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PREFÁCIO

“Um dicionário deve ser um ser vivo, uma


súmula de vida, mais um objeto de
aprendizagem que um objeto de luxo.”
José Lins do Rego. Poesia e vida: um dicionário.

Depois de muitos anos fora do mercado, vem à luz, agora pela Editora Contexto,
uma nova edição do livro Dicionário de semiótica, de Algirdas Julien Greimas e
Joseph Courtés. Este dicionário não é como os outros dicionários de linguística.
No seu título em francês, há um termo que indica isso: raisonné. Essa palavra
corresponde, em português, ao adjetivo razoado, que é um vocábulo desconhecido
e desusado e, por isso, não foi utilizado no título da edição brasileira.
Evidentemente, um dicionário raisonné tem como referência a célebre
Enciclopédia ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, publicada
de 1751 a 1772, sob a direção de Diderot e D’Alembert. Essa obra pretendia-se
uma síntese de todos os conhecimentos produzidos até então e, ao mesmo tempo,
uma reflexão sobre eles. Um dicionário razoado da ciência da linguagem, assim
como de qualquer outro domínio do conhecimento, não é como os outros, pois
não é uma lista heterogênea de entradas, recenseando todos os termos criados e
utilizados pela ciência da linguagem ao longo da História, cada um remetendo a
uma vizinhança conceptual diferente e a fundamentos teóricos divergentes. Um
dicionário razoado não é eclético. Ao contrário, ele faz uma reflexão sobre os
conceitos, inscreve-os no contexto teórico próprio, examina sua comparabilidade
com outros e analisa a possibilidade de uma homologação entre eles. Ele tem uma
direção teórica. Seu objetivo não é apresentar todo o conhecimento adquirido,
mas enunciar problemas e circunscrever um campo de saber e de investigação. Faz
uma síntese interpretativa do conhecimento em função da teoria que esposa.
O Dicionário de semiótica, de Greimas e Courtés, é um esforço de balanço do
estabelecimento da semiótica como campo do conhecimento. Saussure já propusera
a elaboração de uma teoria geral do signo, que seria chamada semiologia. É, no
entanto, Greimas quem lidera o projeto coletivo que transforma em realidade o
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desiderato saussuriano, não mais concebido como teoria geral dos signos, mas
como teoria geral da significação, que se debruça sobre os textos, considerados
como manifestação, que se apresenta em qualquer substância da expressão (verbal,
pictórica, gestual, etc.), de um discurso. Neste dicionário, estão, sob a forma de
verbetes, todos os conceitos maiores da teoria semiótica, os princípios gerais que
constituem sua base, os elementos que formam sua substância. Ao mesmo tempo,
aparecem conceitos de outras origens teóricas, mas sempre pensados a partir das
possibilidades de comparação e de homologação com as noções da semiótica. Essa
obra é um inventário dos termos utilizados pela semiótica no momento em que
ela foi redigida. Por isso, disse-se acima que se trata de um balanço. No entanto,
cabe lembrar, como mostrava Barthes ao estudar as pranchas da Enciclopédia, que
um inventário “não é uma idéia neutra, recensear não é somente constatar, como
parece à primeira vista, mas é também apropriar-se”. A apropriação é uma forma
de “fragmentar o mundo, dividi-lo em objetos finitos, submetidos ao homem na
proporção mesma de sua descontinuidade, porque não se pode separar sem nomear
e classificar” (Barthes, Roland. Nouveaux essais critiques. Paris, Seuil, 1972; Novos
ensaios críticos. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 27-41). Com efeito, há um ponto de
vista teórico a presidir à seleção dos termos e à elaboração dos verbetes, que contém
sempre uma síntese interpretativa do conceito em questão.
Uma teoria pode ser apresentada de modo contínuo, como uma exposição, ou
de maneira descontínua, como um dicionário. A primeira é a forma habitual de
expor uma doutrina. No entanto, como lembram Greimas e Courtés, isso exige
que todos os seus pontos tenham o mesmo nível de elaboração teórica. Já a
apresentação descontínua permite pôr lado a lado segmentos metalinguísticos cujo
grau de elaboração e de formulação é muito desigual. Evidentemente, ela tem o
grave inconveniente de que o corpo dos conceitos é exposto de maneira dispersa,
porque eles são organizados alfabeticamente. Para evitar isso, o dicionário apresenta
um duplo sistema de remissões: a) a termos colocados no final do verbete; b) a
vocábulos marcados com asterisco. Assim, o dicionário permite três percursos de
leitura: 1) a leitura alfabética, que é utilizada para consultar o significado de um
termo em semiótica ou a maneira como ela vê uma noção de outra teoria; 2) a
leitura do verbete e daqueles que têm como entrada os termos indicados ao final,
que formam um conjunto de imbricações conceituais e são, assim, verdadeiros
artigos (por exemplo: enunciação: ato de linguagem, debreagem, competência,
intencionalidade, enunciado); 3) a leitura do verbete e daqueles que se referem a
vocábulos indicados com asterisco, que permite situar o termo no interior de um

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componente da teoria, dando a ele um lugar epistemológico. Essas leituras cruzadas

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constituem caminhos ou rotas de viagem, que remetem à ordem enciclopédica, à
organização razoada. São caminhos sugeridos. São indicações de passeios. Cabe ao
leitor percorrer o dicionário como quiser, porque ele autoriza numerosos percursos.
É um verdadeiro hipertexto.
Além disso, a apresentação da teoria em ordem alfabética, que admite, com
mais facilidade, exclusões, alterações, acréscimos, indica, como dizem Greimas e
Courtés, uma ideologia do saber. Um projeto científico, para eles, só têm sentido
se for um objeto de busca coletiva. Por outro lado, deixa-se claro que a ciência não
está nunca acabada, que ela não apresenta jamais formulações definitivas, que ela
não é feita de certezas, mas que comporta determinadas permanências de objetivos.
Um dicionário, diz José Lins do Rego, é um ser vivo. Um dicionário científico,
como todo e qualquer discurso, deixa ver seu direito e seu avesso: o que afirma e o
que recusa. Assim, estão presentes na obra de Greimas e Courtés as grandes
polêmicas científicas do século XX. Dele podemos extrair mil histórias (afinal, a
narratividade é um dos componentes do percurso gerativo de sentido de todo e
qualquer texto): as da criação de um campo do saber, com seus impasses, suas
conquistas, suas derrotas; as da sua filiação teórica; as das exclusões e as das
recuperações; as da constituição de um espaço discursivo e de um campo
discursivo... Estão aí os gestos teóricos primeiros, com suas delimitações e cortes
bem precisos, mas, ao mesmo tempo, subjaz a ele o desejo da totalidade. Este
dicionário é uma história da semiótica da época em que foi escrito (estão de fora
desenvolvimentos posteriores como a semiótica tensiva, a semiótica das paixões, a
problemática da presença, etc.), mas é, ao mesmo tempo, um instrumento ainda
não superado de compreensão das aquisições da semiótica e também de
apresentação de possibilidades e perspectivas de trabalho. Portanto, ele está, ao
mesmo tempo, voltado para o passado e orientado para o futuro. É um mapa que
nos permite navegar pelo universo da significação, perdendo-nos, encontrando-
nos, desconstruindo, reconstruindo, hesitando, duvidando, tendo certezas,
provisórias é verdade, mas certezas. Este dicionário não fecha, abre rotas, sendeiros,
caminhos... Ele desafia a imaginação dos pesquisadores, incita-os ao trabalho
acadêmico. Pelo seu rigor, é exigente; pela amplitude de horizontes, é instigante.
Ele não fala só ao pensamento; ele propõe-se, principalmente, a despertar a paixão
do conhecimento rigoroso, mas elegante.
É preciso demorar-se sobre ele, com a paciência do conceito, é necessário
saboreá-lo para não dizer inverdades e difundir preconceitos sobre a semiótica. Ela
não é uma fôrma em que se enfiam todos os textos. Só quem não sabe semiótica é

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capaz de dizer isso ou apresentar análises escolares que dão a entender isso. Ela não
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recusa a História, mas, segundo lição de Hjelmslev, recupera-a a partir de um


princípio de imanência. A semiótica, com seu modelo teórico, que leva em conta
acima de tudo a previsibilidade, é uma ciência absolutamente necessária em nossa
época, em que novos objetos textuais, nos quais os sentidos se manifestam por
meios de diferentes planos de expressão, ganham um relevo muito grande por
causa da rede mundial de computadores. Afinal, ao se pretender uma teoria geral
da significação, ela levava em conta todos os tipos de texto, entre os quais, os
sincréticos. É para a aventura do conhecimento de nosso mundo, com suas novas
maneiras de textualizar, que este dicionário nos convida, nos desafia, nos aparelha.

São Paulo, inverno de 2008.


José Luiz Fiorin

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