comunidade por meio do escritor que “não é apenas o

indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade [...] mas alguém

desempenhado um papel social” (CANDIDO, 2000, p. 67). Os

indivíduos são influenciados pelas obras que leem e no mesmo

sentido influenciam a sociedade por meio das leituras e das

interpretações que fazem delas. Assim, a literatura não toma a

obra literária em si, nem como mero reflexo da estrutura social,

mas a considera numa relação dialética “A literatura é, pois, um

sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os

leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a,

aceitando-a, deformando-a. (CANDIDO, 2000, p. 68).

209
Na mesma ótica, em suas análises sobre a prosa narrativa

de Virginia Woolf e Marcel Proust no início do século XX, Erich

Auerbach (2013) já assinalava, considerando os escritores

contemporâneos da sua época, que tudo depende da posição do

escritor diante da realidade e do mundo que representa.

Segundo Auerbach (2013, p. 483), “[...] a intenção de

aproximação da realidade autêntica e objetiva mediante

impressões subjetivas, obtidas por diferentes pessoas, em

diferentes instantes, é essencial para o processo moderno que

estamos considerando”. Para o estudioso, “[...] mantém-se

sempre um eu narrativo, embora não se trate de um escritor que

observa de fora, mas uma personagem subjetiva enredada na

ação, que a perpassa com o especial sabor da sua essência”

(AUERBACH, 2013, p. 483).

Isto posto, a partir da análise do romance A dança dos

cabelos (2001), de Carlos Herculano Lopes, pretendemos

ponderar a representação do espaço da mulher na sociedade. O

romance em que a trajetória das três personagens principais, que

210
se chamam Isaura, é narrada na primeira pessoa gramatical e

apresenta grande penetração na psicologia feminina, é

memorialista. Essas narradoras analisam, descrevem e

comentam o que se passa na vida da família, o que é muito

significativo para a análise proposta, visto que traz à tona o

espaço de submissão que acompanha o sujeito feminino desde

sua infância. Embora são de gerações diferentes, têm

características e atitudes semelhantes, capaz de confundir o

leitor, já que a narração autodiegética alterna entre as Isauras.

O autor

Adentrar no universo romanesco de Carlos Herculano de

Oliveira Lopes sem conhecer alguns momentos de sua trajetória

seria um percurso incompleto para compreensão da análise aqui

proposta. De início, para elucidamos a questão que norteou essa

211
parte da pesquisa, quem é o autor de O último conhaque, e para

respondermos a esse questionamento, trazemos a sua própria

fala em uma entrevista à Jovino Machado[1] em 20 de agosto de

2009:

Nasci em Coluna, no Vale do Rio Doce, MG,


em 1956. Ao 12 anos vim para Belo Horizonte,
onde comecei a estudar no Colégio Arnaldo.
Ali li um livro, Tropas e boiadas, do goiano Hugo
de Carvalho Ramos, que me incentivou a
escrever. Pensei: Se ele escreveu histórias
assim, posso escrever também, pois nosso
universo é o mesmo. Desde então não parei
mais. Fiz um vestibular para veterinária, não
passei, e acabei me formando em jornalismo.
Hoje estou com 12 livros publicados, e ano que
vem pretendo lançar um novo livro de
crônicas, das que publico todas as sextas-feiras
no Estado de Minas, e também um outro
romance, Poltrona 27, que já está no prelo.[2]
(MACHADO, 2009).

Esse é Carlos Herculano Lopes, e como ele mesmo revela

desde pequeno a literatura tem feito parte da sua vida. Ao se

212
descrever como jornalista, ilustra, e talvez justifique a linguagem

concisa e objetiva usada em suas obras. Tanto a literatura como

o jornalismo tem feito parte da vida do autor, sempre

interligadas. Para ele o “jornalismo é irmão da literatura porque

abre a porta para conhecer pessoas, viajar.” Além de jornalista e

escritor ele também é cronista. Desde 2002 escreve crônicas no

jornal onde trabalha e isso lhe tem rendido vários livros de

crônicas.

Outro incentivo do escritor foi sua Mãe Iracema Viana de

Alencar que é professora e o presenteou com as coleções de

Monteiro Lobato, publicações da revista curiosidades e livros de

José Mauro de Vasconcelos. Sua professora Semirames Alcântara

também contribuiu para esse ingresso à literatura, pois foi ela

quem lhe deu acesso a biblioteca do grupo escolar Heroína

Torres, onde estudava.

Carlos Herculano viveu uma infância cheia de emoções.

Na Fazenda São Joaquim onde morava ele estava em meio ao

verde e aos animais, pegava passarinhos, nadava nos rios e tinha

213
muito contato com a natureza. As emoções também eram devido

as brigas que presenciava na cidade, que era muito violenta, e

das pessoas que eram socorridas na farmácia de seu pai,

Herculano de Oliveira Lopes.

Ainda em Coluna Carlos Herculano iniciou seu processo

de criação. Entre os 11 e 12 anos começou a escrever o livro “O

estilingue: Histórias de um menino” que só foi publicado em 2012

pela editora UFMG, conforme confirmamos em entrevista[3] do

autor no Portal Diário do Aço[4] em 10 de Julho de 2012 à Polliane

Torres:

DIÁRIO DO AÇO - Você começou a escrever


ainda criança. Como era esse processo?
CARLOS HERCULANO – Meu interesse
começou entre 11 e 12 anos. Naquela época, na
cidade de Coluna, comecei escrever um
livrinho chamado “O Estilingue”. Escrevia à
mão contando a minha vida na cidade
pequena, isolada de tudo. Lá não tinha luz nem
estrada. Era um lugarejo pequeno, atrasado e
ao mesmo tempo cheio de encantamentos. Fui
criado em uma pequena fazenda, meu pai era
farmacêutico prático e minha mãe professora,

214
ela me incentivava a ler. Cheguei em BH em 69
e terminei o livrinho em 1970. Fiz curso de
datilografia, datilografei o livro e guardei.
Nunca parei de escrever. Estudei no Colégio
Arnaldo, onde escrevei meu primeiro livro “O
Sol nas Paredes”, aos 18 anos. Sempre me
interessei pela literatura. Mas o sonho do meu
pai era que eu fosse médico. (TORRES, 2012)

Como notamos no enxerto anterior, sua primeira obra

escrita já revela seu apego e boa relação com sua terra. Em 1972,

dois anos após terminar de escrever “O estilingue”, Carlos

Herculano continua seus estudos no Colégio Promove, em Belo

Horizonte. Ali começa a vender curiós que trazia de Coluna e

então compra sua primeira máquina de escrever. Quatro anos

mais tarde, já estudando jornalismo na Fafi/BH, publica seus

primeiros contos em algumas revistas e jornais. Nesse período

também faz estágio no Jornal de Minas e no Jornal de Casa,

ambos em Belo Horizonte. Após terminar o curso é convidado

por Carlos Felipe para trabalhar no jornal Estado de Minas. Ali,

faz amizade com os escritores Roberto Drummond, André

215
Carvalho, Jorge Fernando dos Santos, Wander Piroli, Geraldo

Magalhães, dentre outros.

Carlos Herculano Lopes fez grandes parcerias que o

ajudou a crescer na carreira, seja pela amizade ou pelo

profissionalismo. Lançou seu primeiro livro de contos O sol nas

paredes por conta em 1980. Em entrevista[5] ao programa do Jô

Soares exibida pela rede de televisão Globo em 03 de julho de

2008 o autor afirma que saia nas ruas e nos bares de Belo

Horizonte e outras cidades para vender seu livro. Já com

Memórias da sede, seu segundo livro de contos, ganha o prêmio de

Literatura Cidade de Belo Horizonte em 1982 e não precisa mais

sair para vender seus livros. Com seu primeiro romance em 1984,

A dança dos cabelos, também vence o Prêmio Guimarães Rosa e o

Prêmio Ley Sarney (1987).

Sobre a escrita de A dança dos cabelos (2001) o autor agrega

na entrevista à Jovino Machado:

Na minha imodesta opinião o seu livro A


Dança dos Cabelos é uma obra prima. Foi mais

216
prazer ou mais sofrimento na hora de compor
a obra? Você acredita em inspiração? Muito
obrigado pela "obra prima", embora eu ache
que o livro está bem aquém disso. Escrevi A
dança dos cabelos quando eu estava com 24
anos, e só consegui publicá-lo aos 29, por
interferência de Afonso Borges, que me
apresentou a Rose Marie Muraro, que o lançou
no Rio, na Editora Espaço e Tempo. Com ele
venci os prêmios Guimarães Rosa, em 1984, e
Lei Sarney, como autor revelação de 1987.
Atualmente o livro está na 10 edição, na
Editora Record. (MACHADO, 2009).

Em 2002 Carlos Herculano assumiu uma coluna de

crônicas na qual publica duas por semana no jornal onde

trabalha. Isso lhe rendeu vários livros dos quais se destacam O

pescador de latinhas, publicado em 2001 pela Record, Entre BH e

Texas (ano).

Análise

217
O precursor dos estudos da Topoanálise, na literatura foi

Gaston Bachelard, sendo mais tarde Borges Filho quem amplia

seus estudos sobre o espaço. Segundo Bachelard (1978), esse

conceito seria o estudo psicológico sistemático dos locais de

nossa vida íntima mediante à análise literária. Em A poética do

espaço (1978), Bachelard faz um estudo fenomenológico em que

observa as experiências sensoriais provocadas pela necessidade

de abrigar-se do ser humano em algum espaço físico ou

psicológico. São vários os elementos que indicam a interioridade,

sendo necessário observar os grandes e pequenos espaços, macro

e micro, quanto às suas descrições e luminosidade, “aqui o

espaço é tudo” (BACHELARD, 1978, p. 205). De acordo

Bachelard (1978), é pelo espaço e no espaço que o ser humano se

encontra na intimidade, há um jogo entre o espaço exterior e o

interior; um jogo sem equilíbrio trazendo as mais diversas

sensações humanas:

Nosso objetivo está claro agora: é necessário


mostrar que a casa é um dos maiores poderes

218
de integração para os pensamentos, as
lembranças e os sonhos do homem. Nessa
integração, o princípio que faz a ligação é o
devaneio. O passado, o presente e o futuro dão
à casa dinamismos diferentes, dinamismos que
frequentemente intervém, às vezes se opondo,
às vezes estimulando-se um ao outro. A casa,
na vida do homem, afasta contingências,
multiplica seus conselhos de continuidade.
Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela
mantém o homem através das tempestades do
céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e
alma. É o primeiro mundo do ser humano
(BACHELARD, 1978, p.201).

Gaston Bachelard (1978) tece considerações sobre como o

espaço físico pode afigurar-se na mente humana. O espaço

fechado e reduzido pode representar um canto de acolhimento.

Em A dança dos cabelos (2001), ao contrário, a casa não acolhe,

porém oprime, silencia, causa melancolia e o atormenta as

protagonistas. Trata-se do topos da marca da violência. As

personagens não se sentem felizes no espaço da casa, pois nela

sofrem todo tipo de violência, tanto física como psicológica. O

219
espaço da casa, é a representação do papel submisso da mulher,

ao longo das três gerações.

Embora a Isaura filha sai da casa da sua mãe e vai morar

em outro lugar, diferentes das duas Isauras que vivem toda suas

vidas ali, notamos a sua ligação com o passado e o sentimento de

não pertencimento àquele lugar em que ela vai em busca de paz.

Bachelard (1978, p.200) salienta a importância que o espaço da

casa tem: “Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz

frequentemente nosso primeiro universo. É um verdadeiro

cosmos”. Assim sendo, a Isaura filha sente a necessidade de

voltar para casa. Por mais que seja um espaço em que lhe traz

lembranças ruins, solidão e angústia, ali ela terá contato com suas

raízes e sua história por meio das memórias e volta a procura de

sua identidade.

A casa da lembrança se torna psicologicamente


complexa. A seus abrigos de solidão se
associam o quarto e a sala em que reinaram os
seres dominantes. A casa natal é uma casa
habitada. Os valores de intimidade aí se
dispersam, não se tornam estáveis, passam por

220
dialéticas. Quantas narrativas de infância — se
as narrativas de infância fossem sinceras — nos
diriam que a criança, por falta de seu próprio
quarto, vai aboletar-se em seu canto! (...) As
casas sucessivas em que habitamos mais tarde
tomaram banais os nossos gestos. Mas ficamos
surpreendidos quando voltamos à velha casa,
depois de décadas de odisséia, com que os
gestos mais hábeis, os gestos primeiros fiquem
vivos, perfeitos para sempre. Em suma, a casa
natal inscreveu em nós a hierarquia das
diversas funções de habitar. Somos o diagrama
das funções de habitar aquela casa e todas as
outras não são mais que variações de um tema
fundamental. A palavra hábito é uma palavra
usada demais para explicar essa ligação
apaixonada de nosso corpo que não esquece a
casa inolvidável. (BACHELARD, 1978, p. 206).

Sob essa perspectiva, percebemos a importância do

espaço da casa em A dança dos cabelos, onde acontece as ações dos

personagens e representa a submissão das Isauras. Este espaço

tem uma grande representação na obra, pois mesmo as Isauras

tendo vidas massacradas e infelizes é na casa em que de certo

modo sabem de sua sina e fica ali a cumprir o destino.

221
Ainda sobre o espaço, Ozíris Borges Filho (2008, p. 1)

esboça em Espaço e literatura: introdução à topoanálise[6] que o

espaço tem várias funções dentro da obra: “a criação do espaço

dentro do texto literário serve a variados propósitos e seria tarefa

ingrata e fracassada separar e classificar todos eles”. Desta forma,

fizemos um recorte entre os tipos de espaços citado por Borges

Filho e citaremos apenas os que se relacionam com a obra aqui

analisada.

Em A dança dos cabelos, os espaços que compõem a obra

têm a função de situar as personagens no contexto

socioeconômico e psicológico, influenciar, representar os

sentimentos vividos pelas personagens e antecipar a narrativa.

A função de situar as personagens no contexto

socioeconômico fica notório em quase todo o romance. Temos

várias passagens na qual podemos confirmar essa função, como

a seguir:
Eu não quero mais esta fazenda com todos os
alqueires e aguadas e boiadas que já perdi a
conta. Não preciso mais de poder político;

222
também já que não me interessa ser
reconhecido pelas pessoas como o filho mais
velho de Manoel Túlio, seguidor de sua obra
“para fazer de Santa Marta a mais bela cidade
do Vale”. (LOPES, 2001, p. 21).

No excerto, são citados nomes e locais em que situam as

personagens geograficamente já indicando ao leitor qual o lugar

em que acontece a trama. O espaço desta história é bem

especificado: Santa Marta. A referência a cidade enquanto espaço

que contextualiza esta história requer algumas considerações, ela

surge carregada de um valor simbólico primordial.

No entanto, em todo decorrer da obra, também

percebemos o espaço psicológico em que as personagens se

encontram:

Mesmo sabendo que aos poucos eu apodreço e


que em breve não serei mais que um monte de
ossos em uma cova qualquer onde talvez
nasçam umas margaridas ou em alguma
manhã venham pousar os canários, e, por mais
definitiva que seja esta certeza, pelo fascínio

223
cada vez mais forte que em mim exercem as
águas cujo canto, em horas de calmaria, se
mistura ao das acauãs que tornaram o voar ao
redor da minha janela, eu ainda insisto em
desvendar o obscuro de certas coisas que
aconteceram e ainda acontecem. E me
pergunto sobre o porquê dos carneiros: eles
eram muitos, vinham nunca se soube de onde,
mas apareciam nas tardes de maio quando eu
era criança. (LOPES, 2001, p. 9).

Deste modo, notamos no trecho acima um espaço interno

de angústia em que a personagem sabendo que a morte se

aproxima recuperará lembranças de sua vida afim de tentar

entender o porquê de algumas coisas que aconteceram. Essa

angústia de Isaura que representa as três mulheres, também é

notada em relação a sua condição de submissão, o eixo temático

mais forte da obra, e sendo tão grande, esse sentimento, que

acreditam que só por meio da morte se libertarão, uma vez que

tanto a Isaura mãe como a avó suicidam, e que há fortes indícios

que a filha também cometerá o mesmo ato. Por exemplo, no

224
trecho que se apresenta abaixo, percebemos na descrição do

espaço indícios de um sentimento de liberdade aproximando:

E ouço o canto de um passarinho e o estalar de


folhas ao vento. Tenho como companhia as
borboletas verdes e as sempre-vivas que em
noites de geadas costumam consolar estas
pedras, em uma das quais agora estou
assentada. E, com os olhos em outros
horizontes, penso em minha mãe e em minha
avó, que também aqui, com certeza, já
estiveram. (LOPES, 2001, p. 70).

Além desde trecho, há outros no romance em que

presumem que a Isaura filha se libertará de toda opressão,

angústia e sentimento de remorso em ter matado um homem

para vingar a morte de seu irmão, que foi imposta pelo seu pai

como obrigação a cumprir. Notemos como as passagens “canto

de um passarinho” e “estalar de folhas ao vento” transmitem

uma sensação de alívio e de paz, ou seja, esse excerto também é

um exemplo de representação dos sentimentos da personagem

225
por meio do espaço físico. Através deste espaço descrito é

possível situar e identificar o espaço psicológico, pois segundo

Borges Filho (2008, p.1), “muitas vezes, mesmo antes de qualquer

ação, é possível prever quais serão as atitudes da personagem,

pois essas ações já foram indiciadas no espaço que a mesma

ocupa”.

O romance apresenta o sujeito feminino que tem a tristeza

e o sofrimento por destino, revelando, neste sentido, uma visão

determinista da vida e uma postura passiva diante dos

acontecimentos. Pode-se dizer que a mulher se apresenta

sufocado pela sua condição, na medida em que é apresentada

pelas narradoras como um corpo cansado e sofrido ou seja,

sempre submisso, que sugere uma relação com a questão de

gênero:

Mas essa situação, ao poucos, e não consigo


explicar como, foi sendo substituída por uma
nova força que me impelia a encarar o homem
que, à minha frente, com as mãos estendidas,
esperava que eu beijasse. Ordem essa que quase
obedeci, pois cheguei a tocar em uma delas.

226
Mas de repente – e só aí percebi a minha
coragem – eu me paralisei como um animal
assustado. Senti que um gosto amargo subia
pela minha garganta, e tive a certeza que o
odiava, e era necessário que eu vivesse, e
enfrentasse tudo, para assim alimentar o meu
ódio e planejar a minha vingança (LOPES,
2001, p. 31-32) grifos nossos.

O trecho acima, traz a condição da mulher na sociedade,

notamos ainda que o termo grifado indica a subserviência da

personagem diante das atitudes que lhe eram impostas,

traduzindo o pensamento machista da época. A submissão e esse

lugar menor destinado à mulher podem ser percebidos ainda

quando as narradoras relatam seus afares domésticos excessivos

e desprezo sexual: “Eu não gosto, nunca gostei de você, que

jamais me completou como homem” (LOPES, 2001, p. 21).

Como podemos observar, através narração de Isaura filha,

há um desejo de abertura em relação ao lugar ocupado pela

mulher na sociedade, ela deseja trilhar novos caminhos. Nesse

sentido, a personagem começa a lutar por vencer a sina das

227
mulheres de sua família, mas isso não acontece totalmente, pois

ela está presa ao espaço passado, o da sua infância e ela volta

para esse espaço.

Dentre os espaços apresentados no romance casa, como já

dito, mostrar-se, a nosso ver, como o de maior importância. Pois,

será nela, e por meio dela, que toda a ação se desenvolverá. De

acordo com os estudos da Topoanálise, trata-se de um cenário,

pois é um espaço construído pelo homem. A casa encontra-se

localizada na pequena cidade fictícia de Santa Marta,

microespaço, e que faz referência à Coluna, cidade natal do autor

Carlos Herculano Lopes, ambas situada no interior de Minas

Gerais. A cidade de Santa Marta é recorrente nas obras de Lopes

como em Poltrona 27, O estilingue: história de um menino e O último

conhaque.

Considerações finais

228
Como toda obra de arte, a literatura está inserida em um

contexto social bem determinado, expressando as peculiaridades

de um tempo, de uma dada sociedade. Tomando como base a

ideia de que a literatura expressa o espírito de uma época,

reforçando-o ou contestando-o, pode-se dizer que a obra de

Carlos Herculano Lopes manifesta as tensões do século XIX e

início do século XX – indicadas pelas pistas contextuais no

romance - inspiradas pela fragmentação do sujeito. Como lembra

Candido (2000, p.30): “A obra depende estritamente do artista e

das condições sociais que determinam a sua posição”.

Considerando essas manifestações do mundo exterior nas obras

do autor, podemos dizer como as condições sociais transparecem

nas obras literárias; a condição humana se reflete nas obras em

personagens, como num jogo de espelhos.

Com base nos estudos da Topoanálise, e, a propagação

das discussões que envolvem espaço e sociedade, nossa proposta

foi lançar um texto reflexivo abrangendo essa relação e os efeitos

de sentido dela decorrentes na representação da mulher.

229
Acreditamos que a categoria do espaço no romance analisado

estão intimamente ligadas aos processos de identificação das

protagonistas e estes, que por sua vez estão conectados a

aspectos sociais, históricos e também psicológicos que constroem

o enredo.

Destarte, encontramos no romance de Carlos Herculano

exemplos de resistência ideológica, que servem de instrumento

de reflexão, crítica, valorização e desconstrução da imagem da

mulher desenvolvida mediante a ótica masculina. O desencontro

entre personagem e espaço busca se resolver pela memória. É por

seu meio que temos a compreensão da representação da mulher

no romance. As personagens buscam resgatar impressões por

meio do espaço. A memória não reconstrói os espaços, mas os

representa da forma como são lembrados, e as lembranças se

constitui uma (re)criação.

Referências

230
AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2013.

BACHELARD, Gaston, A filosofia do não - A poética do espaço;


seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de
Joaquim José Moura Ramos . . . (et al.). — São Paulo: Abril
Cultural, 1978.

BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à


topoanálise. XI Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras,
Interações, Convergências, São Paulo, 2008.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e


história literária. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000

LOPES, Carlos Herculano. A dança dos cabelos. 10. ed. Rio de


Janeiro: Record, 2001.

__________. O último conhaque. Rio de Janeiro: Record, 1995.

__________. O estilingue: Histórias de um menino. Belo Horizonte:


UFMG, 2012.

__________. O vestido. São Paulo: Geração Editorial, 2009.

__________. Poltrona 27. Rio de Janeiro: Record, 2011.

231
__________. Sombras de Julho. 3. ed. São Paulo: Atual, 1994.

__________

Notas

[1] Jovino Machado é poeta. Nasceu em Formiga- MG em 1963 e vive em


Belo Horizonte. Publicou 15 livros de poemas. Tem poemas publicados no
Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Poesia Sempre, Jornal
Rascunho, Jornal Cândido, entre outras publicações. Publicou poemas e
entrevistas com personalidades do teatro, do cinema e da literatura no no
portal www.cronopios.com.br, na revista eletrônica GERMINA - REVISTA
DE LITERATURA & ARTE e no blog Blog do jovino machado - UOL Blog.
Informações disponíveis em http://www.mallarmargens.com/2015/10/4-
poemas-de-jovino-machado_31.html

[2] http://jojomachado.zip.net/arch2009-08-01_2009-08-31.html acesso em 30-


07-2015 às 08:49

[3] Disponível em http://diariodoaco.com.br/noticias.aspx?cd=64876 acesso


em 11-08-2015

[4] Portal Diário do Aço é um jornal de Ipatinga-MG

[5] Disponível em http://globoplay.globo.com/v/850770/ Acesso em 20-03-


2015

232
[6] Disponível em:
http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067
/OZIRIS_FILHO.pdf

233
IDENTIDADE: UMA BUSCA EM O ÚLTIMO CONHAQUE
DE CARLOS HERCULANO LOPES

Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS)


Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS)

Resumo: A globalização, os avanços da era tecnológica do


mundo contemporâneo e o trauma de momentos históricos
sociais, como a ditadura no Brasil, têm provocado sentimentos
de rupturas, fragmentação do indivíduo e tensão na sociedade.
Não é difícil perceber que esses sentimentos tenham se refletido
nas artes, e a literatura enquanto arte tem produzido essas
impressões por meio da palavra. No romance O último conhaque,
do escritor mineiro Carlos Herculano Lopes, o protagonista
recupera antigas lembranças que têm como cenário uma
paisagem tipicamente rural em Santa Marta. Trata-se de um
texto que narra a história desse homem desenraizado e
atormentado pelas memórias de sua infância e que representa a
metáfora do ser deslocado, em busca de identidade. Nos
ancoramos em autores como Antonio Candido (2000), Benjamin
(1994), Hall (2006), Ginzburg (2012), entre outros.

Palavras-chave: Memória; Identidade; Social; Busca;


Contemporâneo.

234
Introdução

Moderno”, “pós-moderno” ou “contemporâneo”? Qual

desses conceitos encaixa o romance O último conhaque? Não

queremos aqui fazer nenhuma rotulação, no entanto, é

necessário abordarmos um termo para nos referir às produções

literárias do autor Carlos Herculano Lopes. Sabemos que esses

termos se situam numa determinada época questões de ordens

estéticas, sociais e culturais. Há quem faça referências à pós-

moderno, por exemplo, como sinônimo de contemporâneo,

outros não. Preferimos adotar o termo contemporâneo, por

entendermos que compreende todo o período após o

Modernismo – e aqui citamos enquanto movimento cultural na

primeira metade do século XX – aos dias de hoje. Mas, o que é

contemporâneo? E, a partir disso o que significa ser literatura na

contemporaneidade? Para responder às essas questões apoiamos

em Giorgio Aganbem (2010), o qual fundamenta suas reflexões

235
em Roland Barthes a respeito das “Considerações

intempestivas”, de Nietzsche, bem como em Karl Eric

Shøllhammer (2009), entre outros.

Citando Roland Barthes, Giorgio Aganbem (2009, p.58)

diz que “O contemporâneo é intempestivo”, ou seja, não existe

tempo, dado numa desconexão e dissociação com o tempo

presente, pois o verdadeiro contemporâneo é aquele que, graças

a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de

captar seu tempo e enxergá-lo. Dessa forma, Aganbem (2009)

considera o contemporâneo como uma relação única com o

próprio tempo em que se aproxima e se distancia ao mesmo

tempo. Aganbem (2009) salienta:

Pertence verdadeiramente a seu tempo,


é verdadeiramente contemporâneo, aquele que
não coincide perfeitamente com este, nem está
adequado às suas pretensões e é, portanto,
nesse sentido, inatual; mas exatamente por
isso, exatamente através desse deslocamento e
desse anacronismo, ele é capaz, mais do que
outros, de perceber e apreender o seu tempo
(AGAMBEN, 2009, p. 58-9).

236
Como descrito por Aganbem (2009), não se prender a um

tempo é ser capaz de oscilar entre passado, presente e futuro.

Quanto ao passado, mesmo que não tenha participação plena,

olhar e avaliar aquele momento ou até mesmo pensar o que

ainda poderá vir. O crítico exemplifica com a poesia de Osip

Mendel Stan, intitulada O século, para refletir sobre a relação

anacrônica entre tempo e poeta; o poeta, enquanto

contemporâneo, um ser com as vértebras fraturadas em um

paralelismo “entre o tempo – e as vértebras – da criatura e o

tempo – e as vértebras – do século.” (AGAMBEN, 2009, p. 61).

Assim, ao mesmo tempo em que o poeta se aproxima do seu

tempo ele se distancia dele, fratura esse tempo e deixa “espaços”

a serem preenchidos pelo leitor.

Sob a mesma ótica de Nietzsche e Barthes, Shøllhammer

(2009) ratifica que essa visão no escuro é a condição de ser

contemporâneo ao seu próprio tempo, sendo capaz de enxergar

às luzes, mas também às trevas; saber ver esse escuro. Assim, a

237
literatura contemporânea não será, impreterivelmente, a que

retrata o seu tempo atual, mas aquela que seja capaz de orientar-

se no “[...] escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de

se comprometer com um presente com o qual não é possível

coincidir” (SHØLLHAMMER, 2009, p.10). Situando a questão

em outros termos, o autor diz que é típico da prosa

contemporânea tanto a presença dos que querem a história “bem

contada”, os que prezam pela transitividade da comunicação,

quanto os “chatos herméticos”, os que se fecham na

intransitividade da própria criação: “O essencial é observar que

essa escrita se guia por uma ambição de eficiência e pelo desejo

de chegar a alcançar uma determinada realidade em vez de se

propor como uma mera pressa ou alvoroço temporal”

(SHØLLHAMMER, 2009, p. 11).

Neste sentido, o “alvoroço temporal” e a insistência do

tempo presente em vários escritores, mais recente da geração,

transparece uma preocupação pela criação da própria presença,

ou seja, a dificuldade presente é lidar com a urgência e a

238
velocidade de tudo que acontece e que os escritores

contemporâneos têm em se relacionar com a realidade histórica

“[...] estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-

la na sua especificidade atual, em seu presente”

(SHØLLHAMMER, 2009, p. 10). As novas tecnologias criam

caminhos para que a exposição seja mais rápida, por exemplo os

blogs que facilitam a divulgação dos textos literários, fazendo que

o mercado tradicional de divulgação seja driblado. Dentre os

escritores que utilizaram esse método de divulgação acelerado,

primeiramente antes de seguir o modo tradicional, Karl Erick

Shøllhammer (2009) cita: Ana Paula Maia, Daniel Galera, Ana

Maria Gonçalves e Clarah Averbuck.

Como consequências dessa urgência e rapidez, entre os

escritores contemporâneos, nos vemos diante de uma literatura

de formas complexas, fragmentadas, curtas e cada vez mais

híbrida. Shøllhammer (2009), salienta:

239
De modo geral, percebe-se, nos
escritores da geração mais recente, a intuição
de uma impossibilidade, algo que estaria
impedindo-os de intervir e recuperar a aliança
com a atualidade e que coloca o desafio de
reinventar as formas históricas do realismo
literário numa literatura que lida com os
problemas do país e que expõe as questões
mais vulneráveis do crime, da violência, da
corrupção e da miséria (SHØLLHAMMER,
2009, p. 14).

Diante dos estudos de Shøllhammer (2009), podemos

perceber as características que aproximam a produção literária

brasileira, no período de 1960 ao presente, como: interesse pelo

regionalismo, realismo, intimismo existencial e psicológico,

experimentalismo linguístico, metaliteratura e reinvenção das

formas históricas. Salientamos que essas manifestações que se

configuram dentro de um novo tipo de realismo não se refere ao

realismo do século IXX, mas nota-se em tais manifestações uma

grande procura de referencialidade.

240
Outras características atribuídas às narrativas brasileiras

contemporâneas é elucidada por Jaime Ginzburg (2012a)

sustentando que as obras desse período são pautadas pela

negatividade e a recorrência de narradores descentrados. O

descentramento, de acordo o crítico “seria compreendido como

um conjunto de forças voltadas contra a exclusão social, política

e econômica” (GINZBURG, 2012a, p.201). E adiante, acrescenta

que “parte da produção literária decidiu confrontar com vigor as

tradições conservadoras no país, em favor de perspectivas

renovadoras” (Idem, p.201).

Desse modo, partindo dessas concepções analisamos O

último conhaque (1995), do escritor, mineiro, Carlos Herculano

Lopes identificando de que forma o autor apresenta a busca

identitária da personagem Nando, bem como a sociedade é

retratada, descrevendo seus vários aspectos.

O último conhaque (1995) possui como tema central da

narrativa a busca da personagem principal por algo com que

possa lembrar - se do rosto do seu pai. Uma fotografia, uma carta

241
ou até mesmo o contato com a casa de sua infância, onde a

personagem consiga se identificar de modo mais completo e dar

fim aos seus anseios, evidenciados em meio as lembranças que

procura há muitos anos. Essa busca – que a nosso ver está

intimamente ligada aos processos de identificação da

personagem e nos indica um sujeito deslocado – leva-nos a

considerar que o espaço configurado por meio da

linguagem é revelado, especialmente, mediante as percepções

dessa personagem pelo narrador, a focalização, em um tempo na

qual vigora as lembranças da infância e não do presente. Além

disso, acreditamos que ao ressaltarmos a obra como produto de

uma comunidade discursiva, seja possível esboçarmos um

paralelo entre os pontos observados nas obras com aqueles

que permeiam a noção de identidade na

contemporaneidade.

Análise

242
No atual contexto, inseridos no processo de globalização,

as diversas sociedades culturais estão sendo sucessivamente

modificadas, assumindo concepções deslocadas e fragmentadas.

Isso, porque a velocidade com que as coisas acontecem, as

mudanças e os avanços tecnológicos acabam influenciando o

modo de pensar de cada sujeito e, consequentemente, seu modo

de agir. No romance O último conhaque, presenciamos como essas

concepções deslocadas e fragmentadas aparecem no texto, ou na

forma lenta como é narrada, seja na estrutura da obra (capítulos

com apenas um parágrafo), seja na própria fragmentação e

deslocamento do protagonista, ou na ruptura da sucessão

temporal.

Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino

(1998) assinala que a rapidez que a sociedade percorria acabaria

influenciando a literatura através da relação do tempo físico com

o mental:

243
A rapidez e a concisão do estilo
agradam porque apresentam à alma uma turba
de ideias simultâneas, ou cuja sucessão é tão
rápida que parecem simultâneas, e fazem a
alma ondular numa tal abundância de
pensamento, imagens ou sensações espirituais,
que cia ou não consegue abraçá-las todas de
uma vez nem inteiramente a cada uma, ou não
tem tempo de permanecer ociosa e desprovida
de sensações (CALVINO, 1998, p.55).

Semelhantemente à ideia de Calvino (1998), Stuart Hall

(2006) na obra A Identidade cultural na pós-modernidade, versa as

considerações a respeito das consequências que as rupturas e

tensões têm provocado na humanidade, resultado da

globalização, seus avanços e da era tecnológica do século XX e

XXI:

Que impacto tem a última fase da globalização


sobre as identidades nacionais? Uma de suas
características principais é a "compressão
espaço-tempo", a aceleração dos processos
globais, de forma que se sente que o mundo é
menor e as distâncias mais curtas, que os

244
eventos em um determinado lugar têm um
impacto imediato sobre pessoas e lugares
situados a uma grande distância. (HALL, 2006,
p. 18-19).

Percebemos que esse sentimento de ruptura tenha se

refletido nas artes, e a literatura enquanto arte tem produzido

essas impressões mediante a palavra. Hall (2006) faz uma

reflexão que aborda a noção de identidade, em vista do contexto

histórico contemporâneo e procura avaliar a possível existência

de uma crise de identidade nesse momento. Segundo o teórico,

o sujeito pós-moderno é um sujeito fragmentado, composto não

só de uma identidade, mas de várias, que muitas vezes se

contradizem:

A identidade, nessa concepção


sociológica, preenche o espaço entre o
"interior" e o "exterior"— entre o mundo
pessoal e o mundo público. O fato de que
projetamos a "nós próprios" nessas identidades
culturais, ao mesmo tempo que internalizamos
seus significados e valores, tornando- os "parte
de nós", contribui para alinhar nossos

245
sentimentos subjetivos com os lugares
objetivos que ocupamos no mundo social e
cultural. (HALL, 2006, p.2).

Tais ponderações nos mostra o efeito deslocador da

globalização nas identidades centradas e fechadas de uma

cultura nacional. Esse efeito altera as identidades fixas,

tornando-as diversas. É nesse deslocamento que surge a

compreensão de culturas híbridas, entre a tradição e a

tradução[1], como um dos diversos tipos de identidades destes

tempos de modernidade.

Conforme explicita Stuart Hall (2006) no fragmento, todo

meio de representação de arte se traduz na exposição do tempo

e espaço. É nesse sentido, que a tradução cultural se configura,

uma vez que o sujeito se desloca no tempo e espaço. Hall (2006)

define como tradução cultural, o processo de transação entre

novos e antigos costumes culturais, vivenciado por pessoas que

migraram de sua terra natal. As pessoas perdem completamente

suas originais identidades por não assimilarem a nova cultura

246
que tem diante si. No entanto, precisam dialogar com as duas

realidades distintas:

Este conceito descreve aquelas


formações de identidade que atravessam e
intersectam as fronteiras naturais, compostas
por pessoas que foram dispersadas para sempre
de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes
vínculos com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao
passado. Elas são obrigadas a negociar com as
novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem
perder completamente suas identidades. Elas
carregam os traços das culturas, das tradições,
das linguagens e das histórias particulares
pelas quais foram marcadas. A diferença é que
elas não são e nunca serão unificadas no velho
sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o
produto de várias histórias e culturas
interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo
tempo, a várias "casas" (e não a uma "casa"
particular). As pessoas pertencentes a essas
culturas híbridas têm sitio obrigadas a renunciar
ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer
tipo de pureza cultural "perdida" ou de
absolutismo étnico (HALL, 2006, p.24).

247
De acordo com o pensamento exposto por Hall (2006), as

identidades culturais em transformação são o resultado do

encontro entre diferentes tradições culturais do mundo

globalizado. Em O último conhaque pela narração, notamos essa

construção identitária da personagem principal quando pela

primeira vez tem contato com outra cultura, “À cidade de São

Paulo que passaria também a ser sua” (LOPES, 1995, p. 89),

estabelecendo o contato com as duas culturas: a rural[2] (Santa

Marta) com a Urbana (São Paulo). Na passagem abaixo, é

descrito o momento em que Juarez, companheiro de sua tia Ruth,

lhe apresenta São Paulo, como é costume de quem mora na

capital, mostrar a cidade aos do interior:

E, uma vez, de motocicleta, o levou ao


Jardim Zoológico e, na volta, de tardezinha,
passaram no Monumento aos Bandeirantes e
no Parque do Ibirapuera. Lá, ele lhe comprou
um churro recheado com doce de leite e lhe
disse, também saboreando um: “É comida

248
uruguaia.” E ele, que nunca havia ouvido falar
em churro, muito menos em Uruguai, achou
aquele petisco gostoso. (LOPES, 1995, p.89)

São lugares diferentes, antes não visto, as mais variadas

comidas “É um misto” (LOPES, 1995, p.88), e outros costumes.

Nesse processo, de adaptação cultural que aqui citamos é o que

Hall (2006) chama de hibridismo e a não adaptação da nova

cultura se dá a tradução cultural.

Na memória há um movimento que vai do presente em

direção ao passado. Segundo Jeanne Marie Gagnebin (2006), de

Platão aos escritores do século XX: “[...] a memória dos homens

se constrói entre esses dois pólos: o da transmissão oral viva, mas

frágil e efêmera, e o da conservação pela escrita, inscrição que

talvez perdure por mais tempo, mas que desenha o vulto da

ausência” (GAGNEBIN, 2006, p.11). A modalidade de expressão

da recordação do protagonista de O último conhaque é por meio

das cartas de sua mãe, “Ela em todas as cartas que escrevia”

(LOPES, 1995, p.7) e também oral, quando Maria Lucena visita o

249
filho uma única vez em São Paulo “lhe fora contado por sua mãe

quando ela esteve visitando-o em São Paulo” (Idem, p. 19)

narrada na terceira pessoa gramatical. Temos acesso à memória

de Nando por intermédio do narrador. Assim, como nesses

trechos, há outros no romance, nos indicando que foram poucos

os contados de Maria Lucas com seu filho. Percebemos, que toda

a história de sua família, ele só tem conhecimento na única vez

que sua mãe o vista em São Paulo. De algum modo Nando sente

falta dessa tradição de passar as histórias dos antepassados de

geração em geração. O protagonista tem acesso restrito às

memórias de seus pais.

No romance O último conhaque, como o protagonista perde

o vínculo (primeiro o pai, depois a terra natal e seguinte a mãe)

com tudo aquilo que lhe possa transmitir experiências e

conhecimentos tradicionais de sua geração, como resultado se

torna um sujeito deslocado, em busca das referências que perdeu

na infância: “não saíra de sua cabeça durante todos esses anos,

nos quais, por culpa dele, não pôde voltar a sua terra natal e nem

250
rever com frequência seu único ponto de referência” (LOPES,

1995, p. 25).

Em O último conhaque o protagonista volta ao tempo por

via da memória e o romance se desenvolve nesse jogo do

“ontem” e do “hoje”, do “lá” e “cá”, que segundo Benjamin

(1994, p. 229-30) “A história é objeto de uma construção cujo

lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado

de ‘agoras’”. O tempo saturado de “agoras” é repleto do hoje,

isto é, cheio de pontos descontínuos do passado que formam um

todo. Como consequência desses pontos descontínuos, Benjamin

assinala que o homem da era moderna não só fala como não sabe

escutar. Em uma passagem de sua obra, o teórico aponta

justamente o tédio como estado de ânimo propício para a

recepção da narração:

Se o sono é o ponto mais alto da


distensão física, o tédio é o ponto mais alto da
distensão psíquica. O tédio é o pássaro de
sonho que choca os ovos da experiência. O

251
menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus
ninhos – as 71 atividades intimamente
relacionadas ao tédio – já se extinguiram na
cidade e estão em vias de extinção no campo.
Com isso, desaparece o dom de ouvir, e
desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar
histórias sempre foi a arte de contá-las de novo,
e ela se perde quando as histórias não são mais
conservadas, ela se perde porque ninguém
mais fia ou tece enquanto ouve a história.
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo,
mais profundamente se grava nele o que é
ouvido (BENJAMIN, 1994b, p. 204-5).

Talvez esta questão de que aborda Benjamin possa ser

percebida mais especificamente em função da interiorização que

ela provoca, mantendo-se num campo individual e afastado dos

conselhos e do senso prático das narrativas, os quais carregam a

sabedoria. Nesse sentido, ainda o autor esboça sobre o romance

e a imprensa que neste ponto parece haver uma ameaça ao

desaparecimento do narrador, dando uma impressão de que um

seria, de certa forma, extensão do outro. Assim, o que vemos é o

252
desligamento de um passado que se perde nas comunidades

ouvintes.

A memória intercala o passado no presente, “condensa

também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração,

e assim, por sua dupla operação, faz que de fato percebamos a

matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela”

(BERGSON, 1999, p. 77). Por duração, Bergson (2006)

compreende como a continuação de um passado pela lembrança.

São os “pedaços” do passado em imagens que constitui a

duração da memória. É essa relação que permeia nosso trabalho,

em razão do protagonista perceber por meio da matéria física

(seu corpo, a casa, as cartas, a poltrona, a bebida...), o espaço

físico e psicológico em que se encontra. Logo no início do

romance podemos confirmar isto quando o narrador nos

apresenta a chegada do protagonista, em Santa Marta, para o

enterro da sua mãe:

Assim que entrou no antigo quarto e


viu suas coisas no mesmo lugar, como há

253
tantos anos havia deixado, sentiu que seu
coração - embora tenha se preparado muito"
para aquele dia - começou a bater acelerado, de
um jeito estranho, como há tempos não
acontecia. [...] Mas, contrariando a sua
vontade, ele estava ali, na Santa Marta de sua
infância, e achava que ela iria entender, embora
pedisse tanto para que ele não viesse, revestida
de razões que só agora, mesmo sendo recém-
chegado, ele começava a compreender, quando
sensações há muito esquecidas de novo rodeavam o
seu coração! (LOPES, 1995, p.7-8, grifos nossos).

Dessa forma, quando olhamos para a obra percebemos

que o protagonista, de alguma forma, exterioriza os sentimentos:

“As lágrimas foram saindo, tudo girou à sua volta, recostou-se

na parede, fechou os olhos e procurou não pensar em nada”

(LOPES, 1995, p. 7), a uma reelaboração do passado no presente.

Ele “prolonga o passado no presente” (BERGSON, 1999, p.247),

e “é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde,

e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a

lembrança retira o calor que lhe confere vida” (Idem, p. 179). Em

254
outras palavras, para Bergson (1999), a lembrança é “a

representação de um objeto ausente” (Idem, p.80). Exemplo

disso é percebido nas páginas do romance, quando o narrador

começa a revelar o verdadeiro motivo que levou Nando a ficar

“há tantos anos” fora de Santa Marta:

Também para ele várias coisas já


podiam estar mortas. Mortas e enterradas, em
covas profundas de preferência. E, se
conseguisse, talvez fosse um homem mais feliz
e não estivesse ali sozinho, no dia do enterro de
sua mãe, pensando não só nela, mas também e
por quê?, em Rodrigo Lima, o assassino de seu
pai, que não saíra de sua cabeça, durante todos
esses anos, nos quais, por culpa dele, não pôde
voltar à sua terra e nem rever com mais
frequência seu único ponto de referência, sua
mãe, e que em todas as cartas que trocaram,
anos após anos – e foram dezenas -, ela sempre
repetia: “ Não volte, meu filho, não volte.”
(LOPES, 1995, p. 25)
E, mais uma vez, quis poder ver ao
menos por um instante, o rosto de seu pai, que,
apesar de tão presente, permanecia uma
imagem nebulosa em sua memória, e esta era,
desde a sua chegada, a única razão de sua

255
permanência naquela casa, pois esperava
encontrar, ao abrir as gavetas, pelo menos uma
foto que lhe revelasse por inteiro a face daquela
pessoa tão amada mas igualmente
desconhecida para o frágil coração de seu filho.
(LOPES, 1995, p. 128)

Pelo trechos expostos, observamos como a lembrança de

Nando se dá pelo “objeto ausente”, no caso seu pai. A busca por

esse objeto ao longo do romance se torna cada vez mais

comprometedora. Ao longo da obra, entre uma e outra dose de

conhaque, seu estado melancólico vai aumentando e cada vez

mais encurralando-o dentro da casa. O trecho, a seguir, nos

remete a situação de abatimento da personagem Nando: “[...] ele

se dirigiu a um bar, o primeiro que viu, e comprou uns maços de

cigarro, dois dropes de hortelã, um litro de conhaque e três latas

de salsichas” (LOPES, 1995, p.10), os substantivos “bar”, “maços

de cigarros”, “dropes de hortelã”, “litro de conhaque” e “três

latas de salsichas” nos remete a mais descrição decadente de

256
Nando. No segundo dia, após o enterro, ao acordar com ressaca,

Nando bebe novamente.

Entre uma bebida e outra, a personagem vai lembrando

de momentos passados e a partir dessas narrações é que temos

conhecimento do passado das personagens. Essa ação se repete

todos os dias enquanto a personagem está na cidade, como forma

de conter o sofrimento pela morte de sua mãe e das lembranças

do assassinato de seu pai, “E naquela noite, entre a realidade, o

sonho e a bebida, algumas imagens, muito antigas, voltaram a

sua cabeça [...] viu seu pai caído, os olhos parados e fixos nele”

(LOPES, 1995, p.33). Isso se segue em todo o romance,

observemos esta passagem adiante:

E tomava um café atrás do outro.


Fumava sem parar, sorria de um jeito estranho,
e quase chorou quando perguntou a Maria
Tereza, que só o ouvia e já havia parado de roer
as unhas: “Como posso ir se ainda não procurei
nada: um retrato, uma carta ou alguma coisa
que possa me mostrar quem foi meu pai”
(LOPES, 1995, p. 75-6).

257
Pelo excerto anterior, ressaltamos que a personagem há

anos busca lembrar-se da feição do rosto de seu pai, e sua volta

para Santa Marta é a tentativa de alcançar seu objetivo. A

memória passa a ser sua aliada, nesta busca metaforizada, como

a busca pela identidade. Conforme Jaques Le Goff (2003), “A

memória é um elemento essencial do que se costuma chamar

identidade, individual ou coletiva, cujas buscas são uma das

atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de

hoje, na febre e na angústia” (Idem, p.477). Ainda, o crítico coloca

ao lado da memória a amnésia e explica o seguinte:

Ainda é mais evidente que as


perturbações da memória, que, ao lado da
amnésia, se podem manifestar também no
nível da linguagem na afasia, devem em
numerosos casos esclarecerse se também à luz
das ciências sociais. Por outro lado, num nível
metafórico, mas significativo, a amnésia é não
só uma perturbação no indivíduo, que envolve
perturbações mais ou menos graves da
presença da personalidade, mas também a falta

258
ou a perda, voluntária ou involuntária, da
memória coletiva nos povos e nas nações que
pode determinar perturbações graves da
identidade coletiva (LE GOFF, 2003, 367).

Tais considerações de Le Goff (2003), demonstra que a

amnésia pode tanto ser espontânea como pode ser forjada. O

esquecimento de Nando, por vezes é provocado pelo uso em

excesso do álcool e pelo trauma. Ele em vários momentos do

romance se mostra apreciador de conhaque: “O conhaque

Presidente, pois não tinha o Macieira que sempre foi o seu

preferido” (LOPES, 1995, p.12) e as consequências inebriador:

“Que tempos”, o homem pensa, ajeita-se melhor na poltrona e

sente que o conhaque, como sempre, começa a fazer efeito. E se

vê, então depois de tantas horas, chegando a São Paulo, em uma

rodoviária imensa” (Idem, p.87)

Benjamin (1989), também, atribui o involuntário e

voluntária à a memória. A diferença entre ambas consiste na

relação do presente e experiências passadas. A memória

259
voluntária é o resgate da conservação do passado, enquanto a

memória involuntária é de forma espontânea.

Como exemplo de memória involuntária Benjamin (1989,

p.135), traz sua análise de O tempo pedido de Proust em que o

sabor da madeleine associado ao chá desperta no indivíduo um

fragmento de memória, o qual conscientemente o indivíduo é

incapaz de resgatar: “Se, mais do que qualquer outra lembrança,

o privilégio confortar é próprio do reconhecer um perfume, é

talvez porque embota profundamente a consciência do fluxo do

tempo. Um odor desfaz anos inteiros no odor que ele lembra”

(Idem, p.135).

No trecho abaixo, como a memória (história da arma)

contrapõe à amnésia (não se lembra do rosto do pai) no romance:

E não parou por aí: “Você sabe que, fora


umas poucas vezes (não quis contar a história
da arma) – e uma delas foi quando fomos a
Valadares porque eu estava doente -, quase não
me lembro dele, a não ser morto, sujo de
sangue e estendido ali em cima daquela mesa.”
(LOPES, 1995, p. 75-76) Grifo nosso

260
Desse modo, como posto até aqui, o protagonista de O

último conhaque perde o vínculo com sua tradição. Ele, em toda a

trama está em busca de suas referências perdidas na infância,

uma vez que seu pai foi morto quando tinha apenas 12 anos e

após esse fato é tirado de sua terra e de perto de sua mãe. Ao

chegar a uma nova cultura (São Paulo) ele é obrigado a adaptar-

se com esse novo modo de vivência, mas por não se identificar

com a nova cultura que lhe é imposta, ele volta à sua terra natal

e começa, então, uma busca por resgatar suas tradições. Essa

busca se dá mediante a memória, ora voluntária, ora

involuntária. O que reconhecemos é esse sujeito fragmentado em

busca de uma identidade, representado por meio do

protagonista do romance e que a nosso ver representa um

sociedade como todo.

Considerações finais

261
Antonio Candido (2000) mostra que o momento histórico

refletido nas obras literárias muito mais do que se lê nas linhas:

as marcas de um tempo social estão impregnadas nas obras; e

adiante o autor acrescenta que a teoria literária se posta nas

fronteiras com outras disciplinas.

Em O último conhaque, a violência, a vingança e a disputa

de terras, assim como a recorrência da narração por meio de

memórias ocupa um espaço privilegiado no discurso narrativo e

os operadores da narrativa, em especial narrador/focalização,

espaço e tempo, dos quais são elementos fundamentais na

construção da memória e pela busca de identidade da

personagem.

O romance é constituído pela trama de Nando, tendo o

panorama para as ações o estado de Minas Gerais. Destaca-se por

ser o único romance do autor heterodiegético (não é personagem

da história que relata), sendo os demais, autodiegéticos (relata a

história da qual participa). Os acontecimentos se passam em

262
Minas Gerais, numa cidade fictícia por nome de Santa Marta,

cenário esse em que o autor viveu até os doze anos, e ainda

frequentemente tem contato, como já dito antes, se refere a

Coluna, cidade natal de Lopes.

O título, segundo Reis e Lopes (1988, p.97) “constitui um

elemento fundamental de identificação da narrativa. Elemento

marcado por excelência, o título não é, naturalmente, exclusivo

da narrativa literária, nem dos textos literários”. O título da obra

“O último conhaque, nos salta a mente qual o motivo de ser o

último. Sabemos que o adjetivo “último” se configura por ser o

que se situa depois de todos os demais, numa sequência ou do

que sobrou dentre todos os que havia. É certo que haverá outros

conhaques antes do último de certa forma é o prenúncio da

morte. A personagem tem consciência da morte, assim como foi

com o seu pai “E, assentado na poltrona, dando fortes tragadas e

observando a fumaça dissolver-se, pensou: “Tudo, como de

resto, tem esse mesmo destino” (LOPES, 1995, p. 85).

263
Estruturalmente, o texto inicia-se por uma espécie de

epígrafe introdutória: “E o temor dos cegos passa por mim, até o

esquecimento, até o fim, até a incompreensão...” Natan

Alterman. As palavras chaves da epígrafe, também será as do

romance: esquecimento e incompreensão. Ao decorrer da

narrativa vamos perceber que o esquecimento está em antítese

com o lembrar. O jogo do esquecer e lembrar desencadeará a

ação das personagens: “Onde, depois de quase trinta anos, ele se

encontra e está recordando tudo isto enquanto o melhor seria

esquecer” (LOPES, 1995, p. 17).

A antítese é a figura que marca o conflito dramático,

diferença entre dois termos, colocando-os em oposição; o

romance, por sua vez, instaura um jogo de forças contrárias em

que lembrar/esquecer, passado/futuro, rural/urbano, entrelaçam

se na composição dos enredos, sendo as forças que movem as

personagens. A estilização desse jogo de forças seria o processo

de figurativização, isto é, tornar concretos, por meio de figuras,

os temas que compõem o pano de fundo do romance; é como se

264
a antítese fosse a base, o alicerce da narrativa, que vai sendo

construída no trabalho da enunciação, da escritura do enredo.

Em harmonia com Reis e Lopes (1988, p.211-2) “a intriga

corresponde a um plano de organização macroestrutural do

texto narrativo e caracteriza-se pela apresentação dos eventos

segundo determinadas estratégias discursivas já

especificamente”, ou seja, a opção textual e estrutural que o autor

faz em contar a história desta ou daquela forma, cria um efeito

de sentido possível na interpretação da obra. Em O último

conhaque, o romance é narrado em vinte e nove capítulos não

nomeados. Cada capítulo tem apenas um parágrafo e isso dá um

ritmo lento na narrativa. O efeito disso é uma leitura, às vezes,

atormentada, pois bruscamente muda de relato. Por vezes, o

narrador está relatando o momento presente da diegese e

subitamente recua no tempo, ora para o passado e ora para um

futuro, e por falta de parágrafos e por vezes pontos finais, isso

requer uma atenção a mais do leitor. Nesse sentido, essa opção

de Lopes em estruturar a narrativa dessa forma, nos sugere que

265
todo o romance necessita de velocidade, seja na forma narrada,

no tempo e até mesmo nas personagens que angustiam por um

desfecho.

Referências:

AGANBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? In O que é


Contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: ___. Magia e


Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. Tradução de Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994a.
________. O Narrador – considerações sobre a obra de Nicolai
Leskov. In: ___. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras
Escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1994b.

BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo


com o espírito. São Paulo. Martins Fontes, Tradução de Paulo
Neves. ([1896] 1999).

CALVINO, Ítalo, Seis propostas para o próximo milênio. Companhia


das Letras, 1990. 1ª ed. Tradução Ivo Barroso.

266
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e
história literária. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000

GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas,


São Paulo: Autores associados, 2012.

GINZBURG, Jaime. Tese de livre docência


https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/03/tese-de-
livre-docencia-jaime-ginzburg-a_copy.pdf

HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. Trad.


Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, UNICAMP,


1990.

LOPES, Carlos Herculano. O último conhaque. 1 ed. Rio de Janeiro:


Editora Record, 1995.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia.


4. ed. Coimbra: Almedina, 1988.
__________

Notas

267
[1] O conceito usado se refere ao de tradição abordado por Stuart Hall (2006)
como práticas culturais repetidas que implicam numa continuidade do
passado. Outro terno que Hall (2006) usa em usa obra é o de “raízes” para
estabelecer essas práticas que são passadas de geração à geração. No entanto,
salientamos que o ato de perder o vínculo com a sua tradição e se dispersar
da sua terra natal, Hall (2006) chama de Tradução que do latim, significando
"transferir"; "transportar entre fronteiras". Esses conceitos serão retomados no
decorrer no trabalho.

[2] Caracterizamos a cidade de Santa Marta como rural por se tratar de uma
cidade de interior com características campestre, pastoril. Essas descrições
serão notadas no decorrer do nosso trabalho.

268
POR TODA A VIDA: "MEMÓRIA DA BIBLIOTECA" DE
LUIZ VILELA

Lucas Rodrigues Neves (CPTL/UFMS)

Resumo: Com o trabalho proposto, pretendemos desenvolver


um estudo onomástico das personagens do conto "Por toda a
vida", do escritor mineiro Luiz Vilela, que está presente em sua
obra inicial, Tremor de Terra (1967). Acreditamos que a
nomenclatura das personagens não ocorre de forma aleatória,
constituindo-se em signos dispostos de significado, o que o torna
primordial na construção do texto. Ao pensarmos no texto
ficcional como uma estrutura, descrevemos os efeitos de sentido
dos contos, nos quais as personagens são nomeadas de forma a
compor um todo significativo com a cena. Tal estudo nos
propicia um modo de aproximação do fazer poético do escritor.
Para embasar teoricamente o estudo, vamos nos valer,
inicialmente, do seguinte referencial: de Ana
Maria Machado, Recado do nome; de Leyla Perrone-Moisés,
Mutações da Literatura no Século XXI; de Antonio Candido e
Anatol Rosenfeld, A Personagem de Ficção; de Autran
Dourado, Personagem, Composição, Estrutura; e de Nelson Oliver,
Dicionário de nomes.

Palavras-chave: Tremor de Terra; Personagens; Onomástica.

269
Com o intuito verificar a simbologia dos nomes das

personagens no conto Por toda a vida, de Luiz Vilela, elegemos

obras que se dedicaram a verificação dos nomes próprios e dos

nomes de personagens nas produções literárias. Desse modo, a

presente pesquisa será norteada pelos estudos de Ana Maria

Machado, em Recado do Nome, Leitura de Guimarães Rosa à luz de

suas personagens (1976), de Nelson Oliver, em Dicionário de Nomes,

todos os nomes do mundo (2010), e o ensaio de Leyla Perrone-

Moisés, Mutações da literatura no século XXI (2016) - que não é um

ensaio que aborda diretamente o trabalho onomástico, mas

mostra como a "memória" das leituras do autor pode influenciar

em suas escolhas ao compor um texto literário.

Pensando na contribuição do nome ao texto literário,

Antônio Houaiss (1976), no prefácio à obra de Ana Maria

Machado, fala sobre o poder que o autor de ficção tem ao

designar um nome à personagem. Dessa forma o filólogo se

270
refere ao demiurgo como nominador e as personagens como

nominadas. O crítico chega à conclusão de que se na vida real

quem elege um nome para uma criança o faz com alguma

motivação, não há motivos para que seja diferente na ficção. Ou

seja, para o escritor a escolha é motivada pelo significado que o

nome carrega, de tal modo que o nome influenciará a trajetória

da personagem na diegese.

E cabe ao escritor desenvolver essa engenhosa tarefa.

Engenhosa porque não podemos pensar em uma narrativa como

se ela não fosse uma estrutura que funciona em conjunto, para

lembrarmos o pensamento de Autran Dourado (1973). E para

que a personagem funcione dentro de um determinado enredo,

suas características devem contribuir e colaborar com a

narrativa, formando um conjunto homogêneo quanto à

significação. E, dessa forma, que o leitor perceba que o trabalho

do autor surtiu efeito com a escolha do nome das personagens.

E essa contribuição do nome é também lembrada por

Autran Dourado em seu estudo sobre a personagem, no qual o

271
crítico lembra que a grande força da personagem é ser

substantiva, é ter um nome que dê substância ao indivíduo

atuante. Nas palavras do crítico o manejo com a personagem-

substantiva é que permite ao autor tratá-lo objetivamente ao

transitar pela unidade que é o texto:

O personagem como substantivo, ou em


linguagem abstrata - a sua unicidade, é que
permite ao romancista tratá-lo objetivamente,
plasticamente, colocá-lo no romance e
movimentá-lo, utilizá-lo conforme, e dentro da
estrutura narrativa. (DOURADO, 1973, p. 106).

A escolha do nome provém do autor, que, possivelmente,

tem motivação para fazê-lo. Mas a escolha e a função do nome

no texto nem sempre aparecerá às claras para o leitor. Ao se

deleitar com a ficção talvez o leitor não perceba o cuidado com a

escolha do nome. O que torna importante o trabalho de

investigação com prioridade na onomástica.

272
Anatol Rosenfeld, no ensaio Literatura e personagem, 1961,

mostra a atuação da personagem no texto de ficção. O ensaísta

demonstra como a sintaxe do texto, a escolha da oração, é que

transforma a personagem em um ser ficcional. Entender a

personagem como um ser ficcional, o texto literário como uma

estrutura, e compreender o pensamento de Antonio Houaiss de

que o escritor não dá nome a personagem sem alguma

motivação, implica que o nome destinado ao personagem pode

ter significação na construção do texto, como veremos no ensaio

de Ana Maria Machado sobre os nomes nas obras de Guimarães

Rosa.

Ana Maria Machado, em Recado do Nome, Leitura de

Guimarães Rosa à luz de suas personagens (1976), demarca a

importância do nome das personagens no todo significativo da

narrativa rosiana:

Quando falamos em examinar o papel que


desempenha o nome próprio na narrativa de
Guimarães Rosa, não pretendemos com isso

273
elaborar ou estabelecer uma ampla teoria do
nome próprio, nem mesmo de suas possíveis
funções dentro do romance ou do conto em
geral. Estamos tratando de um texto específico,
o de Guimarães Rosa, e, mais do que uma
teoria abstrata sobre o nome próprio, interessa
estudar a prática do autor, examinar a relação
entre o sistema onomástico e a estruturação da
narrativa em sua obra. (MACHADO, 1976, p.
23).

Como alerta a ensaísta na citação acima, os estudos sobre

os nomes na obra de Guimarães Rosa tratam do texto do próprio

autor. Precisaremos, portanto, adaptar a metodologia da autora

para que possamos estudar o texto de Luiz Vilela.

A leitura de Recado do nome mostra que, em Guimarães

Rosa, "os Nomes formam um sistema global de significação"

(MACHADO, 1976, p. 194), além de ter como função inicial

questionar o próprio texto, ou seja, a composição do nome

próprio é feita de forma a funcionar na construção do texto

literário: " A análise do nome próprio em Guimarães Rosa mostra

274
que ele desempenha um papel importante na própria geração do

texto, no engendramento dos sintagmas, na produção da página

escrita, no ato de fazer a obra" (MACHADO, 1976, p.194). O

nome das personagens em Rosa, segundo Ana Maria Machado,

vai além: "ele guarda dentro de si, sob um aspecto latente, uma

profusão de semas que vão se manifestando aqui e ali, através do

texto." (MACHADO, 1976, p.195). A ensaísta mostra que além do

nome como unidade suas partes também são significativas para

a composição da personagem e para a construção da narrativa.

Os semas, isolados ou combinados, se encontram e se articulam,

formam significados, como explica Ana Maria Machado:

Mas ao mesmo tempo, como se trata de um


sistema global e plenamente articulado, a cada
instante o resto do texto, em seu conjunto e em
suas diversas partes, incide sobre o Nome e,
por sua vez, vai lançando luzes diferentes e
novas que revelam outras cores nos semas que
nele estão presentes. Os significantes se
correspondem, se atraem, se encadeiam,
tecendo os significados com seu movimento
permanente. (MACHADO, 1976, p. 202).

275
Outra questão que a autora aborda no ensaio é o caráter

estilístico da escolha dos nomes na obra de João Guimarães Rosa,

isto é, a escolha do nome para uma personagem evita páginas e

mais páginas descritivas e, quando evocada alguma

característica da personagem, o leitor percebe de qual

personagem se trata. Ainda na questão estilística, a ensaísta

percebe que nas obras estudadas os nomes são plurais, eles têm,

no texto, plurisignificância:

Essa pluralidade, aliás, ligada à necessidade de


releitura, está explicitada pelo próprio
Guimarães Rosa em diversas passagens de sua
obra. Mas talvez em nenhum momento de
maneira tão clara quanto em Tutaméia
(terceiras estórias), imediatamente posterior às
Primeiras estórias e deixando lacunas das
Segundas. (MACHADO, 1976, p. 194)

A pluralidade do nome vem de sua composição, da

significação dos semas, para utilizarmos um termo dos

276
linguistas. Mas o que a ensaísta vê na obra de Guimarães Rosa é

o funcionamento da estrutura narrativa em decorrência do

nome. Ana Maria Machado percebe que a composição do nome

da personagem está intimamente ligada à composição do texto,

e o funcionamento do texto como um mecanismo estrutural.

Algumas vezes o próprio texto traz o significado do nome, e isso

pode ser percebido pela análise de sua composição, é como

retrata Ana Maria ao comentar sobre O recado do morro, de

Guimarães Rosa. Esse recado tem que chegar a seu destino, o

destinatário da mensagem é o vaqueiro Pedro Orósio e a

predestinação já estava marcada, claramente, em seu Nome e na

dispersão do mesmo pelo texto:

A quem poderia o morro falar, se não àquele


que é seu homólogo, que é pedra, montanha,
terra? A quem é Pedro como pedra, Orósio como
soma de oros ('montanha') e ósio ('escolhido'). E
para que não se pense que seu sobrenome
poderia ser meramente uma distorção de
Osório, por metátese, o autor faz questão de
fazer referência, na mesma novela, à localidade

277
de Osório de Almeida (UP 29). Pedro é também
apresentado como uma espécie de novo Anteu,
que recebe força da Terra quando a toca com
seu pé descalço, filho e prolongamento que é
da Terra. A relação entre Pedro, seu pé e o chão
é insistentemente acentuada, na multiplicação
do Nome do vaqueiro por seus apelidos,
muitas vezes em associação a outro tema que o
acompanha, o do boi, animal ligado à própria
sobrevivência econômica do vaqueiro, o que,
além disso, corresponde perfeitamente em
relação isomórfica às qualidades que marcam o
destinatário do recado pela narrativa afora:
tamanho, solidez, simplicidade. (MACHADO,
1976, p. 110).

No fragmento citado, Ana Maria Machado demonstra

como o Nome e seus diversos significados estão funcionando em

conjunto na estrutura narrativa, mais, é o funcionamento deles

que dá origem ao texto. Para o estudo da personagem Pedro

Orósio, de Recado do morro, a ensaísta busca o significado do

nome, primeiro, na etimologia (Pedro = pedra) para, então,

perceber o funcionamento do texto. E para solidificar a pesquisa,

278
o texto de Guimarães Rosa reforça o significado encontrado pela

estudiosa.

Por outro lado, é certo que nem todo texto literário trará o

significado dos nomes das personagens explícitos na narrativa,

como ocorre em Recado do morro, ou entregue pelo narrador, ou

pelo ponto de vista de alguma personagem. Dessa forma, é

inevitável que durante o nosso trabalho estejamos com um

manual que trate pontualmente a origem dos nomes. O

Dicionário de Nomes, 2010, de Nelson Oliver, aparece como um

aliado indispensável à pesquisa. O dicionário de Nelson Oliver é

resultado de 15 anos de pesquisa, coleta de dados e organização

das informações obtidas. O jornalista desenvolve um trabalho

que vai além do que simplesmente descobrir a origem de nomes

próprios. As quarenta primeiras páginas do livro trata sobre a

origem do uso do nome, os motivos para o uso, as

transformações dos nomes ao longo do tempo, as questões

territoriais e geográficas, além das questões políticas. Um dos

aspectos que nos prende, também, ao trabalho de Nelson Oliver

279
é o prefácio da obra, intitulado "A influência do nome sobre a

pessoa", no qual o pesquisador demarca a relevância do nome,

segue um trecho:

Nomen, omen ("Nome, augúrio"): a máxima de


Plauto indica a importância dada à escolha do
nome pelas civilizações tradicionais, cientes de
que incorpora e transmite ao seu portador as
qualidades fonéticas, semânticas, culturais e
espirituais a ele associadas. No Ocidente - onde
a inconsciência e os modismos formam a base
da nomeação - tal assertiva é rejeitada como
mera crendice sem fundamentação científica.
Mas, ainda assim, a influência do nome na
personalidade recebe atenção da psicologia no
estudo da construção da identidade do
indivíduo. (OLIVER, 2010, p. 7).

A influência do nome sobre a pessoa é demonstrado por

Oliver a partir de estudiosos que se dedicaram a reconhecer

transtornos causados pela escolha errada do nome:

Para a psicóloga Elaine Pedreira Rabinovich,


doutora em psicologia social pela USP e que
investigou os sistemas de nomeação de 1989 a

280
1996,' o nome influencia as dinâmicas sociais,
culturais e familiares. Se seu nome é uma
homenagem a alguém, ele está vinculado à
história dessa família'. (OLIVER, 2010, p.7).

Ainda sobre os transtornos causados pela escolha do

nome, Nelson Oliver recorre ao pesquisador francês Françoise

Bonifaix:
Françoise Bonifaix, pesquisador francês e autor
do livro Le traumatisme du prénom ( O trauma
dos nomes próprios), enumera as crises da
infância, adolescência e maturidade derivadas
de prenomes ou sobrenomes incomuns,
sugerindo que o conhecimento da história do
próprio nome revela-se um fator de
fortalecimento da identidade e superação das
crises. (OLIVER, 2010, p.7).

Segundo Oliver, é a partir do nome, e o reconhecimento

deste através da linguagem, que a criança começa a desenvolver

um padrão mental, geralmente estimulado pela voz da mãe:

Somente quando as atividades conscientes


específicas, coordenadas e expressas por meio

281
dos símbolos existentes no nome, estimulam as
células cerebrais a responderem a esses
símbolos, a criança começa a desenvolver um
padrão mental. Esse padrão é reconhecido
como personalidade e reflete as qualidades da
inteligência expressas pelo nome. (OLIVER,
1976, p.8) .

A influência do nome sobre a pessoa não só dá inicio ao

processo de desenvolvimento intelectual, como a carga

pragmática proveniente do nome acompanhará o indivíduo por

toda a vida. Nelson Oliver mostra em seu dicionário alguns

exemplos de nomes esdrúxulos, inconvenientes e, muitas vezes,

inconscientes escolhidos pelos pais para os filhos. O autor lembra

que o individuo, ao ser nomeado, se transforma no nome, o que

pode causar dificuldades ao longo da vida:

As doenças nada mais são do que o corpo


refletindo as características contraditórias da
mente, pois a mente controla o corpo. Assim, a
resposta para a pergunta "O que se encontra
em um nome?" é: "Nada." Mas a resposta para
a pergunta "O que se encontra em seu nome?"

282
é: "Você." Notaram a diferença? O Nada e o
Ser? Notaram também como é importante a
escolha do nome de seu filho? Por isso você
deve evitar principalmente nomes dúbios,
complicados ou de significados vazios como
Neuda ("nós não sabemos") ,ou Saionara
("adeus; até logo") [...] Vale também assinalar a
tentativa de registro de um Akuma
("demônio"), no Japão, e de um
Brfxxccxxmnpcccclllmmnprxvclmnckssqlbb11
116 que uma família sueca tentou dar ao filho,
em 1996. Para o bem das crianças envolvidas, o
registro de tais barbaridades foi rejeitado pelas
cortes de seus países. (OLIVER, 2010, p. 8-9).

O prefácio de Nelson Oliver se aproxima do ponto de vista

de Antônio Houaiss. Ambos chegam a conclusão de que a

escolha do nome para um indivíduo não é de forma alguma

aleatória. Oliver prova que o nome é construído por

características que compõem uma significação e Antônio

Houaiss e Ana Maria Machado mostram como essa significação

funciona dentro da estrutura narrativa. Nesse contexto, o

Dicionário de nomes ajudará na busca pelo significado dos nomes

283
e a obra de Ana Maria Machado nos auxiliará, de forma modelar,

na leitura dos nomes e sua significação no conto de Vilela.

Nomear um personagem é tão importante quanto nomear

um ser real. Quando o nome tem substância, ele ganha vida

dentro e fora da ficção e, em determinadas situações, a

personagem foge do alcance do escritor. Vide Sherlock Holmes,

o detetive inglês que desvenda misteriosos crimes. Talvez

Sherlock Holmes seja mais conhecido do que seu criador, Sir

Arthur de Conan Doyle (1859-1930), porque a personagem

ganhou vida, extrapolou fronteiras a ponto de causar dúvida se

é um ser real ou fictício. Podemos dizer que a personagem, que

saiu da literatura para o cinema, ganhou vida em todo o mundo,

tornando-se substantiva.

É com o apoio dos teóricos citados neste texto que

tentaremos adentrar ao processo de nomeação das personagens

de Por toda a vida, conto de Tremor de terra. Luiz Vilela não foge a

tal preceito ao longo de sua produção literária. Construir e

nomear personagens pensando no efeito de sentido na trama

284
narrativa é uma das tônicas, a nosso ver, da ficção do autor

mineiro.

Nenhum escritor produz sem que antes tenha sido leitor.

Tal afirmação serve de guia para que possamos nos aproximar

do processo de criação de um texto literário. O termo "memória

da biblioteca", que está no título deste trabalho, encontra-se no

ensaio de Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século

XXI, e nos ajuda a compreender melhor como as influências das

leituras atuam no processo criativo do escritor.

Buscamos no trabalho da ensaísta caminhos para nos

aproximarmos do processo de criação do conto Por toda a vida, de

Luiz Vilela. A ensaísta deixa claro no ensaio que os escritores

dispõem de alguns artifícios para conectar uma história à outra,

como, citação, alusão, pastiche ou paródia. Por hora, para que

possamos desenvolver uma leitura do conto de Vilela, parece

oportuno usarmos o termo "memória da biblioteca".

Em Por toda a vida, Vilela conta a história de um carpinteiro

e uma moça filha de pequenos comerciantes, ambos de família

285
pobre, que resolvem se casar. Com três filhos e com dificuldades

financeiras, João e Inês permanecem juntos mesmo com as

tempestivas crises e opiniões familiares. À medida que a situação

financeira melhora, a relação entre o casal faz o movimento

contrário. João, agora bem-sucedido, dá pouca importância ao

casamento, ao passo que Inês segue devota ao matrimônio.

O trabalho do autor com o nome das personagens é

decisivo para a construção e significação da narrativa. Os nomes

escolhidos pelo autor influenciam diretamente na ação das

personagens. A significação do texto é decorrente do conjunto de

"memórias", as memórias do autor, as memórias do texto e as

memórias do leitor.

O que possivelmente ocorre neste conto é a influência de

uma outra história em sua criação, a história de Santa Inês parece

ser colaborativa para a construção do conto de Luiz Vilela.

Devemos perceber que essa influência não tira a originalidade da

história construída por Luiz Vilela, seu trabalho característico

com a linguagem está presente, o que garante a autonomia do

286
texto. A aproximação entre a narrativa de Vilela e sua influência

é sensível, percebida, primeiro, pela escolha dos nomes das

personagens, o que dá subsídios para a investigação inicial.

O nome da personagem central da obra é Inês, que, no

conto, faz referência à Santa Inês, protetora da família. João, o

marido, e Joana, a mãe, são as outras personagens que formam o

núcleo da narrativa com Inês. Por sinal, a recorrência de nome de

santidades é visível na obra de Vilela. A mesma Santa Inês é

protetora de Epifânio Carvalho, personagem do romance Graça,

1989.

O processo de nomeação de Luiz Vilela, neste conto,

consiste em fazer a trajetória da personagem ser influenciada

pelo nome que ela recebe, como explica Nelson Oliver em seu

Dicionário de nomes, todos os nomes do mundo, 2010. Inês faz jus ao

nome que carrega e à Santa protetora. Como disposto no

dicionário de Nelson Oliver, ao tratar da influência do nome

sobre a pessoa, fica evidente a influência do nome sobre Inês. O

287
estreitamento entre o nome e o comportamento da personagem

torna-se coerente neste conto.

Luiz Vilela constrói a narrativa utilizando-se do nome da

personagem principal, Inês, e a história de Santa Inês, para

adentrar o leitor na personalidade da personagem. O enredo

ganha força com a associação entre o nome, sua história e seu

significado; no dicionário de Oliver o nome Inês, e sua variante

Agnes, significa "pura, casta", (OLIVER, p. 309). Não por

coincidência, ainda com base na pesquisa feita ao dicionário, na

Inglaterra, entre os séculos XII e XVI, Inês e Jonh (João) eram os

nomes mais comuns do período.

Para que possamos compreender a ligação entre os

nomes, é necessário uma breve pesquisa à história de Santa Inês,

que ocorreu em Roma entre os anos 304 - 317. Ligeiramente

idêntica à história de Santa Inês, a trajetória de Inês, do conto de

Luiz Vilela, é marcada pelo sofrimento com a promessa de

remissão ao final. A conhecida história da Santa serve como base

para a leitura do conto Por toda a vida. Inês, que viria a ser

288
santificada, aos treze anos foi preterida pelo filho do prefeito de

Roma, Fúlvio. Por rejeitar o casamento, Inês foi torturada. Para

ela, todo sofrimento era válido em nome de sua devoção a Jesus.

No conto de Vilela, o papel de carrasco cabe a Joana, ela

condena o casamento da filha com João por ele ser pobre. A

antipatia de Joana é resultado do reflexo que ela vê no jovem

rapaz, a família de Joana também é pobre. João é para Joana um

espelho no qual ela se vê, o que também podemos buscar

explicação com relação ao nome dos dois. Nas histórias bíblicas,

o nome Joana era usado tanto para homens quanto para

mulheres. Joana, segundo o novo testamento, foi uma das

primeiras pessoas a seguir Jesus, junto aos apóstolos e Maria

Madalena.

Apesar da influência da narrativa de Santa Inês na criação

do conto, a história de Vilela é contada no século XX, com uma

linguagem que é característica do autor mineiro. Caso o leitor

não se atente aos nomes das personagens, não haverá prejuízo à

leitura; mas para um estudo que pretende perceber o processo

289
de criação do autor é essencial que todos os aspectos da narrativa

sejam observados.

Para finalizar, precisamos trazer à tona, mais uma vez, a

questão da aproximação entre o texto literário e a narrativa de

Santa Inês; e uma afirmação da ensaísta Leyla Perrone-Moisés

pode nos auxiliar, quando diz: "Nenhum texto é inédito, pois

para ser escritor o indivíduo precisa ser, antes, leitor".

Encontramos esta afirmação no livro Mutações da literatura no

século XXI, no capítulo em que trata da metaficção e da

intertextualidade, a ensaísta evidencia o não ineditismo em

textos clássicos, uma tendência seguida em obras publicadas no

final do século XX e inicio do século XXI. E as características dos

textos desse período é a retomada do tema de forma satírica,

questionadora e crítica, como é encontrada em Tremor de terra.

Em Por toda a vida o fio que conduz o leitor às referências é o

nome das personagens. E, ao compararmos a Inês de Vilela com

a Santa, vemos um paradoxo entre as duas homônimas: a

personagem de Vilela aceita a submissão à figura masculina, já a

290
Santa prefere entrar para a história, tornando-se símbolo de luta

e resistência.

Quando Vilela escolhe Inês para ser o nome da

personagem principal do conto e indica que o nome foi escolhido

devido à fé em Santa Inês, toda a carga pragmática que incide do

nome da Santa recai sobre a personagem; essa "bagagem" que

acompanha o nome amplia a leitura do conto, sobretudo amplia

a composição da personagem. O destino da personagem, assim

como o da Santa, é o sofrimento e a espera da remissão.

Perceber o trabalho onomástico de Luiz Vilela em "Por

toda a vida" requer uma busca de significados dos nomes além

do dicionário de nomes, requer uma pequena procura em sua

"memória da biblioteca". A memória das leituras de outros textos

que colaboram para a construção de uma nova narrativa. O que

facilita a percepção dessa memória é a marca discursiva presente

no texto: " A mãe, cansada de falar, entregou a filha à Santa Inês,

que era a sua santa protetora." (VILELA, 1972, p.35). A partir

desse primeiro fragmento é que podemos conectar uma história

291
à outra para percebermos como o significado do nome colabora

para o todo significativo do texto.

Por fim, é a partir dessas marcas discursivas que evocam

outras narrativas que percebemos as "memórias" que o autor

aciona para a construção de seu texto. O estreitamento entre as

narrativas pode ampliar as possibilidades de leitura do texto

artístico. A propósito, nosso estudo nada mais é do que uma

proposta de leitura para o conto de Vilela, não a única e nem a

definitiva.

Referências:

BULCÃO, Clóvis. Personagens da literatura brasileira. Rio de


Janeiro: Elsevier, 2005.

FERRAZ, Salma. Dicionário de personagens da obra de José Saramago.


Blumenau: Edifurb, 2012.

MACHADO, Ana M. Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à


luz do nome de seus personagens. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2003.

292
OLIVER, Nelson. Dicionário de nomes. Rio de Janeiro: BestBolso,
2010.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da Literatura no século XXI.


1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

TODOROV, Tzevetan. As estruturas da narrativa. Trad. Leyla


Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2013.

VILELA, Luiz. Tremor de terra. 3ª edição. Rio de Janeiro: Edições


Gernasa, 1972.

293
ASPECTOS ELUSIVOS EM CONTOS DE A CABEÇA, DE
LUIZ VILELA

Marcos Rogério Heck Dorneles (CPTL/UFMS)


Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: Artigo sobre contos do livro A cabeça, de Luiz Vilela,


com destaque para análise e interpretação dos elementos
constitutivos, e para a percepção de aspectos elusivos na criação
da narrativa literária. Como objetivos principais da atividade
situam-se o levantamento dos procedimentos recorrentes na
produção desse livro, a percepção de camadas textuais que não
se encontram evidentes na superfície de alguns contos e a
associação dessa escrita a uma visão de mundo. O artigo foi
realizado por meio da leitura de contos do autor, e de textos das
teorias narrativas, da recepção crítica e dos estudos filosóficos.
Derivam da pesquisa também o registro de temas, tensões e
intertextos dispostos nas estruturas narrativas.

Palavras-chave: Conto. Literatura. Luiz Vilela.

Introdução:

294
“Uma folhinha seca, soltando-se do galho da
árvore ali perto, veio a cair sobre a cabeça:
como se – poderia ter pensado um dos
presentes – como se fosse uma homenagem
da natureza ao morto desconhecido.”

Luiz Vilela.

O escritor mineiro Luiz Vilela perfaz cinco décadas de

produção literária, em que se desdobram formas compositivas

peculiares ao gênero narrativo, como a elaboração de cinco

romances, de quatro novelas, de sete livros de contos e de

diversas antologias. Dessas modalidades narrativas, destacamos,

neste estudo, as suas narrativas curtas [Tremor de terra (1967); No

bar (1968); Tarde da noite (1970); O fim de tudo (1973); Lindas pernas

(1979); Você verá (2013)], mais especificamente, o volume de

contos A cabeça (2002). Vilela iniciou sua publicação literária já

com alguns parâmetros composicionais bem delineados,

configurando-se como uma expressão ficcional brasileira nos

seus primeiros livros. Em Tremor de terra, Vilela recebeu o Prêmio

295
Nacional de Ficção, e, na obra O fim de tudo, foi distinguido com

o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (Blogue GPLV,

2016).

No Brasil, entre o intuito, a tentativa e o acerto, alguns

modernistas já precediam Luiz Vilela na busca por determinados

traços literários, como, por exemplo, Manuel Bandeira, em

alguns poemas curtos. No entanto, além de dialogar com obras

de escritores brasileiros de gerações anteriores, tais quais,

Fernando Sabino, Rubem Braga e Graciliano Ramos, Vilela

estabeleceu diálogos pontuais ou permanentes com narrativas

curtas da literatura universal, como as de Anton Tchekhov,

James Joyce, Franz Kafka e Ernest Hemingway. Assim que,

nesses mais de cinquenta anos de escrita, Luiz Vilela sedimentou

um horizonte literário que levou a cabo a posição de se

desenvolver certos processos criacionais peculiares, como a

efetivação de uma dicção coloquial e de uma concisão da escrita.

A primeira narrativa curta da coletânea Tremor de terra

(2003), “Confissão”, expressa a tentativa de se alcançar uma

296
criação literária estabelecida na brevidade narrativa e na

proximidade junto à linguagem cotidiana, ao se instituir pela

predominância quase completa de diálogos entre dois

personagens. No conto, ocorre a confissão de um adolescente a

um padre, da qual sobrevém ao sacramento de expiação e

exposição dos pecados de um personagem a audiência e

manipulação realizada pelo outro. Maria Luiza Ramos salienta a

feição dramática da disposição textual de “Confissão”, pelo fato

de não haver a presença explícita do narrador (“autor”) no

decorrer do conto (RAMOS, 1969, p. 172): “Da primeira à última

palavra, o discurso direto empresta à narrativa caráter dramático

que elimina a pessoa do autor e, de certa forma, a própria

narrativa – se considerada do ponto de vista tradicional, em que

alguém tem algo a comunicar a um auditório.”. Já Lígia

Chiappini Moraes Leite, ao discorrer sobre o modo dramático no

gênero narrativo, pontua (1985, p.59): “E do narrador, só vem a

notação final da cena: ‘Ato de contrição’”. Não obstante as

considerações de Ramos e Leite, acrescentamos a presença e a

297
escolha do título também como participação do narrador no

texto.

O terceiro livro de contos (1970), Tarde da noite, publicado

em 1970, desfruta o caminho trilhado pelas obras anteriores, ao,

muitas vezes, transpor um limiar movediço das fronteiras entre

a percepção da matéria corrente da vida e a colocação em prática

dos recursos artísticos da narrativa literária. Na época do

lançamento do livro, Hélio Pólvora discorreu sobre essa árdua

realização:

Vilela é bom, fora de série, quando põe gente


conversando, amando e sofrendo, interrogando
o seu destino ou libertando o seu instinto, gente
que sem o saber se expõe a julgamento pelos
seus instantes decisivos, reveladores. A história
não se arma, não denuncia o seu vínculo com a
literatura nem fica na faixa do imaginado que
seria possível; a história surge em andamento,
no ponto exato em que se confunde com os fatos
da vida. É como se, desvendado de súbito um
palco, e percebidos de relance alguns detalhes
importantes à compreensão exata do quadro que
se vai configurar, as revelações se precipitassem

298
sem interferência do autor. O autor não manobra
as suas criações. Elas estão em liberdade para
agir conforme o seu caráter e condicionamentos.
(PÓLVORA, 1970, p.2)

Embora diverso da estética da predominância do

apagamento da figura do narrador, o conto “Françoise”, dessa

coletânea, notabiliza-se pela concretização de algumas condições

e efeitos para a criação artística propostas por James Joyce

(VIZIOLLI, 1991). Dentre elas, a busca de uma transformação na

situação das personagens que passe quase despercebida pelo

leitor, e que se complete num processo de desvelamento da

narrativa. No conto, enquanto aguarda o seu ônibus na

rodoviária, o narrador-personagem estabelece contato com a

personagem Françoise, e se intriga se encanta com sua curiosa

espontaneidade. Ao término da leitura, completa-se o processo

de efetivação de uma revelação inesperada, completando o

circuito de três fases da chamada epifania (segundo a aplicação

de Joyce para narrativas): apresentação da imagem estética;

299
conhecimento inicial de uma consonância das partes; e

descoberta da individualidade do objeto.

Após esse preâmbulo, em que pontuamos alguns

momentos e tópicos da produção literária de Luiz Vilela,

propomos, neste artigo, o estudo de aspectos elusivos na sua

criação ficcional por meio da expressão de recursos adotados e

da confirmação de uma determinada visão de mundo no livro A

cabeça (2002).

Recepção crítica:

Dentre alguns estudos realizados sobre o livro A cabeça,

salientamos as proposições indicadas por Augusto Massi (2002),

Gil Roberto Negreiros (2010), Rinaldo de Fernandes (2012),

Antonio Belon (2007); Nízia Villaça (2004) e de Rauer Ribeiro

Rodrigues (2006).

O crítico e editor Augusto Massi, junto às orelhas do livro,

destaca o lançamento imediato às tensões e aos episódios na

300
narrativa (realizado nesse caso pela predominância dos diálogos

e pela dispensa de componentes prescindíveis à fatura textual);

a constituição de um clima de inquietação (por meio da

recorrência à configuração aflitiva das relações entre os

personagens); a seleção de grupos sociais medianos; e a

construção de um tom irônico:

Uma das estratégias de risco é enredar o leitor


rapidamente, lançá-lo no
redemoinho dos acontecimentos, deixá-lo rente
aos personagens: somos vizinhos, sentamos na
mesa mais próxima, ouvimos a conversa do
quarto ao lado, estamos nos arredores da
situação. O horizonte ficcional foi reduzido. A
atmosfera é de discreto acossamento. Diálogo e
ideologia avizinham-se no espaço provisório de
um bar, de um hospital, de um escritório. Outro
aspecto que aproxima todas as histórias é o
recorte social, projetando insidiosamente a
truculência esclarecida da classe média
brasileira. O lirismo desencantado dos contos de
O fim de tudo (1973) ou do romance O inferno é
aqui mesmo (1979), foram substituídos por uma
dicção quase convencional, mas sutilmente

301
flexibilizada pelo tom de divertimento, escárnio
e ironia. (MASSI, 2002, p. l.)

Já o linguista Gil Roberto Negreiros (2010) salienta a busca

pelo efeito de sentido realizado pela “ilusão do oral”, em

especial, no conto “Freiras em férias”. Nesse conto, Negreiros

aponta a fragmentação do enunciado (ocorrida por gracejos e

trocadilhos); os usos informais da linguagem; e os processos de

negociação (em função das disputas das freiras por espaço e

poder).

O pesquisador Rinaldo de Fernandes (2012) situa as cinco

vertentes principais do conto brasileiro do século XXI (a da

violência ou brutalidade no espaço público e urbano; a das

relações privadas; a das narrativas fantásticas; a dos relatos

rurais; e a das obras metaficcionais) e exemplifica o conto “A

cabeça” como representante da primeira vertente. Além disso,

Fernandes estabelece como ponto coincidente entre as vertentes

(2012): “[...] o olhar cruel e irônico sobre as situações

configuradas.”. De outra parte, acrescentamos que a produção

302
contística de Vilela transita pelas duas primeiras vertentes

apontadas por Fernandes.

Antonio Belon (2007), por outro lado, sinaliza a

impossibilidade de se narrar conforme os parâmetros antigos de

transmissão da experiência, apontados por Walter Benjamin

(1994). Segundo Belon, no conto “A cabeça”:

As falas do narrador, como didascálias, fazem


indicações dramáticas, essenciais no
desenvolvimento do texto. Uma narrativa
pronta para uma representação teatral. A cena
urbana, todavia, revive a banalidade de um
cotidiano de violência, morte e, sobretudo,
indiferença: de histórias para se contar, ou não,
nas conversas de rua, amiudadas e rotineiras.
(BELON, 2007)

Assim, por meio da utilização do recurso dos diálogos, a

construção do conto ganha contornos de dramatização nas

atuações dos personagens, e transporta para a cena desenvolvida

o impacto narrativo.

303
Num estudo acerca dos desdobramentos da estética da

crueldade nos âmbitos dos meios de comunicação, expressões

culturais e textos literários, a pesquisadora Nízia Villaça (2004),

realça sobre o conto “A cabeça” os tópicos de desqualificação

generalizada; de radicalização semântica do conto “Uma vela

para Dario”, de Dalton Trevisan; do rebaixamento do humano; e

da técnica da inversão da figura divina.

Pesquisa de grande fôlego (2006), nos estudos realizados

por Rauer Ribeiro Rodrigues sobre a produção contística de Luiz

Vilela, é dividida a criação literária do escritor mineiro em dois

momentos: anterior e posterior à publicação da coletânea A

cabeça (2002). No trabalho são apontados traços inerentes ao livro

A cabeça, com destaque para o riso literário, e para os

procedimentos textuais e mecanismos enunciativos [estruturas

semióticas]. Rauer salienta as diversas tonalidades do riso

literário nessa obra (2006, p.117): “Chistes, piadas, certo tom de

comédia, caricaturas, o grotesco, a sátira, enfim, o riso literário

304
não é só uma das características marcantes do volume como se

apresenta em gradações e nuances as mais diversas.”.

Elementos constitutivos:

Conforme mencionado anteriormente nas proposições de

parte da recepção crítica, o conjunto de temas que caracterizam

o livro A cabeça transita pelos conflitos manifestos e latentes em

porções da população brasileira, em especial, em diversos

estratos da classe média. A inflexão das nuances se configura na

assimilação e transformação da linguagem cotidiana e da dicção

coloquial, e na elasticidade do gracejo, da ironia e da irrisão.

A coletânea é constituída de dez narrativas curtas: “Mosca

morta”, “Luxo”, “Calor”, “Más notícias”, “Freiras em férias”,

“Suzy”, “Catástrofe”, “A porta está aberta”, “Rua da amargura”,

“A cabeça”. São enfeixadas pela similaridade e proximidade de

recursos e procedimentos caros aos propósitos de efetivação da

305
concisão da escrita e de elaboração da tensão entre as

personagens.

Encarregado de desempenhar a intermediação entre o

texto e a personagem, a figura do narrador nos contos ocorre

tanto por meio da utilização de narrador heterodiegético

(“Mosca morta”), como pelo uso de narrador homodiegético

(“Más notícias”) e autodiegético (“Suzy). E, de forma mais

radical, está o conto “Catástrofe”, que se efetiva pela proposição

de desvanecimento do esboço tradicional de narrador, mediante

a predominância dos diálogos. A exposição da escrita se faz valer

através de narrações em 1ª pessoa do singular (“Freiras em

férias”), pelo emprego da 3ª pessoa do singular (“Calor”), e,

também, por intermédio da 1ª e da 3ª pessoa (“Luxo). Já a

focalização oscila entre a adoção do prisma externo ao discurso

narrativo, e a utilização de uma perspectiva em que o ato de

focalização ocorre por meio das personagens, como em “Más

notícias”:

306
Vinda de dentro, Beth surge na porta interna do
escritório. Ela percebe logo o clima – fúnebre.
Fúnebre seria a palavra exata nos dois sentidos:
literal e metafórico.
[...] Olho para o cartaz na parede, Maca
sorrindo, esbanjando confiança e simpatia; mas,
por um momento, é como se eu, algum tempo
depois, estivesse vendo aquele cartaz num
muro qualquer da cidade, ele já desbotado,
rasgado e sujo – o melancólico cartaz de um
candidato que não se elegeu. (VILELA, 2002,
p.41, 45, grifos nossos).

Em função das regulações estipuladas para essa coletânea

de contos e da produção de efeitos a ser alcançada; as

personagens não são configuradas num alto grau de

complexidade quanto ao contraste entre modo pensar e modo de

agir e quanto à oposição entre dimensão profissional e dimensão

pessoal. Em alguns contos são denominados os nomes das

personagens e é atribuída a função social delas (“Más notícias” –

José Tagliari ‘Macarrão’, fazendeiro, candidato a prefeito; Tim,

chefe de gabinete; Elizabeth, esposa do candidato. “Freiras em

férias” – as religiosas Romilda; Blandina; e Maria Imaculada). Em

307
outros, porém, os aspectos físicos predominam na sinalização

das personagens (“A cabeça” – um homem de terno e gravata; o

crioulo; o da bicicleta; um baixote; um gordo; um que morava no

bairro (preocupado); um de óculos; um magrinho, de barbicha,

com bíblia debaixo do braço; uma moça; uma ruiva com o cabelo

encaracolado; um rapaz do boné; a velinha; um menino; o amigo

do menino). No entanto, apesar do perfilhamento da maior parte

das personagens a tipos e estereótipos, a força dos papeis

desempenhados se evidencia pela tensão constante entre o

conflito de interesses ou de percepções, não permitindo um

afrouxar da articulação narrativa. Assim, sensações e

sentimentos como medo, apreensão, excitação, dor, mal-estar,

desgosto, afeto proporcionam o embate entre as personagens.

A dimensão temporal configurada nos contos tende a

manter dois parâmetros no decorrer do livro: a proximidade da

duração entre o plano diegético e a expansão do texto no plano

do discurso narrativo (por meio do recurso dos diálogos, busca-

se criar um efeito de concomitância da cena dialogada); a

308
disposição da ordem dos acontecimentos em que na maioria das

vezes ocorre uma narrativa in media res: (o começo do discurso

narrativo se dá com a exposição de um evento disposto já no

desenvolvimento da diegese). A relação da ordem entre os

acontecimentos da diegese e a distribuição deles na narrativa

literária apresenta-se muito próxima da equivalência nos contos,

exceto pela presença de algumas analepses e raras prolepses. De

outra parte, a relação da duração sofre o influxo maior de

intrusões na correspondência entre os planos da diegese e do

discurso, por conta da existência de sumários no decorrer dos

contos. Entretanto, o caso mais próximo da paridade entre

planos (isocronia) é o do conto “Catástrofe”, em que prepondera

a cena pelo emprego dos diálogos entre as personagens Mimi e

Artur.

O espaço predominante em quase todas as narrativas é o

espaço urbano, nos âmbitos privado e público, em que se

conforma a caracterização das personagens e a disputa por

pedaços de poder. As exceções ficam por conta do conto “Más

309
notícias” (com a referência às atividades da zona rural), e do

conto “A porta está aberta” (decorrido em locais silvestres e

rurais). Contudo, a circunscrição dos espaços se efetiva na

seleção de lugares menores, interatuando na composição das

personagens. Respectivamente: bar; escritório; quarto de

hospital; gabinete político; pousada e hotel; apartamento

residencial; casa; estrada, rio e vendinha; quarto e sala de uma

casa, oficina e rua; rua de uma grande cidade.

Nesse sentido, a contenção espacial leva à criação de

atmosferas nos contos que exprimem ambientes de: desprezo,

afronta, angústia e submissão (“Mosca morta”); avareza,

indiferença e indignação (“Luxo”); intimidade, excitação, malícia

e ruptura (“Calor”); soturnidade, conspiração, esperteza, alegria

(“Más notícias”); voluptuosidade, rivalidade, desobediência

(“Freiras em férias”); vulnerabilidade, agressividade,

manipulação e excitação, ameaça, receio, alívio (“Suzy”);

mancomunação, controle, domínio, revolta (“Catástrofe”);

inquietação, perplexidade e libertação (“A porta está aberta”);

310
tristeza, manipulação, conflito e irrisão (“Rua da amargura”);

perplexidade, intriga, zombaria, conturbação, conflito, desdém,

jocosidade (“A cabeça”).

Ademais da grande importância da definição dos lugares

para construção das tramas, no quesito espacial o arranjo da

ambientação propicia maneiras diferentes de levar a cabo a

configuração das personagens e a disposição discursiva das

narrativas. No livro A cabeça, encontramos as três modalidades

de ambientação: franca, reflexa e dissimulada. A modalidade

franca ocorre em boa parte dos contos em que há uma

preponderância do papel do narrador, principalmente,

heterodiegético. A ambientação reflexa situa-se em momentos

que se faz mais necessária a troca da visão sobre as ações das

histórias para reforçar a construção de um determinado

ambiente:

Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois


empurrou um pouco a cueca e...

311
– Ôp! – cobriu rápido; - o passarinho querendo
fugir...
Ela riu.
– Aqui – ele mostrou: - o corte vai daqui até
aqui...
Ela ficou olhando – as tiras de esparadrapo
sobre a gaze, a pele vermelha de merthiolate.
– É grande, não é? – ele disse.
Ela balançou a cabeça, concordando.
Voltou então a sentar-se.
Os dois calados. Uma tosse lá no fim do
corredor.
– Fui te mostrar uma coisa – ele disse, – e você
acabou vendo outra...
– Eu? – ela disse. – Eu não vi nada.
– Não?
– Você cobriu! (VILELA, 2002, p.41, 45, grifos
nossos).

Nos fragmentos acima do conto “Calor”, a construção do

ambiente de malícia, curiosidade e intimidade é reforçada por

meio da troca da visão do narrador para a visão da personagem

(“ela”, Daniela). Já a ambientação oblíqua ou dissimulada

ocorre, por exemplo, por intermédio de ações realizadas pelas

312
personagens. Para ilustrar, encontramos em trechos de “Suzy”; a

disposição da construção de um ambiente de manipulação e

excitação:

“Garotinha sim; você é uma garotinha.”

“Não sou.”

“É sim: garotinha. ”

“Não sou!”. Ela bateu o pé no chão. “Não sou !


Quer ver? Quer?”

Em poucos segundos, rápida, ela subiu na


mesinha do centro e, sem qualquer hesitação,
tirou a saia, depois a blusa, depois a calcinha –
depois ainda a fita, que ela atirou para o alto –
e ficou, santo Deus, nua, nuazinha ali, na minha
frente, diante dos meus olhos.

“Sou?”, ela perguntou, mudando o tom de voz.


(VILELA, 2002, p. 80-81, grifos nossos).

O nível da linguagem nos contos cumpre um papel de

bastante destaque na criação literária. Desta feita, a

proeminência contrastiva das figuras retóricas e das locuções

313
estereotipadas associadas à elaboração do cômico reforçam o

horizonte impactante das histórias. Nesse veio, a utilização de

ironias (p. 44), trocadilhos (p.51), aliterações (p. 89),

paronomásias (p. 53, título), piadas (p. 20, p. 74 e p. 102) e

expressões idiomáticas (p.100 e p. 131) reforçam a significação

das narrativas. Além disso, o registro de intertextos nos contos

permite leituras em outras camadas textuais. Dentre os exemplos

de intertextualidades, destacamos: “Antigo testamento” (“Mosca

morta”); piada (“Luxo”); Catão (“Más notícias”); novela Corações

apaixonados e revista Playboy (‘Freiras em férias”); piadas

(“Suzy”); Patet exitus, piada, (“A porta está aberta”); mitologia

cristã (“Rua da amargura”); a cabeça decapitada, Bíblia (“A

cabeça”).

Aspectos elusivos:

Percorrendo um percurso impreciso, os vocábulos

“elusivo” e “eludir” situam-se numa etimologia ampla que se

314
estende do idioma latim às línguas inglesa e francesa. O Aurélio

(2004) indica a origem do adjetivo “elusivo” a uma ascendência

inglesa, advinda do termo elusive; e estabelece como primeira

acepção as seguintes informações sobre a palavra: “1.Que tende

a escapulir, a furtar-se (em geral por meio de argúcia); que se

mostra arisco, esquivo, evasivo.”. Já Antônio Houaiss (2009)

acrescenta a procedência francesa ao termo, élusif; e define como

primeira acepção o direcionamento a seguir: “que tende a

esgueirar-se ou esquivar-se habilmente.”. Por outro lado, ambos

os filólogos estabelecem como origem do vocábulo “eludir” a

proveniência em latim, eludere. Antônio Martinez de Rezende e

Sandra Braga Bianchet, em Dicionário do latim essencial (2005,

p.120), sugerem os seguintes sentidos empregados para essa

palavra: “Evitar, esquivar-se de, aparar um golpe. Zombar,

ridicularizar, divertir-se. Frustrar, enganar.”.

Na coletânea de contos A cabeça, os aspectos elusivos se

dão por corte (concisão narrativa), por esquiva (visão de mundo),

e por ocultamento (apagamento do narrador). Para evidenciar

315
tais aspectos selecionamos passagens da narrativa curta “A

cabeça”, e adotamos alguns procedimentos utilizados pelo

método paragramático proposto por Julia Kristeva (1974); que

foram utilizados pela teórica na análise de parte de Os cantos de

Maldoror (2005), de Conde de Lautréamont [Isidore Ducasse].

Sobre essa possibilidade analítica e interpretativa, Leyla Perrone-

Moisés discorre:

[...] Kristeva propõe o método paragramático,


que permitirá recolher no texto gramas
escriturais (que dialogam no interior do próprio
texto) e os gramas leiturais (que dialogam com
gramas de outros textos)
[...] a produção textual ocorre, não de um modo
gramatical (submissão ás leis do código), mas de
modo paragramático (abertura do código e
pluralização dos sentidos pela fricção dos
gramas no interior do texto, ou com outros
gramas, situados em outros textos). Estabelece-
se então uma verdadeira rede de sentidos, que
se espraia para além de cada texto, recobrindo
todo conjunto dos enunciados poéticos (a
literatura, segundo a terminologia tradicional),

316
em permanente produção de sentidos novos.
(PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 63, grifos nossos).

Para realizar tal intento, além de coletar mostras

linguísticas de textos literários, Kristeva dialoga com

proposições caras aos estudos matemáticos, como a teoria dos

conjuntos, o axioma da escolha e teorema da escolha. Essa opção

possibilita trazer elementos próprios à notação literária (ironia,

paradoxo, negatividade) para um sistema de representação ou

designação convencional.

Nesse caminho, a produção literária ganha um contorno

diverso ao adotar, por exemplo, denominações que abarcam a

contradição humana, como “conjuntos vazios” e “somas

disjuntivas”. Independentemente do afã matemático dessa

proposta (KRISTEVA, 1974), salientamos o proveito das divisões

denominadas gramas escriturais (fonéticos; sêmicos;

sintagmáticos) e gramas leiturais (o texto estranho enquanto

reminiscência; o texto estranho enquanto citação). Conforme

Kristeva (1974), os gramas escriturais podem ser divididos em

317
três subgramas: fonéticos; sêmicos; e sintagmáticos. Já os gramas

leituras se distribuem em: texto estranho enquanto

reminiscência; e texto estranho enquanto citação.

Na produção contística de Luiz Vilela a pluralização dos

sentidos se dá nos âmbitos do silêncio, do impacto, da ironia, do

intertexto, da contradição e do humor. No conto “A cabeça” é

possível detectar essa realização paragramática. No texto, o

narrador pontua a aviltante presença de uma cabeça de uma

mulher no chão da rua e, paralelamente à exposição desse

disparate, dá-se o desfilar de uma absurda sequência de diálogos

e comentários despropositados e inoportunos entre mais de uma

dezena de personagens. Assim, de forma breve e instantânea,

Vilela nos coloca diante do sutil tormento da vida diária.

Análoga à proposta de Julia Kristeva (1974, p.102),

destacamos apenas os gramas escriturais, separando um

fragmento do conto, e estabelecendo a convenção da divisão em

duas classes, no caso: a físis (classe H– a matéria) e o lógos (classe

H1 – a inteligibilidade):

318
Uma folhinha seca (A), soltando-se do galho da
árvore (B) ali perto, veio a cair sobre a cabeça (C):
como se – poderia ter pensado (D) um dos
presentes – como se fosse uma homenagem (E)
da natureza ao morto desconhecido (F).
(VILELA, 2002, p.128).

No fragmento acima, destacamos como fricção dos

gramas escriturais fonéticos a recorrência sonora (eco, ruído,

rumor) que perpassa a condução da frase: o fonema /s/ (‘seca’;

‘soltando-se’; ‘sobre’; ‘cabeça’; ‘se’; ‘pensado’; ‘dos’; ‘presentes’;

‘se’; ‘fosse’; ‘desconhecido’). Nessa proposição a repercussão

fonética se estende pode apresentar alguns horizontes, dentre

eles: o vento brando, a brisa suave, alheia ao desarrazoado que

se instaura; e, como desdobramento disso, a moderação da (pela)

figura do narrador. Quanto à fricção dos gramas escriturais

sêmicos, apontamos traços semânticos de algo ínfimo

(‘folhinha’); de ausência ou carência de vida (‘seca’); de

contiguidade (‘galho’); e de extremidade superior, de centro

(‘cabeça’). E, por outro lado, delineamentos semânticos de

319
reflexão e de crítica (‘pensado’); de cortesia e consideração

(‘homenagem’); e de alguém incógnito, ignorado

(‘desconhecido’). A correlação nessa situação se dá por vínculo

recíproco entre os conjuntos A, B e C; e, entre os conjuntos D, E e

F, ocorre como uma absurda “improbabilidade’.

Já a movimentação dos gramas escriturais sintagmáticos

reverbera num processo de ação contínua (em A, B, e C), ao passo

que (em D, E e F) a sequência sintagmática se dá por repetição e

desencontro. Isto é, ao nível frásico, os gramas sintagmáticos se

reproduzem à semelhança da disposição semântica.

Considerações finais:

Este artigo buscou efetuar uma proposta de análise e

interpretação dos contos do livro A cabeça, de Luiz Vilela, e,

separadamente, o conto homônimo ao título da obra. Como meta

principal apontou-se alguns aspectos que permitem associar a

produção contística de Vilela ao paradigma de uma arte elusiva,

320
ou seja, uma prática literária de concisão narrativa e de primor

ao pequeno detalhe.

Nesse sentido, foram indicadas: a importância da

oscilação do tipo de narrador e o apagamento do narrador; a

acuidade da alternância da pessoa verbal e da focalização; a

relevância da tensão e do conflito para a composição das

personagens; a proeminência na dimensão temporal da

manipulação das relações de ordem e duração; o destaque do

entrecruzamento entre espaço, atmosfera e ambientação,dentre

outras particularidades.

Por fim, este trabalhou intentou realizar um diálogo com

as proposições da semanálise para o exame de obras literárias.

Nesse viés, o estudo de um pequeno fragmento possibilitou a

identificação da reverberação de uma poética de um escritor

num pequeno trecho narrativo. Além disso, a escolha do conto

em questão deixa entrever a perplexidade que gera a sucessão

ininterrupta do bulício diário das engrenagens da vida

321
contemporânea. Cabeça sobre o asfalto, uma história sem

percurso.

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Disponível em
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Contos.

324
TREVISAN, Dalton. Cemitério de elefantes. Rio de Janeiro. Editora
Civilização Brasileira, 1964.

325
20 ANOS DE AMÉLIA: 20 DE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo


(CPTL/UFMS)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo explicitar como se dá a


construção da personagem Amélia no conto “Vinte anos de
Amélia”, que integra a coletânea Eu choro do palhaço (1989), da
escritora mineira contemporânea Alciene Ribeiro Leite. No
conto, temos o espaço patriarcal da personagem feminina
totalmente submissa ao homem que, após vinte longos anos de
matrimônio e total submissão, resolve libertar-se. A narrativa é
estruturada pelo tempo psicológico, pois é através das memórias
de Amélia que o narrador onisciente relata os fatos, descrevendo
uma mulher submissa, que desempenha, com zelo e
determinação, o papel de dona de casa, mãe e esposa. Amélia
leva uma vida de servidão, imposta pelo casamento, cumprindo
o seu papel social e assim fazendo jus ao juramento de
subserviência que professara ao marido e à sociedade durante a
realização pública do matrimônio. Com o passar do tempo, a
personagem começa a refletir sobre a sua vida e o que fizera dela.
Após as reflexões, a personagem surge com um novo olhar sobre
si mesma, frente à realidade opressora em que vive. O enredo do
conto nos apresenta a mulher contemporânea e sua resistência à
submissão, que lhe foi imposta por normas e regras sociais

326
oriundas do sistema patriarcal. Deste modo, o conto nos permite
observar uma mudança na condição feminina: da absoluta
submissão à possibilidade de um novo reposicionamento,
condizente com as reorganizações sociais do mundo
contemporâneo. Temos no conto a configuração de um grande
problema social presente nos tempos contemporâneos. A
metodologia utilizada foi revisão bibliográfica e como aporte
teórico, utilizamo-nos dos pensamentos de Alfredo Bosi, Simone
de Beauvoir, Stuart Hall, Rose Marie Muraro, dentre outros.

Palavras-chave: Feminismo; Resistência; Sociedade.

Introdução

Do sistema patriarcal advém o papel delegado à mulher

de submissão ao homem. O legado deixara à figura feminina a

incumbência da servidão à família e a sociedade, princípios

ditados por um contexto social machista. Sobre o predomínio da

figura masculina sobre a mulher, a autora Simone de Beauvoir

(2009) traz as seguintes considerações na obra O segundo sexo:

“Foi a atividade do macho que, criando valores, constituiu a

327
existência, ela própria, como valor, venceu as forças confusas da

vida, escravizou a Natureza e a Mulher” (BEAUVOIR, 2009,

p.83).

O homem desde sempre viu a mulher como um ser que

pudesse possuir e atribuiu valores ao feminino para que pudesse

continuar submetendo a mulher ao seu domínio. Essa concepção

se perpetuou através dos séculos.

É fato que os direitos entre homens e mulheres sempre

foram díspares, sendo que o papel de submissão do feminino

está arraigado culturalmente a um quadro patriarcal machista,

porém essa concepção de ser submisso e servil tem mudado, de

acordo com Stuart Hall, em sua obra A identidade cultural na Pós-

modernidade (2014): “um tipo diferente de mudança estrutural

está transformando as sociedades modernas no final do século

XX” (HALL, 2006, p. 9). Essas transformações foram mais

acentuadas a partir do final do século XX, pois a mulher já não

aceita o fardo histórico, determinado pelo sistema, e oferecendo

resistência ao papel de submissão, que lhe fora imposto.

328
As transformações culturais trouxeram a possibilidade de

novos horizontes para a mulher, que tem buscado,

incansavelmente, uma nova identidade pessoal. Nessa busca, a

mulher tem se questionado sobre o papel que vem

desempenhando na sociedade, em que o feminino é sempre

frágil, servil e submisso. A mulher contemporânea apresenta

resistência ao patriarcado, buscando por transformações sociais

em que possa exercer e ver seus direitos respeitados, não por ser

o sexo frágil que o legado lhe impôs, mas sim pelo papel decisivo

que desempenha perante a família e a sociedade.

A autora e sua obra

Considero a literatura uma queda de braço


com a vida.
São muitos os seus objetivos, mas dos
mais importantes é a denuncia. Não soluciona
certas condições opressoras do homem,
que tanto podem ser de ordem moral ou
material.

329
Pode ser clava e pode ser escudo, pois
mostrando a opressão,
está defendendo, e defesa implícita em ataque
também.cultura
dos povos; é o retrato escrito de um
determinado
momento da evolução histórica da sociedade,
ao refletir
usos e costumes vigentes sob o trato ficcional.

Atua como expressão cultural e extrai


conteúdos dos atos
Humanos; preserva então dialeticamente a
[...] Aspiro suscitar
perguntas e reflexões, raiva, ternura e
principalmente diálogo (LEITE, 1979, p. 7-8).

Nascida em Ituiutaba, Minas Gerais, no ano de 1939,

Alciene Ribeiro Leite tem presença marcante na literatura

contemporânea, como também no circuito literário de Minas

Gerais nas décadas de 80 e 90. Sua presença se faz notória na

literatura contemporânea pela profundidade de suas obras que

retratam a problemática social, pois apresenta temáticas

expressivas para o contexto social da década de 70, como

330
repressão e o feminismo. Eu choro do Palhaço, de 1978, publicado

pela editora Comunicação é a sua primeira coletânea de contos,

foi premiado com o Galeão Coutinho, da União Brasileira de

Escritores, como o melhor livro de contos de 1978. Seu primeiro

livro infanto-juvenil, Filho de Pinguço, de 1983, ganhou o prêmio

Coleção do Pinto.

Vinte anos de Amélia – da submissão a resistência

Temos como proposta analisar o conto Vinte anos de

Amélia, da Coletânea Eu choro do Palhaço (1978), segundo o

modelo de submissão que a personagem apresenta no enredo

enquanto mulher, esposa e mãe, durante os vinte anos de

matrimônio em que sempre desempenhara com esmero e

dedicação o seu legado servil, junto ao marido, filhos e a

sociedade e, posteriormente, a transformação desse modelo de

submissão em resistência.

Encontramos no dicionário Aurélio a seguinte definição

para o verbete Amélia: “Bras. Pop. Mulher que aceita toda

331
sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu

homem" (FERREIRA, 2010, p.39), na definição encontrada no

“Aurélio” confirmamos o papel de Amélia no conto: aquela que

faz tudo para agradar os seus.

Pela voz do narrador onisciente constatamos que a

focalização da obra é totalmente feita sob a perspectiva da

mulher, prevalecendo o uso do discurso indireto livre,

permitindo assim um maior contato com os pensamentos e

anseios da personagem.

O enredo do conto é a comemoração dos vinte anos de

aniversário de casamento de Amélia, momento no qual a

personagem faz uma profunda reflexão sobre tudo que até

então vivera, principalmente a obediência ao marido infiel e

conclui que tivera uma vida somente de sujeição e, a partir dessa

constatação, a personagem muda seu modo de ver a vida,

oferecendo resistência a tudo que até então vivera, decidindo

pelo formato de uma nova mulher.

332
Vinte anos. Humilhações, lágrimas, dores.
Somos transitórios, cumprimos um destino
traçado.
Sua cruz.
Agora anda mais acomodado, negócios
grandes, colesterol alto, caseiro. Cansado de
aventuras, decadente, discreto? (LEITE, 1978,
p.92).

Temos como hipótese que a personagem, ao refletir sobre

sua condição feminina consegue enxergar que, ao desempenhar

o papel de esposa submissa esqueceu-se de si mesma, anulando-

se enquanto mulher e também enquanto Ser, e, ao constatar essa

realidade angustia-se decidindo por mudar suas ações,

oferecendo resistência a esse padrão comportamental que

norteara sua existência até então. A mudança começa a ser

desvendado a partir da saída dos últimos convidados que

estavam na festa que o casal dera em razão da comemoração

dos vinte anos de matrimônio. No conto, não há revelação dos

nomes das personagens, o narrador apenas os denomina de

homem, mulher ou marido, esposa.

333
Quanto a não nomeação das personagens nas obras,

Câmara Cascudo (2004) esclarece que: “[…] O nome é a essência

da coisa, da entidade denominada” (CASCUDO, 2004, p. 658). O

nome é o modo pelo qual identificamos alguém, é a

personalização do sujeito, porém, no conto analisado, troca-se o

nome pelo gênero homem – mulher. A individualidade do

sujeito não acontece, o que confirma, nessa narrativa a

desvalorização do papel feminino nas estruturas sociais, em que

a mulher não é respeitada enquanto pessoa. Quanto ao fato do

homem também não ser nomeado, o autor, ao fazer essa omissão,

revela-nos o intuito de representar o modelo das relações

conjugais de meados do século XX, trazendo a realidade de um

casal qualquer, nos tempos atuais.

Quanto à ausência do nome referente à personagem

feminina na narrativa, entendemos que o narrador, ao optar pela

não nomeação, tem o intuito de nos levar a refletir sobre o

situação da mulher nos dias atuais, as omissões dos seus

companheiros, a ausência de respeito quanto ao papel feminino,

334
a servidão a que são impostas no seu dia a dia, e que, mesmo

diante do anonimato, essas mulheres tem oferecido resistência

aos abusos sociais dos quais tem sido vítima.

No fragmento inicial do conto já constatamos o papel da

dependência ao qual a mulher é acometida na história,

corroborando com o conceito do feminino na sociedade

patriarcal, “ a mulher seja submissa a seu marido, respeitando-o,

amando-o, na pobreza ou na riqueza, na saúde ou na

doença”(LEITE, 1978, p. 92), e assim Amélia procedeu nas duas

décadas de matrimônio.

As mulheres sejam submissas ao seu marido,


como ao Senhor;
porque o marido é o cabeça da mulher, como
também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este
mesmo o salvador do corpo.
Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo,
assim também as mulheres sejam em tudo
submissas ao marido (BÍBLIA, Efésios, 5, 22-
24).

335
Como podemos constatar na passagem em Efésios, a

Bíblia apresenta a postura da mulher servil ao marido e Amélia,

assim também o faz, até então, em respeito ao juramento que

fizera no dia do casamento. Na única fala da personagem na

história, que é identificada (apenas no título do conto) pela

alcunha de Amélia, constatamos que esta é uma esposa

subserviente, comprometida com o papel doméstico e com o

marido, seu Senhor : “ -- Pode ir bem, ponho um pouco de ordem

aqui primeiro” ( LEITE, 1978, p. 92). Amélia responde ao convite

do esposo como sempre fora amável e doce ao seu chamado.

A servidão de Amélia representa a imagem eternizada da

boa esposa, como na canção do sambista Ataulfo Alves, na

década de 60, “Ai que saudades da Amélia”:

Ai meu Deus que saudade da Amélia


Aquilo sim é que era mulher

As vezes passava fome ao meu lado


E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado dizia
Meu filho o que se há de fazer (ALVES, 1968)

336
Como na melodia acima em que o homem tem saudades

da mulher que o agrada até diante do extremo de “não ter o que

comer” , assim também Amélia agradava ao seu Senhor antes de

si mesma.

Percebemos no conto – Vinte anos de Amélia - o reflexo

dessa cultura do servir, como na melodia “Ai que saudades da

Amélia, onde o que importa ao homem é que a mulher lhe seja

subserviente. “Amélias” tem a função de cuidar do lar, filhos e

marido, sem reclamar.

O narrador deixa clara a o papel de servidão de Amélia

ao aludir que, antes de dormir, ela “precisa” deixar a sala

organizada, mesmo que o marido a tenha chamado, e que ele já

tenha ido dormir, Amélia não pode ir, sem antes deixar a sala

impecável “ Ajeitou copos na pia, esvaziou cinzeiros, juntou

pratos e garrafas” (LEITE, 1978, 92). O esposo poderia ajudar na

arrumação, no entanto, vai descansar, enquanto que a esposa faz

tudo sozinha.

337
Amélia cumpre o seu legado, ou seja, dona de casa atenta

e amável para com os seus, uma vez que dependente

financeiramente do cônjuge. Para o homem, os encargos da

mulher no lar são cômodos, uma vez que ele dificultava a

inserção dela no mercado de trabalho remunerado, mantendo-

a dependente. Impedindo-a de trabalhar, a mulher não teria

liberdade e autonomia, o que faria com que ela se mantivesse

submissa.

Segundo relata Muraro na obra A mulher no terceiro milênio

(1982), é a partir da dependência econômica do marido que a

mulher se sente inferior, e esse sentimento é traduzido em

dependência psicológica em relação ao homem, daí a

necessidade de agradá-lo, Amélia demonstrava sua gratidão,

zelando da casa e da família.

A estrutura social à qual Amélia pertence a fez refém

“dessa condição de subjugo, que mesmo com as situações nada

agradáveis da rotina do casamento, ela foi se deixando levar:

“Primeiro foi a conquista do pão de cada dia igual nas privações,

338
logo as escapadas do marido, morte do romantismo.

Madrugadas de espera, mentira, abraço, perdão “(LEITE, 1979,

p.92). No decorrer dos anos de união, a vida da personagem foi

se tornando cada vez mais angustiante, das dificuldades

financeiras no início do casamento à superação das traições do

marido; com isso, o romantismo, um dos alicerces do

relacionamento conjugal se perde, e restara somente o perdão

às mentiras. O casamento segue, pois, comprometera-se,

durante o ato público das núpcias , ser uma mulher submissa.

O contexto patriarcal, no qual Amélia está inserida, é o reflexo

de modelos em que a mulher não se divorcia, suporta todos os

conflitos em prol da imagem da família feliz.

Após o término da festa, a personagem começa a refletir

sobre a sua união: quantas lágrimas perdidas nas madrugadas

em que aguardava a chegada do marido, as dores sentidas em

cada traição que sofrera, porém o narrador, nesse momento,

indicia, de forma velada, que a personagem poderá mudar o

comportamento servil. Diante do enunciado “somos

339
transitórios” entendemos que somos passíveis de mudanças em

nossa existência, no nosso modo de sentir e agir, e que, dessa

maneira, podemos resistir a tudo aquilo que nos afronta e nos

oprime.

Amélia, ao começar a retirar a sujeira que os convidados

haviam deixado na sala, ouve o chamado do marido para ir

deitar-se com ele, mas não o atende apenas responde que irá

organizar o cômodo primeiro, ao negar o pronto atendimento ao

marido a personagem opta em realizar seus desejos –

experimentar uma dose – pois lembra-se de que nada bebera

durante toda a festa, visto que estava envolvida na tarefa de

receber bem os convidados.

Na atitude tomada por Amélia – responder ao marido que

podia ir dormir sem ela pois que ela ia primeiro fazer outra coisa,

temos uma mulher dizendo não ao chamado do seu Senhor,

colocando-se como senhora de suas ações, tendo o seu eu como

prioridade. Com essa atitude, Amélia passa a oferecer

resistência a vida servil e submissa que a conduzira até então,

340
dando prioridade a si mesma, às suas vontades. Torna-se, nesse

momento, dona de si.

A personagem começa paralelamente ao prazer de

saborear uma dose, a fazer uma reflexão sobre a sua existência,

concluindo: os filhos cresceram, não precisavam mais dos seus

atentos cuidados, sentindo-se descartável e nesse meditar,

reconhece que eles evoluíram, enquanto ela apenas os servira,

esquecendo-se de si mesma:

Filhos crescidos, aprovados no vestibular,


curtindo um som eletrônico que, estafada, já
não pode suportar. Não tem muito o que dizer.
Enquanto evoluíam ela cuidou do resto, a
tempo e a hora. Nove meses, a gestação, o
tempo de convívio mais estreito. Logo três
homens estranhos na casa (LEITE, 1978, p. 92).

As reflexões fazem com que Amélia comece a enxergar a

vida sobre um novo ângulo. O papel de mãe zelosa já não se fazia

mais necessário, afinal, os filhos estavam criados não dependiam

341
mais de seus cuidados, e o esposo, ao qual servira tão

prontamente já nem mais se importava com ela, pois, nem mais

se importava com o modo como ela se vestia: “Jamais usara um

assim [vestido]. Com os anos e o dinheiro, o recato imposto pelo

marido afrouxara. Como se o cuidado de antes não tivesse mais

razão de ser (LEITE, 1979, p.93). Amélia, ao observar que o

marido não se importara com o vestido desnudo que ela usara

durante a festa, atenta-se à mensagem implícita nesse gesto, o

desinteresse dele por sua pessoa. Essa constatação faz com que

ela sinta-se ainda mais encorajada a mudar mesmo lembrando-

se de que naquela manhã, como em outras ocasiões refizera os

votos: “Vez ou outra , sem rótulo de fé, entra num templo. Como

naquela manhã. Na intimidade da igreja refez os votos de

renuncia, dever e submissão perante o marido, dono e Senhor”

(LEITE, 1979, p.92). A esposa, mesmo tendo refeito seus votos de

renuncia naquela manhã, sente-se encorajada a resistir à

submissão e tornar-se dona de si.

342
A condição de dona de casa servil, legado do patriarcado

social ao qual a mulher fora submetida, entra em ruínas a partir

do momento em que Amélia se permite experimentar uma

bebida, esse ato é uma oposição ao sistema, pois, mulher

subordinada não segue seus anseios, mas ela se deu ao prazer do

desfrute, satisfez seus desejos – e a partir dessa rebeldia, Amélia

encoraja-se a pensar sobre sua vida e, após refletir “ O pássaro

bateu asas no peito” (LEITE, 1978, p. 94), se alforria do

servilismo, que jurara em razão do matrimônio. A libertação da

servidão ao patriarcado, começara.

Amélia refaz em seu imaginário a sua trajetória, ou seja,

a criação dos filhos, o ser esposa e mulher na sociedade da qual

faz parte. Nesse momento, ao se permitir uma tomar uma

bebida, brinda ao nascimento de uma nova mulher, a mulher

que se resigna com a vida insignificante que a conduzira e, ao

se ver refletida no espelho de sua sala, gosta do que vê

questionando-se: ainda havia amor pelo marido, depois de

tantos anos de angústias e sofrimentos? Tivera uma vida de

343
submissão e, ao chegar a essa conclusão, a personagem é tomada

por um sentimento de descontentamento com o seu eu, pois, de

acordo com Hall: “Dentro de nós há identidades contraditórias,

empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas

identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL,

2006, p. 13). Amélia é acometida por um conflito: de um lado o

modo submisso que conduzira sua vida até então, sem prazer,

apenas servindo como jurara durante a cerimônia do casamento;

e, do outro, a mulher que se descobre, cansada de servir,

resistindo, querendo uma nova vida, alçar novos voos:

Teima em não ceder. Não se integra ao


presente. Desde manhã vinha assim, sem
motivo. A igreja cedo, uma pálida reação.
Aquilo outra vez. Mal estar aflorando num
bater de asas do ninho, o coração igual ave
cativa querendo alçar vôo.

O pássaro bateu asas no peito.


No gole seguinte, um gosto de descoberta. Dos
limites restritos aos seus passos, da supérflua
peça que era. Agora com criados, um adorno
fora de moda (LEITE, 1978, p. 93-94).

344
A angústia que antes consumia Amélia desaparece, assim

como um pássaro que bate asas e muda de rumo, Amélia dá um

novo significado a sua vida, nasce uma nova mulher, uma

mulher que tem luz própria e se valoriza.

O novo Eu de Amélia, que agora transgride a vida servil,

leva à exteriorização de desejos, como o anseio em tomar uma

dose, mesmo que realizara a vontade sozinha, é a partir dessa

ação que ela sente-se forte para libertar-se para sempre das

amarras as quais até então vivera:

[...] Olha ao redor. Pela primeira vez em muitos


anos se viu só. Mas não sozinha, solitária, que
a solidão comungava com ela estreitamente.
Gostou de estar só. O de agora é um sós
consigo mesma, com seu nariz.

Sua identidade.

A bebida tem sabor total. Como o sucesso nos


comerciais de cigarros.

345
Reconcilia-se com a vida, quase sem ver que
andavam brigadas.

Vinte anos, dia seguindo dia, sem se projetar


em nada. Acessório de lavar, passar, cozinhar.
Mero receptáculo para as crises de paixão do
marido. Máquina reprodutora de perdões
pulsantes. Serviu, serviu, serviu. Só. Deixara-se
anular como pessoa (LEITE, 1978, p. 93).

Fora até então apenas acessório no seu lar - lavando,

passando e cozinhando, perfeita dona de casa, anulara o seu Eu

em prol da família e estes já não precisavam mais de seus

cuidados. Ao chegar a conclusão de que apenas vivera para o

outro Amélia percebe que está só, porém é um sozinho

prazeroso onde existe uma identidade: uma mulher que

responde por si mesma, que diz não quando lhe convém.

A libertação de Amélia é o resultado da reflexão que

fizera: vinte anos se passaram e durante todos esses anos ela só

não servira a si, pois, o legado ao qual estava sucumbida permitia

que ela fosse, apenas, esposa, mãe e mulher. Ao optar pela

346
resistência passa a ser uma nova mulher, reconcilia-se com a vida

e recupera sua identidade.

Ao espelho, há um sorriso de pilhéria no rosto.


Ela é a causa. As mãos pelos seios, maiores que
o desejável; quadris cheinhos, num inicio de
barriga.
Seu hoje.
O pássaro bateu asas no peito.
No gole seguinte, um gosto de descoberta. Dos
limites restritos aos seus passos, da supérflua
peça que era. Agora com criados, um adorno
fora de moda (LEITE, 1978, p.94).

Amélia ao rejeitar o legado que vivera durante tantos anos

descobre em si uma mulher que se aceita e se admira, não

importando se o corpo dessa mulher está um pouco fora do

padrão ou não, o que importa nesse momento é o amor que surge

por si, pelos prazeres mais simples que a vida oferece como um

simples sorriso frente ao espelho de aceitação do seu Eu. Gesto

simples que por muito tempo andara esquecido.

347
Conclusão

Assim como Amélia, que resiste à submissão, assim tem

feito muitas mulheres nos dias atuais. São esposas e mães que

trabalham fora, são independentes financeiramente dos seus

companheiros e não aceitam mais as regras impostas por essa

estrutura social machista, que reduz a mulher a um mero objeto.

A mulher contemporânea faz de sua autonomia um

verdadeiro escudo para a sua liberdade. Amélia não tinha

autonomia financeira, no entanto, não consegue continuar

vivendo de forma submissa, pois percebe que a angústia que

sente vem de um legado de servidão e passividade e que, ao

praticar seu primeiro ato de rebeldia – tomar uma dose – se

liberta das amarras e gosta da sensação que a liberdade lhe

proporciona.

Na obra Literatura e resistência (2008), Bosi define a

resistência como uma oposição a uma “força de vontade que

resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força

348
própria à força alheia” (BOSI, 2008, p. 118). De acordo com a

definição de Bosi, percebemos que Amélia fizera a opção pela

mudança no seu modo de viver em oposição ao sistema ao qual

estava sucumbida, fazendo com que o entusiasmo pela vida que

agora descobrira fosse muito mais pujante que a servidão que

atribuía ao seu senhor.

Amélia, após vinte anos de clausura e submissão, adota a

resistência como afronta ao Sistema patriarcal, que até então lhe

delegara um papel secundário enquanto mulher, a submissão

feminina a impedia de ser dona do seu Eu e, ao reagir ao sistema,

busca por uma igualdade de espaço numa sociedade moralista,

em que o machismo continua predominando, apesar do

feminismo ter atrelado árduas lutas contra esse legado.

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Ataulfo. Leva meu samba. Rio de Janeiro: Warner Music, 1968.
Faixa 3. 1. Disco de vinil.

349
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Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014. cap. 5, p. 1901-1902.

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Civilização e cultura. São Paulo: Global, 2004. p. 658-667.

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choro do palhaço. Belo Horizonte: Comunicação, 1978.

MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: uma história


da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o
futuro. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Rosas dos Ventos, 1992.

350
351
IMPLICATURAS E MÁXIMAS CONVERSACIONAIS:
REGRAS INERENTES AO FUNCIONAMENTO DA
CONVERSAÇÃO

Maria Izabel Gerstemberger de Oliveira (PG/IFMS)


Nayra Modesto dos Santos Nunes (PG/IFMS)

Resumo: O presente trabalho visa discorrer sobre os campos


linguísticos: Semântica e Pragmática, mais especificamente, com
foco na visão teórica das Implicaturas e Máximas
conversacionais. O objetivo consiste em evidenciar as regras
inerentes ao funcionamento da conversação. O aporte teórico da
pesquisa está ancorado em autores como Araújo
(2007), Cançado (2005), Crystal
(1985), Fiorin (2010), Grice (1975), Oliveira e Basso (2014), entre
outros. Assim, pretende-se, sobretudo, refletir acerca das
funções exercidas pelos elementos que constituem a linguagem,
na construção do seu significado – Implicaturas e o Princípio de
Cooperação, mediante as Máximas conversacionais. Logo,
dispomos apresentar as regras que regem a conversação. Para
tanto, foram analisadas algumas situações da conversação
cotidiana. Os resultados apontam que esses processos
Semânticos e Pragmáticos, dentre vários outros, contribuem para
a produção da interação e para que o falante atinja os seus
propósitos comunicativos.

352
Palavras-chave: Implicaturas; Máximas conversacionais;
Conversação.

Introdução

O presente trabalho visa discorrer sobre os campos da

linguística, a Semântica e a Pragmática, com foco na visão teórica

das Implicaturas e das Máximas Conversacionais. Deste modo,

por tratar-se de um estudo linguístico elencamos algumas

concepções de língua e linguagem, porém as definições variam

de acordo com a postura teórica que o linguísta adota, ou seja,

não são absolutas.

Butler defende que a “Linguagem é sobre tudo,

instrumento de interação social entre seres humanos” (BUTLER,

2003, p. 2) – (Tradução nossa), e atua a propósito da

comunicação, como princípio para a manutenção de

relações sociais. De modo igual, “a explicação da linguagem

passa pelo uso e interação” (FOLEY E VAN VALIN 1984, p. 9).

353
Em conformidade, para Nuyts (1992), a comunicação é

uma forma de construir efeitos de sentido sobre o outro,

exemplificados por fatores do cotidiano como os atos de: brigar,

convencer, conhecer, solicitar, entre outros recursos empregados

na interação social diária.

Assim, a função da linguagem é atuar como produto da

interação, no ponto de troca entre falante e ouvinte, na qual a

língua é usada para alcançar os seus objetivos e propósitos

comunicativos.

Vertentes da semântica e pragmática

Alguns pesquisadores defendem uma distinção para as

vertentes da semântica e pragmática, contudo nas palavras

de Inês Lacerda Araújo justificamos a união desses dois campos

linguísticos.

A autora enfatiza que “semântica e pragmática são

diferentes domínios da linguística, o que não implica defender

que uma ou outra basta para dar conta da linguagem.” Isto

354
posto, cabe salientar que apesar de terem funções distintas,

são campos que se dispõem, dado que, “a linguagem é

constituída por aspectos semânticos e pragmáticos, os quais

se imbricam e dependem um do outro” (ARAÚJO, 2007, p. 1).

Em continuidade, a autora destaca que a “semântica e

pragmática são complementares e imprescindíveis para

significar algo pela linguagem, e para a comunicação

linguística.” Assim, “[...] não há porque defender a semântica em

detrimento da pragmática, nem esta em detrimento

daquela” (ARAÚJO, 2007, p. 2-3).

Como exemplificação de que a semântica e a pragmática

se completam, cabe frisar que para identificarmos à pragmática

devemos encontrar em primeiro plano o seu significado

semântico. Vejamos os exemplos:

1. Pedro abotoou o paletó.

355
Do ponto de vista semântico, observa-se que a sentença

informa: Pedro fechou os botões do paletó. Por outro lado, no

que se refere à pragmática, a sentença consagrada pelo uso

comunica: Pedro morreu! O mesmo processo acontece em:

2. João bateu as botas.

Nota-se sobre o enfoque semântico, que a sentença

esclarece: João pegou os sapatos (botas) e bateu um no outro. Em

se tratando da pragmática, determinada pelo uso, a sentença

adverte: João morreu!

Conforme as exemplificações, podemos constatar que os

domínios da semântica e pragmática embora tenham funções

distintas, unidas, corroboram para a interpretação textual em

situação de comunicação, isto é, dependendo do contexto em que

as sentenças forem proferidas resultarão em uma compreensão,

ora mais voltada para o campo semântico, ora para o

pragmático.

356
Semântica: a investigação do significado

A semântica é um ramo da linguística, conceituada por

Márcia Cançado como estudo do significado das línguas, das

palavras e sentenças. Assim, “[...] o semanticista procura

descrever o conhecimento semântico que o falante tem de sua

língua” (CANÇADO, 2005, p.15-6), ou seja, a semântica lida com

a interpretação do sistema linguístico.

Em contrapartida, para a autora, “a semântica não pode

ser estudada somente como a interpretação de um sistema

abstrato, mas também [...] como um sistema que interage com

outros sistemas no processo da comunicação e expressão dos

pensamentos humanos” (CANÇADO, 2005, p. 19).

Em decorrência, frisa que:

O significado vai além do sentido do que é dito,


para tanto [...] fica claro que nem sempre o
sistema semântico é o único responsável pelo

357
significado: ao contrário, em várias situações, o
sistema semântico tem o seu significado
alterado por outros sistemas cognitivos para
uma compreensão final do significado. Por
exemplo, vem sendo explorado por alguns
estudiosos que alguns aspectos do significado
são explicados em termos de teorias da ação,
ou seja, dentro do domínio de uma teoria da
pragmática (CANÇADO, 2005, p.17).

Ainda de acordo com a autora, as propriedades que a

semântica engloba são as relações:

I. de implicação como hiponímia,


acarretamento, pressuposição e implicatura
conversacional; II. de paráfrase e de sinonímia;
III. de contradição e de antonímia; IV. de
anomalia e de adequação; V. de ambiguidade e
de vagueza; VI. dos protótipos e das metáforas;
VII. dos papéis temáticos; VIII. dos atos de
fala2 (CANÇADO, 2005, p. 20).

Conforme apresentado, as teorias sobre o estudo do

significado linguístico divergem com relação à ênfase em

diversos aspectos e atuam em várias interfaces distintas, com

358
inúmeras aplicações. Deste modo, Ferrazeri Júnior e Basso

(2013) ressaltam que existe uma ampla gama de teorias

semânticas e vertentes teóricas, quer dizer, que nos é permitido

várias formas de escrever o significado, por meio das várias

semânticas, dentre elas, a Argumentativa, a Cognitiva, a

Computacional, a Cultural, a da Enunciação, a dos

Protótipos, a Semântica e Psicolinguística Experimental, a

Semântica Formal e Lexical.3

Pragmática: a averiguação do uso

Por ser uma área heterogênea, a

pragmática permite caracterizar muitas pesquisas em estudos

linguísticos, como sendo de domínio

pragmático. Consequentemente adquiri então, várias acepções.

Victória Wilson ressalta que “há várias definições de

‘usos’, assim como há inúmeras para o termo ‘pragmática’”.

Segundo a autora, “a competência pragmática [...] é aquela que

contempla o conhecimento das condições de uso da língua”.

359
Assim, a pragmática “busca observar as condições de uso da

língua em situações reais de comunicação, [...] considerando as

relações entre forma e função, entre os fatores gramaticais e

sociais” (WILSON, 2009, p. 88).

Consoante, a pesquisadora Márcia Cançado destaca

que “a pragmática estuda os usos situados da língua e lida com

certos tipos de efeitos intencionais” (CANÇADO, 2005, p.

18). Dado que, para entender uma sentença precisamos entender

também a intenção do falante ao proferir determinada sentença

para determinado ouvinte, em determinado contexto, haja vista

que todos esses aspectos a pragmática leva em conta.

Com tais características, prossegue:

A pragmática é o estudo da linguagem do


ponto de vista de seus usuários,
particularmente das escolhas que eles fazem,
das restrições que eles encontram ao usar a
linguagem em interações sociais, e dos efeitos
que o uso da linguagem, por parte desses
usuários, tem sobre os outros participantes no
ato da comunicação (CRYSTAL, 1985, p. 240).

360
Outra definição para a pragmática, apresentada por Joana

P. Pinto, na qual postula a pragmática “como a ciência do uso

linguístico” (PINTO, 2006, p. 47). Englobando, assim, os fatores

determinantes da linguagem, língua, fala e a produção social.

A autora aborda três correntes da pragmática, sendo: o

pragmatismo americano, os estudos de atos de fala e os estudos

da comunicação. O pragmatismo americano, influenciado pelos

estudos semiológicos de William James, que se debruçou em

pesquisar sobre a tríade pragmática e representar a relação entre

signo, objeto e interpretante (PINTO, 2006, p. 51).

Referente aos estudos de atos de fala, sob o crédito dos

trabalhos de J. L. Austin visava refletir sobre a

possibilidade de uma teoria que explicasse questões,

exclamações e sentenças que expressam comandos, desejos e

concessões (PINTO, 2006, p. 57).

Já os estudos da comunicação, com preocupação firmada

nas relações sociais, de classe, de gênero, de raça e de cultura,

361
presentes nas atividades linguísticas. Caracteriza-se

como híbrido, por ser formado a partir da junção de termos

pertencentes aos grupos apresentados anteriormente (PINTO,

2006, p. 61).

Outra perspectiva teórica da pragmática é apresentada

por Moeschler, quando aponta que existem três domínios de

fatos linguísticos; que exigem a introdução de uma dimensão

pragmática nos estudos linguísticos: os fatos de enunciação,

inferência e de instrução. Conforme se apresenta:

I. A enunciação: tida como ato de produzir


enunciados, que são as realizações linguísticas
concreta, subdivide-se pelos campos: Dêiticos,
Enunciados performativos, Uso de conectores,
Certas negações e Advérbios de enunciação.
II. A inferência: que investiga como certos
enunciados têm a propriedade de implicar
outros, que se diferencia a pragmática pela:
significação, frase e enunciado.
III. A instrução: uma espécie de treino para
interpretar as chamadas palavras do
discurso4 (MOESCHLER apud FIORIN, 2010,
p. 167).

362
De acordo com os conceitos teóricos apresentados na

busca de descrever a pragmática, salientamos que atrelada ao

contexto comunicacional, a pragmática atua diariamente em

diálogos comunicativos, na qual os interactantes as proferem

pela linguagem; e através desses caminhos linguísticos, pela

averiguação do uso, representam um campo extremamente

necessário para compreensão e interação.

Implicaturas

Formuladas pelo filósofo Herbert Paul Grice (1975), as

Implicaturas atuam com o objetivo de explicar como em

contextos específicos o falante consegue transmitir uma

informação além do literalmente dito.

Sublinha sobre o conceito de Implicaturas, quando

profere:

Entender as implicaturas é entender todo um


quadro em cujo centro há uma teoria sobre o

363
que é uma conversação, sobre, como
funcionam os comportamentos racional e
comunicativo e sobre os diferentes tipos de
significado com os quais lidamos. Tanto o
comportamento racional quanto a existência
são os pilares das implicaturas (OLIVEIRA &
BASSO, 2014, p. 39).

Para Leão (2013, p.70) quando o que é dito não é suficiente

para que se deduza o sentido da fala do locutor, o interlocutor

acredita que há algo mais implicado e tenta chegar a essa

informação por conta própria para compreender o que o locutor

está querendo transmitir. A esse processo de interpretação, que

o interlocutor faz para entender o “algo” a mais, é conceituado

como implicaturas.

Grice (1975) apud (Wilson 2009, p. 90) distinguiu dois

tipos de implicaturas: as convencionais e as

conversacionais. As convencionais são as implicaturas cuja

significação é gerada internamente, isto é, dentro do sistema

linguístico. Assim, partimos da observação apenas pela

364
estrutura da sentença, por estar aprisionada ao significado

literal. Exemplo:

3. Apesar de ser desorganizada, ela chega no horário.

No exemplo exposto, tem-se o emprego de uma locução

conjuntiva “apesar de”, o que provoca as relações de sentido

entre as orações, mediante a relação de concessão depreende-se

o seu significado, neste caso, literalmente descrito na frase.

Por outro lado, as implicaturas conversacionais estão mais

ligadas ao contexto extralinguístico, uma vez que se

observa além da estrutura, sua composição extralinguística,

depreendidas por meio da decodificação. Considere então o

diálogo:

(04) A: Você vai à balada hoje com a gente?


B: Estou com dor de cabeça.

O segmento acima reúne fatores linguísticos e

extralinguísticos, dado que a resposta obtida, a princípio parece

365
inadequada, mas pela óptica das implicaturas conversacionais

subtendemos que B não queria sair e recusando-se a

dizer “não” explicitamente, talvez por questões de

polidez optou por usar a implicatura, sustentando o mesmo

efeito negativo.5

Princípio da cooperação: as máximas


conversacionais, de Grice

Elaborado por Grice (1975), o Princípio da Cooperação

tem como finalidade proporcionar uma transmissão eficaz da

informação entre os participantes do ato comunicativo, o locutor

e o interlocutor. Quando estes participantes se dispõem a

estabelecer uma interação verbal, geralmente irão cooperar para

que a comunicação suceda de forma apropriada.

De acordo com Grice (1975), numa situação de diálogo, os

interlocutores assumem de maneira implícita um contrato

conversacional, uma espécie de conjunto de normas que regem a

366
conversação. A regra geral desse contrato, o autor denomina

Princípio Cooperativo e suas respectivas sub-regras nomeia

como as máximas de qualidade, quantidade, relação e

modo. Cabe frisar que, segundo o autor, esses fatores estão

presentes, em geral, numa conversação bem-sucedida.

Por conseguinte, o Princípio da Cooperação sugere que na

interação, os participantes façam suas contribuições

conversacionais da mesma maneira que ela for solicitada, no

estágio em que ela acontecer, e de acordo com o propósito ou

direção da troca verbal, na qual o participante se encontra.

Logo, no Princípio da Cooperação, juntamente com as

máximas conversacionais Paul Grice desenvolveu quatro

grandes categorias:

1. Quantidade:
corresponde à quantidade de informação a
ser transmitida. É preciso regular a quantidade
de informação, para que ela não seja nem mais
nem menos que o necessário. Têm-se, portanto
as seguintes máximas:

367
i. Faça sua contribuição tão informativa
quanto necessária, apenas o requerido.
ii. Não faça sua contribuição mais
informativa que o necessário.
2. Qualidade: faça com que sua
contribuição seja verdadeira. Apresenta duas
máximas mais específicas:
i. Não diga o que considerar ser falso.
ii. Não diga nada que não possa
fornecer evidência adequada.
3. Relação: há uma única máxima:
i. Seja relevante, isto é, só se pode dizer o que
é essencial.
4. Modo: corresponde
a “como” aquilo que se diz deve ser dito. O
autor recomenda ser claro:
i. Evite ambiguidades.
ii. Evite obscuridade de expressão.
iii. Seja breve
(evite digressões desnecessárias).
iv. Seja ordenado (fale pausadamente,
respeitando os turnos
conversacionais) (GRICE, 1975, p. 45-6).
6

Na conversação, por desenvolver-se de forma

espontânea, pode ser que aconteça um embate entre algumas

368
dessas máximas, acarretando no favorecimento de alguma

dessas categorias conversacionais – em especial.

Quando o interlocutor detectar, por meio do locutor,

descumprimento de alguma das máximas conversacionais,

deve-se esforçar a fim de discernir a causa do

descumprimento. Nessas ocasiões, tem-se uma implicatura

conversacional.

Paul Grice presume que expectativas ou pressupostos

específicos associados a algumas das máximas descritas

anteriormente, possuem no mínimo, seus análogos na esfera das

transações que não são trocas conversacionais, listando, assim,

um análogo para cada categoria:

1. Quantidade: se você está


ajudando-me a consertar um carro, espero que
sua contribuição não seja mais nem menos que
o requerido. Se, por exemplo, em uma
determinada etapa, eu precisar de quatro
parafusos, eu espero que você me dê quatro, ao
invés de dois ou seis.

369
2. Qualidade: espero que suas
contribuições sejam autênticas e não falsas,
adulteradas. Se eu precisar de açúcar como
ingrediente em um bolo que você
está ajudando-me a fazer, eu não espero que
você me dê o sal; se eu precisar de uma colher,
espero uma colher de verdade, e não uma de
brincadeira, feita de borracha.
3. Relação: eu espero que a
contribuição de um parceiro seja adequada às
necessidades imediatas em cada estágio da
negociação; se eu estou misturando os
ingredientes para um bolo, eu não espero ser
ajudado por um bom livro de receitas
(embora isso possa ser apropriado em uma
fase anterior).
4. Modo: espero que um parceiro
deixe claro qual contribuição ele está fazendo e
execute sua performance com uma razoável
agilidade (GRICE, 1975, p. 47).

Segundo o autor mencionado, essas analogias são

consideradas fundamentais, em razão de serem determinadas

pelo Princípio da cooperação, para cada máxima

conversacional, posto que, na interação, o modo de conduta dos

participantes acontece de acordo com os princípios

370
determinantes, isto é, pela troca comunicativa por ser

desenvolvida de forma empírica.

Conclusão

Neste estudo, respaldado nas vertentes da linguística,

semântica e pragmática, procuramos explicar as funções

exercidas pelos elementos que constituem a linguagem na

construção do seu significado – implicaturas: convencionais e

conversacionais, também, as máximas

conversacionais de: qualidade, quantidade, relação e modo.

Concluímos ressaltando que estes processos semânticos e

pragmáticos, dentre vários outros, contribuem para a produção

da interação e para que o falante atinja os seus propósitos

comunicativos. Visto que, no presente trabalho foi possível

observar por meio da teoria de Grice, que existem regras que

regem a conversação.

371
Assim, mediante este estudo almejamos contribuir para

uma reflexão sobre estes amplos e diversificados

campos linguísticos, com intuito de fomentar novas

indagações, bem como, outras colocações sobre o tema em

questão.

Referências:

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pragmática da linguagem. Revista Virtual de Estudos da Linguagem
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2009.

374
UMA LEITURA DE “MULHER EM RECESSO”, DE
ALCIENE RIBEIRO LEITE

Natália Tano Portela (CPTL/UFMS)

Resumo: Dentre 449 trabalhos concorrentes, "Mulher em


Recesso", de Alciene Ribeiro Leite, foi um dos dez contos
indicados para publicação na coletânea 8º Concurso de Contos Luiz
Vilela (1999). O conto, narrado em terceira pessoa, descreve um
dia da vida da personagem “mulher” com seus afazeres
domésticos. Este trabalho pretende uma leitura desse conto a
partir da construção da personagem feminina, tendo por objetivo
demonstrar sua tomada de consciência e consequente mudança
comportamental.

Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; conto; feminismo.

A MULHER E SUA OBRA

De forma geral, pequena (ou nula) é a importância da

biografia dos escritores nos estudos literários quando da leitura,

análise e interpretação de suas obras. Neste caso, porém,

375
considerando os poucos dados disponíveis a respeito da vida de

Alciene Maria Ribeiro Leite de Oliveira, doravante dita Alciene

Ribeiro, e a trajetória pouco comum de seu percurso na literatura,

consideramos necessário que sejam dedicadas algumas linhas à

sua história.

Nascida em 22 de novembro de 1939 na zona rural de

Ituiutaba, MG, Alciene Ribeiro mudou-se com a família para a

cidade aos oito anos de idade, tendo, assim, oportunidade de

começar a estudar. No entanto, não concluiu o ginásio –

correspondente aos últimos quatro anos do segundo ciclo do

Ensino Fundamental atual – durante a adolescência. Abandonou

os estudos e começou a trabalhar como caixa de loja no comércio

da cidade. Antes de completar 20 anos de idade, casou-se com

um jovem advogado em início de carreira política, passando a ter

uma intensa vida social e política. Quando seu primogênito

entrou em idade escolar, decidiu voltar a estudar: concluiu o

curso ginasial aos 29 anos e o Curso Normal aos 32. Em seguida,

ingressou no curso de licenciatura em História, que concluiu em

376
1976, aos 37 anos de idade. No mesmo ano, começou a publicar

textos no “Suplemento Literário” do jornal Minas Gerais,

periódico oficial do estado. No ano seguinte, seu conto “Vinte

anos de Amélia” foi selecionado para compor a antologia de

contos marginais Queda de Braço, organizada por Glauco Mattoso

e Nilto Maciel, marcando a estreia de Alciene Ribeiro em livros.

O mesmo conto integraria também o primeiro livro de contos de

Alciene Ribeiro Eu Choro do Palhaço, ganhador do “Prêmio

Galeão Coutinho” pela União Brasileira de Escritores de São

Paulo como melhor livro de contos de 1978. Segundo Constância

Lima Duarte, o prêmio “abriu-lhe as portas do mundo literário”

(DUARTE, 2010, p. 37).

Ainda que a escritora não se declare publicamente como

uma mulher feminista[1], a produção literária de Alciene Ribeiro

é marcada por tratar do papel da mulher, sendo as relações de

gênero temática constante em sua obra. Neste trabalho,

procuraremos analisar o conto “Mulher em Recesso”, publicado

na década de 1990 na antologia 8º Concurso de Contos Luiz Vilela.

377
Para tanto, será realizado um paralelo entre a protagonista desse

conto e a de “Vinte Anos de Amélia”, publicado primeiramente

na década de 1970. Cremos que as diferenças entre as

personagens quanto ao papel da mulher dentro do

relacionamento conjugal podem ser relacionadas com a evolução

do movimento feminista no Brasil.

A MULHER EM MOVIMENTO

Considerando o feminismo de maneira ampla, como

“todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e

a discriminação da mulher” (DUARTE, 2003, p. 152), pode-se

afirmar que o movimento feminista teve seu início no início do

século XIX, com a busca pelo direito básico de aprender a ler e a

escrever. Antes de a abertura de escolas públicas femininas ser

autorizada legalmente, em 1827, as poucas opções para que

mulheres pudessem estudar residiam em poucos conventos que

guardavam as meninas para o casamento, algumas escolas

378
particulares e o ensino individualizado. Os levantes feministas

no Brasil, nessa chamada “primeira onda”, tiveram sua gênese

em escritos europeus importados e traduzidos.

Por volta de 1870, durante a “segunda onda”, percebe-se

um grande número de jornais e revistas “de feição nitidamente

feminista” (DUARTE, 2003, p. 156). Também é dessa época que

surgem os primeiros relatos de brasileiras fazendo cursos

universitários. No entanto, ainda que a imprensa feminista

cuidasse de bendizer tais feitos, a imprensa masculina,

majoritária, se manifestava ridicularizando essas mulheres.

Na “terceira onda”, no início do século XX, o movimento

feminista coloca em pauta o direito ao sufrágio, ao curso superior

e à ampliação das possíveis áreas de atuação para a mulher no

trabalho. Durante a década de 1920, além do estabelecimento de

um feminismo burguês, emergiu um movimento anarco-

feminista, que propunha “a emancipação da mulher nos

diferentes planos da vida social, a instrução da classe operária e

uma nova sociedade libertária” (DUARTE, 2003, p. 160).

379
Durante a década de 1970 surge a “quarta onda”. Em 1975

o “8 de Março” é declarado Dia Internacional da Mulher pela

ONU. Durante essa onda, debateu-se – além dos direitos

trabalhistas, da discriminação do sexo e do posicionamento

político em relação à ditatura militar e à censura – a sexualidade,

o direito ao prazer e ao aborto.


“Nosso corpo nos pertence” era o grande mote, que
recuperava, após mais de sessenta anos, as
inflamadas discussões que socialistas e anarquistas
do início do século XX haviam promovido sobre a
sexualidade. O planejamento familiar e o controle
da natalidade passam a ser pensados como
integrantes das políticas públicas. E a tecnologia
anticoncepcional torna-se o grande aliado do
feminismo, ao permitir à mulher igualar-se ao
homem no que toca à desvinculação entre sexo e
maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso.
(DUARTE, 2003, p. 165)

A partir da década de 1990, a revolução sexual passa a ser

assimilada à vida cotidiana. No estágio atual das discussões

sobre gênero, no consenso da crítica feminista, não se está

vivendo mais um tempo em que a mulher, para poder se fazer

reconhecer, precisa “arrombar” portas. É verdade que hoje ela

380
luta pela preservação de seu espaço e pelo reconhecimento de

que as questões de gênero ultrapassam traços biológicos e

envolvem construções sociais, histórias e culturais. No entanto,

já foi traçada uma caminhada que permite à mulher se situar

politicamente no universo (ALVES; SILVA, 2012, p. 2).

A MULHER EM RECESSO

No conto “Mulher em Recesso”, narrado em terceira

pessoa, são apresentados flashes de um dia na vida da

personagem principal, referida como “mulher”: Seis horas; Sete

horas; Oito horas; Nove horas; Dez horas; Onze horas, Meio-dia;

Treze horas; Quatorze horas; Quinze horas; Dezesseis horas;

Dezessete horas; Ave-Maria; Dezenove horas; Jornal Nacional;

Vinte e uma horas; Vinte e duas horas; Vinte e três horas; Meia-

noite.

O conto narra o dia de uma mulher casada que, após ter

tido um sonho aparentemente erótico com um “músico e pintor”,

381
ocupa-se das tarefas domésticas, tem malogrado um encontro

com o homem do sonho e, depois disso, passa a se ocupar

consigo mesmo. “Ela merece” (LEITE, 1999, p. 29).

O marido da protagonista é retratado como grosseiro,

quase grotesco:
Apressa o café, que o marido sorverá entre sopros,
o mau humor dos bem-amanhecidos no vinco da
testa, nenhum cumprimento, a intimidade da noite
dissolvida nas últimas brumas.
[...]
Tateia a fechadura da porta, que o homem, gordo e
peludo sob a ducha, não se digna a abrir.
[...]
A mulher alisa o lençol onde o homem se espojara
em gozos e roncos suados. (LEITE, 1999, p. 25)

É possível perceber que mesmo a representação do

marido é feita de forma indireta a partir das ações da mulher,

reforçando o papel dela na narrativa.

Nos trechos que apresentam as primeiras horas do

período matutino desse dia da mulher, observamos

constantemente suas ações relacionadas ao universo doméstico:

atende o relógio que grita; cuida de cerrar portas; apressa o café;

382
alisa o lençol. O horário das “Nove horas”, porém, é dedicado à

mulher: a casa pronta é comparada à própria mulher, que revive

uma cena anterior à diegese, quando teria combinado com o

artista de se encontrarem. A mulher, então, retira duas garrafas

de vinho e as coloca na geladeira, em preparação para o encontro.

“Onze horas”, a mulher recebe um vendedor de

enciclopédias, que a mulher, paleta de pintor, compara com o

artista. No entanto, “abre mão de transgredir em holocausto ao

sonho” (LEITE, 1999, p. 27) e, posteriormente, leva os filhos para

a escola. Nesse momento, “Meio-dia”, há uma segunda grande

volta ao passado por parte da mulher, que rememora quando,


anos antes, a aliança acorrentou Cinderela no
anular com promessas de felicidade fundida nos
dezoito quilates. Continua lá, em morno dormitar.
Mas a alegria insossa da mulher quer o acre doce do
vinho de plantão na Consul, o suave defumado do
queijo provolone. Branco ou tinto, combinado com
parmesão ou gorgonzola, decida-o o pintor. São
apenas adornos, pretexto para a história deles
ultrapassar o prefácio. (LEITE, 1999, p. 27)

383
No período vespertino, a mulher, bela da tarde, aguarda

a ligação do artista às “Quatorze horas” para se encontrarem em

seu atelier. À medida em que o tempo passa, “Quinze horas”, “os

ponteiros do tempo retinem o perigo de pane ao seu vôo pirata”

(LEITE, 1999, p. 28). “Dezesseis horas” e o envinagrar passa a se

tornar uma possibilidade real, a mulher decepciona-se e começa

a recolher os cacos da ousadia. “Dezessete horas”, e “[a]quela

que busca crianças na escola dobra-se à aposentadoria do azul e

branco. Ela é mera personagem de ficção” (LEITE, 1999, p. 29).

Nos dois flashes seguintes, “Ave-Maria” e “Dezenove

horas”, há o momento de maior tensão em relação à mudança de

comportamento da mulher. Depois de perceber malogrados seus

planos, “belisca nacos do sonho travestido em queijo defumado”

e coloca as crianças na cama “mais cedo, por favor. Ela merece.”

(LEITE, 1999, p. 29). Em seguida, passa um perfume e veste a

“camisola mais sensual” (LEITE, 1999, p. 29).

Durante o “Jornal Nacional”, “[a] voz na casa, paredes,

alisa os ombros da mulher, apalpa, devassa ângulos e pelos.”

384
(LEITE, 1999, p. 29). O músico-pintor, desta vez presente em

fantasia, “tarda, mas não falta”. As horas seguintes são

retratadas com a mulher deitada, assistindo à TV, sem

preocupações. “Nunca fora tão bela” (LEITE, 1999, p. 30). À

“Meia-noite”, o marido chega e “nem vê a bem-aventurança

adormecida” (LEITE, 1999, p. 30).

Diferente da mulher protagonista do conto “Vinte Anos

de Amélia”, que se percebe em situação de submissão na relação

conjugal e resolve ganhar a rua, a mulher de “Mulher em

Recesso” parece pertencer a um outro mundo, posterior àquele.

Apesar da tomada de consciência da personagem deste conto,

caracterizado pela percepção do que poderia ser e subsequente

mudança de atitude, a mulher de “Mulher em Recesso” desde o

começo do conto já apresenta um grau de liberdade pela

manutenção de um “segredo já polido” (LEITE, 1999, p. 25).

Ademais, mesmo antes da diegese a mulher faz planos para um

encontro, ainda que “casto – não sabe de maiores ousadias”

(LEITE, 1999, p. 26).

385
A constante diminuição da participação da mulher nos

afazeres do lar somada ao aumento de sua (pre)ocupação

consigo mesma, nesse caso, é indicativa de um alinhamento entre

forma e conteúdo: a construção narrativa aponta para a

libertação da mulher que será revelada ao leitor ao longo do

conto, ainda que já disposta em momento pré-diegético.

A mulher do conto “Mulher em Recesso” não tem sua

caracterização feita de forma polar em relação à(s) figura(s)

masculina(s). O marido, o artista, o vendedor de enciclopédias

aparecem na narrativa como meros figurantes: suas

interferências são de ordem secundária. Em seu recesso,

recolhido, a mulher é “mera personagem de ficção”, sua própria

artista e também “bem-aventurança”.

REFERÊNCIAS

386
ALVES, Carla Rosane da Silva Tavares; SILVA, Dânae Rasie da.
Clarissa: reflexões sobre a personagem feminina no contexto
romanesco de Erico Verissimo. Linguasagem, n. 20, 2012, p. 1-12.
Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/
edicao20/artigos/artigo_008.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2017.

DUARTE, Constancia Lima (org.). Dicionário biobibliográfico de


escritores mineiros. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2010. p. 37-
38.

DUARTE, Constancia Lima. Feminismo e literatura no Brasil.


Estudos Avançados, v. 17, n. 49, 2003. p. 151-172. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/eav/issue/view/738>. Acesso em: 17
jan. 2017.

LEITE, Alciene Ribeiro. Mulher em Recesso. In:


NEPOMUCENO, Luis André et al. 8º Concurso de Contos Luiz
Vilela. Ituiutaba, MG: Fundação Cultural de Ituiutaba, 1999. p.
25-30.

__________

Notas

387
[1] Constancia Lima Duarte (2003, p. 151) aponta que, no Brasil,
há uma forte resistência em torno da palavra “feminismo”.
Segundo ela, “[p]rovavelmente, por receio de serem rejeitadas ou
de ficarem “mal vistas”, muitas de nossas escritoras, intelectuais,
e a brasileira de modo geral, passaram enfaticamente a recusar
tal título.”

388
ACERVO LITERÁRIO E FORTUNA CRÍTICA:
UMA AMOSTRA DAS ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS
DE LUIZ VILELA

Rodrigo Andrade Pereira (CPTL/UFMS)

Resumo: Ao debruçarmos sobre as entrevistas e depoimentos do


escritor mineiro Luiz Vilela, percebemos a necessidade de
analisarmos as “faces” construídas pelo escritor diante de seus
interlocutores. Estabelecida importância e o lugar da entrevista e
do depoimento diante do acervo literário do escritor, até para
podermos lidar não com todos, mas apenas com os mais
significativos, nos debruçaremos neste artigo em uma pequena
amostragem das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela,
algumas delas já publicadas, sendo uma ainda em arquivo
digital. Tais entrevistas e depoimentos, juntando-se à outras, e
são inúmeras, consistirá em uma parte do acervo literário do
escritor.

Palavras-chave: Acervo Literário; Luiz Vilela, Entrevistas,


Depoimentos.

INTRODUÇÃO:

389
Diante da oportunidade de nos debruçarmos sobre o

acervo pessoal e literário do escritor mineiro Luiz Vilela, nos

deparamos com uma material, que ao nosso ver, riquíssimo e que

ilumina de maneira consistente, a compreensão da obra do

escritor: suas entrevistas e depoimentos.

Para a sociologia, e mais especificamente, para o sociólogo

Erving Goffman, em seu livro A representação do eu na vida

cotidiana, o ser humano, sempre que está diante de outros,

expressa a si mesmo e por sua voz esses indivíduos

(interlocutores), são impressionados e influenciados, por ele.

Segundo o sociólogo, o indivíduo tem duas maneiras de

se expressar: primeiro pelo uso proposital de símbolos verbais

para veicular a informação que ele e os outros sabem estar

ligadas a esses símbolos, o que Goffman chama de

“Comunicação Tradicional”. A outra forma, e mais ampla,

compreende uma gama de ações que os outros deduzem que

foram levadas a criar um efeito por outras razões diferentes da

informação assim transmitida. Diz Goffman que “o indivíduo

390
evidentemente transmite informação falsa intencionalmente por

meio de ambos tipos de comunicação, o primeiro fraude, o

segundo dissimulação”. (Goffman, p. 14)

Erving Goffman ainda afirma que vivemos de inferências

e, portanto, estamos o tempo todo regulando a conduta dos

outros, e por meio dessas inferências projetamos a nossa

personalidade, sob prismas sutilmente diferentes, variando

conforme o(s) interlocutor(es). O sociólogo, diante desses

prismas de personalidade, afirma que o indivíduo, implícita ou

explicitamente, dá a entender que possui certas características

sociais, e que vai usá-las, em diferentes ocasiões, de diferentes

formas, provocando diferentes efeitos diante desse interlocutor.

Tais características podemos chamar de face pública, e não

máscaras, como se costuma usar, pois são características

inerentes ao ser humano, por vezes usada naturalmente, ou por

vezes sutilmente dissimuladas.

O estudioso explica que em determinadas situações de

interação, o indivíduo cria “fantasias” nas quais ocorrem

391
situações de exposição, em menor ou em maior grau. “Contam-

se e repetem-se anedotas do passado – reais, enfeitadas, ou

inventadas – pormenorizando rupturas que de fato ocorreram,

quase ocorreram ou que ocorreriam e foram admiravelmente

solucionadas”. A face pública do escritor, ao nosso ver, se

encaixa perfeitamente em tal definição, pois o tempo todo, seja

em entrevistas e depoimentos, ou em sua obra ficcional, ele “cria

fantasias”, pois é delas que se estrutura a sua ars poética.

É nessas interações, sobretudo em entrevistas e

depoimentos, que o escritor se vale de inúmeros recursos,

incluindo “narrativas”, mas ficcionais ou não, para construir

uma face ficcional, característica, segundo Goffman, inerente à

qualquer ser humano, diante dos seus interlocutores, a fim de

“vender” o seu produto e fazer com que o leitor “embarque”

cada vez mais em suas histórias ficcionais, impulsionado pelo

prazer criado ao ouvi-lo falar de seus livros, de sua obra, de seu

projeto ficcional. Por isso é instigante, e se faz necessário,

percebermos e analisarmos essas “faces” construídas pelo

392
escritor, e no nosso caso, Luiz Vilela, diante de seus

interlocutores.

Estabelecida importância e o lugar da entrevista e do

depoimento diante do acervo literário do escritor, até para

podermos lidar não com todos, mas apenas com os mais

significativos, nos debruçaremos neste artigo em uma pequena

amostragem das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela,

algumas delas já publicadas, sendo uma ainda em arquivo

digital. Tais entrevistas e depoimentos, juntando-se à outras, e

são inúmeras, consistirá em uma parte do acervo literário do

escritor e, pretendemos assim, preencher uma lacuna em sua

fortuna crítica, com a catalogação e análise desse importante

material.

ACERVOS LITERÁRIOS

Sobre a importância da preservação das memórias do

escritor encontradas nesses arquivos, a professora da UFRGS

393
Maria Luiza Ritzel Remédios, em seu artigo “O empreendimento

autobiográfico”, ao analisar os acervos literários de Josué

Guimarães e Érico Veríssimo, afirma que “o ato de criação

literária não é somente pensado, ou impelido pelo inconsciente,

é também produto de uma conjuntura sócio histórica sob o

influxo de pressões econômicas e tradições culturais”

(REMÉDIOS, 2004, p. 280). Ela diz ainda que a obra literária

possui um sujeito-autor mergulhado na linguagem, que lhe

possibilita não só expressar seus sentimentos e ideias, mas

também, através da memória, através dos seus guardados,

sobretudo literários, voltar ao passado, projetar-se ao futuro pela

imaginação e dialogar consigo mesmo, através do cruzamento

do seu discurso, enquanto autor, com sua obra, enquanto

ficcionista. Remédios aponta que

Nas histórias de vida, o sujeito-autor em


constante diálogo, mergulha na linguagem por
meio da qual expressa suas ideias e
sentimentos, mas também define sua
identidade e o valor artístico do texto criado a

394
partir da relação eu-outro que atesta a
ficcionalidade das expressões do eu.
(REMÉDIOS, 2004, p. 280).

Ela ressalta a importância das fontes literárias, sobretudo

aquelas guardadas pelo próprio autor, pois fornecem o suporte

material que dá permanência ao tempo e às condições espaciais.

Esse material, segundo ela, utilizado pelo artista (lembranças,

sonhos, histórias particulares ou coletivas, escritos próprios ou

alheios, entrevistas, correspondências e/ou depoimentos),

pertence às fases, ora de gestação e de produção da obra literária,

ora de retorno por parte do público, especializado ou não, da

recepção da própria obra, tudo isso aponta para condições de

vida e de criação de determinado autor.

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS

O professor Rauer Ribeiro Rodrigues, em seu artigo

“Fortuna Crítica: Proposta para um Taxonomia” (RAUER, 2013,

395
p. 23-37), assim define o depoimento: “texto de redação do

escritor ou elaborado a partir de fala do escritor, no qual ele trata

de sua obra, de sua vida, de sua época ou da literatura em geral”

e entrevista: “diálogo em forma de pergunta e resposta, às vezes

apresentado como narrativa, em que o autor estudado responde

a perguntas”. (RAUER, 2013, p. 32).

Poucos estudiosos insistem em considerar a entrevista

como resultado de técnicas elaboradas de coleta e difusão de

informações. Valorizada por escritores como Borges, Ricardo

Piglia, Silviano Santiago e Gabriel Garcia Marques, a entrevista

chega a ser considerada, conforme depoimentos desse último,

como a “fada madrinha”, o “gênero mestre” que abastece todos

os outros gêneros. Muitos escritores veem a entrevista com

receio, pois consideram muitos entrevistadores despreparados

para tal.

Antes da década de 70, o acesso ao escritor era realizado

predominantemente através das correspondências, depois de 70,

com a popularização da entrevista, esse acesso se tornou mais

396
intenso. A entrevista passou a ser considerada como instância

privilegiada de intervenção do intelectual no campo da cultura.

Trata-se do lugar onde se constrói sua assinatura, sua imagem,

onde se amplifica sua fala, se propagam suas ideias e se assumem

posições na arena conflitiva da política, do mercado de bens

simbólicos e até análises da própria obra.

Segundo a professora Rachel Lima,

A entrevista é a maneira pela qual o artista


pode burlar o mercado. O diálogo do leitor
brasileiro com a obra, sobretudo com a ficção
contemporânea, é praticamente inexistente. Ele
pode ser, quando muito, levado a ler os
clássicos, ou os grandes autores modernistas.
Mas ler um autor contemporâneo é coisa rara:
o leitor não tem dinheiro, e ao mesmo tempo a
nossa cultura é uma cultura que tende a ser oral
e não escrita. A entrevista, para mim, tem
importância, porque você pode tornar explícito
o que está implícito na realização artística.
Sendo entrevistado, posso passar uma
mensagem que será escutada, assumida por
pessoas que nunca me viram e nunca me leram
e possivelmente nunca lerão livros meus.

397
Então, a entrevista, qualquer que seja o meio,
tem uma função social enorme no Brasil
(LIMA, 2011, p. 37 e 38).

Lima acrescenta, citando Silviano Santiago, que “A

entrevista, segundo Santiago, pode ser vista como um lugar para

se questionar as visões dicotômicas que opõem subjetividade e

objetividade, história privada e pública, memória individual e

coletiva” (LIMA, 2011, p. 39).

Entrevistas e depoimentos são também peças ficcionais,

na medida em que o autor constrói uma autoimagem simbólica

que condiz com a visão que tem de si mesmo e do mundo, que

corresponde a uma visão particular entre as muitas visões

possíveis sobre aquele autor.

Segundo Pauliane Amaral,

em entrevistas e depoimentos, o escritor


estabelece um pacto autobiográfico, em que o
autor propõe um discurso sobre si, focalizando
sua história individual, em particular a história
de sua personalidade, e é nesse ponto, ao nosso

398
ver, crermos ver essa personalidade refletida
em sua obra. Uma realização particular desse
discurso, na qual a resposta a pergunta ‘quem
sou eu’, consiste uma narrativa que diz como
‘me tornei assim’ (AMARAL, 2013 p. 119).

Ainda segundo Amaral, “a imagem do autor que surge da

reunião de textos (ficção, fortuna crítica, ensaios, escritos

íntimos, prefácios, etc.) também exerce influência sobre a leitura

do romance autobiográfico, dilatando a fruição do leitor”.

(AMARAL, 2013, p. 121). Nosso objetivo é ver essa imagem do

autor produzida por ele mesmo em entrevistas e depoimentos, e

de como essa imagem produzida importa na compreensão da

sua obra.

Segundo Marques, em suas entrevistas, montando um

arquivo pessoal, por exemplo, o escritor alimenta sua imagem

autoral, podendo fetichizar sua assinatura, tarefa em que

haverão de se consorciar também pesquisadores, críticos e

arcontes de arquivos literários (MARQUES, 2012, p. 85). Uma via

de mão dupla une obra e vida, autor e escritor, num jogo

399
recíproco de influências e contaminações. Em seus arquivos

pessoais, os escritores passam a abrigar também os rastros de sua

atividade escriturária. Em entrevistas e depoimentos, o escritor

cria narrativas possíveis de uma história da sua formação

literária, já acontecida, ou ainda por acontecer.

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS

No começo de sua carreira Luiz Vilela concedeu algumas

entrevistas, mas foram poucas, sempre em decorrência da

ocasião de lançamentos de seus livros.Eram entrevistas curtas,

de respostas curtas, sempre indo “direto ao ponto”. Nos últimos

anos essas entrevistas ocorreram com mais frequência e as

respostas foram ficando cada vez maiores, sempre com algumas

digressões, pequenas histórias que ele conta para exemplificar

uma ideia. No blog do grupo de pesquisa GPLV podemos

encontrar duas entrevistas em vídeo, uma para a TV Senado e

400
outra para TV Câmara. No blog, há também apenas um

depoimento de Vilela, dado à Miguel Sanchez Neto.

Um dos nossos trabalhos é alimentar o blog com todas as

entrevistas de Vilela, separando-as assim em entrevistas

televisionadas, publicadas em revistas e/ou jornais e as que ainda

se encontram apenas em meios digitais, bem como os

depoimentos.

Nesse artigo nos ateremos à três entrevistas, a que foi

concedida à TV Câmara, em meio televisionado, a outra que se

encontra no livro Um escritor na biblioteca publicado pelo Governo

do Estado do Paraná, pela Biblioteca de Curitiba e uma das mais

recentes, concedida ao blog da Editora Saraiva por ocasião do

lançamento do livro Você Verá. Tais entrevistas, juntamente com

as demais, consistirão uma parte importante do acervo literário,

e a análise delas nos permitirão observar uma faceta do escritor,

enquanto homem e enquanto produtor do texto literário.

A entrevista dada à Inimá Nunes, para o programa

Sintonia da TV Câmara, em 2005, trata sobretudo da véspera de

401
publicação da novela Bóris e Dóris e do romance Perdição, e por

ocasião da participação de Vilela no Café Literário da Feira do

Livro em Brasília. Inimá começa a conversa com Vilela

abordando o fato dos artistas, no modo geral, morarem no eixo

Rio-São Paulo, mas para um escritor há a possibilidade de morar

em uma cidadezinha do interior, e pergunta a Vilela como ele se

sente morando e escrevendo no interior e se não sente falta dos

aspectos culturais que uma cidade grande pode oferecer. Vilela

responde que não sente falta, que Ituiutaba é excelente para

escrever, e supre as necessidades culturais sempre que é

chamado para uma palestra nas capitais. Em seguida, o

entrevistador fala do livro O inferno é aqui mesmo, decorrente da

experiência de Vilela como jornalista no Jornal da Tarde. Vilela

frisa o fato de nessa época nesse jornal ter uma “geração

brilhante de mineiros” e sempre havia “o mineiro da semana”,

fato retratado ficticiamente no conto “Um rapaz chamado

Ismael”, da coletânea O fim de tudo, recentemente reeditada pela

Editora Record.

402
Vilela, ao comentar sobre o romance, disse que o mesmo

lhe causou alguns problemas pelo fato de retratarem “pessoas

reais”, o que desagradou a muitos. Ressaltou a falácia de alguns

críticos que diziam que o inferno do título era O Jornal da Tarde

ou até mesmo a cidade de São Paulo. Luiz Vilela afirma que o

título é uma metáfora para a condição humana.

Na segunda parte da entrevista Vilela é questionado por

Inimá quanto à sua preferência em escrever, contos, novelas ou

romances? Vilela disse que gosta dos três e que não se considera

um contista, um novelista ou um romancista, mas afirma “sou

um ficcionista”. Inimá Nunes relembra que nos anos 70 e 80

Vilela fez muito sucesso com contos para jovens e em seguida

conversam sobre a fronteira nos gêneros, e Vilela afirma que o

conto é o gênero mais difícil de escrever e que deve ser algo o

mais sintético possível e foi convidado a trabalhar no jornal por

ter um estilo jornalístico e ressalta a influência da escrita de

Graciliano Ramos em sua obra, sobretudo no estilo sintético de

escrever.

403
Quando questionado sobre quais concelhos ele poderia

dar um escritor que queira ser contista, Vilela recomenda apenas

que escreva e leia muito, sobretudo leia muito bons contistas.

O entrevistador relembra, em seguida, de uma entrevista

que fez com o escritor há dez anos, e que Vilela dizia que relia os

seus contos em voz alta, em pé, deitado e andando. Vilela disse

que ainda continua fazendo isso, lendo, de diversas formas,

aquilo que escreveu para ele mesmo, sobretudo os diálogos.

Por fim, na terceira e última parte da entrevista, Vilela

comenta a sua participação no Programa de Escritores nos EUA,

onde foi muito proveitoso, pois foi lá, com bastante tempo para

escrever que ele terminou o seu primeiro romance Os Novos. E

por fim, afirma não ter interesse pela literatura fantástica e nem

pelos romances históricos, e afirma “Tudo o que escrevo é muito

ligado à minha realidade e das pessoas que me rodeiam.”, mas

enfatiza que “a realidade é um trampolim para a ficção”.

Em 2012, o jornal “Cândido” da Biblioteca Pública do

Paraná realizou uma série de entrevistas em formato de “bate-

404
papo” intituladas de “Um escritor na biblioteca”, em novembro

deste ano foi a vez de Luiz Vilela, mediada pelo escritor Miguel

Sanches Neto. O “bate-papo” foi dividido em várias partes

temáticas. A entrevista, como as outras dessa série, abordando a

primeira biblioteca, que para Vilela foi a da sua casa, pois,

segundo ele, todos em sua casa liam muito, mas cada um tinha

seus interesses de leitura, portanto era uma biblioteca

diversificada, o que só confirma a quantidade e qualidade de

leitura que Vilela teve na infância.

Dessa quantidade de leituras nasceu a vontade de

escrever, como diz ele “de contar as próprias histórias”, assim,

no início, compara a sua escrita com a de escritores que admira,

até descobrir sua própria voz. Relata que quando menino

brincava com uns bonecos, criando mundo e histórias para ele,

hoje, segundo Vilela, “a literatura é minha brincadeira de

adulto”.

405
Estreou na literatura aos 14 anos com a publicação de

contos nos jornais de Ituiutaba, e segundo ele, suas primeiras e

maiores influências foram Dalton Trevisan e Hemingway.

Com a mudança para Belo Horizonte conheceu Os Novos

e então houve a criação da revista Estória, que segundo o autor,

era considerada pelos críticos norte-americanos como uma das

melhores revistas literárias da América Latina. Também nesse

período publica em uma editora modesta, a “grafiquinha” com

“g” minúsculo, o seu primeiro livro, e com este, Tremor de Terra,

ganha o Prêmio Nacional de Ficção.

A conversa passa a tratar da experiência de Vilela no

Jornal da Tarde, que o inspirou a escrever o romance O inferno é

aqui mesmo, romance que foi muito criticado, por se tratar, na

visão dos críticos, de uma “vingança pessoal”. Um dado

interessante, revelado por Vilela, é que quando foi trabalhar no

jornal, já havia ali muitos mineiros, e falavam que sempre havia

o “mineiro da semana”. Sobre Inferno é aqui mesmo, Vilela afirma

que “em termos simbólicos, que [o inferno do título] é o inferno

406
da condição humana, do relacionamento das pessoas, da solidão,

da falta de amor”, um pré-conceito contra o livro, de gente que

leu superficialmente o livro ou só leu o título, segundo Vilela,

fato que também ocorreu com Os Novos.

Quando questionado sobre o seu método de escrever,

Luiz Vilela é categórico, como em todas as suas entrevistas: “eu

realmente não fico pensando sobre meu trabalho como escritor”

e afirma ainda que se observarmos bem e compararmos os

primeiros contos com os últimos “há uma mesma linha de

narração, de palavras, de textos, de construção”.

O tópico seguinte foi sobre o romance recém-publicado

Perdição, que, conta Luiz Vilela, partiu de um convite para

escrever um conto sobre um dos doze apóstolos, e que de conto

virou novela e de novela virou romance, como bem disse ele

“histórias que puxaram outras histórias”, procedimento, ao

nosso ver, recorrente na obra de Vilela.

Volta a falar sobre as leituras que o formaram escritor, de

Shakespeare a Dalton Trevisan, que ao ler o escritor curitibano

407
pensou: “esse cara escrevediferente de todo mundo que eu li até

agora”, por isso, segundo Vilela, os primeiros contos foram

fortemente influenciados por Trevisan.

Comenta, por fim, que prefere escrever à noite, depois da

meia-noite, pois não gosta de escrever com barulho e que não

tem tempo para ler os contemporâneos, apesar de receber muitos

livros.

Em uma das suas últimas entrevistas, para o blog da

Editora Saraiva, por conta do lançamento da coletânea Você Verá,

Vilela nos entrega uma entrevista curta, mas uma das mais

elucidativas quanto aos temas e procedimentos narrativos

presentes em sua obra. O jornalista Zaqueu Fogaça é feliz em

apontar e fazer as perguntas certas sobre os temas recorrentes na

obra de Vilela e principalmente nesse último livro. Observa que

Vilela usa a simplicidade do vocabulário e a arguta observação

do cotidiano como “matéria para cristalizar sua prosa”. Aponta

também para o fato de a maioria das narrativas do livro ser de

encontros cotidianos e inesperados.

408
Vilela diz que os contos de Você Verá, foram escritos ao

longo de dez anos, logo após a publicação do livro A cabeça, seu

penúltimo livro de contos, e que ao longo desse período,

publicou a novela Bóris e Dóris e o romance Perdição. Questionado

sobre a escolha do gênero, pergunta recorrente feita a ele, sobre

a fronteira dos gêneros, até pelo fato dele transitar pelos três, o

conto, a novela e o romance, Vilela responde que “o gênero é

sempre definido no início do trabalho”, mas há casos em que há

uma mudança, como foi o caso do romance Perdição, cujo

procedimento já foi apontado por Vilela na entrevista analisada

acima.

O escritor Luiz Vilela afirma que parte sempre de uma

ideia para começar a escrever, sem ela, afirma ele, não se

consegue fazer nada, e à medida que a narrativa avança, outras

ideias vão surgindo, às vezes anulando a ideia original, “é

imprevisível”, diz ele.

Quando questionado por Fogaça sobre a forte

aproximação dos diálogos com a oralidade, e de como Vilela

409
consegue obter a verossimilhança neles, o escritor afirma que

parte sempre da observação da realidade e depois tem um árduo

trabalho de depuração e lapidação.

E por fim, Fogaça observa à Vilela que nas narrativas do

livro sempre há um confronto entre o presente e o passado, e

Vilela arremata: “O mundo está em constante movimento e isso

provoca mudanças nas vidas das pessoas, com várias

consequências”, um tema, segundo o escritor, recorrente em sua

obra, desde o primeiro conto publicado quando tinha 14 anos.

Vilela possui inúmeras outras entrevistas e depoimentos,

que analisaremos em outros artigos e na tese final de doutorado,

sendo essas três apenas uma pequena amostragem do

pensamento do escritor, de sua trajetória contada por ele, muitas

vezes, segundo Goffmann, criando performances de si mesmo, é

verdade, mas, ao nosso ver, revelando, mesmo que parcamente,

alguns aspectos de sua escrita e de como vê o mundo e a

literatura.

410
Referências:

AMARAL, Pauliane. A função-autor no roman à clef : Um estudo sobre


personagem e narrador em O inferno é aqui mesmo, de Luiz Vilela. Campo
Grande, 2013, 177 fls. (Dissertação de Mestrado, Estudo de
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Bauru, SP – Edusc, Santa Maria, RS, UFSM, 2000.

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411
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Miranda. (Orgs.). Crítica e Coleção. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011

MARQUES, Reinaldo. O arquivo literário e as imagens do


escritor. In: O Futuro do Presente: Arquivo, Gênero e Discurso.
SOUZA, Eneida Maria de (org.). Belo Horizonte. Ed. UFMG.
2012.

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Araraquara, SP, 2006. 2 v., XIV, 547 f. Tese (Doutorado, Estudos
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http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm
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RAUER. [Rauer Ribeiro Rodrigues.] O gênio e o urubu; comentários


à recepção jornalística do romance “Entre amigos”, de Luiz Vilela.
Uberlândia, MG, 2001. 90 f. Monografia (Especialização em
Literatura Comparada) – orientador: Joana Luiza Muylaert de
Araújo. Instituto de Letras e Linguística - ILEEL, Universidade
Federal de Uberlândia. [Disponível nos apêndices de Faces do
conto de Luiz Vilela].

RAUER. [Rauer Ribeiro Rodrigues.] Estudo preliminar para


elaboração de fortuna crítica de autor brasileiro contemporâneo.

412
POJO, Eliana Campos; RIBEIRO, Joyce Otânia Seixas; SOUSA,
Rosângela do Socorro Nogueira de (Orgs.). A Pesquisa no Baixo
Tocantins: Contribuições Teórico-Metodológicas. Curitiba: CRV,
2013.

REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel Remédios. O empreendimento


autobiográfico. In: As pedras e o arco – fontes primárias, teoria e
história da literatura. ZILBERMAN, Regina. (org.) Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2004.

VILELA, Luiz. Um escritor na biblioteca: Luiz Vilela. Curitiba:


Cândido – Jornal da Biblioteca Pública do Paraná; n. 16, p. 5 – 9, nov.
2012. Entrevista concedida a Miguel Sanches Neto.

VILELA, Luiz. Entrevista. TV Câmara, 2005. (Entrevista a Inimá


Simões, "Sintonia", em 19 set. 2005).

VILELA, Luiz. Entrevista.


www.saraivaconteudo.com.br/entrevistas. Março de 2014. (acesso
em 15/06/2016).

413
O NIILISMO EM “AXILAS E OUTRAS HISTÓRIAS
INDECOROSAS”, À LUZ DO PENSIERO DEBOLE

Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS)

Resumo: A presente comunicação visa discutir o volume de


contos “Axilas e outras histórias indecorosas”, do carioca Rubem
Fonseca, especificamente no que tange ao aspecto do niilismo
presente na obra, correlacionando-o com a obra do filósofo
italiano Gianni Vattimo. O principal conceito da obra do
pensador italiano é a noção de pensiero debole (pensamento
fraco/débil). A nomenclatura peculiar se refere a um
enfraquecimento do pensamento, e da própria noção de
finalidade da filosofia na contemporaneidade. Esse
enfraquecimento das noções absolutas da verdade filosófica é
uma marca da flexibilidade moral e ideológica do século XX,
quando, a partir do materialismo histórico, dentre outras
correntes, decretou-se a morte da metafísica. Esse arcabouço
teórico pode iluminar a supracitada obra de Fonseca pois ela, em
sua pluralidade existencial e moral, propõe justamente essa
aniquilação da verdade como conceito absoluto, elegendo novos
conceitos ou mesmo recuperando valores agora desprezados.

Palavras-chave: Niilismo; Pensiero Debole; Rubem Fonseca;


Gianni Vattimo; Conto.

414
Introdução

O século XX foi marcado por vários eventos grandiosos,

houve duas grandes guerras e centenas de conflitos menores que

marcaram violentamente sua passagem. No campo da Literatura

e da Filosofia não foi diferente. Enquanto na Filosofia todos os

sistemas metafísicos entram em crise, Nietzsche proclama a

morte de Deus e Heidegger o fim da Metafísica e da Filosofia, a

Literatura, assim como as artes plásticas, recebe um sopro de

inovação na forma e no conteúdo. É fácil perceber essa relação

histórica quando apresentamos autores como Dostoiévski,

indissociável da Rússia pós-marxismo, e Rubem Fonseca,

impensável sem a liberdade pós-ditadura no Brasil.

Durante esse amplo recorte, no campo da Filosofia, os

grandes expoentes que nortearam as reflexões e embasam a

proposta de Vattimo, segundo Rossano Pecoraro (2005, p. 9), são

Nietzsche, Heidegger, Gadamer e Dilthey e, através da leitura de

415
suas produções, Vattimo interpreta a história da metafísica como

um progressivo enfraquecimento do Ser, logo, de suas noções de

verdade. Vattimo nomeia esse conceito como pensiero debole,

Pecoraro (2005, p. 10) defende que a melhor tradução para a

expressão seria pensamento fraco, visto que os termos “frágil” e

“débil” possuem uma carga pejorativa indissociável que não

condiz com o conceito-chave. Sendo assim, optou-se pela escolha

de Pecoraro visto ser ele um dos grandes pesquisadores e

divulgadores da obra do filósofo italiano (sua obra de referência

possui posfácio do próprio Vattimo).

Rubem Fonseca é um dos escritores mais festejados pela

academia, e um dos mais prolíficos, vem produzindo contos

desde os anos 60 e seu primeiro romance saiu em 1973. A grande

marca de sua obra é definida por Schnaiderman (1994, p. 774)

como um conjunto polifônico de cultura e barbárie. Seguindo

essa tradição de chocar os leitores e a sociedade em geral (talvez

não mais seus leitores, habituados já), Rubem lança em 2011 o

volume de contos Axilas e outras histórias indecorosas. Mesmo

416
se a cultura que os narradores de Rubem exalam em seus contos

contrasta com sua barbárie, pode-se vê-la como um reflexo da

sociedade brasileira pós-moderna e esse aspecto, pretende-se

demonstrar, revela uma postura niilista.

Como há no volume escolhido para análise treze contos,

optou-se por um recorte de apenas seis histórias a fim de não se

ultrapassarem os limites propostos a esse artigo. Portanto, os

títulos escolhidos são: Sapatos, Bebezinho lindo, Intolerância, O

ensino da Gramática Confiteor e Amar seu semelhante. Outro

fator decisivo no recorte dos contos foi a leitura do trabalho de

Alana Vizentin. A estudiosa dissertou sobre esse volume e

dividiu as narrativas em grupos a fim de melhor classificar e

analisar suas especifidades. Os contos selecionados para análise

neste artigo compõe o que Vizentin (2013, P. 70) chamou de

“narrativas de exclusão e intolerância”. São narrativas que

apresentam personagens marginais e casos de intolerância,

temas facilmente relacionáveis com o niilismo onipresente na

pós-modernidade.

417
Desenvolvimento

O primeiro conto a ser analisado é “Sapatos”, narrado em

primeira pessoa de forma linear. O narrador não diz seu nome

mas fornece dados suficientes para que se compreenda quem ele

é onde ele se insere na sociedade brasileira contemporânea, trata-

se de um excluído, um pobre e desdentado rapaz que não

consegue arranjar emprego devido a sua má aparência:

Não está fácil arranjar emprego. Topo fazer


qualquer coisa, mas sei que tenho problemas,
como esse dente faltando na frente, um buraco
feio que sei que causa uma impressão ruim. As
pessoas que conheço perderam dentes lá de
trás da boca, eu fui perder logo o da frente.
(FONSECA, 2011, p. 09)

Os excluídos representam uma grande parcela de

personagens de Rubem Fonseca, dentre eles, podemos citar o

célebre narrador do conto “O cobrador”, de um volume

homônimo de contos. O que diferencia personagens como o

418
cobrador do narrador de “Sapatos” é que este não apela para a

violência enquanto aquele se revolta contra a sociedade e

empreende uma jornada assassina.

Para pensar o niilismo, há de se partir das quatro

categorias de niilismo que Deleuze classifica a partir da obra de

Nietzsche: negativo, reativo, passivo e ativo. Esses narradores

anônimos e excluídos de Fonseca dividem-se em duas categorias,

aqueles que optam por erigir-se à categoria de seus novos ídolos,

tomando o lugar deixado pela morte de Deus e da metafísica,

seriam niilistas reativos, já aqueles que se esvaziam da vontade

de poder e sucumbem ao sistema vazio e sem sentido são niilistas

passivos. O cobrador é reativo, ele se torna seu próprio Deus,

juiz, júri e executor da sociedade que o excluí. O narrador de

“Sapatos” é passivo, apesar de sua indignação frente as injustiças

desse mundo, topa jogar o jogo que lhe é imposto. Ele acredita

que, apesar da péssima aparência, se conseguisse belos sapatos e

não sorrisse, conseguiria um emprego. Sua chance aparece

quando a mãe, uma simples doméstica, surge com um lindo par

419
de sapatos de couro, importados. Ela alega que eles machucavam

muito os pés de seu patrão e que ele lhe dera o calçado quando

ela falou da necessidade do filho. Dá-se então uma espécie de

mini-epopeia do narrador para fazer com que os sapatos lhe

sirvam. Assim como ao dono original, eles lhe apertam os dedos

e machucam-lhe os pés. (FONSECA, 2011, p.10-11).

O desfecho da narrativa é agridoce, o que se pode

configurar quase como uma exceção visto que as narrativas de

Rubem Fonseca – em sua maioria – possuem amargos e

chocantes finais, o narrador consegue usar os sapatos e é

admitido em uma vaga de emprego. No entanto, no dia seguinte,

é levado à delegacia onde encontra a mãe e o patrão. Ela mentira,

roubara o calçado. Apesar do tenso e agressivo diálogo que se

processa (FONSECA, 2011, p. 13), que Vizentin (2013, p. 74)

descreve como uma sequência de elementos simbólicos que

visam narrar a relação de poder existente, ao notar que o

narrador “amansara” os sapatos, que, de fato, machucavam os

pés do patrão, este se sente tocado de alguma forma, abandona a

420
queixa, deixa os sapatos com o narrador e recontrata a senhora.

Vale ressaltar que se tudo “termina bem”, isso se deve à

benevolência do patrão, o narrador encarna perfeitamente o

niilista passivo, nada espera, nada sofre, apenas sobrevive em

meio à margem.

Na narrativa “Bebezinho Lindo”, a trama é narrada em

primeira pessoa e, apesar de anônima, de pronto se vê que a

narradora encarna um estereótipo: a mãe. Essa mãe, como se

pode dizer do estereótipo mãe/mulher em nossa sociedade

patriarcal, assume uma postura niilista negativa no início do

enredo. Seu sonho de ser mãe e dona de casa, grande motor

metafísico de sua vontade de potência, desmorona quando o

primeiro e único filho que terá nasce com problemas de saúde

(pela descrição física e associação ao aspecto rechonchudo,

deduz-se que ele tem síndrome de Down). Ela então é

abandonada pelo marido que vê na mulher a raiz do mal e se

isenta de responsabilidade: “Quando Dudu nasceu e Gabriel

soube do seu problema de saúde, disse que o menino tinha

421
herdado aquela doença de mim, na família dele todos eram

saudáveis e eu tinha uma irmã doente.” (FONSECA, 2011, p. 18).

Mãe e filho ficam entregues à própria sorte, ainda assim,

na medida do possível, ela tenta acalentar o sonho de se casar

novamente e constituir família, uma típica postura niilista

negativa. No entanto, a realidade se impõe, nenhum pretendente

a aceita ao saber do filho problemático e eles terminam sós.

Frustrada, ela passa da postura negativa a uma postura niilista

passiva: contenta-se em admirar o aspecto aparentemente sadio

do menino bochechudo – um bebezinho lindo. Infelizmente, a

realidade objetiva se impõe novamente:


As mudanças sofridas por Dudu eram
desanimadoras. Cada vez falava mais alto,
mais nervoso. Quando fez trinta anos era um
homem gordo, careca, feio. Eu também ficara
feia, cadavérica, não tingia mais meus cabelos
que haviam ficado completamente brancos.
(FONSECA, 2011, p. 20)

422
Além das mudanças supracitadas, Dudu se torna, em

parte devido à rejeição da mãe, em parte por conta do

esquecimento da sociedade, paulatinamente violento e

desagradável. A relação entre os dois ganha contornos trágicos e

certo dia, durante um ato de agressividade de Dudu, a narradora

o esfaqueia. Apesar da brutalidade e aparente monstruosidade

do crime da narradora, conforme assinala Vizentin (2013, p. 76),

“o desatino da mãe que assassina o próprio filho é construído de

tal maneira que não choca o leitor”. Assim como não choca o final

da narrativa quando, após a tragédia, a mãe retoma sua postura

niilista negativa, imerge de novo no sonho de sua maternidade:

Lavei meu rosto na pia, enquanto Dudu


continuava caído, sem respirar, uma poça de
sangue em volta do seu peito. Depois de
enxugar as mãos e o rosto fui até o quarto, abri
a gaveta e peguei uma foto do Dudu, o
bebezinho mais bonito do mundo. Fiquei
olhando para a foto, longamente, enquanto
meus olhos se enchiam de lágrimas.
(FONSECA, 2011, p. 21)

423
O terceiro conto a ser comentado é “Intolerância”,

novamente tem-se aqui um narrador anônimo de primeira

pessoa. Em poucas palavras, trata-se de um sociopata que

encarna o estereótipo do machista. Ele narra suas desventuras

amorosas e descreve como começou a “se livrar” das

companheiras que não lhe agradavam mais – assassinando-as.

Podemos ver nele um niilista reativo pois ele, na ausência de

qualquer preceito moralizador (Deus), coloca-se como centro de

sua existência e acaba por tornar-se seu único parâmetro moral.

A primeira parceira que padece em suas mãos é Gisleine, o nome

curiosamente grafado é uma clara menção à classe social da moça

e do próprio narrador, excluídos.

Ao descrevê-la (FONSECA, 2011, p. 108), o narrador apela

para seus defeitos – ver telenovelas, querer sexo ao acordar e não

cuidar da própria forma física – como forma de justificar sua

atitude. Nesse novo sistema moral erigido por ele, as mulheres

424
são mercadorias, tanto que ele cria um padrão para a seleção das

futuras candidatas:

Então resolvi arranjar outra dona, eu não sou


exigente, ela tinha que ter bunda bonita,
magra, peito pequeno e bons dentes, podia ser
feia, beleza não põe mesa, dizia o meu avô, e
ele sabia das coisas, podia ser burra, eu
também não sou lá muito inteligente, podia até
ser analfabeta – não analfabeta não podia ser.
(FONSECA, 2011, p. 109)

O anseio niilista reativo do narrador só pode ser

preenchido caso ele encontre uma moça que corresponda ao

molde preestabelecido, ele encontra: Daiana. Infelizmente, a

nova amada repete em tudo os moldes da primeira companheira,

o que pode ser visto como uma massificação do feminino e que

podemos relacionar ao fato da maioria das pessoas se

enquadrarem na categoria de niilistas passivos – elas

simplesmente anda ao sabor da maré, consumindo o que a

propaganda sugere e pensando o que a mídia expõe. Incapaz de

425
se relacionar verdadeiramente com a nova amada, o narrador a

assassina também. Os crimes não são notados e o narrador não é

punido, mais um sinal da massificação niilista da sociedade pós-

moderna, o que Hanna Arendt chamou de banalidade do mal –

a trivialização da violência.

Na quarta narrativa selecionada, “O ensino de

Gramática”, vê-se um outro lugar-comum nos contos de Rubem

Fonseca, a narrativa por meio de um diálogo/discussão. Trata-se

de um casal que discute temas aparentemente aleatórios até

chegar a uma grande revelação. A discussão começa quando um

dos personagens pergunta o porquê da aparente tristeza do

cônjuge. Diante de uma resposta evasiva, a conversa começa a

ficar tensa e passa pela gramática da língua portuguesa, usada

como arma de ofensa, e por uma avaliação da vida sexual do

casal (FONSECA, 2011, p. 85-86).

Com o enfraquecimento das verdades metafísicas, as

pessoas precisam erigir novos valores e conceitos a partir de sua

experiência a fim de se tornarem, como diria Nietzsche, super-

426
homens, intérpretes de sua realidade. Nesse conto vemos que a

relação amorosa, desgastada em seu tradicional valor metafísico,

dá lugar a um vazio sufocante que permeia a discussão e que vai

crescendo até seu ápice quando um dos personagens ameaça

abandonar a relação. Vattimo (2016, p. 26) defende a noção de

que a verdade é uma construção subjetiva, não pode ser fruto de

um consenso, por isso a importância de um pensamento fraco

segundo o qual não se procure exercer esse poder de verdade

sobre o outro. Uma espécia de construção coletiva de niilismo

ativo. É o que ocorre com o casal após a revelação de que um

deles está com câncer de pulmão. Eles deixam de lado duas

verdades e se unem ternamente:

Então deixa de ficar triste. Tenho uma razão. Já


estou com câncer. Jura? Juro. Pulmão. O
cigarro. Meu amor, vou cuidar de você. Mas
antes me ensina gramática. (FONSECA, 2011,
p. 87)

427
A quinta história possui um nome em latim “Confiteor”,

confissão, tanto o significado do título (que remete a um

sacramento) quanto o fato da língua ser o latim, idioma oficial do

catolicismo até hoje, sugerem uma ligação com a Igreja

católica. É apenas mais uma tirada irônica do narrador,

novamente um anônimo na primeira pessoa, trata-se de um

advogado que decide confessar suas taras sexuais e o estranho

rumo que suas relações tomaram.

Enquanto fodíamos, dei um tapa na cara de


Camila. Confesso que não gostei, na verdade
quase brochei. Ao escrever esta confissão faço
uma pausa aqui. Brochei ou broxei? Confesso
que a nova ortografia me confunde um pouco.
Por exemplo: o trema, quando se deve usá-lo?
E o acento diferencial? Pêra pera, péla pela,
pára para, pêlo pelo, pólo pólo. Se alguém me
perguntar aonde vou por um troço e eu
responder “vou pô-lo aqui” as pessoas vão me
entender? Só se eu estiver em Portugal. E o
acento circunflexo? E o acento agudo? Estou
tergiversando, eu sei, mas esse é um problema
que sempre me ataca quando escrevo, extravio-

428
me em rodeios inúteis. Onde eu estava mesmo?
A confissão, sim sim, a minha confissão. Aliás,
que tipo de confissão é a minha? (FONSECA,
2011, p. 194)

É fácil perceber a fragilidade mental do narrador através

do trecho acima, ele oscila entre revelar seu segredo e tergiversa

sempre que pode para escapar a esse fado. Camila foi a

primeira amante do narrador que “pediu para apanhar”,

iniciando-lhe assim no sadismo. O narrador é provocativo ao

banalizar sua relação sadomasoquista e lembra a máxima de

Nelson Rodrigues: “Nem toda mulher gosta de apanhar, só as

normais”. Novamente tem-se no narrador um niilista reativo,

especificamente alguém que idolatra o hedonismo.

Contrariado no início da relação com Camila, via com

estranheza a necessidade da moça de ser sodomizada, o narrador

vai “pegando gosto pela coisa” e as relações adquirem cada vez

mais violência e prazer. Para o niilista reativo não há limites ao

que se pode fazer em prol do que dá sentido à sua existência,

429
Nietzsche dizia que o ser humano, se encontrar sentido, se torna

capaz de suportar qualquer sofrimento, físico ou moral. A

torpeza do sexo atinge seu grau máximo, não por acaso, quando

o prazer também o faz:

Certas ocasiões eu batia nela com tal violência


que Camila tinha que permanecer na minha
casa, pois ficava com o rosto inchado. Então
passei a bater no corpo de Camila, e um dia –
se isto aqui é uma confissão eu tenho que falar
a verdade -, um dia bati com tanta violência
que lhe quebrei uma costela. Estão chocados?
Então preparem-se para o que vem agora, a
minha descoberta do Orgasmo Máximo. Como
ocorreu? Foi no dia em que eu matei Camila
durante a cópula: enquanto ela agonizava,
morrendo estrangulada por mim, eu gozei com
um imensurável ardor. Claro que algum tempo
depois, quando passou o meu longo gozo,
percebi que tinha um problema sério de
logística para resolver: como livrar-me do
cadáver. Qual foi a solução que encontrei?
Jogando-o no mar. Desistam, não vou ensinar
a ninguém o meu macete, o certo é que o corpo
de Camila jamais foi encontrado. (FONSECA,
2011, p. 198)

430
Novamente em um conto, como vimos em “Intolerância”,

por exemplo, tem-se a massificação da figura feminina, a mulher

se torna um mero objeto que, quebrado/morto, deve ser

dispensado com o devido cuidado para evitar problemas com a

polícia. Essa ausência moral e insensibilidade do narrador

derivam diretamente de seu niilismo reativo que elegeu o

próprio prazer sexual como único ídolo a ser cultuado. A

barbárie dissolvida no linguajar acadêmico do advogado

criminalista se atenua assim como o horror de seus crimes frente

ao intenso prazer que ele alcança com a prática do sadismo:


Aliás, que tipo de confissão é a minha? A
jurídica? No direito romano (já contei que sou
advogado? Sou criminalista, mas depois eu
falo sobre isso), a confessio in judicio ocorria
quando o réu confessava a autoria do crime,
sendo que o processo não chegava a se
instaurar para o julgamento da actio pelo
judex, bastava a confissão para que o réu fosse
executado, ele condenara a si mesmo:
confessus pro iudicato est, qui quadammodo
sua setentia damnatur. Ou a minha confissão é

431
religiosa: o sacramento da penitência?
(FONSECA, 2011, p. 194)

Por isso o narrador não encontra nem punição nem

arrependimento, preso à malha do prazer e enredado em seu

niilismo ele parte em busca de novas vítimas que sofrem o

mesmo destino trágico de Camila.

O último conto analisado possui um título que parece

remeter ao niilista negativo, aquele que se apoia em uma religião

para negar a realidade em busca de uma compensação futura ou

extraterrena: “Amar seu semelhante”. Trata-se de uma ironia

brutal, ou bárbara para usar a expressão de Schnaiderman, visto

que ela remete ao princípio cristão do amor ao próximo mas é a

narrativa de um sujeito que se descreve como um infeliz

(FONSECA, 2011, p. 187) mas que se torna paulatinamente um

cruel misantropo – que é aliás nome de outro conto no livro, a

misantropia pode também ser considerada um tema recorrente

na obra de Rubem Fonseca.

432
Esse conto foi escolhido para última análise pois uma

interessante mudança se opera em seu narrador anônimo de

primeira pessoa, ele começa como um niilista passivo e, à medida

que vai abraçando a misantropia e a violência, se transfigura em

um niilista reativo. Se o niilista passivo, aquele que é desprovido

da vontade de potência nietzschiana, flerta com a morte e o

suicídio, o niilista reativo, aquele que na ausência de um preceito

metafísico busca erigir em seu ego um novo ídolo, flerta com o

autoritarismo e a violência, o assassínio.

Os problemas desse infeliz e passivo niilista começam

quando as pessoas insistem em lhe repetir as mesmas queixas e

histórias, sempre. Enquanto o narrador se presta ao papel de

niilista passivo, nada muda, no entanto, as repetições exageradas

e o conteúdo das narrativas que recebe, sempre cheias de

preconceito e dor – um espelho do vazio niilista que assola a

sociedade massificada pós-moderna – faz nascer nele uma

aversão cada vez maior e mais irracional em relação à

humanidade. Vizentin (2013, p. 91) assinala que essa narrativa

433
possui um forte caráter político e moral, que ela mostra como na

sociedade atual predominam a introversão e o narcisismo,

aspectos que, vê-se na narrativa, compõe a faceta desse narrador

enquanto niilista reativo.

Após matar um dos contadores de caso que o

atormentavam, o narrador deixa seu aspecto passivo e constrói

para si uma personalidade reativa, passa a se enxergar como um

“vingador social” (VIZENTIN, 2013, p. 90), o conto se encerra

quando ele encontra numa praça deserta, à noite, outra figura

execrável, um vizinho misógino. O prazer descrito pelo narrador

é perceptível em seu discurso e mostra como ele está satisfeito

com seu novo papel, dir-se-ia lúbrico de vontade de potência:

Sempre dou uma volta pela praça durante a


noite. Ela está sempre deserta e isso em agrada.
Mas nesta noite vai me agradar mais ainda.
Quem eu encontro na praça, sentado num dos
bancos? O meu vizinho que sempre que me
encontra afirma que viver com uma mulher
burra é pior do que viver com uma mulher feia.
Sentei-me ao lado dele. Ele me reconheceu.

434
“Sabe de uma coisa” ele começou a me dizer,
“viver com uma mulher burra...” Fiquei
olhando fascinado para o pescoço dele. Magro,
raquítico, um apertão mais forte quebrava-lhe
as vértebras cervicais. Quantas são mesmo?
Sete. Conta de mentiroso? (p. 190)

Conclusão

Toda obra literária representa, sob algum aspecto, um

paradoxo, é uma ruptura e um reflexo ao mesmo tempo. O

próprio Rubem expõe discute essa noção por meio de um dos

narradores do livro, o narrador do conto que dá título ao volume,

“Axilas”:

Sei que alguém gostaria de me perguntar: você


fala de cu e boceta, mas usa axila em vez de
sovaco. Porque? A resposta é muito simples.
Cu e boceta tem a obscenidade fáustica, que
ainda resiste ao uso e abuso desses termos nos
dias atuais. Mas sovaco é uma palavra vulgar,
de uma trivialidade reles e fosca. (p. 27).

435
Ao mesmo tempo em que as narrativas apresentadas ao

longo do volume são chocantes, tanto no vocabulário duro e

grosseiro quanto na riqueza sádica de detalhes mórbidos, elas

são um reflexo dessa sociedade intensamente massificada e

niilista na qual se inserem. Eis aí onde se insere o projeto

filosófico de Vattimo (2016, p. 84), ele denuncia a ausência do

sábio (seja ele um filósofo ou teólogo) que domina as causas

primeiras e serve de guia para a sociedade como mote para

entendermos a desintegração dos valores eternos que antes

regiam o ocidente. O problema é que, se tomarmos os contos

analisados nesse volume de Rubem Fonseca, ao que parece,

predominam na sociedade brasileira atual apenas os três

primeiros tipos de niilista: negativo, reativo e passivo.

Como assinala Vattimo (2016, p. 8), “Deus está morto, mas

a notícia ainda não chegou a todos. (…) a metafísica acabou, mas

não é possível superá-la”. No que concerne ao Brasil, tão distante

fisicamente e culturalmente da Europa secularista, essa assertiva

parece ainda mais verdadeira. Eis então a razão do niilismo

436
negativo ainda ser tão presente em nossa cultura, aqui ainda

predominam igrejas cristãs, por mais que o catolicismo perca

forças dia a dia, e o pentecostalismo grassa em meio à população

excluída.

Além do mal do niilismo negativo, a vertente mais

alienante das quatro propostas por Nietzsche, há também uma

presença cada vez maior do niilismo passivo. É fácil percebê-lo,

por exemplo, quando o assunto é a desilusão política da nação.

Após o fim da ditadura militar, em 1986, o país passou por um

processo de abertura intelectual e social, modesto mas marcante,

que gerou certa euforia até idos de 2010, quando a crise

econômica e o desgoverno da nação voltaram a ficar evidentes.

A despeito dos escândalos de corrupção cada vez maiores, o

brasileiro se sente alheio e incapaz de tecer qualquer reação ao

males sociais que o afligem, apenas aguarda seu destino trágico

como a narradora de “Bebezinho lindo”.

A maioria dos personagens do volume escolhido, não

apenas dos contos em questão, se enquadram na categoria dos

437
niilistas reativos. São seres que, na ausência de um guia

metafísico para a vida, erigem outros ídolos em lugar do Deus

cristão. Geralmente, eles optam, como o narrador do conto

“Intolerância”, por seguir a economia de mercado como práxis

para a vida – ele enxerga as mulheres como “produtos” a serem

consumidos e descartados.

Ainda assim, em se tratando de convívio social, há ainda

um perigo maior que se pode adivinhar pela quase onipresença

da violência nas narrativas que se espelham na atualidade: a de

cada vez mais formarem-se niilistas reativos que, cegados pelo

consumismo egocentrista, se tornem sociopatas intolerantes,

como alguns dos personagens analisados neste artigo.

Para que se consumasse de fato o projeto do pensamento

fraco, não como uma simples relativização de ideais mas como

Vattimo (2016, p.98) afirma “uma ética explicitamente construída

em torno da finitude”, é necessário um homem além do bem e

do mal, um niilista ativo, um intérprete de sua realidade. Porém,

enquanto a educação for um valor acessível apenas a uma

438
pequena parcela da população, enquanto não houver políticas

públicas que promovam de fato a popularização do saber hoje

restrito à academia, não haverá niilistas ativos.

Referências:

FONSECA, Rubem. Axilas e outras histórias indecorosas. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

PECORARO, Rossano. Niilismo e pós modernidade: (introdução ao


“pensamento fraco” de Gianni Vattimo). Rio de Janeiro: Ed.
PUC-Rio: São Paulo: Loyola, 2005.

SCHNAIDERMAN, Boris. Vozes de barbárie, vozes de cultura: uma


leitura dos contos de Rubem Fonseca. In: FONSECA, Rubem. Contos
reunidos. Companhia das Letras, 1994, p.773-777.

VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

VIZENTIN, Alana. Os dissonantes mundos de Rubem Fonseca em


Axilas e outras histórias indecorosas. - Porto Alegre, 2013. 148f. Diss.
(Mestrado) – Faculdade de Letras, Pós-Graduação em Letras,
PUCRS, 2013. Disponível em:

439
<http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/4132/1/0004
48603-Texto%2bCompleto-0.pdf>.

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Terminou-se de preparar estes
Anais do 7º Seminário do GPLV e 2º Seminário de Linguística
em 14 de abril de 2017, tendo sido disponibilizado
no site dos Anais do GPLV e divulgado
no site do GPLV na mesma data.

A responsabilidade de cada artigo, no que se refere


ao teor, à formatação e à revisão do texto,
é do(s) autor(es) do mesmo.

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