Você está na página 1de 11

O PROFETISMO EM ISRAEL

Um estudo preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho o campus avançado do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, em
Cabo Frio, agosto de 2004

Antes de falarmos dos profetas é precisamos compreender o que foi o profetismo em Israel,
para sabermos, com mais exatidão, quem foram eles. Primeiro, o movimento, em si. Depois, as
pessoas que compuseram o movimento. Se não fizermos assim, corremos o risco de discutir um
assunto que não terá ficado bem definido, tamanha a diversidade de conotações que o termo recebe
em nossos dias. E então não chegaremos a um ponto proveitoso em nossa análise.
Para algumas pessoas, em nosso tempo, o profeta é uma pessoa que adivinha coisas 1.
Profecia, nesta ótica, é adivinhação. É assim o conceito secular, no entendimento de pessoas sem o
conhecimento do sentido bíblico do termo. Isto acontece também em alguns grupos carismáticos e
neopentecostais: profetizar é fazer revelações, algumas delas absolutamente sem sentido, sobre a
vida das pessoas.
Este era o conceito de profeta entre os pagãos. A lecanomancia (leitura do futuro pela figura
do azeite derramado numa taça sagrada), a hepatoscopia (a leitura do futuro pelos riscos do fígado
de animais sacrificados aos ídolos), o uso de árvores sagradas, como os cananeus faziam com os
carvalhos (vide o carvalho de Moré, em Gênesis 12.6 - Moreh, em hebraico, significa “mestre”),
sonhos após alucinógenos, a interpretação do vôo dos pássaros, tudo isto fazia parte do ofício
profético pagão. O profeta pagão não trazia uma mensagem com fundo moral e ético. Apenas
buscava descobrir o futuro para orientar os reis sobre guerras a declarar, alianças políticas a fazer ou
decisões por tomar, como os adivinhadores e os sábios de Faraó, em Gênesis 41.8.
Alguns pastores e pregadores gostam muito do termo “profeta” e gostam mais ainda de usá-
lo para si, para terem o direito de falarem o que querem, arrogando-se a famosa “voz profética”.
Via de regra, quando alguém alega ter “voz profética”, fico temeroso. Já sei que “vem chumbo”
nos outros. É uma postura arrogante de quem emite conceitos sobre a vida alheia com muita
facilidade, e não raro, descurando da sua, pessoal.
O que, exatamente, é um profeta? O que é profecia? O que o Antigo Testamento nos ensina
sobre estes dois termos?

1
Esta é, por exemplo, a linha seguida por Hal Lindsey em A Agonia do Grande Planeta Terra, num capítulo
intitulado “Quando Um Profeta é Profeta?”.
1. EM BUSCA DE DEFINIÇÃO
A terminologia hebraica nos ajuda a responder algumas dessas questões. Comecemos pelo
primeiro homem chamado de “profeta”. Surge, com ele, o primeiro termo hebraico, navi 2. É
Abraão, em Gênesis 20.7, no testemunho que o próprio Deus dá a Abimeleque: “restitui a mulher a
seu marido, porque é profeta”. O primeiro homem visto como profeta nacional, navi também, é
Moisés. Ele se torna, inclusive, o padrão para os demais profetas. Em Deuteronômio 18.15 se lê: “o
Senhor teu Deus te suscitará um navi como eu, do meio de ti, de teus irmãos. A ele ouvirás”. Esta
palavra é digna de nota porque é a única referência, na lei, à profecia como instituição. Este
momento requer nossa atenção, porque Moisés nos é mostrado como o padrão profético.
O sentido do termo é disputado, mas parece vir do verbo nivva, que teria vindo do acadiano
navvu, que significa chamar, nomear. O verbo nivva significaria, então, o ato de designar alguém
como arauto. Neste sentido, o primeiro significado bíblico para profeta, no Antigo Testamento,
seria o de proclamar, o de anunciar, fazendo assim o papel de um arauto. Seu uso acontece um
pouco mais que trezentas vezes, sendo que quase um terço das ocorrências está em Jeremias.
Mas quando olhamos a vida de Abraão, não o vemos como um arauto. O sentido de Gênesis
20.7 é muito mais o de um homem que tem uma relação especial com Deus: “ele rogará por ti para
que vivas”. E quando olhamos a vida de Moisés vemos que a característica maior de sua vida não
foi adivinhação. Ele, sim, foi mais um arauto, embora faça alguns descortinos do futuro. Mas ainda
não temos, neste momento, no Antigo Testamento, a noção de profeta como um descortinador do
futuro, como veio a acontecer depois em Israel e como alguns presumem, hoje, ser o sentido
exclusivo da palavra. O primeiro navi tem uma relação especial com Deus e é um peregrino. O
segundo navi também tem uma relação especial com Deus. É peregrino, também, mas já é arauto, o
que o primeiro não foi.
O segundo termo hebraico para “profeta” é ish Elohim, homem de Deus. Não é um título
auto-apregoado a si mesmo de forma triunfal. Era um reconhecimento que os outros faziam do
profeta. O termo aparece 76 vezes no Antigo Testamento e quase na metade das vezes é aplicado a
Eliseu. Não é que ele seja o padrão, mas parece ser o estilo do redator da história de Eliseu o de
apreciar o termo e empregá-lo com assiduidade. Parece mais questão de jeito do autor bíblico se
expressar. O ish Elohim é mostrado como uma pessoa de confiança de Deus e as pessoas vêem
isso na sua vida. Não é ele quem se proclama assim. Na realidade, o profeta não alardeava sua
condição de profeta. As pessoas viam isso. O profeta, e valha-nos isso, tinha uma autoridade que o

2
As transliterações usadas nesta palestra seguirão sempre a sugestão de Mitchel, na obra Estudos no
Vocabulário do Antigo Testamento (Edições Vida Nova).
tornava alguém credenciado. Ele não precisava de “carteirinha da Ordem dos Profetas”. A sua
credencial era o seu caráter.
O terceiro termo, na realidade, é expresso por duas palavras hebraicas: ro’eh e hozeh. Eles
se intercambiam no uso e têm, ambas, o sentido de vidente. Ro’eh, o termo mais comum, deriva do
verbo “ver”. Um dos seus usos está em Amós 7.12 onde Amazias chama a Amós de ro’eh: “Vai-te,
ó vidente (ro’eh), foge para a terra de Judá, e ali come o teu pão, e ali profetiza”. Isto me
impressiona. Amazias resistiu a Amós, mas sabia que ele via as palavras de Deus. Sempre pensei
que Amazias estivesse sendo irônico, até que compreendi que não. Ele sabia que seu oponente era
um homem de Deus e o expulsou de sua terra.
Nem sempre o termo está associado com vidência. Algumas vezes é uma interpretação dos
eventos ou a compreensão de algo mais profundo numa visão comum. Jeremias vê um oleiro
fazendo um vaso e compreende a relação entre Iahweh e Israel (18.1-4). Vê uma vara de
amendoeira florescendo (1.11-12) e faz um trocadilho: ele vê uma “amendoeira” (shaqed) que soa
parecido com “vigilante” (shoqed). A amendoeira floresce quando capta o aumento da umidade do
ar. Está pronta para lançar as folhas, novamente. Ela vigia, ela shoqed o ar. Assim Deus está shoqed
com sua palavra. Ninguém veria isso, mas o profeta vê. Ele vê uma panela fervendo, na parte norte
(1.13-15). Estava vazando. Ele vê a ira de Deus fervendo e pelo norte, de onde vem um inimigo.
Não tem sentido algum para o homem comum, mas tem para ele. O profeta vê o que os outros não
vêm. Chamaríamos isso, hoje, de discernimento. Lá estão os homens a brincar com o pecado, a
sociedade a relaxar seu padrão de conduta, a moralidade baixar assustadoramente. Tudo normal.
Pensa-se na união conjugal de homossexuais, na descriminalização de drogas, na liberação total de
costumes, tudo isso mostrado como tolerância e progresso. Os oponentes sofrem um massacre da
mídia, controlada por pecadores. O profeta vê as conseqüências, vê o que os outros não conseguem
ou não querem ver. Sabe que isso trará a ruína da nação. O profeta é, quase sempre, uma voz contra
a multidão, um solitário, um rejeitado. É um crítico do seu tempo e muitas vezes é rejeitado e
incompreendido por causa disso. Jeremias é o modelo clássico do profeta solitário. O capítulo 16
de seu livro, por exemplo, mostra-o como um homem isolado, sem companhia humana calorosa,
com quem repartir a vida: “não tomarás mulher, não terás filhos nem filhas neste lugar” (v. 2). Era
um símbolo da solidão do povo, mas era sua vida pessoal que provava a solidão.
A LXX traduz os três termos, navi, ro’eh, hozeh por prophetês, vendo-os numa direção,
apenas. É o termo que o Novo Testamento utiliza quase cento e cinqüenta vezes. O sentido é “falar
por alguém”.
Também são usados, comumente, mas menos vezes mais três termos hebraicos: sophi’im,
significando atalaia (Jr 6.17; Ez 3.17; 33.2,6,7); shomer, significando atalaia, sentinela, guarda (Is
21.11,12; 62.2) e raah, significando pastor (Jr 23.4; Ez 34.2-10; Zc 11.5,16). Não têm, no entanto, a
repetição e a singularidade dos termos anteriores.
Já andamos um pouco em nossas considerações: o profeta é um homem de Deus, por ele
comissionado, é um homem que vê além dos demais, que tem descortino, que entende, que vem
como arauto. É também uma sentinela de serviço e um pastor, que cuida do rebanho. Sabe como as
coisas devem ser e sabe das conseqüências de não serem como devem. Tem uma relação de guarda
com o povo de Deus, adverte e ensina. Nem sempre é benquisto, mas mesmo assim segue com seu
trabalho. Como Lutero, na sua famosa palavra de ruptura com a Igreja de Roma, ao recusar retratar-
se de seus escritos e pregações, é cativo de sua consciência abalada pela palavra de Deus.

2. A FUNÇÃO DA PROFECIA
Devo este tópico a Archer 3, mas é necessário fazer um reparo a seus argumentos. Ele alista
quatro funções básicas da profecia entre os hebreus. Elas são válidas, apesar do reparo que pretendo
fazer, e permanecem como balizadoras da função profética em nosso tempo.
1ª) O profeta tinha a responsabilidade de encorajar o povo de Deus a confiar
exclusivamente na sua graça, no seu poder. Isso Moisés fez: ensinou que a segurança de Israel
estava no poder de Deus, não em Israel. Os profetas das épocas de crise em Israel e Judá também: a
nação deveria confiar em Iahweh e não no Egito ou na Assíria. Veja-se, como exemplo, a
insistência de Oséias em afirmar que o Egito e a Assíria não salvariam Israel. Aliás, a Assíria
acabou destruindo Israel. O profeta é um encorajador do povo de Deus a confiar nele, somente nele.
2ª) O profeta tinha a responsabilidade de avisar ao povo que sua segurança dependia de
fidelidade à aliança, ao berith. Moisés e os grandes profetas agiram assim. É bom afirmar que os
profetas não pregaram uma mensagem nova, mas reafirmaram os grandes conceitos da aliança. O
profetismo não trouxe uma mensagem inédita, mas apenas um chamado à fidelidade à aliança
firmada com Iahweh e que culminara na outorga da lei. Ele não criou conceitos, mas revigorou os
do passado. O profeta olhava para o passado, para a aliança. O profeta contemporâneo também deve
advertir a Igreja para se manter fiel ao novo berith, que Jesus firmou com seu sangue (Mt 26.28).
3ª) O profeta devia encorajar Israel quanto às coisas futuras. Mesmo anunciando o juízo,
os profetas avisavam que haveria um remanescente, que teria a missão de trazer o messias ao
mundo. O profeta era um criador de esperanças, um anunciador de que o povo tinha um futuro, e
devia se preparar para ele. O profeta olhava para o futuro. O profeta contemporâneo também deve

3
Veja sua obra Merece Confiança o Antigo Testamento? (Edições Vida Nova).. Seu arrazoado está às
página 334-337.
avisar a Igreja sobre o seu futuro de glória, mesmo que no momento presente seja ela enxovalhada
pelo mau testemunho de alguns dos seus membros e seja acuada pela pressão de um mundo ímpio.
4ª) A profecia se autenticava, em termos de previsão, quando se cumpria. Archer mostra
Deuteronômio 18.21-22: se o que o profeta falasse não se cumprisse, a mensagem não era de Deus.
Isto é óbvio, pois Deus não mente nem se engana. Mas o simples cumprimento não basta para
autenticar uma profecia. Quem falou com Saul quando ele consultou a médium em En-Dor não foi,
obviamente, um profeta divino, mas o que a entidade consultada falou se cumpriu. Deuteronômio
18.22 diz que quando o que for falado não se cumprir, isso não é de Deus. Está certo. Mas o
capítulo 13 mostra que se o profeta falar, o que ele falou se cumprir e ele se aproveitar disso para
desviar o povo da Palavra, ele deveria ser morto. É o ensino presente em 13.6-9. O padrão para se
avaliar a profecia e o profeta não é o cumprimento do que foi falado, mas se aquilo que ele falou
está em conformidade com a Palavra de Deus. O padrão autenticador é a Palavra.
Isto nos põe diante de uma verdade que não se pode ignorar: o profeta deve ser escravo da
Palavra. O profeta é o homem que se prende à Bíblia, fala o que ela fala, não a diminui, não a
ultrapassa. E deve encorajar o povo a permanecer fiel no compromisso com Deus, a confiar nele e a
se lembrar de sua missão neste mundo.
No Novo Testamento encontramos profetas na Igreja e a profecia é mostrada como sendo
um dom. O contexto é diferente do encontrado no Antigo Testamento e também diferente até
mesmo do nosso tempo. Temos um profeta que vaticina, mostrando o que aconteceria com Paulo
(At 21.11-12) e vemo-lo profetizando uma grave fome no Império Romano (At 11.27-30). Mas o
básico está aqui: a Igreja está edificada sobre o fundamento dos “apóstolos e profetas” (Ef 2.20),
como a comunidade do passado, Israel, estava edificada sobre “sacerdotes e profetas”. O
sacerdotalismo judaico, que é o levitismo do templo, cede lugar à Palavra. Os profetas faziam o
papel da Palavra ainda não concluída. Como aconteceu com os profetas neotestamentários: eles
eram a voz de Deus naquele momento. Temos a Bíblia como voz de Deus hoje. O profeta deve
saber interpretá-la e deve saber comunicá-la. Nunca deve ultrapassá-la ou complementá-la. A
menos que pense que ela está incompleta ou que ele, o profeta, tenha revelações que se igualam aos
ensinos dela. Na realidade, o papel do profeta de hoje, creio que deve ser buscado mais no Antigo
Testamento, onde está mais sistematizado e cristalizado. E, mutatis mutandis, buscar, a partir do
encontrado no Antigo Testamento, e projetar para como deve ser hoje. Muito do estilo de culto da
Igreja foi calcado na sinagoga surgida no período exílico. Alguns, hoje, se intitulam de levitas. E, à
luz dos livros históricos iniciais do Antigo Testamento, outros querem trazer até danças para o
culto. Nosso culto foi herdado da sinagoga: cânticos, orações e proclamação da Palavra.
Embora nas listas de dons de 1Coríntios 12 e Efésios 4 se encontrem referências aos
profetas, em lugar algum do Novo Testamento alguém é estabelecido como profeta ou ungido ou
separado como tal. Parece que o ofício profético está mais ligado a uma comunidade local, a uma
igreja local, como edificador, em diferença do profeta do Antigo Testamento, que é um andarilho,
com visão e ministério além de sua “paróquia”. Pode-se aplicar 1Coríntios 14.4b aqui: “aquele que
profetiza edifica a igreja”. Devemos ter em conta que a palavra “igreja”, no Novo Testamento,
nunca alude a uma instituição, mas a uma comunidade local de cristãos. Este é o sentido
prevalecente do grego eklesia. O profeta era mais um edificador da igreja local do que um ledor de
futuro. O Didaquê, obra da igreja primitiva que pode ser dada como de produção ao redor do ano
90 de nossa era (parece anteceder, inclusive, ao evangelho de João), e que é considerado como um
manual de doutrina da igreja primitiva, diz o seguinte, sobre o trabalho de mestres itinerantes na
vida das comunidades cristãs da época: “Todo apóstolo que venha vós seja recebido como o
Senhor, porém não permanecerá mais que um dia, e se houver necessidade, ainda o outro dia; mas
se permanecer três dias, é um falso profeta. E tendo saído o apóstolo nada tomara para si, a não ser
pão, até o próximo alojamento. Mas se pede dinheiro é um falso profeta” (11.4-7). Não estou
declarando o Didaquê como inspirado, como os escritos do Novo Testamento, mas reconhecendo-
o como documento histórico e como manual de doutrina da Igreja. A conexão que ele faz entre
apóstolo, profeta e pregador itinerante é interessante, bem como o método para descobrir se é falso
o apóstolo ou profeta ou pregador itinerante (sinônimos?): se busca levar vantagem no exercício de
sua função.

3. TIPOS DE PROFETAS
Sem nos determos muito neste tópico, mas apenas para completarmos o quadro, alisto aqui
alguns tipos de profetas mostrados no Antigo Testamento:
1º) O vidente, aquele que vê coisas escondidas, como Samuel, por exemplo. Ele sabia onde
estava a jumenta extraviada de Saul (1Sm 9).
2º) O profeta individual, clássico, que mesmo não sendo convidado pelo povo, adverte-o
sobre seus pecados. Geralmente é o tipo que mais rapidamente vem à nossa mente.
3º) Os profetas de corporações, produto das chamadas escolas de profetas. Geralmente
tinham um chefe ao redor do qual se agrupavam. Como foi com Elias, chefe de uma escola (2Rs
2.3), e com Eliseu, que tinha também discípulos, como Geazi, e uma escola (2Rs 4.1). Há, neste
aspecto, o caso de Saul, encontrado “no meio dos profetas” (1Sm 19.18-24). Este episódio merece
uma observação: o Espírito de Deus veio sobre Saul, que despindo sua túnica, profetizou diante de
Samuel, e permaneceu deitado, sem ela, um dia e uma noite, diante de Samuel. Mas a rigor, dizer
que Saul profetizou, como um profeta bíblico, é questionável. Valham-nos aqui as palavras de
Hoof: “Não há nada que indique que ele tenha profetizado como um profeta de Deus. A melhor
alternativa é traduzir o termo ‘profetizar’ nesta ocasião como ‘ficou em transe profético’” 4.
Havia grupos de profetas como este, cheios de zelo, “profetizando” ao som de música e em
dança (1Sm 10.5-13 e aqui, neste texto). No dizer de Bright, “eles representavam um fenômeno
muito comum no mundo antigo, com paralelos entre os cananitas e até mesmo na Anatólia e na
Mesopotâmia” 5. Tais grupos eram autênticas ordens proféticas, com profundo senso político,
vivendo em comunidades (2Rs 2.3-5 e 4.38-44), sustentados por ofertas (2Rs 4.42), comandados
por um líder (2Rs 6.1-7), vestidos de pêlos (2Rs 1.8), que se tornaram seu “traje oficial” e,
possivelmente, identificados por uma marca na testa (1Rs 20.41). Enlevados pela música e pela
dança, entravam em êxtases. Parece que o clima altamente emotivo do grupo envolveu a Saul, cujo
estado emocional já não era dos mais seguros, mostrando o texto bíblico seu profundo desequilíbrio
no momento. Evidentemente, tal prática não pode ser modelo para os profetas. Tais eventos
representam um momento em que a Palavra do Senhor era escassa. É o que se lê em 1Samuel 3.1.
Eruditos como Bright dão Samuel como fundador de tais ordens, surgidas exatamente pela ausência
de revelação.
No entanto, hoje em dia, os estudiosos têm questionado muito este conceito de “uma
escola de profetas”. Veja-se esta citação de MacRae:

Não há evidências bíblicas da existência de grupos de homens


treinados para serem profetas. Deus chamava os profetas como
indivíduos. Isto foi verdade com Moisés, Samuel, Isaías,
Jeremias, e em muitos outros casos onde há registro de chamada.
A obra profética era uma atividade individual, em que cada
homem recebia uma mensagem vinda de Deus e a transmitia ao
povo de Deus. Somente num sentido mais amplo é que o termo
“profeta” se aplicava a grupos de pessoas 6.

Havia um esforço para se buscar a Deus, como entre os profetas pagãos, mas a revelação
de Deus ao profeta era rara. A falta do templo nacional em Israel, com o ensino da Torá
impossibilitado pela ausência dos levitas, talvez explique o fenômeno desses agrupamentos.
Afinal, as chamadas “escolas” aparecem no Norte, em Israel: Ramá, Betel, Gilgal, Jericó e
Samária. Eram um fenômeno mais comum em Israel que em Judá. Eram muito mais
agrupamentos de pessoas ouvindo os ensinos dos profetas, e não, necessariamente, escolas no

4
Hoof Os Livros Históricos (Vida), p. 127
5
Bright, História de Israel, (Paulinas), p. 241
6
Veja-se seu tópico “Prophets and Prophecy”, na obra de Tenney (ed.), The Zondervan Pictorial
Encyclopedia of the Bible (Zondervan)..
sentido que o termo tem. Parece que nem sempre eram bem vistas, posto que Amós fez questão de
dizer que não era “filho de profeta” (Am 7.14-15). Ele rejeitou a identificação com qualquer grupo,
não vendo isso como mérito ou credencial. Assim, me parece que aplicar o termo aos nossos
seminários teológicos não é um uso muito correto. Não havia um “seminário de profetas”,
ensinando disciplinas curriculares. O ser profeta não dependia de um curso, mas de uma chamada
de Deus. E as escolas de profetas apenas supriam, no Norte, a ausência da Torá.
Havia, neste caso de profetas de corporações, os profetas da corte, os conselheiros do rei,
que deveriam orientá-lo, mas que muitas vezes diziam o que o rei queria ouvir. Veja-se a polêmica
entre Amazias e Amós, como exemplo (Am 7). Amazias era um profeta da corte.
4º) Os profetas do culto, parte do pessoal do templo. Alguns dos salmos de louvor e de
proclamação devem ter sido compostos por eles, como o 85, por exemplo, onde se lê “salmo dos
filhos de Corá”.
5º) O profetismo messiânico-escatológico, que não aparece muito no Antigo Testamento, a
não ser em Ageu e Zacarias (um pouco menos em Malaquias), mas que originou os pseudepígrafos
e que se revela de forma mais ampla nos escritos de Qumran, com o chamado Mestre de Justiça.

4. PONTOS NORTEADORES DA MENSAGEM PROFÉTICA


Há algumas balizas na mensagem profética do Antigo Testamento. Ela não é uma colcha de
retalhos, onde cada um diz o que quer e vai acrescentando um pouco mais. Ser profeta não é dirigir
desaforos ao povo, produto de um temperamento megalomaníaco. Muitos profetas, hoje, precisam
de tratamento ou de educação. O profeta não é um temperamental emburrado. A angústia de
Jeremias mostra um homem que vê o que está por acontecer ao seu povo e que sofre com isso. Ele
não se alegra com a desgraça, mas chora por causa dela: “Ah! Meu coração! Meu coração! Eu me
contorço em dores. Oh! As paredes do meu coração! Meu coração se agita! Não posso calar-me,
porque ouves, ó minha alma, o som da trombeta, o alarido de guerra” (Jr 4.19).
1º) O profeta verdadeiramente profeta é um instrutor do povo de Deus dentro da Palavra de
Deus. Ele ensina os preceitos da aliança, e proclama, em nome de Deus, a maneira correta de
proceder. Ele fala não apenas em nível individual, mas também em nível coletivo. Mostra os
pecados de pessoas e de instituições. Isto deve nos alertar. As instituições, políticas, religiosas ou
denominacionais, também sofrem os efeitos do pecado. O profeta denuncia o pecado individual e
estrutural e aponta o caminho correto: arrependimento. A crise de alguns segmentos de nossas
denominações e de outros órgãos evangélicos não deve ser camuflada nem varrida para baixo do
tapete. Muitas dessas instituições se portam de maneira imperial na forma de tratar as igrejas locais,
lembrando-se delas apenas quando precisam de ofertas para equilibrar contas mal administradas. Se
há pecado, se há malbaratamento de recursos, se há desonestidade, ou simplesmente incompetência,
isso deve ser tratado como tal. O profeta não se conforma com o pecado estrutural, também. Os
profetas bíblicos não denunciavam apenas os pecados de Assíria, Egito e Babilônia, mas também os
do povo de Deus. Não só de pessoas, mas da instituição. Assim devemos fazer.
2º) O profeta verdadeiramente profeta interpreta os acontecimentos históricos, Muita
insensatez já foi dita em termos de marcação de datas, de interpretação errada, de apocalipticismo
precipitado 7. Infelizmente, o alinhamento dos planetas, o Mercado Comum Europeu, Sadam
Hussein, e outros menos votados já propiciaram uma enxurrada de literatura de ficção escatológica,
que, também infelizmente, tem sido levada a sério por muitos. Mas o profeta é o homem que vê
para onde a história vai. Para nós, hoje, isto significa a necessidade de formar uma cosmovisão
bíblica, entender a história pela Bíblia, de pesquisar, ler, refletir. Já se disse que o verdadeiro
teólogo tem a Bíblia em uma das mãos e o jornal diário em outra. Isto não é para fazer previsões
atabalhoadas, mas sim para buscar entender o mundo pela Bíblia. O profeta é sentinela da história,
conhece a outra face dos acontecimentos humanos e sabe da transcendência do acontecer e do fazer
humano. Consegue ter uma visão global da história e dos eventos, não os vendo de forma atomizada
e descontínua.
3º) O profeta denuncia, acusa e condena. Ele se enche de indignação contra os erros do
mundo. Infelizmente, as denominações com mais capacidade de eleger crentes para postos políticos
são as neopentecostais, quer pela quantidade de membros quer pelo voto de cabresto. Mas a
política é vista por eles como troca de favores, como um ato de eleger despachantes eclesiásticos
para beneficiar as igrejas. Deveria ser vista como eleger pessoas que se aferrassem aos padrões
evangélicos, que os vivessem e que os proclamassem. Os constantes escândalos envolvendo
políticos evangélicos deveriam suscitar sérias reflexões de nossa parte. Mas a impressão que se
passa é que todos foram fascinados pelo sistema e absorveram algumas práticas, que precisariam
ser analisadas criticamente, com muita facilidade. Um profeta tem visão social, tem consciência
sensível aos desmandos do poder, não se compra nem se vende, nem se aluga. Não se filia a grupos
ou partidos, mas tem consciência crítica. Por isso não deixa de sentir indignação diante de
acontecimentos políticos que vê não estarem corretos.
4º) O profeta é um consolador. Ao mesmo tempo em que anuncia o juízo e chama ao
arrependimento, traz a mensagem de Isaías 40.1: “Consolai, consolai o meu povo”. Ele mostra as

7
Exemplos desta atitude podem ser vistos em duas obras populares, como O Alinhamento dos Planetas, de
Lawrence Olson (editado pela CPAD), em que o satélite artificial norte-americano, Skylab, chegou a ser
mostrado como um sinal eminente da volta de Cristo, e na obra citada de Lindsey (Mundo Cristão), em que a
falecida União Soviética e a possível Comunidade Européia de dez nações (já são vinte e cinco) são
promessas de Deus, o que ele pode fazer para restaurar os que sofrem. O profeta não é apenas
anunciador de catástrofes, como alguns presumem, mas é o arauto de um novo tempo, é pregoeiro
do amor e da misericórdia de Deus, mostra o que ele pode fazer na vida das pessoas. Tem uma
palavra de estímulo, também. E isto, em nosso contexto contemporâneo, é muito necessário de
praticar. O mundo sofre e necessita de esperança e de conforto.
O profeta tem uma personalidade multifacetada, exibindo vários ângulos. Sabe discordar,
sabe denunciar, sabe condenar, sabe confortar, sabe ensinar, sabe interpretar, sabe estimular. Não é
um fanático ignorante deblaterando coisas inúteis, mas um homem que entende o mundo e sabe
como analisá-lo. E, tendo convicção de que é assim que Deus deseja as coisas, prende-se a isto.

5. E NÓS, COMO FICAMOS?


Se almejamos ser profetas, temos que compreender bem o que é um profeta. Não é um
megalomaníaco, exaltando suas virtudes ou criando um fã-clube que o aplaude. Aliás, muitos dos
“profetas” e “profetisas” contemporâneos não têm rebanho, mas fã-clube. É chocante e deprimente
o culto à personalidade no cenário evangélico contemporâneo. Sou obrigado a concordar, in totum,
com as palavras de Wiersbe:
O evangelho tornou-se um alto negócio, e toda a sorte de
estranhos pássaros estão empoleirados nos seus ramos. O culto
da personalidade tornou-se um círculo vicioso, e estamos agora
promovendo ministérios e mercadorias do mesmo que o mundo
promove pasta de dentes e carros usados. 8

O profeta não monta uma máquina publicitária para catapultar seu nome. Não trabalha com
seu nome em gás néon. É um homem de Deus, a serviço de Deus, não a serviço de suas próprias
idéias e sentimentos. Jeremias chorou a mensagem que pregou. Jesus chorou por Jerusalém. O
profeta é escravo da Palavra e da mensagem. Subordina-se a elas. Ela o invade e domina.
Segundo, precisamos de integridade pessoal. Ser voz discordante, não ser cooptado pelo
sistema e ser uma voz denunciadora exigem um caráter sério. Não encontramos os profetas vivendo
de maneira leviana. Nem buscando vantagens ou riquezas pessoais. É oportuno retornamos ao
Didaquê, agora no capítulo 11, versículo 10: “Todo profeta que ensina a verdade, se não pratica o
que ensina, é falso profeta”. Profetas autênticos são homens sérios, íntegros, possuídos por
convicções divinas, e de vida limpa. Não têm, como se diz popularmente, “rabo preso” com
ninguém. Não são cooptados pelo sistema nem se subordinaram ao poder público.

mostrados como sinais da volta de Cristo. Sobre isto veja o artigo “Reflexões sobre profecias humanas”, de
minha autoria, no site da Igreja Batista do Cambuí: www.ibcambui.org.br.
8
Wiersbe, Crise de Integridade (Vida), página 33.
Terceiro, precisamos entender o nosso tempo. Não se confunda profetismo com possessão
espírita. O profeta é um homem em posse de suas faculdades intelectivas, consciente de si. Não é
alguém possuído por uma entidade que o deixa fora de si, como se fosse um médium espírita. Ser
tomado pelo Espírito de Deus não invalida a pessoalidade. “Os espíritos dos profetas estão sujeitos
aos profetas” (1Co 14.32). Ser profeta não invalida estudar, refletir, amadurecer, crescer espiritual e
teologicamente. O profeta mantém-se como pessoa e deve se esmerar para desenvolver-se como
pessoa. Alguns profetas contemporâneos deixaram de ser gente. São criaturas humanas horrorosas.
Outro problema em nosso cenário, além do culto à personalidade, é o narcisismo, com uma
incrível exibição de arrogância espiritual. O que há de “santo homem de Deus”, “canal especial de
Deus”, “homem de palavra poderosa” trombeteado em programas evangélicos de rádio e televisão e
revistas evangélicas é constrangedor e vergonhoso. Isto encobre as deficiências de “profetas” que
mal conseguem articular uma sentença gramatical correta, que emitem conceitos desconexos, mas
que se colocam acima do bem e do mal, imunes às críticas. Afinal, têm “linha vermelha” com Deus
e não precisam de mais nada. São os especiais de Deus. Como gritam bem, providos que são de voz
forte, diz-se deles que têm “poder espiritual”, que os demais, “carnais”, não possuem. Além de
tudo, dispõem de uma máquina de comunicação, logo seu ponto de vista pessoal é o que prevalece.
Quarto, precisamos ser apaixonados pelo nosso ofício. Ser profeta é uma atividade que só
pode ser desempenhada de forma passional, feita com paixão, com fogo interno. O “entranhas
minhas, entranhas minhas” de Jeremias 4.19 nos mostra um homem angustiado com o que tem que
pregar, mas que prega, assim mesmo. É sua paixão. O “ai de mim, se não pregar o evangelho” de
Paulo (1Co 9.16) deve ser também o clamor de cada um de nós, que almejamos ser profetas. Acima
dos amores humanos, deve permanecer a lealdade para com a Palavra que nos vem da parte de
Deus.
Acima de tudo, o profeta que queira ser autenticamente bíblico, deve compreender que sua
vida é para glória de Deus e não para sua glória pessoal. Se quisermos ser profetas, nossa vida deve
ser vivida assim: para a glória de Deus.

Você também pode gostar