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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JOÃO PAULO PEIXOTO COSTA

NA LEI E NA GUERRA:
POLÍTICAS INDÍGENAS E INDIGENISTAS NO CEARÁ
(1798-1845)

CAMPINAS
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Costa, João Paulo Peixoto, 1986-


C823n CosNa lei e na guerra : políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845)
/ João Paulo Peixoto Costa. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

CosOrientador: Silvia Hunold Lara.


CosTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Cos1. Índios da América do Sul - Ceará - Aspectos políticos. 2. Índios da


América do Sul - Ceará - Estatuto legal, leis, etc.. 3. Política indigenista. 4.
Brasil - História militar. 5. Ceará - História - Séc. XIX. I. Lara, Silvia
Hunold,1955-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: In law and in war


Palavras-chave em inglês:
Indians of South America - Ceara - Politica aspects
Indians of South America - Ceara - Legal status, laws, etc.
Indigenous policy
Brazil - History, militar
Ceara - History - 19th century
Área de concentração: História Social
Titulação: Doutor em História
Banca examinadora:
Silvia Hunold Lara [Orientador]
Maria Regina Celestino de Almeida
Vânia Maria Losada Moreira
Fernanda Sposito
Ricardo Pirola
Data de defesa: 30-11-2016
Programa de Pós-Graduação: História

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


professores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 2 de dezembro de 2016,
considerou o candidato João Paulo Peixoto Costa aprovado.

Prof. Dra. Silvia Hunold Lara

Prof. Dra. Maria Regina Celestino de Almeida

Prof. Dra. Vânia Maria Losada Moreira

Prof. Dra. Fernanda Sposito

Prof. Dr. Ricardo Pirola

A ata de Defesa, assinada pelos membros Comissão Examinadora, constam no processo de


vida acadêmica do aluno.
A John Manuel Monteiro,
José Marques de Souza Neto,
Renata Calábria,
e Maria da Conceição Cardoso Costa (a bença vovó!)

A Jordana,
meu cheiro, meu sorriso,
meu todo dia,
o grande amor da minha vida!
“Ai também de vós, doutores da Lei, que carregais os homens com
pesos que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um
dedo vosso tocais os fardos. [...] Ai de vós, doutores da Lei, que
tomastes a chave da ciência, e vós mesmos não entrastes e impedistes
aos que vinham para entrar”.
(Lc 11, 46 e 52).
AGRADECIMENTOS

A humildade deveria ser obrigatória na formação de um historiador. Parece-me até


injusto atribuir apenas a mim a autoria de um trabalho que contou com o apoio e a colaboração
de tantas pessoas, de quem tenho uma gratidão incalculável.
Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, pelo
apoio financeiro a esta pesquisa.
Muito obrigado Isac do Vale, meu professor e um dos primeiros incentivadores a seguir
esse ofício que tanto amo.
Agradeço a todos os meus familiares do Ceará e do Piauí (se eu fosse citá-los
nominalmente precisaria de mais 4 anos, mas amo todos!) e a família da minha esposa,
especialmente a querida dona Yolanda e ao saudoso e inesquecível seu Zé Ribeiro, por tanta
hospitalidade e carinho.
Juliana Aragão, minha orientadora do mestrado na UFPI, muito obrigado por tudo o que
fez para que eu realizasse aquilo que, de tão distante, nem era sonho há uns anos atrás.
De diversas cidades, vários colegas me ajudaram com leituras, conversas, muitas críticas
e até mesmo com o “tráfico” de documentos digitalizados. Agradecerei sempre a Carlo Romani,
Gerson Menezes, Almir de Oliveira, Jóina Borges, Johny de Araújo, Edson Silva, Mariana
Dantas, Ricardo Medeiros, Maico Xavier, Lígio Maia, Ricardo Pirola, Fernanda Sposito, Maria
Regina de Almeida e Vânia Moreira.
Serei sempre grato ao povo mais referenciado e enaltecido da historiografia cearense:
os ilustres Etevaldo, Joãozinho, Paulo Cardoso, Márcio Porto, Acrísio, Jota, Jorismar, André
Frota e todos que fazem o Arquivo Público do Estado do Ceará, corresponsáveis de tantos
trabalhos.
São imensos o carinho e a gratidão aos meus amigos de Fortaleza e Teresina Amanda,
Thiago, Pedro, Thaís, Caio, Camila, João (intelectual), Luiz, Aristides, Meire, Thiago, Patrícia,
Kim, Iris, Gabriel, Renata, Jan, Nanda, Thiago, Sofia (intelectual), Airton, Carol e Camila, que
tanto perturbaram meu juízo e nunca deixaram que esta trajetória fosse um caminho solitário.
E entre Campinas e São Paulo, novos e velhos amigos foram importantíssimos nesses tempos
longe de casa. Zé, Felipe, Manoel, Matheus, Ludmila, Rodrigo, Manuela, Tathy, Andy e meus
primos Athayde Neto (Taia, Ataia, Atalaia...), Raquel, Marcos e Herbene, muito obrigado por
essa amizade que nunca vou esquecer. Valeu negrada!
John Manuel Monteiro, como eu queria ter tido mais tempo. Diante da minha total
incompetência em me expressar, só queria te agradecer por ter acreditado em mim.
Silvia Hunold Lara teve a árdua missão de me orientar depois de algo difícil. A você,
minha gratidão é eterna por ter aturado minhas teimosias durante todo esse período. Obrigado
pela paciência, presteza, profissionalismo e por tudo que me ensinou.
Mamãe, papai, Lia, Ruy e Bia: tudo de bom que eu faço na vida eu devo ao amor
incondicional de vocês. Jordana, minha princesa linda, que tanto cuida e em tudo ama. Meu
projeto de vida é fazer você feliz todos os dias. Te amo tanto! E o melhor ainda está por vir...
Agradeço a Deus, que eleva os humildes, que me trouxe de volta, que é todo amor e
misericórdia!
RESUMO

A promulgação da Carta Régia de 1798, que revogou o Diretório dos Índios, não
resultou em qualquer efeito em território cearense. Quando a lei pombalina foi finalmente
extinta no Ceará em 1845, cedeu lugar ao Regulamento das Missões, que se tornou a primeira
lei indigenista geral do império brasileiro. No contexto de crise do Antigo Regime e formação
do Estado nacional, as relações sociais mudaram em consonância com redefinições da condição
jurídica dos indígenas e com uma série de conflitos armados. A legislação produzida nessa
conjuntura recebe destaque neste estudo por ter sido um dos definidores dos confrontos entre
políticas indígenas e indigenistas em torno da caracterização do lugar social dessas populações.
Por meio dela é possível analisar as transformações da condição política dos índios no Ceará,
considerando a relação entre as leis e os índios, a passagem da categoria de súditos da Coroa
portuguesa para a de cidadãos brasileiros e suas implicações nas reivindicações dos índios
relativas à sua própria condição jurídica e na sua participação em eventos militares. São
questões centrais na análise: a situação de permanência do Diretório em território cearense no
século XIX; o contexto legal do período de formação do Estado nacional brasileiro e a relação
dos índios com o arcabouço normativo; as variadas formas de classificação dos índios e gentios
na legislação indigenista de Portugal e do Brasil. A questão bélica tem igual evidência e é
focalizada na segunda parte da tese. A defesa sempre foi uma das principais funções das
populações indígenas integradas no corpo social do império português. Mais do que meros
soldados recrutados a serviço do Estado (lusitano ou brasileiro), era na guerra, assim como na
lei, que os índios se posicionavam nos eventos de conflito político e manifestavam seus
interesses e expectativas. Têm destaque neste estudo o recrutamento militar indígena, a
legislação referente ao tema e a agência política dos oficiais índios; o envolvimento militar
indígena no contexto da independência e nas revoltas liberais oitocentistas; as transformações
da relação dos índios com as Coroas lusitana e brasileira, com o liberalismo e com o
antilusitanismo a partir de suas experiências.

PALAVRAS-CHAVE: Índios; Leis; Guerra; Política; Ceará.


ABSTRACT

The promulgation of the Royal Letter of 1798, which revoked the directory of the
Indians, resulted in no significant effect in the territory of Ceará. When Pombalina law was
finally repealed in Ceará in 1845, it was replaced by the Missions Regulation and it became the
first indigenous general law of the Brazilian empire. In this context of Old Regime crisis and
with the formation of the national State, social relationships have changed alongside legal and
regulatory renewal and multiple armed conflicts. The legislation involving this period is
investigated in this study as it defined the clashes between Indians and indigenous policies
regarding the social portrayal of these populations. In contrast, the war issue reveals equal
evidence. Security has always been one of the main functions of indigenous people that are
socially integrated into the Portuguese Empire. The Indians represent more than mere labour
for the State service (Lusitanian or Brazilian) either in war or law, standing during political
conflict events and demonstrating their interests and expectations. This work aims to analyse
the transformation of these political conditions of the Indians in Ceará, considering the
relationship between the laws during this period and the Indians, the passage of the category
from subjects of the Portuguese monarchy for Brazilian citizens and the implications in the
Indian's claims in regard to their legal conditions, rights and to their role in military events.

KEY-WORDS: Indians; Laws; War; Politics; Ceará.


FIGURAS, TABELAS E MAPAS

FIGURAS

Figura 1: Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço. 1819........................ 53

TABELAS

Tabela 1: Tropas militares no Ceará em 1814...................................................................... 208


Tabela 2: Mapa da força militar da tropa, milícias e ordenanças da capitania do Ceará Grande
(1814).................................................................................................................................... 209

MAPAS

Mapa 1: Vilas e povoações de índios no Ceará no início do século XIX................................ 26


Mapa 2: Locais de atuação dos índios durante os motins de Maranguape e Vila Viçosa..... 144
Mapa 3: Locais de atuação dos índios peticionários à justiça................................................ 150
Mapa 4: Locais de atuação dos gentios nas fronteiras do Ceará........................................... 185
Mapa 5: Postos de guarda das tropas indígenas na costa cearense, outubro de 1822........... 256
Mapa 6: Locais de atuação dos índios durante a guerra de independência no Piauí............ 265
Mapa 7: Locais de atuação dos índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817...... 289
Mapa 8: Locais de atuação dos índios do Ceará na Confederação do Equador.................... 313
Mapa 9: Locais de atuação dos índios do Ceará na Balaiada............................................... 334
SIGLAS – FONTES ARQUIVÍSTICAS

Arquivo Histórico Ultramarino – AHU


Fundo Conselho Ultramarino – CU
Série Brasil-Ceará – 006

Arquivo Nacional – AN
Câmara de Messejana – 8J
Confederação do Equador – IN
Gazeta do Ceará – J040
Ministério da Guerra – OG
Secretaria de Governo do Ceará – 88
Série Interior – AA
Série Justiça – A1
Série Marinha – XM

Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC


Fundo Governo da Capitania – GC
Fundo Governo da Província – GP
Atas da Junta do Governo Provisório – AJ
Correspondências Expedidas – CO EX
Fundo Câmaras Municipais – CM
Fundo Ministérios – MN
Ministério da Guerra – MG
Ministério da Marinha – MM
Ministério da Justiça – MJ
Ministério do Império – MI

Arquivo Público do Estado do Piauí – APEPI


Série Independência – SI
Série Balaiada – SB

Biblioteca Nacional – BN
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 16

1ª PARTE: NA LEI

CAPÍTULO 1 – O DIRETÓRIO NO CEARÁ APÓS 1798


1.1.O “VAZIO LEGISLATIVO”................................................................................... 39
As outras Cartas Régias de 1798................................................................................... 44
1.2.AS DEFESAS DO DIRETÓRIO............................................................................. 47
O grau de liberdade........................................................................................................ 52
Os males da perfeita liberdade...................................................................................... 62

CAPÍTULO 2 – O ESTADO NACIONAL E A LEGISLAÇÃO INDIGENISTA


2.1. CIDADÃOS DESPOSSUÍDOS..................................................................................... 71
2.2. A VITÓRIA DOS PROPRIETÁRIOS......................................................................... 83
2.3. TODAS AS CAUSAS DA DECADÊNCIA.................................................................. 89

CAPÍTULO 3 – OS INDÍGENAS DIANTE DA LEGISLAÇÃO................................... 103


3.1. "OS ÍNDIOS DESSA VILA NÃO QUEREM TER DIRETOR”............................ 107
O “alumiado” João de Souza Benício e os índios da Ibiapaba............................ 111
3.2. "NÃO DEIXAM DE SUSPIRAR PELA SUA LIBERDADE"................................ 119
O motim dos índios de Maranguape...................................................................... 124
Senhores do Brasil, escória da humanidade......................................................... 131
O vigário Felipe Benício Mariz e os índios de Viçosa.......................................... 138
3.3. À MERCÊ DO DESAMPARO: OS ÍNDIOS E OS JUÍZES................................... 144

CAPÍTULO 4 – ÍNDIOS, GENTIOS, VASSALOS, CIDADÃOS.................................. 152


4.1. "DAR A PRÓPRIA VIDA POR VOSSA MAJESTADE"....................................... 155
4.2. "CIDADÃOS SEM A MENOR SOMBRA DE DÚVIDA"...................................... 161
4.3. ATACÁ-LOS COM BRANDURA, MATÁ-LOS COM PRUDÊNCIA.................. 171
A pátria agreste e os dissabores da sociedade....................................................... 181
2ª PARTE: NA GUERRA

CAPÍTULO 5 – O SERVIÇO MILITAR INDÍGENA................................................... 188


5.1. DO DIRETÓRIO À GUARDA NACIONAL............................................................ 190
5.2. ATUAÇÃO BÉLICA, DISCIPLINA MILITAR E CONSCRIÇÃO
INDÍGENA.......................................................................................................................... 203
“A mais bela disposição para os serviços da Marinha”....................................... 212

CAPÍTULO 6 – AUTORIDADES MILITARES INDÍGENAS..................................... 216


6.1. NOMEAÇÕES E JURAMENTOS............................................................................. 222
6.2. A ATUAÇÃO DOS OFICIAIS INDÍGENAS........................................................... 231

CAPÍTULO 7 – OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS GUERRAS DE


INDEPENDÊNCIA............................................................................................................ 244
7.1. O ARMAMENTO GERAL DOS ÍNDIOS................................................................ 251
7.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS LUTAS DO PIAUÍ.................................................. 259
“Mata que é corcunda!”......................................................................................... 265

CAPÍTULO 8 – ATUAÇÃO INDÍGENA NAS INSURREIÇÕES LIBERAIS


8.1. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE
1817....................................................................................................................................... 277
“Viva os índios do Ceará!”..................................................................................... 279
8.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR...................... 289
“Temos por brasão o arco e a flecha”................................................................... 293
“De grande préstimo na restauração da ordem”................................................. 303
“Dignos da imperial contemplação”...................................................................... 310
8.3. ÍNDIOS DO CEARÁ NA BALAIADA...................................................................... 313
“Raimundo Gomes, nosso irmão”............................................................................ 317
Antes viver sob as armas do que o jugo das autoridades.................................... 322
Amor ao soberano e adesão ao seu governo.......................................................... 327

CONCLUSÃO..................................................................................................................... 336
FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES ARQUIVÍSTICAS
Arquivo Histórico Ultramarino............................................................................. 343
Arquivo Nacional..................................................................................................... 343
Arquivo Público do Estado do Ceará.................................................................... 343
Arquivo Público do Estado do Piauí...................................................................... 344
Biblioteca Nacional – Seção de Manuscritos......................................................... 344
FONTES IMPRESSAS
LEGISLAÇÃO
Coletâneas................................................................................................................ 344
Avulsas...................................................................................................................... 345
Disponíveis na internet.......................................................................................... . 345
RELATÓRIOS DE PRESIDENTE DA PROVÍNCIA........................................ 347
RELATOS E MEMÓRIAS.................................................................................... 347
OUTRAS FONTES IMPRESSAS......................................................................... 348
BIBLIOGRAFIA CITADA................................................................................................ 349
16

INTRODUÇÃO

"muito poucos são os que não os odeiam de morte, sem os


conhecer nem ao menos de leve"
(BEZERRA, Antônio. Caboclos de Monte-mor. Revista
do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva,
ano XXX, 1916, p. 297)

"Leais e valorosos"! "Nada vos resistirá. Invejo-vos a glória de que todos vós ides
cobrir"!1 Essas louvações bem que poderiam ter se dirigido a algum líder militar ou oficial
branco de alta patente (como esses cujos nomes batizam ruas, praças e cidades), mas
referiam-se, na verdade, a uma tropa de índios armados de arcos e flechas. Durante a
Revolução Pernambucana de 1817, na iminência de uma guerra que colocava em risco a
integridade política do império português, o fiel súdito Manuel Ignácio de Sampaio,
governador do Ceará, se viu envolto em dificuldades estratégicas. Além da seca, que havia
destruído lavouras desde o ano anterior e acentuara ainda mais a situação de penúria da
capitania, o governo sofria com a falta de verbas e armamentos para enfrentar liberais. Um
dos grupos recrutados era de índios, incumbidos da missão de combater os insurgentes
fugitivos entre as matas das fronteiras cearenses com a Paraíba e o Rio Grande do Norte, a
quem o governador dirigiu aquela proclamação repleta de elogios e vivas.
Apesar das palavras de incentivo durante a guerra, as mesmas não haviam sido
costumeiras na relação do governo do Ceará com os índios no início do século XIX, e
contradiziam o ambiente de repressão em que viviam. Poucos meses após os conflitos com os
liberais, ciente de que os indígenas da vila de Arronches estavam entregues à "mandriice e
embriaguez, que em nada mais cuida[vam] do que em divertimentos de toda a qualidade", o
governador Sampaio ordenou ao diretor José Agostinho Pinheiro que fizesse com que seus
dirigidos abrissem a maior quantidade de roçados possível. Caso continuassem as desordens
decorrentes do "abuso excessivo da venda de bebidas espirituosas", proibidas pela "disposição
dos § 40 e 41 do Diretório dos Índios do Pará e Maranhão", iria proceder "criminalmente
contra os transgressores". Os "rebeldes negligentes e preguiçosos" iriam ser capturados e
"sumariados pela polícia, como vadios e membros podres da sociedade".2
A vida das comunidades indígenas no final do período de domínio português era,
como vemos, envolta em contradições. A legislação indigenista no império lusitano, ao

1
"Proclamação aos índios do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de Manuel
Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V.
2
De Manuel Ignácio de Sampaio a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 16 de outubro de 1817. APEC, GC, livro
21, p. 184V.
17

mesmo tempo em que forçava os índios a trabalhar para o Estado e para particulares, também
os reconhecia como vassalos do rei e lhes concedia uma série de garantias políticas oriundas
da condição de súditos. Pelos artigos do Diretório, citado pelo governador e vigente no Ceará
até meados dos oitocentos, era dada aos índios a posse das suas terras e dos cargos nas
câmaras de suas vilas. A relação que a Coroa e seus representantes locais estabeleciam com os
indígenas variava de acordo com a posição que cada indivíduo ocupava na hierarquia das
comunidades, criada pela própria lei portuguesa ao instituir posições de lideranças – como
vereadores, juízes, capitães e sargentos-mores – e ao conferir a eles privilégios e mercês. Já
aos índios comuns estava reservada maior vigilância, repressão e obrigações mais duras de
trabalho.
O posicionamento indígena diante das determinações do governo era, da mesma
forma, diversificado. Se alguns desobedeciam às diretrizes, seja por meio do consumo
excessivo de bebidas alcoólicas ou de fugas e indisciplinas, outros, em geral lideranças, se
mostravam fiéis vassalos dos monarcas lusitanos. Em julho de 1817, pouco depois dos
confrontos em Pernambuco, os índios de Viçosa, que não tinham sido enviados para as
fronteiras, relataram ao rei, por meio de um abaixo-assinado, que seu corpo de ordenanças
havia ficado "inquieto, pelo ardente desejo que tinham todos de passar em armas, derramar a
última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de
D. Felipe de Souza e Castro",3 ancestral do então capitão-mor da vila Ignácio de Souza e
Castro.
Dez anos após os conflitos em Pernambuco, a condição política dos índios mudou
bastante: de vassalos do rei de Portugal e recebedores de elogios e mercês, 4 passaram a ter
cidadania brasileira. Ganharam uma nova condição jurídica, mas ao mesmo tempo perderam
gradativamente uma série de garantias oriundas do Antigo Regime português ao fazerem parte
do novo Estado nação. Por meio de leis promulgadas após a independência não mais tinham
acesso a cargos nas câmaras de suas vilas e patentes militares, e suas terras passaram a ser
administradas por juízes de paz e de órfãos, autoridades comprometidas com os interesses dos
grandes proprietários.5 Por volta de 1826, os índios de Monte-mor Velho chegaram a ser

3
Ignácio de Souza e Castro, e demais índios de Viçosa, ao rei d. João VI. Vila Viçosa Real, 31 de julho de 1817.
AN, AA, IJJ9 518.
4
Após os conflitos, os índios do Ceará, Paraíba e Pernambuco receberam isenções em impostos por meio do
Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Cf. COLEÇÃO das leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1889, p. 06.
5
Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para
sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-
1828.htm>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2015. Lei de 18 de agosto de 1831. Cria as guardas nacionais e
extingue os corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças. Disponível em:
18

expulsos de sua povoação, atingidos pelo processo de concentração fundiária característico do


século XIX que promoveu a formação de latifúndios e desapropriações de comunidades
indígenas em áreas de colonização antiga.6 Desesperados, pediram ao rei dom Pedro II para
voltar à sua terra natal, já que sua retirada forçada fora uma

"manifesta infração da Constituição do Império, que no título 2º, artigo 6º, os


declara cidadãos, sem a menor sombra de dúvida, porque são nascidos no Brasil, e
são ingênuos: logo, assim, devem gozar de todos os direitos que a Constituição
garante aos cidadãos".7

No final da década seguinte, a situação dos índios, os "gloriosos heróis" de anos


anteriores, parecia lamentável. Em estado de miséria, eram "vítimas do desleixo, do
abandono, da pilhagem", segundo o presidente da então província do Ceará, João Antônio de
Miranda. De acordo com seu relatório de 1839, os próprios indígenas, esbulhados de suas
terras, pediam "um pastor, que os gui[asse]; outros, o restabelecimento de seu Diretório e a
restituição dos bens que possuíam; outros, finalmente, recordando-se lastimosos dos tempos e
dos favores d'El Rei d. João VI, ped[iam] o governo do Rei velho".8 As expressões saudosas
de outros tempos indicam a piora na vida dessa população, tão drástica e em tão pouco tempo.
Mesmo com toda vigilância e repressão cotidianas no final do Antigo Regime
português, muitos índios eram fieis ao rei de Portugal. Segundo Maria Regina de Almeida,
valorizavam o período colonial e a monarquia pelas garantias concedidas, ameaçadas pelo
contexto mais propício à usurpação fundiária no novo Estado nacional no início do século
XIX. A autora também chama atenção que, em muitos conflitos, os índios integrados à
colonização "não questionavam o sistema, mas o desrespeito às leis desse sistema. Sentiam-se
parte dele, súditos do rei",9 como abertamente demonstraram os de Viçosa. Isso se aplicava
muito mais às lideranças das vilas, mas o sentimento também se fazia presente entre os tidos

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-publicacaooriginal-
88297-pl.html>. Acesso em: 7 de janeiro de 2015. Decreto de 03 de junho de 1833. Encarrega da administração
dos bens dos índios aos juízes de órfãos dos municípios respectivos. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-37777-3-junho-1833-565134-
publicacaooriginal-88994-pe.html>. Acesso em 29 de janeiro de 2015.
6
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX. História dos índios no
Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 141.
7
De José Francisco do Monte, e demais índios de Monte-mor Velho, ao rei dom Pedro II. Messejana, sem data.
BN, C-750, 29.
8
MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o excelentíssimo Sr. Dr. João Antônio de Miranda,
presidente desta província, na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 1º de
agosto do corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 24.
9
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e
identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; SOIHET,
Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 192 e 194.
19

como "vadios", aqueles que se encontravam abaixo nas hierarquias. Ou seja, de maneira geral,
o enfrentamento ao domínio português se dava por meio da insubordinação contra o
ordenamento social imposto aos índios que não ocupavam posições de comando ou prestígio,
quanto à forma como deveriam aproveitar o tempo, em relação ao trabalho e aos costumes
familiares e religiosos, apesar de verem na Coroa a proteção diante dos abusos de potentados
rurais, diretores e párocos. Já as lideranças indígenas, mais do que refúgio, entendiam a
monarquia como fonte e mantenedora de sua autoridade, demonstrando gratidão e fidelidade,
mesmo agindo diversas vezes em defesa de suas comunidades.
Em contrapartida, as situações negativas posteriores à independência, especialmente
no período regencial, vieram para todos os índios, resultado das políticas indigenistas do novo
país que visavam a extinção do status jurídico específico e das proteções, fruto também do
liberalismo e da individualização de suas terras. Nessa conjuntura, o discurso dos líderes
indígenas precisava se adaptar, construindo-se "conforme as circunstâncias e os interesses" e
assumindo, quando necessário, "o discurso liberal, defendendo o direito dos índios à
propriedade e à cidadania", assim como fizeram os de Monte-mor Velho ao citar a
Constituição brasileira de 1824. Não deixavam, contudo, de ter culturas políticas baseadas
"nos três séculos de disputas e negociações" e "fundamentadas na legislação do Antigo
Regime, que lhes dera condições distintas da dos demais vassalos", 10 como afirma Almeida e
se pode observar nas "saudades do rei velho" registradas em 1839 por Miranda.
A insistência das lideranças indígenas em amparar sua atuação política na lógica
colonial portuguesa durante os primeiros anos do Brasil independente não era, como o leitor
pode pensar a priori, sinal de descompasso em relação à situação histórica em que viviam.
Para José Reinaldo Lopes, a legislação brasileira se apropriou da lusitana,11 e segundo Carlos
Garriga e Andreia Slemian, as independências na América ibérica, inclusive no Brasil, não
promoveram uma ruptura com a ordem jurídica tradicional,12 ainda que estas passassem a ser
operadas em novo contexto. A própria vigência do Diretório em parte significativa do
território do país até meados do século XIX é disso um claro exemplo.
São muitos os trabalhos que se propõem a analisar as sociedades indígenas que
viveram sob o regime desta lei setecentista, norma que substituiu o poder dos religiosos sobre
essa população e que tinha como objetivo equipará-los aos brancos enquanto súditos da Coroa

10
Ibid., p. 204-205.
11
Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do
século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí;
Fapesp, 2003, p. 200-201.
12
GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C.
1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 203.
20

portuguesa. Promulgada inicialmente para o Grão-Pará em 1757 e estendida ao resto do Brasil


no ano seguinte, a legislação visava regulamentar as leis de liberdade de 1755, fazendo dos
índios uma importante ferramenta de povoamento e exploração de terras não desbravadas na
colônia, sem restringir seu emprego como mão-de-obra para os colonos e o Estado. Dentre as
medidas mais marcantes estavam a elevação das antigas aldeias religiosas a vilas, a criação de
cargos de câmara ocupados pelos próprios índios, a obrigatoriedade da execução de trabalhos
de aluguel em lavouras próprias e na de particulares e a presença do diretor, principal
representante do poder temporal da Coroa e responsável pela distribuição dos trabalhadores.
De acordo com Isabelle da Silva, o objetivo do Diretório era a supressão do poder dos
religiosos “sobre a vida dos índios e a emancipação e a integração destes à sociedade
colonial”. Para a plena inserção dos indígenas como vassalos da Coroa portuguesa, algumas
orientações na legislação eram especialmente destacadas pela autora, como a “massificação
da presença de brancos” nas vilas. Ela enfatiza ainda que o “trabalho indígena, o comércio e a
instituição de impostos [eram], sem dúvida nenhuma, matérias centrais do Diretório”.13
Segundo Ricardo Pinto de Medeiros, a lei indigenista em questão fazia parte das mudanças do
período pombalino que visavam “promover a agricultura e o comércio, e aumentar os laços da
exploração colonial”. Para o autor, a integração dos índios à sociedade portuguesa era
contrária à política de segregação que havia caracterizado a administração missionária.14
Medeiros também destaca a importância dos oficiais de ordenança indígenas na implantação
da ordem pombalina nos sertões do atual Nordeste, possibilitada pelas imprescindíveis
negociações entre a Coroa e os povos indígenas. O enobrecimento das lideranças era
decorrente dos serviços das armas dos índios em nome do rei e da expansão dos seus
domínios.15
A esse respeito, tem destaque a reunião promovida no Recife pelo governador de
Pernambuco Luís Diogo Lobo da Silva em 1759 com as principais lideranças indígenas do
território que administrava, evento que marcou a instalação do Diretório na região. O primeiro
encontro ocorreu em 29 de maio, contando com a presença de mais de 100 índios. Do Ceará,
estiveram presentes João Soares Algodão, chefe da aldeia da Parangaba (elevada a vila de
Arronches) e dom Felipe de Souza e Castro, mestre de campo da aldeia da Ibiapaba (que

13
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 80-82.
14
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do
norte da América portuguesa. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no
Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 116.
15
Ibid., p. 123, 132-136.
21

passou a ser Vila Viçosa). O objetivo da reunião era acertar, com o consentimento dos índios,
a elevação das aldeias religiosas a vilas e o pleno funcionamento das diretrizes pombalinas.
No dia 6 de junho foi promovido um pomposo jantar em comemoração ao aniversário
de dom José I, ocasião em que Lobo da Silva presenteou os líderes indígenas, reconhecendo
não apenas o prestígio social dos visitantes, mas também seu papel crucial no estabelecimento
dos desígnios imperiais. Para Lígio Maia, a reunião “serviu para os índios como uma espécie
de atualização de sua vassalagem”, bem como constituiu o “ponto chave para a compreensão
da importância das lideranças indígenas na aplicação do Diretório” pois, sem elas, o novo
sistema era “simplesmente impraticável”.16 Como afirma Isabelle da Silva, o evento foi um
“genuíno ritual de pompas” em que “os índios eram os sujeitos a serem cortejados”,
possivelmente suscitando “neles um certo sentimento de poder, tanto quanto suscitou no
governador o respeito pelo poder militar deles”.17
Ciente das particularidades da região e da importância das lideranças indígenas para o
bom andamento das diligências, Lobo da Silva criou ainda antes da reunião a Direção, uma
versão adaptada do Diretório para Pernambuco e suas capitanias anexas.18 As diferenças entre
as duas normativas estavam, essencialmente, nas condições de trabalho e na repartição das
terras. Pela Direção, estas deveriam ser feitas de acordo com a posição social dos índios, e não
da maneira igualitária como previa o Diretório, ressaltando a ênfase na hierarquia e no
respeito aos postos das chefias que deveriam ser promovidos nas comunidades.19 Contudo,
permanecia o entendimento da posse dos índios sobre suas terras, a partir dos preceitos
liberais que embasaram as políticas pombalinas.20
A respeito do trabalho indígena, a adaptação do governador previa que apenas um
terço dos índios poderia se ausentar para prestação de serviços, diferente da metade prescrita
na norma original, destacando o maior foco nas atividades agrícolas para as capitanias anexas

16
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no
Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 271.
17
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 126.
18
DIREÇÃO com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da
capitania de Pernambuco e suas anexas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLVI,
parte I, 1883, p. 121-171.
19
A nova proposta de repartição de terras não foi autorizada pela Coroa, mas, segundo Maia, provavelmente sua
proibição não foi sempre obedecida. Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de
índios, p. 239. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o
Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 84.
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte
da América portuguesa, p. 118.
20
Cf. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 29-30.
22

a Pernambuco em relação ao norte do Brasil.21 Para Isabelle da Silva, as medidas de Lobo da


Silva sugerem que “havia certo grau de autonomia do governador no trato das diretrizes do
novo regulamento”, objetivando o enriquecimento do Estado português “através do comércio,
este sustentado pelo crescimento da produção agrícola”.22 Curiosamente, não encontrei
menções à Direção na documentação analisada: o termo referente à norma pombalina era,
sempre, Diretório.
Apesar dos cuidados de Lobo da Silva e da atuação das lideranças indígenas, as
reações à implantação do Diretório no Ceará foram diversas, variando “da obediência à
revolta contra os diretores, da reivindicação [de] serem incorporados ao projeto pombalino às
ameaças contra o bom funcionamento do sistema”. Isabelle da Silva entende esta lei
setecentista como “parte das relações sociais” que passaram a existir em território cearense,
onde uma série de exigência em relação à disciplina do trabalho era simultânea às garantias
políticas indígenas. Mesmo que não exercesse controle completo sobre a sociedade, o
Diretório não podia ser negado, sendo operacionalizado por diferentes estratos sociais, “cujos
produtos eram antes de tudo frutos das relações de poder e práticas sociais”.23 Analisando a
realidade de Vila Viçosa, Lígio Maia afirma que os índios “tinham consciência de sua
condição de livres”, e lutavam, amparados na lei, pela sua plena observância. Por isso,
“mesmo em condição de dominação e sob uma drástica vigilância em seu trabalho e nas
formas de sua vivência nas povoações pombalinas, os índios vilados impuseram limites à
política do Diretório”.24
No ano de 1798, por meio de uma Carta Régia, a lei indigenista pombalina foi
oficialmente abolida no Grão-Pará e em outras regiões do Brasil, num contexto de ocupação,
exploração e conflitos em suas fronteiras externas e internas, como veremos no primeiro
capítulo. A medida teve alcance geográfico limitado, e em muitas capitanias, como na do
Ceará, o Diretório continuou vigente, atravessando períodos de intensa transformação e

21
Cf. PIRES, Maria Idalina Cruz. Resistência indígena nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial:
legislação, conflito e negociação nas vilas pombalinas 1757-1823. Tese (doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco, 2004, p. 204- 214. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 82-84. MAIA, Lígio José
de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 237. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política
indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 117-118.
CUNHA, Elba Monique Chagas da. Sertão, sertões: colonização, conflitos e História indígena em Pernambuco
no período pombalino (1759-1798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2013,
p. 57. SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia,
legislação, política indigenista e povos indígenas no sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação (mestrado)
– Universidade Federal de Pernambuco, 2015. DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação
política indígena na formação do estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-
1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015.
22
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 135.
23
Idem, p. 153 e 160.
24
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 309-311.
23

configurações políticas bastante distintas, nas quais os índios vivenciaram mudanças em seu
estatuto social e jurídico de igual profundidade. Como lembra Isabelle da Silva, em território
cearense, o Diretório “permaneceu em vigor até ser substituído pela Diretoria Geral dos
Índios, em meados do século XIX”.25
Os debates que relacionam as comunidades indígenas com a formação do Estado
nacional brasileiro, tanto dos pontos de vista político como legislativo, contudo, ainda são
iniciais na historiografia. Apesar das reflexões importantes escritas há mais de 20 anos por
Marivone Chaim, Carlos de Araújo Moreira Neto e Manuela Carneiro da Cunha 26 sobre a
política e a legislação indigenistas, e dos trabalhos produzidos sobre a temática indígena e as
normas legais a ela relacionadas nas primeiras décadas do Brasil independente, pouco se
discutiu até hoje acerca da vigência do Diretório nos oitocentos. Consequentemente, são
pouco conhecidas as nuances e transformações da condição política dos índios ao longo deste
contexto, tanto pelo viés das ações do Estado – seja ele português ou brasileiro, das capitanias
ou provincial – quanto dos índios. Se a legislação definia – ou tentava definir – o lugar dessa
população, governantes e indígenas lidaram constantemente com ela, fazendo das leis um
campo de disputas. Além disso, levando em conta que o serviço das armas era um dos
principais caminhos da ação política indígena, são igualmente escassas as pesquisas sobre a
atuação militar dos índios durante esse período, tendo se mostrado especialmente importantes
em eventos de contestação social no país.
Esta tese visa analisar as transformações da condição política dos índios no Ceará
entre 1798 – ano de promulgação da Carta Régia que revogou o Diretório dos Índios, mas que
não teve qualquer efeito em território cearense – e 1845, quando a lei pombalina foi
finalmente extinta e cedeu lugar ao Regulamento das Missões, primeira lei indigenista geral
do império brasileiro. O recorte também corresponde ao governo de dom João VI até o
reinado de seu neto, dom Pedro II, atravessando, portanto, o processo de separação política
brasileira e o período regencial. Neste contexto de crise do Antigo Regime e formação do
Estado nacional, as relações sociais mudaram em consonância com redefinições jurídicas e de
uma série de conflitos armados.
O funcionamento legislativo, por um lado, tem papel de destaque neste estudo, na
medida em que foi um dos definidores dos confrontos entre políticas indígenas e indigenistas

25
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 84.
26
CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás, 1749-1811. São Paulo: Nobel; Brasília: INL,
Fundação Nacional Pró-memória, 1983. MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria
a minoria: (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988. CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Política
indigenista no século XIX. Idem. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992.
24

em torno da caracterização do lugar social dessas populações. Concordo com Ivone Barbosa,
para quem a legislação tem tanto o significado de evidência da ação do Estado quanto é
“indício precioso para se auscultar a experiência social geradora da demanda de uma ordem
legal”.27 É partindo deste pressuposto que pretendo analisar a relação entre as leis e os índios.
Investigo, neste período de transição, a passagem da categoria de súditos da Coroa portuguesa
para a de cidadãos brasileiros e suas implicações nas reivindicações dos índios relativas à sua
própria condição jurídica (na luta pelas garantias de súditos e direitos de cidadãos) e na sua
participação em eventos militares (quando recrutados ou amotinados em defesa dos monarcas
e de sua liberdade).
Por outro lado, a questão bélica tem igual evidência. Como ensinam diversos autores
da nova história militar brasileira, a guerra é uma categoria pluridimensional, percebida de
diversas maneiras pelas mais variadas culturas e passível de ser analisada em relação, por
exemplo, a questões sociais, étnicas e políticas.28 No caso das populações indígenas
integradas no corpo social do império português, a defesa sempre foi uma das suas principais
funções – característica que contou, inclusive, com a implantação de hierarquias internas em
que as lideranças militares tinham papel de relevo. Como afirma Juliana Lopes, para “os
povos indígenas, a guerra era uma questão de vida, não de morte; uma afirmação de
continuidade”, e “se caracterizava, antes de tudo, [como] uma prática cultural”.29 Bem mais
do que meras peças de recrutamento a serviço do Estado (lusitano ou brasileiro), era na
guerra, assim como na lei, que os índios se posicionavam nos eventos de conflito político e
manifestavam seus interesses e expectativas.
A escolha por priorizar a relação das comunidades indígenas com a legislação e os
conflitos armados não se dá, necessariamente, em detrimento de outras questões igualmente
relevantes, como, por exemplo, as relacionadas à posse da terra e à distribuição e exploração
do trabalho indígena. A primeira adquiriu mais importância nas discussões indigenistas

27
BARBOSA, Ivone Cordeiro. Cidadania em construção: a legislação provincial do Ceará. Apontamentos para
uma história social do Estado brasileiro. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis
provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os
anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 31.
28
TEIXEIRA, Nuno Severiano. A história militar e a historiografia contemporânea. Nação e Defesa, Instituto da
Defesa Nacional, Lisboa, ano XVI, nº, 1991, p. 71. WHELING, Arno. A pesquisa da história militar brasileira.
Da Cultura, ano 1, nº 1, 2001, p. 35-26 e 41. PARENTE, Paulo André Leira. A construção de uma nova história
militar. Revista Brasileira de História Militar, ano 1 (edição especial de lançamento), 2009, p. 5-9.
SANCHES, Marcos Guimarães. A guerra: problemas e desafios do campo da história militar brasileira. Revista
Brasileira de História Militar, ano 1, nº 1, 2010, p. 2 e 12-13. PEDROSA, Fernando Velôso Gomes. A história
militar tradicional e a “nova história militar”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – Anpuh, 2011,
p. 11-12.
29
ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII: o caso
Camarão. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 77-78.
25

principalmente a partir do século XIX, com a expansão agrícola da promovida pela Coroa
portuguesa, que atravessou a separação política brasileira e a formação do Estado nacional.
Nesse contexto, os territórios indígenas foram particularmente visados pela ampliação
latifundiária e transformados em áreas de produção.
Já a mão-de-obra dos índios, que nunca estava desvinculada da questão da terra,
sempre foi prioritária para a monarquia lusitana em sua colônia na América. O próprio
Diretório era fruto da necessidade de os proprietários de terem acesso àquela força de trabalho
que passou a ser considerada livre. Além disso, tais trabalhadores eram indispensáveis para as
ambições do governo de Portugal de aumento da produtividade colonial. Mesmo no século
XIX, quando a terra passou a ter cada vez mais destaque, a demanda pelo trabalho indígena
não diminuiu, acentuando-se durante a crise de mão-de-obra no Brasil a partir da década de
1830.
Cientes de sua importância para a Coroa portuguesa e das prerrogativas concernentes à
sua condição de vassalos livres, os índios sempre atuaram politicamente para que suas terras,
seu trabalho e sua liberdade fossem plenamente respeitados. Com a separação política do
Brasil, a agência indígena se transformou em concomitância com as novas conjunturas do
país. O objetivo desta tese, portanto, é analisar as transformações do estatuto legal e da
condição política dos índios a partir de suas relações com os governos e outros agentes. Terra,
trabalho digno, autonomia e liberdade eram garantias pelas quais as comunidades indígenas
lutavam por meio de sua atuação política. Esta poderia se dar de diversas formas, como, por
exemplo, a partir dos cargos de vereadores e juízes ocupados pelas lideranças em suas vilas,
ou mesmo por insubordinações cotidianas por parte dos índios comuns. Diante da necessidade
de executar um recorte temático – arbitrário, porém, inescapável – privilegio nesta pesquisa os
âmbitos legais e bélicos, nos quais entendo que mais amplamente se manifestou o
protagonismo indígena durante a crise do Antigo Regime português e a formação do Estado
nacional brasileiro.
Por um lado, estas populações conheciam bem as leis, por meio das quais as Coroas
garantiam suas mercês e definiam seu lugar nas sociedades portuguesa e brasileira. Por outro,
a integração dos índios no corpo de súditos lusitanos pelo serviço das armas – tema ainda
carente de pesquisas por parte da historiografia – era previsto por lei e operado
frequentemente pelos indígenas, cujos arcos e flechas eram símbolos de sua posição diante do
monarca. Ou seja, era na lei e na guerra que os índios agiam politicamente, de forma
predominante – mas não exclusiva –, em defesa de suas prerrogativas, em busca de condições
26

dignas de trabalho, inviolabilidade de suas terras e respeito à sua condição de súditos ou


cidadãos.
A delimitação espacial da pesquisa se concentra nas vilas e povoações de índios, a
maioria oriunda dos antigos aldeamentos religiosos fundados em meados dos séculos XVII e
XVIII e que concentravam a maior parte da população indígena do Ceará, além de lugarejos
vizinhos habitados por eles. As vilas eram Soure (atual Caucaia), Arronches (atual bairro da
Parangaba, em Fortaleza), Messejana (bairro de Fortaleza), Monte-mor Novo (atual Baturité)
e Vila Viçosa (atual Viçosa do Ceará). As povoações correspondiam a São Pedro de Baepina
(atual Ibiapina) no município de Vila Viçosa, Almofala (atual aldeia da etnia tremembé, em
Itarema) no território de Sobral e Monte-mor Velho (atual Pacajús) pertencente a Aquiraz.

Mapa 1: Vilas e povoações de índios no Ceará no início do século XIX

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

A respeito da demografia das vilas de índios do Ceará no início do século XIX, Lígio
Maia afirma que a população indígena era predominante, sendo diminuta a presença de pretos
– mais numerosos em polos econômicos da capitania, como Sobral ou Icó. A exceção era
Monte-mor Novo, a mais povoada de “extranaturais” – ou seja, não-índios que estabeleceram
moradia na vila – em decorrência, segundo o autor, da produção de algodão da serra de
27

Baturité, onde se localizava. A população indígena habitando em povoações e vilas de


brancos era considerável, perfazendo 18% do total de índios, até, pelo menos, 1808.30
Também faz parte da análise empreendida nesta tese a região do Cariri, na fronteira
cearense com Pernambuco e Paraíba, território de moradia dos chamados "gentios", povos
nômades de variados etnônimos. Segundo Ricardo Pinto de Medeiros, muitos desses grupos
haviam voltado a viver do corso após experiências missionárias, e chegaram a ser
“violentamente reduzidos”, habitando algumas vezes em vilas.31 Tais populações foram
atingidas com igual intensidade em sua condição jurídica pela mudança do regime político
brasileiro e se posicionaram em diversas ocasiões – inclusive belicamente – em prol da
manutenção de relações a elas benéficas e em defesa de sua liberdade. Os limites geográficos
da análise também se estendem às capitanias vizinhas do Ceará, conforme a abrangência da
atuação indígena.
Parte da historiografia que aborda a legislação indigenista do período entre a
promulgação da Carta Régia de 1798 e do Regulamento das Missões admite não ter
conseguido explicar por que a Carta que aboliu o Diretório foi aplicada em algumas regiões,
tendo, outras, presenciado a continuidade da norma pombalina (como aconteceu no Ceará).
Fátima Lopes assume que “os historiadores não indicaram ainda algum documento pelo qual
tenha sido também estendido" para o restante da colônia. Pela falta de registros que provem o
contrário, a autora conclui que “o Diretório dos Índios não foi extinto para todo Estado do
Brasil, permanecendo, portanto, em vigor na capitania de Pernambuco e suas anexas”.32
Alguns autores tentaram discorrer brevemente sobre a questão. Segundo Maria Hilda
Paraíso, por conta das incongruências decorrentes da aplicação da Carta Régia de 1798 –
como a decadência e a instabilidade social das povoações de índios – a lei pombalina
"continuou a vigorar para os antigos aldeamentos até meados do século XIX".33 Maico Xavier
afirma que o Diretório chegou a ser abolido porque já não "estava preenchendo plenamente
estes interesses da Coroa no final dos anos setecentistas", e que sua vigência no Ceará no
século XIX seria uma "contradição, ou indecisão, em relação à legislação indígena naquele

30
Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 303-306. A
porcentagem de índios vivendo em vilas e povoações de brancos provavelmente diminuiu a partir das políticas
de controle e vigilância do governo de Manuel Ignácio de Sampaio, iniciado em 1812. Cf. COSTA, João Paulo
Peixoto. Disciplina e invenção.
31
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do
norte da América portuguesa, p. 121-122 e 138.
32
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 395-397
33
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos
sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, 93.
28

ensejo".34 Não há, entretanto, qualquer indício de que a Coroa portuguesa tenha pretendido
ampliar o espaço de aplicação da Carta Régia – inicialmente dirigida para o Pará – ou que os
anos em que ela esteve em vigor tenham sido um "período de teste" para uma posterior
extensão ao resto do Brasil.
Para boa parte da historiografia, o "vazio legislativo" postulado por Manuela Carneiro
da Cunha35, que caracterizaria essa conjuntura pela inexistência de uma diretriz geral para os
índios no Brasil (apesar da farta quantidade de leis expedidas neste período sobre a questão),
seria a razão para a continuidade do Diretório em algumas regiões. 36 Segundo Patrícia
Sampaio, por exemplo, o fato de a Carta Régia de 1798 não ter se transformado em uma
legislação indigenista geral gerou, na primeira metade dos oitocentos, uma lacuna legal. As
"especificidades da legislação de 1798" teriam comprometido sua "aplicabilidade em outras
áreas do país, restringindo seu caráter de política indigenista geral da Coroa", por dar "grande
ênfase à questão da disponibilidade de trabalhadores".37 Segundo André Roberto Machado e
Magda Ricci, a importância da incorporação indígena como mão-de-obra, inclusive no âmbito
militar, teria sido confirmada pelo fato de que a maior parte dos integrantes das revoltas
ocorridas nos anos posteriores era indígena e ter sido motivada pela defesa da garantia de sua
condição de liberdade.38 O problema é que a "ênfase" no trabalho dos índios, destacada por
Sampaio, é particularmente evidente no Diretório, tendo sido esta uma das causas de sua
permanência em algumas regiões durante o século XIX. Tal cenário ocorreu, por exemplo, em
Goiás, no Rio Grande do Norte e no próprio Ceará,39 que se utilizou fortemente do
recrutamento indígena em situações de conflito bélico, além de ter sido palco da Balaiada
juntamente com o Piauí e o Maranhão.

34
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios
do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p.
76-79.
35
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 09.
36
IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio: los indios de Brasil desde el Directório hasta
la abolición de la esclavitud indígena (1750-1845). Cuadernos del Tomás, n. 04, 2012, p. 34-35. MACHADO,
Marina Monteiro. A trajetória da destruição: índios e terras no império do Brasil. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 37-38. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 141.
37
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus:
Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 245.
38
Cf. MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo
regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006. RICCI, Magda Maria de
Oliveira. Sobre patriotismos e bairrismos: identidades e conflitos no antigo Grão-Pará – século XIX. In:
CABALLERO, Gabriela Dalla Corte; CÉSPEDES, Ricardo Piqueiras; MATA, Meritxell Tous (Org.). América:
poder, conflicto y política. Murcia: Universidad de Murcia / Servicio de Publicaciones, 2013, pp. 01-14.
39
CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas. LOPES, Fátima Martins. As mazelas do Diretório dos índios:
exploração e violência no início do século XIX. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença
indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades
e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção.
29

Seguindo um caminho diferente, Francisco Cancela entende, assim como Lopes e


Porto Alegre, que a questão do alcance jurisdicional da Carta Régia de 1798 ainda espera
mais pesquisas. Em seu trabalho acerca dos índios e do processo colonial em Porto Seguro,
Cancela chama atenção para a ausência de qualquer menção à Carta Régia de 1798 nesta
capitania, além do reestabelecimento do Diretório naquela região em 1803 por ordem da
Coroa, de maneira semelhante ao que ocorreu em Goiás, como demonstra Marivone Chaim.40
Reconhece que, se a execução da lei pombalina teve diferentes feições em cada uma das
regiões do Brasil, sua superação também "não pode ser analisada sem levar em consideração a
possibilidade de diferentes temporalidades e múltiplas experiências". Mais do que ter marcado
um "vazio legislativo", a passagem dos séculos XVIII e XIX teria selado o "ponto de
referência para o retorno de uma política indigenista flexível e dual".41
Cancela trabalha na perspectiva de que as normas legais no Antigo Regime português
eram aplicadas nas capitanias de maneira diferenciada, a partir de suas particularidades, ainda
que houvesse leis universais. No que diz respeito aos índios, o quadro de variações tão
gritantes na aplicação das leis – que Cunha chamou de “vazio legislativo” – nos leva a
concluir que as particularidades de cada região estavam diretamente relacionadas a tais
situações heterogêneas e às políticas de governadores, capitães-mores e diretores. O próprio
Diretório, como demonstra o trabalho de Mauro Cezar Coelho, foi concebido inicialmente
para o Grão-Pará como uma adaptação das "leis de liberdade" – surgidas no bojo da influência
do pensamento iluminista ibérico – às demandas dos colonos por força de trabalho barata e de
acesso ilimitado. O autor atribui a construção da lei pombalina “ao contexto imediato da
Colônia” que, no caso paraense, se relacionava com “os conflitos vividos em torno do
controle da mão-de-obra indígena”.42
Ao ser estendida para o restante do Brasil, as distintas formas de aplicação da lei
reforçam a ideia de que a colônia, em toda a sua diversidade de contextos, e bem mais do que
os desígnios da metrópole, era quem definia a leitura dos textos legislativos e os rumos das
práticas políticas populacionais. No Rio de Janeiro, segundo Luís Rafael Corrêa, até 1763,

40
Cf. CARTA Régia de 18 de agosto de 1803. Apud. CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas, p. 186-188.
41
CANCELA, Francisco Eduardo Torres. De projeto a processo colonial: índios, colonos e autoridades régias
na colonização reformista da antiga capitania de Porto Seguro (1763-1808). Tese (doutorado) – Universidade
Federal da Bahia, 2012, 280-281.
42
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo,
2005, p. 152
30

nenhuma das antigas aldeias jesuíticas havia sido elevada a vila,43 e em São Paulo as
diretrizes pombalinas tiveram repercussões frouxas, de acordo com John Monteiro.44 O
trabalho de Fabrício Santos analisa as dificuldades em se aplicar o Diretório na Bahia, onde
escrivães acabavam assumindo o papel de diretores por falta de pessoas capacitadas para o
cargo.45 No Mato Grosso, como destaca Alessandra Blau, os casamentos entre índios e negros
eram incentivados por conta do baixo número de brancos nas povoações, 46 e em Pernambuco
e suas capitanias anexas chegou-se ao extremo de se aprovar a “Direção”, como vimos acima.
Nesses estudos, o período mais amplamente abordado é a segunda metade do século XVIII e,
mesmo quando se estendem ao XIX, não analisam de forma densa sua permanência nos
oitocentos e menos ainda no pós-independência.
Tal balanço historiográfico pode nos ajudar a refletir sobre o caráter plural das leis e
da sociedade corporativa do Antigo Regime português. Elías Palti explica que de “cada corpo
emanava sua própria legislação, sendo que o monarca tinha a missão de compatibilizá-las
mutuamente e assim preservar uma ordem natural (que se condensava na ideia de justiça)”.47
Mas, ainda que os índios vassalos demandassem uma legislação própria enquanto membros
do corpo social, a heterogeneidade desta população e dos lugares onde habitavam eram outras
variantes que os definiam enquanto fontes de direito. Para Carlos Garriga e Andreia Slemian,
tal pluralismo jurídico integrou o Novo Mundo por meio da colonização “em um prolongado
processo de territorialização”. Com isso, o direito na América portuguesa era “produto da
casuística adaptação da ordem metropolitana às circunstâncias ultramarinas”. 48 De maneira
semelhante argumenta Antônio Manoel Hespanha, segundo o qual "a realidade seria tão
multiforme que bem se podia conceber que alguma utilidade particular exigisse a correção da
norma geral", se esta houvesse, como era o caso da legislação indigenista. A ordem jurídica
no Brasil colonial era "produto da dinâmica de fatores locais, de ordem geográfica, ecológica,
humana e política".49

43
CORRÊA, Luís Rafael de Araújo. A aplicação da política indigenista pombalina nas antigas aldeias do
Rio de Janeiro: dinâmicas locais sob o Diretório dos Índios (1758-1818). Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal Fluminense, 2012, p. 154-155
44
MONTEIRO, John Manuel. A memória das aldeias de São Paulo: índios, paulistas e portugueses em Arouche
e Machado de Oliveira. Dimensões, vol. 14, 2002, p. 18.
45
SANTOS, Fabrício Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia (1750-1800).
Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2012, p. 206-207.
46
BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da capitania do Mato
Grosso: 1752-1798. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Mato Grosso, 2007, p. 48
47
PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n.
81, 2010, p. 35.
48
GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”, p. 191-192.
49
HESPANHA, Antônio Manoel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1, nº 3, 2006, p.
111-115.
31

Não era à toa que o Diretório foi aplicado de formas tão diversas quanto vimos acima.
No caso da Direção de Pernambuco, segundo Ricardo Pinto de Medeiros, a lei se adaptou às
circunstâncias ambientais e demográficas e às necessidades econômicas da região ao priorizar
atividades como a pecuária e as lavouras.50 Mesmo o Diretório tendo sido estendido para todo
o território brasileiro em 1758, a leitura e aplicação de seus artigos estava determinada
justamente pela realidade multiforme da Colônia. Em se tratando do período após 1798, a
legislação no império português não funcionava de maneira generalizante – e, sim, pontual e
particularizante: por isso, nos lugares onde a Carta Régia não foi aplicada, funcionou o
Diretório da forma que melhor se adaptava às realidades locais. Antes de 1798, a lei
pombalina não era – e nem poderia ser – instaurada igualmente em todas as regiões. Não era
contraditória, portanto, sua permanência, e muito menos resultado de incongruências,
indecisões ou de um suposto "vazio legislativo".
Quando analisamos novamente o panorama da produção historiográfica, percebemos o
quão necessário se faz observar a ambivalência da política indigenista de Portugal. Boa parte
das pesquisas que se debruçaram sobre a temática indígena na passagem dos séculos XVIII e
XIX seleciona os chamados "sertões do leste"51 para a investigação empírica, por ter sido
palco das ações aonde se dirigiram as famosas Cartas Régias de guerra justa aos "botocudos",
em 1808 e 1811. Como vimos acima, outros trabalhos importantes vêm, nos últimos anos,
ampliando as perspectivas analíticas ao escolher outras regiões, com condições históricas
distintas e particulares. Não obstante a qualidade das pesquisas, parte delas tende a generalizar
a política indigenista do período joanino como tendo sido basicamente ofensiva, sem

50
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do
norte da América portuguesa, p. 118.
51
BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth
and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, pp. 325-368. LANGFUR, Hal. The Forbidden
Lands: Colonial Identity, Frontier Violence, and the Persistence of Brazil's Eastern Indians, 1750-1830.
Stanford, Calif.: Stanford University Press. 2006. LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A
resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira do Vale do Paraíba (1788-1836).
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004. MATTOS, Izabel Missagia.
"Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na província de Minas. Tese
(doutorado) – UNICAMP, 2002. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios:
liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, pp. 223-
243. MALHEIROS, Márcia. Homens da fronteira: índios e capuchinhos na ocupação dos Sertões do Leste, do
Paraíba ou Goytacazes (séculos XVIII e XIX). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2008.
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce
(Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007. MOREL,
Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado. Dimensões, v.
14, 2002, pp. 91-113. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho. SILVA, Natalia
Moreira da. Papel de índio: políticas indigenistas na província de Minas Gerais e Bahia na primeira metade dos
oitocentos (1808-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João Del-Rei, 2012. SILVA,
Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce: fronteiras,
apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
2006.
32

distinguir de forma precisa as atitudes anti-indigenistas da Coroa e dos administradores locais


ou apontar as especificidades estratégicas e econômicas das fronteiras internas e das relações
entre povos ditos "bravios" e os oriundos de aldeamentos.52
Seguindo caminho contrário, como fazem alguns autores, devemos atentar para a
"ambivalência" das ações indigenistas portuguesas.53 Maria Regina de Almeida argumenta
que se "o príncipe regente decretou guerra contra alguns índios, procurou beneficiar outros",
não diferindo, nesse sentido, da política que "vinha sendo praticada desde o início da
colonização".54 Durante a instalação do Diretório nos sertões de Pernambuco, por exemplo,
foi recomendado o uso da força para a submissão de povos que resistiam ao projeto, como
mostrou Medeiros.55 Já no período joanino, é importante lembrar que, em 1819, os índios das
vilas do Ceará, Paraíba e Pernambuco ganharam isenções de impostos pelos serviços de
guerra prestados contra os revoltosos pernambucanos em 1817,56 e foi concedida a ocupação
de terra aos índios do aldeamento de Valença, no Rio de Janeiro, em uma "conjuntura
possível para que o Brasil solidificasse seu papel no interior" do recém-criado Reino Unido,
por iniciativa de dom João VI, como explica Marina Machado.57
Em se tratando da situação dos índios aldeados no período pós-independência, os
estudos são ainda poucos, concentrando-se a maioria na situação dos chamados "bravios"58
(seguindo a mesma lógica que caracteriza como sendo apenas ofensiva a política indigenista
joanina) ou na construção da memória e identidade nacional no primeiro reinado. 59 Outros

52
CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas, p. 94. CHAIM, Marivone Matos. A política indigenista no
Brasil. Clio: Revista de Pesquisa Histórica. Recife: Universitária, n. 15, 1994, p. 148. CUNHA, 1992b, p. 06-07.
LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro: visões sobre os povos indígenas e a construção de uma
simbologia nacional do Brasil (1808-1831). Dissertação (mestrado) – USP, 2010, p. 93. MATTOS, Izabel
Missagia. "Civilização" e "revolta", p. 55. MOREL, Marco. Apontamentos sobre a questão indígena e o
mosaico da população brasileira em 1808. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 169, n.
439, 2008, p. 387-388. SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação
do rio Doce, p. 103. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado
nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012., p. 51.
53
CANCELA, Francisco Eduardo Torres. De projeto a processo colonial, p. 287. MACHADO, Marina
Monteiro. Entre fronteiras, p. 103-104. IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio, p. 41
54
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Reflexões sobre política indigenista e cultura política indígena no Rio
de Janeiro oitocentista. Revista USP. São Paulo: nº 79, 2008, p. 95.
55
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do
norte da América portuguesa, p. 122.
56
Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Concede aos índios das diversas vilas do Ceará Grande, Pernambuco e
Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os revoltosos da vila do Recife. COLEÇÃO das
Leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 06.
57
MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 145.
58
Além dos que tratam dos botocudos nos sertões do leste, citados anteriormente: SPOSITO, Fernanda. Nem
cidadãos, nem brasileiros. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira
e os indígenas do planalto meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade
Federal de Santa Catarina, 2012.
59
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Comunidades indígenas e Estado nacional. LOURENÇO, Jaqueline. Um
espelho brasileiro.
33

pontos de interesse vêm aparecendo em investigações dos últimos anos, como a participação
indígena nas lutas pela separação política brasileira e nos conflitos liberais oitocentistas60 e a
relação dos índios com o estatuto de "cidadãos"61. Vânia Moreira acredita que tais processos
foram "muito mais impostos pela ação estatal a essas populações do que inicialmente
reivindicados por elas"; mas é preciso enfatizar o fato de elas terem, "ao longo do processo
histórico, se apropriado do vocabulário político da época segundo seus próprios interesses e
projetos"62, como fizeram em Monte-mor Velho.
Na tarefa de trazer à tona temas tão pouco debatidos, mas fundamentais para o
entendimento da formação da sociedade e Estado nacional brasileiros, essa tese se debruça
sobre o material disponível nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do
Instituto do Ceará, no Arquivo Histórico Ultramarino, e, principalmente, na farta
documentação da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional, do Arquivo Público do Estado
do Ceará e do Arquivo Público do Estado do Piauí (com fontes sobre a Balaiada e o foco de
resistência portuguesa em 1823). Aqui se faz necessária menção especial a estas duas últimas
instituições, detentoras de acervos surpreendentemente ricos e representantes da importância
dos arquivos estaduais para o patrimônio e a memória no Brasil, apesar do frequente descaso
do poder público e da frustrante negligência por parte considerável da comunidade acadêmica,
que a eles dispensa pouquíssima atenção.
A maior parte das fontes aqui utilizadas é composta pela correspondência entre as
autoridades centrais nos impérios português e brasileiro, da capitania e província do Ceará e
das vilas e povoados habitados por índios, como diretores, vereadores, párocos, juízes, oficiais
militares etc. Presente em fundos documentais de todos os acervos pesquisados, a

60
CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848):
Ideologias e Resistências. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e
problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002. FERREIRA, Lorena de Mello. São Miguel de Barreiros: uma aldeia
indígena no Império. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. GARCIA, Elisa
Frühauf. Dimensões da igualdade: os significados da condição indígena no processo de independência do Rio da
Prata. In: Anais do XIX Encontro Regional de História da Anpuh - Seção São Paulo, 2008. GÓMEZ, Julio
Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea,
n. 27, 2009, pp. 235-277. MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades.
MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. A aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios
guaranis (séculos XVIII e XIX). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.
DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do estado
nacional brasileiro.
61
SANTOS, Raquel Dani Sobral. A construção do estatuto de cidadão para os índios do Grão-Pará (1808-
1822). Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2013. Vânia Moreira se utiliza dos conceitos de
"cidanização" e "nacionalização" para tratar do processo de inclusão índios na condição de cidadãos pertencentes
ao Estado nacional brasileiro a partir da promulgação da Constituição de 1824. Cf. MOREIRA, Vânia Maria
Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, p. 68-69
62
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência –
Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, pp. 1-17. MOREIRA, Vânia Maria
Losada. Autogoverno e economia moral dos índios.
34

comunicação produzida em âmbito local, somada àquela dirigida para fora da capitania e às
vereações de câmaras municipais, possibilitam a análise tanto de práticas políticas
indigenistas em diversos níveis (metropolitano, colonial, na capitania/província, nas
povoações etc.) quanto da agência indígena na sua relação com outros sujeitos desta
sociedade (colonos, pobres livres etc.). A busca dos índios pela garantia de benefícios para
suas comunidades se expressava tanto na operacionalização da legislação quanto no seu
posicionamento nos conflitos armados. Para este intento, tem destaque a documentação
produzida por eles, a maioria composta de requerimentos anexos à correspondência
administrativa, nos quais solicitavam mercês ou faziam queixas contra aqueles que os
prejudicavam.
Foram utilizados os livros de registro de confirmação de patentes, juramentos e
nomeações, contendo dados referentes à história das elites militares indígenas até a extinção
de seus postos na década de 1830. A documentação inclui também memórias e crônicas
produzidas no período (por viajantes e autoridades administrativas e militares), relatórios de
presidente da província do Ceará e alguns poucos jornais. Esses textos trazem em sua
linguagem uma visão abrangente da população indígena da região – a despeito de
simplificações e do estranhamento oriundos de seus lugares sociais – além de fornecer
detalhes muitas vezes ocultos nas fontes governamentais, acerca de eventos militares.
Por fim, um dos conjuntos documentais mais importantes deste trabalho é constituído
pela malha legal indigenista produzida no período, agregando, por exemplo, decretos, cartas
régias, portarias, bandos e atas legislativas. Aliada aos registros que tratam da agência
indígena diante da legislação que a eles se dirigia, compõe as fontes que possibilitam a análise
das transformações da condição política dos povos indígenas no Ceará e da maneira pela qual
essas comunidades modificaram a realidade que as leis visavam ordenar e reagiram a suas
imposições.
Este trabalho está dividido em duas partes. A primeira prioriza tanto o panorama da
legislação indigenista no Ceará entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX
quanto a relação dos índios com as leis. No primeiro capítulo é central a análise da situação de
permanência do Diretório em território cearense até a independência, refletindo-se também
sobre o funcionamento das leis no Antigo Regime português, a aplicação de políticas
indigenistas distintas para cada região, as especificidades da antiga lei setecentista, os
interesses da Coroa lusitana e as particularidades econômicas e demográficas da capitania em
questão. No segundo, o foco se dirige ao contexto legal do período de formação do Estado
nacional brasileiro, quando as diretrizes pombalinas continuaram extraoficialmente no Ceará
35

após 1822, antes de ser abolida na década de 1830 e restaurada em 1843. Prioriza-se o
conjunto legal produzido ao longo desse período – tanto ao nível do legislativo cearense
quando do império do Brasil, como foi o caso da criação da guarda nacional em 1831, que
extinguia os postos de oficiais índios – e sua relação com o acúmulo de poder dos
proprietários rurais, que os possibilitou ter cada vez mais acesso a cargos políticos locais e
tendo como consequência a gradativa extinção de antigas garantias indígenas.
O terceiro capítulo se concentra na atuação política indígena diante da legislação. O
objetivo é refletir sobre a conexão que suas comunidades estabeleciam com momentos de
intensas transformações políticas – operacionalizando algumas leis ou lutando pela supressão
de outras – e de que maneira suas ações também influenciaram os posicionamentos
indigenistas dos governos imperiais de Portugal e do Brasil e da capitania e província do
Ceará. São aspectos importantes nessa investigação a relação dos índios com o arcabouço
normativo, as ações jurídicas movidas por suas comunidades e a participação indígena em
conflitos no contexto da Constituição portuguesa de 1821 e da separação política brasileira,
motivados pela possível redefinição de seu lugar no novo império na América.
O quarto capítulo problematiza os significados para diferentes agentes do período
(membros do governo, proprietários rurais e, principalmente, os próprios indígenas), dos
variados termos pelos quais índios e gentios eram classificados na legislação indigenista,
como a presença da questão tutelar, voltada tanto para os "mansos" quanto para os
"selvagens". Em relação aos aldeados, analisa-se a transformação do estatuto de vassalos do
rei de Portugal para a de súditos do monarca brasileiro e, com a independência, no
enquadramento e na percepção de si próprios como cidadãos do império do Brasil, ao mesmo
tempo em que se viram despossuídos de diversos benefícios. Acerca dos gentios da região do
Cariri, reflete-se sobre o tratamento que recebiam do monarca lusitano (enquanto vassalos
"em potencial" e dignos de proteção), a relação que estabeleciam com a monarquia (vista por
eles muitas vezes como uma entidade protetora) e as mudanças ocorridas a partir da década de
1830, cuja perseguição se aprofundou pelo aumento do poderio de proprietários e pela
omissão e impotência dos governos do Ceará e do Brasil.
A segunda parte da tese se dedica a analisar aspectos militares da atuação política
indígena entre a crise do Antigo Regime português e a formação do Estado nacional
brasileiro, bem como sua relação com as transformações do estatuto legal dos índios no
Ceará. No capítulo quinto a prioridade é a legislação relativa à incorporação e o papel dos
índios nas companhias de ordenanças, além das formas de recrutamento militar indígena e seu
significado para as Coroas portuguesa e brasileira na defesa de interesses dos Estados. No
36

sexto as autoridades indígenas têm papel central, por figurarem enquanto intermediadores da
hierarquia imperial portuguesa (e que assistem o fim de seus postos após a independência do
Brasil) e de suas comunidades, agindo pela garantia tanto dos intentos da coroa quanto dos
índios seus subordinados. A análise da documentação permitirá conhecer os caminhos da
agência política desses líderes por meio da busca pela autonomia de suas comunidades e a
partir da maneira como se percebiam enquanto membros dos impérios.
Tanto as autoridades militares quando os indígenas comuns participaram de diversos
eventos bélicos relativos à separação política brasileira e às revoltas liberais oitocentistas. O
sétimo capítulo visa investigar o envolvimento militar dos índios no contexto da
independência do Brasil, que se deu por meio de recrutamentos no intuito de defesa territorial
em 1822 – armados e postos em alerta em diversos pontos da capitania – e para proteger o
Piauí do foco de resistência portuguesa comandado por João José da Cunha Fidié em 1823.
Vendo-se na iminência de serem enquadrados em novos estatutos jurídicos por conta dos
movimentos liberais portugueses, a análise da participação indígena nesses acontecimentos
revela tanto o seu papel para as autoridades do novo país que os recrutavam quanto sua luta
pela defesa das condições de vassalos livres e de outras antigas garantias.
Por fim, o capítulo oitavo reflete acerca do envolvimento dos índios no Ceará nas
revoltas liberais oitocentistas: a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do
Equador de 1824 e a Balaiada entre 1839 e 1841. Na primeira, em 1817, foram convocados
pelo governo para defender o monarca português; já em 1824, seu posicionamento em relação
ao imperador do Brasil dependeu bem mais da conjuntura cearense frente à nacional. Ainda
que fossem tratados como "valorosos vassalos" por quem os recrutava e que se portassem
como fiéis às Coroas, as ocasiões não excluíam a diferenciação entre brancos e índios – por
conta de seus hábitos tidos como perigosos (de que "todos os bens eram comuns") – e o
sentimento de animosidade com as pessoas "de coiro alvo".
No caso da Balaiada, a adesão se deu pelos índios da Ibiapaba aos rebeldes do Piauí e
Maranhão contra a ordem regencial, mesmo que declarassem lutar em nome do rei. No
conflito se expressou a concretização do que era temido pelos governos locais nas revoltas
liberais anteriores: a união de índios aos negros e mestiços, ressentidos do fim de antigas
garantias do tempo do império português, rebelando-se contra os brancos e as autoridades. Em
tais situações de confronto bélico é possível refletir acerca dos significados indígenas de
vassalos e cidadãos brasileiros e das relações que estabeleciam com não-índios e os governos,
em meio a mudanças nos seus estatutos legais que cada vez mais ameaçavam suas condições
de trabalho e a preservação de suas terras.
37

Esse longo processo de transformações políticas, vivido pelos índios no Ceará no


início dos oitocentos, não se reduz à mera sequência de fatos locais de uma minoria, e muito
menos à crônica de massacres e dizimação. Esta pesquisa procura seguir uma tradição
historiográfica que há mais de 20 anos insiste em reafirmar que os povos indígenas tiveram e
têm história e dela são coautores. Contar sua participação na formação do Estado nacional
brasileiro é conhecer sua constituição enquanto entes políticos e jurídicos, cuja atuação se faz
presente nas situações e nos desafios dos índios do século XXI.
38

1ª PARTE
NA LEI
39

CAPÍTULO 1
O DIRETÓRIO NO CEARÁ APÓS 1798

"Mas nem por isso se deve extinguir os diretores, nem tampouco deixar
de se distribuir os índios a salário, e a jornal da maneira prescrita pelo
Diretório, fim principal a que se dirigem todas as representações dos
índios, ignorando os grandes males que se seguiriam de ser deferida
uma tal súplica”
(De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal.
Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN, C-199, 14)

1.1. O "VAZIO LEGISLATIVO"

Manuela Carneiro da Cunha caracterizou de “vazio legislativo” o período entre 1798 e


1845 (quando se criou o Regulamento das Missões), por não ter havido neste intervalo uma
lei geral para regular a política indigenista no Brasil. Segundo ela, a legislação “do século
XIX, sobretudo até 1845, é flutuante, pontual, e como era de se esperar, em larga medida
subsidiária de política de terras”. Com a revogação do Diretório, criou-se, segundo ela, "um
vazio que não seria preenchido"; sua anulação só ocorreu “por falta de diretrizes que o
substituíssem" e, mesmo assim, "parece ter ficado oficiosamente em vigor. No Ceará [...]
permanece [como] um parâmetro de referência”.1
Outros autores reforçaram a tese, ao interpretarem a influência ou presença do
Diretório em algumas regiões como um sintoma da ausência de outros regulamentos.2 Para
Patrícia Sampaio, o Diretório permaneceu em boa parte do Brasil pela "falta de Diretrizes que
o substituíssem [...], vigorando extra-oficialmente em várias regiões, chegando até mesmo a
ser reestabelecido em 1843 no Ceará".3 Além de acreditar que o funcionamento da lei
pombalina se deu contra as determinações do Estado português – o que, pelo menos até 1822,
não é verdade, já que até esta data não há registro de nenhuma lei ou ordem da Coroa lusitana
para a anulação do Diretório em todo o Brasil – conclui que a "Carta de 1798, aparentemente,
1
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma
compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo,
1992, p. 09. Idem. Política indigenista no século XIX. História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras,
1992, p. 139.
2
MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras: terras indígenas nos sertões fluminenses (1790-1824). Tese
(doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 63. LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro:
visões sobre os povos indígenas e a construção de uma simbologia nacional do Brasil (1808-1831). Dissertação
(mestrado) – USP, 2010, p. 93. IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio: los indios de
Brasil desde el Directório hasta la abolición de la esclavitud indígena (1750-1845). Cuadernos del Tomás, n.
04, 2012, p. 37. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade,
territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, p. 229 e 232.
3
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus:
Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 228. Grifo meu.
40

ficou restrita ao Pará e suas capitanias subordinadas", mesmo tendo sido aplicada em outras,
como Espírito Santo, São Paulo e Rio Grande do Sul.4
Parte da historiografia, por outro lado, vem discordando da perspectiva do "vácuo
legislativo" para caracterizar a política indigenista no início dos oitocentos. Apesar de
levarem em consideração os incontáveis conflitos, embates políticos e acaloradas discussões
sobre o assunto, as explicações apresentadas para a inexistência de uma lei geral para os
povos indígenas no Brasil nesse contexto supõem que o tema tenha sofrido a concorrência de
outros mais urgentes ou pela falta de consenso no legislativo brasileiro durante a formação do
Estado nacional.5 Definem a conjuntura do primeiro reinado pela falta de opções, e não
observam, portanto, os anos anteriores a ela e os possíveis interesses da Coroa portuguesa
com a manutenção da lei.
Com o início dos oitocentos, o padrão de diferenças regionais permaneceu, revelando
que, neste aspecto, não houve mudanças significativas. A Carta Régia de 1798, pensada para
o contexto paraense, foi aplicada ou não em diversos lugares dependendo de cada conjuntura.
Mesmo para onde se seguiu a recomendação de extinção do Diretório não se pode acreditar
que as ações dos governos locais se deram da mesma forma que no norte. Se as reclamações
em relação aos diretores, à decadência das vilas e à “incivilidade” dos índios parecia ser uma
constante em todas as regiões do Brasil, que diferenças motivaram ações tão díspares,
sobretudo no Ceará, onde a diretriz pombalina permaneceu vigente por tanto tempo?
Nas capitanias onde a Carta Régia não teve efeito não se instaurou necessariamente
um vazio, sendo fundamental, portanto, compreender as particularidades da região, as
diversidades das experiências indígenas e da própria legislação indigenista do século XIX no
âmbito das províncias, como afirma Patrícia Sampaio em artigo posterior à tese que deu
origem ao livro já citado.6 Após a expedição da Carta, cada governo passou a utilizar as
determinações régias que, do seu ponto de vista, melhor se ajustassem às suas próprias
conjunturas sociais e econômicas, raras vezes tendo caráter geral, segundo Maria Regina de

4
Ibidem. Ver também, a esse respeito: MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos
índios, pp. 223-243. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado
nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012. SOUZA,
Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os indígenas do planalto meridional
na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
5
MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado.
Dimensões, v. 14, 2002, pp. 92-93. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 71-72. SILVA,
Natalia Moreira da. Papel de índio: políticas indigenistas nas províncias de Minas Gerais e Bahia na primeira
metade dos oitocentos (1808-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João del-Rei, 2012,
p. 19.
6
SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo
(Org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 184.
41

Almeida. O Diretório, contudo, não era apenas um “parâmetro de referência” para as práticas
governamentais:7 continuava oficialmente em vigor, já que a carta emitida em 1798 continha
determinações dirigidas ao Grão Pará e não para toda a colônia.
Tudo isso é característico do funcionamento legal do Antigo Regime de Portugal,
como vimos na introdução com Hespanha,8 tornando-se anacrônico falar em "vazio
legislativo" por conta da ausência de uma lei geral. Com a independência do Brasil e a crise
desse modelo político, há a tendência de formulação de leis gerais, apesar da herança do
sistema anterior ser perceptível em algumas circunstâncias, como era o caso da continuação
da aplicação do Diretório no Ceará, vigente até a década de 1830 e reativado em 1843. No
âmbito indigenista, só passou a existir uma legislação que abarcasse todo o território nacional
no ano de 1845, com a promulgação do Regulamento das Missões, resultante de uma longa
trajetória de discussão "na busca de uma definição geral da política indigenista", como afirma
Kaori Kodama.9
Para entender o porquê de a Carta Régia de 1798 ter sido aplicada em alguns lugares e,
em outros, o Diretório ter continuado em vigor, é preciso, primeiramente, estar atento ao
contexto maior onde estava inserida a Coroa portuguesa. Havia uma urgente preocupação da
monarquia portuguesa no final do século XVIII com a proteção de suas fronteiras externas,
somada à carência de mão-de-obra no norte da colônia. O contexto explica a ênfase da Carta
Régia de 1798 na questão militar, indicando que os índios integrados seriam importantes
aliados políticos.10
Em segundo lugar, apesar de 1798 ter sido o ano quando, pela primeira vez, houve
uma declaração aberta da monarquia lusitana de que seu projeto não havia logrado sucesso, as
iniciativas que motivaram tal posicionamento e as consequentes mudanças de rumo vieram,
entretanto, da própria colônia portuguesa, mais especificamente da região para onde foi
pensada a lei de Pombal. As críticas à política pombalina foram constantes em todo o Brasil
durante sua regência, inclusive em território paraense. A civilização dos índios, o
desenvolvimento das vilas e o fornecimento regular de mão de obra pareciam não ter sido

7
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte: reflexões sobre a política indigenista e
cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP, n. 79, 2008, p. 95-96.
8
HESPANHA, Antônio Manoel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1, nº 3, 2006, pp. 95-
116.
9
KODAMA, Kaori. Os filhos das brenhas e o Império do Brasil: a etnografia do Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil (1840-1860). Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005,
p. 233.
10
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São
Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 117. ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e
outros documentos sobre índios no códice 807. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro: ano 163, nº 416, 2002, p. 177. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 230.
42

alcançados no Grão-Pará na visão de vários representantes do poder monárquico que por lá


passaram. Mesmo na década de 1790, cerca de 30 anos após sua instauração, a proposta de
união entre a liberdade concedida aos índios e sua transformação em força de trabalho
disponível não havia sido concretizada na prática, e a administração criada por esta legislação
– os diretores em especial – era geralmente responsabilizada pelo fracasso.
Em meio a problemas como a ausência de mão-de-obra, os diretores eram
referenciados como responsáveis tanto por monopolizarem para si a exploração violenta sobre
essa população como pela fuga dos indígenas motivada pelos maus tratos que recebiam. As
vilas de índios, projetadas para ser espécie de “celeiros” de trabalhadores,11 acabavam por não
suprir essa necessidade. Francisco de Souza Coutinho, então governador da capitania do
Grão-Pará, produziu em 1797 o “Plano de civilização dos índios”, que deu origem, no ano
seguinte, a emissão da Carta Régia que aboliu o Diretório. Centrada na ocupação territorial
promovida por povoados de habitantes livres e na restituição da liberdade aos indígenas, a
maior diferença da Carta em relação à lei pombalina, segundo Sampaio, estava “no que diz
respeito à supressão de uma tutela exterior (nesse caso, laica) sobre as populações já
estabelecidas nas vilas e lugares”. Ou seja, com a nova legislação, o tão criticado cargo de
diretor deixava de existir. A ideia, portanto, era promover uma permanente disponibilidade de
índios, inserindo-os em corpos militares ou de trabalho, para uma devida ocupação do
território através da liberdade de negociação entre particulares e indígenas.12
As diretrizes pombalinas também confirmaram a liberdade dos índios, já promulgada
anteriormente, mas estabelecia limitações a ela diante da grande necessidade de trabalho por
parte do Estado e dos proprietários, especialmente nos lugares com poucas condições de
adquirir grandes contingentes de escravos negros.13 Seu fim principal era a civilização dos
indígenas, que, na visão dos gestores imperiais, não havia sido conseguida com a
11
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil
na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2000, p. 83; LEITE NETO, João. Índios e Terras: Ceará: 1850-1880. Tese (doutorado) –
Universidade Federal de Pernambuco, 2006, p. 106. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção:
civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 183-196. PARAÍSO, Maria
Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos sertões do leste.
Salvador: EDUFBA, 2014, p. 73-74.
12
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 233-234.
13
Segundo João Brígido, no Ceará até "1818 não tinha havido importação direta [de escravos] da costa da
África. Segundo testemunho do governador Sampaio, os que tinham vindo, por via de Pernambuco, de 1813 a
1817 andavam somente por 352. O governador solicitou para o Ceará, em fevereiro de 1818, a graça de poder
importar escravos da África como se tinha concedido à capitania do Pará. Não foi porém concedida". In: A
Fortaleza em 1810. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVI, 1912, p. 107.
De acordo com Bárbara Sommer, durante o reinado de Maria I é fortalecida a ligação entre trabalho indígena e
importação de escravos: a necessidade na mão-de-obra dos índios aumenta quando há dificuldade em obter
cativos africanos. Cf. SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese
policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 88.
43

administração dos religiosos, e, para isso, igualava-os aos brancos enquanto vassalos do rei
português. Tinham direito a cargos de vereação nas suas vilas14 – as antigas aldeias
missionárias – e a títulos de oficiais nas suas companhias de ordenança, mas por ainda
praticarem muitos costumes oriundos do "barbarismo" em que viviam, não tinham condições
de se autogovernar, necessitando da convivência com os brancos e da tutela de um diretor15.
Esta figura seria responsável por vigiar o cotidiano e incentivar, com brandura e docilidade,
os índios a praticarem hábitos civilizados, além de atuarem na organização da principal
ferramenta educativa segundo essa legislação: o trabalho. Era papel dos diretores pôr ordem e
disciplina nos indígenas em suas roças, distribuí-los aos proprietários que os requeressem e
cuidar de seus pagamentos.
No caso da Carta Régia 1798, a grande novidade, portanto, estava na dispensa dessa
figura tutelar, estabelecendo liberdade aos índios para comercializar e prestar serviços aos
proprietários que bem entendessem. Por outro lado, como compensação ao fim da tutela, a lei
obrigava-os ao correto exercício de suas funções. 16 Ou seja, nos dois casos, a liberdade trazia,
na prática, como ônus, o serviço compulsório.
Ao contrário do que afirma Manuela Carneiro da Cunha, que generaliza o contexto
indígena no Brasil entre 1798 e 1845 ao falar que o autogoverno vigorou entre os índios em
decorrência da Carta que extinguiu a função dos diretores, o cargo continuou existindo no
Ceará por conta da manutenção do Diretório.17 Independentemente de podermos ou não
classificar a situação como uma "crise de definição tutelar",18 o fato é que a situação de tutela
acabava para os aldeados no Grão-Pará. Por meio da Carta Régia de 1798, a Coroa declarava
que os índios eram iguais aos demais vassalos, "sendo dirigidos e governados pelas mesmas
leis que regem todos aqueles dos diferentes Estados que compõem a Monarquia, restituindo

14
DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade
não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §2, p. 01.
15
Ibid., §1, p. 01.
16
CARTA Régia de 12 de maio de 1798. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798
e outros documentos sobre índios no códice 807. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro: ano 163, n. 416, 2002, p. 192.
17
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX, p. 152.
18
Rita Heloísa de Almeida argumenta que a diferença mais significativa da Carta Régia de 1798 em relação à lei
pombalina seria o fim da tutela dos diretores, que não resolvia, entretanto, a crise conceitual que inaugurava em
relação a liberdade, menoridade, tutoria e quem seria o responsável – o Estado ou a iniciativa privada – no trato
com a questão indígena. Cf. ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros
documentos sobre índios no códice 807, p. 179. Mesmo concordando com o afastamento da Coroa nos
procedimentos de contato com índios não aldeados, Patrícia Sampaio acredita que não tenha havido,
necessariamente, uma "crise de definição tutelar". Se a condição de tutela continuava aos contatados
recentemente, com a autonomia promulgada aos oriundos das povoações, a obrigação a prestação de serviços ao
Estado e a particulares, enquanto ônus da liberdade, permanecia. Cf. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos
partidos, p. 228.
44

os índios aos direitos que lhes pertencem igualmente aos meus outros vassalos livres". 19 Por
mais que apresentasse continuidade na exploração de sua força de trabalho, a novidade da
substituição dos diretores na distribuição dos trabalhadores indígenas aos particulares e nos
Corpos de Milícias tinha relação direta com os novos planos de povoamento, exploração e
comércio da Coroa para o norte do Brasil.
A Carta Régia de 1798 foi expedida, portanto, em um momento de busca da Coroa
portuguesa pelo fortalecimento do Antigo Regime em sua colônia na América, especialmente
em suas regiões de fronteira, como era o caso da Amazônia. O próprio fato de não ter sido
estendida a todo o Brasil evoca mais um aspecto desse modelo político, no qual as leis eram
aplicadas pontualmente e de forma diferenciada, a partir das particularidades de cada região
ou corpo social. Algumas Cartas Régias produzidas no mesmo dia da que aboliu o Diretório,
em 12 de maio de 1798, podem revelar os planos políticos para a economia e a população de
outras regiões não diretamente atingidas pela nova legislação indigenista. Se não poderia ser
estendida como uma lei geral, outros encaminhamentos foram dirigidos para capitanias
próximas ao território amazônico. Diante de tantas leis, fica difícil visualizar o "vazio".

As outras Cartas Régias de 1798

Tal conjunto se encontra atualmente no Arquivo Nacional, no volume 11 do “Códice


807”, estudado por Rita Heloísa de Almeida.20 Com oito circulares contendo planos relativos
ao comércio, navegação, reconhecimento territorial e ocupação, o códice é formado por
documentos encaminhados ao Pará, Mato Grosso, Goiás, Maranhão, Piauí e,
surpreendentemente, um registro ao Ceará. Com exceção das duas últimas capitanias, a região
abarcada pelo projeto corresponde praticamente a atual Amazônia legal, sendo o governador
da capitania paraense, Francisco de Souza Coutinho, a autoridade responsável por tal
articulação.
Claros estavam alguns direcionamentos que indicavam certa continuidade em relação
às leis anteriores no que concerniam aos lugares a serem ocupados pelos diferentes grupos
sociais. Brancos e negros seriam os principais povoadores, sendo relegado aos índios os
papeis de trabalhadores, situação que provocou a seguinte pergunta de Almeida: o trabalho

19
CARTA Régia de 1798. Apud. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 334-335.
20
ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no
códice 807. Como não pude consultar o volume, por restrições de acesso impostas pelo Arquivo Nacional, não
tenho informações sobre a natureza dessa documentação, se são originais ou cópias, nem o motivo pelo qual
foram agrupadas em um único códice.
45

supostamente livre dos indígenas não seria, de fato, forçado? 21 É bastante curioso perceber
que, simultaneamente a uma lei que previa uma restituição da liberdade aos índios, os
mesmos eram concebidos como a principal fonte de mão-de-obra, semelhante ao que havia
determinado o Diretório.22
Na busca de incentivar a ocupação do território e o desenvolvimento comercial, a
questão da comunicação tinha um papel fundamental nas circulares. O único registro do
conjunto expedido à capitania do Ceará – que também inseria as outras mencionadas – previa
providências sobre o trânsito fluvial entre essas regiões. Segundo a ordem, o “governador e
capitão general da capitania do Pará, dom Francisco de Souza Coutinho” deveria cuidar da
“comunicação [que] se há de tentar fazer pelos rios”. Curiosamente, não há no território
cearense qualquer rio cujo percurso pelo menos se aproxime da bacia amazônica. De que
maneira, então, esta capitania se inseria nos planos e como se daria a participação dos índios,
já que não chegam a ser citados no texto?
Nos anos que se seguiram, a comunicação entre vilas no Ceará e mesmo para outras
regiões passou a se utilizar dos indígenas como mão de obra responsável pelo transporte de
correspondências, sendo posteriormente conhecidos como “índios correio” ou “estafetas”.23
Dez anos após a promulgação das Cartas Régias, em dezembro de 1808, o governador Luiz
Barba Alardo de Menezes comunicou-se com a autoridade do Rio Grande do Norte acerca do
“plano de facilitar a correspondência interior desta capitania, [...] e feita por este modo a nossa
combinação será também muito fácil que se possa estender até Pernambuco” 24
. Menos de
cinco anos depois, o então governador Manuel Ignácio de Sampaio, em resposta a ofício
recebido do Maranhão, tratou do correio que estabeleceu nesta capitania para a de
Pernambuco e das intenções do líder do governo maranhense em fazer o mesmo entre “essa e
esta capitania, como também para a do Pará”25. É possível conjecturar, portanto, que o Ceará,
juntamente com o Piauí e o Maranhão, serviria como uma região estratégica de ligação entre
dois dos principais polos comerciais na colônia portuguesa: Grão-Pará e Pernambuco. Além
do percurso marítimo, havia rotas terrestres onde os índios, mais uma vez, tinham o papel
indispensável de servir como força de trabalho.

21
Ibid., p. 175.
22
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século
XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 167; DOMINGUES, Ângela. Quando os índios
eram vassalos, p. 38-40
23
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 235-264.
24
De Luiz Barba Alardo de Menezes a Lopo Joaquim de Almeida Henriques. Fortaleza, 29 de dezembro de
1808. APEC, GC, livro 31, p. 207V
25
De Manuel Ignácio de Sampaio a Paulo José da Silva Gama. Fortaleza, 26 de fevereiro de 1813. APEC, GC,
livro 23, p. 26
46

A não extensão da Carta Régia de 1798 a outras capitanias, em especial àquelas


próximas à região amazônica, não se deu por mero acaso ou por uma espécie de negligência
legal da monarquia. Todos esses planos revelam um grande projeto comercial de comunicação
e exploração no qual os índios tinham considerável importância. O fato de todas essas ordens
terem sido expedidas na mesma data deixa clara a importância dos indígenas na ordenação
social e econômica imposta pela Coroa lusitana. Rita de Almeida tem razão ao entender que a
Carta “pouca alteração traria em relação aos meios e fins formulados pela legislação anterior”,
já que, mesmo tendo restituído a liberdade aos índios, os coagia a ocuparem o papel de força
de trabalho para o Estado e aos particulares, algo já posto pelo Diretório.26 Almeida acredita
que, juntas, as Cartas Régias "evidenciam uma inter-relação das ações praticadas com os
índios, inserindo a questão indígena nos projetos econômicos" da metrópole.27 Em muitas das
capitanias a que eram destinadas as circulares, a lei pombalina não havia sido anulada, como
era o caso do Ceará, denotando a importância da mão-de-obra indígena, usada havia muito
tempo no transporte de correspondências, e a necessidade de tutela para os índios de algumas
regiões.
Se a característica de mudança mais importante da Carta Régia de 1798 foi o fim da
presença tutelar dos diretores (apesar da continuidade da tutela para os recém-descidos) e a
abertura para iniciativas privadas na captação de mão de obra indígena, sua aplicação se fazia
pertinente em regiões onde a defesa das fronteiras externas e internas e a expansão agrícola
eram questões de primeira ordem. No Ceará, as demandas eram outras, como veremos à
frente.
Segundo Cunha, no século XIX, “a questão indígena deixou de ser essencialmente
uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras”, posto que, naquele
período, a “mão de obra indígena só é fundamental como uma alternativa local e transitória
diante de novas oportunidades”.28 Contudo, em algumas regiões, o trabalho dos índios nunca
deixou de ser crucial e urgente, mesmo com o crescimento avassalador das tomadas de suas
terras. Bárbara Sommer afirma que o Diretório foi, em parte, extinto por conta das vilas não
suprirem a demanda do Estado por trabalhadores indígenas.29 Porém, enquanto as
determinações da Carta Régia de 1798 podiam atender às expectativas de arregimentar mão-
de-obra indígena não aldeada nos sertões para os colonos na Amazônia, no Ceará, o fim da

26
ALMEIDA, Rita Heloísa de. A Carta Régia de 12 de maio de 1798 e outros documentos sobre índios no
códice 807, p. 171.
27
Ibid., p. 176.
28
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX, p. 133.
29
SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 155.
47

tutela dos diretores dificilmente resolveria esse problema. Patrícia Sampaio procurou ainda
vincular a grande necessidade da economia da Amazônia de mão de obra indígena –
contrapondo-se à ascensão da questão da terra apontada por Cunha – à não aplicação da Carta
Régia de 1798 em outras capitanias.30 O problema é que, como vimos, o Diretório continuou
em vigor no Ceará, justamente por ter, assim como o Grão-Pará, uma forte demanda da força
de trabalho dos nativos para suas atividades econômicas.

1.2. AS DEFESAS DO DIRETÓRIO

"Tratava-se [...], essencialmente, de povoar?",31 pergunta Fernando Novais acerca da


política colonial portuguesa durante a crise do Antigo Regime. No período onde a monarquia
buscava estimular a acumulação primitiva de capitais, "elemento constitutivo do processo de
formação do capitalismo moderno",32 impunha-se a "adoção de formas de trabalho
compulsório", com forte destaque para o escravismo. Para isso, não bastava, no Brasil, apenas
o povoamento: este se organizava "através do engajamento de trabalhadores (europeus,
aborígenes ou africanos, conforme o caso)". Portanto, "o essencial era a exploração", cujas
várias formas de trabalho ficavam, para o autor, "ainda por explicar". 33 Ainda assim, acredita
ser indiscutível "que os indígenas foram também utilizados em determinados momentos",
mesmo que a sua rarefação demográfica e a importância do tráfico negreiro para o comércio
colonial possibilitassem a preferência econômica em relação à escravidão africana. 34
A situação do Ceará à época era diferente do que descreve o autor e das capitanias que
adotaram a Carta Régia de 1798. Até o final do século XVIII, a atividade econômica
predominante em território cearense era a pecuária e a comercialização de couro e carne seca,
quando foi suplantada pela cultura do algodão.35 A mão-de-obra era majoritariamente livre,

30
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 245.
31
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São
Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 99.
32
Ibid., p. 70.
33
Ibid., p. 98-99.
34
Ibid., p. 105.
35
Cf. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos: origens do trabalho livre no Ceará
colonial. Revista de Ciências Sociais, vol. 20/21, n. 1/2, 1989/1990, p. 10-11. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia.
Fontes inéditas para a história indígena no Ceará. In: PORTO ALEGRE, Maria Sylvia; MARIZ, Marlene;
DANTAS, Beatriz Góis. Documentos para a história indígena no Nordeste. São Paulo: USP/NHII/FAPESP,
1994, p. 19. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira
da capitania do Ceará (1780-1822). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 1997, p.
77-83. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza:
Fundação Ana Lima, 2008, p. 197-199. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do
Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade
48

ainda que, como a historiografia mostrou nas últimas décadas, a escravidão tenha sido bem
mais importante do que se acreditava.36 A partir da década de 1780 se iniciou o auge da
produção algodoeira no Ceará, que coincidiu com as tentativas, por parte dos ricos
comerciantes da capitania, de emancipação em relação a Pernambuco, ocorrida em 1799.37
Segundo José Jobson Arruda, este contexto foi marcado pela dinâmica da economia mercantil
de subsistência que integrou o Brasil no mercado mundial, por meio das diferentes zonas
produtivas e dos variados padrões de acumulação nas regiões brasileiras. 38 Fortaleza se
consolidou como capital, apesar de menos estruturada que outras vilas, tanto por conta das
condições de seu porto quanto pela estratégia da Coroa portuguesa de concentrar o poder em
uma região “neutra”, ou seja, longe dos conflitos entre potentados das diferentes ribeiras.39
Outra característica relevante de Fortaleza, também importante em sua definição como
capital, era sua proximidade com as regiões produtoras se algodão e das vilas e povoações
indígenas. Os índios formavam, até meados dos setecentos, parcela considerável dos escravos
capitania, até que, por meio do Diretório, foram considerados definitivamente livres.
Curiosamente, na segunda metade do século XVIII, a população escrava no Ceará cresceu em
decorrência do desenvolvimento da economia em algumas regiões da capitania.40 Em outras,
onde se localizavam as lavouras algodoeiras, os índios continuaram a ser uma indispensável
reserva de mão-de-obra. O desenvolvimento econômico, atrelado à emancipação da capitania
e a supremacia de Fortaleza como capital, principal porto exportador, aumentou a necessidade

Federal do Ceará, 2010, p. 20-30. DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure
(CE): 1798-1860. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2012, p. 61-62, 113.
36
CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará: the need for a reappraisal.
Revista de Ciências Sociais, vol. IV, n. 1, 1973, pp. 31-43. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas
para a história indígena no Ceará, p. 18. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do
meu trabalho”: negros de cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822). Tese (doutorado) – Universidade Federal
do Ceará, 2015, p. 18-19.
37
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 16-17. LEITE NETO, João. A
participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822),
p. 79.
38
ARRUDA, José Jobson de Arruda. O sentido da colônia. Revisitando a crise do antigo sistema colonial no
Brasil (1780-1830). In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. Bauru: EDUSC; São Paulo:
UNESP; Lisboa: Instituto Camões, 2000, p. 182.
39
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 51-52. “Até a segunda metade do século XIX não
havia uma unidade político-administrativa no que chamamos hoje de Ceará. [...] A administração da capitania
era feita com base naqueles marcos geográficos que haviam sido suas vias de comunicação, ou seja, as ribeiras”
Estas eram “unidades independentes uma das outras [...] com pouco nível de centralização das decisões nas mãos
do capitão-mor, depois de 1799, governador da capitania”. Cf. OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do
Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX: autonomias locais, consensos políticos e projetos
nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e
cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo
Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 17-18.
40
LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da
capitania do Ceará (1780-1822), p. 102-104. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é
fruto do meu trabalho”, p. 16-17.
49

do fornecimento de braços indígenas. Estes, além dos trabalhos nos algodoais por aluguel e
em cultivos como da mandioca, eram também requisitados em outros serviços, como obras
públicas ou artesanato.41 Como afirma Francisco José Pinheiro, os índios se transformaram
em um dos principais grupos cooptados como mão-de-obra para a produção de algodão no
final dos setecentos, “tendo em vista que já havia toda uma legislação regulamentando as
relações de trabalho entre estes e os proprietários”.42
A respeito das especificidades regionais como definidoras das práticas dirigidas aos
índios, Fernanda Sposito concorda que o Diretório e a Carta Régia de 1798 faziam sentido
para a realidade amazônica, e outras conjunturas demandavam ações distintas. Ou seja, era
“difícil para a Coroa conjugar esforços para elaborar uma política que [pudesse] ser
plenamente aplicada em toda a América”. Para a autora, não se pode pensar a questão
indígena deste contexto atrelando-a unicamente a uma dimensão local. Todas as diferentes
ações indigenistas da monarquia lusitana faziam parte “do mesmo processo de consolidação
das fronteiras em alta densidade demográfica indígena”.43
Sposito expõe com lucidez os sentidos distintos que cada uma das políticas
indigenistas – seja do período pombalino como do joanino – poderiam assumir. Entretanto, ao
contrário do que acredita a autora, o quadro legislativo não se resumia à aplicação das Cartas
Régias de 1798 e 1808 (de ataque aos botocudos) para regiões de expansão da fronteira
externa e interna, respectivamente.44 Como mostra Juciene Apolinário, foi ordenada pela
secretaria do reinado de dom João VI em 1821 a plena aplicação do Diretório nas terras dos
povos timbiras, habitantes nos limites das capitanias do Maranhão, Goiás e Pará – região
fortemente assediada pelo avanço das fazendas de gado.45
Além disso, justamente por conta do caráter multifacetado da política indigenista no
limiar do século XIX, a questão indígena não era relevante apenas em periferias ou áreas de
expansão de fronteira.46 Já em meados dos setecentos haviam sido fundadas vilas em todas as

41
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 21-25. PORTO ALEGRE, Maria
Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará, p. 19-21. LEITE NETO, João. A participação do
trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822), p. 93-104.
PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 226.
42
PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 200.
43
SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de
d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 108-109.
44
Ibid., p. 109-110.
45
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Povos timbira, territorialização e a construção de práticas políticas nos
cenários coloniais. Revista de História, n. 168, 2013, p. 264-265.
46
SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português, p. 109.
50

ribeiras do Ceará.47 Nos oitocentos, o território cearense não era uma região de expansão de
fronteira (externa ou interna), e nem por isso deixou de estar nos planos de desenvolvimento
econômico da Coroa, com os índios ocupando um papel destacado nas discussões. Ou seja, a
questão indígena deve ser vista a partir da conjugação de dilemas centrais da monarquia com
as particularidades regionais.
Semelhante ao que ocorria no Grão-Pará, as reclamações dos administradores
portugueses em relação à ineficácia do Diretório no Ceará eram constantes por conta dos
abusos dos diretores e donos de terra.48 Mesmo assim, como afirma Pinheiro, “a manutenção
das vilas de índios era essencial, pois estava se iniciando a produção de algodão na capitania e
a força de trabalho indígena seria fundamental”.49 A preocupação maior das autoridades
imperiais em território cearense era o controle da mão-de-obra, em sua maioria livre – com
variações entre as regiões – e que tinham como característica demográfica a dispersão
geográfica e o constante nomadismo.50 Lá, como veremos ainda neste capítulo, os membros
do governo entendiam como inviável a anulação do Diretório, que garantia o controle dos
diretores sobre o cotidiano de trabalho dos índios e o vínculo das comunidades às vilas,
verdadeiros "celeiros de mão de obra".
Era prioritário para a Coroa e os estadistas lusitanos "o aumento da quantidade e a
melhora da qualidade da produção colonial".51 Nesse contexto, destaca-se dom Rodrigo de
Souza Coutinho (irmão do governador do Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho) que
ocupou vários cargos na Corte portuguesa, preocupado com o "fomento da exploração
econômica no Brasil" e em "reorganizar a exploração ultramarina".52 Intrínseco aos

47
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 6-7. FELIX, Keile Socorro Leite.
“Espíritos inflamados”, p. 21-23.
48
PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 214-219.
49
Ibid., p. 220.
50
Em sua análise dos dados populacionais no Ceará entre os séculos XVIII e XIX, Chandler não atenta para a
maior facilidade que havia em computar escravos do que a população livre e dispersa, além dos índios terem
sido, muitas vezes, obscurecidos nas diversas classificações referentes aos mestiços ou até mesmo na categoria
“brancos”. Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará, p. 34-36. Ainda
assim, é exagerada a afirmativa de Pinheiro, para quem, no Ceará, “o trabalho escravo africano foi
insignificante”. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 226. Raimundo
Nonato de Souza, por exemplo, mostra que houve um crescimento no número de escravos do vale do Aracaú no
final do século XVIII, além da significativa população negra, forra e proprietária. Cf. SOUZA, Raimundo
Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”, p. 173. Em contrapartida, Billy Chandler,
João Leite Neto e Rones Duarte apresentam a relativamente baixa porcentagem de cativos nos habitantes das
vilas próximas a Fortaleza. Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará,
p. 40-41. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da
capitania do Ceará (1780-1822), p. 98-99. DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia
agropastoril – Soure (CE), p. 98.
51
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, p. 254.
52
Ibid., p. 117-119. No ministério de Coutinho a "civilização" dos índios tinha papel fundamental, seja pela
liberação das terras por eles ocupadas – promovendo o povoamento, circulação e comércio nessas regiões –
51

programas reformistas de Portugal do final do século XVIII estava o objetivo de recuperação


da antiga grandeza do império, imbuídos da missão de civilizar os povos de seus domínios
ultramarinos. Cabia ao Estado, portanto, prover aos súditos a prosperidade, o bem comum e a
felicidade, termos recorrentes na documentação e que remetiam à ambição iluminista advinda
da civilização.53 Em relação aos índios do início dos oitocentos, o Diretório servia como um
dos arcabouços legais de regulação das práticas da metrópole, cujo intuito era torná-los felizes
e transformá-los em indivíduos úteis aos interesses públicos.54
Quando o olhar se direciona aos contextos locais, fruto da interação de diversos
agentes formadores da sociedade colonial nas vilas, percebe-se que as concepções relativas
àqueles povos passam a ter feições distintas do que era pensado na lei. As imagens acerca dos
índios, construídas pelos administradores metropolitanos, eram oriundas de suas ideias
políticas e filosóficas em choque com a realidade prática com a qual se deparavam, e que, por
isso, se transformavam de acordo com a particularidade das situações. Muitas das práticas
civilizadoras, teorizadas no outro lado do Atlântico, eram fatalmente abandonadas ou
adaptadas pelos administradores portugueses quando lidavam com os povos na América, que
se posicionavam de maneiras incontrolavelmente diferentes ao que era previsto. Com o
tempo, os habitantes da colônia, segundo Domingues, percebiam que os “conceitos de
felicidade, bem comum, riqueza e progresso não tinham aplicabilidade quando se tratava das
etnias ameríndias [...], porque reconheciam que estes objetivos eram diferentes para luso-
brasileiros e índios”.55
Como aconteceu no Grão-Pará, os planos da Coroa eram questionados por muitos
governadores das capitanias quando percebiam que os indígenas, mesmo se relacionando com
os brancos e submetidos ao poder imperial, não se transformavam em súditos ideais. As
explicações para o insucesso do projeto indigenista estavam tanto na ação dos nativos – a
partir de sua natureza “indolente” – quanto no despreparo e abuso dos diretores56 sobre a

como pelo seu aproveitamento enquanto mão de obra. Cf. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p.
44-45.
53
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, p. 217-218.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período
colonial (século XVI a XVIII). In: CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 122.
54
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 299-303.
55
Ibid., p. 324.
56
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas fronteiras do sertão: as práticas
das políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás – século XVIII. Tese (doutorado) –
Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 160-161. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram
vassalos, p. 156. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte
sob o Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p.
451. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 216-218.
52

população de quem deveria cuidar e fazê-la "tomar consciência” da “convicção relacionada


com o ‘bem comum’”.57
No entanto, mesmo que houvesse críticas às leis ou suas aplicações por parte dos
líderes do governo cearense no período estudado, alguns se posicionaram pela manutenção
das políticas indigenistas que vinham sendo adotadas desde a segunda metade do século
XVIII. Se acreditavam que o Diretório, ou sua aplicação, era falho, por que as soluções
alternativas que propuseram não sugeriam sua abolição? Vários aspectos da população
indígena e da demografia e economia do Ceará foram importantes para que se manifestassem
em favor da continuidade da lei pombalina. Veremos agora exemplos de dois governadores da
capitania no século XIX que defenderam a manutenção do Diretório por acreditarem ser a
ferramenta que melhor atendia os intentos da metrópole, pela simetria dos objetivos da
legislação setecentista com os do Estado português no Ceará em termos de produção
econômica e uso da população disponível.

O grau de liberdade

O primeiro deles foi Bernardo Manuel de Vasconcelos. Chefe de esquadra da Armada


Real Portuguesa, nomeado governador do Ceará por decreto de 18 de outubro de 1797, 58 era,
segundo Geraldo Nobre, “o mais notável de todos à época de sua nomeação, pois era veterano
de várias campanhas, com uma folha de serviços comprobatória de sua capacidade e de seu
patriotismo”.59 Para a produção de uma memória dirigida à rainha dona Maria I em 1799,
quando assumiu o governo cearense, Vasconcelos encontrou em “Francisco Bento Maria de
Targini perfeitos conhecimentos da mesma capitania, mostrados por princípios físicos e
políticos”.60

57
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século
XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 183
58
Cf. ALMEIDA, Manuel Lopes de. Notícias históricas de Portugal e Brasil (1751-1800). Coimbra: Coimbra
Editora, 1964, p. 369.
59
NOBRE, Geraldo da Silva. O Ceará capitania autônoma. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa
Universitária, tomo especial 8, 1987, p. 88.
60
De Bernardo Manuel de Vasconcelos à rainha Dona Maria I. 1799. AHU_CU_006, Cx. 13, D. 745. Salvo
indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. Visconde de São
Lourenço e responsável pelo Real Erário do governo de dom João VI, Targini foi também “Escrivão e Deputado
da Junta da Fazenda do Ceará por nomeação de 25 de janeiro de 1799”. Cf. A correspondência de Bernardo
Manoel de Vasconcelos e João Carlos Augusto d’Oyenhausen com os ministros D. Rodrigo de Souza Coutinho e
Visconde de Anadia como subsídio para a história de seus governos. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
tomo III, 1889, p. 142. Segundo Isabel Lustosa, Targini teria saído do Ceará brigado com governadores e
ouvidores por conta de práticas administrativas desonestas, indo para o Rio de Janeiro em 1807 e ficando
conhecido como "homem mais corrupto da corte de d. João". Cf. LUSTOSA, Isabel. Do ladrão ao barão. Folha
53

Figura 1 – Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço. 1819.

Henrique José da Silva. “Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço”. In: POPE, Alexandre.
Ensaio sobre o homem. Tradução: Francisco Bento Maria Targini. Londres, Sociedade Literária da Grã-
Bretanha, 1819 (gravura aquarelada). Biblioteca Nacional de Portugal, Iconografia, E-4673-P. Disponível em:
<http://purl.pt/13099>.

Sobre os “naturais tapuias, ou caboclos (a que vulgarmente chamam índios)”, viviam,


segundo o governador, “naquela indolência que influi nos seus habitantes os climas mais
ardentes”. Seriam, por outro lado, “susceptíveis de estímulo e de condição de obrarem quando
um superior sábio, e ativo, lhes inspirar”, ao invés de os “sujeitar pelas suas próprias
inclinações” como acontecia no Ceará, onde os índios trabalhavam por um

"pequeno salário de cinquenta reis por dia que lhe dá o diretor, que não os
satisfazendo, fogem das povoações e se ocultam nas montanhas, aonde vão cultivar
um terreno que lhe dê para si e suas famílias quanto necessitam, gozando de uma
vida mais tranquila e livres da cobiça do Europeu, que tanto os consterna".

de São Paulo, jun. 2007. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0306200707.htm>. Acesso


em 18 de novembro de 2014.
54

O contato com os brancos que, segundo o que a Coroa e os legisladores acreditavam,


poderia ser um caminho para a “civilização” dos índios, os afastava de forma cada vez mais
obstinada dos centros urbanos e das influências do império. Tal raciocínio se assemelha às
críticas de ouvidores em relação à dificuldade de aplicar o Diretório no Grão-Pará, por causa,
segundo eles, da ignorância e dos abusos dos diretores, fazendo com que os índios
preferissem viver na natureza do que na “sociedade civil”, na “liberdade do homem, que na do
cidadão”.61 Vasconcelos prosseguiu em sua argumentação a partir do pensamento de Targini,
confrontando ainda mais suas bases políticas e filosóficas com uma realidade para ele
surpreendentemente adversa. Contou que os relatos dos “maiorais” indígenas “alcantilados
nas serras, [...] atento aos seus dispersos”, convenceram-no de que "aqueles homens,
animados tão somente das luzes da natureza, não deixam de ser mais sábios, e menos felizes,
do que nós somos, neste século da mais apurada filosofia".
O bem comum, objetivo máximo das políticas populacionais desse período e das
legislações embasadas em princípios ilustrados, é enfim questionado na fala do governador.
Parece concordar, mesmo ainda sem experiência, que as políticas de civilização até então
praticadas com o Diretório, por conta de sua má execução nas vilas de índios, surtiam efeito
inverso ao pretendido pela lei. Viver sob as chamadas luzes da natureza, afastados da
sociedade civil, poderia ser sinal de grande sabedoria, ainda que longe da “felicidade” tão
almejada pela “mais apurada filosofia”. "Ser feliz" era impossível para essas pessoas, privadas
das benesses da civilização pela cobiça e mau tratamento que recebiam de quem a lei
pombalina incumbiu para educá-los.
O definhamento da condição de vida da população indígena parecia vir, portanto,
justamente dos agentes e da estrutura administrativa que visava seu crescimento, cujo
conceito estava diretamente atrelado aos hábitos civilizados e à produção econômica. Atesta
tal condição ao tratar mais especificamente das vilas, que eram sete à época, e

"consideravelmente diminutas, pelo vexame que lhe causa o bárbaro costume, dos
governadores, ouvidores, diretores, e vigários, de arrancarem os filhos dos braços de
seus pais, e os mandarem servir a diferentes capitanias, donde jamais voltam à sua
pátria, debilitando-se, assim, a cultura tão necessária daquele terreno"

61
SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. As viagens do Ouvidor Sampaio (1774-1775). Lisboa: 1825;
Manaus: Associação Comercial do Amazonas/Fundo Editorial, 1985, p. 137. Apud. SAMPAIO, Patrícia Maria
Melo. Espelhos partidos, p. 220.
55

Os espaços imaginados como polos civilizadores dos indígenas eram a marca, segundo
o governador, da decadência das ações governamentais por conta da deturpação do trabalho,
pensada inicialmente como ferramenta educacional. Ao estudar o contexto do Rio Grande do
Norte, Fátima Martins Lopes aborda a construção da imagem de desolação das vilas dessa
capitania nos relatos de observadores da época: por um lado, a situação refletiria a decadência
moral de seus habitantes; por outro, se explicava pela ação abusiva dos diretores. Mesmo se
levando em conta o olhar do observador europeu, que traduzia os atos de resistência dos
índios enquanto sinal de uma índole degenerada,62 é preciso reconhecer os efeitos
devastadores da superexploração que essa população sofria por parte de seus gestores.
No olhar de Vasconcelos, o trabalho indígena, ao invés de ser uma ferramenta
transformadora de bárbaros em vassalos, acabava por servir a interesses particulares. Tais
atitudes seriam evidentemente danosas, seja por separar famílias, mas principalmente por
atingir aquilo que era prioritário ao império, ou seja, a criação, naquela região, de um
campesinato produtivo. No contexto descrito pelo governador, com base no pensamento de
Targini, os costumes bárbaros eram praticados pelos administradores, representantes das luzes
europeias na América, e não necessariamente – ou unicamente – pelos índios, bem mais
sábios por se alcantilarem em meio à natureza.
Em 1º de abril do ano seguinte, já ambientado na capitania que passou a governar,
Vasconcelos produziu novo ofício sobre os índios e suas vilas, dessa vez a partir de
conhecimentos próprios e do que ele mesmo observou.63 O remetente era dom Rodrigo de
Souza Coutinho, em resposta às cartas por ele encaminhadas: uma delas trata do "cuidado da
civilização dos índios, a qual me pondera V. Exª. tem sido até agora tão mal praticada e
entendida". Vasconcelos concorda com Coutinho, para quem, dentre os vários motivos para a
má situação, o principal era a má escolha dos diretores, causa maior das deserções dos índios
das vilas para "os seus bosques, de onde primeiramente foram compelidos a sair". O
argumento se relaciona com o que foi dito na memória encaminhada à rainha dona Maria I,
acerca da falta de homens "filósofos" para dirigir os nativos.
Para o governador, as opressões aos índios vinham desde o descobrimento, mas
alcançaram seu ponto máximo com os padres da Companhia de Jesus, cujos "evidentes
testemunhos" eram as leis dos reis D. Pedro II, D. João V e D. José I, "a fim de coibir os
procedimentos arbitrários dos jesuítas sobre os índios seus dirigidos". Após a expulsão dos

62
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 390-392.
63
De Bernardo Manuel de Vasconcelos a Rodrigo de Souza Coutinho. Fortaleza, 01 de abril de 1800.
AHU_CU_006, Cx. 13, D. 769. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a
esse documento.
56

religiosos, a proteção aos índios ficou ao cargo dos diretores, "cujas obrigações se acham
excelentemente prescritas nos diversos capítulos de que se compõem o Diretório, que o
Senhor Rei Dom José mandou ordenar". Fundados "nos axiomas dos direitos natural e das
gentes", era também sobre estes que o rei "regul[ara] as ordens que respectivamente V. Exª.
me dirigi[ra] em 28 de agosto de 1798".
Nessa data, Vasconcelos ainda não havia chegado ao território cearense, mas passara
um mês da promulgação da Carta Régia que aboliu a legislação pombalina no norte do Brasil.
Não foi possível encontrar as ordens de 28 de agosto; contudo, pelo texto de Vasconcelos, fica
clara sua conexão com o Diretório, extinto para o Grão-Pará, mas ainda em voga nos planos
da Coroa para algumas regiões de sua colônia e elogiado pelo governador do Ceará. Ao
contrário do que faziam alguns críticos da época, como o líder do governo paraense Francisco
de Souza Coutinho (irmão do remetente do ofício), Vasconcelos entendia que a crítica à forma
como eram escolhidos os diretores não significava uma condenação à lei que instituía o cargo.
Esta era "excelentemente prescrita" e necessária para um lugar como o Ceará.
Depois de correr "um véu aos efeitos que a proteção tirana dos jesuítas exerceu sobre
os índios", o governador passou a expor o então estado dos índios "relativamente ao governo
dos seus diretores, ao modo com que se acham aldeados, ao emprego que fazem seus
dirigidos, ao grau de liberdade que possuem [característica importante do Diretório, criado
justamente como adaptação às leis de 1755], e, finalmente, à vida social e cristã". Segundo
Vasconcelos, em todas as vilas, curiosamente, viviam "com tranquilidade os índios com os
seus diretores, sem que a opressão tenha, até agora, motivado grandes queixas que necessitem
de providência maior". O maior desafio seria "empregar os índios no trabalho" para sua
própria subsistência.

"Não há, porém, sacrifício maior para um índio que este dever imposto pela natureza
e humanidade. Tirá-los dos seus bosques, arrancá-lo ao ócio, proibir-lhe o furto e o
latrocínio, uni-los com os mais homens nos vínculos da sociedade, são isto
dificuldades que eu talvez não erre chamando-lhe invencíveis".

As reclamações do governador, frustrado com o apego "invencível" dos índios aos


seus hábitos ancestrais, mudam o foco das explicações até então apresentadas para a
civilização mal praticada entre os nativos. Mesmo que presente neste ofício e no do ano
anterior, os abusos perpetrados por autoridades já não eram mais a causa principal da fuga
para os bosques, e a relação que tinham com seus diretores chega a ser caracterizada como
"tranquila". A argumentação de Vasconcelos passa a se voltar aos próprios indígenas, que
57

dividiam a aplicação daquilo que ganhavam como fruto do trabalho em três partes iguais:
"aguardente, farinha e tabaco de fumo", para, em seguida, entregar-se "ao repouso até que o
outro dia lhe faça sentir as mesmas necessidades". Diante do que entendia como um "estranho
modo de viver", o esforço do governador estava em incumbir os diretores de mostrar aos
índios "a utilidade de estenderem as vistas ao futuro, com trabalho antecipado, mostrando-lhes
a habitação que o suor dos outros edificou, a abundância que para si e sua família adquiriu, e
que o descanso só deve vir em consequência do trabalho".
A felicidade, na visão do representante da Coroa, era exclusiva da sociedade civilizada
e estágio impossível para aqueles que não compartilhassem o ideal do trabalho enquanto útil,
fonte de abundância e único meio para o descanso. Não poderia ser constatada de outra
maneira, e muito menos alcançada em outra circunstância, a não ser por meio da
produtividade. Refugiar-se em meio às "luzes da natureza", ainda que sábio – por que melhor
que a exploração – jamais lhes faria felizes. Mas, se em 1799, quando ainda não havia
chegado ao território cearense, esta hipótese era considerada, a convivência com os indígenas
fez com que Vasconcelos mudasse de opinião. Se antes creditava as fugas à má escolha dos
diretores, passou a atribuir "a primeira origem da deserção dos índios das suas vilas e aldeias
para os bosques [...], segundo a experiência me fez ver, àquele natural pendor para o ócio
mais profundo, e a constante repugnância a viverem em sociedade civil".
Na segunda análise do governador, os nativos passam à posição de protagonistas de
sua condição. Mais do que reagir perante adversidades, era dos índios a responsabilidade por
escolher "os bosques" em detrimento da "sociedade". O entendimento europeu iluminista,
contudo, os percebia como infelizes ociosos, e a causa das deserções e de seu modo
"incompreensível" de vida estava em sua natureza, e não em atos racionais. Por isso que o
segundo motivo para as fugas, de acordo com Vasconcelos, era o "emprego dos índios em
serviços estranhos". Não deixou claro do que se tratava, mas disse reforçar aos diretores que
pagassem os salários dos índios "com toda a exatidão, e não se intromet[essem] com o seu
governo doméstico, nem lhes tom[assem] os filhos para serviços estranhos". Sabia que, com
imposição e sem bom tratamento, os indígenas jamais abraçariam a "sociedade civilizada", de
quem, como que por instinto, também fugiam.
Era tarefa difícil, na opinião de Vasconcelos, convencer os índios a adquirir hábitos
civilizados se isso não havia lhes sido mostrado de forma competente. Mas em sua segunda
comunicação, a ação dos diretores deixa de ser o motivo principal para seus obstáculos. A
relação, que antes era tensa, passou a ser tranquila, e o que parecia realmente invencível era o
apego dos índios às matas, aos seus hábitos ancestrais e suas antigas formas de conceber o
58

mundo. Na continuação dos comentários a respeito das ordens que recebeu do rei, tratou da
"inteira liberdade" que não fosse "ofensiva às leis". Parecia-lhe "assaz precisa [...] enquanto os
bons efeitos forem o seu resultado". Para Vasconcelos, em uma

"nação que se assemelha muito a um agregado confuso de homens bárbaros e


independentes, que não obedecem senão às suas paixões particulares, e que não
podem ter um interesse comum, sem se sujeitar à Regra, à Lei e à Sociedade, e a
usos constantes, parece estar nas circunstâncias de se lhe aplicar muito esta
restrição".

O governador abordou a liberdade relacionando-a a leis que a restringiam quando


aplicada a grupos humanos tidos como insubmissos e bárbaros por serem independentes. Tal
raciocínio era diretamente contrário ao que, nesta mesma época, ocorria no Grão-Pará por
meio da extinção da tutela para os índios aldeados, e faz transparecer a concepção de que a
aplicação de determinada lei se guiava por aspectos específicos de cada realidade. No Ceará, a
atuação dos índios fazia com que o governo da capitania entendesse que esses grupos
deveriam ser livres, mas não sem quaisquer limitações, ideias que compactuavam com a
legislação em vigor na região: o Diretório. Não foi possível encontrar as ordens enviadas a
Vasconcelos meses após a promulgação da Carta Régia de 1798, mas as leis a que se referiam
eram, provavelmente, os artigos da legislação pombalina.
"É outro objeto da mesma carta de V. Exª.", e que também fazia parte dos planos do
Diretório, a "abertura de um comércio de troca", e que "entre os índios [se] estabeleçam
algumas pessoas, no qual pratiquem a mais exata boa fé e lisura, e lhes deem a conhecer as
vantagens que lhes devem resultar da comunicação com os europeus". Esse seria "um meio
muito próprio e eficaz de civilizá-los", mas lamenta não haver "descoberto neles alguma
inclinação para o fundamento deste estabelecimento", e nem trabalho "que produza efeito
visível, que seja objeto desse comércio". Mais uma vez, a obstinação dos índios em negar
diretrizes do governo é ressaltada nos insucessos de Vasconcelos.
Após tratar rapidamente da "educação civil e cristã dos índios", expôs as grandes
dificuldades em fazer com que os indígenas construíssem e habitassem suas próprias casas.
Na sua visão, "todo índio, geralmente falando" seria um "agregado de indolência absoluta e de
insensibilidade, mesmo àquela ambição que é justa, e que a natureza infundiu no homem para
fazer obrar muitas e utilíssimas coisas, não só a si mesmo, mas à sociedade". Por conta "desta
total inércia", mantinham o "contínuo costume de não edificarem casas que os abriguem e em
que vivam", e as únicas feitas "são comuns a todos eles, a que denominam Casas da Vila, por
59

que são obrigados pelos diretores". Depois de alguns meses, a vida nas residências era
interrompida

"por digressões ociosas para os bosques [...], de sorte que a mesma Vila é obrigada a
vendê-las com intervenção dos diretores aos brancos, que só por este modo se
conservam as mesmas casas que os índios fazem.
Ninguém sabe que espécie de persuasão invente para convencer os índios de
que a habitação fixa é preferível aos bosques. Só eles são suas delícias, só para eles
fogem: nenhuma sensação lhes faz o aspecto das suas choupanas demolidas, que os
seus braços acabaram ainda a pouco de levantar".

A "obrigação" da vila em vender as casas deveria ser a necessidade, percebida pelas


autoridades, em dar utilidade às edificações que, logo após construídas, eram abandonadas.
Os lucros possíveis dos diretores com as vendas aos brancos parecem não ter sido percebidos
por Vasconcelos, que também não entendia a indiferença dos índios pelas habitações. Por
mais que o governador qualifique as choupanas como "suas", para os índios, não passavam de
obrigações, como ele mesmo mencionou. A vida desses grupos ainda guardava conexões com
antigos costumes e visões de mundo, e esse era o motivo para que o governo percebesse como
necessário restringir sua liberdade através do Diretório.
Se a civilização ainda não havia sido idealmente transmitida aos nativos, a ponto de
sequer residirem em casas e manterem-nas em bom estado, a situação das vilas de índios era,
consequentemente, de ruína, na ótica de Vasconcelos. Depois de ter examinado pessoalmente
as três povoações que circundavam a capital, diz ter dado providências para sua reconstrução.
Sobre Arronches, que se encontrava em pior estado, ordenou ao diretor que não empregasse
os indígenas "em serviços fora da vila", até que seus destroços "de que ela se compõe se
convert[essem] nas casas de que constava".
Segundo John Monteiro, havia “duas grandes tendências que marcaram o debate
indigenista da segunda metade do século XVIII até os anos iniciais do século XX”. Para uns,
o “atraso e a inferioridade dos índios era consequência das ações humanas de maus
governantes, administradores e religiosos”, e outros acreditavam que “os povos selvagens não
tinham jeito mesmo”, centrando as origens de seus problemas na natureza.64 Em cerca de um
ano de experiência no Ceará, tendo conhecido pessoalmente três de suas vilas de índios,
Vasconcelos parece ter cambiado de uma dessas tendências para outra, a partir de um poder
de análise da realidade que presenciara bastante limitado. Não percebia a tensa relação que
outras autoridades constantemente indicaram, antes e depois de seu mandato, entre índios,

64
MONTEIRO, John Manuel. A memória das aldeias de São Paulo: índios, paulistas e portugueses em Arouche
e Machado de Oliveira. Dimensões, vol. 14, 2002, p. 20.
60

párocos e diretores. Apesar de assumir que eram mal escolhidos, aparenta ter esquecido os
relatos de Targini sobre maus tratos, ao falar de uma suposta tranquilidade e atribuindo apenas
à "inconstância" indígena as repetidas deserções. A percepção e ação política dos nativos
fugiam à ótica do governador, que os descrevia de forma quase animalesca, movidos por uma
natureza ociosa.
A pouca compreensão de Vasconcelos representada no antagonismo entre a vila e o
bosque não traz maiores esclarecimentos acerca dos significados das mudanças de espaço
para os índios, como aponta Lígio Maia. As fugas, além de transparecerem "a maneira como
os índios se relacionavam com toda essa construção planejada nas povoações pombalinas",
também manifestavam buscas por melhores condições de vida, assim como contou Targini
sobre os "alcantilados na serra".65 Maia lamenta não ter encontrado fontes semelhantes às que
tratam da trajetória dos nativos no sul da colônia portuguesa, que cruzavam as fronteiras com
o império espanhol dizendo-se súditos de Castela, trabalhadas por Elisa Garcia.66 Mas no caso
cearense, um dos destinos possíveis, quando a saída das vilas era permanente, eram fazendas
particulares, trabalhando como empregados e geralmente sofrendo maus tratos, ou vilas de
brancos, onde eram incorporados às ordenanças do lugar e cultivavam lavouras próprias.67

65
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no
Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 307.
66
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no
extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 859.
67
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 274-280 e 320-323. Bárbara Sommer, a partir dos
estudos de Gabriel Debien, se utiliza das expressões "petit marronnage" e "grand marronnage" para definir
padrões diferenciados de fuga dos índios. Esta última se referia a formas mais permanentes de abandono das
vilas, protagonizadas geralmente por grupos recém contatados, cuja ligação com o mundo colonial ainda era
frágil. No Ceará, como vimos, tais movimento definitivos quase nunca representavam quebra de laços com a
sociedade envolvente, sendo frequente o silenciamento da condição de indígena. Já as "petit marronnage"
representavam formas de protesto contra más condições de trabalho e tratamento por diretores e particulares. Cf.
SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 156. Eram sinais de que as linhas que separavam o mundo
da "gentilidade" – ou dos costumes ancestrais – e da "civilização" eram bastante tênues. Não necessariamente
falsas, como afirma Sommer, já que os grupos nativos lidavam com ela e passaram a percebê-la de forma mais
concreta com o recrudescimento das políticas disciplinares – Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e
invenção, p. 169-264. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 195-363 – além
do fato dos aliados se identificarem como absolutamente diferentes dos gentios, como veremos mais à frente. As
fronteiras eram flexíveis, como coloca a própria autora (SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p.
174), porque frequentemente atravessadas, praticadas e pensadas de maneiras distintas por índios e pela política
da Coroa. Fugas também foram constantes em outras regiões do Brasil, como em Goiás e no Piauí, decorrentes
do aumento do assédio à mão-de-obra dos índios e suas terras entre o final do século XVIII e início do XIX. Cf.
KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás: 1780-1889. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura:
FAPESP: 1992, p. 398. SILVA, Mairton Celestino da. Africanos escravizados e índios aldeados na capitania de
São José do Piauí, 1720-1800. In: SILVA, Mairton Celestino da; OLIVEIRA, Marylu Alves de. Histórias: do
social ao cultural/do cultural ao social. Teresina: EDUFPI, 2015, p. 190-193.
61

A conjuntura indigenista no Ceará se desenrolou de maneira inversa à do Grão-Pará:68


para Bernardo Manuel de Vasconcelos, as próprias fugas dos índios, somadas aos seus hábitos
pouco civilizados, eram o motivo principal para que sua liberdade tivesse restrições. O
Diretório, mantido nesta capitania décadas após 1798, era a lei ideal para esses objetivos. A
lógica da Coroa portuguesa parecia funcionar diferentemente da análise de Bert Barickman
para a realidade colonial do início dos oitocentos. O autor acredita que a lei pombalina
fracassara por não ter conseguido desenvolver o comércio nas vilas pela constante resistência
dos índios.69 Para as autoridades imperiais lusitanas, o Diretório seria uma solução para a
fraca economia e a população insubordinada de regiões como o Ceará, que careciam
fortemente da força de trabalho indígena. Ao contrário do que assevera parte da historiografia,
a legislação pombalina não continuou em partes do Brasil apenas por falta de outras que a
substituísse, já que não havia preocupação da monarquia em aboli-la em toda a sua colônia.
A política indigenista nos primeiros anos do século XIX, como afirma Marina
Machado, atrelava-se aos projetos de colonização e desenvolvimento, não somente em relação
à "dinâmica de ocupação, mas também às possibilidades de utilização de mão-de-obra
indígena".70 Como não havia no Ceará tantas terras a serem desbravadas, a preocupação
estava em agregar a força de trabalho nativa dispersa pelo território, fugida dos espaços
destinados a sua integração à sociedade civilizada. Na continuidade de seus trabalhos, o
governador Vasconcelos comunicou-se novamente com Rodrigo de Souza Coutinho em
março de 1801, agora sobre a reedificação de Arronches, Soure e Messejana, e que esperava
"ver por todo este ano realizados os efeitos da primeira [vila]". Pelo aumento de sua
população, mandou "edificar mais oito casas, o que fica sendo de suma comodidade aos seus
habitantes". Sobre Soure, ordenou a seu diretor que empregasse os índios "no corte das
madeiras necessárias para a reedificação da mesma vila [...], para que assim tenha plena
satisfação de dar pleno cumprimento às sábias e providentíssimas ordens de V. Exª.".71 Ainda
preocupado que os indígenas vissem as casas que eram obrigados a construir como lugares

68
As ações dos índios, que contestavam a sociedade pretendida pela Coroa e os abusos das autoridades através
das deserções, não passavam despercebidas pelo governo imperial, e influenciavam a prática política. Barbara
Sommer acredita que a própria abolição do Diretório no norte do Brasil, substituído pela Carta Régia de 1798,
veio como uma resposta a esses atos e às novas condições demográficas que a mobilidade indígena gerou. Cf.
SOMMER, Barbara Ann. Negotiated settlements, p. 156 e 187. Para Patrícia Sampaio, os planos coloniais para
a Amazônia foram impedidos pelo "simples fato de que seus habitantes tinham seus próprios interesses". Conclui
que "a maior modificação resultante das intervenções das populações nativas sobre a legislação pombalina foi a
sua própria extinção". Cf. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 226.
69
BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth
and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, p. 327-329.
70
MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 59.
71
De Bernardo Manuel de Vasconcelos a Rodrigo de Souza Coutinho. Fortaleza, 31 de março de 1801.
AHU_CU_006, Cx. 15, D. 840.
62

cômodos, vemos que as ações do governo do Ceará, seguindo um caminho diferente do que
ocorria no norte do Brasil por meio da reforma de vilas pombalinas, seguia de acordo com as
determinações do rei.
Tais melhorias eram peças-chave dos objetivos da Coroa para os índios, cuja relação
com os espaços projetados era bem diferente do que pretendiam as autoridades. De acordo
com Marina Machado, as políticas lusitanas de desenvolvimento econômico para a colônia, na
passagem dos séculos XVIII e XIX, viam como vitais "a necessidade de aldeamento e
controle dos índios". Mas, se para o Rio de Janeiro estudado pela autora, o foco estava na
ocupação das terras, na expansão da fronteira de ocupação e na lavoura do café, 72 em
território cearense a ideia era fazer das vilas fornecedoras constantes de mão-de-obra, como
era previsto no Diretório.
O que unia as distintas formas de aplicação da política indigenista no império
português era a "civilização": palavra frequentemente citada na documentação de
Vasconcelos aqui analisada, esse seria o caminho para a plena integração dos indígenas à
sociedade colonial como súditos trabalhadores e disciplinados. O próprio dom João VI, em
outubro de 1802, ordenou ao governador que informasse "com maior exatidão dos progressos
que tem feito a importantíssima civilização dos índios dessa capitania do Ceará", assim como
fez por meio de "ordem circular aos mais governadores do dito Estado do Brasil". 73 O caráter
civilizatório nas ações com os nativos, portanto, não deixou de ser preocupação do príncipe
regente, ao mesclar controle populacional, liberação de terras para cultivo e formação de
contingentes de mão-de-obra, características presentes em seu governo mesmo após sua
chegada ao Brasil.

Os males da perfeita liberdade

O segundo exemplo de defesa do Diretório é a resposta do governador Manuel Ignácio


de Sampaio ao extenso requerimento produzido pelos índios de Vila Viçosa e Baepina, na
serra da Ibiapaba, em outubro de 1814: a mais importante e bem documentada manifestação
indígena contrária à lei pombalina no Ceará oitocentista. Encaminhando à "Soberana Rainha
Nossa Senhora" dona Maria I, os nativos pediram na solicitação que recolhesse "o Diretório
por um decreto, para que os senhores brancos, e outras qualidades de pessoas que residem nas

72
MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 69.
73
De d. João VI e ministros do Conselho do Ultramar a Bernardo Manuel de Vasconcelos. Lisboa, 12 de outubro
de 1802. AHU_CU_006, Cx. 17, D. 946.
63

terras dos índios, cada um procure suas pátrias". Só assim se veria "florescer os índios nos
aumentos da sua vila e dos seus negócios", impedidos pelos brancos que lhes tiravam "todo o
seu direito". Requereram ainda a devolução de algumas terras aparentemente invadidas e que
mandasse mantimentos que pagariam com algodão.74
A resposta da Coroa foi expedida ao final do mês de outubro, solicitando que o
governador informasse "sobre as pretensões dos suplicantes, dando, entretanto, que o mesmo
Senhor não as resolve, a providência que vossa mercê julgar conveniente a respeito dos
diretores de quem se queixam”.75 A decisão é um indicativo do funcionamento da política
indigenista joanina, que delegava a cada capitania a condução dos rumos da administração da
população indígena. Apenas no ano seguinte o governador agiu no sentido de deliberar acerca
da solicitação da comunidade de Viçosa. Como fez Bernardo de Vasconcelos para produzir
sua memória, solicitou a opinião de algumas autoridades – como o diretor de Viçosa, Antônio
do Espírito Santo,76 e o secretário do governo do Ceará, José Rabelo de Souza Pereira.
A resposta do secretário veio em 11 de julho de 1815. Com palavras duras, atribuiu a
culpa dos problemas da região aos próprios suplicantes, dificultando a conquista do que
pediam. Reconhecia as adversidades com o estabelecimento dos subsídios de carnes, que
impediram o aparecimento de arrematantes desse contrato – “a ponto que faltavam mais de 12
mil, que existiam na Parnaíba e no Piauí ganhando sua vida” – mas negava a explicação dos
maus tratos para a situação de esvaziamento da vila. Afirma ter tido boas informações do
então diretor, Antônio do Espírito Santo, e em relação

“aos rigores de que os índios se queixam ser tratados, parece-me, ao contrário, que a
relaxação em que eles estão produz a sua mesma miséria e aniquilação, pois que são
gente sem avareza, nem ambição, nem prevenção, com poucas necessidades, e estas
do momento, e de uma indolência que se deixarão antes morrer que trabalhar”.

O método dos jesuítas, segundo o secretário, era sábio, “pois naquele tempo [os
indígenas] floresciam em população, agricultura, e indústria ao seu modo”, mas, pela situação
no período em que escrevia, em pouco tempo se veria “confundir ou extinguir a raça dos
índios”.77

74
Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a
Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
75
Do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC,
livro 93. AN, AA, IJJ9 56, p. 111.
76
De Manuel Ignácio de Sampaio a Antônio do Espírito Santo. Fortaleza, 12 de maio de 1815. APEC, GC, livro
20, p. 19.
77
De José Rabelo de Souza Pereira a Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 11 de julho de 1815. BN, C-199,
14.
64

A resposta de Pereira sugere possíveis ligações políticas envolvendo o secretário e


autoridades locais da vila, como o diretor Antônio do Espírito Santo, através das “boas
informações” que disse ter ouvido. Ainda que o destaque à sabedoria da ação religiosa indique
sua discordância aos planos pombalinos – possivelmente insuficientes no rigor necessário aos
índios, de natureza tida como autodestrutiva – não coloca a presença dos diretores como um
problema. Para ele, as palavras desses povos não deveriam ser sequer ouvidas, e quanto mais
autonomia lhes fosse garantida – já prevista com limitações pelo Diretório e requerida com
maior amplitude pelos índios – mais se aprofundariam sua miséria e aniquilação.
No mês seguinte, quase um ano após a deliberação da Coroa, Sampaio enviou um
ofício em resposta ao Marquês de Aguiar, a partir de observações que fizera e das pessoas que
consultara.78 Apesar de admitir justas as reclamações dos índios a respeito da decadência de
Viçosa e dos abusos que sofriam, julgou “nada dever alterar, por ser tudo conforme com o que
se acha prescrito pelo Diretório, dado à mesma vila no momento da sua criação em 1759”.
Segundo o governador, a causa principal das queixas era a “distribuição dos mesmos índios
pelos moradores circunvizinhos [...], sendo os de menor idade dados a salários, e os outros a
jornal”. Para ele, os índios entendiam tais procedimentos como “restos da escravidão que
antigamente sofriam, sem se lembrar, primeiro, que a sua liberdade lhes foi concedida pelos
anos de 1755 e 1758 com este ônus”. Em segundo lugar, que da mesma forma como eram
tratados os brancos órfãos, assim deveriam ser reputados “todos os índios”, seja por ser a
maioria filhos de mulheres solteiras como pelos ensinamentos dos pais, que os habituavam
“ao ócio e aos princípios do gentilismo, cujos ritos não perdem a ocasião de exercitar no meio
dos matos em lugares tão escondidos, que muitas vezes só eles conhecem”. A distribuição dos
índios para os moradores era, no seu entendimento, “de grande interesse para a cultura do
país”, e de “maior utilidade para os mesmos índios, e para o aumento de sua civilização”.
Aqueles que haviam aprendido algum ofício mecânico foram educados “em casa de
morador”, mas os que ficavam com os pais formavam “a ideia de que os bens são comuns, e
degeneram com muita facilidade em ladrões, de que com igual facilidade saltam a
salteadores”.
Acerca da cessão das terras nas vilas para os extranaturais, teriam a finalidade de
“aumentar a civilização dos índios, facilitando-lhes a comunicação com os brancos, e de
procurar algum rendimento para as câmaras por meio dos foros”, que pagavam aqueles que
não tinham casa na vila. “Tudo se acha sabiamente providenciado no Diretório”; contudo,

78
De Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 01 de agosto de 1815. BN, C-199, 14. Salvo
indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.
65

reconhecia que os diretores, autoridades criadas pela lei, abusavam dos índios, “sem que o
governador lhes possa inteiramente obstar, em razão das grandes distâncias destes sertões”.
“Mas além de que este abuso se não verifica[va] a respeito do atual diretor de Vila Viçosa
Real [Antônio do Espírito Santo]”, os males provenientes de uma “perfeita liberdade” seriam
muito maiores do que os que procediam dos abusos dos diretores, anualmente fiscalizados
pelos ouvidores. Para um combate mais efetivo aos abusos, a proposta de Sampaio era a
criação dos cargos de juízes de fora nas vilas de índio, “observando-se o que prevê o
Diretório”.
Não mereceria, na visão do governador, “nenhuma atenção” a “pretensão de terem
uma loja de ferramenta e de instrumentos de agricultura”. Segundo ele, os índios teriam nas
vilas de Sobral e Granja tudo o que precisassem, o que seria bom para que “fossem capazes de
sentir necessidades e de trabalhar para supri[-las]”. Ainda assim, admitia que tinham “muita
razão de lamentarem da decadência das suas vilas, que eles atribuem a causas bem diferentes
das reais e verdadeiras”. Desconsiderando a importância das reclamações sobre agressões e
abusos dos diretores, a origem das dificuldades, para ele, estava em impostos cobrados –
subsídios militar e literário e o de “cinco réis sobre cada libra de carne verde” – que
emperravam ainda mais a economia de uma região já comercialmente debilitada. Sobre isto,
afirmou ter recebido “várias representações tanto dos índios de Vila Viçosa como de outros”,
mas não tomava providências por obediência às ordens da Coroa. Concluiu suas informações
“sobre as queixas dos índios de Vila Viçosa” como sendo “em parte justas”, mas que “não
souberam suficientemente aclarar no seu requerimento”, ainda que carecessem de
providências por serem “dignos de compaixão”.
A defesa ao Diretório foi mais uma vez corroborada, não só em prol de sua
manutenção como também na tentativa de provar seus benefícios para a civilização dos
índios. A busca em reafirmá-los e expor uma suposta ignorância indígena acerca de sua
realidade fez com o que Sampaio caísse em redundância. O governador passou boa parte do
texto explicando os objetivos da lei pombalina – provavelmente, já bem conhecidos pelo
príncipe regente – e, por ela em si, os clamores indígenas não fariam sentido ou seriam
provenientes de entendimentos limitados. A explicação da denúncia dos “restos de
escravidão” pelo que ele julga de “esquecimento dos índios” das leis de liberdade é uma prova
dos “a priori” que revestiam o raciocínio de Manuel Ignácio de Sampaio. Ao contrário, as leis
de 1755 e 1758 não foram esquecidas pelos indígenas, mas usadas como argumento para
legitimar sua liberdade enquanto mercês da monarquia, e que, por não serem postas em
prática plenamente, deveriam ser beneficiados com a expulsão dos brancos da vila.
66

Para o governador, a natureza dos índios seria, em si, inferior, por não terem
capacidade de avaliar sua própria situação, por serem propensos ao gentilismo e por não
perceberem que era ela a origem de seus sofrimentos. O diretor de Viçosa, Antônio do
Espírito Santo, foi novamente defendido, e a convivência com os extranaturais passou de
“causa da decadência” – na ótica indígena – para fundamental à civilização. O trabalho
tutelado dos índios, alugados aos proprietários, é também destacado como benéfico a eles e à
economia da região, reforçando sua opinião de que os sofrimentos e soluções que
apresentavam – ao pedirem armazéns de ferramentas – eram injustificáveis, e que apesar de
ser preciso providências, a política indigenista deveria permanecer inalterada. Por serem como
“órfãos”, a liberdade deveria continuar restrita, e o “sábio” Diretório, em vigor na Ibiapaba
desde 1759 sem ter sido, até então, abolido, assim precisava continuar.
Em setembro do ano seguinte, uma nova comunicação foi remetida ao governador, por
meio de ofício do ministro Thomas Antônio de Vilanova Portugal, sobre o requerimento dos
índios da Ibiapaba. Pedia, além de novas informações sobre a situação dos índios, que desse
as providências necessárias para que, indefectivelmente, se observasse "o que se acha
estabelecido a respeito dos índios, não consentindo que se lhes tirem as suas terras, nem se
lhes façam violências, e procedendo contra os diretores que faltarem ao seu dever”. A postura
do príncipe regente mais objetiva, e aparentemente atenciosa aos clamores indígenas, se
deveu a ter-lhe sido “muito agradável a adesão que os índios mostraram ter à sua real pessoa
no sucesso da Revolução Pernambucana”, abafada havia poucos meses, e queria, "por este
motivo, que [fossem] muito favorecidos”.79 Mesmo sem acatar o pedido de anulação do
Diretório, há aqui a recomendação de que outras queixas não fossem ignoradas ou tratadas
enquanto problemas menores. A participação dos índios do Ceará a favor do rei nas lutas em
Pernambuco – mesmo sem a presença de tropas de Viçosa ou Baepina – e a resposta da
monarquia indicam a relação positiva que eventualmente havia entre indígenas aldeados, que
se declaravam repetidas vezes como fiéis súditos do soberano, e dom João VI, que buscava
mostrar-se atento aos nativos que compartilhavam de seus interesses, ainda que nem sempre
atendesse a todos os seus anseios.
Após o novo pedido da Coroa, Manuel Ignácio de Sampaio escreveu outra análise
acerca da situação dos índios e de suas requisições, em 2 de julho de 1818.80 Produzido quase
um ano depois da solicitação que recebera, o texto é bem mais extenso e detalhado,

79
De Thomas Antônio de Vilanova Portugal a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 3 de setembro de
1817. AN, AA, IJJ9 56, p. 188.
80
De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN,
C-199, 14. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.
67

discorrendo acerca do trabalho e das terras dos índios, expondo até que ponto – em sua ótica –
eram válidas suas reivindicações e apresentando propostas ainda mais objetivas para a
melhoria da vida dessa população, sem, necessariamente, concordar com tudo o que
argumentaram em suas queixas. É mister destacar, antes de tudo, que o maior cuidado patente
na escrita do governador veio após a aberta demonstração de gratidão do rei em relação aos
índios seus vassalos, que, em seu nome, batalharam no ano anterior e cujos atos foram
realçados diversas vezes no oficio.
No novo texto, talvez por ter sido novamente ordenado providências, a exposição das
ideias do governador é mais concreta, ainda que, no que diz respeito à política indigenista e ao
Diretório, acreditava que nada deveria ser mudado. Para Sampaio, o fim dos abusos e de
qualquer outro problema por que passavam os índios não viriam, necessariamente, da
interrupção do fornecimento de trabalhadores indígenas a proprietários, da abolição da tutela
de grupos ainda propensos ao “gentilismo”.
Sampaio deu relevo à “fidelidade constantemente evidenciada por todos os índios
aldeados” durante a Revolução Pernambucana de 1817, sendo, “sem dúvida, digna de
contemplação de Sua Majestade”.

"Mas nem por isso se deve extinguir os diretores, nem tampouco deixar de se
distribuir os índios a salário, e a jornal da maneira prescrita pelo Diretório, fim
principal a que se dirigem todas as representações dos índios, ignorando os grandes
males que se seguiriam de ser deferida uma tal súplica”.

Sujeitos a um diretor, segundo Sampaio, os índios “aumentam gradualmente de


civilização”, e sua distribuição nas propriedades era “de grande utilidade aos extranaturais ou
moradores, na frase do Diretório, fornecendo-lhes braços para a agricultura, para o comércio e
para todos os outros trabalhos da economia civil e política”. Sem os diretores, cessaria a
“distribuição pelos extranaturais e sua civilização retrogradaria a passos mui gigantescos”,
além de se entregarem à ociosidade e “aos seus ritos gentílicos, que, apesar de todas as
cautelas, não tem jamais sido possível fazer inteiramente cessar”.
Paralelos à civilização dos nativos e a extirpação de seus hábitos “gentílicos” estavam
os objetivos econômicos na manutenção da lei pombalina em pleno século XIX. “Sem os
diretores, enfim, cessariam de repente todas as utilidades que o Estado tira do trabalho de
tantos índios”, que fatalmente virariam ladrões por conta da ainda viva “ideia da comunidade
dos bens”. Intensamente proclamada durante a Revolução Pernambucana de 1817, tais
princípios encontravam terreno fecundo, na visão de Sampaio, entre as comunidades
68

indígenas “e as qualidades de misturados [mestiços]”. Ao relembrar os conflitos em


Pernambuco, Sampaio fez questão de frisar que, independentemente das “vicissitudes que
presentemente ameaçam o Estado”, o rei poderia contar com a fidelidade de todos os índios,
se estes permanecessem “aldeados e sujeitos a seus diretores”. Era vantajosa sua fidelidade
por serem

“soldados a quem não paga soldo, nem necessita de armar, prontos a baterem-se
com entusiasmo pela defesa da Sua Real Coroa, e que fazem longas marchas sem
bagagem alguma, e sem lhes serem por modo algum pesados os incômodos do
sertão, que são bastante para desanimar qualquer outra tropa”.

Segundo o governador, nas “circunstâncias dos sertões do Brasil, não ha[via] tropa
melhor, nem menos dispendiosa”, do que a dos índios. Como se demonstrou em 1817, eram
fiéis ao rei, pouco dispendiosos e bastante efetivos, mas tais vantagens desapareceriam se o
cargo de diretor fosse extinto, por ficarem desamparados da disciplina de seu tutor. Os “índios
dispersos, assim como também a maior parte dos misturados que vagueiam pelos sertões”,
eram propensos aos crimes e “sempre dispostos a se agregarem àqueles que os chama, lhes dá
de comer, e os protege devida ou indevidamente”, numa clara referência à formação dos
potentados locais. Com tudo que era oferecido, era bem melhor, para muitos deles, viver junto
a ricos proprietários do que subjugados àqueles que os alugavam e aos diretores. Sem esses, a
tendência a que seriam propensos se acentuaria.
Sampaio defendia o Diretório pelos benefícios que traria aos índios, cuja percepção da
própria situação seria limitada, inviabilizando o autogoverno indígena com um sistema
vantajoso para a economia e a civilização. Acerca da queixa dos índios de que ainda sofriam
"restos da antiga escravidão", o governador novamente entendia que o argumento era
equivocado, pois se baseava na própria determinação do Diretório de distribuí-los, assim
como a seus filhos, para trabalhar em propriedades particulares. Para ele, a prática não era
escravista por ser também estendida aos órfãos brancos, "e como tais órfãos são com justa
causa considerados todos os índios". Sugeria ainda, para minimizar os possíveis abusos que
sofriam, "em atenção à fidelidade constantemente evidenciada pelos índios", que os diretores
passassem a receber soldo ou ordenado, "ficando estes só com as prerrogativas que os §50 e
§71 do Diretório estabelecem para os principais". Tais parágrafos se referem ao pagamento
dado aos capitães mores, sargentos mores e principais indígenas com a extração de drogas no
sertão. Como o cargo de principal não existia no Ceará oitocentista (por cujo motivo ainda
não conhecemos), Sampaio propunha que os diretores recebessem em seu lugar, mas não
69

deixa claro se capitães e sargentos mores também seriam beneficiados. Sobre isso, remeteu a
uma proposta feita em setembro de 1818 ao rei, para que promovesse o sargento-mor de
ordenanças José Agostinho Pinheiro, que liderou os 400 índios que marcharam contra os
liberais, para sargento-mor do batalhão de milícias de Fortaleza e diretor das vilas Arronches,
Soure e Messejana, cujo soldo viria apenas do posto militar, "sem perceber emolumentos
alguns dos índios".
A principal solicitação, entretanto, não foi atendida, e o Diretório continuou vigente no
Ceará até a década de 1830, junto com a tutela – e os abusos – dos diretores.

*
* *

A estratégia de dom João VI buscava mostrar-se como um soberano atencioso aos seus
súditos, sem passar, contudo, por cima dos interesses comerciais. Suas decisões comprovam
que o fortalecimento econômico encetado nesse período não poderia funcionar a partir de
ordenamentos gerais e que não atentassem às particularidades sociais e produtivas de cada
região. A coleta de informações minuciosas com o governador, portanto, revela que as
características próprias do Ceará, bem como de seus habitantes, foram determinantes na ação
política do rei, inclusive naquelas direcionadas às comunidades indígenas.
Classificar a política indigenista joanina como inteiramente ofensiva é, no mínimo,
excessivamente generalizante, por desconsiderar a heterogeneidade de suas práticas dirigidas
a realidades fundamentalmente distintas. Em contrapartida, a atenção da monarquia à
fidelidade dos índios encontrava limites nos interesses mercantis. Mesmo conhecendo os
vários exemplos de devoção das comunidades nativas do Ceará, vindos de longa data e
especialmente destacados sobre as tropas de 1817, a Coroa entendia que o seu estado de
"civilização" não era suficiente para que o fim da tutela fosse lucrativo ou substituível pela
função de trabalhadores de aluguel que exerciam nas propriedades.
As propostas de criação de armazéns de ferramentas, a expulsão dos extranaturais das
vilas de índios e a abolição do cargo de diretor não foram acatadas por dom João VI porque,
acima dos anseios indígenas, estavam os planos de desenvolvimento econômico,
especialmente em uma região tão carente de recursos e de condições para adquirir mão-de-
obra cativa. Por isso que o Diretório permaneceu em vigor mesmo durante todo seu reinado.
Além disso, é preciso ainda levar em consideração que a situação política no Brasil se
transformou radicalmente, não havendo tempo de se presenciar possíveis novas mudanças.
70

Sem a possibilidade de proteção da Coroa portuguesa, o poder dos potentados aumentou,


tornando-se ainda mais desamparada a vida dos índios no Ceará.
71

CAPÍTULO 2

O ESTADO NACIONAL BRASILEIRO E A LEGISLAÇÃO


INDIGENISTA

"nenhuma razão há para que, em uma associação que tem por


objetivo a igualdade perante a lei, sejam alguns dos membros, em
contravenção ao pacto fundamental de sua regeneração política,
forçados a obedecer leis bárbaras ditadas em tempos prestigiosos
pelo capricho de um conquistador"
(José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. In:
Atas do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835.
Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166)

“a raça dos primeiros habitantes do Brasil parece condenada à


completa aniquilação pelos imperscrutáveis Decretos da Providência.
Talvez, porém, Srs., que os erros da nossa legislação vão não pouco
contribuindo para este funestíssimo resultado, cuja maléfica
influência reverte em grande parte sobre nós mesmos..."
(Francisco de Souza Martins. Relatório... Fortaleza, Tipografia
Constitucional, 1840, p. 12)

2.1. CIDADÃOS DESPOSSUÍDOS

Apesar da riqueza da historiografia que busca reescrever a história dos processos que
levaram à emancipação política brasileira, há muito que avançar, principalmente quando o
objetivo de analise é o seu desenrolar em outras regiões da antiga colônia lusitana que não
sejam a capital. De acordo com João Paulo Pimenta, "a independência do Brasil nos é ainda
praticamente desconhecida em muitas partes", como, por exemplo, no Ceará. 1 Nesse caso,
como notam Almir Oliveira e Keile Felix, percebe-se o quanto a capitania foi marcada pela
falta de consensos e como os grupos locais tomavam por base o debate nacional, buscando
legitimações a partir da defesa de projetos políticos próprios.2 A construção do novo Estado e
da nacionalidade brasileira foi atravessada por intensas disputas de poder e marcada por
diferentes projetos para o Brasil em conflito, com reflexos diretos na legislação que se
formava no nascente país.

1
PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção
acadêmica. Revista de História Ibero-americana, v. 01, n. 01, 2008, p. 90.
2
OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX:
autonomias locais, consensos políticos e projetos nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone
Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará –
compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP,
tomo I, 2009, p. 20-21. FELIX, Keile Socorro Leite. "Espíritos inflamados": a construção do Estado nacional
brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará,
2010, p. 15.
72

Relacionada a acontecimentos internacionais e às novas ideias defensoras dos


conceitos de autonomia, liberdade e cidadania, a independência do Brasil trouxe consigo
polêmicas que extrapolaram o âmbito das discussões políticas e legais e atingiram de forma
intensa o cotidiano dos setores sociais subalternos. Para Gladys Ribeiro, o “ser livre” era
pensado pelas classes dominantes a partir do direito à propriedade. Ou seja, nesta “igualdade
da liberdade [...] obviamente todos excluíam os escravos e [negros] libertos dos direitos de
cidadãos”. 3 Em relação à população indígena, o debate político à época girava em torno do
estatuto legal desses indivíduos e do lugar que ocupavam – ou deveriam ocupar – no quadro
social brasileiro: se na legislação colonial portuguesa os índios, enquanto aliados, eram
súditos do rei luso, agora também seriam do monarca brasílico? A cidadania os alcançaria?
Mary Karasch observa que, em Goiás no início dos oitocentos, os "paternalistas
governadores portugueses perderam sua influência sobre a política indigenista, que foi sendo
assumida por goianos",4 ou seja, pelos potentados locais da região. A tendência deve ter se
repetido em todo o Brasil, com a ocupação dos cargos de governo pelos poderosos locais,
além da continuidade da característica já comentada sobre a política indigenista joanina, que
integrava uma série de práticas diferenciadas, a partir das distintas situações no país. A
própria condição das províncias, enquanto unidades autônomas, era perceptível nas falas dos
deputados presentes nos trabalhos da Constituinte em Lisboa, formando "um conjunto
disperso" como peças do mosaico brasileiro, que apenas com o tempo cediam lugar à ideia de
um país unificado.5 Separadas entre si em relação ao ainda disforme sentimento de unidade
nacional, os poderes nas províncias amalgamavam aspectos, interesses e desafios particulares
às suas elites, inclusive sobre as ações voltadas para os índios.
Como observa Kenneth Maxwell, a independência brasileira foi constituída por uma
"sociedade de colonos que se implantou no Novo Mundo", miscigenada, mas marcada pela
tradição do Antigo Regime, na qual os brancos assumiram majoritariamente as posições
6
governativas e excluíram índios, negros e mestiços dos lugares de poder. Ainda segundo
Maxwell, a "base social predisposta a enfrentar mudanças radicais era mais forte em Portugal,

3
RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na
independência do Brasil. In: Caderno Cedes. Campinas: UNICAMP, v. 22, nº 58, 2002, p. 29-30.
4
KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás: 1780-1889. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura:
FAPESP: 1992, p. 401.
5
JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira. Revista História das Ideias, v. 21, 2000, p. 431-432.
6
MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In. MOTA, Carlos
Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2000, p. 181-182.
73

na década de 1820, do que no Brasil".7 As mudanças empreendidas, portanto, se deram a


partir das conveniências dessa mesma elite político-econômica, como as que levaram, por
exemplo, à progressiva deterioração das garantias dadas aos povos indígenas pelos reis
portugueses.
A conjuntura legal desses primeiros anos de independência, entretanto, não pode ser
simplesmente caracterizada enquanto um “paradoxo”, quando se buscava “modernizar o país
e preservar, em nome da estabilidade do império, estruturas arcaicas”, como faz Ivone
Barbosa.8 Como explicam Carlos Garriga e Andrea Slemian, os mecanismos jurídicos
tradicionais não foram simplesmente herdados após a crise do Antigo Regime, tratando-se,
antes, de uma “ação para sua reprodução”.9 Nesse sentido, a presença de leis no Brasil
anteriores à separação de Portugal não representavam continuidades uniformes. Tais leis
passaram a ser operacionalizadas pelas elites políticas do país com objetivos específicos em
um novo contexto, ainda que, como destaca Elías Palti, o “emaranhado corporativo do Antigo
Regime” tenha permanecido após as independências na América.10
A própria vigência do Diretório em muitas províncias – como a do Ceará – foi
exemplo da operação de práticas coloniais a despeito da formação nacional, como aspecto
característico do arcabouço legal do Primeiro Reinado, segundo Fernanda Sposito. É
questionável, por outro lado, se realmente havia uma "necessidade de se resolver o problema
através de uma política geral”, já que, além da infrutífera Comissão de Catequese,
Colonização e Civilização dos Índios da Assembleia Constituinte de 1823 e do Plano Geral de
Civilização dos Índios de 1826, poucas propostas de grande porte legislativo de âmbito
nacional apareceram até 1845.11 A falta de uma “resolução imediata para o problema das
populações autóctones” foi devida não só aos “inúmeros conflitos e embates políticos

7
Ibid., p. 189.
8
BARBOSA, Ivone Cordeiro. Cidadania em construção: a legislação provincial do Ceará. Apontamentos para
uma história social do Estado brasileiro. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis
provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os
anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 34.
9
GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C.
1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 220. Os autores vão bem além de proposições como a de José
Reinaldo de Lima Lopes, segundo o qual a transição do direito colonial para o nacional fosse "um misto bastante
particular de ruptura e continuidade". Para ele, "a revolução da independência é mesclada, portanto, com a
sobrevivência do Antigo Regime". Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário
dos juristas da primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da
nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 200-201.
10
PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n.
81, 2010, p. 22.
11
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e
conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 111.
74

próprios à construção do Estado”,12 mas também à já citada característica desse período de


permanência de aspectos próprios do Antigo Regime.
Segundo Maria Regina de Almeida, após os anos 1820 a questão indígena "se tornou
competência das Assembleias Legislativas Provinciais, tendo prevalecido os interesses das
oligarquias locais",13 situação que perdurou até 1845. Contudo, a primeira determinação legal
indigenista do império brasileiro foi a decisão do Conselho de Estado tomada durante a sessão
n.º 16 de 23 de setembro de 1822, por meio da qual o imperador e demais conselheiros e
ministros de Estado ordenaram que "se mandasse extinguir a Diretoria dos índios e se lhes
avivasse a execução das leis de abril de 1755 – e 6 de julho do dito ano que instaura a de 1º de
abril de 1680, e 10 de novembro de 1647".14 Como aponta Patrícia Sampaio, a determinação
surpreendentemente não é mencionada pela historiografia.15 Uma explicação possível é,
primeiramente, o fato de que algumas províncias, ignorando a sessão do Conselho que
confirmava a liberdade não tutelada dos índios, continuaram aplicando a lei pombalina por
pelo menos uma década, como foi o caso do Ceará. Em segundo lugar, o Conselho foi extinto
no ano seguinte, reforçando a tendência de descentralização na política indigenista imperial
indicada por Almeida. A decisão, portanto, não teve consequências significativas, e nos anos
que se seguiram não chegou sequer a ser mencionada pelo legislativo cearense, que utilizava a
Constituição para justificar a abolição do Diretório, como veremos mais a frente.
O marco inicial dessa conjuntura foi a lei da Assembleia Geral Constituinte (que
substituiu o Conselho de Estado) de 20 de outubro de 1823, ao dar "nova forma aos governos
das províncias, criando para cada uma delas um presidente e conselho". Em seu artigo 24, §9,
previa que seriam tratados pelo "presidente em conselho todos os objetos que demand[assem]
exame e juízo administrativo", como "promover as missões e catequese dos índios".16
Manuela Carneiro da Cunha aponta que o projeto constitucional da Assembleia apenas se
"contentou com declarar a competência das províncias para promoverem missões e
catequese". Indica que, nos anos seguintes, os governos provinciais legislaram por conta
própria sobre a questão indígena de seus territórios, por se ressentirem da "ausência de

12
Ibid., p. 71-72.
13
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao
protagonismo. Revista História Hoje, vol. 1, n. 2, 2012, p. 29.
14
Sessão n.º 16 do Conselho de Estado do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1822. ATA do
Conselho de Estado. Brasília: Senado Federal/Arquivo Nacional, 1973, p. 53.
15
SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo
(Org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 183.
16
Lei de 20 de outubro de 1823. COLEÇÃO de leis do império do Brasil de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1887, parte I, p. 13.
75

diretrizes gerais sobre a política indigenista", caracterizando o que ela denomina de vácuo
legal e que explicaria o reestabelecimento do Diretório no Ceará em 1843.17
Como já vimos, não é possível caracterizar como "vazio legislativo" um período
composto de um emaranhado de leis sobre os índios apenas pela inexistência de uma que
fosse direcionada exclusivamente para esta questão e aplicada em todo Brasil. Também é de
se questionar se as tentativas de gerar um grande plano de civilização dos índios são
realmente indícios de que todas as províncias se ressentiram da "ausência de diretrizes
gerais", já que bem maior era a vontade de autonomia na condução de suas decisões,
especialmente no trato com a população indígena, cujas características demográficas, sociais e
econômicas eram bastante variadas. Além disso, ainda que só relegasse uma pequena parte
para mencionar as "missões e catequeses" aos nativos, a lei de 20 de outubro de 1823 não
deixava de ser uma lei geral.
Sua vigência, contudo, também não durou muito. O golpe impetrado por dom Pedro I
em março de 1824, segundo Fernanda Sposito, foi uma demonstração da ameaça que sentia
das expressões políticas à época, contempladas com as leis promulgadas pela dissolvida
Assembleia Geral Constituinte. Apresentando um novo texto constitucional, o imperador
"concentrou em si o poder de legislar",18 buscando minar a descentralização política e a
autonomia das províncias. Como bem observa Cunha, a "Carta outorgada de 1824, nossa
primeira Constituição, sequer menciona os índios".19 Mas mesmo que nela "não tenha
constado uma única linha que se referisse às populações autóctones", Sposito lembra que
diversos "projetos, ideias, intenções e estratégias com relação a esses povos faziam parte da
realidade daquele território que se pleiteava agora como nacional".20 A fragmentada
legislação indigenista, portanto, não foi pobre, como afirma Julio Gómez, pela inexistência de
determinações comuns para todo império, justamente por estar pulverizada em várias
instâncias legisladoras.21 No caso cearense, por exemplo, é impossível falar vácuo até a
década de 1830, quando o Diretório ficou em vigor.
Apesar de dissolvida a Assembleia e imposta uma Constituição centralizadora em
1824, diversos aspectos do sistema jurídico anterior permaneceram. Continuou a tendência
das províncias de legislar a questão indígena por conta própria e executar políticas
17
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma
compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo,
1992, p. 10-11.
18
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 71.
19
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 10.
20
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 72.
21
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia
Contemporánea, n. 27, 2009, p. 275.
76

particulares,22 assim como o costume de se interpretar distintamente a lei: ainda que não
mencionasse nominalmente os índios, o §1º do artigo 6º da Constituição considerava como
cidadãos brasileiros "os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda
que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação".23
Manuela Carneiro da Cunha, Andreia Slemian e Fernanda Sposito, trabalhando com as
discussões da Assembleia Constituinte e com o texto constitucional de 1824, concluíram que
os índios estariam excluídos das categorias de cidadãos e brasileiros. 24 Mas, como observa
André Roberto Machado, a supressão dizia respeito apenas àqueles que viviam nas florestas,
“fora do convívio dos ditos ‘civilizados’”. E a respeito dos que “conviviam com os brancos,
mas continuavam a ser considerados como índios”, se havia alguma indefinição durante a
Constituinte, a situação passou ficar mais clara após a promulgação da Carta Magna. 25 Ao
contrário do que afirmam Cunha, Slemian e Sposito, os índios, a rigor, especialmente os
nativos das vilas, eram cidadãos brasileiros, subordinados aos mesmos direitos e deveres
como qualquer outro. As formas como o §1º do artigo 6º da Constituição era interpretado
pelas comunidades indígenas, pelos legisladores provinciais (como veremos mais adiante) e
até pelo próprio imperador (como mostra Vânia Moreira)26 foram variadas, especialmente em
situações quando era preciso definir a permanência ou não de certas garantias coletivas.
Evidentemente, a nova nação que se constituía, liderada majoritariamente por brancos
descendentes da antiga elite colonial, "deliberadamente rejeitava identificar-se com o todo
corpo social do país, e dotou-se para tanto de um Estado para manter sob controle o inimigo
interno". Além dos escravos, que causavam temor pelas notícias de Santo Domingo como
bem apontam Jacsó e Pimenta,27 os índios também eram inimigos em potencial, cuja conexão

22
A exemplo do “Regulamento para civilização dos índios botocudos das margens do rio Doce”, vigente no
Espírito Santo de 1824 a 1845. Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os
militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal do Espírito Santo, 2007, p. 72-79.
23
Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador
D. Pedro I em 25 de março 1824. Disponível em:
<http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 20 de novembro de 2014.
24
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos
do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 63. SLEMIAN, Andréa. Seriam todos
cidadãos? Impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In:
JANCSÓ, Istvan. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 843. SPOSITO,
Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros.
25
MACHADO, André Roberto de Arruda. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política
indigenista no império do Brasil (1829-1831). Almanack, n. 10, 2015, p. 439-440.
26
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência –
Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, 11-12.
27
JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira, p. 440.
77

já havia sido feita pelo bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho no início do século. 28 O
estabelecimento das cidadanias ativa e passiva, que dividia aqueles que tinham ou não direito
de voto e acesso à burocracia do Estado, dificultava ainda mais que as paupérrimas
comunidades indígenas participassem de decisões e ocupassem cargos políticos. A tomada de
poder cada vez maior dos potentados provinciais fez com que os nativos, de maneira geral,
fossem vistos como incapazes e pouco civilizados, intensificando sua subordinação como
mão-de-obra.
Exemplos de tal postura foram as resposta dos poderes legislativo e executivo do
Ceará à ordem do ministério do império, de julho de 1826, para que várias províncias
remetessem informações suficientes à montagem do Plano Geral de Civilização dos Índios.29
O Conselho de Governo cearense, atendendo ao que foi exigido pelo presidente Antônio de
Sales Nunes Barfor, apresentou um parecer acerca das causas "que tem baldado os esforços
feitos para sua civilização". Segundo os conselheiros, o insucesso das "sábias leis deste
império" com os nativos não se deu por conta da ação de governadores e diretores. A razão
estava na "conduta dos costumes gentílicos dos seus pais", o que tornava "muito difícil
poderem eles tomar a boa disciplina de seus mestres e capelães, os exemplos dos homens
brancos, cristãos verdadeiros e amigos da sociedade e bem público" (ou seja, os próprios
conselheiros). O melhor meio para se conseguir a civilização dos indígenas, portanto, seria

"a dispersão geral da aldeação deles, queremos dizer, suspender o Diretório, ficando
os mesmos índios sujeitos à política como os demais cidadãos do Império, por isso
mesmo que se unindo em parentesco por afinidade franca, e livremente com quem
lhe aprouver, por isso mesmo que tratando e sociando[sic] com os mais mudarão de
conduta, como a experiência tem mostrado com aqueles que, apartados da aldeia são
mui diferentes do que eram: uteis a si e à sociedade, principalmente caindo sobre si
o rigor da polícia, que tanto temem e respeitam."

Os conselheiros acreditavam ter sido justa a concessão em outros tempos de suas


terras sem a obrigação de pagamento. Mas, com a sugestão da dispersão, as mesmas
passariam ao domínio das câmaras municipais, podendo aforá-las "a quem quiser ser útil à

28
"Aqueles índios [não-aldeados habitantes da fronteira entre Ceará e Pernambuco], ainda que poucos em
número, [...] conservando-se na sua rebelião entre serras e brenhas incultas, seriam de terríveis consequências
para o Estado [...]; os negros da ilha de Santo Domingo acabam de dar ao mundo um exemplo terrível destas
surpresas: aqueles índios seriam o ponto de ajuntamento e apoio dos negros fugidos, e ainda dos brancos
descontentes, se eles existissem por muito tempo em sua rebelião". CARTA do bispo d. José Joaquim de
Azeredo Coutinho sobre os índios da capitania. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart,
tomo XI, 1897, pp. 124-128.
29
De José Feliciano Fernandes Pinheiro a Antônio de Sales Nunes Barfor. Rio de Janeiro, 3 de julho de 1826.
APEC, MN, MI, livro 89.
78

província pela sua cultura, não ficando, deste modo, incultas, como tem sucedido no poder
dos índios, que nem cultivavam todas nem deixavam os extranaturais cultivar".30
O presidente Barfor emitiu sua resposta em novembro. Segundo ele, os indígenas
apresentavam uma "índole inteiramente má" por serem "propensos à ociosidade, e, por
conseguinte, necessitados de furtar para poder subsistir", de forma semelhante ao que
expusera o Conselho de Governo. Trabalhavam apenas em "alguma pesca e em alguma
lavoura, à que mostram grande aversão, e em que aliais poderiam ser muito úteis".
Apresentariam costumes "inteiramente grosseiros" pela "pequena civilização" que adquiriram
"debaixo dos diretórios [ou seja, nas vilas]", agravada pelas "perturbações das continuadas
revoltas desde 1821 [que analisaremos adiante], e já pelo desastroso e completo transtorno
que tem causado a fome e a peste de 1824". De tão reduzidos à época em quantidade
demográfica, sugeria serem suficientes as povoações de Soure, Almofala e Vila Viçosa para
agregá-los por serem próprias para a agricultura. A primeira tinha como vantagem sua
"proximidade à capital", onde os índios poderiam "ser empregados utilmente e debaixo das
vistas do governo". Para o presidente, os esforços para a civilização dos índios fracassaram
pela

"imperfeição dos regulamentos e instruções dadas para os diretores, [...] que até pela
pequenez de seus ordenados nunca cuidaram de cumprir à risca com os deveres de
um diretor, e pelo conseguinte ou se ocuparam inteiramente de seus negócios com
inteira abstração de um emprego, que lhes não dava para subsistência, ou se
aproveitaram do trabalho dos índios, reduzindo-os aos seus escravos e sem os tratar
com aquela brandura e caridade com que deveriam tratar homens livres e
necessitados de educação".

Caso os índios fossem reunidos nos "aldeamentos" liderados por diretores probos,
instruídos e que ganhassem o suficiente, poderiam ser muito úteis para "diminuir-se nesta
província a necessidade da população escrava".31 Inúteis em si mesmo, os índios eram
potencialmente vantajosos, como diz Izabel Mattos.32
A conclusão da análise de Barfor seguiu caminho diferente ao que fora sugerido pelo
Conselho de Governo. Como parte da elite fundiária do Ceará, os conselheiros isentaram de
qualquer culpa aqueles que até então haviam trabalhado na administração dos índios, muitos

30
PARECER do Conselho de Governo da Província do Ceará, 22 de setembro de 1826. In: Documentos sobre os
nossos indígenas. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora "Instituto do Ceará", tomo LXXVII, 1963,
p. 323-324.
31
De Antônio de Sales Nunes Barford a José Feliciano Francisco Ribeiro. Fortaleza, 3 de novembro de 1826. In:
NAUD, Leda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822): 2ª parte. Revista de
Informação Legislativa, vol. 8, n. 29, 1971, p. 306.
32
MATTOS, Izabel Missagia de. "Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na
província de Minas. Tese (doutorado) – UNICAMP, 2002, p. 115.
79

deles membros dos potentados ambiciosos pelo trabalho e as terras indígenas. Através dos
argumentos de uma natural incapacidade e inutilidade, os membros do legislativo cearense
buscaram, na primeira oportunidade que tiveram logo após a independência do Brasil, acabar
com o estatuto diferenciado dos índios. Submetendo-os à igualdade com os demais habitantes
do país, por meio da cidadania, poderiam utilizar "mecanismos de controle [como a polícia]
para limitar suas ações e, mormente, explorar sua força de trabalho" – como coloca Maico
Xavier sobre o parecer do Conselho33 – e tomar posse definitivamente de suas terras e dos
cargos municipais em suas vilas. Para este intento, a abolição do Diretório era peça chave.
Barfor compartilhava com os conselheiros a opinião de que havia nos indígenas uma
natural repulsa ao trabalho, que os tornava inúteis diante do Estado, mesmo com as várias
ações empreendidas pelos próprios nativos para garantir suas terras e proteger suas lavouras
contra a ganância dos proprietários. Durante os conflitos da época da independência,
confirmam-se as duras consequências sofridas pelas comunidades, especialmente para aquelas
diretamente envolvidas nos confrontos em Maranguape e Viçosa de que trataremos no
próximo capítulo.
Por outro lado, na visão do presidente, a culpa do "fracasso civilizatório" era dos
diretores, ainda que a eles se somassem os efeitos devastadores da seca e das revoltas de
1821. Como sugere Barford, o próprio Diretório era imperfeito nas instruções dadas a eles e
no insuficiente ordenado que estabeleciam para seu sustento. Ao contrário do que fez Manuel
Ignácio de Sampaio 10 anos antes, admitiu a quase escravidão em que viviam esses "homens
livres", mas justamente por necessitarem de educação, ainda devessem se submeter ao
trabalho, tanto para sua civilização quanto para uma economia pobre e carente de mão-de-
obra escrava como a do Ceará. Apesar de criticar os "regulamentos e instruções" direcionados
aos diretores, as opiniões e quase inconclusivas sugestões dadas pelo presidente em suas
informações se assemelham bastante ao que foi dito pelo governador Sampaio sobre a diretriz
pombalina. Tanto na lei quanto no texto de Barfor os índios eram livres, mas, incivilizados, e
precisavam, portanto, de pessoas competentes que os instruíssem e obrigassem a trabalhar,
educando-os e dinamizando o comércio na região. Além disso, a defesa da manutenção do
Diretório, ainda que colocasse suas imperfeições, pode ter sido uma tentativa de frear a
ambição dos potentados representados no Conselho de Governo, cujas consequências nefastas
aos índios já eram bem previsíveis.

33
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no
período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) –
Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 109.
80

De fato, a lei pombalina não foi abolida em seu mandato e, mesmo após a recepção de
suas informações34 e de outros presidentes pela Corte, pouco se fez em termos de mudança na
política indigenista brasileira. Mesmo falho, o Diretório ainda seria a melhor opção para lidar
com os índios e como alternativa à mão-de-obra escrava no Ceará, segundo Xavier a respeito
do texto de Barford.35 Como mostra a análise de John Monteiro das respostas dos outros
presidentes de província para a criação do Plano de Civilização – que nem chegou a ser feito –
as posturas eram bastante variadas, indo desde "aqueles que defendiam políticas filantrópicas
e outros que subscreviam a práticas agressivas e intolerantes".36 Diante de realidades tão
distintas, as políticas indigenistas permaneceram funcionando a partir das discussões
legislativas provinciais e da vontade dos potentados locais.
Acerca de tal "mosaico de situações", Fernanda Sposito acredita que "a falta de
consenso não estava no conteúdo do projeto indigenista em si, mas no desacordo sobre este
projeto ser realmente uma prioridade", já que competia ao mesmo tempo com as questões
escravistas (com as propostas para o fim do tráfico negreiro), de propriedade territorial e de
colonização estrangeira. No caso do norte do Brasil, como afirma Julio Gómez, a indiferença
em relação à situação dos índios passou a ser ainda maior pela grande necessidade de sua
força de trabalho.37 Por isso que, segundo Sposito, a indefinição de projetos amplos e gerais
não impedia "soluções localizadas, na periferia do império, longe do crivo dos dirigentes
centrais",38 mostrando que, ao menos a nível local, a questão indigenista não deixava de ser
prioritária.
Tais ações, comandadas pela elite econômica, geralmente visavam excluir o quanto
podiam os índios dos espaços políticos. Os governantes nas províncias brasileiras e nos
municípios se amparavam das antigas opiniões de que os povos nativos eram incapazes. Eram
movidos pela ambição de se apoderar das terras e dos cargos das vilas de índios, que na
década de 1820 já contava com uma população bem mais reduzida e que sofreu um golpe
ainda mais duro com a lei imperial de 1º de outubro de 1828, promulgada por dom Pedro I
para dar "nova forma às câmaras municipais". Os artigos 3º e 4º diziam: "Têm votos na
eleição dos vereadores os que têm voto na nomeação dos eleitores da paróquia na
conformidade da constituição, art. 91 e 92", e "Podem ser vereadores todos os que podem

34
Do marquês de Caravelas a Antônio de Sales Nunes Barfor. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1826. APEC,
MN, MI, livro 89.
35
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 105.
36
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo.
Tese (Concurso de Livre-docência), 2001, p. 142.
37
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil, p. 275.
38
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 87.
81

votar nas assembleias paroquiais, tendo dois anos de domicílio dentro do termo". 39 Os citados
artigos constitucionais regulavam os votantes em eleições primárias (cidadãos brasileiros e
estrangeiros naturalizados) e os excluídos do voto nas assembleias paroquiais. Dentre estes
estavam os que não tinham de "renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria,
comércio ou emprego".40
Segundo José Murilo de Carvalho, a “limitação de renda era de pouca importância”, já
que a “maioria da população trabalhadora ganhava mais de 100-mil-réis por ano [...]. O
critério de renda”, portanto, “não excluía a população pobre do direito de voto”. 41 As fontes
pesquisadas não nos permitem saber quantos índios possuíam tal patrimônio em 1828, e se,
consequentemente, eram eliminados dos papeis de eleitores e vereadores. Os indígenas
oficiais de ordenanças no Ceará, por exemplo, geralmente não recebiam soldo, como veremos
no capítulo 6.42 Além disso, é possível supor que uma parcela significativa dos índios
estivesse passando por sérias dificuldades financeiras no período, a julgar pelo processo de
esvaziamento de suas vilas e as migrações para o Piauí que ocorreram durante toda a primeira
metade do século XIX.43
Ao final da lei de 1828, em seu artigo 90, revogava-se "todas as leis, alvarás, decretos
e mais resoluções que dão às câmaras outras atribuições, ou lhes impõem obrigações diversas

39
Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para
sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-
1828.htm>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2015.
40
Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador
D. Pedro I em 25 de março 1824. Disponível em:
<http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 20 de novembro de 2014.
41
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2014, p. 35-36.
42
Nas assinaturas da ata da sessão de adesão do Ceará à Confederação do Equador em 1824, que analisaremos
no capítulo 8, o capitão-mor indígena Vitorino Correia da Silva, de Arronches, e o sargento-mor indígena João
da Costa da Anunciação, de Vila Viçosa, se identificaram como “eleitores”. Cf. ATA da sessão extraordinária e
grande conselho provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824. Apud. Confederação do Equador. Revista do
Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 295-299. De acordo com a nomeação
de Anunciação e a carta patente de Silva, os dois não recebiam soldo pelo posto. Cf. Nomeação de João da Costa
da Anunciação como sargento-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 4 de fevereiro de 1807. APEC, GC, livro 67, p.
116. Registro de patente de capitão-mor de Arronches a Vitorino Correa da Silva. Fortaleza, 26 de dezembro de
1823. APEC, GC, livro 72, p. 120.
43
Além do comentário de Manuel Ignácio de Sampaio que vimos no capítulo anterior, segundo o qual havia
cerca de 12 mil indígenas da Ibiapaba vivendo no Piauí em 1815 por conta da excessiva tributação, um índio que
se identificou por Vitorino Soares Barbosa, natural de Arronches, denunciou em 1816 a intensa migração
indígena para o Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba em decorrência da opressão que atrapalhava suas lavouras.
Cf. Requerimento anexo ao ofício de Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 19 de agosto
de 1816. AN, AA, IJJ9, 168. De acordo com a câmara de Granja, em 1843, frequentemente os índios da Ibiapaba
se mudavam para o Piauí. Cf. Da câmara da vila de Granja para José Maria da Silva Bittencourt. Granja, 23 de
setembro de 1843. APEC, CM, câmara de Granja, pacotilha 1843-1845.
82

das declaradas na presente lei, e todas as que estiverem em contradição à presente". 44 O


Diretório, que elevava as aldeias religiosas a vilas e regulamentava suas câmaras constituídas
pelos índios, seria, teoricamente, anulado por tal legislação. A preferência que deveria ser
dada aos indígenas na escolha de cargos honoríficos prevista pela lei pombalina45 já não seria
mais considerada, principalmente pelos brancos, cuja população aumentava nas vilas de
índios nesse período.
Tal como a Constituição, a lei de 1º de outubro de 1828 não fez qualquer menção aos
índios, mas foi uma determinação que no reinado de dom Pedro I atingiu diretamente todas as
comunidades indígenas que ainda viviam em vilas regidas pelo Diretório. A respeito da
referida norma, José Reinaldo de Lima Lopes esclarece que, por meio dela, partia-se da
concepção de que "o direito deve ser em princípio territorial, e não pessoal, ou seja, de que
todos os habitantes de um território submetem-se a um só ordenamento".46 Ou seja, sua
promulgação era mais uma medida que acabava com o estatuto diferenciado dos índios. Ainda
assim, as interpretações de seus artigos, bem como do texto constitucional, foram múltiplas,
inclusive se eles realmente aboliam a norma pombalina, já que também não foi citada pela lei
em questão.
A confusão ficou expressa em uma proposta de posturas da câmara de Messejana em
1829. A resposta do presidente da província Joaquim Pereira da Silva para a maioria dos
pontos foi negativa por "ser contra as disposições do Diretório". Mas o comentário feito ao
artigo 5º da postura dizia que sua requisição não tinha lugar "porque seu objeto é da
competência do foro contencioso por leis anteriores e pela lei regimental das câmaras de 1º de
outubro de 1828".47
Chama atenção, primeiramente, o fato de a câmara de Messejana ainda ser de índios
em 1829 e, em segundo lugar, não se poder regular as posturas do município desobedecendo a
lei pombalina. Mas não era ignorada pelo governo do Ceará a recém-promulgada legislação
das câmaras municipais: ao contrário, as duas diretrizes são citadas no mesmo comentário. Os
índios, por um lado, pareciam querer se livrar da antiga norma e "dirigir" seu espaço com
autonomia. Por outro, o governo provincial parecia buscar a conciliação das duas coisas: a

44
Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para
sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-
1828.htm>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2015.
45
DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade
não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §84, p. 34.
46
LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do
século XIX, p. 209.
47
De Joaquim Pereira da Silva e Francisco Esteves de Almeida à câmara de Messejana. Fortaleza, 6 de julho de
1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, p. 70.
83

subordinação dos indígenas ao trabalho e as limitações a eles infringidas nos cargos políticos
e nos lugares de poder. O segundo tópico não demorou a se efetivar, e, poucos anos após as
tentativas dos nativos de Messejana de instituir códigos de postura que os favorecessem, o
Diretório foi abolido pela primeira vez no Ceará. Mas, diferentemente do que queriam, foram
também juntas sua esperança de autonomia e suas antigas garantias dos tempos dos reis
portugueses.

2.2. A VITÓRIA DOS PROPRIETÁRIOS

Após o início das atividades do Conselho Geral da Província do Ceará em 1829


tomaram força argumentos que defendiam a anulação do Diretório em seu território, que já
havia sido sugerida em 1826, como vimos há pouco. Pelas limitações da Constituição e da lei
de 1828, dificilmente os índios teriam condições de prosseguir ocupando cargos camarários,
sendo uma exceção à tendência de que os mesmos grupos sociais continuaram a ascender à
câmara e a outros órgãos de poder, como disse José Reinaldo de Lima Lopes.48 Ainda assim, a
decisão em suprimir as vilas e a vigência da legislação pombalina não foi imediata,
demandando algumas discussões. Apenas no mês de dezembro de 1830, através de proposta
do conselheiro José Ferreira Lima Sucupira, levantou-se a possibilidade de limitar a aplicação
da diretriz indigenista ainda em vigor. Segundo ele, não havia

"nenhuma razão para que, em uma associação que tem por objetivo a igualdade
perante a lei, sejam alguns dos membros, em contravenção ao pacto fundamental de
sua regeneração política, forçados a obedecer leis bárbaras ditadas em tempos
prestigiosos pelo capricho de um conquistador"

A obrigação a que eram coagidos os índios de obedecer ao Diretório seria uma


"manifesta infração à Constituição do Império que os declara cidadãos brasileiros, os que
pela péssima educação e escravidão de mais de 300 anos" nem ao menos conheceriam seus
direitos. Viveriam sem "garantia do direito de propriedade", usurpados pelos diretores que os
arrancavam dos "serviços de um lavrador que lhes paga por mais para mandá-los trabalhar a
outro que lhes paga por menos". Mas apesar de todo ataque aos efeitos negativos da lei
setecentista e à sua "manifesta infração" à Carta Magna do país, curiosamente, propôs ao final

48
LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do
século XIX, p. 209.
84

que se cumprisse o "Diretório unicamente naquela parte que não dispuser a Constituição e leis
constitucionais".49
Todas as afirmativas de Sucupira são carentes de explicações. Em primeiro lugar –
supondo que a Constituição realmente abolira o Diretório – em que, na sua perspectiva, a lei
pombalina era bárbara, se apresentava maiores garantias aos índios do que o texto
constitucional? Ainda assim, como sabemos, não há qualquer menção sobre o Diretório no
texto constitucional (e, sim, na já citada sessão n.º 16 do Conselho de Estado). Então, em que
parte da mesma se havia anulado a legislação setecentista? Além disso, mesmo direcionando
seu ataque a ação dos diretores, não ficou explícito se Sucupira era contra a tutela em si,
deixando em aberto o mais crucial, na medida em que não esclareceu quais artigos da diretriz
pombalina não feriam a Constituição. O que se percebe é que a autonomia provincial em
legislar era tamanha – pelo menos no que dizia respeito aos índios – que seria possível
operacionalizar a interpretação das leis e inclusive aplicá-las parcialmente, a partir das
conveniências locais e das percepções particulares dos legisladores.
Mais cauteloso, o conselheiro Castro e Meneses propôs em 7 de janeiro de 1831,
"como emenda ao requerimento" de José Sucupira, que se fizesse uma "representação,
motivada à Assembleia Legislativa, para uma vez fazer cessar o Diretório", e que se pedisse
ao vice presidente "para suspender as ordenadas dos diretores até a decisão da mesma
Assembleia".50 Na mesma sessão, Ângelo José da Expectação Mendonça foi bem mais
minucioso em sua proposta, ao sugerir que, "à vista da Constituição, das leis da Assembleia,
do Diretório", se marcasse "as casas em que presentemente podem ter lugar o mesmo
Diretório, enquanto não aparece decisão terminante a tal respeito da Assembleia e do poder
executivo". Pedia também que cessassem "o ordenado dos diretórios, tão mal percebido, visto
o pequeno número de índios e o nenhum trabalho de tais diretores".51
Mais clara, a proposta de Mendonça parece indicar que, pela pouca serventia dos
diretores, a tutela para a população indígena deveria ser extinta no Ceará. Sem ela, e a partir
do aval da presidência da província, a vigência do Diretório chegaria ao fim pela primeira vez
em território cearense. Tais debates do Conselho demonstram que, por uma série de razões –
os traumas sofridos com os conflitos da época da independência, o avanço do poder das elites
econômicas, a impunidade diante de abusos e explorações, a redução de ações protetoras da
Coroa – a dispersão dos índios pela província aumentara bastante, a ponto de ser perceptível o

49
Proposta de José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. ATAS do Conselho Geral da
Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166.
50
Proposta de Castro e Menezes. Fortaleza, 7 de janeiro de 1831. Idem, p. 171.
51
Proposta de Ângelo José da Expectação Mendonça. Fortaleza, 7 de janeiro de 1831. Idem, p. 171.
85

esvaziamento de suas vilas. Indicam ainda que, pelo menos momentaneamente, a necessidade
pela mão-de-obra nativa por parte dos proprietários diminuíra, ou, pelo menos, fora
suplantada pela ambição sobre as terras. Estando as vilas de índios pouco povoadas, com suas
câmaras não mais ocupadas por eles e com a redução da dependência de sua força de trabalho,
pouco motivo havia para que se continuasse com uma lei do tempo dos antigos monarcas
lusitanos.
Em abril do mesmo, dom Pedro I abdicou do trono em favor de seu filho menor de
idade, iniciando-se no Brasil um governo regencial – o que representou uma grande vitória
para os proprietários. Triunfava uma espécie de conservadorismo contra-revolucionário
defensor da liberdade constitucional, cujo rótulo liberal, segundo Carlos Guilherme Mota,
servia para disfarçar características ligadas ao Antigo Regime, como a exclusão de grupos
sociais e a exploração de sua força de trabalho.52 Para Maria Hilda Paraíso, com a

"tomada do controle pelas elites provinciais, o que se constata é a adoção de uma


política agressiva, que lentamente foi-se encaminhando para promover a extinção
dos aldeamentos, de forma a beneficiar os foreiros e sesmeiros dessas terras. Essas
posturas reivindicatórias das oligarquias e sua atuação prática eram tanto mais
desenvoltas quanto maior fosse a distância física da Corte, num claro sinal da
incapacidade do Estado de controlar a ação dos seus súditos nas franjas de ocupação
territorial".53

Ao final de 1831 o Diretório parecia já não ser mais utilizado. Apesar de não termos
encontrado qualquer decreto ou lei que o anulasse, é o que se entende na leitura do parecer do
Conselho Geral de 13 de dezembro acerca de uma representação da câmara de Messejana, que
perguntava se os índios que habitavam o patrimônio da mesma deveriam ou não pagar o foro.
O parecer foi negativo

"porque, posto que o Diretório esteja em desuso, e que os índios sejam considerados
cidadãos brasileiros pela constituição do império, contudo a lei da criação das vilas
lhes garante a cultura das terras do mesmo patrimônio extinto de foro, ou
arrendamento em atenção ou que os seus progenitores foram os legítimos
possuidores do país, e só por outra lei podem ser privados dessa garantia". 54

Em sua particular interpretação das leis, o Conselho da Província do Ceará entendia


que a Constituição fazia dos indígenas cidadãos brasileiros e que, por isso, a mesma anulava a

52
MOTA, Carlos Guilherme. Ideias de Brasil: formação e problemas (1817-1850). Viagem incompleta. A
experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 205
53
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos
sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 342.
54
Parecer do Conselho Geral da Província do Ceará. Fortaleza, 13 de dezembro de 1831. ATAS do Conselho
Geral da Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 176-177.
86

legislação setecentista, mas apenas em partes. A referida "lei de criação das vilas" não era
outra senão o mesmo Diretório que parecia estar "em desuso" no Ceará. A situação é
confirmada na maneira pela qual os índios são citados, como se não fossem os autores da
representação e muito menos ocupassem a câmara de Messejana. Mas, mesmo que a lei
pombalina não mais vigorasse, alguns de seus artigos, como a posse da terra isenta de foro aos
índios, ainda não podiam ser abolidos sem determinação régia.
Tais garantias, as últimas restantes do Antigo Regime, não duraram por muitos anos.
Ainda que não tivessem sido expressamente revogadas nesse período, algumas leis
promulgadas a nível imperial e provincial e interpretações legais de agentes políticos locais
fizeram com o poder dos índios de manutenção de suas terras ficasse ainda mais precário. Em
ofício de maio de 1833 ao deputado da Junta da Fazenda Provincial José Antônio dos Santos
Silva, o presidente do Ceará José Mariano de Albuquerque Cavalcante tratou da decisão do
governo em suprimir Messejana, Soure e Arronches, anexando-as a Fortaleza. Disse que nas
vilas havia "alguns próprios nacionais, assim como alguns bens que pertencem do d'antes ao
Diretório, que além de incompatível com a Constituição do Império, tem caído em comisso" e
que, por isso, deveriam "reverter para o Estado". Ao final, ordenou que o deputado mandasse
"pôr em execução os referidos próprios [nacionais], até que haja lei que lhe dê destino".55
O discurso de Cavalcante já se dirigia para a abolição completa do Diretório,
utilizando a Constituição como argumento, com o objetivo de que fossem liberadas as terras
dos indígenas, última garantia que ainda lhes restava da lei indigenista. As intenções do
presidente se faziam presentes em outras regiões do Brasil no pós-independência e, segundo
Maria Regina de Almeida, outros políticos "também propunham a assimilação dos índios
como cidadãos e a incorporação de suas terras aos 'próprios nacionais'". 56 A cidadania
indígena, portanto, revertia-se em benefício das elites político-econômicas locais na medida
em que automaticamente eram extintos os estatutos diferenciados oriundos do Antigo
Regime, levando juntas as proteções e seus bens. Vânia Moreira acredita que a condição de
ser cidadão da nova nação, ainda que muitas vezes negociada, também poderia ser imposta
aos índios de forma violenta, e mesmo que indivíduos e comunidades tenham
operacionalizado de múltiplas formas sua recém-coagida cidadania, as intenções governativas
geralmente agiam objetivando a desamortização das terras indígenas. Para a autora, tal

55
De José Mariano de Albuquerque Cavalcante a José Antônio dos Santos Silva. Fortaleza, 13 de maio de 1833.
APEC, GP, CO EX, livro 20, p. 99V.
56
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e
identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; SOIHET,
Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 202.
87

situação fundiária foi deslanchada com a promulgação da Lei de Terras de 1850, "cujo
objetivo precípuo era o de acabar com o domínio e o uso comum sobre várias terras que eles
possuíam na forma de sesmarias, missões, aldeamentos, compras e doações".57
A gestação dessas formas de usurpação, como vemos, são ainda anteriores. As
convenientes leituras do texto constitucional de 1824 pelas elites locais já indicavam o fim
dos estatutos diferenciados dos índios no que tangia à manutenção de antigos bens. A maior
vitória para os potentados foi, de fato, a abdicação forçada de dom Pedro I em 1831, cujo
auge, segundo Manuela Carneiro da Cunha,58 estava na promulgação do Ato Adicional à
Constituição de 1834. Era a oportunidade de administrar com maior autonomia as
problemáticas locais envolvendo os índios e de tomar posse de suas terras e patrimônios. Seu
artigo 11, §5º, incumbia como uma das competências das assembleias legislativas – que
substituíam os conselhos gerais de províncias – a promoção, "cumulativamente com a
Assembleia e o governo geral, a organização da estatística da província, a catequese, a
civilização dos indígenas e o estabelecimento de colônias". 59 Assim como a lei de 1º de
outubro de 1828, o ato adicional de 1834 não deixava de ser uma lei indigenista de âmbito
geral, ainda que não tratasse exclusivamente desse tema. Além disso, era mais uma
demonstração de que as intenções em se criar uma legislação ampla que uniformizasse as
práticas voltadas aos índios de todo o Brasil – ou, pelo menos, um consenso em relação a ela
– não eram compartilhadas pela maioria das lideranças políticas provinciais.
Reações ao ato legal, e a seus possíveis efeitos nas comunidades indígenas, sugiram no
final do mesmo ano na Vila Viçosa, justamente a partir de quem se pensava estar excluído
definitivamente do cotidiano dos nativos. No mês de novembro, o presidente do Ceará José
Martiniano de Alencar alertou o juiz de paz da vila sobre uma denúncia do chefe de política
de Sobral, de que "algumas pessoas mal-intencionadas procuram indispor os índios, como
mais ignorantes, contra a reforma na constituição, decretada na lei de 12 de agosto de 1834",
produzindo "perturbações e desordens". Ordenava que procurasse quem buscava denegrir as
"instituições soberanas" e punisse os que tentavam "destruir os artigos da constituição". 60 Em
março do ano seguinte, foi revelado o provocador das agitações. Segundo o juiz de paz, o

57
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Deslegitimação das diferenças étnicas, "cidanização" e desamortização das
terras de índios: notas sobre liberalismo, indigenismo e leis agrárias no México e no Brasil na década de 1850.
Revista Mundos do Trabalho, v. 04, 2012, p. 68-69.
58
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 13.
59
Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos
termos da lei de 12 de outubro de 1832. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-
16-12-agosto-1834-532609-publicacaooriginal-14881-pl.html>. Acesso em: 2 de dezembro de 2014.
60
De José Martiniano de Alencar ao juiz de paz de Vila Viçosa. Fortaleza, 22 de novembro de 1834. APEC, GP,
CO EX, livro 28.
88

vigário Felipe Benício Mariz – expulso da Serra da Ibiapaba pelos índios em 1822,61 como
veremos no capítulo 3 – recebeu algumas armas – não diz de onde e por que motivo – e
passou a meter "cizânias no povo, fazendo ver que se pretende fazer recrutamentos, que só
existe na fantasia dele, e com o fim de transtornar a ordem pública". Nas palavras do
presidente Alencar, em resposta ao juiz, "em vez de cumprir com as suas obrigações", o
vigário era "o instrumento do desassossego e perturbação pública".62
Muitas informações nos faltam do acontecimento, como os reais intentos de Felipe
Benício Mariz e de que maneira os índios receberam as suas provocações. Provavelmente, as
intenções do vigário não devem ter sido relevadas de imediato pelos indígenas, tendo em vista
a falta de fontes acerca de uma possível repercussão. Mas se alguns índios chegaram a
embarcar nas acusações ao ato de 1834 e participaram de alguma manifestação, não agiram
por "ignorância", como supôs José Martiniano de Alencar, já que os efeitos da lei na vida dos
índios não se demoraram a sentir.63 Manuela Carneiro da Cunha observa que a
descentralização de 1834 fez com que várias províncias passassem "imediatamente a tomar
medidas anti-indigenistas", como o Ceará, que extinguiu três vilas de índios nos anos
seguintes.64
Pela lei provincial nº 2 de 13 de maio de 1835 ficavam "suprimidas as vilas de índios
de Soure e Arronches, e seus municípios unidos à capital". 65 Segundo Rones Duarte, a lei foi
consequência da “necessidade de terras para aumento da produção”, promovida pelas “elites
políticas locais, imbuídas de maior autonomia dada pelo governo imperial”. Para o autor, a
“medida foi a que mais surtiu efeito com relação à tomada das terras” indígenas. 66 Em 20 de
setembro de 1837 os códigos de postura de Messejana foram finalmente aprovados pelo
governo pela lei nº 83, mas com um texto de tom bastante negativo para os índios. Já em seu
artigo 1º dizia que "aquele lavrador que maltratar rês alheia a título de ter entrado em sua
lavoura será obrigado a pagar a rés multada, quer morra ou não, logo que seu dono prove o
dano feito". Além disso, seria "multado em quatro mil réis para as despesas da câmara, e não

61
Segundo o índio Felipe Pereira, Mariz voltou a Viçosa porque era vigário colado. Cf. Diário de Francisco
Freire Alemão, "Informações sobre os antigos agrupamentos indígenas nas redondezas de Viçosa". Vila Viçosa,
8 e 9 de dezembro de 1860. BN, I-28, 8, 68.
62
De José Martiniano de Alencar ao juiz de paz de Vila Viçosa. Fortaleza, 8 de abril de 1835. APEC, GP, CO
EX, livro 28, 132.
63
O alerta de Mariz não era apenas fantasioso: quatro anos depois, índios da Ibiapaba aderiram à Balaiada contra
as práticas de recrutamento, como veremos no capítulo 8.
64
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 13.
65
Lei nº 2 de 13 de maio de 1835. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis
provinciais: estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará - compreendendo os
anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato Barroso. Ed. Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 50.
66
DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure (CE): 1798-1860. Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2012, p. 64.
89

tendo com que pague a rés maltratada" seria "remetido pelo juiz de paz respectivo para a casa
de correção da capital para de seu trabalho indenizar a rés, no caso que esta tenha morrido".
Um dos grandes motivos de queixas dos índios era a destruição de suas plantações
pelos animais de seus vizinhos. Como mostrei em trabalho anterior, os governos no tempo da
capitania geralmente agiam em defesa das causas indígenas nesse tipo de conflito. 67 Após o
Ato Adicional de 1834, porém, os potentados passavam a ter vantagem em suas contendas
com povos que dificilmente teriam condições financeiras para arcar com cercados e possíveis
multas. No 2º artigo do código de postura, acerca do foro de vinte réis pago à câmara aos
proprietários de casas na vila, o texto faz referência ao "extinto diretório" ao estabelecer que
eram isentos os possíveis sítios que tivessem nos alagadiços. Os índios que "ainda
existi[ssem]" teriam isenção total, "porque estes gozarão para sempre das regalias que lhes
concedeu o extinto diretório".68
Aparentemente vantajosa aos indígenas, a lei trazia um prenúncio de que os que "ainda
existissem" poderiam diminuir numericamente na vila, revelando as intenções dos potentados
para que fossem assimilados e desfeitos das garantias de um estatuto diferenciado. Diante de
uma lei tão desigual, como decreta o artigo 1º, tornava-se muito difícil para um índio de
Messejana continuar vivendo em seu povoado de origem, mesmo que "protegido" pelo artigo
2º. Dois anos depois, pela lei nº 188 de 22 de dezembro, ficava "suprimida a vila de
Messejana, e seu termo dividido em duas partes", entre a cidade de Fortaleza e a vila do
Aquiraz. De acordo com seu artigo 3º os índios continuariam "gozando da mesma posse [das
terras] e dos privilégios que lhes competem", o que dificilmente se aplicou na prática. A
ganância dos que avançavam sobre as terras indígenas estava amparada pela colaboração
daqueles que, por lei, deveriam protegê-las e garantir sua integridade: os juízes municipais, de
paz e de órfãos.

2.3. TODAS AS CAUSAS DA DECADÊNCIA

Em substituição aos ouvidores, cargo extinto em novembro de 1832, os juízes de


órfãos passaram a assumir a "administração dos bens pertencentes aos índios" por meio do

67
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820).
Teresina: EDUFPI, 2015, p. 338-339.
68
Lei nº 83 de 20 de setembro de 1837. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis
provinciais, p. 138.
90

decreto régio de 3 de junho de 1833. 69 Acerca da lei, Leda Naud afirma que "não é muito
difícil imaginar como se processou semelhante assistência, principalmente quando os 'homens
bons', dos conselhos municipais, os intendentes e os próprios magistrados pretendiam ampliar
suas posses, tomando as terras dos índios".70 Ou seja, mesmo antes da promulgação do Ato
Adicional de 1834, a legislação já havia sido favorável às intenções dos potentados, na
medida em que os membros do judiciário local estavam muito mais interessados em servi-los
do que em proteger os indígenas, assim como observado por Vânia Moreira no Rio de
Janeiro.71
A condição da cidadania para a população indígena, com a abolição do Diretório no
Ceará na década de 30 do século XIX, parecia prever direitos constitucionais e,
aparentemente, satisfazer as antigas demandas dos índios por autonomia em suas vilas, com o
fim da tutela dos diretores. Entretanto, como vimos, esse processo foi acompanhado de uma
série de perdas de suas garantias políticas. De acordo com Carlos de Souza Filho, o discurso
liberal se enaltecia com a proteção das populações indígenas, desde que não atrapalhassem as
ambições fundiárias dos proprietários.72 Em menos de 15 anos os índios foram enquadrados
como "cidadãos" do império brasileiro, mas simultaneamente expropriados de cargos, direitos
e, cada vez mais, de suas terras.
Os efeitos da anulação da lei pombalina em território cearense não demoraram a ser
sentidos. Por ocasião da abertura da Assembleia Legislativa em 1838, a fala do então
presidente da província, Manuel Felizardo de Souza Melo, tratou dos efeitos negativos da
"falta do braço dos índios", prejudicando as colheitas dos proprietários que dependiam na
mão-de-obra indígena, e da necessidade de civilização dessa população, que sobrevivia
desapropriada de bens e direitos. Lembrou que em novembro de 1837 haviam chegado ao
Ceará 120 colonos dos Açores que haviam sido "distribuídos por diferentes cidadãos, pagando
estes metade da passagem à vista, e outra parte em prazos de seis meses e um ano". A
iniciativa teria sido mal planejada, já que boa parte dos que aportaram eram "pessoas
prejudiciais à segurança e moralidade pública". Alguns haviam cometido assassinatos, roubos

69
Decreto de 03 de junho de 1833. Encarrega da administração dos bens dos índios aos juízes de órfãos dos
municípios respectivos. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-
37777-3-junho-1833-565134-publicacaooriginal-88994-pe.html>. Acesso em 29 de janeiro de 2015.
70
NAUD, Leda Maria Cardoso. Índios e indigenismo: histórico e legislação. Revista de informação legislativa,
v. 4, n. 15, 1967, p. 262.
71
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência –
Vila de Itaguaí, 1822-1836, p. 15-16.
72
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O direito envergonhado: o direito e os índios no Brasil. In:
GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. Índios no Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p.
158.
91

e fugido "para o interior do país". Acreditava que nenhum agricultor ou criador queria "correr
os riscos de admitir em suas casas quem pode causar-lhes danos semelhantes aos que
praticaram os primeiros colonos"; por quantia bem menor poderiam "aproveita[r] muitos dos
nossos braços, aliás hoje inúteis no país".73
Segundo Souza Melo, os índios estavam dispersos e em decréscimo populacional em
decorrência da extinção do Diretório, ocorrida pelo mau entendimento da Constituição, cujo
fenômeno teve como consequência uma "extraordinária diminuição dos produtos agrícolas".
Para o presidente, no tempo em que as vilas eram habitadas por índios, um "agricultor com
gasto módico encontrava trabalhadores que o ajudavam nas estações próprias", mas em 1838
raramente havia alguém para ao menos abrir um roçado. Também era difícil e caro para o
governo achar operários para obras públicas, "e tudo se poderia conseguir com pequeno
dispêndio, se estivesse aldeada essa classe de homens". Apesar do Ato Adicional de 1834, que
incumbira as assembleias provinciais de catequizar e civilizar os índios, os mesmos ainda
estavam "mal catequizados e mui pouco civilizados". A invasão de seus bens não era
devidamente combatida pela sobrecarga de trabalho dos juízes, e por isso sugeriu que se
estabelecesse uma gratificação aos procuradores que agenciassem suas reivindicações e se
tomasse "um advogado dos índios em cada comarca em que eles tiverem bens". Ao final, fez
as seguintes proposições:

Parece-me por enquanto suficiente o reestabelecimento das aldeias de Soure e Vila


Viçosa, onde ainda existem terras em que eles podem trabalhar independente de
demandas. Um regulamento ou reforma do antigo é mister no caso de assentardes
ser conveniente o reestabelecimento das aldeias, e pôr embaraço ao rápido
aniquilamento dos antigos habitantes da Terra de Santa Cruz"

De acordo com Jofre Vieira, a partir de 1838, a reutilização da mão-de-obra indígena


no Ceará passou a ser a alternativa mais viável diante dos “parcos recursos gerados pela renda
da própria província” e do insuficiente contingente de escravos. Além disso, como observa o
autor, a necessidade de controle dessa população também se conectava às ameaças de que os
índios da Ibiapaba pudessem aderir à Balaiada.74
Os temas voltaram à tona no ano seguinte, no relatório do presidente João Antônio de
Miranda. Contou aos deputados da província que cerca de 60 índios foram cumprimentá-lo e

73
MELO, Manoel Felizardo de Souza. Fala que recitou o Ex. Sr. Manoel Felizardo de Souza Melo,
presidente desta província, por ocasião da abertura da Assembleia Legislativa da Provincial, no 1º de
agosto do corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1838, p. 19-20.
74
VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes: o motim dos pretos da Laura em 1839. Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 120-121.
92

oferecer seus serviços na limpeza dos arredores de Arronches, num sinal de miséria e busca
de recursos. "Uns pedem um pastor que os guie; outros o reestabelecimento de seus diretórios
e a restituição dos bens que possuíam; outros, finalmente, recordando-se lastimosos do tempo
e dos favores d'El Rei o Senhor dom João VI, pedem o governo do Rei Velho". Nessa época,
muito já havia sido esbulhado, e segundo o presidente, eram desamparados até mesmo por
aqueles que deveriam agir em seu benefício. Reafirmou a sugestão de seu antecessor para o
restabelecimento de Viçosa e Soure e da criação do cargo de um advogado responsável pela
"medição, restituição, demarcação e conservação de suas terras, e que requeira tudo o mais
que convier a bem deles". Pela malograda experiência da introdução de colonos e pela falta de
"escravos suficientes", acreditava não ser possível progredir a indústria e a agricultura, e por
isso era preciso "olhar para os índios com vista também neste interesse", sendo os
aldeamentos muito úteis nesse sentido. Na sua visão, eram "geralmente dóceis, humildes,
obedientes, religiosos e alguns mesmo amantes do trabalho para que se oferecem", como os
que recebera e os de Messejana, "à cujo pároco se ofereceram para auxiliarem as obras da
Matriz". Concluía sua proposta sobre os índios para a Assembleia provincial:

"Tirar proveito de suas boas disposições, prevenir que seus defeitos os tornem
inúteis a si e a sociedade, substituir com eles pouco a pouco os escravos, e chamá-
los ao serviço, a que se furtam os ociosos, os viciosos colonos, com que quase
sempre os presenteiam, é isto uma tarefa humana e política, de que vós não deveis
descuidar".75

A percepção de que os índios podiam ser uma alternativa à escassez de trabalhadores


também foi manifestada pelo presidente Francisco de Souza Martins em 1840. Como eram
"poucos os escravos nesta província (onde o contrabando felizmente não tem penetrado)", e
pela dificuldade em se assalariar braços livres, os "índios domésticos, que aqui são muito
numerosos", poderiam suprir essa falta. Em outros tempos, os diretores os repartiam aos
lavradores, com o salário previamente estipulado pelo Diretório, "mas este reputou-se abolido
pela Constituição, e os índios entregues ao seu gênio inconstante e indolente". Não se
sujeitavam mais ao "trabalho aturado, de sorte que ainda ajustando-se com o lavrador, os
abandonam ordinariamente depois de poucos dias de serviço". A província teria sido uma das
mais ricas em índios, mas que iam aos poucos desaparecendo, "de sorte que a raça dos
primeiros habitadores do Brasil parece condenada à completa aniquilação pelos
imperscrutáveis decretos da providência". Sua opinião era de que a legislação contribuía
75
MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o Exm. Sr. Doutor João Antônio de Miranda,
presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial, no dia 1º de agosto
de corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 24-25.
93

bastante para esta situação, resultando em efeitos negativos para a agricultura da província. Os
jesuítas teriam feito florescer as aldeias de índios, substituídos de forma não tão satisfatória
pela legislação pombalina. Mas depois de jurada a constituição

"entendeu-se nesta província abolido o Diretório dos Índios, porque a lei devia ser
igual para todos os cidadãos brasileiros, em cujo número com razão compreendem
os índios, mas esta inteligência nem foi razoável, nem conveniente ao país".

Como resultado, suas terras eram invadidas sem que tivessem meios para "defender os
seus direitos perante os tribunais". As leis também os excluíram "de todos os empregos
públicos", que passaram a ser ocupados por brancos, "mais hábeis e cavilosos". Abandonados
a si mesmos, os índios estavam "desgostosos de sua posição social e suspir[avam] pelo antigo
regime". Por isso, Souza Martins sugeriu que fosse restabelecido o Diretório, "com as
modificações adaptadas à época e à legislação novíssima que nos rege", sendo novamente
unidos e subordinados aos diretores. Recomendou a presença de “missionários que pregassem
a moral e religião nas suas aldeias e vilas" e o estabelecimento de advogados dos índios, "por
que eles não podem nas suas demandas pagar as despesas do foro pela nímia pobreza em que
ordinariamente vivem". Lembrou ainda

"que uma boa legislação sobre os índios pode suprir em grande parte a falta de
braços que é igualmente sentida na província para os trabalhos agrícolas e todos os
empregos rurais, dispensando-nos das avultadas despesas com a colonização
estrangeira, que até agora mui pouco tem prosperado no império, e da falta de
recursos do contrabando de escravos, que envolve o gérmen da futura aniquilação do
Estado".76

Em 1841 foi decretado por lei provincial que o foro das terras patrimoniais das
câmaras de Arronches e Soure seria arrecadado por Fortaleza, e que parte das despensas do
ano financeiro da capital deveria ser destinada "com o advogado que trata das causas das
terras dos índios".77 Tais medidas, na visão do presidente José Joaquim Coelho, eram
insuficientes para amenizar o definhamento da população indígena. Em seu relatório deste ano
denunciou o que chamou de "anomalia" das políticas provinciais o fato de elas se
preocuparem mais em "suprir com braços estranhos a falta da população" do que com o
"aniquilamento progressivo a que parecem estarem voltados os antigos habitantes da Terra de

76
MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza
Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º
de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 10-13.
77
Lei nº 240 de 20 de janeiro de 1841. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis
provinciais, p. 322.
94

Santa Cruz". Privados de "inteligência vigorosa, da atividade empreendedora, do espírito


providente", os índios necessitavam de proteção, e chegaram a ter florescido com os jesuítas.
Mas com a administração dos juízes de órfãos, "que mais se estende aos bens do que às
pessoas, tem-se entre eles desenvolvido com espantosa energia todas as causas da decadência,
algumas das quais, todavia, achavam-se esterilizadas durante a tão imperfeita instituição dos
diretores". Dirigindo-se aos deputados, sua intenção não era, segundo ele, atacar os
magistrados, mas proporcionar-lhes, através da assembleia legislativa, os meios de
efetivamente executarem suas funções.

"Basta para este fim que por hora façais uma lei, criando em todos os termos onde
houver aldeados um curador especial de nomeação da presidência, o qual, sob a
inspeção do respectivo juiz de órfãos, requeira e promova perante as autoridades
competentes tudo quanto for a benefício dos seus curatelados; aplique-os ao
trabalho, sem o qual o homem não pode subsistir e prosperar, extinguindo neles
destarte a inércia e indolência a que naturalmente são propensos; e que lhes faça
enfim desfrutar o benefício da instrução pública primária, que a lei liberaliza a todos
os cidadãos, e que tão própria deve ser para estender o acanhado intelecto destes
homens semi-bárbaros".

O trabalho destes curadores estaria aliado à ação de missionários, na busca de


melhorar a sorte dos "mais miseráveis proletários desta pátria". Deveriam ser bem pagos, já
que estariam no "exercício de uma comissão que, além de não ser lucrativa, só pode servir a
trazer porfiosas lutas com homens quiçá poderosos, que tem invadido os territórios dos índios,
e lhes devem foros e retribuição".78
As falas de todos estes presidentes dirigidos ao legislativo cearense são outros
exemplos de operacionalizações de aspectos do Antigo Regime no pós-independência. No
Ceará do período regencial, isso foi feito em meio a um ambiente político dominado por forte
tendência liberal, como observou Jofre Vieira,79 prevalecendo, portanto, os interesses na
autonomia provincial. Em primeiro lugar, além de não se reclamar uma lei geral e exclusiva
para os índios, as definições legais em certas esferas se davam a partir de interpretações
locais. Isto fica claro quando é dito várias vezes que a abolição do Diretório se executou pelo
que se entendeu de uma Constituição que sequer citava os índios. Em segundo lugar, por este
mesmo raciocínio de liberdade provincial em legislar, sugeria-se desde 1838 o retorno de uma
lei do século XVIII. Terceiro, os argumentos em sua defesa permaneciam os mesmos, sendo
muito semelhantes ao que vimos desde os governadores Bernardo Manoel de Vasconcelos e

78
COELHO, José Joaquim. Discurso recitado pelo Exmo. Senhor Brigadeiro José Joaquim Coelho,
presidente e comandante das armas da província do Ceará, na abertura da assembleia provincial, no dia
10 de setembro de 1841. Recife: Tipografia de Santos e Companhia, 1842, p. 18-19.
79
VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes, p. 112.
95

Manuel Ignácio de Sampaio: apesar de reconhecida a cidadania brasileira aos índios, estes não
tinham condições de viver sem alguém que os guiasse.
Novamente se opinava, ano após ano, que o aproveitamento da mão-de-obra indígena
seria a solução para a agricultura e indústria do Ceará e para a civilização deste povo que a
cada dia diminuía em número. Em sintonia com a "agenda de construção da nacionalidade no
império [brasileiro]", segundo Carlos Guilherme do Valle, a "tarefa de 'catequizar e civilizar'
os índios conciliava elementos do período colonial", mas a civilização, em sentido mais
moderno, equivaleria à sua integração. Por serem "inferiores", contudo, a incorporação se
daria apenas como força de trabalho barata e de fácil aquisição.80
Os presidentes reconheciam também a ineficácia da lei que relegava aos juízes o dever
de administrar os bens dos índios, ainda que não atacassem – talvez por falta de coragem – a
probidade de suas pessoas. Mas o conjunto de todas as sugestões de elementos que se
somariam ao trabalho dos magistrados – com advogados, missionários e a volta do Diretório –
revelam que, como já vimos, a vontade política dos presidentes esbarrava nas intenções do
legislativo que compactuava com o avanço dos potentados, cuja vitória era clara. Prova disso
é que muito foi acatado – como veremos a seguir – mas outros pontos foram completamente
ignorados. Não foram restabelecidos os empregos públicos reservados aos índios (como os
cargos de vereadores e juízes) e as antigas vilas indígenas (suprimidas na década anterior e já
bastante esvaziadas), e também não se executaram novas demarcações de suas terras. O
retorno da lei pombalina não previa igual processo para os benefícios dados aos indígenas e
nem uma efetiva proteção de seus bens, que continuaram sendo usurpados.
Os índios, por sua vez, suspiravam pelo “antigo regime”. Como nota Valle, a nostalgia
indígena, também presente em revoltas contra o governo imperial como a cabanagem e a
balaiada, "foi sempre notada por conferir apoio social, engendrado historicamente, aos
portugueses".81 Sabemos que a vida das comunidades durante o período do dom João VI era
repleta de turbulências e explorações, registradas em diversos relatos e queixas indígenas
como veremos no capítulo seguinte. Mas, como muito do que era ruim poderia piorar, não se
comparava ao esbulho e à miséria que sofriam nas décadas posteriores à independência,
especialmente após 1831, quando o poder do monarca era limitado por regentes. O
comentário de Francisco Constâncio em sua História do Brasil, de 1839, é incisivo a este
respeito:

80
VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: um
exercício de antropologia histórica. In: VALLE, Carlos Guilherme do. SCHWADE, Elisete. Processos sociais,
cultura e identidades. São Paulo: Annablume, 2009, p. 33-34.
81
Ibid., p. 37.
96

“Até à época de que tratamos, os portugueses estabelecidos no Brasil e seus


descendentes não cessaram de tratar com o maior desprezo as nações indígenas, que
tentaram reduzir à condição de escravos. Aos missionários devem estes infelizes a
proteção do rei, benefício de que os índios conservam grata memória”. 82

No período regencial, a entidade benfeitora dos índios, antigamente representada pela


Coroa portuguesa, não existia mais. O “antigo regime” de que índios sentiam falta não
correspondia a todo o período colonial, mas ao contexto iniciado no período pombalino,
quando foi proibida sua escravização. A política indigenista do ministério de Pombal pode ser
interpretada pelo viés da ruptura, como faz Fernanda Sposito, por ter inserido os índios, na
condição de vassalos livres, no processo de consolidação do território colonial.83 No entanto,
a política joanina não necessariamente seguiu caminho contrário à pombalina porque também
se utilizou do Diretório e nem sempre foi ofensiva em relação à heterogênea população
indígena.84 Desapropriados de cargos, vilas e câmaras, sem a proteção de uma monarquia
paternal e desfeitos de suas terras – os últimos bens que lhes restavam – é compreensível a
saudade que sentiam de tempos antigos, do rei velho (a quem a historiografia muitas vezes
ressalta apenas a face ofensiva) e até mesmo dos diretores, quem repetidas vezes combateram.
Os argumentos utilizados para o retorno do Diretório também possibilitam refletir
sobre a famosa ideia de Manuela Carneiro da Cunha acerca da "questão indígena no século
XIX", que havia deixado de ter como centro a mão-de-obra para se converter essencialmente
para a terra. A autora reconhece que havia diferenças regionais, mas destaca que mesmo nas
áreas de colonização antiga buscava-se "extinguir os aldeamentos, liberando as terras para os
moradores".85 Os debates desenrolados no Conselho Geral da Província do Ceará durante as
décadas de 1820 e 1830 pareciam confirmar a tese de Cunha, por entender que os poucos
índios que restavam nas antigas povoações não tinham mais a relevância de poucos anos antes
para a economia da região. Entretanto, em seus relatórios, os presidentes da província
seguiram um caminho argumentativo inverso, destacando que o processo de extinção das vilas
e a indiferença governamental diante do destino da população indígena afetara profundamente
a agricultura. Acerca da interpretação da autora, Carlos Guilherme do Valle acredita que
"tratar da terra implicava também lidar com o uso da mão de obra disponível". Para ele, a

82
CONSTÂNCIO, Francisco Solano. História do Brasil, desde seu descobrimento por Pedro Álvares Cabral
até a abdicação do imperador dom Pedro I. Paris: Livraria Portuguesa de J. P. Aillaud, 1839, p. 219.
83
SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de
d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 91-92.
84
Ibid., p. 104-105.
85
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 4.
97

compreensão da mão-de-obra mudara ao ser "descaracterizada de seus atributos étnicos,


enquanto indígena, para ser generalizada como 'livre' e identificada como cearense e passível
de ser aproveitada em termos econômicos".86
De fato, a desagregação dos espaços indígenas provocara uma intensa dispersão das
populações nativas desapropriadas de bens e terras e, consequentemente, fragmentara
comunidades e laços étnicos. Mas nem sempre esses "novos homens livres", antigos índios
aldeados, passaram a ser aproveitados imediatamente como trabalhadores dos latifundiários
invasores de suas antigas propriedades, já que muitos migraram para regiões distantes –
movimento observado em décadas anteriores.87 Era disso que se lamentavam os presidentes
em seus relatórios: a ambiciosa elite econômica do Ceará fora prejudicada por suas próprias
ações, na medida em que, apossando-se das terras indígenas, passaram a sofrer com a escassez
de sua força de trabalho. Ou seja, pelo menos no caso cearense, a questão da terra dos índios
estava completamente vinculada à da exploração do seu trabalho. Apesar da ênfase à questão
da terra para o século XIX, é Cunha quem diz que, nas zonas de povoamento mais antigo, a
restrição do acesso à propriedade fundiária andava junto com a conversão da população
independente em assalariada. "A política de terras não é, portanto, a rigor, independente de
uma política de trabalho".88 Não havia, portanto, oposição entre “terra” e “trabalho” na
questão indígena no início do século XIX.
Mesmo com a diminuição demográfica presenciada nas vilas de índios nos anos
posteriores a independência, é de se questionar a veracidade das falas do Conselho Geral da
Província na década de 1830 acerca desses espaços. Era conveniente para os representantes
dos potentados locais sedentos por terra declarar que as vilas estavam vazias com a abolição
do Diretório. A intensificação da dispersão populacional indígena, sua diminuição
demográfica e as referências aos danos econômicos apresentados pelo legislativo, com a
conseguinte extinção das vilas, eram reais. Contudo, foram infladas e utilizadas enquanto
manobras políticas pela ambição em torno das terras dos índios, como também nota Maico
Xavier.89
Suprimido por ter supostamente "perdido importância", o Diretório era peça chave no
fornecimento de trabalhadores em uma província carente de escravos e de recursos. Após
cerca de 10 anos de terem resolvido abolir a lei, e já senhores das terras e do patrimônio das

86
VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 31.
87
Como os índios da Ibiapaba que foram para o Piauí. Cf. De José Rabelo de Souza Pereira a Manuel Ignácio de
Sampaio. Fortaleza, 11 de julho de 1815. BN, C-199, 14. De Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar.
Fortaleza, 01 de agosto de 1815. BN, C-199, 14.
88
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 15.
89
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 106.
98

antigas vilas de índios, os deputados da província resolveram acatar as sugestões dos


presidentes, num claro sinal da necessidade sentida da mão-de-obra indígena. Em dezembro
de 1842 a assembleia legislativa participou ao líder do governo do Ceará o ato nº 20 que
sancionava o retorno da diretriz pombalina.90 Em 1º de agosto de 1843 o Diretório foi então
restabelecido no Ceará pela lei nº 303. O texto legal, contudo, é pouco esclarecedor, não
especificando quais pontos seriam aplicados ou de que maneira funcionariam as vilas,
resumindo-se a dizer que sua execução não deveria se opor à Constituição e às leis do Estado,
"que garantem a liberdade do cidadão".91 A norma pouco providenciava em favor dos índios,
que seguiram enquanto "cidadãos livres e expropriados".
No dia 14 do mesmo mês de agosto, o presidente José Maria da Silva Bittencourt
escreveu circular aos juízes de órfãos da província e a algumas câmaras municipais, pedindo
informações para a execução da nova legislação "que restabeleceu o Diretório dos Índios,
acomodadas à diversidade de circunstâncias e de legislação". Foram perguntados se havia
índios no seu termo, "e em que pontos ou lugares residem, qual seu número provável, em que
gênero de vida se ocupam, se vivem aldeados ou dispersos".92 Uma das respostas veio Viçosa,
que havia poucos anos era vila de índios. De acordo com a câmara, a população indígena
correspondia a mais de 500 pessoas dispersas em várias localidades da região. Segundo os
vereadores, quando os índios “tinham diretor, eram recrutados por toda parte para viverem
para sua aldeia” e, caso fossem realdeados, “ter[ia] o município mais que florescer”.93
Percebe-se que a intenção de reativar o Diretório servia apenas para reagregar os
índios em espaços próprios, de modo a facilitar seu fornecimento para o trabalho nas
propriedades. Os objetivos do governo e a expectativa dos vereadores de Viçosa apontavam
exclusivamente para o controle da população indígena e seu pleno aproveitamento enquanto
mão-de-obra, sem que estes readquirissem um estatuto especial ou os antigos privilégios do
Antigo Regime. As autoridades municipais da antiga vila de índios passaram longe de cogitar
que lideranças indígenas voltassem a ocupar cargos na câmara. A lei setecentista em plena

90
Da assembleia legislativa da província do Ceará a José Joaquim Coelho. Fortaleza, dezembro de 1842. AN,
AA, IJJ9 175-a.
91
Lei nº 303 de 01 de agosto de 1843. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis
provinciais, art. 1º §8, art. 2º §12, p. 323-235.
92
De José Maria da Silva Bittencourt aos juízes de órfãos da província. Fortaleza, 14 de agosto de 1843. APEC,
GP, CO EX, livro 58, p. 130. De José Maria da Silva Bittencourt às câmaras municipais de Imperatriz, Sobral,
Granja, Vila Viçosa, Vila Nova, São José do Príncipe, Quixeramobim, Baturité, Aquiraz, Cascavel, Aracati, São
Bernardo, Riacho do Sangue, Icó, Lavras, Jardim, Crato, São Mateus e Fortaleza. Fortaleza, 14 de agosto de
1843. APEC, GP, CO EX, livro 62, p. 1V.
93
Da câmara de Vila Viçosa a José Maria da Silva Bittencourt. Vila Viçosa, 11 de setembro de 1843. APEC,
CM, câmara de Imperatriz, pacotilha 1843-1849. Até esta pesquisa, não havia uma sessão da câmara de Vila
Viçosa no fundo CM do APEC.
99

década de 1840 não se configurava apenas como uma “herança” arcaica, mas era
operacionalizada a serviço de interesses políticos e econômicos.
Em julho de 1844 Bittencourt fez um balanço de um ano de execução da antiga lei
pombalina em seu relatório proferido à Assembleia Legislativa. Assumiu que "havia
obstáculos, tanto por falta de ordenado para os diretores como por falta de terras, por se
acharem ocupadas devida ou indevidamente as dos índios". Ainda que sentissem a
necessidade de tê-los novamente agregados e transformados em mão-de-obra, os proprietários
invasores dificilmente cederiam suas novas possessões, e nem mesmo o líder do governo
provincial teria forças para enfrentá-los. O presidente disse que esperava poder removê-los, a
partir de um aviso do ministério do Império que ordenava que remetesse esclarecimento para
a produção de uma nova lei "para a civilização e catequese dos indígenas".94
A volta do Diretório foi contemporânea à nova alta da produção algodoeira no Ceará
da década de 1840, observado por João Leite Neto, atendendo, portanto, à necessidade de
fornecimento regular de mão-de-obra para as lavouras.95 Sua extinção e seu posterior
reestabelecimento, assim como outros procedimentos jurídicos analisados por Carlos Garriga
e Andreia Slemian, devem ser tratados como atos deliberados das autoridades “no processo de
reconstituição das novas unidades políticas e não uma simples herança, cuja recorrência à
tradição fornecia aos coevos a manutenção de seus status quo frente às sociedades
multiétnicas em convulsão política no início dos oitocentos”. Sob o regime de uma “justiça de
juízes (e não de leis)”,96 novos e velhos mecanismos estavam a serviço das ambições das
elites políticas e econômicas. O Diretório reestabelecido até certo ponto atendia aos interesses
específicos das elites cearenses que desejavam eliminar os índios dos espaços políticos,
apoderar-se de suas terras e usufruir de sua mão-de-obra.
A decisão corrobora a ideia de André Roberto Machado, de que a questão indígena
continuou relevante nas décadas posteriores à independência. No Pará analisado pelo autor,
mesmo sem promulgar o reestabelecimento do Diretório, também houve propostas de
utilização da lei pombalina e de outras medidas de coerção da força de trabalho dos índios.97

94
Tratava-se do Regulamento das Missões, promulgado no ano seguinte. BITTENCOURT, José Maria da Silva.
Relatório do Ex.mo presidente e comandante das armas da província do Ceará, o brigadeiro José Maria da
Silva Bittencourt, na abertura da Assembleia Legislativa Provincial no 1º de julho de 1844. Fortaleza:
Tipografia Cearense, 1844, p. 17.
95
LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da
capitania do Ceará (1780-1822). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 1997, p. 92.
96
GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C.
1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 188-189.
97
MACHADO, André Roberto de Arruda. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política
indigenista no império do Brasil (1829-1831). Almanack, n. 10, 2015, p. 459-464.
100

Muitas vezes, dilemas locais poderiam até culminar em decisões gerais no império, como foi
o caso da criação do Regulamento das Missões em 1845. Tanto a volta da lei pombalina no
Ceará quanto a promulgação do Regulamento foram exemplos da crescente necessidade do
controle da mão-de-obra indígena em algumas províncias.
Outra sugestão dos presidentes da Ceará acatada pelo legislativo foi a obtenção de
frades católicos para que atuassem na civilização e catequese dos índios, presente desde o
relatório do Francisco de Souza Martins em 1840. Segundo Patrícia Sampaio, os
"capuchinhos já haviam sido convocados para assumir a catequese indígena desde 1840,
durante a regência de Pedro de Araújo Lima, o relator do projeto do Regulamento", e em
quem Martins provavelmente se inspirou. A autora destaca a "implementação de missões
religiosas no Maranhão, Pará, Espírito Santo e Ceará, ainda no decurso das décadas de 1830 e
1840", quando os missionários estavam "a serviço do Estado e seriam considerados os
principais responsáveis pela execução do Regulamento de 1845".98
Pela resolução de 10 de novembro de 1842, o presidente do Ceará José Joaquim
Coelho, através de decreto da assembleia legislativa provincial, autorizou que o governo da
província solicitasse à Santa Sé, por meio do governo imperial, “o transporte de dois
missionários capuchinhos italianos, que se ocupem da catequese dos índios, e exercício das
missões por toda a província, não excedendo a despesa do transporte a quatro contos de réis”.
Seria designada em Fortaleza uma residência para os religiosos, empregados onde o governo
achasse útil e subordinados ao superior do hospício de Pernambuco, “de acordo com o mesmo
prelado diocesano impetrando-se nesse sentido a competente autorização da Corte de
Roma”.99 Em abril de 1843 Coelho comunicou ao ministro José Antônio da Silva Maia a
promulgação da lei de transporte dos missionários, esperando a aprovação da Corte do Rio de
Janeiro.100 As despesas dos religiosos deveriam ser tratadas pelo presidente da província do
Ceará, apesar da catequese e civilização dos indígenas serem competências do ministério do
império.101
A vinda dos religiosos não foi imediata. Em março de 1844, o ministro do império
José Carlos Pereira de Almeida Torres comunicou ao então presidente do Ceará José Maria da
Silva Bittencourt sobre o extrato do enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em
Roma e os “obstáculos que tem encontrado para a remessa de dois a quatro missionários para
a catequese e civilização dos índios desta província”. Curiosamente, caberia a Bittencourt dar

98
SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial, p. 180.
99
Resolução do presidente José Joaquim Coelho. Fortaleza, 10 de novembro de 1842. AN, AA, IJJ9 175-a.
100
De José Joaquim Coelho a José Antônio da Silva Maia. Fortaleza, 21 de abril de 1843. AN, AA, IJJ9 175-a.
101
Sem remetente, destinatário e local. 21 de junho de 1843. AN, AA, IJJ9 175-a.
101

as providências para a remoção dos mesmos obstáculos,102 que não ficam claros no registro. O
mesmo extrato foi comunicado à assembleia legislativa cearense no mês de maio.103
Paralelamente ao legislativo cearense, algumas normas imperiais foram promulgadas
regulamentando a criação das missões religiosas e o trabalho dos missionários no Brasil.
Dava-se início, segundo Marta Amoroso, à época na qual a política indigenista no império
seria "erguida sob os pilares da catequese e da civilização pautada por um conjunto de
princípios que giravam em torno da conversão, educação e assimilação branda da população
indígena ao conjunto da sociedade nacional".104 A primeira diretriz foi o decreto n.º 285, de
24 de junho de 1843, que autorizava o "governo para mandar vir da Itália missionários
capuchinhos, e distribuí-los pelas províncias em missões".105 Na lei nº 317, de 21 de outubro
de 1843, por meio de seu artigo 1º, §21, determinou-se a quantia de 16:000$000 nas despesas
para a "Catequese e civilização de índios, ficando o governo autorizado para dar regulamento
às missões, e pô-los em execução".106 No ano seguinte, o decreto n.º 373 de 30 de julho de
1844 fixou novas "regras que se devem observar na distribuição pelas províncias dos
missionários capuchinhos".
Curiosamente, nenhum dos dois decretos, nem o 285 e nem o 373, sequer citavam os
índios em seus textos ou vinculavam o trabalho dos missionários à sua catequese. No último,
de 1844, contudo, era fixado em seus artigos 4º e 5º que nenhum dos religiosos deveria
solicitar obediência ou outra ordem de seu superior em Roma, mas somente ao "beneplácito
imperial".107 Foi o governo monárquico brasileiro quem incumbiu os frades capuchinhos da
função que, segundo Oscar Beozzo, foi semelhante ao que os jesuítas desempenharam nos
primeiros duzentos anos de catequese e aldeamento, mesmo que não tivesse, nem de longe, as
mesmas proporções. Ainda assim, tal atuação foi a base da "parte religiosa da política

102
De José Carlos Pereira de Almeida Torres a José Maria da Silva Bittencourt. Rio de Janeiro, 30 de março de
1844. AN, AA, IJJ9 91.
103
De Raimundo Ferreira de Araújo Lima ao 1º secretário da assembleia provincial. Fortaleza, 6 de maio de
1844. APEC, GP, CO EX, livro 66, p. 6.
104
AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito: catequese e educação para os índios nos aldeamentos
capuchinhos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37, 1998, p. 2.
105
Decreto n.º 285, de 24 de junho de 1843. Autoriza o governo para mandar vir da Itália missionários
capuchinhos, distribuí-los pelas províncias em missões; e concede seis loterias para aquisição ou edificação de
prédios, que sirvam de hospícios aos ditos missionários. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/18241899/decreto28524junho1843560688publicacaooriginal83809
pl.html>. Acesso em: 20 de agosto de 2015.
106
Lei n.º 317, de 21 de outubro de 1843. Fixando a despesa e orçando a receita para os exercícios de 1843-1844,
e 1844-1845. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM317.htm>. Acesso em: 20 de
agosto de 2015.
107
Decreto n.º 373, de 30 de julho de 1844. Fixando as regras que devem observar na distribuição pelas
províncias dos missionários capuchinhos. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/18241899/decreto37330julho1844560765publicacaooriginal83949
pe.html>. Acesso em: 20 de agosto de 2015.
102

indigenista traçada pelo decreto de 1845". Entre um dos principais objetivos do novo
Regulamento, segundo o autor, estava cuidar do destino das terras indígenas e reagrupar os
pequenos grupos de índios que ainda restassem. "O índio não devia ser um obstáculo ao
aproveitamento da terra. Ele mesmo devia transformar-se em lavrador".108

*
* *

Como alerta Marta Amoroso, é preciso acrescentar à analise das apropriações


fundiárias novos olhares sobre as intenções "de utilização dos índios como força de
trabalho".109 De fato, o avanço territorial não ignorou seus antigos donos, mas que deveriam
ser destituídos de uma vez por todas de suas antigas garantias e estatutos diferenciados, como
vimos há pouco. Os missionários, como dizia a lei, estavam a serviço do governo, atuando na
prática mais em congregar trabalhadores do que proteger os indígenas ou lutar por seus
direitos políticos. No Ceará, uma das primeiras províncias a se mobilizar pela vinda dos
religiosos, não foi à toa que o restabelecimento do Diretório tenha sido contemporâneo à
presença dos missionários e à declaração, cerca de 20 anos depois de sua chegada, de que não
havia mais índios em seu território.110

108
BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Edições
Loyola, 1983, p. 78-79.
109
AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito: catequese e educação para os índios nos aldeamentos
capuchinhos, p. 9.
110
Cf. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos
índios do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará,
2010, p. 167. XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social. SILVA, Isabelle
Braz Peixoto da. O relatório provincial de 1863 e a expropriação das terras indígenas. In: João Pacheco de
Oliveira. (Org.). Presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e
regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
103

CAPÍTULO 3

OS INDÍGENAS DIANTE DA LEGISLAÇÃO

"por motivo das leis serem todas sonegadas [...]


prostram-se os miseráveis índios suplicantes a
representar as suas misérias e vexames"
(João de Souza Benício e demais índios da Ibiapaba,
1814. APEC, GC, Livro 93)

"Os índios [...] são esbulhados de suas terras, ficando à


mercê do desamparo, sem que tenham aparecido por
parte das autoridades [...] aquelas providências que as
leis autorizam"
(José Joaquim Coelho, 1842. APEC, GP, CO EX,
Livro 58, p. 11)

Apesar da obrigação do trabalho compulsório prevista no Diretório, os índios eram,


por lei, livres e deveriam ser remunerados pelos serviços que executassem, situação que
perdurou durante toda a vigência dessa legislação no Ceará. O reinado de dom João VI não
mudou essa característica na capitania, ainda que a historiografia costume acentuar seu caráter
agressivo.1 Marina Machado acredita que "não se pode generalizar a política indigenista deste
governo", já que "adotou práticas específicas para cada região, lidando com a declaração de
guerra justa em paralelo aos incentivos ao aldeamento".2
Segundo Fernanda Sposito, a dinâmica das leis a respeito dos índios “respondeu
historicamente às demandas presentes nas estruturas sociais às quais corresponderam”. Por
isso, a autora trabalha com os termos “arcaico” e “moderno” não enquanto categorias
estanques – “uma coisa ou outra” –, mas ajudando a perceber práticas distintas que conviviam
em uma mesma situação de “transformações oriundas da crise do Antigo Regime, sejam
revolucionárias ou regressistas”. A respeito da política indigenista joanina, Sposito percebe
suas tensões como pertencentes ao período quando o sistema colonial praticado na América
portuguesa não se sustentava mais, requerendo “adaptações crescentes às demandas do capital
industrial vigente no final do século XVIII”.3
O Diretório em vigor no Ceará – atendendo à necessidade de mão-de-obra para as
produções de algodão e mandioca, voltadas, respectivamente, aos mercados externos e
1
Manuela Carneiro da Cunha chama dom João VI de “o mais anti-indigenista dos legisladores”. CUNHA, Maria
Manuela Ligeti Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos do índio: ensaios e
documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 63.
2
MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras: terras indígenas nos sertões fluminenses (1790-1824). Tese
(doutorado) - Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 103-104.
3
SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de
d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 87-91.
104

internos – também compôs a dinâmica da política indigenista joanina, assim como as Cartas
Régias de 1808 declarando guerras aos chamados "botocudos". Estas correspondiam a
situações bastante específicas, espacial e temporalmente, que não podem ser generalizadas
para todo o Brasil, tendo em vista que o tratamento da Coroa aos indígenas da América não
era uniforme. O contexto de produção dessas leis diz respeito a regiões fortemente visadas
pela expansão agrícola do início do século XIX (atuais Paraná, São Paulo, Espírito Santo e
Minas Gerais), e exclusivamente aos índios não-aldeados, que atrapalhavam as intenções
econômicas do governo.
Os textos das Cartas Régias de guerra justa sinalizavam possibilidades de conciliação
que frequentemente era desobedecida na prática, já que a escravidão prevista para os índios
capturados era durante o "tempo que durar sua ferocidade", ou "enquanto não derem provas
do abandono de sua atrocidade e antropofagia". Os "tão saudáveis e grandes fins" pretendidos
pelas Cartas Régias eram "tudo o que tocar a pacificação, civilização e aldeação [sic] dos
índios".4 Para aqueles que quisessem se aldear, e "viver sob o suave jugo" das leis, "já não só
não ficarão sujeitos a serem feitos prisioneiros de guerra, mas serão até considerados como
cidadãos livres e vassalos especialmente protegidos por mim e por minhas leis".5
Faz-se necessário, portanto, ponderar sobre as ações e intenções dos diferentes agentes
que lidavam com os botocudos neste contexto. Pela leitura das Cartas Régias de 1808, a
transformação dos índios, aldeados ou não, em escravos não era necessariamente o objetivo
do governo joanino, e muito menos a regra para o tratamento com estas populações em todo o
Brasil. O texto legal abria aos indígenas a possibilidade da liberdade, tanto na condição de
vassalos como também de cidadãos.6 No entanto, a aplicação de tais preceitos por
representantes da administração colonial e pelos colonos seguia muitas vezes caminhos
distintos. Tais discrepâncias estão presentes na análise de Tarcísio da Silva a respeito da
atuação da Junta de Civilização dos Índios do rio Doce, por exemplo. Ainda que apresente o
reinado de dom João VI como mais ofensivo do que anteriores,7 o autor enfatiza que “sempre
houve por parte de Portugal certa ambiguidade, tanto legal como prática, no tratamento dos

4
Carta Régia de 13 de maio de 1808. Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_18/CartaRegia_1305.htm>. Acesso em 29 de janeiro de
2015.
5
Carta Régia de 05 de novembro de 1808. Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_19/CartaRegia_0511.htm>. Acesso em 29 de janeiro de
2015.
6
A operacionalização desses conceitos por índios e outros agentes serão analisados no capítulo 4.
7
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce: fronteiras,
apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
2006, p. 103-104.
105

índios”.8 Para Silva, mesmo que “a ideia de guerra [...] nunca [tenha sido] abandonada”, as
ordens do comando da Junta sempre foram “no sentido de tentar um contato amistoso e só
usar de meios violentos quando este tipo de ação” fosse necessário.9
Atentar para essas nuances não significa ignorar os efeitos sanguinários dessas práticas
iniciadas em 1808. Comparando com as medidas pombalinas, Fernanda Sposito entende as
joaninas contra os botocudos de Minas e São Paulo como um atraso, ao reeditar práticas
coloniais de extermínio e escravização. No entanto, sua finalidade não se resumia a
eliminação dos índios do território em questão. Além da resistência indígena, sua aliança era
de fundamental importância no conhecimento de locais imprescindíveis a novos espaços de
produção e “como a principal mão-de-obra disponível”. Também tiveram momentos de recuo
– com o plano de catequese dos índios de Guarapuava10 – e foram contemporâneas a ações
bastante distintas, em que o próprio dom João VI recomendava a observância ao Diretório.
Exemplo de outro procedimento da política joanina está registrado no regimento do
Tribunal da Relação do Maranhão de 1812, cuja jurisdição foi estendida para o Ceará em
1815. O §15 do título 2º – Do governador da Relação – ordena que se favorecessem os
gentios "que estiverem em paz", proibindo que fossem maltratados e "obrigados a serviços e
trabalhos [...], por preços e tempos arbitrados que não sejam estipulados por mútuas
convenções [...], maneira que se observa com todos os outros meus vassalos". As instruções
seguiam caminho oposto aos das Cartas Régias contra os botocudos, já que até mesmo a
vontade dos nativos deveria ser levada em consideração se recrutados como mão-de-obra. Se
em relação aos sertões do leste, repleto de áreas propícias a lavouras, ressaltava-se o combate
à resistência indígena, para o território da Relação do Maranhão mandava-se "proceder com
vigor contra quem os maltratar ou molestar". No caso específico da região do Tribunal
maranhense, ao contrário do cativeiro, buscava-se a atração dos gentios pelo convencimento

"dando ordens e providências para que se possam sustentar o viver junto das
povoações dos portugueses, ajudando-se delas de maneira que os que habitam no
sertão folguem de vez para as ditas povoações e entendam que tenho bem lembrança
deles, guardando-se por este efeito inteiramente a lei que sobre esta matéria ordenou
o Senhor Rey dom Sebastião no ano de 1570 e todas as mais leis, provisões e ordens
expedidas sobre a mesma matéria, e muito especialmente as que foram promulgadas
pelo Senhor Rey dom José, meu senhor e avô"11

8
Idem, p. 115.
9
Idem, p. 118.
10
SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português, p. 105-107.
11
Registro da Provisão e Regimento da Relação da Casa de São Luís do Maranhão. Fortaleza, 20 de março de
1815. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro sem número (1813-1818). Grifo meu.
106

Os gentios que habitassem e vivessem em paz no território da Relação do Maranhão


seriam bem lembrados e chamados de "vassalos" por dom João VI. Para algumas situações,
havia grande interesse por parte da Coroa em congregá-los junto aos outros súditos. Tal
convivência, como propunha a lei setecentista, era um meio possível para civilizá-los,
transformando-os em mão-de-obra para particulares e para o Estado. Ao final do texto, fez
especial referência ao Diretório dos Índios – promulgado pelo seu avô, dom José I – vendo os
gentios, por essa maneira, como potenciais trabalhadores a serviço de Portugal. A legislação
indigenista pombalina, mais uma vez, é referenciada nos planos da monarquia lusitana como
ainda pertinente para determinadas circunstâncias. “Práticas políticas diferenciadas, portanto,
integravam uma mesma política indigenista”, com afirma Maria Regina de Almeida acerca do
período joanino.12 Ao contrário do que coloca Fernanda Sposito,13 o incentivo de
incorporação dos indígenas à sociedade colonial atravessou o século XIX, sem que toda ação
política se resumisse a guerras justas.
Mas apesar da proteção prevista pela lei pombalina, da condição de vassalos livres que
lhes era concedida e dos cargos de câmara que podiam exercer, era grande a rejeição indígena
em relação ao Diretório. Por um lado, a lei vetava a escravização dos índios e os faziam
vassalos "iguais aos outros"; por outro, a incongruência entre a liberdade concedida e a
situação de tutela, além das obrigações que lhes eram impostas, acentuavam as contradições
da lei na prática e, consequentemente, sua rejeição por parte dos nativos. Para Fátima Lopes,
as descrições de "decadência física das vilas" presentes em muitos relatos do início do século
XIX são provas dos males provocados pelas diretrizes pombalinas em relação aos índios.14
Segundo ela, "a situação de pobreza e miséria só tenderia a se agravar com as exigências de
consumo feitas pelo próprio Diretório".15 A autora indica ainda que os principais motivos para
o "fracasso" apontado pela historiografia seriam "a má administração devida à falta de preparo
dos agentes coloniais; os maus tratos infligidos aos índios; a exploração sobre a produção
indígena".16 Contudo, como vimos, o cenário de espaços decadentes era justamente um dos
motivos para que a Coroa acreditasse na lei pombalina como uma solução.
Ao traçar diferenças entre o Diretório e a diretriz que o substituiu em algumas regiões,
Vânia Moreira argumenta que a extinção a tutela dos diretores era um dos aspectos
12
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte: reflexões sobre a política indigenista e
cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP, n. 79, 2008, p. 98.
13
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e
conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 38.
14
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o Diretório
pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 390.
15
Ibid., p. 423.
16
Ibid., p. 451.
107

característicos da Carta Régia de 1798. Tal sistema visava "transformar os índios em 'súditos
úteis', por meio do trabalho prestado ao Estado, aos particulares, a si mesmo e à família".
Além disso, teria aberto "espaços para o exercício da política indígena, expressa na defesa de
sua liberdade e territorialidade", contra aqueles que cobiçavam suas terras e seu trabalho. 17 O
problema da avaliação da autora é que, primeiramente, os objetivos apresentados eram os
mesmos do Diretório, que ansiava pela mão-de-obra indígena por meio da tutela. Em segundo
lugar, a ação política dos índios também esteve presente nas vilas onde estavam submetidos
aos diretores e, como veremos, solicitavam justamente o fim desse cargo em suas
manifestações.
A ação indígena presente nas vilas do Ceará oitocentista lidava frequentemente com a
legislação. Utilizava-a para buscar autonomia no governo dos espaços, garantir terras e
mercês e contra a opressão dos que usufruíam de sua mão-de-obra. Vivendo sob as normas do
Diretório, os índios atuaram diante da lei de diversas formas, seja procurando eliminar as
limitações comerciais impostas pela diretriz setecentista, a figura do diretor ou mesmo
intentando aboli-la por completo. Situações radicais também eclodiram, convivendo com
iniciativas de lideranças conhecedoras dos trâmites burocráticos do universo português.
Compunham uma heterogeneidade indígena plural em experiências e intenções, mas
conhecedora da legislação e de sua condição política: eram súditos da Coroa e se percebiam
como merecedores, portanto, de sua atenção e de mais liberdade.

3.1. "OS ÍNDIOS DESSA VILA NÃO QUEREM TER DIRETOR”

Na sessão da câmara de Aquiraz de 15 de janeiro de 1821 foram lidas várias memórias


de algumas autoridades do município, oriundas de suas reflexões e proposições. Uma delas foi
a dos índios da povoação de Monte-mor Velho, liderados pelo comandante José Francisco do
Monte, que foi aceita, "menos o quererem eles passar sem um diretor branco que o dirijam".18
A solicitação não chegou sequer às mãos do governador da capitania, prontamente recusada
pelas autoridades da vila, formada por homens brancos. A negação poderia ter acontecido
pelo fato de os vereadores não terem autorização para tomar tal decisão. Mas o mais provável,
já que a memória dos índios ficou restrita à deliberação municipal, é que tenha sido fruto da

17
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e
trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, 230.
18
Termo de vereação da câmara municipal. Aquiraz, 15 de janeiro de 1821. APEC, CM, câmara de Aquiraz,
livro 29, p. 10.
108

preocupação das lideranças locais de que os indígenas vivessem sem tutela, "incivilizados" e
sem alguém para distribuí-lo, mediante aluguel, pelas propriedades.
Já um memorial da câmara de Messejana, constituída por índios, chegou a ser
remetido ao governo provisório do Ceará em janeiro do ano seguinte, contendo uma série de
parágrafos com diversos requerimentos. Por meio dele pediam, indo além dos índios de
Monte-mor Velho, não somente a dispensa do diretor, mas explicitamente o fim da lei
pombalina. Argumentavam que o comércio da vila era impedido "por não se poder vender
nela licores espirituosos" e, por isso, solicitavam que ficasse o "Diretório abolido por resultar
em benefício público". Diziam que os "índios desta vila não queriam ter diretor", e que
"deveriam ser administrados debaixo da inspeção do seu respectivo capitão-mor", que, no
caso do Ceará, eram indígenas. Seriam "obrigados a trabalhar [para] os moradores, mas que
seus filhos não seriam tirados para o trabalho e serviço [...] como antes eram obrigados". Não
ficariam, contudo, ociosos, já que teriam um "mestre de primeiras letras que os ensin[asse]".
Disseram-se ainda cientes de que a agricultura era "um dos principais objetos para aumento da
província", mas que não se podia "bem estabelecer pela falta de possessões dos moradores por
não terem fábricas", ou seja, pessoas que os auxiliassem. Como solução, acordaram "com o
voto de todos" que fossem enviados "escravos para se vender aos moradores, e que estes
seriam pagos com os frutos das mesmas lavouras e plantações que se fizesse, e a pagamentos
anuais".19
Como coloca Vânia Moreira, as queixas dos índios das vilas não eram a favor do ócio
ou para que não mais trabalhassem, mas em prol de serem tratados dignamente,20
supervisionados por uma liderança da própria comunidade e sem repetição da exploração de
crianças, denunciadas no texto de Vasconcelos havia cerca de 20 anos. Indo além das
condições de trabalho, a proposta também previa um incremento comercial que era impedido
pelo Diretório e pela própria condição de pobreza que visavam superar. A presença dos
escravos de origem africana não os isentava de trabalhar para os moradores extranaturais, e
revela, primeiramente, a preocupação dos índios em desenvolver economicamente sua vila
através de sugestões concretas. Em segundo lugar, mostra a visão que tinham do seu lugar no
império português, enquanto pessoas "habilitadas" a vender bebidas alcoólicas e viver sem
tutela. É preciso notar ainda que o memorial, escrito no início do ano de 1822, é

19
Memorial que fez o senado da câmara desta vila de Messejana, com assistência dos repúblicos e mais povo.
Messejana, 15 de janeiro de 1822. BN, II-32, 24, 9.
20
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, p. 241.
109

contemporâneo às Cortes de Lisboa, tendo sido uma provável tentativa dos índios de se
aproveitar do momento liberal para abolir tais aspectos ligados ao Antigo Regime português.
A proposta dos indígenas de Messejana parece não ter surtido efeitos ou nem ao
menos ter sido avaliada pelo governo da capitania. Em junho de 1829, os índios tentaram
novamente incrementar sua dinâmica comercial por meio de uma lista de posturas da câmara
municipal, já citada no capítulo anterior. Algumas buscavam modificar as leis, numa nova
tentativa de derrubar a legislação setecentista. Boa parte delas foi rejeitada ou recebeu algum
comentário do conselho da província, presidido pelo governador Joaquim Pereira da Silva,
que ordenou seu reenvio no mês seguinte com atenção às observações feitas. Para as
lideranças provinciais, não teriam "nem tom nem som jurídico", e nem mereciam "o nome de
'posturas'", já que "alguns de seus artigos até vão de encontro à lei". Destacaram que, por
serem "contra as disposições do Diretório", era preciso que a câmara se dirigisse ao poder
legislativo, expondo a necessidade de dispensa das diretrizes pombalinas por conta dos
contratos de aguardente e das casas dos extranaturais, fazendo "aumento e comércio delas,
sem ônus ou pensão". Ao final, foi sugerido que a câmara de Messejana, para "organizar
novas e legais posturas e aumentar as suas tênues rendas", chamasse um "advogado hábil que
a assessore", já que "muitos de seus artigos [eram] opostos à lei".21
A preocupação das lideranças indígenas em desenvolver a vila e aumentar suas rendas
vai de encontro às imagens que os retratavam apenas como ociosos, indolentes e desprovidos
de qualquer motivação por esses espaços. O choque entre a visão dos índios e a das
autoridades estava presente também nas diferentes percepções da lei: enquanto o Diretório,
para os nativos, era um claro empecilho ao comércio, o governo via vantagens na presença de
não-índios nas vilas, mesmo sem a cobrança de impostos. Percebemos que as concepções
acerca das vilas eram heterogêneas, fazendo desses espaços palcos de conflitos de interesses.
Até mesmo dentro da comunidade indígena havia objetivos e óticas distintas, entre os que
fugiam para as matas e o que agiam por vias legais, ainda que todos se incomodassem com a
presença tutelar do diretor.
Disputas e discordâncias também ocorriam entre o governo e representantes da Coroa
brasileira, com tentativas de abolir o Diretório por parte destes últimos. As posturas de
Messejana foram finalmente aprovadas no ano seguinte22, mas, antes disso, em setembro de
1829, houve nova tentativa de burlar a legislação, dessa vez por parte do juiz de paz da vila.

21
De Joaquim Pereira da Silva e Francisco Esteves de Almeida à câmara de Messejana. Fortaleza, 6 de julho de
1829. APEC, GP, CO EX, livro 13, pp. 69-71.
22
De Manoel José de Albuquerque a João Facundo de Castro e Menezes. Fortaleza, 25 de maio de 1830. APEC,
GP, CO EX, livro 15, p. 26V.
110

Foi acusado de querer entrar nas atribuições do diretor, “contra o disposto nos alvarás da sua
criação em vigor (e tanto em vigor [...] que o senhor deputado para esta província Manoel do
Nascimento Castro e Silva fez uma indicação para serem abolidos os diretores dos índios)". 23
Por isso, o presidente da província ordenou-lhe respeito às leis do Diretório "até que S. M. I.
[Sua Majestade Imperial] ordene novamente o que se deve observar a tal respeito". 24 O líder
do governo comunicou-se também com o diretor, para que continuasse "no mesmo exercício
como até agora, de baixo das mesmas leis e instruções a tal respeito".25
O que parecia haver em Messejana era a disputa pelo poder em torno da mão-de-obra
dos índios, ambicionada pelo juiz de paz. Contudo, pelo que foi citado por Pereira da Silva e
como vimos no capítulo 2, abolir o Diretório era um desejo compartilhado por parte do
Legislativo. Havia receio no governo da província de que a alteração na lei ferisse a
autoridade do rei ou fugisse a suas atribuições, mas o fato de que a mudança na legislação
tenha sido discutida sinaliza a existência de intenções de transformação. A proposta dos
índios de Messejana já apontava dificuldades econômicas locais e dava soluções concretas
para essa superação, entre elas, o fim da lei pombalina e da tutela, também ansiado pelos
índios de Monte-mor Velho.
Em outro memorial de autoria anônima, provavelmente de meados da década de 1820,
há a sugestão de extinguir artigos do Diretório para melhorias econômicas no Ceará, que
mesmo tendo conhecido "progressivo aumento no seu comércio" entre 1818 e 1821, sofria de
"uma falta geral de tudo". Sobre a administração dos índios, propunha-se que fossem
"governados da mesma forma que são os brancos", sendo "extintos os lugares de capitães-
mores, e fiquem policiados pelas autoridades territoriais, e servindo nos corpos de milícias".
Suas povoações e vilas ficariam livres para comercializar licores, as terras seriam repartidas
igualmente a partir dos fogos existentes e os extranaturais que tivesse edificações teriam que
pagar foro aos índios "na forma do Diretório, [...] e continuará nesse aforamento enquanto
quiser ali estar, não podendo nunca ser despejado".26
Alguns detalhes da proposta levam a crer que não tenha sido concebida por índios. Em
primeiro lugar, apesar do sugerir que os não-indígenas fossem foreiros, isentava-os de
qualquer possibilidade de expulsão, algo dificilmente acordado pelos indígenas. Em seguida,

23
De Manoel Joaquim Pereira da Silva a José Ferreira Lima. Fortaleza, 12 de setembro de 1829. APEC, GP, CO
EX, livro 13, p. 129.
24
De Manoel Joaquim Pereira da Silva a José Ferreira Lima. Fortaleza, 17 de setembro de 1829. APEC, GP, CO
EX, livro 13, p. 132.
25
De Manoel Joaquim Pereira da Silva a João da Cunha Pereira. Fortaleza, 17 de setembro de 1829. APEC, GP,
CO EX, livro 13, p. 132V.
26
BN, II-32, 23, 63.
111

tal divisão por lotes individuais seguia um raciocínio liberal incomum na tradição dos índios
das vilas, descendentes dos habitantes dos antigos aldeamentos missionários, de viver em
terras comunais. Por fim, a extinção dos diretores viria junto com a dos capitães-mores,
acabando com o posto de prestígio constantemente referenciado nos requerimentos indígenas,
além de deixar ambígua a questão da tutela ao não esclarecer quem seriam as "autoridades
territoriais" e o que significava, para os índios, ficar policiado por elas. Ser governado "da
mesma forma que os brancos", contudo, remete a uma vida sem as obrigações de estarem
agrupados no espaço da vila e de trabalhar para particulares e para o Estado.
Esta foi a sugestão do diretor de Vila Viçosa, Paulo Fontenele, enviada ao presidente
do Ceará, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, em maio de 1824. Em resposta, Araripe
disse que não tinha autoridade para "desaldear" os índios "pois iria contra as leis", e ordenou
que, ao contrário, Fontenele deveria "congregar os dispersos, e da mesma sorte obrigá-los à
cultura" da mandioca. Como observa Maico Xavier, no pedido do diretor estava o desejo,
institucionalizado anos depois, de que os índios fossem "misturados" aos não-índios e de que
perdessem suas garantias coletivas, dentre elas, a terra.27 Contrariando os anseios de
Fontenele, a ideia de que a condição de tutelados para índios seria um necessário remédio
para a "ociosidade, mãe fecunda dos furtos e de vícios"28, bem como para debilitada economia
da região, permaneceu vigente nos governos do Ceará até a década de 1830, mesmo com as
repetidas contestações de autoridades locais e das lideranças indígenas.

O “alumiado” João de Souza Benício e os índios da Ibiapaba

O desejo comum de índios e autoridades locais em abolir o Diretório se diferenciava


nos objetivos finais: cada lado visava se ver livre do outro, garantindo para si a autonomia na
administração das vilas e na posse das terras. Sabemos que a vontade dos proprietários acabou
imperando, já que o fim da lei pombalina ocorreu apenas no contexto do período regencial,
quando o status de cidadania brasileira para os índios foi acompanhado pelo fim de antigas
garantias, de uma proteção mais efetiva da Coroa brasileira e da promulgação de uma série de
diretrizes que os prejudicavam. Por conta da conjuntura de separação política e dos primeiros
anos do império do Brasil, as tentativas indígenas de abolir a norma setecentista na década de

27
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios
do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p.
125.
28
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe a Paulo Fontenele. Fortaleza, 21 de maio de 1824. APEC, GP, CO
EX, livro 02, p. 52.
112

1820 não se compararam em termos de repercussão com o requerimento dos índios da


Ibiapaba de 1814,29 como vimos no 1º capítulo.
Segundo os indígenas, cientes da legislação a que estavam submetidos, o requerimento
tratava das "leis que têm feito os diretores contra as ordens de Sua Majestade Fidelíssima",
indicando, de início, que o tratamento que sofriam era uma afronta às próprias determinações
da Coroa. Relataram que havia 50 anos eram dirigidos pelos diretores, e mesmo assim não
gozavam "das honras, nobrezas, liberdades e privilégios dados por Sua Majestade, o falecido
Dom João V". Diziam-se merecedores das mercês reais "pelos benefícios que fizeram seus
antepassados na defesa da Real Coroa [...] na continuação das batalhas que deram aos
bárbaros gentios deste Brasil". Pelo fato de as "leis serem todas sonegadas", prostravam-se
"os miseráveis índios suplicantes a representar as suas misérias e vexames que se veem
oprimidos dos diretores", que o rei mandara "para criá-los, e não para os acabar, destruir,
aniquilar". Encontravam-se, portanto, "no vexame de cativos, tudo urgido pelas leis dos
diretores".
A "lei dos diretores”, a que insistentemente se referiam os índios, dizia respeito à
maneira com que estas autoridades conduziam seus trabalhos na vila com a população
indígena. Habilidosos nas escolhas das palavras e argumentos, os nativos fizeram questão de
sublinhar que o tratamento que exigiam nada mais era do que o correto cumprimento das
ordens da própria monarquia lusitana, e que as explorações que sofriam configuravam um
desrespeito à Coroa. Além disso, não hesitaram em se remeter aos feitos de seus antepassados
em defesa dos reis portugueses: sua cultura histórica era estreitamente vinculada à cultura
política, ao demarcar a diferença entre eles e os "gentios bárbaros" e rememorar sua fidelidade
ancestral aos soberanos de Portugal.
No mesmo requerimento, em seguida, os índios contaram resumidamente o histórico
da relação com cada um dos oito diretores que passaram por sua povoação, desde quando
ascendeu à condição de vila, além de outro que dirigiu São Pedro de Baepina. Os relatos
foram minuciosamente analisados por Maico Xavier, que classificou a situação dos nativos
em Viçosa como um "regime de escravidão mascarada".30 O autor também aponta para
disputas em torno da interpretação das leis e da própria memória, quando alguns diretores

29
Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a
Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
30
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 89.
113

chegaram a afirmar que as honras e privilégios haviam ficado no passado, 31 com a


justificativa de que somente "os que [as] gozavam foram seus ancestrais".
A posição dos índios nesse confronto era clara: sabiam com precisão dos feitos dos
seus antepassados e dos privilégios garantidos pelos reis. Era em nome do correto
cumprimento das ordens monárquicas que pediam à rainha para que estendesse "os seus
benignos olhos para as misérias dos pobres índios", e mandasse "recolher os Diretórios que se
achasse nas vilas dos índios". Lembraram, mais uma vez, a "patente que foi passada aos seus
antecedentes", por conta das terras que conquistaram à Coroa, e especialmente pela batalha
travada contra o indígena "Mandu Ladino, um dos principais inimigos", e que comandou uma
revolta indígena no Piauí na primeira metade do século XVIII. Em decorrência desses
combates teria morrido "o governador dos índios dom José de Vasconcelos, cavaleiro do
Hábito de Cristo, falecendo miseravelmente sem sacramento algum, mostrando ser fiel
vassalo de sua Majestade". Segundo os autores do requerimento, muitos outros sucumbiram
nas guerras "por onde hoje está o Brasil, aumentado de grande número de povos", numa
tentativa de destacar sua importância e a de seus ancestrais na construção da colônia
portuguesa. Amparados pela histórica fidelidade de seu povo, e diante de tantos abusos,
pediram, por isso, que a rainha abolisse o Diretório e expulsasse os brancos e outros
extranaturais da vila.
A preocupação dos nativos de Viçosa em desenvolver sua vila é semelhante ao caso de
Messejana na década seguinte. Não se tratava apenas de se verem livres dos não-índios para
viver em ociosidade: estes eram mais uma vez apontados pelos indígenas como a causa da
decadência dos espaços em que viviam. Em contrapartida à desobediência dos brancos,
indicavam novamente o papel de seu povo para a consolidação do império português ao
morrerem pelo estabelecimento da colônia na América. O citado Mandu Ladino, famoso pela
rebelião na capitania vizinha e contra quem seus ancestrais haviam lutado, não era um bárbaro
arredio. Ao contrário, fora criado por frades capuchinhos e educado em Pernambuco, e, ainda
assim, tornara-se inimigo da Coroa lusitana. Já os de Viçosa, segundo os autores do
requerimento, sempre se portaram como fiéis súditos, prontos para derramar seu sangue em
nome da monarquia.
Os anseios dos índios de Viçosa mais uma vez se assimilam com os de Messejana ao
expressarem a vontade de ver o "aumento da vila" e, para isso, além da expulsão dos não-
índios, propuseram outras medidas com o objetivo de incrementar a economia local. Pediram

31
Ibid., p. 94.
114

a elevação do povoado de Baepina à condição de vila, por ser distante de Viçosa 12 léguas.
Para Xavier, a solicitação sugere a participação dos índios da localidade na produção do texto,
desejosos de "viver sem autoridades locais superiores a eles próprios, [...] ocupar cargos
político-administrativos de importância e dialogar diretamente com os reinóis sem a
interferência de terceiros".32 Requisitaram ainda a devolução de algumas terras aparentemente
invadidas, que lhes foram dadas "pela Data Régia primeira, e os que [se] acha[ssem] dentro
delas com sesmarias ficar[iam] perdendo o benefício que tiverem feito". Por fim, que a rainha
mandasse

"todos os anos uma frota de fazenda [tecido], ferramenta, pólvora, armas, para nos
mandarmos carregar, e fazer paga com algodões em pluma, fazendo para isso nossos
chefes casa de alfândega, para ali todos irem comprar com seu algodão o que
carecer, ou para seus negócios como fazem os senhores brancos, para assim se
acabar tanta miséria, tanta carestia, tanto [?] que se tem feito aos miseráveis índios".

Não parece tão difícil deslindar o pensamento dos índios da Ibiabapa, como acredita
Xavier. Concordando com o relato do padre Andreoni, que esteve com os tabajaras dessa
região no século XVIII, o autor entende como contraditórios os pedidos dos nativos, ao
desejarem o recolhimento do Diretório e, ao mesmo tempo, a elevação de um povoado a
vila.33 Vânia Moreira, por outro lado, analisa o sistema político vivido pelos índios no
Espírito Santo nos primeiro anos do século XIX, sob a aplicação da lei que abolira a diretriz
pombalina. Lá, eles eram “submetidos ao governo de suas vilas, onde poderiam exercer
cargos civis e militares, tornando-se livres da tutela dos diretores”.34 Onde a Carta Régia de
1798 havia entrado em vigor, os indígenas governavam suas próprias povoações: era esse o
anseio dos da Ibiapaba, ainda que não citassem a legislação que extinguira o Diretório,
mesmo porque foram além, ao implorarem a expulsão completa dos não-índios. Ao proporem
o fim de uma lei e uma nova forma de vida não entravam, necessariamente, em contradição,
como afirma Xavier,35 mas operacionalizavam diversas concepções legais e políticas. Os
índios vislumbravam novas relações por meio das mercês da Coroa, relembrando sua
fidelidade ancestral e sugerindo medidas concretas para o desenvolvimento do comércio que
tanto interessava à monarquia. Queriam, enfim, viver e cuidar de seus negócios “como faziam
os senhores brancos”, sem o sofrimento que sua presença provocava.

32
Ibid., p. 105.
33
Ibid., p. 104.
34
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios, p. 226.
35
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 105.
115

O requerimento foi entregue pessoalmente pelos índios à Corte no Rio de Janeiro, para
onde foram caminhando por terra, atravessando Minas Gerais, e junto levavam 10
documentos anexos. O grupo era formado por João de Souza Benício, Pedro Gonçalves de
Vasconcelos, Antônio Rodrigues Lima e João da Costa de Oliveira, “índios, o primeiro
alumiado mestre professor das primeiras letras na Vila Viçosa Real da Ibiapaba da Capitania
do Ceará Grande”.36
Chama atenção o destaque dado ao “alumiado” professor João Benício que, pelos
conhecimentos que tinha, foi provavelmente o autor do requerimento, ou, pelo menos, um dos
principais organizadores da ação. Remete ao “fascínio pela escrita” apontado por John
Monteiro, presente na história dos índios em suas relações com os colonizadores. Juntamente
com “motins”, fugas, arcos e flechas, “a escrita apresentava-se como outra escolha para estas
lideranças”,37 que também a utilizavam enquanto referência nas suas comunidades.
Municiados das "luzes" de João Benício, executaram uma longa viagem para o Rio de
Janeiro.
Segundo Manuela Carneiro da Cunha, o século XIX tem como característica o
estreitamento da arena de discussão da política indigenista a partir da vinda da Corte
portuguesa para o Brasil em 1808,38 facilitando, inclusive, a solicitação de mercês por parte
dos índios, pela proximidade física. Mais do que isso, a presença da Coroa no Rio de Janeiro
“significava a possibilidade de reivindicar direitos diretamente ao rei que, por sua vez, os
recebia com a devida atenção, cumprindo seu papel de monarca justiceiro, preocupado com o
bem-estar dos seus súditos indígenas”, como afirma Maria Regina de Almeida.39
Um dos anexos era a carta patente de governador dos índios da Ibiapaba dada a dom
José de Vasconcelos pelo rei dom João V em 1721, por conta da morte de dom Jacob de
Souza e Castro e pelos serviços que havia feito à Coroa, “desinfestando dos gentios bárbaros
as capitanias do Ceará e do Piauí, e alcançando muitas vitórias, e ultimamente a em que

36
De Manuel de Portugal a João de Souza Benício, Pedro Gonçalves de Vasconcelos, Antônio Rodrigues de
Lima e João da Costa de Oliveira. Vila Rica, 20 de agosto de 1814. Anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a
Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
37
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo.
Tese (Concurso de Livre-docência), 2001, p. 77.
38
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX. História dos índios no
Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 133.
39
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte, p. 96. Um exemplo foi o do líder
indígena João Marcelino, da vila de São Gonçalo do Amarante (atual Regeneração, no Piauí), que foi ao Rio de
Janeiro em 1811 reclamar ao rei da invasão das terras de sua comunidade. Cf. MOTT, Luiz Roberto de Barros.
Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985, p. 121.
116

mataram o índio Mandu Ladino, um dos mais cruéis inimigos nossos”.40 Outro era uma
portaria do antigo governador Montauri nomeando dom Jacob de Souza e Castro –
descendente de outro, do mesmo nome, citado na carta patente de 1721 – como sargento-mor
dos índios de Viçosa em 1784.41 Tais anexos atestavam a ancestralidade nobre dos
requerentes e o histórico de fidelidade de seu povo à monarquia lusitana, em mais uma
demonstração da relevância da palavra escrita na cultura histórica e política dos índios, que
guardaram esses documentos por décadas.42 Para Xavier, a glória indígena de outrora “fazia
parte do presente dos índios de Vila Viçosa em 1814”. Ao ocupar um “lugar na memória de
seus descendentes”, a lembrança dos antigos chefes era a arma “que lhes permitia exigir bons
tratamentos da parte dos brancos administradores da vila”.43
A resposta da Coroa foi expedida ao final do mês de outubro. O príncipe regente
ordenou ao governador que “inform[asse] sobre as pretensões dos suplicantes, dando,
entretanto, que o mesmo Senhor não as resolve, a providência que vossa mercê julgar
conveniente a respeito dos diretores de quem se queixam”.44 A resposta de dom João VI, para
Xavier, “talvez tenha gerado nos índios um pressentimento de que haveriam de encarar dias
ainda mais difíceis, pois continuariam sendo administrados por diretores”. Segundo o autor, o
príncipe havia fechado "os olhos para os problemas por eles apresentados”.45 Mas, ao
contrário do que acredita Xavier, dom João não havia simplesmente ignorado por completo as
súplicas dos nativos da Ibiapaba. É preciso levar em consideração que, mesmo sem as
resolver, exigia informações do governador acerca da questão e incumbia-o da
responsabilidade sobre o problema com os diretores. Além do tradicional procedimento da
administração colonial portuguesa de informações, a decisão é um indicativo do

40
Carta patente do rei D. João V nomeando Dom José de Vasconcelos como governador dos índios da Ibiapaba.
Lisboa, 28 de janeiro de 1721. Anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de
Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
41
Portaria de Antônio Batista de Azevedo Coutinho de Montauri nomeando Jacob de Souza e Castro como
sargento-mor dos índios de Viçosa. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1784. Anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a
Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
42
Outros anexos foram: um “passaporte a folhas corridas” que fora dado a “João de Souza Benício, e outros
índios de Vila Viçosa”, autorizando sua ida ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1813; “uma atestação gratuita
passada pelo capitão-mor Ignácio de Souza e Castro a favor de João de Souza Benício”, em maio de 1812; outra,
do padre Manuel Martins de Sá, de Vila Viçosa, em março de 1813; e a nomeação de Benício, passada pelo
diretor de Baepina João Sampaio, como mestre de primeiras letras em abril de 1812. O 8º anexo não consta no
registro, e os dois últimos são “duas listas de meninos da escola de Baepina”. Cf. Anexos ao ofício do Marquês
de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93. Pelas
datas dos documentos, é possível conjecturar que o início da mobilização dos indígenas para pôr em ação sua
jornada começara, pelo menos, dois anos antes da produção e entrega do requerimento.
43
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 83
44
Do Marquês de Aguiar a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC,
Livro 93. AN, AA, IJJ9 56, p. 111.
45
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 109.
117

funcionamento da política indigenista joanina, que delegava a cada capitania a condução dos
rumos da administração da população indígena. Essa história estava longe de ter uma
conclusão e, como vimos, muitos outros documentos foram produzidos nos anos seguintes,
frutos da busca dos governos do Ceará e do Reino Unido do Brasil e Portugal em resolver a
situação dos índios.
Como consta no requerimento dos índios em seu 1º anexo, foram autorizados a fazer
sua travessia em 20 de agosto de 1814, e conseguiram chegar a seu destino no início do mês
seguinte. A demora de uma resolução para seus problemas, contudo, mesmo após as
informações passadas pelo governador, os deixava apreensivos, e voltaram a se comunicar
com a Coroa a fim de ter suas súplicas atendidas. Em documento sem data e nem remetente,
pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional, registra-se que “João de Souza Benício e mais
índios de Vila Viçosa Real, e os da povoação de São Pedro de Baepina [...], tiveram a honra
de entregar na real mão de Vossa Majestade os seus requerimentos em 11 de setembro de
1814”. Souberam que havia “vários tempos” que o rei passara um informe ao governador do
Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio, mas até então “não tiveram deferimento algum”. O texto
conta que os suplicantes puseram na presença do rei as comprovações dos “grandes vexames
e violências que estavam sofrendo dos seus diretores, oprimindo-os de todas as maneiras”.
Obrigavam-lhes “à força de tirar seus filhos, para servir” em diferentes lugares, e tomavam-
lhes “suas terras por sesmarias, quando estas lhes foram dadas pelos senhores reis
antecessores de Vossa Majestade para habitação dos pobres suplicantes, como tudo melhor se
via provado nos ditos documentos”. Pediam, enfim, à “Real Clemência de Vossa Majestade
para lhes deferir como for do seu real agrado”.46
Anos se passaram e nada foi decidido, e os índios, sem saber, estavam em meio a um
jogo de atribuições onde a Coroa e o governo do Ceará transferiam de uma para outra
instância a responsabilidade na resolução do problema. Manuel Ignácio de Sampaio chegou a
solicitar em agosto de 1816 uma cópia do Regimento das Missões ao governador do
Maranhão “para responder a uma provisão da Mesa do Desembargo do Paço” acerca do
requerimento dos índios de anulação do Diretório.47
Três anos depois, dom João VI finalmente agiu concretamente em resposta ao
requerimento dos índios de 1814; todavia, apenas em parte. Levando em consideração "a
fidelidade e amor à minha real pessoa com que os índios [...] marcharam contra os revoltosos"

46
Sem remetente, local ou data. BN, C-199, 14.
47
De Manuel Ignácio de Sampaio a Paulo José da Silva Gama. Fortaleza, 31 de agosto de 1816. APEC, GC,
livro 23, p. 111V.
118

– mas principalmente, a partir declarações de Manuel Ignácio de Sampaio – por meio do


decreto de 25 de fevereiro de 1819, o rei declarou-os isentos do subsídio militar, do
pagamento de selo nas patentes e das "quotas parte de 6%, ou outras semelhantes, aos seus
diretores".48 Mas o Diretório, como vimos, permaneceu em vigor.
Ao dar atenção à estima dos índios em relação às patentes militares em suas
ordenanças, a Coroa buscava incentivar ainda mais a fidelidade dessa população em relação à
monarquia. Segundo Isabelle da Silva, os 6%, por exemplo, eram “alvo de grande rejeição por
parte da população indígena no Ceará” desde a instalação do Diretório na capitania, em
meados do século XVIII.49 A estratégia de dom João VI, portanto, era mostrar-se um soberano
atencioso para com seus súditos, sem passar, contudo, por cima dos interesses dos
proprietários de terra e nem do comércio. Além disso, suas decisões comprovam que o
fortalecimento econômico encetado nesse período não poderia funcionar a partir de
ordenamentos gerais e que não atentassem às particularidades sociais e produtivas de cada
região. A coleta de informações minuciosas com o governador revela que as características
próprias do Ceará, bem como de seus habitantes, foram determinantes na ação política do rei,
inclusive naquelas direcionadas às comunidades indígenas.
As sugestões de Sampaio e a atuação política dos índios – ainda que suas súplicas não
tenham sido atendidas – também servem para refletir acerca das práticas governamentais da
Coroa portuguesa e de sua operacionalização pelos indígenas no início dos oitocentos. Em
primeiro lugar, os juízes ordinários não tiveram limitações no alcance de sua autoridade –
talvez por falta de tempo, já que a única grande inovação jurídica anterior à independência do
Brasil foi a criação da Relação de Pernambuco em fevereiro de 1821, de quem passava a fazer
parte o Ceará.50 Mas é fato que, além de ter sua jurisdição estendida após 1822, a atuação dos
juízes locais era comumente associada aos interesses dos potentados rurais, principais
interessados nas terras e no usufruto da mão-de-obra dos índios. Apesar da isenção dos
impostos, todos os outros pontos presentes nos requerimentos de João de Souza Benício e de
seus companheiros foram ignorados pela monarquia, seja por influência do governador ou

48
Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Concede aos índios das diversas vilas do Ceará Grande, Pernambuco e
Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os revoltosos da vila do Recife. COLEÇÃO das
leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. De igual conteúdo In: BN, C-199, 14. COSTA,
Hipólito José da. Correio Brasiliense ou Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. Brasília:
Correio Brasiliense, 2002, v. XXIII, p. 353. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização
e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 347-349.
49
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 154.
50
Alvará de 6 de fevereiro de 1821. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-39211-6-fevereiro-1821-569010-
publicacaooriginal-92310-pe.html>. Acesso em 30 de junho de 2015.
119

porque afrontavam os poderosos proprietários no sertão, dependentes dos trabalhadores


indígenas.
Em segundo lugar, enquanto foram vassalos do rei lusitano, os índios buscaram o
amparo régio, por meio da observância dos ritos, procedimentos e elementos da burocracia
portuguesa. Chama atenção a impressionante saga de mais de 20 dias e dois mil quilômetros
entre Vila Viçosa e o Rio de Janeiro. Mas em todo esse "percurso" burocrático – entre 1812,
data da primeira atestação, e 1819, quando foi promulgada a isenção dos impostos – também
merecem destaque todas as ações empreendidas, os argumentos históricos, jurídicos e
comerciais utilizados, a habilidade do manuseio das palavras – sendo o próprio professor
Benício uma referência para a comunidade – e o detalhado conhecimento da lei que visavam
extinguir. As maneiras pelas quais os indígenas se percebiam como membros do império luso
– sendo importantes para sua grandeza e dignos da complacência monárquica, ainda que nem
sempre ou inteiramente atendidos – e como se relacionavam com a legislação do Antigo
Regime têm profunda conexão com seus posicionamentos no contexto de separação política
de Brasil.

3.2. "NÃO DEIXAM DE SUSPIRAR PELA SUA LIBERDADE"

Diferentemente da maioria dos estudos, concentrados na visão e atuação das elites, são
ainda recentes os que se debruçam sobre a participação dos grupos marginalizados na
construção do Estado brasileiro, como negros livres, escravos, mestiços, brancos pobres e
índios, bem como nos seus lugares na nova nação. Para Natália Peres, desde o século XIX as
grandes narrativas nacionais das antigas colônias europeias ressaltavam, de forma romântica,
o papel dos heróis na construção das nações, geralmente associados às elites, tendência que se
transformou com a atuação dos historiadores marxistas e, posteriormente, graças aos
chamados “subaltern studies”, que deram relevo aos grupos subalternos nestes eventos.
Todavia, não se trata de, apenas, “lembrar” dos dominados, mas reescrever estas histórias a
partir de uma via de mão dupla onde, além dos dominadores, os setores subordinados atuavam
movidos por interesses próprios.51 No caso da participação das populações indígenas, os
estudos que os incluem "apenas começam a receber os primeiros tratamentos".52

51
PERES, Natalia Sobrevilla. Introduction: Identity and subalterns actors in the wars of independence. In:
Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe. Tel Aviv: Universidade de Tel Aviv, vol. 22, nº
01, 2011, p. 09-10.
52
PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da
produção acadêmica. Revista de História Ibero-americana, v. 01, n. 01, 2008, p. 84-85.
120

Índios, negros, mestiços e pobres não necessariamente compartilhavam os objetivos de


seus possíveis aliados apenas enquanto peças de manobra do “recrutamento de gente mais
pobre”53, como se seguissem cegamente as lideranças que os incitavam. Histórias de tumultos,
revoltas e manifestações organizadas por índios ressaltam o poder que tinham de se envolver
com outros grupos étnicos, de interpretar os eventos que explodiam nos centros de governo do
Ceará e do Brasil e de lutar a partir de suas prioridades. O que estava em jogo não era
somente a união ou não da antiga colônia ao império lusitano: as transformações em curso
eram decisivas na redefinição da relação dos grupos sociais entre si.
Seguindo as provocações de Bert Barickman, é preciso considerar a relevância da
participação dos índios na formação do Estado nacional brasileiro.54 Protagonizaram
movimentos em que se posicionaram a respeito das leis e das novas conjunturas políticas,
mesmo em 1821, durante a reunião das Cortes de Lisboa, quando "tudo parecia despedaçar-
se", como afirma Magda Ricci.55 Assim como os escravos de São Paulo estudados pela
autora, que forjavam novos significados para a liberdade durante os debates da constituição
portuguesa,56 também os indígenas não ficaram passivos diante de mudanças tão perceptíveis
e imprevisíveis, que poderiam afetar de diversas maneiras suas vidas. A transferência da Corte
portuguesa para a América em 1808 foi uma delas, ao "avivar entre os índios a figura do rei,
longamente trabalhada no imaginário dessas populações, como um senhor todo-poderoso a
quem deviam obediência", como explicam Dantas, Sampaio e Carvalho.57 Por isso que o
retorno forçado de dom João VI em 1821 provocou tanta agitação, somente acalmada com a
aclamação de dom Pedro I como imperador do Brasil no ano seguinte.
Em contrapartida, a “população pobre e desvalida estava sempre presente” nos
movimentos que caracterizaram este período, “conduzindo conjunta e efetivamente os
fatos”.58 A exclusão dos setores marginais da nova nação não pode ser vista como uma atitude
consensual, também por conta das próprias ações e reivindicações desses grupos na tessitura e
desenrolar dos eventos. No Ceará, a mobilização de índios em 1817 foi intensa,

53
FELIX, Keile Socorro Leite. "Espíritos inflamados": a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos
políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 74.
54
BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth
and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, p. 325.
55
RICCI, Magda Maria de Oliveira. Nas fronteiras da independência: um estudo sobre os significados da
liberdade na região de Itu (1779-1822). Dissertação (mestrado) - UNICAMP, 1993, p. 240.
56
Ibid., p. 223-226.
57
DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas
no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 450.
58
RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na
independência do Brasil. In: Caderno Cedes. Campinas: UNICAMP, v. 22, nº 58, 2002, p. 29-30.
121

caracterizando não apenas seu papel de relevância para o Estado naquele contexto, mas
também suas capacidades de leitura e atuação, mesmo depois do fim dos conflitos.59 Durante
a década de 20 do século XIX, a população indígena na província também se fez presente em
diversos eventos marcados pela ebulição política.
Aqui, desde o início, é preciso enfrentar o desafio já explicitado por Carlo Ginzburg,
em sua reflexão sobre os “intermediários” no processo de análise histórica: aqueles que
produziam os documentos.60 No caso proposto, a atuação dos índios inseridos na formação do
Estado brasileiro era muitas vezes caracterizada pelos administradores como “tumultos”.
Nesse clima de instabilidades, era assustador para as elites políticas das diversas regiões do
Brasil o fato de novas ideias estarem sendo apropriadas pelas camadas subalternas, como
observa André Roberto Machado em relação aos indígenas.61 Indo além dos atos de nomear
dos administradores, nosso objetivo é dar destaque aos possíveis significados daquela
conjuntura para os índios nela envolvidos.
Em menos de 30 anos após a revogação do Diretório – mesmo com a continuação de
seu uso no Ceará – os indígenas se encontravam na iminência de serem enquadrados por uma
legislação. Como consequência, os ânimos se encontravam agitados, provocando
manifestações nascidas da incerteza do que estava por vir. Como vimos anteriormente, os
índios de Messejana, cientes das mudanças políticas ocorridas no império português,
propuseram a abolição do Diretório e a instalação de um sistema de autogoverno na vila,
talvez em busca de uma sintonia com os novos rumos liberais presentes na reunião das Cortes
de Lisboa. Mas, se suas prerrogativas não eram plenamente garantidas com a lei pombalina,
as notícias de uma nova Constituição para o império português, que diminuiria o poder do rei
e o levaria de volta para a Europa, poderia significar o fim de uma proteção já distanciada e o
aumento da força dos colonos sobre eles.
No final do ano de 1821, chegaram à Junta Provisória de Governo do Ceará notícias
sobre o suposto envolvimento dos índios de Almofala em um levante de negros, diante do
qual foi passada ordem ao sargento-mor Francisco de Sales Gomes "observar seu
movimentos, [...] e não perder um instante em dar em tudo parte a este governo". 62 Foi
também questionado ao comandante de Monte-mor Velho o porquê de ter armado os índios
59
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 287-304.
60
GINZBURG, Carlo. Our words, and theirs: a reflexion on the historian’s craft, today. In: FELLMAN,
Susanna; RAHIKAINEN, Marjatta. Quest of Theory, Method and Evidence. Cambridge: Cambridge Scholars
Publishing, 2012, p. 106-107.
61
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo
regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) - USP, 2006, p. 98-99.
62
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco de Sales Gomes. Fortaleza, 1 de dezembro de 1821. AN,
AA, IJJ9 576, p. 53.
122

de seu comando com arcos e flechas em setembro desse ano, durante as eleições de comarca
na capital.63 Pelas informações da documentação, não é possível ter plena certeza se tais
movimentações se relacionavam diretamente com a reunião das Cortes em Lisboa, mas
certamente contribuíram para o aumento da tensão desse período, marcado pelo conturbado
contexto de criação da própria Junta Provisória.
Desde a promulgação do decreto de 24 de fevereiro, por meio do qual dom João VI
aprovava o texto constitucional que se fazia em Portugal,64 e com as notícias de criação de
juntas de governo em Pernambuco e Bahia, autoridades militares e políticas do Ceará
buscaram proceder de igual maneira na capitania. Suas ações eram motivadas por sua
oposição ao então governador Francisco Alberto Rubim, por conta de suas ações no sentido
de restringir o acesso indiscriminado à mão-de-obra indígena, "que até então o Diretório lhes
facultava, [...] sem haver ordem régia para isso".65 Os comentários dos injuriados vereadores
de Fortaleza expressam sua dependência em relação ao trabalho dos índios, bem como a falta
de qualquer determinação do rei, até aquele período, que anulasse a lei pombalina em
território cearense.
O filho do governador, Braz da Costa Rubim, também fez considerações sobre os
acontecimentos em sua "Memória sobre a Revolução no Ceará de 1821". O culto católico que,
segundo ele, poderia contribuir para arrefecer os ânimos, "estava, se não de todo desprezado,
quase indiferente, mormente nas povoações dos índios, gente ainda inculta, e por
consequência sem fé, sem consciência, sem temor de Deus".66 O autor ignorou – talvez por
não ter sido contemporâneo – as diversas manifestações dos índios em prol da melhoria de
suas freguesias,67 bem como sua mobilização diante dos acontecimentos que narrou em
seguida. Utilizando linguagem diferenciada ao destacar a prudência e "firme opinião" de seu
pai, relatou que na madrugada de 14 de abril, pressionado por manifestantes amotinados em
frente à sua residência, Francisco Rubim decidiu, entre outras coisas, jurar a constituição que
se fizesse em Portugal, sem formar, contudo, uma junta governativa. Dois dias depois, alguns
"malévolos espalharam o boato de que, às instigações do governador, os índios se reuniam

63
Da Junta Provisória de Governo do Ceará ao comandante de Monte-mor Velho. Fortaleza, 15 de novembro de
1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 66.
64
Decreto de 24 de fevereiro de 1821. Aprova a Constituição que se está fazendo em Portugal, recebendo-a ao
Reino do Brasil e mais domínios. Palácio do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/anterioresa1824/decreto-39220-24-fevereiro-1821-569031-
publicacaooriginal-92323-pe.html>. Acesso em 02 de julho de 2015.
65
Dos vereadores da câmara de Fortaleza ao rei dom João VI. Fortaleza, 17 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9
513.
66
RUBIM, Braz da Costa. Memória sobre a revolução do Ceará em 1821. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1866, tomo XXIX, segunda parte, p. 206-207.
67
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 150-166.
123

com hostil intento de encaminhar-se depois à Fortaleza, e prender o batalhão de linha que
tinha tomado a iniciativa na revolução".68
Os membros da câmara de Fortaleza, em vereação enviada ao rei de novembro do
mesmo ano, também contaram sobre a "notícia de que os índios se ajuntavam para prender o
batalhão", segundo eles, na "tarde do dia 15". Sem chamar os autores do boato de
"malévolos", disseram ainda que o governador lançou mão da ocasião para promover uma
"intriga para dividir a tropa do povo", provocando uma "tão relaxada insubordinação que
todos temiam a sua desgraça".69 Fica claro o esforço de ambas as partes, seja de Braz Rubim
como dos vereadores, em se utilizar da difusão do rumor em seus relatos para promover ou
detratar quem lhes interessava.
O comum nas duas versões era o receio que havia, tanto no governo quanto em outros
setores da população, de uma possível reação dos índios. Mesmo que fossem geralmente
descritos como apáticos, alheios ao mundo ou "sem consciência", era conhecida a fidelidade
das comunidades indígenas à Coroa e sua determinação em defendê-la, como ficara claro,
anos antes, na Revolução Pernambucana. Por isso, mesmo não sendo possível ter certeza se os
índios realmente planejavam confrontar os militares que pressionaram o governador, não é
possível afirmar categoricamente que o “povo” não compreendia se deveria apoiar ou não o
movimento vintista, como faz Keile Felix.70 A respeito dos indígenas, era previsível que se
posicionassem de maneira firme e perigosa diante da nova Constituição e de eventos políticos
que ameaçavam a soberania de seu rei e sua própria segurança.
Apesar dos poucos estudos a respeito, não faltaram exemplos no Brasil da atuação
política dos índios no contexto da independência brasileira. Para além das discussões nas
Cortes de Lisboa sobre a questão indígena, Julio Sánchez Gómez chama atenção para casos de
índios que, agindo coletivamente, se dirigiram à Assembleia Constituinte portuguesa
demandando direitos violados ou pedindo modificações em seus estatutos legais. O autor cita
a representação dos principais das margens do rio Tocantins de dezembro de 1821, pedindo a
propagação da religião e a restituição de sua liberdade, e a queixa de índios de Extremoz, no

68
RUBIM, Braz da Costa. Memória sobre a revolução do Ceará em 1821, p. 215. Também sobre o boato da
reunião dos índios no Ceará no contexto da reunião das Cortes de Lisboa, vide: VARNHAGEN, Francisco
Adolfo de. História da independência do Brasil até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo,
separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, tomo LXXXIX, 1916, p. 448.
69
Dos vereadores da câmara de Fortaleza ao rei dom João VI. Fortaleza, 17 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9
513.
70
FELIX, Keile Socorro Leite. "Espíritos inflamados", p. 80.
124

Rio Grande do Norte, contra seu pároco.71 Como se observa, boa parte da atuação dos índios
nessa e em outras conjunturas girava em torno de sua liberdade e do combate à exploração de
sua mão de obra. André Roberto Machado afirma que, com o avanço do debate sobre a nova
constituição a ser promulgada no império português, cada vez mais os índios "foram
invocando a condição de homens livres para reivindicar suas garantias constitucionais,
especialmente como forma de minar as estruturas que os obrigavam ao trabalho
compulsório".72
Todos esses exemplos fazem parte de um contexto maior de “construção da liberdade”
analisado por Gladys Ribeiro, quando diferentes setores sociais no Brasil “passaram a
vislumbrar as possibilidades de um futuro promissor e a lutar passo a passo pelas suas
libertações”.73 Para os índios no Ceará, a luta por sua liberdade no contexto da independência
do Brasil conectava referências muito antigas a perspectivas de futuro. Lutavam com temor de
um possível retorno da escravidão vivida por seus antepassados e contra as explorações que
cotidianamente sofriam. Percebiam este momento como uma oportunidade de lutarem por sua
condição de vassalos livres.

O motim dos índios de Maranguape

O maior e mais bem documentado levante de índios no Ceará desse período aconteceu
em Maranguape (à época, povoado pertencente ao município de Arronches; hoje
emancipado), próximo a Fortaleza. Segundo Geraldo Nobre, o "acontecimento é deveras
importante, não pelo vulto, mas pelas circunstâncias e consequências, ocorrido em um período
agitado por mudanças institucionais de natureza jurídico política". Mesmo tendo suscitado
ações militares violentas e sérias preocupações no governo, a falta de vulto na ótica do autor
se devia à condição étnica dos amotinados, cuja rebelião durou mais de um ano. Pelos
escassos documentos de que dispunha Nobre, não era possível esclarecer "suficientemente os
motivos do levantamento dos íncolas maranguapenses", atribuído à expulsão do vigário Felipe
Benício Mariz de Viçosa pelos índios da vila em julho de 1822,74 caso que analisaremos em
seguida. Contudo, as primeiras referências às tensões em Maranguape são do ano anterior,

71
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia
Contemporánea, n. 27, 2009, p. 250-251.
72
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 108.
73
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no
Primeiro Reinado. Tese (doutorado) – Universidade de Campinas, 1997, p. 336.
74
NOBRE, Geraldo. Os índios revoltosos na serra de Maranguape. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
tomo CIX, 1995, p. 315.
125

contemporâneas à reunião das Cortes em Lisboa. A ligação ente esses eventos políticos não
foi suposta pelo autor.
Em 06 de outubro de 1821, chegou à sala do governador Francisco Alberto Rubim,
através da câmara da vila de Arronches, a notícia de que na localidade de Maranguape o
capitão Antônio José de Vasconcelos teria espalhado que o objetivo da constituição
portuguesa, era cativar os índios, “e quanto às mais pessoas concede-lhes liberdade de obrar
arbitrariamente sem que se possa conhecer das suas ações”.75 Poucos dias depois, o
governador, juntamente com o Conselho, confirmou que a câmara de Arronches estava “mal
informada sobre a representação que fez”. Ordenaram que, “a vista da inocência” de
Vasconcelos, tornasse a “entrar no comando da povoação de Maranguape, e que, atendendo-
se à ignorância dos camaristas, se lhe advertisse” para serem “mais escrupulosas nas suas
representações”.76
Apesar de não ser possível certificar a veracidade da denúncia, percebe-se a ligação da
própria suspeita com a questão do uso da força de trabalho indígena por parte dos colonos. A
acusação originou-se na câmara de uma vila de índios, cujos membros eram também
indígenas, e que, de alguma forma, perceberam o perigo que este tipo de boato poderia causar
na população. Mesmo que a escravidão tivesse sido expressamente proibida desde a
instituição do Diretório, o medo dela parecia ainda pairar na mente dos indígenas. Para os que
sofriam abusos – como, por exemplo, os denunciantes da Ibiapaba – esse medo nunca havia
cessado por completo. Ou seja, o grande problema estava na falta de limites para as ações de
proprietários que utilizavam seu trabalho, que poderiam ficar ainda mais frouxos com uma
nova constituição.
As lembranças dos índios de contextos ancestrais em suas comunidades e a forma
como agiam a partir delas em diferentes situações compunham sua “cultura histórica”. Maria
Regina de Almeida entende-a como “a compreensão e o posicionamento que os grupos têm a
respeito de seu próprio passado e o uso que dele fazem, conforme necessidades do presente”.
A opressão e os abusos que sofriam não eram impedimentos para suas atuações: antes, era em
resposta a eles que desenvolviam “suas próprias formas de agir politicamente e de pensar
sobre seu passado para operacionalizá-lo de acordo com seus objetivos do presente”.77

75
Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 06 de outubro de
1821, APEC, GC, livro 32, p. 03V.
76
Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 15 de outubro de
1821, APEC, GC, livro 32, p. 04V.
77
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história entre múltiplos usos do passado:
reflexões sobre cultura histórica e cultura política. In: SOIHET, Rachel. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.
126

Em 27 de novembro, alguns dias após a deposição do governador Francisco Rubim, a


Junta Provisória de Governo do Ceará lançou um edital acerca das tensões entre os moradores
de Maranguape, “composta de naturais da vila de Arronches [índios] e de outros naturais ali
estabelecidos com seu negócio e lavoura". Segundo os membros do governo, a origem dos
distúrbios haviam sido algumas "palavras indiscretas" proferidas por não-índios, provocando
reações nos indígenas "por falta de conhecimentos civis e políticos" e pela destruição de suas
plantações por animais soltos dos extranaturais, apesar das proibições das leis municipais.

"Mandamos e recomendamos a todos os sobreditos moradores de Maranguape que,


como cidadãos que igualmente o são, vivam em paz e união, ficando na certeza de
que obrando o contrário, procederemos contra eles com todo o rigor das leis e como
perturbadores do sossego público, e, outrossim, mandamos a todos os que ali
tiverem bois de carro e de açougue, que as conserve com pastos longe das lavouras,
e aos que tiverem animais cavalares as façam pear, e aos que tiverem porcos e
cabras as lancem para fora, ou conservem presos, aliás serão castigados na forma
acima dita, e para que o referido chegue a notícia de todos, se mandou publicar o
presente".78

No mesmo dia, ordens do governo foram enviadas para que se evitassem conflitos
entre extranaturais e índios. Aos primeiros, que não perturbassem os indígenas, "assim de
palavras como de ações, [...] no exercício de suas terras que por direito lhe pertencem".79 Para
os índios, recomendou-se que reportassem qualquer queixa ao governo, "o qual estará sempre
pronto para promover tudo quanto for a bem dos sobreditos índios".80
O governo já percebia que a conjuntura das Cortes de Lisboa provocava interpretações
diversas pelos diferentes setores sociais e buscava se precaver de consequentes distúrbios. As
"palavras indiscretas" dos não-índios tinham provável ligação com os boatos do mês anterior
denunciados pela câmara de Arronches. Somadas à destruição das plantações indígenas,
pareciam fazer parte de uma investida dos extranaturais no contexto do retorno de dom João
VI para Portugal. Os índios, por sua vez, agiram vigorosamente diante da possível ameaça:
embora o governo lhes atribuísse falta de conhecimento, percebiam o avanço sobre suas
lavouras, o histórico de abusos que sofriam, a impunidade contra seus algozes e a ausência de
seu protetor, transladado à força para o outro lado do oceano.

SÁ, Cecília. GONTIJO, Rebeca. Mitos, projeto e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009, p. 210-211.
78
Edital. Fortaleza, 27 de novembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 69V.
79
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Antônio José de Vasconcelos. Fortaleza, 27 de novembro de 1821.
AN, AA, IJJ9 576, p. 70.
80
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco José Pinheiro. Fortaleza, 27 de novembro de 1821. AN,
AA, IJJ9 576, p. 71V.
127

A alerta sobre os ânimos no povoado manteve-se no mês seguinte, com as


investigações a respeito da família do índio Ângelo Manuel e a situação dos bananais dos
indígenas,81 provavelmente afetados pelo gado dos vizinhos não-índios. Na véspera do natal,
tendo recebido um ofício de Pinheiro do dia 21, o governo ordenou-lhe as "providências que
são do estilo, [...] sem, contudo, haver excesso de rondas que haja de motivar novidades,
assim aos moradores como aos índios".82 O resultado parece não ter sido satisfatório,
atribuído a desavenças entre autoridades militares da região, e deram espaço à eclosão de
distúrbios no natal de 1821 em Maranguape, cujas motivações e outros detalhes não são claros
na documentação. 83
Em 7 de janeiro de 1822 o juiz de fora Jacinto Fernandes de Araújo foi acionado para
proceder "contra os culpados, que desde já fica[ram] presos", dentre eles o índio Lino José
Batista por dar uma facada em uma mulher.84 Já nessa situação de tumulto, os índios, havia
pouco vítimas de boatos e de destruição de suas lavouras, passaram a ser elementos perigosos.
As causas dos distúrbios nem sequer mereceram ser registradas, e a reação imediata do
governo foi o encarceramento dos envolvidos. O governo se desfez da promessa de
“promover tudo quanto for a bem dos índios” porque, mesmo em meio a uma crise do Antigo
Regime – quando o governo do Ceará, por meio do edital acima mencionado, chamava os
habitantes da província de “cidadãos” –, a sociedade ainda era hierarquizada. Nela, além da
economia das penas que variava de acordo com os privilégios sociais do réu, como afirma
Silvia Lara,85 a própria definição de crime e culpa se dava de acordo com as origens étnicas e
sociais dos autores do ato.
Nesse clima de repressão, ainda no dia 7 de janeiro, a Junta informou ao diretor de
Monte-mor Novo, Manuel Moreira Barros, que recebera o comandante dos índios da vila,
Manoel Soares do Nascimento, dizendo que havia se ausentado "com receio que o
prendessem" e que ignorava as desordens do dia 25. Diante disso, o governo lhe ordenou que
"voltasse ao seu distrito, e que fosse viver em paz", e ao diretor, que o vigiasse "sobre seu
viver, para ser castigado competentemente no caso de transgredir as ordens desta Junta e faltar

81
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco José Pinheiro. Fortaleza, 12 de dezembro de 1821. AN,
AA, IJJ9 576, p. 82V.
82
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Francisco José Pinheiro. Fortaleza, 23 de dezembro de 1821. AN,
AA, IJJ9 576, p. 102V.
83
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Afonso José de Albuquerque. Fortaleza, 26 de dezembro de 1821.
AN, AA, IJJ9 576, p. 105. Da Junta Provisória de Governo do Ceará a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 26 de
dezembro de 1821. AN, AA, IJJ9 576, p. 105V.
84
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Jacinto Fernandes de Albuquerque. Fortaleza, 7 de janeiro de
1822. AN, AA, IJJ9 576, p. 121V.
85
LARA, Silvia Hunold. Introdução. Ordenações Filipinas, livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.
40.
128

ao que prometeu".86 O medo de Nascimento, que não foi à toa, é indício de que a situação dos
índios passou a ser bastante desvantajosa. O governo em questão foi o mesmo que obrigou ao
antigo governador Rubim a jurar a constituição portuguesa, e agia violentamente contra
qualquer manifestação de oposição às Cortes de Lisboa. Por conta dos acontecimentos em
Maranguape, e pelos índios já terem se mostrados insatisfeitos com as medidas, todos eles
eram dignos de suspeita.
Meses se passaram desde os conflitos de dezembro sem qualquer informação sobre
convulsões envolvendo o povo de Maranguape. Já em Viçosa, os índios entraram em
confronto com o vigário Felipe Mariz, como vimos nos comentários de Geraldo Nobre, mas
não o iniciaram necessariamente por conta da constituição portuguesa, já que os primeiros
relatos falam exclusivamente de violências praticadas pelo religioso. Ainda assim, os
distúrbios preocupavam o governo pelas ligações que poderiam ter com questões políticas e
com os acontecimentos ocorridos próximos a Fortaleza. As medidas preventivas não
conseguiram, porém, impedir que novas e mais intensas manifestações surgissem naquela
região. Pouco menos de um ano depois dos primeiros boatos que assustaram os indígenas, em
setembro de 1822 – durante os acontecimentos que levaram à independência do Brasil – tem-
se a notícia de um

"tumulto dos índios e extranaturais da serra de Maranguape tendo ido um número de


mais de seiscentos às fazendas do diretor geral o sargento-mor José Agostinho, e o
juiz de fora pela lei Joaquim Lopes com ânimo de assassiná-los, e sempre roubaram
as casas, dando gritos contra os europeus, e a favor da liberdade dos escravos"
(grifos meus).

A sessão decidiu que se tomassem as “providências necessárias para a prisão dos


revoltosos, e para a segurança desta capital, e mais vilas imediatas, que estiveram em armas
para repelir qualquer ataque repentino”. 87 Por se localizar a cerca de 30 km de Fortaleza, tais
incidentes eram ameaças bastante perceptíveis para os que comandavam a capitania. O
conteúdo de suas manifestações chama atenção tanto pelas reivindicações como pelos seus
protagonistas: da maneira como expõe o documento, índios e não índios – desafetos até o ano
anterior – pareciam gritar juntos contra os “irmãos” de outro continente, refazendo a fronteira
político-identitária que os diferenciava. Se tal união, mesmo que momentânea, de fato

86
Da Junta Provisória de Governo do Ceará a Manuel Moreira Barros. Fortaleza, 7 de janeiro de 1822. AN, AA,
IJJ9 576, p. 122V.
87
Do Conselho Consultivo do governo do Ceará à câmara da vila de Arronches. Fortaleza, 23 de setembro de
1822, APEC, GC, livro 32, p. 29. Grifo meu.
129

aconteceu, denota o caráter fluido das fronteiras étnicas, que tem o “outro” como motor88
(nesse caso, a oposição aos europeus).
Os alvos do "tumulto" eram diretamente ligados aos índios: José Agostinho Pinheiro
era o diretor geral, e Joaquim Lopes de Abreu havia sido uma das autoridades protagonistas
da ocupação da serra de Maranguape entre os séculos XVIII e XIX e das usurpações de terras
indígenas na região. Além disso, os dois eram naturais de Portugal,89 remetendo ao sentido
político do antilusitanismo que marcou o início dos oitocentos, como aponta Robert
Rowland,90 e aos boatos difundidos em 1821. As "palavras indiscretas" registradas em outros
documentos podem ter sido ações de brasileiros não-índios – brancos ou mestiços – contrários
aos portugueses e que buscavam insuflar os indígenas. Mas mesmo que a revolta tenha sido
inicialmente incitada pelos extranaturais, os índios tinham suas próprias demandas, como
resistir à já sentida tomada de suas terras, pedir o retorno de seu rei e temer uma nova
escravidão.
Daí se explicava claramente os gritos pela libertação dos cativos, que aconteceram
mais de 60 anos depois. No início do século XIX, mesmo proibida, escravidão era a forma
como os índios definiam o abuso na exploração de sua mão de obra, assim como registraram
os da Ibiapaba em seu requerimento de 1814. Contudo, falar em "liberdade dos escravos"
poderia provocar interpretações muito amplas, além de revelar diferentes concepções entre as
distintas comunidades indígenas. Enquanto que, em janeiro do mesmo ano, os nativos de
Messejana solicitavam cativos nos serviços prestados aos moradores, no clamor dos de
Maranguape parecia haver um anseio pelo fim de todo um sistema socioeconômico. É
possível que todas essas notícias partissem de exageros provenientes da situação conturbada
deste contexto, fazendo circular histórias contraditórias. Todavia, a própria ebulição desses
temores já revela a tensão que também perpassava pela população indígena, atenta à
conjuntura política do período.

88
BARTH, Fredrick. Grupos étnicos e suas fronteiras. Apud. POUTIGNAT, Philippe. STREIFF-FENART,
Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 188. CUNHA, Maria
Manuela Ligeti Carneira da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 253. SAHLINS, Marshall.
Adeus aos tristes trópicos: a etnografia no contexto da moderna história mundial. In: Cultura na prática. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2007, p. 520.
89
José Agostinho Pinheiro veio de Portugal para o Ceará em 1789 com o capitão-mor Luiz da Motta Féo e
Torres. Cf. de Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 19 de agosto de 1816. AN, AA,
IJJ9 168. Joaquim Lopes de Abreu, português, é apontado como um dos fundadores do povoado de Maranguape.
No fim do século XVIII já possuía terras na região. Cf. MATOS, Pedro Gomes de. Capistrano de Abreu: vida e
obra de um grande historiador. Fortaleza: Batista Fontenele, 1953, p. 35-39. MATOS, Pedro Gomes de.
Maranguape, Ceará (aspectos histórico-geográficos). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora
"Instituto do Ceará", tomo LXXVII, 1963, p. 111.
90
ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo e ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade
nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo:
Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 384-385.
130

Imediatamente após a notícia do tumulto, o governo passou ordens para que os


moradores de localidades próximas a Maranguape fossem armados, atuando juntos a uma
expedição de combate aos insurgentes, comandada pelo capitão-mor Marcos Antônio
Brício.91 Compondo a tropa de combate estavam as ordenanças dos índios da vila de
Arronches, que passou a ser base das operações. Para lá também se dirigiu o ouvidor interino,
92
responsável pelas devassas. Em menos de 5 dias vários revoltosos já haviam sido
capturados e enviados presos a Fortaleza, e já se autorizava a dispensa de tropas supérfluas,
93
inclusive do próprio comandante Brício. As notícias transmitidas pela documentação
revelam o sucesso da expedição, bem como a importância dada ao evento pelo governo da
província e os risco que tais índios amotinados representavam, especialmente para os
moradores próximos. Estes últimos, antes vistos como promovedores da discórdia, passaram a
ser agentes da repressão contra os revoltosos e protegidos pela Junta Governativa. Destaca-se
também a tropa de índios de Arronches, membros da mesma comunidade dos de Maranguape
e fiéis às lideranças provinciais, exemplo da heterogeneidade de visões e posicionamentos em
um mesmo grupo indígena, composto tanto de oficiais e soldados quanto de agricultores
comuns.
Alguns ofícios de 30 de setembro sugerem que tenha havido envolvimento de índios
de Maranguape com os de outras vilas, além da já citada suspeita em relação ao comandante
Manuel do Nascimento, de Monte-mor Novo. Nesse dia, foi aceito o pedido de perdão de
índios presos em Soure, mas que deveriam ser a partir de então vigiados pelo capitão-mor.94 O
governo também noticiou ao coronel de Granja, Francisco Carvalho Mota, sobre alguns
fugitivos que teriam se dirigido à Viçosa (a uma distância de 270 km), ordenando que os
prendessem, evitando uma presumível aliança com os que se insurgiam contra o vigário
Felipe Mariz.95 Não é possível confirmar se realmente havia intenções por parte dos índios de
diferentes lugares em formar ações de resistência coordenada – até porque os de Arronches

91
Barão de Jaguary, nascido em 1800 em São Luís do Maranhão, foi sócio do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, deputado pelo Ceará entre 1826 e 1829, comandante superior da guarda nacional e diretor dos índios
do Pará. Cf. VASCONCELOS, Rodolfo Smith de; VASCONCELOS, Jaime Smith de. Arquivo nobiliárquico
brasileiro. Lausana: Imprimerie la Concorde, 1918, p. 233.
92
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Marcos Antônio Brício. Fortaleza, 24 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 119V.
93
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Marcos Antônio Brício. Fortaleza, 28 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 122V. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Marcos Antônio Brício. Fortaleza,
30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 123V.
94
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Francisco da Costa Lira. Fortaleza, 30 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 124V.
95
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Francisco Carvalho Mota. Fortaleza, 30 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 125.
131

integravam as tropas expedicionárias – mas é provável que a repressão do governo foi


tamanha que muitos devem ter procurado refúgio em outros lugares.
As tropas formadas pelo governo controlaram a situação em Maranguape já no início
do mês seguinte, a contar pelos vários registros sobre os presos, acusados também de "vários
furtos de importância" e da "destruição do sítio da índia Maria". No dia 7 foi produzida uma
devassa, com uma relação dos índios capturados, e os que não coubessem na alçada da justiça
da província do Ceará deveriam ser "remetidos com a culpa para a Relação de Pernambuco".96
Com o conflito já terminado, a junta de governo provisório agradeceu ao vigário de
Arronches por ter negado pagamento "pelos mantimentos que forneceu aos índios reunidos
nessa vila e milicianos quando aconteceu o tumulto de Maranguape". Reconhecia o
patriotismo do religioso, "que foi mais uma prova de quanto tem a prestar-se ao bem público
todas as vezes que se lhe oferece a ocasião de ser útil".97 O reverenciado religioso era Amaro
Joaquim de Moraes e Castro, o mesmo que, três anos antes, havia sido denunciado pelos
índios de Arronches ao bispado de Olinda por extorsão e chamado de criminoso pela junta
administrativa que, em 1820, governava o Ceará antes da chegada de Francisco Alberto
Rubim. Curiosamente, um dos membros do governo à época era Joaquim Lopes de Abreu,
alvo dos índios no início das manifestações.98 A mudança tão rápida nas qualificações do
padre Amaro tinha provável relação com a necessidade em refazer sua imagem perante
Abreu, mas principalmente diante dos índios de sua vila, que primeiro o haviam incriminado e
que poderiam, na nova situação, colaborar com seu novo prestígio de patriota.

Senhores do Brasil, escória da humanidade

Já os revoltosos de Maranguape não tiveram a mesma sorte. Mesmo com a promessa


do ano anterior que tudo seria feito pelo governo para o bem dos índios, não escaparam das

96
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Jacinto Fernandes de Araújo. Fortaleza, 2 de outubro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 127V. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Vitoriano Alves de Souza.
Fortaleza, 4 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 127. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a
Vitoriano Alves de Souza. Fortaleza, 5 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 129. De Francisco
Gonçalves Ferreira Magalhães a Jacinto Fernandes de Araújo. Fortaleza, 7 de outubro de 1822. APEC, GC, livro
98, p. 133V. De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Jacinto Fernandes de Araújo. Fortaleza, 9 de outubro
de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 138V.
97
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Amaro Joaquim de Moraes e Castro. Fortaleza, 11 de outubro
de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 141V.
98
De Adriano José Leal, Francisco Xavier Torres e Joaquim Lopes de Abreu a Antônio Gomes Coelho.
Fortaleza, 12 de fevereiro de 1820. APEC, GC, livro 30, p. 110V. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e
invenção, p. 159.
132

prisões e da violenta repressão.99 Sua situação mudou apenas em fevereiro de 1823, com a
consolidação da independência: presos pela oposição aos portugueses, foram soltos pela
mesma razão. Na sessão do dia 13, a então junta provisória que comandava o Ceará decidiu
soltar os presos "pelos movimentos da povoação de Maranguape, e dar-se imediatamente
parte a Sua Majestade Real do procedimento do governo, visto que o seu único crime era
defender a independência”.100
Na mesma ocasião, o novo governo cearense, contrário às Cortes de Lisboa e adepto
da independência liderada por dom Pedro I, produziu um relato ao monarca contando todos os
acontecimentos que levaram à prisão dos índios, e constando, inclusive, um abaixo-assinado
de 21 indígenas envolvidos. As lideranças da província reconheciam a “injustiça com que
foram presos, e até cruelmente açoitados os índios da serra de Maranguape, tudo por cabala de
europeus e brasileiros degenerados”.101 Como se afirma no texto, os índios solicitaram sua
soltura e o perdão real para os membros do governo que haviam destituído seus antigos
algozes. Liderados por José Pereira Filgueiras, aproveitaram a comunicação para denunciar os
abusos de seus antecessores.
Segundo eles, investigaram o caso assim que se compôs a nova administração da
província, e concluíram que se tratava do “antigo rancor da prepotência de alguns inimigos da
causa do Brasil contra os miseráveis queixosos”. Comovidos pelos açoites que os índios
sofreram a mando do capitão-mor Brício, “sensibilizados com a horribilidade de semelhante
tirania e despotismo”, o governo pôs “em liberdade os infelizes capturados”. Há na
argumentação uma clara oposição entre “tirania” e “liberdade”, representadas pela repressão
do antigo governo – simpatizante do vintismo – contra a soltura promovida pelos adeptos da
independência. O presidente Filgueiras e seus companheiros, imbuídos de antilusitanismo,
percebiam na ocasião uma oportunidade de consolidar sua posição na província e imagem
perante o rei, além de firmar sua aliança com a população indígena. 102 O texto, como destaca
Maico Xavier, também é expressão dos conflitos entre diferentes grupos políticos no Ceará.103

99
Geraldo Nobre se refere a um documento de 23 setembro de 1822 dando conta de que os índios José da Silva e
Antônio da Silva foram açoitados no tronco pelo agente de política de Aquiraz, juntamente com alguns escravos,
mas que não constava seus crimes ou se ao menos eram de Maranguape. Cf. NOBRE, Geraldo. Os índios
revoltosos na serra de Maranguape, p. 317-318.
100
Sessão da Junta Provisória de Governo do Ceará. Fortaleza, 13 de fevereiro de 1823. APEC, GC, livro 32, p.
63V.
101
De Jose Pereira Filgueiras, Joaquim Felício Pinto de Almeida e Castro e Francisco Fernandes Vieira a José
Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 25 de fevereiro de 1823. AN, AI, IJ¹ 719. Salvo indicação em contrário,
as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. Agradeço a Maico Oliveira Xavier pela cessão
da cópia digitalizada do documento.
102
Indispensáveis como força de trabalho e militar, os índios se mostraram importantes aliados do governo
liderado por José Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, atuando na deposição da antiga
133

Em seguida, passaram a relatar o acontecido a partir da versão repassada pelos


próprios índios.104 Inicialmente abordaram a importância do “direito de propriedade
individual”, e tudo o que a ele se opusesse era considerado “transtorno da sociedade; é
perturbar a ordem; elevar [?] uma subversão universal”. Por meio do Diretório, “dom José I,
de gloriosa memória, deu liberdade aos índios cativos, [...] e lhes mandou assinar terras jamais
alienáveis para sua moradia”. Desde a libertação de Pernambuco dos holandeses, e da
expulsão dos franceses do Rio de Janeiro e do Maranhão, os índios já haviam mostrado
“aquela corajosa fidelidade que distingue o brasileiro”, com destaque para Mel Redondo,
antiga liderança. Apesar dos ferros e humilhações, “jamais deixaram de ser fieis ao seu
soberano, [...] não tendo nas mãos outras armas mais que o arco e que a fecha”.
Muitos elementos argumentativos ressaltam a convivência de elementos referentes ao
Antigo Regime e outros referentes ao novo momento vivido no Brasil. A ênfase à liberdade e
ao direito a propriedade dos índios, identificados como “brasileiros”, denota o caráter liberal
do posicionamento dos autores do texto. Ao mesmo tempo, tudo isso tinha como base
medidas que remetiam ao período pombalino e a contextos bem mais antigos, presentes na
memória indígena. Elementos da cultura política dos índios, o Diretório ainda em vigor no
Ceará e a histórica relação de vassalagem entre esta população e a Coroa portuguesa foram
utilizados para justificar os direitos individuais indígenas no Brasil recém-independente. A
própria forma “meritória” de se relatar a fidelidade dos índios, mais do que simples mistura
entre “arcaico” e “moderno”, é um traço da tradição absolutista operacionalizada em um novo
contexto liberal, como vimos no capítulo anterior.
Maico Xavier também observa que, se a questão da propriedade foi lembrada, é
porque as mesmas estavam sendo invadidas,105 como se reclamara desde o início dos conflitos
em 1821. De acordo com o relato, o “rico europeu” Joaquim Lopes de Abreu, pelo “direito da
força”, havia “usurpado as diminutíssimas terras dos índios, os senhores do Brasil, território
imenso”, e José Agostinho Pinheiro, também nascido em Portugal, havia se “assenhorado
[sic] da linha da serra de Maranguape, como já desc[ia] aquém dela”. Apesar de serem donos

junta vintista, opondo-se à elite política de Fortaleza, e em outros conflitos posteriores, como veremos nos
capítulos 7 e 8.
103
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no
período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) –
Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 88.
104
Relato redigido por José Rodrigues de Souza com abaixo-assinado dos índios presos pelo motim de
Maranguape. Fortaleza, 13 de fevereiro de 1823. Anexo ao ofício de Jose Pereira Filgueiras, Joaquim Felício
Pinto de Almeida e Castro e Francisco Fernandes Vieira a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 25 de
fevereiro de 1823. AN, AI, IJ¹ 719. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos
pertencem a esse documento.
105
Ibid., p. 90.
134

dessas terras havia 114 anos, “os índios eram reputados como a escória da humanidade. Seus
clamores e seus gemidos apenas se ouviam no recinto de suas humildes choupanas. Prevalecia
a violência e a força”.
As razões apresentadas da indignação dos índios eram muito antigas e mostram que os
alvos não foram escolhidos aleatoriamente. Sendo portugueses e usurpadores de terras, tal
associação denota o início do antilusitanismo indígena tão marcante nos conflitos liberais da
década de 1820, como veremos nos capítulos 7 e 8. Mas não é correto afirmar, como faz
Xavier, que o “período pré-independência” é descrito como “tempo de não liberdade aos
índios”.106 Na verdade, os índios eram livres desde o Diretório, como o próprio relato
asseverou, mesmo que tal liberdade fosse sempre desrespeitada. O que Filgueiras buscava
argumentar era que os autores de tais tiranias eram os portugueses, vistos neste contexto como
inimigos da liberdade.
Só após estas explicações é que o acontecimento é descrito. De acordo com o
depoimento dos índios, em setembro de 1822 souberam de proclamações de dom Pedro I que
tratavam “aos europeus por inimigos da nação brasileira”, que “ao longe se forjavam grilhões
para nos prender” e que “dentro em três meses seriam escravos”. A partir daí, iniciaram sua
ação:

Os índios alvoroçados, lembrados dos seus ferros antigos, pegarão dos seus arcos e
das suas flechas na noite do dia 22 de setembro, convida[ram] os habitantes a vingar
a sua liberdade debaixo dos auspícios d’El Rei [?] Defensor do Brasil. [Fizeram]
retumbar nos ares seus Nomes Augustos, a sua independência política. Corre[ram] à
casa de José Agostinho Pinheiro para saber se assinava a causa, assim como já
tinham feito aos demais europeus da povoação. Não derrama[ram] uma só gota de
sangue, e nem maltrata[ram] a pessoa alguma; e se arromba[ram] as portas de seu
diretor foi somente para saber-se do seu partido. Concorreu o povo em massa [?]
para a casa de Joaquim Lopes de Abreu, não para ofendê-lo, sim para expulsá-lo
para fora das suas usurpações. Foi então que apareceu um indigno e leve furto.

Pela versão dos índios, o acontecimento tem aspecto bem diferente do “motim”
reprimido pelo governo da época. Por meio dos recursos linguísticos dos autores do relato, a
ação indígena é alçada a um novo patamar: como observa Xavier, o que antes era tido por
crime de amotinação passou a ser qualificado como “luta pela liberdade”.107 Mais uma vez a
oposição entre a independência do Brasil e a escravidão de Portugal é evidenciada,
associadas, respectivamente, à ação dos índios e à presença usurpadora de Abreu. A aliança
entre o governo de Filgueiras e os índios também se expressa por compartilhar de uma versão

106
Ibid., p. 92.
107
Ibid., p. 93.
135

que difere em diversos aspectos do que reproduzira a antiga junta provisória do Ceará. Na
ótica indígena, o alvoroço e até mesmo a invasão à casa de Abreu ocorreram por uma causa
justa e sem a barbárie com que havia sido encarada. O “leve furto” – antes tido como de
“importância” – não manchara suas atitudes feitas em nome do rei, da independência e de sua
liberdade. Diante dessa importante aliança, o novo governo agregava forças contra a elite das
regiões próximas a Fortaleza e os adeptos do constitucionalismo português. Por isso, seu
relato é um raro registro de uma autoridade não-indígena que classifica uma ação dos índios
como “política”.
Em contrapartida, Filgueiras contou que o antigo governo, “adorador das Cortes de
Lisboa, [...] à independência chamou revolta e roubo”. Na repressão, Marcos Antônio Brício,
à frente de sua tropa, havia garantido a “segurança individual e de propriedade” dos índios, o
que fez com que devolvessem as roupas e legumes que roubaram, “que se julgaram pequenos
diante” do que já se usurpara deles. Entretanto, o “oficial infame violou a sua palavra;
mandou passar roda de pau aos homens” e palmatória nas mulheres, “despotismo tão
horroroso”. Novamente o antigo governo é associado ao constitucionalismo vintista e,
consequentemente, a atos de despotismo. A novidade é que Brício, na verdade, enganara os
índios que, segundo eles, nada haviam feito além de buscar garantir sua liberdade e obedecer
às proclamações do imperador.
Na devassa que se seguiu após as prisões, o juiz e os escrivães responsáveis pelo
julgamento eram todos portugueses, que acreditavam que “os brasileiros deveriam ser
escravos”, como conta o relato. “Em questões de independência do Brasil, como foi a dos
suplentes, não se deveriam admitir testemunhas inimigas [...]. Tudo, porém, se fez. Os
europeus juraram, os corcundas juraram, os inimigos juraram”. Como resultado, os índios
teriam sido sentenciados “somente por serem brasileiros, amantes da causa da nossa
independência e adesão à Majestade Augusta do Imortal Imperador do Brasil, nosso Protetor;
e ainda agora gem[iam] os suplicantes nas masmorras como mártires da pátria”. Diante de tal
“injustiça” da “prepotência do despotismo”, os índios pediram para serem perdoados, já que
“só a independência do Brasil” foi o “objeto de perdição destes infelizes brasileiros
acabrunhados pelos europeus, e por americanos degenerados, escravos vis desses senhores
absolutos”. O perdão de dom Pedro I foi finalmente obtido no dia 1º de julho de 1823.108
Mesmo que pareça precipitado crer que os índios realmente aderiram à independência
do Brasil, sua luta por respeito às garantias de terra e liberdade tinham conexão direta com os

108
Sessão da Junta do Governo Provisório da Província. Fortaleza, 18 de agosto de 1823. APEC, GP, AJ, p. 37V.
136

eventos políticos que culminaram com a separação política brasileira e com os conflitos
internos na província. Ao contrário do que acredita Xavier, a ação indígena em defesa de
prerrogativas e contra a exploração não se opunha à “causa da independência”, e lutar por ela
não era o mesmo que agir pelos interesses dos governantes.109 Seus antigos inimigos, a elite
das regiões no entorno de Fortaleza, derrubaram o último governador da capitania e
simpatizaram com o constitucionalismo de Lisboa, que defendia a descentralização do poder
no império. Além da ameaça da ambição dos proprietários, os índios também sabiam que o
movimento vintista submetera dom João VI.
O antilusitanismo indígena, portanto, nasceu de sua luta pela liberdade, pela posse de
seus territórios e contra a violência sofrida neste contexto. A tradicional defesa da Coroa, que
garantira estes direitos e que passava a ser brasileira, era expressão da expectativa de
reciprocidade e de justiça. O medo da escravidão, que poderia ressurgir com a constituição de
Portugal, não estava baseado em meros boatos, mas nas práticas contra os índios de
Maranguape. Em contrapartida, o novo governo os libertou e os enalteceu enquanto
“brasileiros mártires da pátria”, em oposição aos inimigos nascidos no Brasil, chamados de
“americanos degenerados”. Por esse apoio, os índios dessa serra – e, consequentemente, de
outras vilas e povoações do Ceará – passaram a ver a independência do Brasil como um
movimento em prol de sua liberdade.
A ação liderada por Pereira Filguerias não foi apenas um ato de altruísmo, mas
principalmente uma forma de se aproximar dos bons olhos e ouvidos de dom Pedro I.
Segundo Lúcia Neves, as tensões sociais “contribuíram para situar d. Pedro numa posição
privilegiada, como fiador de uma ordem ameaçada”,110 que passou a ser o símbolo dos
“brasileiros” independentes. Além disso, soltura dos indígenas, o subsequente comunicado a
dom Pedro I e o perdão régio mostram que as elites políticas no Ceará não poderiam fechar os
olhos diante da atuação das camadas subalternas.
Segundo Filgueira, em outro relato dirigido a José Bonifácio em fevereiro de 1823, os
antigos membros da extinta junta de governo provisório José Raimundo Passos de Porbém
Barbosa e Mariano Gomes da Silva buscaram revoltar os índios de Monte-mor Velho,
Messejana, Arronches e Soure em prol das Cortes de Lisboa contra a independência do Brasil.
Não teriam tido sucesso pois, segundo Filgueiras, apesar de possuírem um "gênio servil e
acabrunhado", os índios não deixavam de "suspirar pela sua liberdade". Os nativos de

109
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 96-97.
110
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Estado e política na independência. In: GRINBERG, Keila.
SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009, p. 128.
137

Maranguape, que costumavam sofrer nas mãos dos diretores, “portugueses imperiosos”,
haviam sido acossados tão barbaramente pelo governo que fora impossível a Barbosa e Silva
conseguirem sua adesão.

"Armados de arcos e de flechas este povo miserável posto em armas torna-se


tremendo. Com proclamações, e um pouco de docilidade, assenhoreei-me, com o
tenente coronel Bezerra, dos ânimos desses desgraçados americanos". 111

O raciocínio contraditório de Filgueiras reconhece o poder não só das armas, mas


também da ânsia dos índios em garantir seu estatuto de homens livres, que se revelou na
rejeição aos opressores dos manifestantes de Maranguape. Entretanto, a fidelidade
demonstrada não foi necessariamente decorrente das proclamações e docilidade do capitão-
mor, mas se dirigia ao imperador do novo país que havia lhes concedido perdão.
Ao comentar acontecimentos semelhantes no Pará, André Roberto Machado afirma
que "o grito de 'morte aos portugueses'" bradado pelos indígenas "tinha a sua motivação no
desejo de alijar do poder os homens da velha ordem que os oprimia, especialmente através do
trabalho compulsório, o que, por extensão, atingia também a indivíduos de notável posição
nascidos na América".112 Segundo o autor, os índios em território paraense “passaram a
reivindicar para si garantias e direitos aprovados nas Cortes de Lisboa, numa lógica que fazia
a sua antiga condição de vassalos do rei de Portugal transformar-se no status de cidadão”.113
Instrumentalizavam, portanto, o liberalismo em prol de suas demandas.
Os índios no Ceará no mesmo período também basearam sua liberdade e posse da terra
na tradicional relação de vassalagem com a Coroa portuguesa. Mas sua leitura do
constitucionalismo lusitano foi inversa à dos índios no Pará: nessa conjuntura, como aponta a
historiografia,114 os portugueses significavam uma "nova ordem", ou seja, um mundo "liberal"
que atacava o rei e ameaçava suas antigas garantias. Por isso que não existia "nada mais
uniforme nos levantes feitos por esses indígenas do que o fato de eles se apresentarem como
representantes do Imperador".115 Ainda que tenham passado a se referir ao Antigo Regime a

111
De José Pereira Filgueiras a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1823. AN, IN,
caixa 742, pacote 1.
112
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 225.
113
MACHADO, André Roberto de Arruda. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política
indigenista no império do Brasil (1829-1831). Almanack, n. 10, 2015, p. 445.
114
Cf. MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In. MOTA, Carlos
Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2000, p. 189. MOTA, Carlos Guilherme. Ideias de Brasil: formação e problemas (1817-
1850). In. MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta, p 202-205.
115
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 262.
138

partir de uma leitura liberal, a ordem que os índios do Ceará queriam e defendiam era, de fato,
a velha, que os tornara súditos livres da escravidão.

O vigário Felipe Benício Mariz e os índios de Viçosa

Em meio aos fatos que acometeram Maranguape, outras notícias de distúrbios ecoaram
do outro lado do Ceará. Durante uma audiência com moradores de Viçosa, realizada no final
de março de 1822, chegaram às mãos dos governadores provisórios queixas contra o vigário
da vila, Felipe de Souza Mariz. Natural do Icó, ele estudara no Seminário de Olinda e,
segundo Washington Vieira, lutara contra os liberais durante a Revolução Pernambucana de
1817. Dois anos depois tomara posse como vigário colado da freguesia de Nossa Senhora da
Assunção da Vila Viçosa Real.116 Dado seu histórico de posicionamentos conservadores, eram
suficientemente preocupantes as reclamações contra ele em um momento de tensões política e
de estabelecimento das ideias liberais no Brasil e em Portugal.
Os registros não explicitam com clareza os motivos da denúncia contra o padre, mas
atestam a repreensão que ele recebeu da junta provisória por ter tentado promover agitações
entre os moradores de Viçosa, em sua maioria índios, "povos que ainda gem[iam] de baixo de
um pesado jugo e cativeiro". Segundo o governo, a "glória do cidadão liberal" era "cooperar,
manter e congregar os povos ignorantes para uma perfeita harmonia", mas "sua imprudência"
fazia com que os habitantes da vila se mudassem para as vizinhas. Ao final da missiva,
disseram esperar que o vigário Mariz se contivesse "nas suas paixões e arbitrariedades, para
não passar pelas torturas que a lei impõe, porque esta somente reserva àqueles que são bons
cidadãos".117
As palavras do governo levam a crer que os primeiros queixosos recebidos em
audiência eram índios que poucos anos antes haviam se mobilizado em prol de melhorias e
denunciado as violências que sofriam. Outra autoridade repreendida foi o diretor de Viçosa,
Antônio do Espírito Santo (o mesmo que fora acusado pelos índios em 1814, elogiado pelo
então governador Manuel Ignácio de Sampaio e pelo secretário José Rabelo de Souza Pereira
em 1815). A junta dizia saber que ele, "de mãos dadas com o reverendo vigário dessa vila",
queria, "neste tempo liberal, aterrar os povos rústicos da mesma". Por isso recomendava que,

116
VIEIRA, Washington Luiz Peixoto. Personagens históricos: padre Felipe Benício Mariz (1780-1850) – Parte
I. Opinion, abril de 2009. Disponível em: <http://iconacional.blogspot.com.br/2009/04/personagens-historicos-
padre-felipe.html>. Acesso em: 7 de julho de 2015.
117
Da junta de governo provisório a Felipe Benício Mariz. Fortaleza, 20 de março de 1822. AN, AA, IJJ9 576, p.
196.
139

caso os índios não quisessem cumprir suas obrigações, o diretor os deveria "castigar sem
motivo de paixão". Era seu dever agir com "prudência, brandura, sem seguir outro caminho
que desvaire da mestra liberdade justa, único meio de conter os povos em subordinação e
perfeita harmonia".118
Até aqui não há um dado claro que indique que as ações abusivas do padre e do diretor
se relacionavam com os novos acontecimentos políticos no império português, como a
reunião das Cortes em Lisboa e a preparação da nova constituição. Mas as referências nos
dois registros aos "tempos liberais" e aos deveres dos cidadãos levam a supor que, em suas
queixas, os índios viam ligações entre o recrudescendo das atitudes de Felipe Mariz e Antônio
do Espírito Santo com este momento de retorno do rei e, nos anseios dos que ambicionavam
se apoderar da mão-de-obra indígena, de possíveis anulações das antigas mercês que lhes
haviam sido garantidas.
Ciente disso, a junta de governo escreveu à câmara de Viçosa, formada também por
índios, sobre as representações contra o vigário Mariz "para que se contivesse nos
destemperados procedimentos", exigindo que os vereadores repassassem qualquer informação
a respeito do padre.119 Apesar dos esforços dos governadores, outra representação foi enviada
no final de maio à junta "assinada por vários habitantes de Vila Viçosa", que encaminhou, por
sua vez, a responsabilidade de dar providência ao ouvidor interino da comarca de Fortaleza
para, com brevidade, "fazer cessar de uma vez tão odiosas questões". 120 Poucos dias depois, o
juiz ordinário de Granja, acompanhado de oficiais, marchou rumo à vila dos índios para tomar
conhecimento dos fatos relatados na representação que versava "toda contra o vigário
Benício".121 Depois de estar cerca de um mês em Viçosa averiguando os fatos, outra denúncia
lhe foi remetida; nesse caso, a Junta determinou, caso as acusações fossem precedentes, que o
juiz deveria prender os "cabeças dessa perturbação" e remetê-los a Fortaleza.122
Talvez cansados da lentidão do governo e da impunidade contra seus agressores, os
índios não mais esperaram os resultados de tantos ofícios e queixas e partiram para a rebelião.
Já nas recomendações de julho é possível perceber que, de denunciantes, os índios poderiam
passar a criminosos em potencial na ótica do governo. O ápice da revolta ocorreu, segundo
Geraldo Nobre, em entre 30 e 31 de julho na Vila Viçosa, "quando o agrupamento indígena

118
Da junta de governo provisório a Antônio do Espírito Santo. Idem, p. 196V.
119
Da junta de governo provisório à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 28 de março de 1822. Idem, p. 205.
120
De José de Castro e Silva a Adriano José Leal. Fortaleza, 30 de maio de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 58V.
121
De José de Castro e Silva ao juiz ordinário de Granja. Fortaleza, 3 de junho de 1822. APEC, GC, livro 98, p.
61V.
122
Fortaleza, 1º de julho de 1822. Idem, p. 74V.
140

expuls[ou] da freguesia o vigário Felipe Benício Mariz".123 A memória de Manoel Ximenes


de Aragão, contemporâneo do conturbado período da independência e das revoltas liberais da
década de 1820, também relata a retirada a força do padre na Ibiapaba:

"Na Vila Viçosa, depois de estarem com seu pároco, que então era o padre Felipe
Benício, debaixo de cerco dentro da igreja, por algum tempo, perdoaram-lhe a
morte, mas botaram-no serra abaixo, montado no meio de uma cangalha, em uma
besta velha piolhenta, depois de ter suportado muitos pescoções que lhe davam as
cunhãs".124

Na versão de Antônio Bezerra, a partir de histórias que colheu em viagem pelo norte
do Ceará no final do século XIX, a índia Dionísia teria esbofeteado o padre que, "depois de
sofrer as mais revoltantes afrontas", foi obrigado a deixar a freguesia.125 Como nota Maico
Xavier, as mulheres – que eram comumente castigadas e abusadas, de acordo com o
requerimento dos índios de 1814 – agora aparecem de forma destacada nos dois relatos com
participação marcante na expulsão de Mariz.126 A ação radical das índias pode ter sido uma
manifestação limite contra as agressões que sofriam e que não conseguiam pôr fim pelas vias
legais. Também se conectava provavelmente com o momento político e, talvez, com alguma
ação ou ideia que o religioso buscava impor aos índios.
Outros documentos também se referem ao banimento de Felipe Mariz, mas diferente
dos relatos mencionados acima, parte deles consta que teria ocorrido no povoado de Baepina.
No diário de Freire Alemão, a partir de entrevistas que fez durante sua passagem na serra da
Ibiapaba em 1860, há o registro das memórias dos índios José da Silva de Azevedo e Felipe
Pereira sobre os acontecimentos. Segundo eles, indígenas saídos "das matas de São Pedro [de
Baepina]" expulsaram "o vigário e mais brancos", e ao se aperceberem do ocorrido, as
autoridades convocaram os "índios dos sítios vizinhos para se oporem". Não houve mortes,
mas o capitão-mor indígena Paulo Borges teria sido flechado.127
Em outro registro, a junta governativa respondeu em 6 de agosto de 1822 a uma
correspondência do pároco da Serra dos Cocos (atual Ipueiras), Manuel Pacheco Pimentel,
tratando do "arrojo que tiveram os índios da povoação de São Pedro fazendo sair o vigário e
tomando conta da vila". Incumbia-o de enviar um sacerdote no lugar de Felipe Mariz "para

123
NOBRE, Geraldo. Os índios revoltosos na serra de Maranguape, p. 315.
124
ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases de minha vida: genealogia. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Tipografia Minerva, ano XXVII, 1913, p. 72
125
BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1965, p. 177.
126
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 121.
127
Diário de Francisco Freire Alemão, "Informações sobre os antigos agrupamentos indígenas nas redondezas de
Viçosa". Vila Viçosa, 8 e 9 de dezembro de 1860. BN, I-28, 8, 68.
141

tomar conta da igreja" e convencer os "índios a voltarem para as suas casas". Foi autorizado a
tomar todas as providências que achasse adequadas entre outras já estabelecidas, "sendo uma
delas mandar retirar da freguesia o vigário colado até segunda ordem", mostrando que, ao
menos provisoriamente, o padre Felipe não voltaria à Ibiapaba. Os manifestantes parecem ter
sido apenas parcialmente vitoriosos, já que também era vontade da junta que Pimentel
informasse os nomes dos culpados da expulsão, para que pudessem "proceder contra os chefes
desse desacato",128 contando com a ajuda do juiz ordinário e capitão-mor de Viçosa.129
A ausência de Mariz deve também ter atingido Viçosa. A pesquisa de Maico Xavier se
deparou com alguns livros de batismo da vila assinados pelo padre Felipe Benício,130 que
atendia as duas localidades indígenas. Em 9 de agosto a junta provisória respondeu ao pedido
do sargento-mor dos índios João da Costa da Anunciação de que fosse enviado um presbítero
para sua freguesia, ordenando que conservasse os "povos em paz, ficando responsável ao
governo por qualquer desordem que por eles sejam motivadas".131 Como discute Xavier, a
manutenção da patente de Anunciação e a missão que recebeu mostram que o sargento-mor
indígena não se envolvera diretamente com o motim. Assumindo um cargo militar, exercia a
difícil tarefa de servir de ponte entre as determinações do governo e as demandas de sua
comunidade.132 Mesmo não tomando parte ativamente na insubordinação, atuou para que sua
igreja não ficasse sem padre, provável preocupação dos índios de sua comunidade que
atentaram não contra a religião, mas para afastar alguém que os afligia. Agiu de igual forma
ao flechado capitão-mor indígena Paulo Borges e aos outros convocados, que se opuseram
àqueles que pretendiam expulsar os brancos e concretizar o negligenciado desejo expresso no
grande requerimento de 1814. Juntos eram expressão da heterogeneidade de visões e
intenções que compunha as comunidades indígenas oitocentistas.
Mantendo-se na posição de liderança dos índios e ocupando patente nas forças
armadas do império português, João da Costa da Anunciação permaneceu ileso diante da
truculenta perseguição do governo do Ceará contra os envolvidos diretos na expulsão do
padre. A força da repressão foi ainda maior pelo clima de tensão na província, que passava
por um período de agitações populares em diversas partes de seu território. Em sessão da
junta de governo provisório de 21 de agosto, os membros destacaram os tumultos decorrentes

128
Da junta de governo provisório a Manoel Pacheco Pimentel. Fortaleza, 6 de agosto de 1822. AN, AA, IJJ9
576, p. 330.
129
Da junta de governo provisório ao juiz ordinário e capitão-mor de Vila Viçosa. Idem, p. 330V.
130
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 120.
131
De José de Castro e Silva a João da Costa da Anunciação. Fortaleza, 9 de agosto de 1822. APEC, GC, livro
98, p. 97V.
132
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 121-122.
142

do decreto de 3 de junho (que convocara uma Assembleia Geral Constituinte e Legislativa


composta por deputados provinciais) e "da instalação do primeiro governo provisório".
Segundo eles, o povo pegou em armas no Crato "e em toda região do Cariri", assim como nas
vilas do Aracati e em São Bernardo (atual Russas).
A respeito dos índios, mencionaram que estes estavam "inquietos por toda parte, e
preparando-se", como ocorria em Maranguape. As medidas para conter os atos de
insubordinação deveriam ser rigorosas: para os de Viçosa, "cabeças de motim, devem ser
castigados não só para pagarem as penas dos seus delitos, como para exemplo de outros".
Como já foi dito, o temor em relação a uma ação extremada dos indígenas era recorrente e,
por isso, os nativos "das vilas imediatas a esta capital deve[riam] ser vigiados pelos seus
diretores e particularmente por este governo", ordenando-os para “pôr em execução os termos
e prática observada no seu Diretório”. Pela proximidade que Soure, Arronches, Messejana,
Monte-mor Novo e Monte-mor Velho tinham de Fortaleza era preocupação do governo que se
tomassem "todas as medidas que parecerem mais adequadas para manter a segurança e
tranquilidade desta capital, assim como de toda a província".133
Aqui, definitivamente, o foco da ação do governo já não era mais as ações arbitrárias
de Mariz, quaisquer que tenham sido elas. Bem mais preocupante era o povo em armas,
especialmente os de posição mais baixa da hierarquia social. A junta provisória já não se
importava mais com os motivos dos índios de se queixar ou de usar a força, mesmo que não
tivessem chegado a matar o padre como aconteceu em outras localidades do Ceará, segundo
Ximenes Aragão.134 Diante de uma situação tão conturbada, a prioridade dos membros do
governo era abafar os tumultos, evitar que contagiassem outros grupos e que seus efeitos
chegassem a Fortaleza, medo que acendeu com os eventos de Maranguape. Ou seja, maior
ofensa do que mandar embora à força o vigário foi ter feito isso em pleno momento de levante
popular, durante os acontecimentos que culminaram na separação política brasileira. A
punição imposta pela junta se utilizava de uma pedagogia típica das penas do Antigo Regime
estudadas por Silvia Lara, que visava ser “afirmativa e exemplar”. Entretanto, neste caso, o
poder que buscavam afirmar não era o do soberano, mas o deles próprios. 135 Destaca-se,
também, a presença do Diretório como referência aos procedimentos em relação aos índios,
mesmo em um período liberal, ainda que seus "termos e prática" fossem aplicados com mais
ênfase no caráter punitivo.

133
Sessão da junta de governo provisório. Fortaleza, 31 de agosto de 1822. APEC, GC, livro 32, p. 19V.
134
ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases de minha vida, p. 72.
135
LARA, Silvia Hunold. Introdução. Ordenações Filipinas, livro V, p. 21.
143

Em 16 de setembro foi comunicado ao padre Pimentel, da Serra dos Cocos, a


nomeação do vigário forâneo de Fortaleza Francisco Urbano Pessoa de Albuquerque
Montenegro "para servir de encomendado na freguesia de Vila Viçosa".136 Ao fim do mês, em
meio à repressão aos distúrbios encabeçados pelos índios de Maranguape, as perseguições aos
da Ibiapaba continuaram e, no dia 30, o governo ordenou ao coronel de Granja para que
prendesse “os cabeças do motim urdido em Vila Viçosa contra o vigário e alguns empregados
da mesma vila",137 confirmando que Felipe Benício Mariz não fora o único afetado pela fúria
indígena. Comunicou-o também sobre a marcha dos fugitivos entre as serras de Maranguape e
Ibiapaba,138 ratificando o receio há pouco mencionado de que grupos de localidades diferentes
influenciassem uns aos outros em atos contestatórios. Ao final do mês seguinte, os culpados
foram definitivamente capturados, com o envio do ouvidor Adriano José Leal para dar ordens
acerca dos "procedimentos dos índios de Vila Viçosa".139
Os súditos que eram antes amparados por dom João VI tornaram-se, enfim,
rapidamente criminosos, perseguidos e condenados. O contexto conturbado e incerto da nova
constituição portuguesa – por mais que não tenha sido explicitamente citada – atingiu
diretamente os índios da Ibiapaba, dando condições para a eclosão do tumulto que
promoveram e de sua violenta repressão. A repercussão da expulsão do padre Felipe, menos
de 10 anos após a solicitação de João Benício e seus companheiros, também não mencionou
as vozes indígenas nos documentos, mas trouxe à tona outras formas de manifestações
indígenas para além da palavra escrita. A revoltada índia Dionísia, o ileso sargento
Anunciação e o flechado capitão Borges, juntos com o professor Benício, são expressões da
heterogeneidade de visões, intenções e posicionamentos dos índios, ainda que de uma mesma
comunidade. Nos dois momentos, em 1814 e 1822, a intenção era afastar os não-índios de seu
convívio, mas o papel desempenhado pelos três primeiros indica também as mudanças que já
começavam a ser perceptíveis. A atuação indígena contra o sacerdote e a repressão do
governo, ambas violentas, eram frutos do momento de tensão e dos dilemas em torno do
destino do império lusitano, do Brasil e deles próprios, sujeitos a novas leis, condições
políticas e relações sociais.

136
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Manoel Pacheco Pimentel. Fortaleza, 16 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 113V.
137
Sessão da junta de governo provisório. Fortaleza, 30 de setembro de 1822. APEC, GC, livro 32, p. 30V.
138
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a Francisco Carvalho Mota. Fortaleza, 30 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 125V.
139
De José de Castro e Silva a Adriano José Leal. Fortaleza, 31 de outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p.
156V.
144

Mapa 2: Locais de atuação dos índios durante os motins de Maranguape e Vila Viçosa

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

3.3. À MERCÊ DO DESAMPARO: OS ÍNDIOS E OS JUÍZES

Os índios da Ibiapaba não conseguiram a autonomia que tanto reivindicaram e, como


vimos no capítulo anterior, o poderio dos proprietários se fortaleceu, amparados por uma
legislação para eles extremamente vantajosa. O decreto de 3 de junho de 1833, que delegava a
administração dos bens indígenas aos juízes, foi especialmente nocivo para essas
comunidades. Mas mesmo em desvantagem, agora sob um governo regencial que limitava o
caráter protetor da Coroa, os índios não deixaram de exigir o cumprimento da lei e de recorrer
àqueles que haviam sido delegados para assisti-los.
No ano de 1838 no Ceará diversas reclamações indígenas chegaram à presidência da
província acerca de contendas com donos de terra e da negligência dos juízes em relação aos
abusos cometidos por proprietários. Em 14 de março foi enviada ao juiz de órfãos de
Fortaleza uma queixa dos índios de Arronches contra pessoas que usurpavam seus bens, e
pediam que a justiça se encarregasse da punição de seus algozes.140 Relutante, o juiz sugeriu
que o decreto de 1833 contradizia o artigo 20º da Disposição Provisória acerca da
Administração da Justiça Civil,141 mas que faria tudo quanto pudesse em benefício dos índios.
O presidente Manuel Felizardo de Souza e Melo não aceitou o comentário do juiz, e disse que
a Disposição Provisória e o decreto de 1833 não eram opostos, "por que naquele fixa-se

140
De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 14 de março de 1838. APEC,
GP, CO EX, livro 40, p. 30.
141
"Seção 4ª: Dos oficiais de justiça dos juízos de paz. Artigo 20º: Estes oficiais serão nomeados pelos juízes de
paz, e tantos quantos lhes parecerem bastantes para o desempenho das suas e das obrigações dos inspetores". Cf.
Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o código do processo criminal de primeira instância com disposição
provisória acerca da administração da justiça civil. Disponível em:
<http://planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm>. Acesso em: 17 de junho de 2015.
145

somente a jurisdição contenciosa dos juízes de órfãos, e nestes se lhes aumentou uma
atribuição administrativa".142 Tal acréscimo de atribuição, referente à proteção dos bens
indígenas, era comumente negligenciado por muitos juízes, que de tudo faziam para que as
ações das comunidades se transformassem em causas perdidas. Prova disso é que, em outubro
de 1838 os índios de Arronches novamente se mobilizaram e produziram um requerimento
para que, "na conformidade do decreto de 1833", o juiz de órfãos de Fortaleza tomasse "as
necessárias providências, a fim de que" não fossem "usurpados das terras que lhes foram
doadas".143
Mesmo que, meses depois, seus problemas continuassem sem que houvesse uma
verdadeira vontade da justiça em solucionar seus problemas e combater os invasores de suas
terras, os índios não deixavam de acioná-la. Durante esse período, as investidas contra suas
comunidades se deram em um contexto de ampliação violenta dos latifúndios, fenômeno ao
qual, por conveniência política e interesses econômicos, os juízes fechavam os olhos ou eram
até mesmo facilitadores. Ainda assim, pela lei, era apenas a eles que os índios poderiam
recorrer, como aconteceu com os de Arronches e como fizeram as comunidades indígenas da
Ibiapaba, que se manifestaram contra a extinção de juizados de paz em sua região. Em 14 de
maio, o presidente Souza e Melo comunicou a câmara de Vila Viçosa acerca da supressão dos
juizados nos povoados de São Pedro e São Benedito,144 habitados majoritariamente por
índios, por meio de portaria do mesmo dia,145 atendendo ao artigo 1º da lei provincial nº 101
de 5 de outubro de 1837.146 Insatisfeitos por não mais terem o amparo próximo da justiça, os
habitantes de São Benedito fizeram um abaixo-assinado solicitando o reestabelecimento do
distrito de paz, e foram atendidos no mês de julho.147

142
De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 20 de março de 1838. APEC,
GP, CO EX, livro 40, p. 32V.
143
De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 25 de outubro de 1838.
APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 204.
144
De Manuel Felizardo de Souza e Melo à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 14 de maio de 1838. APEC, GP,
CO EX, livro 40, p. 72V.
145
Portaria extinguindo os juizados de paz de São Pedro e São Benedito. Fortaleza, 14 de maio de 1838. APEC,
GP, CO EX, livro 40, p. 73.
146
Artigo 1º: Os distritos de paz desta província ficam reduzidos ao número de suas freguesias e aquelas capelas
filiais onde o presidente julgar indispensável um juiz de paz. Cf. Lei nº 101 de 5 de outubro de 1837. In.
OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: estado e cidadania (1835-
1861). Compilação das leis provinciais do Ceará - compreendendo os anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato
Barroso. Ed. Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 159.
147
De Manuel Felizardo de Souza e Melo à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 14 de julho de 1838. APEC, GP,
CO EX, livro 40, p. 107. De Manuel Felizardo de Souza e Melo a Luiz José de Miranda. Fortaleza, 14 de julho
de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 107.
146

Apesar da mobilização indígena diante da justiça, que chegou a promover um levante


na Bahia contra os juízes em 1834, como conta André de Almeida Rego,148 a relação era
bastante desigual. Como vimos no caso de Arronches e nos que serão analisados em seguida,
os índios encaminhavam suas queixas apenas ao presidente da província, que só então as
repassavam aos juízes. O procedimento sugere que os indígenas percebiam sua própria
desvantagem com a administração dos magistrados e, por isso, buscavam o auxílio do
governo. Visivelmente posicionados a favor da usurpação fundiária encabeçada pelos
potentados, os membros do judiciário local, pouco fiscalizados, tinham plena liberdade para
interpretar a legislação e encaminhar processos da maneira que lhes conviesse. Diante disso,
os líderes dos governos das províncias, mesmo que aparentassem interesse na proteção dos
índios, pouco podiam fazer. Segundo o presidente do Ceará Souza e Melo, era competência
dos juízes de órfãos

"preencher os títulos dos arrendatários dos terrenos pertencentes aos índios que
habita[ssem] seus municípios todas as vezes que tais diligência se poderem fazer
pelo exercício da jurisdição simplesmente administrativa, havendo acordo entre os
confrontantes, mas devem remeter a questão ao conhecimento das justiças ordinárias
logo que traz litígio com contestação entre as partes" 149

Ou seja, nada garantia que um processo litigioso entre índios e arrendatários fosse
assim registrado e encaminhado para a justiça ordinária se o juiz de órfãos não quisesse. Ao
presidente era impossível fiscalizar com minúcia tais casos, cabendo apenas encaminhá-los
aos magistrados e esperar uma "justa" resolução. Em outubro de 1838, Souza e Melo
encaminhou ao juiz de órfãos de Messejana a queixa do índio Feliciano Borges dos Santos
Arcoverde, para que informasse "sobre a veracidade da mesma, podendo logo tomar todas as
providências que estive[ssem] ao seu alcance a bem dos índios, que pelo decreto de 3 de
junho de 1833 esta[vam] debaixo de sua proteção".150 Cabendo ao magistrado julgar se a
reclamação de Arcoverde era verdadeira ou não – supondo que fosse e caso o juiz agisse de
má fé – não havia nada que o índio – acionando a justiça – e o presidente – lembrando-o da lei
de 1833 – pudessem fazer.
Acerca do funcionamento da justiça no período regencial, Carlos Garriga e Andreia
Slemian contam que uma série de medidas foi promulgada para “favorecer a efetiva exigência

148
REGO, André de Almeida. Deslocamento espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da Bahia do século
XIX. Revista Trilhas da História, v. 2, nº 4, 2013, p. 63
149
De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Messejana. Fortaleza, 16 de julho de 1838. APEC,
GP, CO EX, livro 40, p. 109.
150
Idem, p. 193.
147

de responsabilidade dos juízes”, dando oportunidade a ações populares contra a magistratura.


Segundo eles, tal movimento na década de 1830 coincidia com o “momento de maior
instabilidade política e radicalização na projeção de alternativas para o futuro com a
abdicação do imperador”. Tudo isso tinha a ver com a “inexistência de um conflito entre as
leis novas e antigas, e a consequente permanência dos juízes como seus decodificadores”.151
Ou seja, por mais que aos índios tenha sido aberta a via da contestação pela justiça e sobre o
procedimento dos próprios juízes, o poder de decisão destes era maior. Ainda que sofressem
pressões dos indígenas ou até do presidente da província, os magistrados tinham o legislativo
ao seu lado. Em um mundo que adequava normativas de diferentes temporalidades, eram eles
os intérpretes.
O decreto nº 143, de 15 de março de 1842, confirmou a incumbência dos juízes de
órfãos de administrar os "bens pertencentes aos índios, nos termos do decreto de 3 de junho
de 1833".152 Em agosto, o ministro da justiça Paulino José Soares de Souza comunicou ao
então presidente do Ceará José Joaquim Coelho a determinação do rei de que, baseado no
decreto que estabelecia a proteção dos bens indígenas pelos juízes de órfãos de 1833, era sua
função recomendar "as necessárias averiguações a tal respeito, para que, verificando por meio
delas terem sido usurpadas aos índios as terras de seu patrimônio, lhes faça restituir pelos
meios competentes". Enquanto às casas de câmara das extintas vilas de Arronches, Soure e
Messejana, pertencendo ao Tesouro Nacional, deveriam ser incorporadas aos próprios
nacionais.153 Entretanto, sem elementos para executar tais averiguações, pouco mudou, tanto
no texto legal quanto no cotidiano dos índios em seus conflitos com os que esbulhavam suas
terras e em seu desamparo diante da justiça.
Em dezembro de 1842 o índio Manoel Batista dos Santos, representando a
comunidade de Monte-mor Velho, entregou à presidência da província uma queixa de haviam
sido "esbulhados de suas terras, ficando à mercê do desamparo, sem que tenham aparecido da
parte das autoridades, que sobre os mesmos devem velar, aquelas providências que as leis
autorizam". Diante disso, o presidente ordenou ao magistrado de Cascavel "que, na qualidade
de juiz municipal, ou de órfãos, proced[esse] com o maior desvelo em prol dos desvalidos

151
GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica
(C. 1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 218-220.
152
Decreto nº 143 de 15 de março de 1842. Regula a execução da parte civil da lei nº 261 de 3 de dezembro de
1841. Disponível em: <http://camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-143-15-marco-1842-560882-
publicacaooriginal-84098-pe.html>. Acesso em: 18 de julho de 2015.
153
De Paulino José Soares de Souza a José Joaquim Coelho. Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1842. APEC, MN,
MJ, livro 38.
148

índios, administrativa ou contenciosamente", para que fossem "garantidos aos ditos índios os
direitos que as leis lhes outorgam".154
Neste caso, a mesma pessoa ocupava os dois cargos, tanto no juizado administrativo
quanto no contencioso. Ou seja, se em um distrito onde havia duas instâncias nada garantia
que um processo fosse levado ao âmbito da resolução litigiosa, para os nativos liderados por
Manoel Batista dos Santos a situação era ainda pior. Diante do desamparo das autoridades que
deveriam protegê-los, como disse o "incapaz" presidente, o fato de a questão ter sido levada a
Cascavel – e não a Aquiraz, município que pertencia Monte-mor Velho – talvez indique uma
tentativa dos indígenas, longe de onde sabiam que não seriam tratados com justiça, de buscar
auxílio jurídico em outro lugar, ainda que em vão. É importante destacar também que, mesmo
que o juiz fosse porventura dedicado às causas dos índios, era muito difícil desempenhar
competentemente suas funções ocupando dois cargos simultaneamente e sendo pressionado
pelos poderosos da região.
Em 1845, outros juízes foram acionados pelo governo da província a partir de novas
denúncias de abusos aos indígenas. Em junho, o então presidente Ignácio Correa de
Vasconcelos escreveu ao magistrado de Sobral a partir das acusações de que "os moradores de
Almofala se apropriaram das terras que ali pertencem aos índios, fazendo nelas cercado e
plantações, sem quererem nem pagar algum rendimento pelas mesmas".155 Em 2 de setembro,
após a promulgação do Regulamento das Missões, o ministro da justiça José Carlos Pereira de
Almeida Torres escreveu que era da "mais pública notoriedade" a existência de indígenas "a
serviço de pessoas particulares sem que percebam salário ou estipêndio algum, achando-se
assim reduzidos ao estado de quase perfeito cativeiro". Para "prevenir a continuação de tão
escandaloso abuso", passou ao presidente do Ceará a determinação do rei para que os juízes
de órfãos recebessem os indígenas que estavam "nas indicadas circunstâncias", indagassem-
nos se eram bem tratados e se queriam continuar servindo nas casas onde se achavam ou "ser
transferidos para qualquer aldeamento já existente".156
Dias depois, uma circular foi enviada aos "juízes municipais e órfãos, substitutos e
promotores da província" para que nunca se verificasse qualquer prejuízo contra os índios que

154
De José Joaquim Coelho ao juiz municipal e de órfãos de Cascavel. Fortaleza, 23 de dezembro de 1842.
APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 11.
155
De Ignácio Correa de Vasconcelos ao juiz de órfãos de Sobral. Fortaleza, 21 de junho de 1845. APEC, GP,
CO EX, livro 68, p. 12V. O documento não informa a autoria das acusações, que provavelmente partiram dos
índios de Almofala.
156
De José Carlos Pereira de Almeida Torres a Ignácio Correa de Vasconcelos. Rio de Janeiro, 15 de setembro
de 1845. APEC, MN, MJ, livro 38.
149

tivessem que sair do termo de sua jurisdição, quer fossem dele naturais ou residentes.157 No
mês de outubro, para que a câmara municipal de Fortaleza pudesse "dar cumprimento às
ordens superiores que em benefício dos índios lhes foram dadas", o presidente intimou ao juiz
de órfãos da capital que tomasse as medidas "para fazer cessar os males [...] contra os índios
de Maranguape", e que desse conta à presidência de "todos e quaisquer atos de esbulho já
praticados, [...] propondo as medidas que julgar adequadas para providenciar-se como for de
justiça".158
Sem a proteção efetiva dos juízes, não somente as terras dos índios ficaram à mercê da
ambição dos potentados, mas também sua mão-de-obra. Em tal sociedade escravista, mas com
pouca condição de adquirir quantidades significativas de cativos, e já abolido o Diretório, as
crianças sem pais acabavam virando alvo de proprietários. Chegou ao conhecimento do então
presidente José Maria da Silva Bittencourt, em setembro de 1843, a "prática escandalosa", que
seria "vulgar" em Granja, de "arrancarem-se órfãos pequenos, principalmente índios, às suas
mães, ou às pessoas que deles curam, para serem reduzidas a uma quase servidão, sob o
especioso pretexto de assoldamento [sic], que desta forma não é permitido por lei". As
desculpas dadas por quem os praticamente escravizavam se assemelham a empreendimentos
no Espírito Santo, estudados por Maria Hilda Paraíso, que visavam "batizar os 'boticudinhos' e
distribuí-los entre pessoas de prestígio".159
No dia 26, ordenou ao juiz municipal e de órfãos que fizesse cessar o "abuso contra
infelizes, a quem a sociedade deve especial proteção", que usasse de todos os meios para que
desaparecessem "fatos tão vergonhosos", que os meninos e meninas capturados fossem
"restituídos à sua liberdade, indenizados das perdas e danos sofridos e punidos os autores de
fatos tão violentos". Destacou o caso do órfão Francisco, "filho de Maria Francisca, parda,
moradora no Olho D'água, município de Vila Viçosa", em poder de José Felix da Cunha,
morador do Coreaú.160 No mesmo dia escreveu ao juiz de Vila Viçosa, em resposta a um
ofício, comunicando-o ter expedido as "convenientes ordens para fazer cessar os abusos
contra os índios de que [o magistrado] se queixa[va]". 161 O caso do filho de Maria Francisca,

157
Ofício circular da presidência da província aos juízes municipais, de órfãos, substitutos e promotores da
província. Fortaleza, 15 de setembro de 1845. APEC, GP, CO EX, livro 68, p. 44V.
158
De Ignácio Correa de Vasconcelos ao juiz de órfãos da capital. Fortaleza, 21 de outubro de 1845. APEC, GP,
CO EX, livro 68, p. 64.
159
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos
sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 351.
160
De José Maria da Silva Bittencourt ao juiz municipal e de órfãos de Granja. Fortaleza, 26 de setembro de
1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 155.
161
De José Maria da Silva Bittencourt ao juiz municipal e de órfãos de Vila Viçosa. Fortaleza, 26 de setembro de
1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 157.
150

mãe solteira e quem provavelmente acionou a justiça para resgatá-lo, mostra outra trama
difícil de ter sido resolvida por envolver juizados de dois municípios diferentes, e onde havia
a já citada situação de uma pessoa ocupando dois cargos do judiciário. Pior seria somente a
condição dos que eram levados para algum lugar desconhecido ou dos que perderam por
completo os pais, desamparados de tudo.

Mapa 3: Locais de atuação dos índios peticionários à justiça

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

*
* *

A calamitosa situação vivida por Francisco não impediu sua mãe de agir, ainda que o
nível de desvantagem para os índios fosse praticamente absoluto. Em diferentes momentos e
conjunturas, variadas formas de ação indígena tiveram lugar em conexão profunda com a
legislação do período. Era perceptível o conhecimento das leis por parte de muitos índios, que
as operacionalizavam a seu modo e a partir de suas próprias preocupações, como a tomada de
terras, o resgate de um filho ou a própria condição política de seu povo com a deportação de
seu rei. A já comentada heterogeneidade de atitudes era oriunda das diferentes experiências e
posições sociais nas comunidades: mas, do código de posturas de vereadores aos "pescoções"
das cunhãs, todas elas agiram diante de dilemas semelhantes.
Não somente os índios se posicionaram a partir da legislação: as próprias formas de
aplicação das leis indigenistas eram influenciadas pela atuação indígena. Ainda que o regime
joanino, atento aos "males da perfeita liberdade", tenha sido repleto de exemplos de repressão
e criminalização contra os índios, tudo se exacerbou após a independência, especialmente no
período regencial, também por conta do esforço dos potentados locais em restringir o poder de
151

atuação política indígena. Em todos esses tempos, a partir de circunstâncias próprias de cada
momento, os índios se valiam da legislação de que dispunham e que era muitas vezes
desvantajosa para eles. Sua atuação sempre foi de encontro aos abusos da exploração de sua
mão-de-obra e a favor de sua liberdade e autonomia, baseados em uma cultura política tanto
saudosa do prestígio de seus antepassados quanto atenta aos novos tempos liberais que
passaram a viver.
152

CAPÍTULO 4
ÍNDIOS, GENTIOS, VASSALOS, CIDADÃOS

"derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por


Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de dom Felipe de
Souza Castro"
(Ignácio de Souza e Castro e demais índios de Vila Viçosa,
1817. AN, AA, IJJ9 518)

"cidadãos sem a menor sombra de dúvida, porque são


nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo assim devem gozar
todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos "
(José Francisco do Monte e demais índios de Monte-mor
Velho, 1831. BN, C-750, 29)

O espaço social imaginado para os índios no Brasil, da vigência do Diretório até a


Constituição de 1824, os colocava em uma ambiguidade. A pretensa situação de equidade
com os brancos enquanto vassalos1 era utópica, já que eram caracterizados como ainda
sujeitos a uma menoridade,2 estando em um estágio inferior na hierarquia do corpo social do
Antigo Regime português.3 Por meio da crítica da atuação dos missionários junto às
comunidades indígenas, o argumento legislativo da época era de que, “não tendo sido
educados com os ‘meios da civilidade’, da ‘convivência’ e da ‘racionalidade’, os índios
também estariam inaptos a formar governos próprios”. Pautada por ideais civilizatórios de
base iluminista “com os olhos fitos em certo ideal de sociedade livre”,4 a política indigenista
lusitana, por um lado, tinha como meta transformá-los em trabalhadores civilizados e fiéis à
Coroa lusitana. As vilas de índios, espaços criados para serem polos civilizadores, garantiam-
lhes terras, cargos, posses e mercês. Por outro lado, até mesmo as autoridades indígenas

1
“serão obrigados a conservar com os índios aquela recíproca paz, e concórdia, que pedem as Leis da humana
Civilidade, considerando a igualdade, que tem com eles na razão genérica de Vassalos de Sua Majestade, e
tratando-se mutuamente uns a outros com todas aquelas honras, que cada um merecer pela qualidade das suas
Pessoas, e graduação de seus postos". DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e
Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §83.
Grifo meu.
2
“menoridade civilizacional, porque se considerava que a ‘civilização índia’ ocupava um estádio inferior na
evolução da humanidade; menoridade individual, porque se concebiam os indígenas súditos não totalmente
responsáveis pelos seus atos, mas como ‘pessoas miseráveis’, simples e rústicas, incapazes de avaliar, de forma
total, as consequências do seu comportamento”. Cf. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos:
colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 43.
3
XAVIER, Ângela Barreto. HESPANHA, Antônio Manoel. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d,
p. 122-124. LARA, Silvia Hunold. Introdução. In: LARA, Silvia Hunold. Ordenações Filipinas, livro V. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 20. PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos
tempos da independência. Lua Nova, n. 81, 2010, p. 22.
4
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século XVIII.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 167.
153

estavam submetidas à estrutura administrativa do império e a uma série de obrigações ligada a


formas de conduta e costumes.
Ou seja, ainda que o discurso oficial estabelecesse várias garantias e “a igualdade entre
índios e luso-brasileiros”, os indígenas constituíam uma classe de homens inferiores na ótica
do governo e de estudiosos, verificando-se, segundo Ângela Domingues, “inúmeras
contradições [...] a nível legislativo”. Mesmo tendo concedido ao índio “o estatuto de
vassalo”, transformando-o “num verdadeiro súdito, num luso-brasileiro a serviço dos
interesses da Coroa e útil à política colonial”, eram considerados “não como integralmente
responsáveis pelos seus atos, mas como indivíduos em estado de menoridade”.5 Apesar das
pretensões políticas e legais, na prática, não existia igualdade entre vassalos no corpo social
do Antigo Regime português. A respeito dos índios, as causas atribuídas para a forte ligação
aos seus hábitos ancestrais iam desde a “indolência” proporcionada pelo clima6 até aos abusos
de diretores e outros representantes do poder administrativo imperial nas vilas.7 Afastados das
“luzes” da civilização, estariam bem mais conectados com a “natureza”, termo recorrente na
documentação do período ao caracterizar os grupos indígenas e que os opunha à “razão”. Não
haviam abandonado por completo os matos de onde tinham saído: estes ainda os
“corrompiam” e protegiam.
Por suas ações e reivindicações, contudo, é possível perceber que tais comunidades,
caracterizadas pela ligação com o mundo “selvagem” e, salvo raras exceções, quase total falta
de articulação política, concebiam visões diferentes das dos governantes. Traçando distinções
com outros grupos desta sociedade e requerendo suas garantias, os índios buscavam muitas
vezes respeito à sua condição de integrantes do corpo social lusitano. Para isso, “assumiam-se
como verdadeiros súditos luso-brasileiros”8 diferentes dos “gentios”, fiéis à fé católica e na
defesa do reino, mesmo que atuando contra os administradores locais.
Guiadas por visões inferiorizantes, as atitudes da Coroa e de seus representantes na
administração colonial frente à movimentação dos índios mesclavam rigor com certa
tolerância corretora. As punições e restrições impostas eram constantemente motivadas a
partir da ideia de natural incapacidade, contrastando de maneira gritante com muitos atos

5
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 41-43.
6
Ibid., p. 318.
7
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios, p. 168, 192-195. DOMINGUES, Ângela. Quando os
índios eram vassalos, p. 155-156. LOPES, Fátima Martins. As mazelas do Diretório dos índios: exploração e
violência no início do século XIX. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no
Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 250. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos:
etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p.
216-218.
8
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 266.
154

reivindicatórios indígenas. Se os observadores europeus “tendiam a retratar os índios


recalcitrantes como verdadeiros selvagens, que hostilizavam os brancos em função da sua
natureza bruta”, tais representações, segundo John Monteiro, iam de encontro à imagem do
“índio que colaborava com os projetos coloniais”, ou aos atos de “apropriação, por parte de
algumas lideranças, dos símbolos e dos discursos dos brancos para buscar um espaço próprio
no Novo Mundo”.9
Entre a construção da imagem dessa população associada à barbárie e a ação política
dessas comunidades em suas povoações, chama atenção a procura constante dos índios das
vilas – especialmente suas lideranças – em identificar-se enquanto súditos do rei e
merecedores das mercês que lhes eram garantidas e que bem conheciam. Acerca da população
indígena das vilas do tempo da instalação do Diretório no Ceará, Isabelle da Silva alerta que
“não se tratava mais dos ‘índios do corso’ do período da Guerra dos Bárbaros”, pois “já
tinham acumulado certas experiências nas relações com o mundo colonial”. Eram povos que
traziam “nas suas histórias e memórias os choques sangrentos vividos por gerações passadas”
e que já haviam “passado pelos aldeamentos missionários e todas as suas ambiguidades”.10 Na
passagem entre os séculos XVIII e XIX, Maria Regina de Almeida afirma que os “diversos
grupos indígenas aldeados agiam [...] com base em culturas políticas e culturas históricas
próprias, construídas num longo processo de suas trajetórias de contatos com os
colonizadores”, através dos quais “valorizavam seu papel de súditos cristãos das monarquias
ibéricas”.11
Na primeira metade do século XIX, marcada por intensas mudanças na legislação
indigenista, as leis eram interpretadas e operacionalizadas pelas Coroas lusitana e brasileira,
agentes de governo no Ceará, autoridades locais e índios. Tanto que, nessa sempre tensa
relação entre agência indígena e a legislação que os submetia, usando as palavras de Perrone-
Moisés, os próprios índios, "situando-se de modos diversos diante da colonização portuguesa
do Brasil", obrigaram "o projeto civilizatório a assumir certas feições". 12 A atuação política
indígena, desde a instituição do Diretório e, especialmente, das lideranças nas vilas, revelava

9
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo.
Tese (Concurso de Livre-docência), 2001, p. 75-76.
10
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 94.
11
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história entre múltiplos usos do passado:
reflexões sobre cultura histórica e cultura política. In: SOIHET, Rachel. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.
SÁ, Cecília. GONTIJO, Rebeca. Mitos, projeto e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009, p. 209-210.
12
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários: guerras contra o gentio no Brasil colonial. Revista
Sexta Feira, v. 07, 2003, p. B210.
155

sua fidelidade em relação à monarquia de Portugal – e, após 1822, à do Brasil – e exigia o


respeito às mercês garantidas pelos reis. A ênfase na posição social que ocupavam no império,
registrada na legislação, era constante, mesmo porque, apesar de serem “vassalos iguais aos
outros”, eram vistos como indivíduos de capacidade limitada. A própria lei pombalina, ainda
que confirmasse sua liberdade, bens e cargos que podiam ocupar, declarava sua natureza
inferior ao instituir sua condição de tutelados.

4.1. "DAR A PRÓPRIA VIDA POR VOSSA MAJESTADE"

Exemplo da diferenciação que os considerava inferiores aos demais vassalos livres


está na circular de 9 de julho de 1799 transmitida aos governadores dos domínios
ultramarinos por ordem do príncipe regente dom João VI, para que procurassem “introduzir a
inoculação das bexigas, principalmente nos meninos negros e índios, visto tem mostrado a
experiência ser este o único e eficaz preservativo contra o terrível flagelo”. Não se sabia bem
quais seriam os “efeitos que devem ter resultado de uma tão saudável providência”, e por isso
ordenava ao governador Bernardo Manuel de Vasconcelos em 1802, “por meio dos médicos e
das casas dos expostos”, que adotasse a prática e desse “conta dos progressos que se fizerem
neste importante objeto”. 13
A inoculação de bexiga (varíola), método que consistia na aplicação do pus
contaminado em uma pessoa saudável, começou a ser utilizada na América portuguesa no fim
século XVIII, mesmo já tendo sido praticada na Inglaterra desde o início dos setecentos.14 No
Ceará, por não se conhecer ainda as consequências do procedimento, foram chamadas as
crianças rejeitadas e oriundas de estratos sociais mais baixos, ainda que as indígenas fossem
vassalas do rei. Mesmo que se argumente que tais grupos foram escolhidos por terem maior
incidência da doença, tal hipótese, se válida, também pode indicar a precariedade de suas
condições de vida. De qualquer forma, tal exemplo evidencia que a condição de vassalos dos
índios não os tirava da inferioridade e muito menos os igualava aos brancos. A
"animalização" de que fala Perrone-Moisés, presente em "documentos que descrevem sua
fereza",15 não se demonstrava apenas em situações de guerra.

13
Do Visconde de Anadia a Bernardo Manuel de Vasconcelos. Lisboa, 1º de outubro de 1802. APEC, GC, livro
48.
14
Cf. ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio
de Janeiro: FIOCRUZ, 2011, p. 124.
15
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A31-A32.
156

Latente em sua própria natureza, os impedia de usufruir de uma completa autonomia e


de se livrar do trabalho compulsório, mas era, sem dúvida, bem mais enfatizada pelos
representantes da Coroa em situações de conflito. Uma “desordem” promovida por índios na
vila de Monte-mor Novo em janeiro 1811 foi descrita pelo governador Barba Alardo de
Menezes como tendo sido originada pela “embriaguez e de mal-entendidas diligências que
podem ser causas de fugas dos mesmos índios”. Para evitar maiores distúrbios, solicitou ao
diretor José Severino de Vasconcelos que remetesse “presos os principais cabeças”,
executasse a “segura arrecadação de todos os arcos e flechas” e estabelecesse “rondas
noturnas e de dia, a fim de evitar por esse modo os insultos, roubos e abusos das armas
proibidas”. Sem detalhar as causas do ocorrido, Menezes enfatizou o que entendia como
limitação da mentalidade dos indígenas, raiz não só da persistência de práticas bárbaras e
ancestrais – desde a embriaguês como o uso dos arcos e flechas apreendidos – mas também da
sua incapacidade de compreensão das “diligências”.16
Em outro ofício encaminhado ao juiz ordinário da vila, o governador tratou do “motim
dos índios sucedido a 5 do mesmo mês, e que felizmente se remediou pelo incansável zelo de
vossas mercês”. Fez referência ao diretor e à ordem que havia lhe enviado, reforçando-a para
que examinasse “a verdadeira origem da referida desordem” e que não ficassem “impunes
seus autores”. De um texto para o outro, a linguagem muda de acordo com o destinatário. O
diretor, fazendo parte daqueles que eram geralmente apontados como ambiciosos e violentos
com os índios, não recebeu o mesmo tratamento que o juiz. Apenas a este Menezes escreveu
estas palavras acerca da condição dos nativos e de como deveriam ser tratados:

"Esta infeliz nação tem alguma desculpa pela sua ignorância e, quando conhecem o
erro, se fazem sempre dignos da nossa indulgência. Os soberanos todos sempre os
protegeram, por terem sido os primários senhores deste continente, e se os diretores
fossem mais cuidadosos na sua educação eles certamente seriam mais discretos e
dóceis de que são".17

Os diretores, enfim, são diretamente apontados como o impedimento à devida


civilização dos povos indígenas, “primários senhores deste continente”. Seguindo as
“benevolentes” orientações da Coroa portuguesa, Menezes explicou a causa dos erros dos
índios pela falta da proteção e educação prevista pela lei. Por conta de sua “ignorância”, os

16
Do governador Luiz Barba Alardo de Menezes. “Registro do ofício dirigido ao sargento-mor José Severino de
Vasconcelos diretor de Monte-mor o Novo”. Fortaleza, 19 de janeiro de 1811. APEC, GC, livro 40, p. 122.
17
Do governador Luiz Barba Alardo de Menezes. “Registro do ofício dirigido ao juiz ordinário da vila de
Monte-mor o Novo, em resposta da [?] que deu do motim que houve dos índios da dita vila”. Fortaleza, 19 de
janeiro de 1811. Ibid., p. 123.
157

castigos deveriam ser direcionados no sentido de alcançar a sua docilidade, que enquanto não
fosse atingida, estariam fadados aos erros, à barbárie e à desordem. Naturalmente incapazes,
seriam nada mais que uma “infeliz nação”.
Tal maneira de caracterizar as ações dos índios, enquanto “desordens” ou “motins”,
deixava muitas vezes escapar o sentido político dos grupos na luta por seus interesses. O que
era prescrito por lei, onde a liberdade, o bem-estar e o poder de organização indígena
deveriam ser respeitados, não representava por completo a tradição dos governos em lidar
com essa população. Para os índios, a fuga para os matos ou o uso de arcos e flechas eram
sempre possibilidades que também se mesclavam com o sentimento de ser súdito da Coroa
portuguesa e por meio dela requerer seus direitos. Longe de ter reações desarticuladas,
infantis e puramente violentas, os indígenas buscavam a garantia de benefícios para si.
Tentavam em diversas ocasiões agregar resistências, na manutenção de mercês ou costumes
ancestrais, à adoção de elementos que lhes garantissem a posição de súditos lusitanos.
Era na monarquia que as lideranças indígenas das vilas viam proteção, especialmente
contra aqueles que exploravam sua força de trabalho e usurpavam suas terras, demonstrando
gratidão pelas mercês que recebiam e fidelidade pelas Coroas portuguesa e brasileira. Nas
diversas situações de embate bélico que movimentaram a primeira metade do século XIX
vários são os exemplos dessas manifestações, como vimos anteriormente.
O único registro escrito por índios que encontramos acerca dos conflitos
pernambucanos de 1817 foi um ofício assinado por 82 pessoas naturais de Vila Viçosa, entre
oficiais e soldados, encabeçados pelo capitão-mor Ignácio de Souza e Castro, “genuflexos aos
pés de Vossa Majestade com a maior humildade e respeito devido”. Escrito no mês de julho,
após o final dos embates, destacaram a “inteireza, retidão, prudência e sabedoria” de Manoel
Ignácio de Sampaio, que governava o Ceará desde 1812, “deixando a todos os seus súditos,
vassalos de Vossa Majestade, em tudo bem satisfeitos, pela sua economia de governo”. 18 Em
tom contrário a opositores liberais da época, que caracterizavam o governador como um
homem tirano e perseguidor19, os índios descreveram-no como um “fidelíssimo defensor dos
direitos reais, como para o bem público e comum desses colonos”. Isso se explica porque,
mesmo sendo conhecido seu combate contra a vadiagem – atingindo muitos índios comuns –
os autores do ofício eram lideranças que compactuavam com os planos reais, e reconheciam

18
Abaixo-assinado de Ignácio de Souza e Castro e demais índios de Viçosa a dom João VI. Vila Viçosa, 31 de
julho de 1817. AN, AA, IJJ9 518. Salvo indicação em contrário, as próximas citações pertencem a esse
documento.
19
Cf. TAVARES, Francisco Muniz. História da revolução de Pernambuco em 1817. Recife: Imprensa
Industrial, 1917, p. 76.
158

os esforços de Sampaio em enfrentar, com igual vigor, os abusos que sofriam dos
proprietários que alugavam sua mão-de-obra.20
Os elogios dos índios continuaram, listando os serviços de Sampaio pela capitania:
havia "fortificado aquela praça do Ceará Grande com um formoso e bem fundado baluarte",
disciplinado as tropas de linha e milicianas e removido qualquer sinal de rebelião. Em seu
combate à revolução, extinguiu os "perversos das desgraças capitanias do Rio Grande do
Norte, Paraíba e Pernambuco", instalou presídios pela costa e "aprontou e fez marchar tropas
para a defesa da Coroa de Vossa Majestade". Os índios de Viçosa não chegaram a se juntar
aos de outras vilas e participar dos conflitos nas fronteiras, mas, numa demonstração de
ardente lealdade, disseram ter ficado inquietos

"pelo ardente desejo que tinham todos de pegar em armas, derramar a última gota de
sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de dom
Felipe de Souza Castro, de quem o capitão-mor representante é descendente em
próximos graus".

O apoio manifestado ao rei, sempre acompanhado da lembrança da lealdade de seus


antepassados, é semelhante ao que escreveram, anos antes, os mesmos índios que buscavam a
anulação do Diretório. Tal maneira de se posicionar nos revela como identificavam seu lugar
no império e de que forma podiam agir politicamente. Colocavam-se como diferentes dos
"bárbaros gentios", não se referiam a si próprios a partir dos antigos etnônimos, e sim, pelos
seus nomes em português, pelas vilas de onde eram naturais, por suas patentes e pelos feitos
de seus antecedentes, com destaque à figura de dom Felipe de Souza e Castro, importante
chefe militar indígena dos setecentos.21 Era sinal do caráter familiar, observado por Lígio
Maia, da constituição de lideranças e de grupos de índios privilegiados no Antigo Regime.22
Atestavam sua posição de fiéis vassalos também quando elencavam as qualidades do
"reto governador", que atendia a "todos os seus súditos", inclusive aos índios. Castigava os
maus, distinguia os bons e nada lhe era oculto, com "grandes e vantajosas utilidades aos
moradores desta capitania", e caso fosse removido para outro lugar, sua ausência provocaria
"grandes danos pela falta do bom regime que a todos é profícuo". Pediram ao rei, ao fim do
abaixo-assinado, que conservasse por mais anos o governador na capitania, e que ouvisse os

20
Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-
1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 81.
21
Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade
no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 241
e 274.
22
Ibid., p. 277.
159

"rogos, deprecações e súplicas destes fiéis vassalos que sempre têm sido felizmente
protegidos por Vossa Majestade, e mais soberanos seus ascendentes".
É difícil saber se as lideranças de Viçosa tiveram conhecimento da resposta negativa
de Manuel Ignácio de Sampaio a respeito de seu grande requerimento que pedia a abolição do
Diretório. Contudo, a posição de complacência do governador com os abusos sofridos pelos
indígenas não ficou restrita ao ofício encaminhado ao rei: Sampaio sempre se mostrou um
devoto representante dos desígnios da Coroa, inclusive no que dizia respeito ao trato com os
vassalos indígenas, protegendo-os de eventuais exploradores ainda que fossem poderosos
donos de terra.23 Para os índios, portanto, exaltar as qualidades de Sampaio (talvez como uma
tentativa de conquistar a atenção do governador ao que requisitaram anos antes) e ressaltar
sua fidelidade ao rei faziam parte de uma mesma expressão diante de soberanos, vistos como
sempre garantidores de suas mercês e posições sociais. Além disso, confirmar antigas leis era
tentar fazer das mercês caminhos para conseguir satisfazer os interesses de suas comunidades.
Como foi visto, dom João VI se mostrou atencioso ao grande requerimento de 1814 e não
ignorou a atitude dos índios durante os conflitos em 1817, premiando-os dois anos depois
com isenções de impostos, seguindo o conselho de Sampaio e estreitando ainda mais as
relações de devoção. Em pouco tempo o decreto já havia chegado ao conhecimento das
comunidades indígenas no Ceará, através de ordens encaminhadas pelo governador aos
diretores de índios24 e às câmaras municipais, inclusive às de brancos com povoações
indígenas, como era o caso de Aquiraz.25
Percebe-se que as manifestações indígenas não eram uma via de mão única: suas
demonstrações de respeito e submissão eram acompanhadas da expectativa de que fosse
respeitada sua condição de vassalos. Dificilmente o retorno de respeito era conseguido das
autoridades locais, e aos índios restava lutar em nome da Coroa, a ela recorrendo como um
dos seus poucos refúgios de proteção, e exigir serem tratados como as leis recomendavam.
Por exemplo, durante os conflitos de Maranguape, tropas foram mobilizadas para abafar os
revoltosos indígenas e tiveram a vila de Arronches como base de operações, cuja corporação
de índios foi acionada. Durante a estada de milicianos na localidade, por razões que não ficam
claras na documentação, o “capitão, ajudante e alferes índios de Arronches foram
asperamente repreendidos e advertidos”, mas disseram que o diretor José Agostinho Pinheiro

23
Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 118-133.
24
Circular de Manuel Ignácio de Sampaio aos diretores de índios. Fortaleza, 16 de setembro de 1819. APEC,
GC, livro 22, p. 86.
25
Termo de vereação da câmara municipal. Aquiraz, 1º de outubro de 1819. APEC, CM, Câmara de Aquiraz,
livro 28, p. 116.
160

“também havia de ser estranhado, por não ter dado parte” de um acontecimento que tanto os
embaraçou. Os oficiais indígenas denunciaram “que os índios tomavam por desfeita o serem
os soldados obrigados a andar nus como os selvagens e gentios”, e que “queriam trazer
chapéus, e não barretinas de palha”. 26
O registro não explicita quem seriam os acusados, mas fornece informações acerca do
entendimento que aquela comunidade tinha de si mesma e do lugar que ocupavam no império.
Exigindo chapéus e negando abertamente a comparação com “selvagens”, buscavam se
distanciar da imagem muitas vezes a eles atribuída enquanto homens bárbaros. Os “gentios”,
inclusive, eram frequentemente lembrados em pedidos de mercês dos índios enquanto
referência aos serviços prestados por seus antepassados que os combateram27, assim como
fizeram os de Viçosa em 1814. As roupas e apetrechos militares se revestiram da função de
sinais diferenciadores e demarcadores da identidade reclamada pelos nativos.28
O diretor geral Pinheiro aparece de forma ambígua, supostamente “amado” durante os
eventos de 1817 (como veremos no capítulo 8), “ameaçado” em Maranguape e omisso em
Arronches. Mesmo acusado pelos oficiais indígenas – seus subordinados na vila e que lhe
deviam obediência – o caso não teve a mesma repercussão que os outros, já que os ofendidos
não foram nenhuma autoridade branca, como o diretor ou o vigário. Em 1822, os índios ainda
estavam salvaguardados pelo estatuto legal diferenciado característico do contexto pombalino
do Antigo Regime português. Sua situação mudou após a independência, e o lugar social que
ocupavam foi gradativamente impactado pelas transformações políticas do Brasil e pelas
novas dimensões adquiridas com a condição de cidadania.

26
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 17 de setembro de 1822.
APEC, GC, livro 98, p. 114.
27
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 324-329.
28
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no
extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 48-49, 58-59. MAIA, Lígio José
de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e Castro nas redes de poder
do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v. 43, n. 2, 2012, p. 20.
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-
1798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 97-98. CUNHA, Maria Manuela
Ligeti Carneira da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 238. SAHLINS, Marshall. Adeus aos
tristes trópicos: a etnografia no contexto da moderna história mundial. In: Cultura na prática. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2007, p. 530. BARTH, Fredrick. Grupos étnicos e suas fronteiras, p. 194.
161

4.2. "CIDADÃOS SEM A MENOR SOMBRA DE DÚVIDA"

O conceito de cidadania não apareceu apenas com a independência do Brasil.29 Já nas


Cartas Régias das guerras justas contra os botocudos de 1808, por exemplo, dom João VI
previa que os índios que quisessem se aldear seriam "considerados cidadãos livres e vassalos
especialmente protegidos por mim e por minhas leis".30 Os índios cidadãos a quem se refere o
monarca seriam aqueles que fariam parte do seu corpo de súditos da Coroa lusitana,
abandonando os sertões e habitando o convívio civilizado. Seu significado, especialmente no
que se referia aos povos indígenas, se transformou de forma substancial nos anos seguintes.
Nas Cortes de Lisboa houve debates em torno da redefinição do conceito de cidadania,
característicos do momento de crise do Antigo Regime português,31 que continuou com a
separação política brasileira. Alguns autores já trataram dos processos de exclusão de diversos
grupos sociais e étnicos da categoria de cidadão, como foi o caso dos chamados "gentios".
Ainda em 1821, segundo Julio Gómez, a voz do deputado Correa de Seabra se destacou por
negar a cidadania tanto aos "tapuias bravios do Brasil" quanto aos "gentios da costa da
África", que só poderia alcançá-la através da religião e civilização.32 Após a independência, a
Assembleia Constituinte de 1823 passou a discutir os membros da sociedade do novo império.
De acordo com Maria Hilda Paraíso, todos os seus moradores seriam brasileiros, por que a
constituíam, mas nem todos seriam cidadãos. Para a autora, os índios só teriam cidadania se
deixassem de ser silvícolas e abraçassem a civilização, pelo fato de

"não gozarem dos cômodos e incômodos de pertencerem à sociedade brasileira, uma


vez que não participavam do pacto social que constituíra o Estado e por não estarem

29
Segundo José Murilo de Carvalho, à "época da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria
brasileira". Para o autor, no período colonial, não "havia república no Brasil, isto é, não havia sociedade política;
não havia 'repúblicos', isto é, não havia cidadãos", e a "independência não introduziu mudança radical no
panorama descrito". CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2014, p. 24, 29 e 31. Não é intenção desta tese discutir a definição de tais termos, ou se os
mesmos, partindo de sentidos contemporâneos, "existiam" no contexto estudado, mas analisar as interpretações e
operacionalizações dos conceitos a partir dos agentes históricos do período. Sobre o tema, vide também:
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O que significava ser cidadão nos tempos coloniais. In: ABREU, Marta.
SOIHET, Rachel. Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2009.
30
Carta Régia de 5 de novembro de 1808. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_19/CartaRegia_0511.htm>. Acesso em: 25 de agosto de
2015.
31
JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira. Revista História das Ideias, v. 21, 2000, p. 397.
32
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia
Contemporánea, n. 27, 2009, p. 246-247.
162

submetidos ou reconhecerem o Império ou sua autoridade já que viviam em guerra


com os brasileiros".33

Tal noção de separação fica claramente expressa na fala do deputado Manoel José de
Souza França, que dividia a sociedade do império do Brasil entre os cidadãos brasileiros, os
brasileiros não cidadãos (como era o caso negros cativos) e os "índios que viviam nos
bosques", que nem ao menos brasileiros seriam enquanto não se civilizassem.34
Boa parte das considerações da historiografia sobre o tema reafirma as restrições de
pertencimento impostas aos grupos não-aldeados às categorias de brasileiros (sobre a qual não
havia consenso) e de cidadãos (estatuto impossível para aqueles que não se submetiam às
leis). Muitas vezes, as generalizações podem passar a ideia de que, nesse contexto,
absolutamente nenhum indígena era enquadrado assim pelas autoridades governamentais.
Entretanto, pouco foi dito sobre os aldeados, oriundos das antigas vilas pombalinas, boa parte
deles vivendo ou em contexto urbano ou próximos a propriedades de potentados rurais. Eles
compunham a grande maioria da população indígena do Ceará no início do século XIX, não
viviam como os bravios, e até faziam questão de se portar de maneira contrária a eles, como
vimos há pouco. Não só se submetiam às leis como também as conheciam e delas se
utilizavam muitas vezes ao tratarem de assuntos de seu interesse. Como, então, passaram a ser
tratados nos primeiros anos do império do Brasil? O que significou ser membro deste novo
país?
Mesmo que se considere que a proteção aos indígenas não era uma prioridade na
formação do Estado nacional brasileiro, estes povos não foram completamente ignorados.
Raquel Santos apresenta evidências de que havia índios entre os eleitores do Grão-Pará para a
escolha de deputados a serem enviados para Lisboa.35 Cipriano Barata, em sua fala nas
Cortes, defendeu que os índios, assim como outros grupos étnicos de cor, também eram
cidadãos honrados e valorosos.36 Já em setembro de 1822 a câmara da vila de índios de
Monte-mor Novo chegou a receber um "exemplar manuscrito de S.A.R. [Sua Alteza Real] o
Príncipe Regente Constitucional e defensor perpétuo do Reino do Brasil aos povos deste

33
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Construindo o estado da exclusão: os índios brasileiros e a constituição de
1824. Revista Clio, v. 28.2, 2010, p. 13.
34
Cf. SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional
brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012, p. 25-26.
35
SANTOS, Raquel Dani Sobral. A construção do estatuto de cidadão para os índios do Grão-Pará (1808-
1822). Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2013, p. 63-64, 80.
36
Cf. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados, p. 259; JANCSÓ, Istvan; PIMENTA, João Paulo Garrido.
Peças de um mosaico, p. 437.
163

reino".37 Com a Constituição de 1824, ainda que os índios não tenham sido nela citados, a
política indigenista do primeiro reinado continuou a distinguir os índios "bravos" dos
"civilizados", e estes últimos tinham, indubitavelmente, cidadania. Vânia Moreira apresenta o
caso dos indígenas da vila de Itaguaí, no Rio de Janeiro, que sofriam intenso esbulho de suas
terras. Foi nessa conjuntura que o próprio imperador dom Pedro I reafirmou que todos os
índios nela residentes eram cidadãos, “de acordo com a novíssima Constituição do império".38
Por isso, é preciso cuidado ao tratar dos novos enquadramentos legais, políticos e
sociais propostos pelas autoridades nos primeiros anos do Brasil independente. Manuela
Carneiro da Cunha afirma que, no Brasil independente, era negado aos índios o direito de
cidadania.39 Para Andreia Slemian, nas discussões da Constituinte em 1823, “’súdito’ era
entendido como sinônimo de ‘cidadão’, pois que, nesse momento e no âmbito da Assembleia,
adentrar à ‘sociedade brasileira’ significava pactuar com o sistema monárquico que se
instituía”.40 Por isso, os índios não estariam circunscritos, segundo a autora, no âmbito da
cidadania.41 Segundo Fernanda Sposito, "o índio, dentro do império, só poderia ser brasileiro,
ou, hipoteticamente, cidadão, se deixasse justamente de ser indígena". Somente a "extinção de
sua identidade indígena é que lhe daria direitos um pouco mais igualitários nesse Estado". 42
Mas os índios das vilas do Ceará, por exemplo, eram súditos da Coroa portuguesa havia
séculos, e continuaram a ser de dom Pedro I. Ao contrário do que argumentam as autoras, a
fundação do Estado nacional brasileiro e a subsequente Constituição não excluíram todos os
índios da condição de cidadãos e muito menos da de brasileiros, sem que precisassem deixar
de ser indígenas.
Se os deputados nas Cortes de Lisboa, em 1821, e na Assembleia Constituinte do
Brasil, em 1823, muitas vezes generalizavam ao se referir a uma população tão heterogênea
quanto a indígena, não precisamos fazer a mesma coisa. Como vimos no capítulo 2, os índios
das vilas cearenses passaram a ser, após a independência e pela lei, súditos de dom Pedro I,
cidadãos e brasileiros. No Ceará, tais condições foram operacionalizadas de diversas formas
por indígenas e governantes, a partir de interesses próprios e de acordo com os dilemas

37
Termo de vereação da câmara municipal. Monte-mor Novo, de 28 de setembro de 1822. APEC, CM, Câmara
de Monte-mor Novo, livro 54, p. 59V.
38
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência –
Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, p. 10-11.
39
CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Terra indígena: história da doutrina e da legislação. Os direitos
do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 63.
40
SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos? Impasses na construção da cidadania nos primórdios do
constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, Istvan. Independência: história e historiografia. São
Paulo: Hucitec, 2005, p. 836.
41
Ibid., p. 840.
42
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 143.
164

particulares de cada momento. Durante a eclosão da Confederação do Equador, o então


presidente confederado Tristão Gonçalves de Alencar Araripe enviou uma circular em maio
de 1824 a todos os diretores de vilas e povoações de índios, para que os mantivessem prontos
ao primeiro sinal de guerra.

Nas conjunturas atuais não há brasileiro tão infame que prefira o cativeiro à
liberdade, estou certo que os índios, meus valorosos patrícios, não querem ser
escravos [...]. Vossa mercê avise aos nossos irmãos dos seus deveres, e plenamente
execute o que se lhe ordena.43

Nesse novo momento político do Brasil a "questão identitária envolvia um jogo


complexo", nas palavras de André Roberto Machado, onde as afetividades em torno do
sentimento pátrio e nacional ainda estavam em intensa disputa,44 especialmente durante a
Confederação proclamada pelos liberais. Muito provavelmente nem todos compartilhavam as
declarações de Araripe, que identificava os índios como brasileiros, patrícios (aqui vinculado
a "pátria", e não a "nobreza") e irmãos. Suas palavras, no entanto, indicam um caminho
possível por onde seguiu o discurso do governo brasileiro e das províncias, que se acendia
ainda mais nos momentos de crise.
No mês seguinte, o tom do presidente da província em relação aos índios mudou
radicalmente em um ofício ao diretor de Messejana. Para ele, era impossível existir uma
"sociedade regular sem religião", que estaria sendo "desprezada pelos índios da diretoria [...],
que nem ao menos cumprem com o preceito quaresmal". Reclamava, por fim, que não havia
"autoridade eclesiástica nesta província que olh[asse] atentamente para a triste situação desses
miseráveis brasileiros, tão ignorantes dos princípios da religião quase como os mesmos
selvagens".45 Mesmo que continuasse a chamá-los de "brasileiros", Araripe ainda não se
refere aos indígenas de Messejana como cidadãos, talvez por que, em sua ótica, mal vivessem
em sociedade. A catequese, presente de maneira fundamental na política indigenista imperial
a partir da década de 1840, já era evocada como crucial para a civilização desses nativos,
"patrícios irmãos" agora comparados aos "selvagens" e ainda vivendo sob a tutela de um
diretor.

43
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos diretores de índios do Ceará. Fortaleza, 18 de maio de 1824.
APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 44. Grifo meu.
44
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo
regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006, p. 188-190.
45
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ao diretor de Messejana. Fortaleza, 4 de junho de 1824. Diário do
Governo do Ceará, Fortaleza, 30 de junho de 1824, p. 1. AN, IN, caixa 742, pacote 1. Grifo meu.
165

A cidadania só seria associada aos índios no Ceará a partir da década de 30 dos


oitocentos, justamente quando o Diretório começava a entrar em desuso. Em sessão de 25 de
janeiro de 1830, quando o Conselho Geral da Província sugeriu a supressão das vilas de
índios e a inclusão do patrimônio de suas câmaras ao novo Seminário, foram criticadas as
opressões que sofriam, "vivendo pelo Diretório sujeitos ao capricho dos ditos diretores,
quando aliás devem ser considerados como qualquer outro cidadão".46 Em dezembro do
mesmo ano, o deputado Sucupira propôs que o Diretório fosse aplicado somente no que não
ferisse a Constituição e, como argumento, chamou os "nativos índios" de "nossos patrícios e
concidadãos".47 É preciso que se faça referência ainda ao já citado parecer de 13 dezembro de
1831, onde o Conselho declarou que, por já estar o Diretório em desuso, os índios de
Messejana eram "considerados cidadãos brasileiros pela Constituição do império", mas
somente outra lei poderia privá-los da garantia criada no Antigo Regime português de isenção
de pagamento de foro.48
Curiosamente, em Messejana se deu o oposto do que ocorreu com os índios de Itaguaí.
Ali, como relata Vânia Moreira, dom Pedro I os declarou cidadãos e, por isso, sujeitos ao
tributo "como qualquer indivíduo de igual posição e qualidade”.49 As diferenças na aplicação
e interpretação das leis reforçam mais uma vez o forte caráter local do funcionamento
legislativo nos primeiros anos do Brasil independente. Por outro lado, sejam quais fossem os
interesses particulares, parecia comum o entendimento de que a extinção do Diretório –
declarada por dom Pedro junto ao Conselho de Estado em setembro de 1822 e só praticada no
Ceará cerca de 10 anos depois – e a confirmação dos índios "civilizados" como cidadãos do
império brasileiro decretava o fim da condição de tutela. Mas, se na vila do Rio de Janeiro o
objetivo maior era o aumento da arrecadação por meio dos foros, mesmo que se protegessem
as terras dos índios, no Ceará a cidadania só passou a ser associada ao fim do regime tutelar
pelo governo justamente com o objetivo de facilitar a invasão das propriedades desses
"miseráveis brasileiros". Não por coincidência, tais intentos também foram propostos pelo
Conselho Geral de Pernambuco em 1833, que pretendia extinguir os aldeamentos da província
e tornar os índios cidadãos, como mostra Sposito.50

46
Representação do Conselho Geral da Província. Fortaleza, 25 de janeiro de 1830. ATAS do Conselho Geral da
Província do Ceará: 1829-1835. Fortaleza: INESP, 1997, p. 164.
47
Proposta de José Ferreira Lima Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. Idem, p. 165-166.
48
Parecer do Conselho Geral da Província. Fortaleza, 13 de dezembro de 1831. Idem, p. 171.
49
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência –
Vila de Itaguaí, 1822-1836, p. 11.
50
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 100-101.
166

Para Moreira, a atribuição aos índios das condições de brasileiros e cidadãos constituía
muitas vezes um "procedimento de 'cima para baixo', de acordo com os interesses das elites
nacionais e locais", cujo processo poderia ser mais ou menos forçado. Foi imposta aos índios
uma transição autoritária e radical do Antigo Regime para a nova ordem: se antes
acumulavam "diferentes noções de pertencimento, identidades e lealdades – especialmente a
de índios, cristãos e súditos do reino", com a independência, passaram a assumir a
classificação de cidadãos brasileiros. O novo estatuto era utilizado pelos governos provinciais
como argumento para que os índios perdessem antigos privilégios ou para que o “direito
coletivo de domínio sobre as terras dos aldeamentos” fosse mais facilmente usurpado, nem
sempre proporcionando “vantagens compatíveis às perdas sofridas".51
A contraditória “igualdade” na cidadania era também imposta e, algumas vezes,
dispendiosa e prejudicial aos índios: a respeito da abertura de uma estrada geral em maio de
1824, por exemplo, o presidente Araripe declarou que os nativos de Arronches, por serem
"proprietários das terras deste termo", deveriam "abri-la com os foreiros, sem que antevenha
despesa da nação".52 Pelo menos neste caso, fazer parte da comunidade nacional em
condições de igualdade aos demais cidadãos não os isentava de serem onerados.
Em contrapartida, os índios que viveram este período tinham suas próprias concepções
e prioridades. Beatriz Perrone-Moisés nos convida a "buscar os termos ameríndios da política,
pois os termos de que dispomos deitam profundas raízes num campo radicalmente diferente
daquele que nos propomos a explorar".53 Mas além de possuir uma terminologia própria,
calcada em culturas e formas de ver o mundo muitas vezes intraduzíveis, os povos indígenas,
especialmente os aldeados do século XIX, também operacionalizaram os novos conceitos e
estatutos jurídicos a partir de suas demandas. Para Andreia Slemian, o pacto constitucional
não era letra-morta, pois existia “uma efetiva pressão de distintos setores da sociedade” que
encontravam “novas formas de reivindicação de seus anseios às novas instituições então
criadas, sobretudo após a independência”. Neste contexto, as relações entre Estado e
sociedade civil não eram unilaterais, apenas “de ‘cima’ para ‘baixo’”.54
O caso dos índios no Pará apresentado por André Roberto Machado é significativo
nesse sentido, já que, para eles, o reivindicar-se "brasileiros" era menos se opor aos europeus
51
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Deslegitimação das diferenças étnicas, "cidanização" e desamortização das
terras de índios: notas sobre liberalismo, indigenismo e leis agrárias no México e no Brasil na década de 1850.
Revista Mundos do Trabalho, v. 04, 2012, p. 83.
52
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe à câmara de Arronches. Fortaleza, 22 de maio de 1824. APEC, GP,
CO EX, livro 2, p. 55V.
53
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões: elementos de filosofia política ameríndia.
Revista de Antropologia (USP), v. 54, n. 02, 2011, p. 877
54
SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos?, p. 833.
167

a partir de uma identidade coletiva com os brancos nascidos na América e mais deslegitimar
as práticas que os obrigavam ao trabalho compulsório.55 Já os membros da comunidade
indígena de Itaguaí analisada por Vânia Moreira, por sua vez, chegaram a se entusiasmar em
1824 por se tornarem cidadãos e pela cobraça do foro. Citando o §1º do art. 2º da Constituição
se diziam também livres de tutela: revertiam, portanto, o quadro de prejuízos advindos com a
cidadania ao se apropriarem do vocabulário político da época de acordo com seus próprios
interesses.56 Outro exemplo foi o dos índios de Nova Almeida, no Espírito Santo, analisados
por Francieli Marinato. Queixando-se de serem forçados a trabalhar longe de suas terras e da
falta de pagamentos, clamaram em requerimento ao governo da província “por seus direitos
ofendidos”, tendo a “honra de se denominarem ‘cidadãos brasileiros’”.57
No Ceará um caso peculiar se deu com os índios de Monte-mor Velho, que haviam
sido transferidos à força para Messejana em 1826 por meio de uma manobra política de
autoridades de Aquiraz, ambiciosas em ocupar suas terras. Angustiados com o despejo, as
lideranças José Francisco do Monte, Manuel Batista dos Santos, Policarpo Pereira de Freitas,
Manoel Batista de Oliveira, Anselmo Pereira Lopes, Estevão Pinheiro da Rocha, João
Francisco Pereira "e mais índios naturais de Monte-mor Velho", denunciaram em 1831 ao
recém-coroado dom Pedro II aquilo que consideravam uma

"infração da Constituição do império, que no título 2º, artigo 6º, os declara cidadãos
sem a menor sombra de dúvida, porque são nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo
assim devem gozar todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos"

Citaram também o §6º do art. 179, que garantia a "conservação ou saída do Brasil,
guardados os regulamentos policiais, e salvo o prejuízo de terceiro", sendo "claro que nenhum
cidadão brasileiro pode ser obrigado a morar em certos e determinados lugares". Fizeram
referência ainda ao §22 do mesmo artigo, que assegurava o "direito de propriedade em toda
sua plenitude". Entendiam, portanto, que jamais poderiam ter sido "forçados a largarem suas
casas, os seus sítios, e as suas terras para serem exilados sem processo, sem sentença,
despótica e arbitrariamente". Após os argumentos, concluíram sua solicitação:

"Como felizmente o Brasil colocou no seu trono um monarca brasileiro, que fará a
felicidade do solo que o viu nascer, [...] requerem os suplentes à Vossa Excelência
que lhes conceda licença para se retirarem a seus lares, levando consigo a imagem

55
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 190 e 225.
56
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência –
Vila de Itaguaí, 1822-1836, p. 11-12.
57
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce
(Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007, p. 219-220.
168

de Nossa Senhora da Conceição: daquela matriz, que também se acha exilada na


matriz de Messejana".58

Impressiona a visão que os índios tinham do contexto político em que viviam. Mesmo
que o rei fosse apenas uma criança, não deixaram de tocar na "brasilidade" do novo monarca,
buscando em sua argumentação uma afetividade patriótica e também religiosa, com a
referência à imagem "exilada" de sua matriz de origem. Destaca-se ainda mais o minucioso
conhecimento do texto constitucional, demonstrando de forma clara o quão ilegal havia sido
sua transferência para Messejana. É provável que o requerimento tenha sido escrito por algum
terceiro disposto a ajudar na causa indígena, mas mesmo assim não deixaram de estar bem
municiados em seus argumentos através das leis e, principalmente, do novo momento
político. E até para que sua solicitação fosse plausível confirmavam sua indubitável adesão à
cidadania brasileira, não podendo, por isso, serem retirados de suas terras.
Chamam atenção ainda os argumentos utilizados para provar que eram cidadãos
brasileiros pela Constituição de 1824: além de nascidos no Brasil eram ingênuos, termo que
se referia aos filhos de escravos nascidos livres. Tal identificação possivelmente estava na
estreita ligação entre a cultura política e a memória dessas comunidades, associada ao passado
de cativeiro de seus antepassados e à liberdade adquirida. Em um período muito próximo, os
índios estudados por Moreira haviam se utilizado da Carta Magna brasileira para se
mostrarem cidadãos e, por isso, livres da tutela e com direito à posse irrestrita da terra. No
Pará, como vimos com Machado, a cidadania brasileira clamada pelos índios também se
opunha ao trabalho compulsório. Ainda que os de Monte-mor Velho não tocassem na questão
de serem ou não "tuteláveis", sua cidadania, oriunda do estatuto de liberdade historicamente
garantido, era condição irrefutável para que não pudessem ser usurpados de suas terras. O
Diretório, que em 1831 ainda não havia sido completamente abolido no Ceará, declarava que
os índios, mesmo que dirigidos, eram inquestionavelmente livres.
Como já abordamos, o fim do regime diretorial em território cearense na década de
1830 ocorreu de maneira danosa para os índios, ao facilitar a usurpação de suas terras. Poucos
anos depois, decretos foram promulgados incumbindo os juízes de órfãos de administrarem os
bens indígenas, reputando-os, portanto, incapazes, sobre quem o Estado deveria velar.59 Para

58
De José Francisco do Monte e demais índios de Monte-mor Velho a dom Pedro II. Messejana, sem data [julho
de 1831]. BN, C-750, 29. Grifo meu. Um ofício do vice-presidente do Ceará José de Castro Silva ao ministro da
Justiça Manoel José de Souza França faz referência ao requerimento dos índios de Monte-mor Velho em 28 de
julho de 1831. Cf. APEC, GP, CO EX, livro 14. BN, II-32, 24, 9.
59
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma
compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo,
1992, p. 25.
169

Eunice Durham, tal legislação aparentemente protetora “deve ser interpretada como um
recurso retórico indispensável para legitimar o caráter nacional do Estado integrando o índio
como súdito sob a ficção da proteção tutelar”.60 Segundo Fernanda Sposito, o ato aponta para
"para a condição de tutelados sob a qual eles viviam no Estado Nacional". A diferença em
relação ao regime anterior era que não havia mais tantas garantias políticas e territoriais.
"Nesse sentido, atenta-se para o fato de que a condição de tutela aos autóctones, embora possa
parecer sob a forma de proteção, na verdade configura-se muito mais como uma
institucionalização dos danos causados a eles".61 Ainda que seja discutível se isso se tratava
de uma condição tutelar, o fato é que, se os índios não podiam administrar seus bens, o
decreto atestava a incapacidade indígena. Não por acaso, os juízes por eles responsáveis eram
de órfãos.
A concretização desses danos a partir da administração dos magistrados se deu de
diversas formas, tendo em vista seu comprometimento com os grandes proprietários e sua
violenta expansão fundiária. Já próximo a meados do século XIX ganharam força os
argumentos governamentais que punham em cheque a própria condição do "ser indígena",
transformando-a novamente e facilitando o avanço do processo de usurpação. Não somente a
dispersão era usada como recurso discursivo para promover a incorporação dos territórios dos
índios,62 mas também a "'mistura' [...] desembocaria na ideia de assimilação, na transformação
do índio em não-índio". Como contam Dantas, Sampaio e Carvalho, ao apresentar
insistentemente a população indígena como dispersa e mestiçada, as autoridades regionais
visavam, "mediante a mistura de raças e culturas", descaracterizar "os sujeitos de direitos
históricos, dentre os quais o mais relevante era a posse da terra".63

60
DURHAM, Eunice Ribeiro. O lugar do índio. O índio e a cidadania. São Paulo: Comissão Pró-Índio/SP,
Editora Brasiliense, 1983, p. 14. Entretanto, diferente do afirma a autora, a tutela não necessariamente excluía a
cidadania, como vimos acima no caso dos índios de Monte-mor Velho. Cf. Ibid., p. 16.
61
SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros, p. 99-101.
62
Como vinha sendo levantada desde pelo menos a década de 1820.
63
Resultado do convívio entre os brancos, efetuado no plano biológico e cultural, o apelo à miscigenação como
elemento diluidor "se exacerba no decorrer da segunda metade do século", relacionando-se diretamente "com o
conjunto de dispositivos jurídicos, que, a partir da Lei de Terras (1850), disciplina a propriedade fundiária no
Brasil". DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos
indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 451-452. O
ápice desse momento no Ceará foi o famoso "Relatório da Extinção", quando em 1863 o então presidente
Figueira Junior declarou não mais haver índios na província, a partir de um critério de indianidade que restringia
a própria definição do "ser indígena". Cf. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas
das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 167-169. SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. O Relatório de 1863: um
documento, muitas leituras. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História, simpósio temático 36: Os
Índios na História. Fortaleza: 2009, p. 10.
170

As controvérsias em torno da relação entre a mestiçagem e a manutenção de direitos


originários indígenas vieram da década de 1840. Em fevereiro de 1844, o presidente do Ceará,
José Maria da Silva Bittencourt, respondeu ao subdelegado de Almofala, Luiz Antônio Gama,
a respeito de um ofício em que perguntava

"se os filhos legítimos ou naturais de índios ou índias com mistura de branca, cabra
ou negra devem ser considerados como índios, e com direito a vantagens que são a
estes concedidas por lei; cumpre-me dizer-lhe que, na conformidade das leis de 10
de setembro de 1611, 1º de abril de 1680 e 6 de junho de 1755 devem ser reputados
por tais e com direito às referidas vantagens, com a única exceção dos que
procederem de ventre cativo".64

O registro não esclarece a origem do conflito ou que vantagens seriam essas, mas pelo
conteúdo da legislação citada (que proibia a escravização indígena, a não ser por guerra justa,
e confirmava a liberdade dos índios) se infere que teriam a ver com o usufruto de sua mão-de-
obra. A questão do trabalho compulsório, portanto, não necessariamente se opunha ao
evidente destaque do avanço sobre as terras indígenas, tendo em vista que aquela população
desapropriada poderia se converter em força de trabalho barata aos potentados e ao Estado. A
diminuição dos índios registrados em livros de batismo e sensos populacionais na segunda
metade do século XIX, notada por Fátima Lopes e Maico Xavier,65 não era exclusivamente
um sinal da mestiçagem ou "desindianização" da população: o discurso da "mistura" também
servia a interesses econômicos e fundiários.
Com coloca Carlos Guilherme do Valle, mesmo com o fim dos aldeamentos, as "terras
deveriam continuar legalmente para usufruto e subsistência dos índios e seus descendentes,
pois não tinham abandonado o lugar onde habitavam tradicionalmente", assim como
esclareceu o presidente Bittencourt. A pergunta do subdelegado Gama reflete o contexto de
desrespeito generalizado a essas e outras garantias, "já que a definição de um sujeito de direito
dependia evidentemente de assertivas culturais e posições políticas, menos de um critério
legal exclusivo e absoluto". O que estava em jogo – quando se debatia o estatuto jurídico das
terras de aldeamento, a validade das leis e mercês antigas e se os "misturados" tinham acesso

64
De José Maria da Silva Bittencourt a Luiz Antônio Gama. Fortaleza, 28 de fevereiro de 1844. APEC, GP, CO
EX, livro 65, p. 7V.
65
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o Diretório
pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 442. XAVIER,
Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", 198-223.
171

a elas – era a ontológica questão se "as autoridades reconheciam ou não a presença de índios
no Ceará".66
Acerca dessas "culturas de contato" que se formaram ao longo da história do Ceará e
do Brasil, oriundas da convivência cada vez mais intensa dos índios com outros grupos
étnico-sociais, Maria Sylvia Porto Alegre relaciona-as com a flexibilidade, fluidez e
capacidade dessas comunidades em continuarem existindo e, algumas vezes, permanecendo
em seus lugares de origem.67 A desenvoltura desses grupos em lutar e se articular
politicamente, no entanto, não se manifestava apenas pela mestiçagem, e a própria pergunta
do representante da política de Almofala tem provável origem da mobilização dos índios.
Como mostra do Valle, a documentação do período entre as décadas de 1850 e 1870 é repleta
de exemplos de "representações" de comunidades que lutavam por seus interesses, 68 a partir
de definições próprias dos direitos que tinham e do que para elas significava "ser indígena".

4.3. ATACÁ-LOS COM BRANDURA, MATÁ-LOS COM PRUDÊNCIA

Os chamados "gentios"69 foram os que mais despertaram o interesse da historiografia


sobre a primeira metade do século XIX. Protagonistas das conhecidas cartas régias de guerra
justa, eram importantes obstáculos aos projetos de expansão das fronteiras internas, ocupação
de novas áreas para plantio e construção de rotas de circulação. Apesar da ofensividade com
que agiu o governo imperial português, especialmente a partir de dom João VI, as
recomendações de tratamento dessas populações e a forma como eram classificadas pela
Coroa também tiveram variações profundas. Uma delas estava na importância estratégica da
região que ocupavam para a economia e política lusitanas. Como já vimos no primeiro

66
VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: um
exercício de antropologia histórica. In: VALLE, Carlos Guilherme do. SCHWADE, Elisete. Processos sociais,
cultura e identidades. São Paulo: Annablume, 2009, p. 56.
67
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Aldeias indígenas e povoamento do Nordeste no final do século XVIII:
aspectos demográficos da “cultura de contato”. In: Anais do XVI Encontro Anual da ANPOCS, GT História
indígena e do indigenismo. Caxambu: 1992, p. 17.
68
VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 64.
69
Entre os séculos XVIII e XIX, o significado de “gentio” ia desde “idólatra” a “bárbaro”. Cf. BLUTEAU,
Rafael. SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu
Ferreira, tomo I, 1789, p. 658. PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto:
Tipografia de Silva, 1832. No Ceará do final dos setecentos e início dos oitocentos, o vocábulo era utilizado bem
mais no seu sentido civilizatório do que religioso, tendo em vista que se referia a povos não-aldeados, mas que já
haviam passado por longos anos de catequese, não sendo, necessariamente, “pagãos”. Como veremos a frente, o
bispo Azeredo Coutinho chama-os “índios bárbaros”, e não “idólatras”. Emprego o termo “gentio” não como
uma forma de reproduzir os preconceitos das fontes trabalhadas, mas para distingui-los dos chamados “índios”
ou “indígenas”. Estes, por sua vez, tratavam-se de povos diferentes e que, em suas próprias manifestações, não
se identificavam com os primeiros. Além disso, é difícil saber os termos que os próprios gentios usavam para se
identificar.
172

capítulo, onde foi aplicada a Carta Régia de 1798 os recém-descidos estavam sujeitos à tutela
dos juízes. A necessidade de um texto legal que tratasse, entre outros assuntos, de uma nova
política de descimentos – com o enfrentamento, controle e aproveitamento dos gentios – já
indica a postura que passou a ter o império lusitano com as áreas a serem exploradas, com o
pretendido desenvolvimento comercial e com os grupos que lá habitavam. Segundo Marco
Morel, o próprio foco territorial das Cartas Régias contra os botocudos indica o deslocamento
do eixo de poder no Brasil para o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.70
Os etnônimos mais frequentes em território cearense eram os oés, umãns, xocós e
quipapáz, habitantes da chapada do Araripe, região do Cariri. Sua situação e a de outros
grupos que viviam nas fronteiras entre Ceará, Pernambuco, Paraíba e, provavelmente, também
o Piauí71 era bem diferente da dos chamados "botocudos" dos sertões do leste por conta do
que essa região representava para os planos imperiais portugueses. De acordo com os
resultados preliminares da pesquisa de Ricardo Pinto Medeiros e Demétrio Mutzenberg, a
"presença e circulação de etnias não aldeadas do semiárido", em um espaço bastante vasto ao
longo do século XVIII, indicam que “esta região ainda não havia sido completamente
conquistada pelos colonizadores".72 Para Carlos dos Santos Junior, a presença desses grupos
na primeira metade do XIX nessa região se explica pela desorganização do trabalho
missionário sob o regime do Diretório e da exploração de sua mão-de-obra. Com a expansão
da pecuária, os proprietários passaram a disputar com os índios o acesso às escassas fontes de
água doce.73
Este "vazio" na conquista territorial perdurou por mais tempo, atravessando os
oitocentos, como ficou registrado pela documentação, o que significa dizer que os interesses
imperiais portugueses e brasileiros na exploração econômica dessa zona de fronteira eram
bem menores. Por isso, as soluções para os eventuais conflitos ocorridos entre gentios,
vaqueiros e proprietários se davam de maneira localizada, envolvendo, quando muito, os
governos das capitanias e províncias.

70
MOREL, Marco. Apontamentos sobre a questão indígena e o mosaico da população brasileira em 1808.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 169, n. 439, 2008, p. 282.
71
O mapa etnográfico de Curt Nimuendajú indica a presença do etnônimo "kariri" no Piauí, próximo à fronteira
com Pernambuco e a Bahia. Cf. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes adaptado do mapa de
Curt Nimuendajú (1944). Brasília: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1980. Os xocós
aldeados na Cachorra Morta na década de 1850 empreendiam constantes fugas, algumas vezes para o adentrando
o território piauiense. Cf. VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no
Ceará do século XIX, p. 58.
72
MEDEIROS, Ricardo Pinto. MUTZENBERG, Demétrio. Cartografia histórica dos povos indígenas em
Pernambuco no século XVIII. Clio Arqueológica, v. 28, n.º 2, 2013, p. 10 e 14.
73
SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia,
legislação, política indigenista e os povos indígenas no sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2015, p. 77.
173

As relações que os grupos estabeleciam com a sociedade colonial eram, assim como
ocorria em outras regiões do Brasil, flexíveis e flutuantes. As situações de tensão com
moradores dos sertões eram intercaladas com períodos pacíficos, e não se conhece qualquer
ação ofensiva de grande porte organizada por parte do governo imperial português contra eles.
Houve inclusive momentos de aproximação por iniciativa dos próprios gentios, como quando
o bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho – entusiasta das virtudes e defensor dos índios do
Brasil74 – intermediou uma ação dos "índios bárbaros dos sertões de Pernambuco e do Ceará",
que depuseram suas armas aos pés do rei "em sinal da sua obediência e da sua fidelidade".
Através de uma carta escrita entre 1802 e 1806, o bispo conta que aqueles gentios, "restos dos
antigos bárbaros", já haviam sido sujeitos à dominação de Portugal, mas se rebelaram
novamente.75
Quando chegara ao bispado, em 1794, recebera pedidos de comandantes locais para
fazer a guerra contra eles, ao que se negou por acreditar que "o único meio que há para domá-
los são as armas da beneficência e caridade, que formam o caráter e a base da nossa santa
religião". Carlos dos Santos Junior conta que em 1801 foi organizada uma “’bandeira’ para
extinção do ‘gentio’” pipipã e xocó nas ribeiras do Pajeú, Moxotó e riacho do Navio,
próximos à fronteira com o Cariri cearense. Segundo o autor, por mais que o governo
recomendasse bons tratamentos, as bandeiras “não perderam o seu caráter violento, pois
aqueles que as executavam eram homens experimentados em combates com os índios desde
meados do século XVIII”.76
Por isso, o bispo organizara uma missão de catequese liderada pelo missionário
barbadinho italiano frei Vital de Frescarolo, "de uma grande utilidade para Igreja e para o
Estado, [...] feita sem derramar nenhuma gota de sangue". Por meio de uma carta do religioso
de 1802 soubera que os índios deram como motivo da rebelião os maus tratos que vinham
recebendo de moradores havia mais de 20 anos, "que até os fizeram recolher em um pátio
debaixo do pretexto da religião, [e] os fizeram passar a espada".
Os povos a que se refere Coutinho, "ainda que poucos em número", eram "restos de
quatro diferentes nações bárbaras" que viviam em revoltas e fugas, levando armas e bagagens,
"queimando searas e plantações, sem perdoar nem ainda as vidas mais inocentes". O temor do
bispo era tamanho que chegou a fazer referência a Santo Domingos, que acabara "de dar ao

74
Cf. SIQUEIRA, Antônio Jorge. Bispo Coutinho e o Clero ilustrado de Pernambuco na Revolução de 1817.
Revista Brasileira de História das Religiões, ano V, vol. 14, 2012, p. 164.
75
CARTA do bispo d. José Joaquim de Azeredo Coutinho sobre os índios da capitania. Revista do Instituto do
Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XI, 1897, pp. 124-128. Salvo indicação em contrário, as citações nos
próximos parágrafos pertencem a esse documento.
76
SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 82-84.
174

mundo um exemplo terrível destas surpresas", e se os índios não fossem logo contidos
serviriam de "ponto de ajuntamento e apoio a negros fugidos e ainda dos brancos
descontentes". A intenção do bispo, portanto, era que a Coroa aceitasse a iniciativa de
aproximação dos indígenas, que renderam armas e ofereceram "os pobres trastes de seu uso e
de seus enfeites, que consistem em uma coberta, um par de sandálias e dois alforjes fabricados
por eles mesmos, e duas pedras de tintas a que chamam tauá, com que se pintam ao seu
modo". Ao fim da carta, rogou ao rei que os pusesse debaixo de sua alta proteção, assinasse
terras para cultivarem e fornecesse ferramentas, "ficando, entretanto, conservados debaixo da
direção dos ministros da religião até que eles percam as saudades da barbárie, e se façam aos
costumes dos povos civilizados".
À época em foi escrita a carta, tanto Pernambuco quanto o Ceará seguiam as
determinações do Diretório dos Índios, e daí as especificidades do último pedido do bispo. O
epíscopo não tinha autoridade para alterar a lei, e por isso não pretendeu acabar com o cargo
dos diretores. Contudo, sua solicitação de que os mesmos fossem exclusivamente membros da
Igreja indica, em primeiro lugar, sua posição contrária a submeter a administração dos
indígenas a leigos – ou seja, moradores com quem viviam historicamente em conflito. Em
segundo, havia prováveis ambições do bispado de Olinda de novamente ter mão-de-obra à sua
disposição, de forma semelhante do que ocorria antes do período pombalino.
Apesar de relações tão tensas, o posicionamento dos gentios não era unicamente de
rebeldia: a própria deposição das armas aos pés de dom João VI foi uma busca de proteção
contra as investidas que sofriam. Pela oferta de objetos ligados ao seu cotidiano também é
possível supor que sua história não se constituía apenas de isolamento com outros grupos,
mas também era marcada por encontros intermitentes. Junto com duas pedras tauá, expressão
de hábitos ancestrais que ainda perduravam, as sandálias e os alforjes feitos por eles talvez
indiquem a influência que receberam desde quando eram sujeitos ao domínio português.
Segundo Santos Junior, humãs e oés já haviam passado por aldeamento, tinham nomes em
português e até chegaram a receber patentes militares.77 Para o autor, os próprios índios
buscavam muitas vezes transformar-se em vassalos do rei de Portugal – conseguindo a
proteção da Coroa em relação às bandeiras que sofriam –, como foi o caso da criação da

77
SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 87-88.
175

aldeia do Olho d’Água da Gameleira pela qual foram corresponsáveis, junto ao frei Vital de
Frescarolo.78
Ou seja, como afirma Bárbara Sommer, a fronteira entre o que era ser aliado ou
inimigo, índio ou gentio, era frequentemente atravessada por esses grupos a partir das
especificidades das situações que enfrentavam.79 As próprias guerras que eventualmente
impetravam não era feita contra o que não conheciam, uma vez que, como aponta Perrone-
Moisés, muitos desses povos "já haviam passado por experiências de aldeamento e aliança e
sabiam, portanto, exatamente contra o quê lutavam".80
Além da missão do frei Frescarolo, localizada em território pernambucano,81 há a
indicação, segundo Guilherme Studart, de que em 5 de maio de 1809 o "governo de
Pernambuco enviou também frei Ângelo, frade da Penha, [...] para catequizar e aldear os
índios xocós, residentes no termo do Jardim".82 Dez anos depois, durante o governo de
Manuel Ignácio de Sampaio, foi organizada uma bandeira de ataque aos chamados "gentios
do Pajeú", liderada por Gregório do Espírito Santo, proprietário na comarca do Jardim.
Formada em resposta aos prejuízos agrícolas sofridos em consequência das incursões desses
grupos, chegou ao fim com uma proposta de aldeamento dos próprios gentios, só então
chamados pelo governador de "índios".83 A Coroa também buscou formas de aproximação
pacífica com esses grupos, como já vimos no capítulo 3 através da provisão da Relação do
Maranhão, aplicada também no Ceará a partir de 1815. Pelas suas determinações, os gentios
"que estive[ss]em em paz" deveriam ser tratados da mesma "maneira que se observa com
todos os outros meus vassalos", em tom oposto ao que foi dirigido aos botocudos.84
As fronteiras entre o "ser selvagem" e o "civilizado" eram tão porosas que a própria
monarquia lusitana se dirigia aos gentios como "vassalos em potencial", que poderiam, se

78
O autor destaca que a presença de capuchinhos italianos nos sertões do Pajeú é uma “informação nova, pois o
fato conhecido era que o retorno do trabalho missionário de ordens religiosas no Brasil aconteceu na década de
1840”. Cf. Ibid., p. 90-91.
79
SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil,
1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 174.
80
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A32.
81
Cf. INFORMAÇÕES sobre os índios bárbaros dos sertões de Pernambuco: ofício do bispo de Olinda
acompanhado de várias cartas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:
Tipografia Universal, tomo XLVI, parte I, 1883.
82
STUDART, Guilherme. Administração Barba Alardo. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia
Minerva, tomo XXII, 1908, p. 336. Esta primeira intenção de aldeamento no século XIX não obteve sucesso. Cf.
VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades e aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX, p. 57.
Acerca da atuação dos freis italianos Vital de Frescarolo e Ângelo Maurício de Nisa em Pernambuco, vide:
SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 113-123.
83
Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 360-370. Esta é mais uma prova de que, neste
contexto, a fronteira entre o “gentio” e o “índio” estava bem mais na civilização do que na religião.
84
Registro da Provisão e Regimento da Relação da Casa de São Luís do Maranhão. Fortaleza, 20 de março de
1815. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro sem número (1813-1818).
176

quisessem, se submeter às leis e proteções oferecidas aos súditos portugueses. No caso dos
conflitos do tempo do governador Sampaio, bastou um indicativo de aproximação por parte
do grupo para que deixassem de ser os "atrevidos gentios do Pajeú" e se tornassem "índios".
Segundo Perrone-Moisés, tais categorias mostram que não existia para os colonizadores
"índios genéricos", mas grupos “que contracenavam com a presença europeia de modo
diverso" e que se alteravam constantemente a partir de suas ações, obrigando, por sua vez, ao
projeto civilizador a assumir diferentes feições.85
Como afirma Marco Morel, as situações de confronto conviviam e eram simultâneas a
momentos de encontros e aproximações. O autor cita o caso do soldado Raimundo Ferreira de
Araújo, desertor da 7ª Divisão do Rio Doce que se refugiou entre os botocudos para não ser
punido.86 Também no Ceará houve exemplos semelhantes quando, durante a Revolução de
1817, insurgentes fugitivos se esconderam junto aos gentios,87 concretizando o que alertara o
bispo Coutinho. Uma hora faziam guerra, em outra se aldeavam, davam auxílio aos inimigos
do rei e pediam sua proteção: as ações aparentemente inconstantes desses grupos revelam a
complexidade de sua atuação política, manejando sua imprensada liberdade entre os distintos
agentes com quem se relacionavam. Como afirma Jóina Borges, a autonomia indígena sobre
um território diante da dominação colonial europeia dependia, sobretudo, das negociações
políticas que estabeleciam entre diferentes atores, muitas vezes fluidas e pouco duradouras.88
Nutrindo-se do outro para elaborar seu ser, a máquina social indígena, segundo Guillaume
Boccara, também se recriava a partir das variadas situações de contato.89
As relações dos gentios com a sociedade envolvente permaneceu constante com a
independência,90 e até se tornaram amenas, de acordo com Morel, diante das tentativas de

85
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A31. Interessante sobre essa questão era a
classificação de "semi-mansos" atribuída a alguns kaingangs do Paraná, que viviam de forma pendular entre as
matas e as vilas. Cf. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os
indígenas do planalto meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de
Santa Catarina, 2012, p. 261.
86
MOREL, Marco. Apontamentos sobre a questão indígena e o mosaico da população brasileira em 1808, 399-
400.
87
Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 361-362. Em agosto de 1817, após o fim dos
conflitos, pipipãs e xocós batizados – e, ainda assim, chamados de “gentio bárbaro” – de Pernambuco atacaram a
Vila de Flores. Cf. SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p.
97.
88
BORGES, Jóina Freitas. Os senhores das dunas e os adventícios d'além-mar: primeiros contatos, tentativas
de colonização e autonomia tremembé na costa leste-oeste (séculos XVI e XVII). Tese (doutorado) –
Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 257-258.
89
BOCCARA, Guillaume. Antropologia diacrónica. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005. Disponível em:
<http://nuevomundo.revues.org>, p. 5.
90
Após a independência, o termo gentio some na documentação aqui analisada, talvez por ser mais próprio do
Antigo Regime, e é substituído geralmente pela expressão "índios selvagens". Francieli Marinato encontrou o
termo “gentio” em documento do Espírito Santo de 1825 referente aos botocudos. Cf. MARINATO, Francieli
Aparecida. Índios imperiais, p. 125.
177

aproximação da então Coroa brasileira, que buscava também por vias pacíficas a integração
dos índios à ordem nacional.91 Estes, por sua vez, também iam ao encontro dos não-índios
quando precisavam e até se posicionavam diante das novas conjunturas políticas. Exemplo
disso foi a estadia de 4 meses dos botocudos em Vitória analisada por Francieli Marinato,
exigindo do governo do Espírito Santo sua transferência de aldeamento, e suas constantes
relações com os quartéis da região do rio Doce.92
Já os índios do Cariri, assim como se envolveram nos conflitos de 1817 –
demonstrando apoio aos liberais que acolheram em seus acampamentos –, há registros de que
em 1831 também tiveram participação nos eventos que deram origem à chamada Revolta de
Pinto Madeira, que exigia a volta de dom Pedro I ao trono. De acordo com os vereadores do
Jardim, após a aclamação de dom Pedro II houve resistência e ameaças de prisões por parte da
câmara municipal do Crato, o que provocou a reação de várias pessoas em defesa do novo
regime no dia 7 de junho. Entre estes, "uma porção de índios em número de cinquenta, os
quais se achavam na vizinhança desta vila dizendo que vinham defender a bandeira do seu rei,
e que tinham muita gente de diversas nações, a quem já faziam aviso para se incorporarem".
O movimento teria sido acalmado somente após se fazer uma "aclamação do Senhor Dom
Pedro II".93
É difícil saber as motivações claras para o apoio dos índios ao novo monarca e o que
estava em jogo quando se posicionaram contrários aos liberais do Crato, mas ainda assim sua
manifestação revela tanto a capacidade de articulação que tinham com outros povos nativos,
que habitavam regiões próximas e seriam por eles convocados, quanto sua percepção do
momento político em que viviam. Mesmo não sendo aldeados, consideravam-se vassalos da
Coroa e levantaram naquele momento a bandeira do novo rei que chamavam de "seu". Mas,
apesar dessa demonstração de fidelidade a dom Pedro II, há um registro de que chegaram a
estabelecer contatos com membros do movimento restaurador. Em carta de 3 de julho de 1831
destinada ao capitão-mor do Jardim Pedro Tavares Muniz, o tabelião Venceslau Patrício de
Oliveira Castro reclamava de ser acusado de liberal e contava suas pretensões de se mudar
para o Icó, por não querer "mais morar nessas nova Lisboa aonde me reputam criminoso só
por que amo minha pátria e meus patrícios". Ao final do escrito, disse que um certo Pinto –
não esclarecendo se o mesmo seria Joaquim Pinto Madeira, líder da revolta do ano seguinte

91
MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado.
Dimensões, v. 14, 2002, p. 92-99.
92
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais, p. 138-139, 171-172.
93
Da câmara da vila de Jardim a José de Castro e Silva. Jardim, 24 de junho de 1831. AN, AA, IJJ9 513.
178

em prol do retorno de dom Pedro I ao trono – havia ido "para o Corrente [localidade próxima
ao Jardim] a visitar os tapuios".94
A facilidade dos contatos com os índios, a participação deles nos movimentos
políticos em diálogo com diferentes lados, e mesmo o conhecimento que tiveram das
novidades envolvendo a câmara cratense em 1831 denotam que a presença dos índios nos
espaços urbanos das vilas da região não era incomum. É revelador a esse respeito o relato do
inglês George Gardner sobre o Crato em sua passagem pela região do Cariri no ano de 1838,
cuja população seria composta, em sua maioria, de indígenas ou de seus descendentes
mestiços.95 Segundo o viajante, os índios também eram vistos vendendo uma fruta chamada
puçá nas ruas da vila.96 Não é possível, entretanto, afirmar com certeza que tais índios
descritos por Gardner sejam os mesmos nômades que transitavam nas fronteiras das então
províncias do Ceará, Paraíba e Pernambuco. Poderiam ser os próprios habitantes pobres da
vila, constados nos censos populacionais e registro de batismos como "mamelucos", "cabras"
ou "pardos", descendentes das comunidades indígenas aldeadas no século XVIII na antiga
Missão do Miranda que dera origem ao Crato. Por outro lado, apesar de não ficar claro no
relato, não se pode descartar também a possibilidade de que tais vendedores de puçá fossem,
de fato, silvícolas que negociavam tais produtos oriundos das matas onde viviam, criando
gradativamente afinidade com relações comerciais.97
Gardner se refere de forma mais direta aos "selvagens" em seu relato quando fala de
duas pequenas tribos de índios não civilizados vivendo no distrito da Barra do Jardim, que
iam rapidamente diminuindo em número. Uma delas, chamada de humões, era formada por
cerca de oitenta pessoas residindo geralmente a sete léguas a sudoeste da vila, e o outro grupo
eram os xocós, em torno de setenta indivíduos localizados a treze léguas para o sul. Segundo
o viajante, eram geralmente inofensivos, apesar de terem sido vistos roubando gado em uma
94
De Venceslau Patrício de Oliveira Castro a Pedro Tavares Muniz. Jardim, 3 de julho de 1831. AN, AA, IJJ9
513. Baseando-se em João Alfredo Montenegro, Dantas, Sampaio e Carvalho afirmam que os "índios da vila de
Santo Antônio do Jardim, no Ceará, aderiram ao discurso restaurador do padre Antônio Manuel e de Pinto
Madeira, integrando-se, em 1832, às fileiras rebeldes de mais um movimento que se batia pela volta de Pedro I
ao trono". Cf. DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os
povos indígenas no nordeste brasileiro, p. 448. Entretanto, Montenegro apenas assevera que a revolta foi
protagonizada por “populações marginalizadas, formadas por remanescentes indígenas e por mestiços”, e que o
“universo cultural dos índios cariris [...] formavam a base sobre a qual se ergueu a organização social daquela
gente”. Na verdade, o autor não afirmou e nem apresentou nenhuma prova documental de que os índios
participaram dos conflitos. Cf. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. A revolta de Pinto Madeira no Ceará:
participação dos segmentos sociais marginalizados. In: ANDRADE, Manuel Correia de. Movimentos populares
no Nordeste no período regencial. Recife: FUNDAJ, Editora Massananga, 1989, p. 30. A pesquisa para esta
tese só encontrou sobre o assunto os dois manuscritos citados.
95
GARDNER, George. Travels in the interior of Brazil. Londres: Reeve Brothers, 1846, p. 186.
96
Ibid., p. 198.
97
De maneira semelhante aos botocudos de 1808 no Espírito Santo estudados por MOREL, Marco.
Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado, p. 105-107.
179

fazenda vizinha a um local que visitara. Dizia-se que eram sujos nos seus hábitos, que quando
lhes faltava comida se alimentavam de cascavéis e outras cobras e que ocasionalmente
apareciam na vila.98 A forma como Gardner descreveu a proximidade em que viviam de
ambientes urbanos, como Crato e Jardim, faz supor que, pelo menos até então, as relações que
os humões e xocós estabeleciam com os moradores da região eram relativamente diferentes
do que ocorria à mesma época em outros lugares do Brasil, com constantes guerras e
escravizações ilegais.99 Apesar do histórico de conflitos com moradores, das acusações de
roubo e das formas depreciativas com que tratavam seus costumes, também eram vistos nas
vilas, participaram de movimentos políticos e eram "visitados" por aqueles que precisavam de
seu auxílio.100
Outro exemplo da proximidade desses grupos com os moradores das vilas do Cariri foi
registrado por Freire Alemão, a partir do relato que colheu da cunhada de Franklin de Lima,
que o hospedou em sua passagem por Fortaleza em 1860.101 Segundo ela, seu avô havia sido
“capitão de bandeira desses índios” e, como os tratavam “com humanidade”, não atacavam
suas reses, “porém fazendo estragos nos gados das fazendas vizinhas”. Costumavam
frequentar sua propriedade “e pediam para [festejá-lo] com suas danças, cantos e música, e
[disse] a senhora que não deixava de ser coisa engraçada. Andavam todos nus, trazendo
apenas uma tanga”. Somente as meninas podiam entrar na casa “pela indecência com que os
homens se mostravam”. Elas vestiam tecidos de fios de cruá, “tintos de várias cores”, se
enfeitavam com laços de fita da casca da mesma planta e com pinturas no corpo.
O relato provavelmente se refere a um período mais ou menos próximo à visita de
Gardner pelo Cariri, e atesta que tais grupos não viviam isolados e nem totalmente arredios
aos não-índios. Seu modo de vida lhes permitia manter diversos elementos de sua cultura ao
mesmo tempo em que estabeleciam uma relação estável com um fazendeiro. Apesar dos
detalhes apresentados, várias questões são nebulosas no registro, como o que era a posição de
“capitão de bandeira” do avô da depoente ou os motivos das visitas. Para os índios,
possivelmente havia expectativas de ganhos de alimentos e de proteção contra outros
proprietários. Já o capitão, que os tratava com complacência e hospitalidade, talvez esperasse

98
GARDNER, George. Travels in the interior of Brazil, p. 218.
99
Cf. SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo, p. 28-29.
100
O atual distrito de Corrente, localizado no município de Jardim e onde os "tapuios" foram visitados em 1831,
se localiza a 82 km ao sul do Crato, com indicação semelhante ao que Gardner apontou como morada dos xocós.
Portanto, os mencionados "tapuios" eram, possivelmente, os mesmos xocós descritos pelo viajante inglês.
101
ALEMÃO, Francisco Freire. Papéis da expedição do Ceará. Fortaleza, 23 de maio de 1860. Apud: Anais da
Biblioteca Nacional: os manuscritos do botânico Freire Alemão [catálogo e tradução por Darcy Damasceno e
Waldir da Cunha]. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, vol. 81, 1961 [1964], p. 313-314. Salvo
indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.
180

agregá-los como mão-de-obra. Por exemplo, a declarante ressaltou que as “índias apareciam
muitas vezes a casa” e, “sem serem percebidas, mostravam-se de repente entre elas
acocoradas”. Duas “indiazinhas” chegaram a trabalhar na residência da família quando esta se
mudou para Fortaleza.

“uma criou-se muito gordinha, era muito inteligente e servia muito bem, e fugiu de
casa [...] provavelmente aconselhada; a outra logo que chegou à casa começou a
cobrir-se de um fuá (caspa) e a emagrecer até que morreu, o que foi atribuído a
mudança de alimentação”.

Adoeciam com comidas temperadas, e “quando se matava rês”, as duas levavam


pedaços

“muito satisfeitas, conversando em sua língua, para a cozinha, lançavam a carne


sobre as brasas e apenas sapecadas, e sem sal, a devoravam sôfregas. Comiam
qualquer qualidade de bichos; era para elas quando apanhavam um calango
(lagartinho) uma festa; lançavam-no no fogo inteiro com tripas e o devoravam”.

A realidade dessas índias em Fortaleza nos fornece elementos para analisar as


transformações que sua comunidade de origem enfrentava. O diálogo entre as duas na própria
língua é mais um exemplo de uma cultura que ainda conseguia, a duras penas, manter
diversos aspectos particulares, mas que se degradava, como sugere a própria necessidade de
servir a família do capitão como criadas na capital. Nesse período, que correspondia
aproximadamente à década de 1840, a crise de mão-de-obra era assunto constante nos
relatórios dos presidentes da província do Ceará, que motivou, inclusive, a reativação do
Diretório. Com tais dificuldades e evitando gastos com a compra de escravos, era bem menos
dispendioso integrar as duas indiazinhas como serviçais. O relato não informa como se deu a
negociação com a comunidade indígena para que as duas pudessem ir para Fortaleza. Mas
mesmo que esse processo tenha sido tranquilo, por conta da boa relação entre os índios e o
capitão, a vida delas na capital certamente piorou bastante.
A declarante nem sequer mencionou o nome das “indiazinhas” – provavelmente ainda
crianças ou adolescentes – e não demonstrou ter havido qualquer comoção quando uma delas
morreu. A outra que fugiu, mesmo que tenha sido “aconselhada” para tal, o fez porque se via
insatisfeita, e seu destino foi simplesmente ignorado. Os hábitos alimentares das duas não
eram apenas exemplos de “costumes exóticos”, mas denotam que as condições de subsistência
da comunidade de onde vieram eram bem precárias, como também observou João Alfredo
181

Montenegro.102 Isto se conecta aos ataques ao gado de proprietários mencionado no início do


relato, prática que indica a piora de suas condições de vida e o aumento dos conflitos
armados.

A pátria agreste e os dissabores da sociedade

A situação desses grupos se encrudeleceu no mesmo período da passagem de George


Gardner pelo Cariri, provavelmente simultânea à época descrita no relato registrado por Freire
Alemão. O relatório do presidente da província do Ceará João Antônio de Miranda em 1839
abordou a progressiva desolação dessa população, cuja diminuição numérica, já apontada no
relato do viajante inglês, era claro sinal da piora de suas condições de vida. Segundo Miranda,
esses índios errantes que habitavam próximos às localidades do termo de Jardim, como
Macapá (atual Jati) e Carnaúba, faziam "inúmeros prejuízos aos criadores da vizinhança,
inclusive os de Pajeú". Nenhum dos esforços feitos para civilizá-los havia logrado resultado, a
exemplo da missão do já citado frei Ângelo, enviado em 1809 pelo governo de Pernambuco e
que "apenas os pôde conservar por alguns meses em aldeia" na serra da Baixa Verde, assim
como algumas iniciativas particulares. O terreno que habitavam não lhes era propício,
vivendo de pesca e caças escassas, "chegando apenas para o tabaco, de que são mui
apaixonados, o pouco mel e cera que apanham, donde se deduz não haver vantagem alguma
que os convide a se aldearem". Recebera informações de que seriam em torno de "vinte e
cinco homens de arco, além de mulheres e meninos", mas, por seu agrupamento ser antigo,
acreditava que o número deveria ser maior.
Lamentando seu destino, acreditava que, por tudo que já passaram e por todas as
tentativas de reduzi-los já praticadas, somente a religião era capaz de levá-los à civilização.
Eles já teriam a "ideia de um aldeamento, ou de uma povoação", mas, como a "ingratidão dos
lugares por onde erra[vam] não tolera[va] sua reunião e seu repouso", e era condenável sua
expulsão pelas armas "dessa pátria agreste, que não ousa[vam] trocar pelos dissabores da
sociedade", sugeria que o melhor caminho era chamá-los para as proximidades do Jardim por
meio de "afagos" e do "evangelho". Mesmo que fosse preciso arcar com grandes despesas
para a montagem de uma missão, a situação desses povos era tão dramática que as ações se
faziam justas e necessárias. Se sua vida nessa "pátria agreste", ainda que tão rígida, não era

102
MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. A revolta de Pinto Madeira no Ceará, p. 30.
182

trocada, a dimensão dos "dissabores" de viver em meio a sociedade dos não-índios deveria ser
bem maior, como reflete Miranda:

"Que importa, porém, senhores, que arranquemos esses infelizes dos sertões em que
vagam, se por ventura lhes não oferecermos vantagens que os façam arrepender da
permuta? Se hão de vir entre nós passar a vida miserável, que carregam os seus
irmãos civilizados, os descendentes de outros índios; se hão de vir ser espectadores e
vítimas do desleixo, do abandono, da pilhagem, melhor será então deixá-los
entregues à sua vida selvagem, fazendo-os internarem-se por esses extensos
bosques, ou tirando-lhes pela força os meios de nos fazerem prejuízos"103

Apesar da aparente empatia do presidente com a difícil situação dos índios, os


referidos bosques já não eram mais tão extensos. Segundo Santos Junior, o “acesso à água foi
a razão dos muitos conflitos” ocorridos entre índios e proprietários desse sertão na primeira
metade do século XIX, em que competiam o controle de ribeiras, riachos, serras e
nascentes.104 Mas a aspereza do ambiente em que viviam não vinha apenas do clima ou
geografia do lugar: as dificuldades de encontrar alimentos (que os fazia recorrer a cobras e ao
pouco mel) e os roubos de gado que eventualmente praticavam – também relatados por
Gardner e Freire Alemão – indicam o desmatamento provocado pelo aumento populacional e
da extensão das propriedades na região, tendo como consequência a escassez de recursos
naturais.
Espremidos nos espaços cada vez menores e mais áridos que lhes restavam, o
abandono, lamentado por Miranda, não era só relativo à subsistência ou a uma classificação
formal de ser ou não vassalo e cidadão. O pessimismo do presidente, inerte diante de um povo
que definhava por resistir à lógica de expansão fundiária de proprietários aparentemente mais
poderosos que ele, "lavou as mãos" para uma conjuntura que, praticamente, assumiu como
sem solução. Declarava, portanto, que não tinha condições de remediar tanto os sofrimentos
dos "civilizados" quanto dos "selvagens".
Os registros desse período sobre os índios errantes do Cariri são sempre relativos a
conflitos com moradores, simultâneos ao avanço nas terras indígenas do lado pernambucano
da fronteira,105 e a constante inércia do governo provincial. Três meses antes ao relatório de
João Antônio de Miranda, o presidente que o antecedeu, José Felizardo de Souza Melo,
escreveu ao juiz de direito do Jardim, João José Gouveia, que lhe parecia "conveniente nada
por hora resolver a respeito dos índios de Macapá". A proposta do juiz de transferi-los para

103
MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o Exm. Sr. Doutor João Antônio de Miranda...
Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 23-24.
104
SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco, p. 169.
105
Cf. Ibid., p. 196-197.
183

Fortaleza era "sumamente dispendiosa", e se continuassem os roubos e os incômodos aos


habitantes do termo, o próprio Gouveia deveria tomar "as providências para fazê-los
retirar".106 Em mais um exemplo de isenção de responsabilidades, a solução adotada deveria
ser, provavelmente, o uso da força pelas autoridades locais.
Novas notícias apareceram no mês de setembro de 1842, em ofício do então presidente
José Joaquim Coelho respondendo ao líder do governo de Pernambuco, o Barão da Boa Vista,
que solicitou auxílio para que fossem batidos os "índios selvagens das nações quissapá [sic],
humões e xocós, que se tem assinalado pelas suas sanguinolentas correrias nos limites” destas
províncias com a da Paraíba.107 Em dezembro, os conflitos se intensificaram, produzindo
novas correspondências de outras autoridades pernambucanas, como do seu chefe de política,
pedindo mais providências a respeito "dos índios selvagens das nações quipapá, humões e
xocós", que assassinavam "quaisquer pessoas que transitam pelas estradas das Croás e Serra
Negra", em Pernambuco e na Paraíba. Como punição, ordenou Coelho que o delegado do
Jardim se utilizasse do destacamento da vila e da guarda nacional para "prender os referidos
índios, e assegurar a vida e liberdade dos habitantes desse termo". Alertou, contudo, que não
queria com tais determinações o "extermínio desses selvagens", e que, em primeiro lugar,
deveria ser empregado "os meios da brandura e conciliação que sua prudência lhe sugerir", e
caso precisasse "atacá-los e matá-los, deverá fazer com toda a moderação, compatível com o
que as circunstâncias permitirem, evitando as crueldades que acompanham algumas vezes
atos tais, em que o extermínio abrange homens e mulheres, meninos indistintamente". O
objetivo da ação, enfim, era garantir a "vida e propriedade dos habitantes desse município,
com o menor derramamento de sangue dos índios, por cuja sorte não deixa esta presidência de
interessar-se".108
O resultado das ações para deter as "incursões das hordas selvagens dos quipapaz,
humões e xocós no termo do Jardim" foi noticiado no relatório do presidente José Maria da
Silva Bittencourt, em junho de 1843. Disse que não passavam de "incêndio de algumas casas
de palha, e do roubo e maus tratos de viajantes, com quanto se mostrassem eles mais ferozes
nos lugares das províncias de Pernambuco e Paraíba". Mandou-se a guarda nacional, com a
recomendação de que agissem por meios brandos, "só devendo usar a força em casos

106
De José Felizardo de Souza e Melo a João José Gouveia. Fortaleza, 25 de janeiro de 1839. APEC, GP, CO
EX, livro 40, p. 256V.
107
De José Joaquim Coelho ao Barão da Boa Vista. Fortaleza, 5 de setembro de 1842. APEC, GP, CO EX, livro
52, p. 33V.
108
De José Joaquim Coelho ao delegado de Jardim. Fortaleza, 23 de dezembro de 1842. APEC, GP, CO EX,
livro 58, p. 11V.
184

extremos" e, de acordo com autoridades pernambucanas, foi o suficiente para conservá-los


“em respeito, e até 27 de março [...] não tem havido estragos".109
Como vimos, neste mesmo ano foi restabelecido o Diretório no Ceará, com as devidas
alterações a partir das circunstâncias da época – muito mais vantajosas para os proprietários –
e, para sua melhor instalação, o governo da província executou consulta a algumas câmaras de
vilas do Ceará a respeito da população indígena residente em seu município. Em resposta, os
vereadores do Jardim relataram que os índios que lá viviam eram os "restos de duas
numerosas tribos que antigamente habitavam, os umã [sic] da serra do Piancó, na Paraíba, e
os xocós de Pajeú, província de Pernambuco, lugares estes limítrofes deste município", e, por
isso, sempre exposto às frequentes suas incursões. Eram distintas, porém, aliadas, sendo
muito semelhantes "na cor, usos e modos de vida, e mesmo na linguagem", e ainda que
mansos, era muito "aferrados à vida errante e selvagem". Acerca da já citada missão do frei
Ângelo, localizada na Baixa Verde, termo de Pajeú, disseram que a aldeia fora dissolvida com
sua morte, apesar dos bons frutos que teria dado, como um índio que, educado desde a
infância, "já sabia latim", e o hospício que havia no lugar passou a ser liderado pelo religioso
frei Caetano. Sobre os conflitos do ano anterior, declararam que os índios, "acossados pelas
tropas deste município, Pajeú e Piancó embrenharam-se, mas é sempre de recear que tornem
às suas acostumadas incursões, nas quais prejudicam gravemente os fazendeiros". 110 Segundo
Freire Alemão, fugiram dos encalços e das secas provavelmente para o Piauí em 1845, “sendo
aí perseguidos, debandados e mortos muitos”, e o restante – 50 a 60 índios – se retirara para
as proximidades de Milagres.111

109
BITTENCOURT, José Maria da Silva. Relatório que a Assembleia Legislativa Provincial do Ceará
apresentou na sessão ordinária, no dia 1º de junho de 1843, o Ex. mo presidente e comandante das armas da
mesma província o brigadeiro José Maria da Silva Bittencourt. Fortaleza: Tipografia de José Pio Machado,
1843, p. 3-4.
110
Da câmara da vila de Jardim a José Maria da Silva Bittencourt. Jardim, 16 de setembro de 1843. APEC, CM,
câmara de Jardim, pacotilha 1840-1849.
111
ALEMÃO, Francisco Freire. Papéis da expedição do Ceará. Fortaleza, 23 de maio de 1860. Apud: Anais da
Biblioteca Nacional, p. 313. Há hoje no Piauí uma comunidade que se identifica como “kariri” da aldeia Serra
Grande, no município de Queimada Nova, próximo às fronteiras com Pernambuco e Bahia, localizado a cerca de
360 km do Crato. Cf. CARTA dos povos indígenas kariri e tabajara do Piauí. XIV Semana dos Povos
Indígenas: construção da política indigenista no Piauí. Disponível em:
<https://ufpi.br/images/Carta_dos_Povos_Ind%C3%ADgenas_Kariri_e_Tabajara_do_Piau%C3%AD.pdf>.
Acesso em: 29 de setembro de 2016. No Ceará, há uma comunidade kariri na aldeia Poço Dantas, no distrito de
Monte Alverne, zona rural do Crato. Cf. SANTOS, Elizângela. Índios Kariri lutam pelo reconhecimento da tribo.
Diário do Nordeste, Fortaleza, 5 de setembro de 2008, Caderno Regional. Disponível em:
<http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/indios-kariri-lutam-por-reconhecimento-da-
tribo-1.127736>. Acesso em: 29 de setembro de 2016.
185

Mapa 4: Locais de atuação dos gentios nas fronteiras do Ceará

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual dos estados da região Nordeste disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Região_Nordeste_do_Brasil

O aumento dos conflitos indica o cruel cerceamento dos espaços ocupados por estes
índios na fronteira sul do Ceará. É notório que nos registros analisados não apareça a fala dos
índios, ficando nebulosa a explicação do por que intensificaram suas incursões nas estradas,
propriedades rurais e proximidades das vilas. Apesar de serem conhecidos como mansos, sua
única ação, presente nos manuscritos de meados dos oitocentos, era a guerra. Contudo, assim
como no tempo do frei Frescarolo e mesmo que obscurecida nas fontes, não deixavam de ter
suas próprias motivações, e, independente de quais fossem, elas tinham provável relação com
a expansão agrícola, que limitava suas áreas de atuação e escasseava suas reservas de caça e
coleta. Repete-se, portanto, a já mencionada passagem de Perrone-Moisés: apesar de serem
constantemente reputados como "selvagens" e "bárbaros", como se fossem isentos de
consciência política e movidos apenas pela natureza, suas incursões eram praticadas contra
um sistema que conheciam, cujos prejuízos eram sentidos na pele.112
A partir da passagem das décadas de 1830 a 1840 o avanço latifundiário e a
intensificação dos conflitos tornaram a situação desses índios mais semelhante ao que era
vivenciado por grupos de outras regiões do Brasil, como era o caso dos "botocudos" das
atuais regiões Sul e Sudeste. As diferenças, entretanto, pareciam estar na quase total
indiferença com que os do Ceará eram tratados pelo governo imperial e provincial, mais
preocupados com a Balaiada que estourava na Ibiapaba. As autoridades imperiais nada

112
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Verdadeiros contrários, p. A32.
186

disseram sobre eles. Os presidentes apenas se declaravam preocupados, mas se mantinham em


Fortaleza, afastados da situação, e sempre assentando a resolução dos conflitos quase que
exclusivamente na "prudência" das autoridades locais: as sugestões do presidente Miranda e
do bispo Coutinho de que se utilizasse os meios da religião – concretizadas em leis
provinciais e imperiais no Ceará para os "civilizados" na década de 1840 – vinham por se
saber da inevitável violência com que os potentados rurais resolveriam os problemas com os
índios.113 As recomendações para que se evitasse o derramamento de sangue, contudo, não
eram mais importantes que a real prioridade: a propriedade dos moradores. Neste momento
liberal, era em nome da vida e liberdade dos habitantes do Cariri que se devia, cada vez mais,
cercear a dos indígenas. Em contrapartida, entregues nas mãos de quem os repugnava, os
índios demonstravam ser, o quanto podiam, constantes ameaças.

113
Curiosamente, a pesquisa não encontrou registros da ação dos missionários capuchinhos italianos ou de
qualquer outra companhia religiosa em meados do século XIX com os índios no Cariri cearense.
2ª PARTE
NA GUERRA
188

CAPÍTULO 5
O SERVIÇO MILITAR INDÍGENA

“Nada há pior neste mundo do que a opressão revestida


de formas legais”
(Requerimento da índia Thereza de Jesus, 1862. AN,
XM 1143, doc. 26)

A pouca experiência do exército regular na América portuguesa, de acordo com Vitor


Izecksohn, acentuou “o papel das concessões e das mercês reais como pagamento pelos
esforços particulares a serviços do rei” e a consolidação de seus domínios.1 Somada à
precariedade das tropas regulares – chamadas “tropas de linha” – e a falta de gente suficiente
para integrá-las, consagrou-se no Brasil a formação de agrupamentos auxiliares. Havia grande
dependência de Portugal em relação aos não-europeus para a formação do império no
ultramar – inclusive dos índios – e às articulações, hierarquias e organização militares e
burocráticas que iam se formando em cada domínio português no mundo.2
As tropas auxiliares mencionadas acima foram as companhias de ordenança,
instituídas pelo Regimento geral das ordenanças de 1570. Eram formadas por toda população
masculina livre não recrutada pela tropa de linha, e a partir de meados do século XVII, nem
pertencente às milícias.3 Com papel fundamental na tentativa de controle populacional na
Colônia, eram instrumentos de capilaridade social, na busca de que os braços do Estado
alcançassem até as povoações mais distantes. 4
Por serem formadas por moradores locais sem instrução militar formal, as ordenanças
ainda tinham a característica de seu efetivo permanecer em suas atividades particulares,
utilizadas somente “em caso de perturbação da ordem pública”.5 Os índios eram recrutados
apenas em corpos de ordenança pelo seu potencial como mão-de-obra, já que, assim, não

1
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-brasileiros.
In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 3 (ca. 1720 – ca.
1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 486. RAMINELLI, Ronald. Serviços e mercês de vassalos
da América portuguesa. Historia y Sociedad, nº 12, 2006, p. 123-124.
2
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 140
3
Criadas no contexto das guerras de restauração, as milícias atuavam, sobretudo, na defesa dos portos do mar de
invasões e assédios de estrangeiros. Recebiam os mesmos privilégios das tropas pagas, embora apenas
vencessem soldo em situações de conflito. Cf. Ibid., p. 83.
4
Ibid., p. 83-84. WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte Joanina:
permanências e modificações. Da Cultura, ano VIII, nº 14, 2008, p, 27. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável
soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos
séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura do Recife, 2001, p. 77-79.
5
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 493.
189

seriam mobilizados para atuar longe de onde habitavam – a não ser em situações extremas de
conflito bélico – o que não atrapalharia os trabalhos que executassem.
Pela necessidade de tropas que defendessem os interesses da monarquia em sua
colônia americana, os índios não poderiam ser dispensados, ao contrário do que afirmam Arno
Wehling e Maria José Wehling.6 Milícias e ordenanças tiveram mais poder no ultramar do que
em Portugal, o que fortalecia os poderes locais em detrimento do poder régio.7 Por isso, a
necessidade da Coroa lusitana da fidelidade dos seus súditos ameríndios era grande. 8 Estes,
por sua vez, também tinham seus próprios interesses na aliança com o monarca português,
vendo na adesão ao seu império, por exemplo, o aumento de sua força para combater inimigos
(outras tribos, nações europeias inimigas e mesmo colonos ambiciosos de sua mão-de-obra).
Além disso, desde os primeiros contatos e alianças, o rei era para os índios a última instância
protetora a quem poderiam recorrer contra as invasões de terra, como afirma Marcus
Carvalho.9
Para Ronald Raminelli, a fragilidade de integração entre a Metrópole e seus domínios,
acentuada pelas distâncias e dificuldades de acesso, configurou a conexão entre vassalos e a
monarquia. Esta se dava por meio de prestação de serviços dos primeiros à Coroa, no sentido
de consolidar a conquista através de atuações bélicas, transmissão de informações, mas,
também, da arregimentação de novos súditos. Firmava-se, assim, o vínculo entre serviço,
honra e centralização política, característico do modo de governo do Antigo Regime, mas tão
difícil em um império tão vasto e heterogêneo. Por isso, a “produção de lealdade em terras tão
remotas era mais relevante do que a classificação social própria do reino”, o que explica a
presença de índios em posições de prestígio. Aos que prestavam serviços e suplicavam
mercês, por sua vez, o reconhecimento era importante para a obtenção de privilégios e
fazerem-se mais poderosos que os demais. “Os pedidos de mercê dinamizavam e
revitalizavam o pacto entre vassalos e monarquia, pois os primeiros reconheciam o centro
como forma de consolidação de sua ascensão social”.10

6
Segundo os autores, as ordenanças eram compostas por “homens livres válidos entre 18 e 60 anos”, não
excluindo, portanto, os índios, como afirmam. Cf. WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias
e ordenanças na corte joanina, p. 26.
7
MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. A Nova História Militar, o diálogo com a história social e o Império
Português. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – Anpuh, 2011, p. 13-15.
8
Cf. ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena: deslocamentos e dimensões identitárias. Dissertação
de mestrado, Universidade Federal do Ceará, 2002, p. 95-97.
9
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Clientelismo e contestação: o envolvimento dos índios de
Pernambuco nas brigas dos brancos na época da independência. In: MONTEIRO, John Manuel. AZEVEDO,
Francisca L. Nogueira de. (Org.). Confronto de culturas: confronto, resistência e transformação. São Paulo:
EDUSP/Expressão e cultura, 1997, p. 336.
10
RAMINELLI, Ronald. Serviços e mercês de vassalos da América portuguesa, p. 130-131.
190

Devido à importância desses grupos, foram criados terços especiais na primeira


metade do século XVII, que tiveram participação destacada na expulsão dos holandeses do
Brasil. A chamada “Guerra Brasílica”, adaptação das técnicas indígenas às ações militares
portuguesas, determinou a superioridade das tropas do rei lusitano. De acordo com Pedro
Puntoni, os índios eram, portanto, imprescindíveis para o sucesso militar.11
O fim da presença batava no Brasil possibilitou a expansão da cultura do açúcar e da
pecuária nos sertões desde o final dos seiscentos, dando ocasião a múltiplos conflitos com os
povos que lá habitavam e que não se aliaram, chamados genericamente de Guerra dos
Bárbaros, na passagem dos séculos XVII e XVIII. 12 Tanto aos sobreviventes quanto aos
antigos aliados que os combateram – ou mesmo aos fugitivos dos conflitos holandeses –
restava o aldeamento em missões religiosas, onde eram catequizados e serviam como mão-de-
obra e força militar.13 A partir de vários exemplos, José Eudes Gomes mostra como, já nesse
período, “os serviços prestados pelas tropas indígenas no Ceará estiveram longe de
restringirem-se à sua participação em guerras [...], incluindo mesmo a escolta de autoridades
locais em suas diligências pelos sertões”. Após o fim das concessões de sesmarias a índios em
território cearense na década de 1730 e a consolidação da conquista das terras da capitania,
principais e seus comandados “continuaram a prestar serviços em troca da concessão de
benefícios para as suas gentes, e a atuação de tropas indígenas como força armada no Ceará
manteve-se pelo menos até as primeiras décadas do século XIX”.14

5.1. DO DIRETÓRIO À GUARDA NACIONAL

Em meados do século XVIII, por meio do ministério do marquês de Pombal, houve


tentativas de centralização militar e ampliação do controle imperial por conta do contexto de
conflitos internacionais, especialmente nas fronteiras com a América espanhola.15 Quando o
Diretório foi instalado no Ceará, os diretores nomeados eram todos oficias, “donde se pode
suspeitar”, segundo Isabelle da Silva, “a proeminência da força militar no processo de

11
PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militar na expansão da fronteira na
América portuguesa, 1550-1700. Novos Estudos, nº 53, 1999, p. 191-196.
12
PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil, p. 195-196.
13
ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena, p. 90. MAIA, Lígio José de Oliveira. Cultores da vinha
sagrada: missão e tradução nas serras da Ibiapaba, século XVII. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal
do Ceará, 2005.
14
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 143, 151.
15
Ibid., p. 241. IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 505-507.
191

implantação das vilas”.16 A lei, que visava especialmente a civilização e integração dos índios
através do usufruto de sua mão-de-obra, também reforçou a disciplina das comunidades por
meio da regulamentação dos corpos de ordenança e a importância dos oficiais indígenas. 17 As
tropas e suas atividades de revista serviam também como controle e sedentarização da
população, e até mesmo as vilas de índios – descendentes das antigas missões – se
consolidaram como polos de abastecimento de mão-de-bra e de força militar.18
A lei criticava em seu §9 a maneira inadequada com que “principais, sargentos-mores,
capitães e demais oficiais” eram tratados até então, sem o devido respeito às “honras e
privilégios competentes aos seus postos”. Ordenava aos diretores, portanto, que estimassem

“a todos aqueles índios [...] e também suas famílias, dando-lhes assento na sua
presença, e tratando-os com aquela distinção que lhes for devida, conforme as suas
respectivas graduações, empregos e cabedais, para que, vendo-se os ditos índios
estimados pública e particularmente, cuidem em merecer com o seu procedimento as
distintas honras com que são tratados, separando-se daqueles vícios e desterrando
aquelas baixas imaginações que insensivelmente os reduziram ao presente
abatimento e vileza”19

As titulações que recebiam, além de firmar alianças pelos serviços que prestavam ao
rei, tinham também forte caráter civilizatório. Em meados dos setecentos, boa parte das
lideranças indígenas, principalmente das capitanias anexas a Pernambuco, já havia
conseguido seus títulos por serem descendentes de antigos chefes que haviam prestado
serviços bélicos ao rei ibérico. Portanto, a principal função dos oficiais do tempo da instalação
do Diretório era de mediação entre os interesses da Coroa e os seus subordinados. A ambição
por prestígio social, ansiada tanto pelos índios quanto pela Coroa ao inseri-los no mundo
português, seria um caminho possível para a adesão aos costumes europeus e o abandono às
antigas tradições. Como explica Raminelli, enquanto que aos nativos interessavam status e
privilégios, para a monarquia era indispensável a produção de lealdade.20 Para que isso fosse

16
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 93.
17
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 91-99.
18
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século
XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 171. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios
eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 81-83. GARCIA, Elisa
Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da
América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 85-86.
19
DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade
não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758, §9, p. 4-5.
20
RAMINELLI, Ronald. Serviços e mercês de vassalos da América portuguesa, p. 130.
192

possível, o respeito aos seus postos deveria ser aplicado na prática, tanto pelos diretores nas
vilas como por qualquer membro da administração colonial ou súdito do monarca lusitano.
Na prática, isso frequentemente não acontecia, apesar do rei ter sido “servido nobilitar
e declarar por isentos de toda e qualquer infâmia, habilitando-os para todo o emprego
honorífico”, conforme o §10 do Diretório. Talvez por isso sua ênfase ao ordenar, no §15, que
os índios deveriam se “vestir à proporção da qualidade de suas pessoas, e das graduações de
seus postos”. De acordo com o §50 da lei, “capitães-mores, sargentos-mores e mais oficiais,
de que se compõem o governo das povoações” não deveriam ir pessoalmente à extração das
drogas do sertão, podendo, para isso, mandar índios. O §71 reforça-o, ao prever que fossem
pagos aos referidos oficiais os salários por seus trabalhos. Tudo isso em obediência ao que
ordenara Sua Majestade “nas suas reais e piíssimas leis, que se lhes guardem todas aquelas
honras competentes à graduação de seus postos”, devendo ser, inclusive, preferidos na
ocupação dos empregos honoríficos, como prevê o §84.21 Como afirma Maria Regina de
Almeida, tal política de enobrecimento buscava o envolvimento dessas pessoas na ordem
colonial, para que, por meio dela, “conduzissem seus liderados à obediência e disciplina”.22
Além disso, as remunerações representavam uma possibilidade real de acumulação material e
ascensão social para muitos índios oficiais.23
Acerca da estrutura das ordenanças, o Diretório não apresentou mudanças, mas trouxe
regulamentações mais precisas sobre as atribuições dos oficiais indígenas. Isso mostra o
quanto incluir os índios em forças militares era visto pela Coroa lusitana como importante
para incorporar essas populações na sociedade colonial, inclusive por meio da concessão de
patentes. Aos que as alcançavam, tais postos significavam uma clara chance de mobilidade
social.24 Para o império português, as ordenanças de índios eram ferramentas imprescindíveis
para os interesses da Coroa,25 atuando no controle e vigilância da população – inclusive

21
DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade
não mandar o contrário, §10, §50, §71 e §84, p. 5-9, 22, 30 e 35.
22
Cf. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional
2003, p. 161.
23
Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e
Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v.
43, n. 2, 2012, p. 12. WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte
joanina, p. 27. GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio, p. 283.
24
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) - Universidade de São Paulo,
2005, p. 220. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social, p. 14
25
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, 139-155.
193

indígena – no que dizia respeito ao “sossego público”,26 contra revoltas internas,27 confrontos
com gentios28 e ameaças internacionais.29 Eram mediadores entre os interesses da Coroa e de
suas comunidades, mas ainda que devessem total obediência à primeira, as lideranças
frequentemente pendiam para a luta a favor dos benefícios de seus comandados.30
O caráter civilizatório da inserção dos índios no universo do prestígio nobiliárquico
português tinha conexão direta com a relação de fidelidade que a Coroa desejava consolidar
entre seus súditos indígenas. Tal relação acompanhava o contexto de modernização do
exército português durante o período pombalino, analisado por Arno Wehling e Maria José
Wehling, quando as milícias e ordenanças – “significativo instrumento de capilaridade social”
– assumiram papel fundamental para a defesa dos interesses lusitanos.31 De acordo com José
Eudes Gomes, diversas medidas foram tomadas no âmbito militar, a partir da década de 1760,
“no sentido de aumentar o controle sobre a população”, atingindo também o Ceará e
acompanhando o momento de reforço da presença do Estado português em sua colônia
americana.32 Ainda segundo o autor, a formação de ordenanças indígenas na segunda metade
dos setecentos – que não consistia em uma questão nova – também “oficializava a política de
incorporação dos índios como vassalos da monarquia portuguesa”.33

26
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820).
Teresina: EDUFPI, 2015. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820.
Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008.
27
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal
Fluminense, 2015. CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em
Pernambuco (1817-1848): Ideologias e Resistências. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios
do Nordeste: temas e problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e
invenção, p. 223-235, 287-304.
28
MATTOS, Izabel Missagia. "Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na
província de Minas. Tese (doutorado) – UNICAMP, 2002. OLIVEIRA, Ana Stela Negreiros. O povoamento
colonial do sudeste do Piauí: indígenas e colonizadores, conflitos e resistência. Tese (doutorado) –
Universidade Federal de Pernambuco, 2007. SILVA, Mairton Celestino da. Africanos escravizados e índios
aldeados na capitania de São José do Piauí, 1720-1800. In: SILVA, Mairton Celestino da; OLIVEIRA, Marylu
Alves de. Histórias: do social ao cultural/do cultural ao social. Teresina: EDUFPI, 2015. SANTOS JUNIOR,
Carlos Fernando dos. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia, legislação, política
indigenista e os povos indígenas no Sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal de Pernambuco, 2015.
29
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio.
30
SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil,
1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 188. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais
índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-1798). Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 26-27. LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios:
novos interlocutores nas vilas da capitania do Rio Grande do Norte. Anais do XXV Simpósio Nacional de
História – ANPUH. Fortaleza, 2009, p. 9.
31
WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte joanina, p.. 26-29.
32
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 241-242.
33
Ibid., p. 259-260.
194

A Carta Régia de 1798 que aboliu o Diretório no Grão-Pará e em outras capitanias


trouxe direcionamentos diferentes para a atuação militar indígena a partir das particularidades
das regiões onde era aplicada. Foram criados os corpos de Milícias subordinados às câmaras,
medida que diminuía a importância dos oficiais nativos e, ao mesmo tempo, acentuava o
processo de desagregação das comunidades e incentivava a execução de empreendimentos
individuais de exploração e povoamento.34
Em contrapartida, nas capitanias onde o Diretório permaneceu em vigor, os corpos de
ordenanças indígenas continuaram. Arno Wheling frisa que a vinda da Corte para o Rio de
Janeiro e a política implementada por dom Rodrigo de Souza Coutinho trouxeram diversas
melhorias e reforçaram em uma série de aspectos a questão da defesa no Brasil. 35 A
diminuição das distâncias entre os súditos americanos e o monarca também avivou entre os
índios a figura do rei, o que talvez possa ser relacionado com a rapidez nas promoções e a
incorporação de famílias ao oficialato.36
Segundo Izecksohn, apesar de sujeitos ao contexto de transformações advindo no
início dos oitocentos, a estrutura das companhias de ordenanças de índios pouco mudou neste
período, mesmo depois da independência.37 Entretanto, é notório o impulso que adquiriu o
recrutamento indígena pelo menos nas duas primeiras décadas dos oitocentos no Ceará,
inserido no contexto de busca por maior racionalização do espaço e controle da população e
de transformações indicada por Wheling. São sinais dessas práticas o aumento da produção de
mapas das tropas, o incentivo às revistas por parte dos governadores da capitania, o reforço da
política de passaportes – que exigia documentos de autorização para pessoas que transitassem
pelo território – e a concretização de uma verdadeira “caça aos vadios”.38 A presença do
Diretório ainda em vigor era, portanto, mais uma ferramenta na sedentarização da população
indígena e um reforço na aliança entre a disciplina militar e o incentivo ao trabalho regular e
produtivo.
Tal realidade vai de encontro à perspectiva de parte da historiografia que defende ter
havido uma “perda de importância” das ordenanças e de seus oficiais indígenas na passagem

34
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. “Vossa excelência mandará o que for servido...”: políticas indígenas e
indigenistas na Amazônia portuguesa do final do século XVIII. Tempo, vol. 12, nº 23, 2007.
35
WEHLING, Arno. WEHLING, Maria José. Exército, milícias e ordenanças na corte Joanina, 2008, p. 31.
36
DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas
no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 450. IZECKSOHN,
Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 508.
37
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 508-509.
38
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 252-258. PINHEIRO, Francisco José. Notas
sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 310-327. COSTA,
João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 171-183.
195

do século XVIII para o XIX, atribuída à diminuição de conflitos armados.39 Para Lígio Maia,
as ordenanças de índios perderam o prestígio que outrora tiveram a partir da primeira metade
dos oitocentos pelo fato de este período diferir das centúrias anteriores, marcadas por
instabilidades sociais – como a Guerra do Açu – e a ocupação pastoril.40 Contudo, as
ordenanças indígenas destacaram-se em diversos conflitos no século XIX, como aconteceu
com a invasão de Caiena,41 nas ações militares no rio Doce42 e em 1817. Foi em decorrência
do envolvimento das tropas de índios nestes embates que o rei promulgou o decreto de 25 de
fevereiro de 1819, que os isentava de vários tributos, dentre eles o subsídio militar e o
pagamento de selo das patentes de oficiais.43
As batalhas ocorridas na independência, as lutas contra a resistência portuguesa no
Piauí em 1823 e a Confederação do Equador de 1824 são exemplos de conflitos bélicos em
que as ordenanças indígenas do Ceará foram acionadas, mas com a diferença de serem, então,
vassalas do rei brasileiro e agindo em defesa de interesses nacionais.44 Entretanto, seus
posicionamentos – muitas vezes divergentes dos pensamentos dos que os recrutavam e tidos,
por isso, como “insubmissos” – faziam contraponto à ideia de índios-soldados exclusivamente
a serviço do Estado.45 Também por isso, a arregimentação dos nativos não parece ter sido
menos importante.
Apesar da relevância bélica, a “perda de prestígio” dos oficiais indígenas parece ter
sido de fato iniciada a partir da conjuntura constitucional do pós-independência. A decisão nº
8 do Ministério da Guerra de 15 de janeiro de 1823 estabelecia que as patentes de milícia e

39
DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas
no nordeste brasileiro, p. 448-449. SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements, p. 196-197.
40
MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social, p. 14.
41
SANTOS, Raquel Dani Sobral. A construção do estatuto de cidadão para os índios do Grão-Pará (1808-
1822). Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2013, p. 25-35.
42
SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce:
fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) - Universidade Federal do Espírito
Santo, 2006. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do
Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007.
43
Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Concede aos índios das diversas vilas do Ceará Grande, Pernambuco e
Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os revoltosos da vila do Recife. COLEÇÃO das
leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. De igual conteúdo In: BN, C-199, 14. COSTA,
Hipólito José da. Correio Brasiliense ou Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. Brasília:
Correio Brasiliense, 2002, v. XXIII, p. 353.
44
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Clientelismo e contestação. CARVALHO, Maria do Amparo Alves
de. Batalha do Jenipapo: reminiscências da cultura material em uma abordagem arqueológica. Tese
(doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2014. DANTAS. Mariana Albuquerque.
Dimensões da participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro. DANTAS. Beatriz
G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas no nordeste
brasileiro.
45
DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos indígenas
no nordeste brasileiro, p. 448
196

ordenança fossem lavradas em nome dos governos provisórios das províncias.46 Tal medida se
inseria no contexto de ocupação de cargos nos governos e justiças provinciais e municipais
pelas elites locais, antes destinados a administradores portugueses, ampliando ainda mais seus
espaços de poder. Nesta mesma década, uma memória sem data e nem autoria – pertencente
ao acervo da Biblioteca Nacional – propôs que fossem extintos os cargos de capitães-mores
indígenas. Os índios passariam a ser “governados da mesma forma que o são os brancos, [...]
policiados pelas autoridades territoriais e servindo nos corpos de milícia”.47 Neste contexto,
uma série de ações como a concessão de patentes a oficiais indígenas já passava pelo crivo de
potentados interessados no fim de suas garantias. Como vimos, a situação de cidadania
advinda com a Constituição de 1824 promovia uma igualdade entre os grupos que minava
cada vez mais as antigas mercês e os estatutos diferenciados dos índios.
Como efeito do contexto liberalizante no pós-independência, acentuadamente no
primeiro reinado, a grande transformação na estrutura militar brasileira foi a criação da
Guarda Nacional em 1831, acabando com as milícias e ordenanças. Chama atenção o quão
reduzido era o exército profissional à época da independência, ao que Jeanne de Castro
atribuiu à urgência em se abafar ebulições locais, enquanto poucas ameaças internacionais
existiam naquele tempo.48 A ojeriza ao exército, abordada por Flávio Saldanha, era explicada
pela composição dos oficiais e das tropas, portugueses e vadios em sua maioria,
respectivamente; já a Guarda Nacional, ao contrário, cooptava pessoas “honradas”. Ressalte-
se ainda o quanto a instituição serviu como mais uma força da elite senhorial para a defesa de
seus interesses.49 Segundo Izecksohn, a criação da Guarda Nacional se deu como
manifestação de um processo amplo de cooperação entre Estado e poderes privados, “de
reação liberal à percepção de uma ameaça absolutista por parte do imperador e de seus
aliados”.50
Outra inovação em relação à estrutura militar anterior – e que se liga ao aumento do
poder senhorial – é a forma de ingresso dos não-brancos nas tropas. Para Castro, a Guarda
Nacional misturou todas as cores, ao contrário dos corpos de milícia e ordenança organizados
por “castas”. Para a autora, este era um relevante caráter moderno da instituição, ao cessar a

46
Decisão nº 8, 15 de janeiro de 1823. COLEÇÃO das decisões do governo do Império do Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1887, p. 5-6.
47
Sem autoria, local e data. BN, II-32, 23, 63.
48
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1979, p. 3.
49
SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Exército e Guarda Nacional: recrutamento militar e a construção do
Estado no Brasil imperial. Coleção Meira Mattos, vol. 9, nº 36, 2015, p. 674.
50
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 512-514.
197

distinção de cores numa sociedade ainda escravista.51 Isso se liga também aos esforços de
formar uma sociedade nacional, excluindo, ainda que de forma lenta, as diferenças politico-
jurídicas características do Antigo Regime entre os grupos étnico-sociais e ampliando o
conceito de cidadania.
Servindo aos interesses dos potentados locais, submetendo a população pobre, agora
ainda mais misturada, ao seu poderio, a Guarda Nacional se constituiu como uma força
armada paralela ao exército profissional que era mal visto sobre diversos aspectos. Segundo
Saldanha, para os não-brancos ela foi sinal de distinção social já pela forma de conscrição:
enquanto que o “recrutamento” – que se referia ao exército – representava castigos físicos, má
remuneração e composição de desajustados, o “alistamento” – termo para a Guarda Nacional
– não tinha a mesma conotação negativa e era formado por “cidadãos honrados”.52
Por outro lado, a estrutura da Guarda Nacional acabou por ser prejudicial para não-
brancos. A presença de lideranças nativas com títulos militares – tendo, por isso, remuneração
e prestígio social – a partir de mercês concedidas pelo rei português não faria mais sentido no
entendimento dos governantes do novo país. A lei de 18 de agosto de 1831, mesmo sem citar
os índios, acentuou ainda mais a perda de benefícios vigentes no Antigo Regime. Por meio
dela foram criadas as guardas nacionais e extintos os corpos de milícia, guardas municipais e
ordenanças. Seu artigo 141 previa que os oficiais de ordenança permaneceriam com "as
honras anexas aos seus postos, mas não [eram], por isso, isentos do serviço das guardas
nacionais".53 Isso significava que as lideranças militares indígenas continuavam com suas
patentes, mas as mesmas não tinham mais qualquer significado prático, já que os oficiais
seriam alistados nas guardas como qualquer outro cidadão. Por mais que ainda fossem
referências para suas comunidades – cada vez mais reduzidas – não tinham mais o prestígio
que possuíam em anos anteriores. Analisando a situação da vila de Itaguaí, no Rio de Janeiro,
Vânia Moreira observa que, ao longo da década de 1830, o estatuto dos cidadãos ingressos na
guarda nacional passava a ser oposto ao dos índios aldeados: perdia-se a antiga condição e,
juntamente, as proteções e mercês a ela inerentes.54
O recebimento do aviso de extinção das ordenanças só foi confirmado no Ceará em 2
de outubro de 1832, pelo presidente José Mariano de Albuquerque Cavalcante, “à maneira
51
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 135-136.
52
SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Exército e Guarda Nacional, p. 674-675. KRAAY, Hendrik. Repensando
o recrutamento militar no Brasil imperial. Diálogos, vol. 3, nº 3, 1999, pp. 113-151.
53
Lei de 18 de agosto de 1831. Cria as guardas nacionais e extingue os corpos de milícias, guardas municipais e
ordenanças. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-
564307-publicacaooriginal-88297-pl.html>. Acesso em: 7 de janeiro de 2015.
54
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Indianidade, territorialidade e cidadania no período pós-independência -
Vila de Itaguaí, 1822-1836. Diálogos Latinoamericanos, n. 18, 2011, p. 13-15
198

que nos diferentes municípios se organizarem as guardas nacionais”.55 No mês de junho do


ano seguinte, a câmara de Fortaleza determinou em sessão o adiamento da divisão das guardas
nacionais da cidade por conta do processo de supressão de Messejana, Arronches e Soure. 56 O
presidente Cavalcante repreendeu a ação dos vereadores da capital, afirmando que o
alistamento fora feito antes da extinção das ditas vilas, comunicando que em Arronches já
havia uma companhia e ordenando que criassem com urgência as guardas de Fortaleza.57 As
novas tropas, portanto, foram formadas em meio ao processo de extinção e esvaziamento das
antigas vilas de índio e dispersão de sua população. Além de não mais haver companhias
militares exclusivamente indígenas, as novas da Guarda Nacional das suprimidas vilas de
índios não passariam a contar com uma parcela significativa dessa população. O antigo
prestígio social das lideranças indígenas tendia a ser, então, obsoleto.
Mesmo assim, inicialmente ainda era possível o acesso de alguns não-brancos ao
oficialato pela forma de acesso eletiva.58 Segundo Jeanne de Castro, as críticas a esse sistema
não demoraram a vir, por parte de diversos jornais e políticos avessos à igualdade que muitos
negros e pardos poderiam ter com brancos em cargos de oficial. Em 1833, o governador de
Pernambuco chegou a sugerir a separação dos corpos da Guarda segundo a cor.59
No ano seguinte, outra medida minou ainda mais a possibilidade de acesso de
lideranças indígenas às patentes da Guarda. Com as reformas instituídas pelo Ato Adicional
de 1834, os oficiais passaram a ser nomeados pelas instâncias políticas locais, como câmaras
municipais e assembleias legislativas provinciais.60 A igualdade, portanto, foi vencida pela
“reação discriminatória”.61 Para Izecksohn, com o tempo, a Guarda Nacional acabou por ser
prejudicial aos não-brancos em relação à estrutura anterior porque perderam prestígio social,
as patentes e outros privilégios a que tinham acesso.62
O fim das ordenanças acentuou o processo de desestruturação das comunidades ao
longo da década de 1830 já afetadas com a abolição das vilas. Além de tudo que perderam, as

55
De José Mariano de Albuquerque Cavalcante a Bento Barroso Pereira. Fortaleza, 2 de outubro de 1832.
APEC, MN, MG, livro 99, p. 24.
56
Sessão da câmara de Fortaleza de 10 de junho de 1833. APEC, CM, câmara de Fortaleza, livro 55.
57
De José Mariano Albuquerque Cavalcante à câmara de Fortaleza. Fortaleza, 15 de junho de 1833. APEC, GP,
CO EX, livro 19, p. 270.
58
Lei de 18 de agosto de 1831, capítulo IV: “nomeação dos postos”. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-publicacaooriginal-
88297-pl.html>.
59
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 139.
60
Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, Art. 10, §7. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-16-12-agosto-1834-532609-publicacaooriginal-14881-
pl.html>.
61
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 13-14, 142.
62
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 513-514.
199

lideranças nativas já não mais possuíam o status que havia tido durante o regime português. O
presidente Francisco de Souza Martins, atento ao processo de exclusão dos “índios de todos
os empregos públicos”, propôs em seu relatório de 1840 uma série de medidas com o objetivo
de frear o rápido “decrescimento da raça indígena”. Uma delas era que se alistassem

“em corpos de milícia com oficiais de sua raça, os quais gozem das honras e
prerrogativas dos da Guarda Nacional, e possam apresentar-se honrados com as
insígnias de distinção nas ocasiões de cortejo ou de festividades públicas. Isto
lisonjeará seu amor próprio despertando os sentimentos de brio e de honra, e não
pouco concorrerá para que estes chefes mantenham a subordinação e obediência às
leis nos mais indivíduos de sua raça”63

Pelo raciocínio de Martins, que também sugeriu a volta do Diretório, percebe-se que
sua intenção era o reestabelecimento, pelo menos parcial, da antiga política indigenista
lusitana. Ao contrário do que sugere Maico Xavier, a ideia do presidente não era de inseri-los
na Guarda – pois dela provavelmente já faziam parte – mas de que se criassem corporações
exclusivas para eles, à semelhança das antigas ordenanças.64 O foco da proposta era também
os oficiais índios, que tiveram seu prestígio reduzido com a extinção de suas companhias,
para que passassem a ser reorganizadores de suas comunidades e colaboradores da
consolidação do Estado nacional. Mas, como vimos no capítulo 2, as sugestões acatadas pela
Assembleia provincial apenas diziam respeito àquilo que facilitava a captação de sua força de
trabalho. Em relação aos benefícios dos índios – honras, bens e garantias – foram todos
ignorados.
Para os índios, as reformas militares com o fim das ordenanças parecem ter gerado
efeitos semelhantes aos que afetaram mestiços e negros libertos. Vânia Moreira, em diálogo
com Hendrick Kraay, por um lado, percebeu as eventuais tentativas de transformação e
recategorização dos indígenas em vadios, para fazê-los ingressar no exército de maneira
forçada, como forma de controle social e coerção ao trabalho.65 Tais práticas parecem ter
atingido os índios mais fortemente através da Marinha, como aponta Silvana Jeha,
relacionando-as a busca de alternativas à presença dos estrangeiros nas forças armadas e à

63
MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza
Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º
de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 10-13.
64
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no
período do império do Brasil – trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) –
Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 162-164.
65
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas
no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p. 97. KRAAY, Hendrik. Repensando
o recrutamento militar no Brasil imperial, p. 119.
200

crise de mão-de-obra do período.66 Segundo Manuela Carneiro da Cunha, um grande número


de avisos e circulares recrutaram índios para a Marinha.67 As ações truculentas de
recrutamento para o serviço na Real Armada chegaram, inclusive, a ser uma das causas para a
adesão dos índios da Ibiapaba na Balaiada do lado dos revoltosos.68
Em 29 de maio de 1837, um aviso do Ministério da Marinha de autoria de Tristão Pio
dos Santos foi enviado a vários presidentes de província – dentre eles, o do Ceará – acerca do
“engajamento de índios [...] para o serviço da Esquadra”. Por serem “pacientes no trabalho,
sóbrios e mui subordinados à disciplina”, deveriam servir de alternativa à conscrição de
estrangeiros, caros e insubordinados. Aos presidentes se ordenou que recrutassem indígenas
entre 13 e 20 anos de idade, que seriam enviados à Corte e vestidos adequadamente, mas
nunca de maneira violenta. O texto mencionava que, em outros momentos, havia 117 índios
empregados no Arsenal do Rio de Janeiro, “e se isto pôde ser alcançado sem violência no
Antigo Regime, com mais razão se deve esperar agora”.69
Como destaca Silvana Jeha, o recrutamento indígena sempre ocorreu no período
colonial, mas a política imperial parece ter sido mais objetiva e específica por conta da
legislação. No aviso, a faixa etária foi bem delimitada, demarcando uma população muito
jovem e revelando a preocupação em dar-lhe ocupação e utilidade. Sem o amparo de um
estatuto diferenciado, as ações de recrutamento indígena continuaram ao longo das décadas de
1830 e 1840 atendendo exclusivamente às necessidades do Estado de mais trabalhadores e
homens aptos a servir. Se a maioria dos índios era alistada para a Guarda Nacional, o
recrutamento na Marinha se dirigia àqueles que “não serviam”, ou seja, considerados vadios,
buscando dar-lhes ocupação.70
Ressaltava-se, portanto, a continuidade da relação entre disciplina militar, trabalho e
civilização na política indigenista do Brasil, além da procura de soluções à já comentada crise
de mão-de-obra. O texto de Santos, contudo, destoa do que comumente se via dos
recrutamentos. Em primeiro lugar, as ações de conscrição de pobres livres para as forças

66
JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar: indígenas na Armada Nacional e Imperial do Brasil. Anais do VI
Encontro Estadual de História – ANPUH/BA, 2013, p. 2-5.
67
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma
compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo,
1992, 1992, 28.
68
JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e
recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875), 2006, p. 103.
69
AVISO do Ministério da Marinha. De Tristão Pio dos Santos a Francisco José de Souza Soares de Andrea.
Idem aos presidentes das províncias do Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio de Janeiro e
São Paulo. Rio de Janeiro, 29 de maio de 1837. Correio Oficial, v. 1, n. 119, 3 de junho de 1837, p. 474-475.
70
Como veremos mais à frente na proposta do presidente Barford, p. 184-185.
201

armadas sempre foram marcadas pela violência, inclusive no Antigo Regime.71 Segundo, de
acordo com Jeha, já na década de 1840 era possível observar que, enquanto o engajamento de
estrangeiros diminuía, as “políticas internas de recrutamento recrudesciam”.72 Associadas ao
combate à vadiagem, como destaca Vânia Moreira, os recrutamentos eram sempre violentos.73
Entretanto, de maneira geral, a forma mais comum de conscrição militar indígena
parece ter sido pelo alistamento na Guarda Nacional. Pela lei, eram obrigados a se alistar os
cidadãos que tivessem voto nas eleições primárias,74 cuja exigência censitária, segundo José
Murilo de Carvalho, era baixa para a época, o que não excluía a maioria dos pobres.75 Vânia
Moreira especula se os índios, após a independência, teriam renda suficiente para participar
dos processos eleitorais – ingressando, portanto, na “milícia cidadã” como cidadãos com
honra – ou se acabavam confundidos com a massa de vadios e desordeiros coagidos a servir
nas forças armadas.76 Mas na primeira fase da Guarda Nacional, período que vai de sua
criação em 1831 até a reforma da corporação em 1850, as restrições censitárias eram
flexíveis, exigindo-se muito mais dos ingressos o fato de terem ou não ocupação.77
Aos índios, agricultores de maneira geral, interessava serem cidadãos honrados,
diferindo-se dos que eram recrutados para o exército. Inclusive, alguns conseguiram ascender
aos cargos de oficiais nos momentos iniciais da “milícia cidadã”, como foi o caso de
Agostinho Panaxo, em Pernambuco, e Vitorino Condá, no Rio Grande do Sul, em situações
extremas de conflito contra rebeldes liberais e gentios.78

71
No final do século XVIII, “o recrutamento se faz por press, ou seja, pelo exercício da violência sobre os
incautos”. Cf. COSTA, Fernando Dores. Os problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as
questões da construção do Estado e da nação. Análise Social, vol. XXX, 1995, p. 128. LEMOS, Marcelo
Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira do
Vale do Paraíba (1788-1836). Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004, p. 131-
132. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios no tempo da corte: reflexões sobre a política indigenista
e cultura política indígena no Rio de Janeiro oitocentista. Revista USP, n. 79, 2008, p. 102.
72
JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 1 e 5.
73
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas
no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p, 94.
74
Lei de 18 de agosto de 1831, título II, capítulo I, art. 10. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-publicacaooriginal-
88297-pl.html>.
75
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2014, p. 35-36.
76
MOREIRA, Vânia Maria Losada. De índio a guarda nacional: cidadania e direitos indígenas no Império (vila
de Itaguaí, 1822-1836). Topoi, vol. 11, nº 21, 2010, p. 135.
77
CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã, p. 280. MOURA, Denise. A farda do tendeiro: cotidiano e
recrutamento no império. Revista de História Regional, vol. 4, nº 1, verão, 1999, p. 39. SALDANHA, Flávio
Henrique Dias. Os oficiais do povo: a Guarda Nacional em Minas Gerais oitocentista, 1831-1850. Dissertação
(mestrado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita, 2004, p. 32. COSTA, Lidiana Justo da. A
Guarda Nacional e o processo de construção do Estado nacional brasileiro: um estudo de caso sobre os
alistamentos na província da Paraíba (1831-1850). Temporalidades, vol. 4, nº 2, 2012, p. 232.
78
FERREIRA, Lorena de Mello. São Miguel de Barreiros, uma aldeia indígena no Império. Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2006. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da
202

Estes casos, contudo, pareciam ser exceções. E ainda que a maioria dos índios tenha
ingressado na Guarda Nacional, sua adesão – e consequente inclusão na categoria de cidadãos
– fazia parte, segundo Moreira, do mesmo processo de perda das antigas garantias de posse
das terras.79 Tudo isso se inseria no contexto de extinção dos benefícios oriundos de sua
anterior condição de vassalos da Coroa portuguesa. Os cargos e posições políticas a que
tinham acesso, como as patentes de oficiais militares, passaram a ser a eles vetados. Não foi
coincidência que a lei da Guarda Nacional e o Ato Adicional tenham sido contemporâneos à
extinção do Diretório nas capitanias que ainda a aplicavam e ao fim dos aldeamentos, no
início da década de 1830. A lei pombalina foi abolida justamente pelos legislativos
provinciais que atuavam a serviço dos interessados nas terras indígenas.
Para a concretização dos objetivos dos potentados locais, era conveniente que os
índios se desfizessem de antigos benefícios, como terras e cargos políticos, e a “cidadania”
seria utilizada como argumento principal: sendo cidadãos iguais aos outros, não poderiam ter
mais privilégios, especialmente se estes remetessem ao tempo da Coroa portuguesa.80 Tais
intentos tiveram mais sucesso em 1834, quando o Ato Adicional deu ainda mais poder aos
políticos locais. Portanto, por mais que o alistamento tenha significado um refúgio contra o
recrutamento para os pobres livres,81 resultou também na degradação do prestígio dos antigos
oficiais de ordenança e, consequentemente, na perda de referenciais para as comunidades,
contribuindo para sua desagregação e a adesão de muitos aos séquitos das elites senhoriais.
O contexto indigenista das décadas de 1830 e 1840, entretanto, não impediu por
completo que algumas comunidades e suas lideranças ainda atuassem na tentativa de manter
suas prerrogativas. Um conflito envolvendo o padre Norberto Madeira Barros e os índios de
Monte-mor Velho, mais de 10 anos depois da lei que criou as Guardas Nacionais, é exemplar
nesse sentido. Em ofício enviado ao presidente do Ceará, José Maria da Silva Bitencourt, de

participação política indígena na formação do Estado nacional brasileiro. MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras
dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: Eduem, 2008.
MELO, Karina Moreira Ribeiro da Silva e. A aldeia de São Nicolau do Rio Pardo: histórias vividas por índios
guaranis (séculos XVIII-XIX). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.
SOUZA, Almir Antônio de. Armas, pólvoras e chumbo: a expansão luso-brasileira e os indígenas do planalto
meridional na primeira metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina,
2012. NEUMANN, Eduardo Santos. “Um só não escapa de pegar em armas”: as populações indígenas na Guerra
dos Farrapos (1835-1845). Revista História, nº 171, pp. 83-109, 2014.
79
MOREIRA, Vânia Maria Losada. De índio a guarda nacional, p. 236-237.
80
"nenhuma razão para que, em uma associação que tem por objetivo a igualdade perante a lei, sejam alguns
dos membros, em contravenção ao pacto fundamental de sua regeneração política, forçados a obedecer leis
bárbaras ditadas em tempos prestigiosos pelo capricho de um conquistador. São os nativos índios, nossos
patrícios e concidadãos, obrigados ainda a obedecer à dureza e barbaridade de seu Diretório, com manifesta
infração à Constituição do império que os declara cidadãos brasileiros". Proposta de José Ferreira Lima
Sucupira. Fortaleza, 6 de dezembro de 1830. ATAS do Conselho Geral da Província do Ceará: 1829-1835.
Fortaleza: INESP, 1997, p. 165-166. Grifo meu.
81
SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Exército e Guarda Nacional, p. 676.
203

agosto de 1844, Barros comentou acerca de um requerimento do líder indígena Manuel


Batista em que pedia isenção de pagamento dos direitos de enterramento, qualificando a
situação como uma "arenga dos índios". Segundo o padre, a igreja não mais lhes pertencia
"porquanto não eram mais aldeados", já que, por um decreto, dom Pedro I teria acabado "com
o Diretório passando eles para as ordenanças" e, por isso, "não gozavam de privilégio algum
concedido aos índios", que só valeria "se fossem novamente aldeados".82
Norberto Madeira Barros não especificou a que decreto se referia. Ainda assim, leis
como a de 18 de agosto de 1831, mesmo sem fazer qualquer menção ao Diretório, aboliram
diversos outros privilégios concernentes aos índios. Quando citou as “ordenanças” talvez
estivesse aludindo às guardas nacionais, em uma tentativa de delimitar o lugar dos índios no
novo contexto em que, desaldeados, passaram a pertencer à sociedade nacional sujeitos à
mesma condição de qualquer outro cidadão. Para as comunidades, por outro lado, lideranças
como Manuel Batista ainda se posicionavam como referência, mesmo que a legislação
posterior à Constituição de 1824 tivesse abolido sua importância na burocracia e sociedade
brasileiras. Acerca do fato, Ticiana Antunes observa que a função de guias religioso, além da
de líderes políticos, “fortalecia ainda mais os laços de solidariedade e estreitavam as relações
com outras figuras importantes da comunidade”.83 Os índios de Monte-mor Velho ainda
consideravam a igreja como “sua”, apesar da condição de aldeados ter sido extinta com a
cidadania. As reivindicações eram mostras de que suas culturas políticas eram também
baseadas nos benefícios que outrora tiveram e que buscavam ainda assegurar, mesmo que se
adequassem às novas realidades.

5.2. ATUAÇÃO BÉLICA, DISCIPLINA MILITAR E CONSCRIÇÃO INDÍGENA

As tropas de ordenanças indígenas no Ceará, desde o início da colonização, foram


frequentemente mobilizadas para defesa contra ameaças externas e internas na capitania. O
governador Barba Alardo de Menezes deu o exemplo de dom Felipe Algodão, antigo “chefe
desta nação de seu apelido” em Arronches, que havia sido “muito respeitado no seu tempo
[século XVII] e comandava cinco companhias de ordenanças, que são as que ficam mais
próximas para acudir a qualquer rebate na capital, da qual fica distante para leste uma

82
BEZERRA, Antônio. Os caboclos de Montemor. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia
Minerva, 1916, tomo XXX, p. 290.
83
ANTUNES, Ticiana de Oliveira. Índios arengueiros: senhores da igreja? Religião e cultura política dos
índios do Ceará oitocentista. Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2016, p. 162.
204

légua”.84 Em 3 de janeiro de 1799, por ordem do governador Luis da Motta Féo e Torres,
cerca de 50 índios se juntaram às tropas que combateram piratas franceses vindos de Caiena
na praia do Cauípe, a oito léguas ao norte Fortaleza, após bombardearem a capital.85 No ano
seguinte, 400 índios de Viçosa armados de arco e flecha, liderados pelo governador
Oeynhausen, atuaram na prisão do coronel Manoel Martins Chaves, provavelmente em
Baepina, acusado de diversos atos de violência.86
A partir dos exemplos apresentados, percebe-se a importância estratégica das
ordenanças indígenas em conexão com a própria localização das vilas no território, em
diferentes períodos e conjunturas, como afirma Mariana Dantas.87 Remanentes das antigas
missões religiosas, elas representavam proteção para a Coroa lusitana: não era à toa que a
capital do Ceará, Fortaleza, estava cercada por três vilas de índios (Arronches, Soure e
Messejana). Destaca-se ainda, a partir do caso citado da prisão do coronel Chaves, o papel das
ordenanças indígenas como braço armado do Estado português nos combates aos potentados
locais, servindo como força mantenedora da presença da lei lusitana nos sertões de sua
colônia88.
Como vimos, o recrutamento indígena foi intensificado a partir do final do século
XVIII no contexto de reformas militares promovidas por Portugal, ao mesmo tempo em que a
Coroa procurava proteger seu território e investir na produção colonial. Os índios assumiram
o papel de agentes responsáveis pelo que Fernando Novais chama de “defesa do
patrimônio”:89 ao norte, depois da Carta Régia de 1798, os corpos militares indígenas tinham
como missão explorar o território e vigiar as fronteiras, como vimos no primeiro capítulo. Nas
capitanias que continuavam sob a vigência do Diretório, como o Ceará, a prioridade era
engrossar as fileiras das ordenanças nativas através do combate aos vadios. O termo era
utilizado para identificar tanto os índios que se encontravam fora de suas povoações natais

84
MENEZES, Luís Barba Alardo de. Memória sobre a capitania independente do Ceará grande, escrita em 18 de
abril de 1814, escrita pelo governador da mesma, p. 43. GOMES, Alexandre Oliveira. A saga de Amanay, o
Algodão e dos índios da Porangaba. In: PALITOT, Estevão Martins. (Org.). Na mata do sabiá: contribuições
sobre a presença indígena no Siará. Fortaleza: Museu do Ceará, Imopec, Secretaria de Cultura do Estado do
Ceará, 2009, p. 155-192.
85
De Luís da Motta Féo e Torres a Thomaz José de Mello. Fortaleza, 7 de janeiro de 1799. Apud: STUDART,
Guilherme. Luiz da Motta Féo e Torres e seu governo no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Econômica, 1890, tomo IV, p. 34-35.
86
Cf. Idem. João Carlos Augusto de Oeynhausen e Manoel Martins Chaves. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Tipografia Minerva, 1919, tomo XXXIII, p. 12.
87
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal
Fluminense, 2015, p. 31.
88
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 139.
89
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São
Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 137.
205

sem passaporte90 quanto os que não se inseriam nos padrões de trabalho ditados pela obtenção
de lucro imediato.91
A partir da preocupação da Coroa em disciplinar o cotidiano indígena por meio da lei
pombalina, o recrutamento militar tinha uma importância fundamental. Por um lado, as
ordenanças nativas assumiam papeis relevantes no cotidiano de suas vilas. Em agosto de
1808, por exemplo, o governador Luis Barba Alardo de Menezes mobilizou um destacamento
de índios de Arronches para que ficassem de guarda do paiol da pólvora de sua localidade:
protegiam um material importante e perigoso, ao mesmo tempo em que exerciam um trabalho
rigoroso e vigiado pelo diretor.92 Por outro, os mapas das ordenanças indígenas, produzidos
intensamente no início do século XIX, são indícios das preocupações governamentais em
controlar a circulação dessa população pelo território e coagi-los ao trabalho produtivo.
Segundo o governador Menezes, em resposta ao diretor de Baepina também em agosto de
1808, por estes documentos ficaria “perfeitamente conhecendo o estado das ditas companhias
[de ordenança]”.93
O seu sucessor, Manoel Ignácio de Sampaio, procurou recrudescer ainda mais o
combate à vadiagem, as ações de recrutamento, as revistas das tropas e a produção de mapas,
em prol do minucioso conhecimento e controle dos indivíduos.94 José Eudes Gomes conta que
desde a segunda metade do século XVIII – com a política pombalina de reforço da presença
do Estado – foram intensificadas as medidas de controle da população. Como ferramenta para
tais intentos, as ações relativas ao âmbito militar ganharam destaque, o que explicava “a
confecção cada vez mais frequente dos mapas de tropas e populacionais que dispomos para o
período”. Mas foi a partir das “primeiras décadas do século XIX que a elaboração de mapas
de tropas se tornou efetivamente sistemática no Ceará”.95
Para as vilas de índios, o exato conhecimento da população servia a fins específicos.
Em seu primeiro ano de governo no Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio reclamou com o
sargento-mor de Monte-mor Novo dos dados incompletos no mapa da população da vila:

90
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 242-243. PINHEIRO, Francisco José. Notas
sobre a formação social do Ceará, p. 310. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e
cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: EDUFPI, 2015, p. 171-183.
91
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações indígenas
no Espírito Santo (1822-1875), p, 105.
92
De Luís Barba Alardo de Menezes a Florêncio José de Freitas Correa. Fortaleza, 12 de agosto de 1808. APEC,
GC, CO EX, livro 40, p. 36.
93
De Luís Barba Alardo de Menezes a Manoel da Silva Sampaio. Fortaleza, 3 de agosto de 1808. APEC, GC,
CO EX, livro 40, p. 31V.
94
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 196-223.
95
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 244, 251.
206

“Em tempo competente recebi um ofício de seu capitão-mor datado de 20 de maio


que acompanhava o mapa da população desse termo o qual lhe torno a remeter por
não estar em termos: 1º por nele não incluir os índios: 2º por claramente se conhecer
que foi arbitrariamente feito. Portanto ordeno a vossa mercê [...] com a brevidade
possível me remeta outro mais correto...”.96

As informações a que se referiu o governador provavelmente serviram de base – junto


com as de outras localidades – ao mapa geral da capitania produzido no ano seguinte, que
analisaremos mais à frente. Organizado a partir das informações concedidas pelo capitão-mor,
novamente expõe a ligação entre a formação militar das ordenanças e o controle da população
produtiva. A não inclusão dos índios no mapa de Monte-mor Novo se configurava como
“arbitrária” por Sampaio porque a vila era de índios, e os que lá viviam e eram recrutados em
companhias dos de sua “casta” eram submetidos a obrigações específicas. Sob o Diretório,
serviam de mão-de-obra para o Estado e a proprietários e eram tutelados por um diretor. O
conhecimento e controle da população indígena, portanto, tinha conexão direta com os
objetivos de desenvolvimento econômico da capitania.
O início dos oitocentos correspondeu ao período em que dom Rodrigo de Souza
Coutinho ocupou os cargos de secretário de Estado dos Negócios da Guerra e ministro da
Guerra do Brasil. Atendendo à preocupação da metrópole em conhecer a população colonial,
Coutinho promoveu diversos levantamentos estatísticos, acentuando as informações
militares.97 Para Nuno Monteiro, o ministro promoveu reformas em um contexto de
prosperidade econômica – com destaque para o plantio do algodão – e de aumento da
importância da colônia como produtora de matéria prima e consumidora de produtos
metropolitanos.98 O desenvolvimento econômico era central nas ideias de Coutinho, e as
reformas militares estimuladas por ele tinham participação crucial, segundo Manuel Amaral.99
O controle espacial da população indígena no Ceará, feito também por meio da disciplina
militar e do conhecimento das tropas, conectava-se diretamente com seu aproveitamento
como mão-de-obra, especialmente na cultura algodoeira.100

96
De Manuel Ignácio de Sampaio ao sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 22 de junho de 1812. APEC,
GC, livro 15.
97
LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no império do Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2003, p. 103.
98
MONTEIRO, Nuno. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a dom Rodrigo de
Souza Coutinho. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial, volume 3
(ca. 1720 – ca. 1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 141-142.
99
AMARAL, Manuel. D. Rodrigo de Souza Coutinho e o exército. A guerra peninsular, perspectivas
multidisciplinares. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar e Centro de Estudos Anglo-portugueses,
2008, pp. 355-374. Disponível em: <http://www.arqnet.pt/exercito/rodrigo_exercito.html>, p. 1-4.
100
PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 265. LEITE NETO, João. A
participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822).
Dissertação (Mestrado) ‒ Universidade Federal de Pernambuco, 1997.
207

Os mapas das companhias de ordenanças, instrumento de capilaridade social, eram


formas eficazes de conhecimento da população masculina ativa na busca pelo controle dos
habitantes da capitania. “A população, entretanto, não constitui uma realidade prévia”, como
alerta Ivana Lima, mas é composta de inapreensível heterogeneidade. O Estado lusitano
procurava incessantemente classificar e ordenar a sociedade marcadamente hierárquica e
hierarquizante de sua colônia americana. A autora destaca a importância de refletir acerca das
categorizações presentes em muitos censos estatísticos e mapas populacionais, especialmente
relativas à cor de pele ou grupos étnico-sociais. “Tratava-se de um saber técnico que pretendia
esvaziar o seu próprio sentido político”, ao mesmo tempo em que procurava “ordenar a
população em seu discurso”. Conhecer a população era simultâneo à sua regulação e
ordenação.101
Pensando na disposição das categorias nos recenseamentos, como sugere Lima, pode-
se notar ainda que os mapas discriminam as companhias de brancos, pardos e índios.102 Tais
recenseamentos eram realizados no âmbito militar, seguindo características da sociedade do
Antigo Regime no ordenamento da população e cruzando aspectos étnico-sociais. A tabela
abaixo foi elaborada por José Eudes Gomes a partir de informações sobre as tropas militares
do Ceará extraídas do texto da memória do antigo governador Luiz Barba Alardo de Menezes,
de 1814.103 Por ela observamos que o efetivo da capitania era composto basicamente por
tropas auxiliares,104 e as ordenanças de índios de Soure, Arronches e Messejana
correspondiam, ao todo, a 16 companhias. Entretanto, não são discriminadas as ordenanças
indígenas das vilas de Monte-mor Novo e Viçosa, mesmo sendo de índios.

101
LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas, p. 23, 90, 97.
102
Ibid., p. 97-98.
103
Cf. MENEZES, Luís Barba Alardo de. Memória sobre a capitania independente do Ceará Grande escrita em
18 de abril de 1814 pelo governador da mesma. In: Documentação primordial sobre a capitania autônoma do
Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. Apud. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias
d’El Rey, p. 255
104
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 251.
208

Tabela 1: Tropas militares no Ceará em 1814

Fonte: GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 255.

O mapa que vem em seguida foi elaborado pelo próprio governador Menezes, anexo à
sua Memória. Cruzando as informações da tabela 1 com as do mapa abaixo, que apresenta um
total de 48 companhias nas vilas de índios, percebemos que as das outras duas vilas somariam
um significativo total de 32 unidades militares. O número, entretanto, não corresponde às 23
ordenanças das vilas de índios, contando com as de Monte-mor Novo e Viçosa, apresentadas
na primeira tabela. É curiosa a incongruência dos dados, tendo em vista que os mesmos são
oriundos da mesma obra.
209

Tabela 2: Mapa da força militar da tropa, milícias e ordenanças da capitania do Ceará Grande (1814)

Fonte: MENEZES, Luis Barba Alardo de. Memória sobre a capitania independente do Ceará Grande escrita em
18 de abril de 1814 pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Brasil, tomo XXIV. Rio de Janeiro: P. L. Garnier, 1871, p. 279. Apud. GOMES, José Eudes
Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 256.

O silêncio da primeira tabela sobre as ordenanças de índios destas duas vilas e a


contradição dos dados podem ter diversas explicações, como a dificuldade comum em
executar tais recenseamentos nos sertões daquele período. Além disso, é possível conjecturar
a influência da própria localização das três primeiras vilas, que ficavam ao redor de Fortaleza,
e de sua importância bélica na descrição das companhias. Formavam um verdadeiro cinturão
de proteção armada da capital e, somadas, eram um dos maiores efetivos militares da
capitania, situação estrategicamente importante pela proximidade uma das outras.
Outro aspecto que chama atenção nas duas tabelas é a falta de referência às ordenanças
indígenas localizadas em vilas de brancos, como a de Almofala em Sobral e a de Monte-mor
Velho em Aquiraz. Os índios que eventualmente eram recrutados em tropas de brancos
também não foram computados. As práticas de revista e produção de mapas, associadas à
intensificação da política de passaportes, contribuíram para a fixação de alguns índios que
possuíam propriedades em vilas de brancos fora de suas localidades de nascimento. Para que
pudessem viver legalmente, passavam a incorporar as companhias de ordenança desses novos
lugares que habitavam.105 Nas observações do Mapa da população da capitania do Ceará
extraído dos que deram os capitães-mores no ano de 1813, por exemplo, registrou-se: “Deve

105
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 320-323.
210

notar-se que se algumas vilas não levam índios é por que os capitães-mores os inseriam no
número de brancos”.106
Esse mapa, além de ser populacional, era também militar – já que suas informações
foram extraídas pelos capitães-mores – o que reforça o vínculo que havia entre a disciplina
militar e o controle da população. Os contabilizados são classificados como “brancos”,
“índios”, “pretos” e “mulatos”, sendo estes dois últimos divididos entre “cativos” e “livres”, e
todas as categorias contam com as subdivisões de sexo e estado civil. Como observou Ivana
Lima, os índios estavam livres da distinção de livres e cativos, 107 posto que sua liberdade era
garantida pelo Diretório.
Vemos também uma mostra mais detalhada e aproximada da realidade dos indígenas
da capitania, inclusive dos que viviam em Monte-mor Velho e Almofala, computados em
Aquiraz e Sobral. Ao contrário do que argumenta Lima, os índios nem sempre apareciam de
forma marginal na contabilização da população.108 Tal realidade passou a ser mais comum na
segunda metade do século XIX, diferente da do início dos oitocentos, quando os indígenas
ainda tinham um peso demográfico, econômico e militar significativo. Outras informações,
entretanto, permaneciam silenciadas, como vemos pelo que vai indicado nas observações do
mapa. O termo “mulatos” provavelmente abarcava todas as classes de mestiços,
independentemente de suas procedências, o que desconsiderava as identidades étnicas e seu
caráter político. A depender das situações e contextos, a fronteira entre um “índio”, um
“cabra” ou um “mameluco”, por exemplo, era fluida, negociada, sujeita às dificuldades ou
interesses tanto dos recenseadores ao descrever as cores ou grupos quanto dos indivíduos
registrados.109
Exemplos disso eram os índios recrutados em ordenanças de brancos e não
computados no mapa. Segundo Lígio Maia, a situação de índios em vilas de brancos ou fora
de suas localidades de origem é assunto geralmente esquecido pelos estudiosos, talvez pela
dificuldade em se analisar dados sobre esses grupos geralmente ocultados nas contagens.110
Como percebe Francisco José Pinheiro, o fenômeno pode ser caracterizado como um

106
“Mapa da população da capitania do Ceará extraído dos que deram os capitães-mores no ano de 1813”.
Fortaleza, 1813. BN, II-32, 23, 3.
107
LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas, p. 98-99, 101.
108
Ibid., 102.
109
Ibid., p. 123-127. BOCCARA, Guillaume. Antropologia diacrónica. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005.
Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org>. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 329-
334.
110
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no
Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 305-
306.
211

mecanismo utilizado pelos índios para “desaparecer frente à repressão”. 111 O recrudescimento
da política de recrutamentos e as eventuais concessões aos que tinham terras produtivas fora
de suas vilas são sinais da associação que havia entre o recrutamento militar, o monitoramento
populacional indígena e sua importância como força de trabalho. Além disso, o dado
apresentado no mapa de 1813 também indica uma primeira etapa do processo de fixação de
índios fora de suas povoações de origem, acentuado durante o esvaziamento nos anos
posteriores à independência.
Após o governo Sampaio, talvez pela diminuição da quantidade de índios dispersos, os
recrutamentos e as ações de combate à vadiagem não continuaram a ser aplicados com a
mesma intensidade. Em janeiro de 1820, o governo interino ordenou a conscrição de Manoel
João da Assumpção nas ordenanças de Messejana,112 e acusaram, no mês seguinte, a recepção
de mapas das ordenanças de Baepina, enviados pelo diretor remetido ao antigo governador
que deixara o Ceará em janeiro.113 Esses poucos registros posteriores a Sampaio são efeitos de
sua ação política, que não prosseguiu da mesma forma no decorrer da década de 1820.
As fontes acerca do cotidiano das ordenanças indígenas após a independência são
escassas, com exceção das referentes à Confederação do Equador (que veremos no capítulo
8). Os oficiais índios ainda não haviam perdido completamente seu status perante o governo
durante os conflitos liberais. Em junho de 1824, o governador do Ceará Tristão Gonçalves de
Alencar Araripe ordenou à câmara de Arronches que promovesse o sargento-mor e capitão-
mor das ordenanças da vila, lembrando que “as patentes dos índios passam-se
gratuitamente”.114 Mesmo com a separação política brasileira ainda era válido o decreto
promulgado por Dom João VI que isentava os indígenas do pagamento de selo das patentes,
sinal da herança do Antigo Regime e resquício dos últimos momentos de prestígio de seus
oficiais.
Ainda que as lideranças militares índias tivessem algum reconhecimento durante
eventos bélicos na década de 1820, a situação da garantia dos direitos indígenas se encontrava
cada vez mais frágil após a promulgação da Constituição de 1824. Segundo um relato da
câmara de Aquiraz de 1838 sobre os índios de Monte-mor Velho, muitos “se ofereceram para
a guerra do sul” em 1825 por conta das perseguições que sofriam dos vizinhos ambiciosos por
suas terras. O conflito a que se referiram os vereadores era, provavelmente, a Guerra da

111
PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 238.
112
Dos governadores interinos ao capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 18 de janeiro de 1820. APEC, GC, livro
22, p. 168V.
113
Dos governadores interinos ao diretor de Baepina. Fortaleza, 7 de fevereiro de 1820. APEC, GC, livro 22, p.
177.
114
Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 22 de junho de 1824. AN, IN, caixa 742, pacote 1.
212

Cisplatina, quando os nativos de Monte-mor Velho, em um ato desesperado, se uniram às


tropas buscando reaver o que perderam e chamar a atenção do rei para sua situação. Tal
atitude remete à relação de reciprocidade que costumavam ter com a recém-deposta Coroa
lusitana – a exemplo do decreto de isenção de impostos de 1819 – mas, dessa vez, sem os
mesmos resultados: dos que se lançaram para o sul, alguns “morreram em caminho pela peste
de bexiga, e os que restaram com suas famílias foram incorporados à aldeia de Messejana”.115

“A mais bela disposição para os serviços da Marinha”

Não cessaram, contudo, os registros sobre recrutamento indígena na Marinha desde o


início dos oitocentos até meados deste século. Ainda no contexto das reformas empreendidas
por dom Rodrigo de Souza Coutinho,116 o ministro escreveu ao governador Barba Alardo de
Menezes em novembro de 1808, ordenando-lhe que, pela pouca quantidade de “gente de
serviço de mar”, enviasse o maior número que pudesse de índios para Pernambuco. Serviriam
por dois anos no Arsenal Real da Marinha, ao fim dos quais revezariam com outros e seriam
“convenientemente vestidos por conta da Real Fazenda”.117 Dessa forma, reforçava-se a
defesa do Estado ao mesmo tempo em que se daria uma ocupação disciplinar aos índios, cujo
revezamento impediria que a produção local ficasse desfalcada de braços. Índios da vila de
Valença, no Rio de Janeiro, também foram recrutados para a Armada Real da Corte em 1809,
como apontam Marcelo Lemos e Maria Regina de Almeida, com registro de ações
violentas.118
Tais práticas prosseguiram após a independência. Em outubro de 1822, o secretário
dos Negócios da Marinha, Ignácio da Costa Quintela, escreveu ao Conselho Ultramarino
sobre o sustento de sete índios do Ceará que estavam no Arsenal.119 O pedido de Quintela

115
Sessão da câmara municipal de Aquiraz, 12 de fevereiro de 1838. APEC, CM, câmara de Aquiraz, pacotilha
1835-1839. Sobre envio de tropas de diferentes regiões do Brasil para a Guerra da Cisplatina, vide: RIBEIRO,
José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: brasileiros nas guerras meridionais. Anais do XXIII
Simpósio Nacional de História, 2005.
116
“é natural que o desenvolvimento econômico estivesse intimamente ligado ao do desenvolvimento da
capacidade de defesa, que permitisse defender não só os domínios ultramarinos, base essencial, para D. Rodrigo,
do futuro enriquecimento nacional, mas sobretudo, porque mais vulneráveis, as rotas comerciais. Está ligado, por
isso, ao aumento significativo da Marinha, que nunca tinha sido possível, desde 1640, tornar uma força
numerosa. Na verdade, só uma Marinha numerosa poderia proteger as rotas comerciais atravessada pelo
comércio marítimo português”. Cf. AMARAL, Manuel. D. Rodrigo de Souza Coutinho e o exército, p. 2.
117
De Rodrigo de Souza Coutinho a Luís Barba Alardo de Menezes. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1808.
APEC, GC, livro 48; APEC, GC, livro 49, p. 9.
118
LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café?, p. 131-132. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.
Os índios no tempo da corte, p. 102.
119
De Ignácio da Costa Quintela ao Conselho Ultramarino. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1822.
AHU_CU_006, Cx. 24, D. 1390.
213

fazia sentido num contexto no qual os recrutamentos eram feitos muitas vezes de maneira
violenta e sem garantias de que marujos seriam devidamente amparados.120 Por ser menos
dispendiosa, a conscrição de índios nas diversas regiões do Brasil prosseguiu ao longo da
década de 1820. Francieli Marinato apresenta alguns exemplos de recrutamento neste decênio
no Espírito Santo, de onde “não esporadicamente [se enviava] levas de índios para o serviço
militar na Corte, especialmente na Marinha”.121 Através dos governos das províncias, o
Ministério da Marinha consultava a população indígena hábil para seus serviços, como foi
requisitado ao presidente do Ceará, em fevereiro de 1825, que fizesse uma relação de índios lá
habitantes, “declarando os seus nomes, ocupações, estado, idades e residências”.122
Segundo Manuela Carneiro da Cunha, era “opinião generalizada no começo do século
XIX [...] que os índios teriam aptidões naturais para a navegação”.123 A ideia era
compartilhada pelo presidente Antônio de Sales Nunes Barford, para quem os índios
apresentavam “a mais bela disposição física para os trabalhos fortes, especialmente para os
serviços da Marinha, pela inclinação à pesca que neles se observa”. A declaração faz parte da
resposta dada à consulta aos presidentes de província para a criação do Plano de Civilização
dos Índios em 1826, analisado no capítulo 2. A respeito da manutenção de alguns
aldeamentos – quando já se debatia a definitiva extinção do Diretório – defendeu as que se
localizassem perto de rios piscosos, satisfazendo “sua inclinação à pesca e fazendo, por este
meio, os primeiros ensaios para o serviço da Marinha”. Segundo ele, se corrigissem as
imperfeições do Diretório e aperfeiçoassem a escolha e contratação de diretores, seria possível
diminuir a população escrava e fornecer ao Exército e à Marinha “soldados e marinheiros
robustos e aptos”.124 Sobre isso, o Conselho do governo da Província do Ceará também já
havia manifestado que, por serem “indiferentes às honras e riquezas”, os índios seriam apenas
aptos para a guerra “e principalmente para a Marinha”.125
Como tratamos anteriormente, o posicionamento de Barfor e dos conselheiros
provinciais demonstram a procura de propor alternativas em um contexto de crise de mão-de-

120
JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2.
121
MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais, p. 210.
122
De Francisco Vilela Barbosa a José Felix de Azevedo e Sá. Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1825. APEC,
MN, MM, livro 81.
123
CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma
compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo,
1992, 1992, 28.
124
De Antônio de Sales Nunes Barfor a José Feliciano Francisco Pinheiro. Fortaleza, 3 de novembro de 1826. In:
NAUD, Leda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822): 2ª parte. Revista de
Informação Legislativa, vol. 8, n. 29, 1971, p. 306.
125
PARECER do Conselho de Governo da Província do Ceará, 22 de setembro de 1826. In: Documentos sobre
os nossos indígenas. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora "Instituto do Ceará", tomo LXXVII,
1963, p. 323.
214

obra, além de entender os serviços militares como próprios para disciplinar os índios para o
trabalho produtivo. Tais sugestões passavam imediatamente pela tentativa de negação do
status que até então os oficiais indígenas haviam conseguido manter, mas que eram encarados
pelos membros do governo como supérfluos.
Os recrutamentos executados ao longo da primeira metade do século XIX demonstram
que a preocupação em aproveitar a população indígena como força de trabalho não diminuiu
na política indigenista do império do Brasil. De acordo com Silvana Jeha, “a Marinha foi uma
das instituições escolhidas para tornar os indígenas trabalhadores, enfim, incorporá-los à
sociedade nacional”.126 Em aditamento ao já comentado aviso de 29 de maio de 1837, sobre o
recrutamento de índios para a Armada Imperial, o rei ordenou no mês seguinte que também
fossem remetidos os que tivessem de 7 a 10 anos de idade, “a fim de se empregarem nas
oficinas do Arsenal da Marinha desta Corte, e aprenderem nelas os diversos ofícios”.127 No
Rio de Janeiro, o então presidente José Paulino de Souza também defendeu a conscrição de
meninos índios, de acordo com Luciano Dias.128
O acréscimo ordenado pelo monarca ia de encontro à antiga luta dos índios no Ceará
que havia muito combatiam a captação de suas crianças para trabalhos de aluguel em lugares
distantes e por longos períodos de tempo, como vimos no capítulo 3. Ainda que o aditamento
ressaltasse que o objetivo era o aprendizado de ofícios, a medida divergia enormemente das
propostas de escolas de primeiras letras reclamadas pelas comunidades em seus
requerimentos. Não por acaso, uma das causas para a adesão dos índios do Buriti, na serra da
Ibiapada, à Balaiada – como veremos no capítulo 8 – foram as ações de recrutamento. Depois
de contida a rebelião, o destino do líder balaio Antônio Marques da Costa e de outros
envolvidos de Baepina capturados acabou sendo a Armada Imperial.129

*
* *

126
Cf. JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2.
127
De Tristão Pio dos Santos a José Martiniano de Alencar. Rio de Janeiro, 15 de junho de 1837. APEC, MN,
MM, livro 83.
128
DIAS, Luciano. Limites, índios, culto. O implacável Saquarema, 2009. Disponível em:
<http://viscondedouruguai.blogspot.com.br/2009/06/limites‐indios‐culto.html>. Acesso em 14 de fevereiro de
2016. A respeito do comentário de Joaquim Norberto de Souza e Silva, de 1854, sobre a aplicação do aviso de 29
de maio de 1837 no Rio de Janeiro, vide: MOREIRA, Vânia Maria Losada. O ofício do historiador e os índios:
sobre uma querela no Império. Revista Brasileira de História, vol. 30, n. 59, 2010, p. 7.
129
AN, XM 14. Apud. JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2.
215

As transformações ocorridas no serviço militar indígena entre o fim do Antigo Regime


português e a formação do Estado nacional brasileiro acompanharam as mudanças na
condição política dessa população. Os planos de incorporação dos índios na sociedade
lusitana viam na atuação das companhias de ordenanças a ferramenta de conexão entre a
produção de hierarquias e fidelidades, o disciplinamento para o trabalho produtivo e, enfim, a
civilização. De igual maneira, o processo gradual de expropriação das terras, dos patrimônios
e dos cargos políticos – conseguidos pela elite política no período regencial pela imposição de
uma cidadania supostamente igualitária – também significou a perda de patentes dos oficiais,
da importância dos índios como força bélica e o fim de suas companhias.
Se antes eram vassalos dignos de nobiliarquia em defesa do rei português, isso se
alterou a partir das transformações políticas no país. Ainda que essa condição tenha
permanecido de maneira similar durante o reinado de dom Pedro I, os índios não puderam
mantê-la com a vitória do “liberalismo conservador”: não é à toa que a abdicação do monarca
antecedeu em poucos meses a criação da Guarda Nacional, em 1831, e tenha sido
contemporânea à primeira abolição do Diretório no Ceará. A partir daí, passaram a ser vistos
como mais um grupo que compunha a massa de pobres expropriados e submissos aos grandes
proprietários rurais, alistados em defesa da ordem nacional ou recrutados quando ainda não se
enquadravam como cidadãos honrados.
As mudanças da condição legal dos índios nesse período modificaram também sua
atuação política por meio do serviço das armas. Os indígenas sabiam de sua importância para
a Coroa portuguesa e o governo brasileiro durante o primeiro reinado como força militar, e a
partir desse conhecimento lutavam por seus interesses. Eram fundamentais não apenas pelo
poderio bélico, mas também pela fidelidade que prestavam até o fim, porque compreendiam a
relação recíproca que mantinham com os monarcas. Como veremos no próximo capítulo,
ainda que a produção de hierarquias promovida pelas ordenanças tenha aumentado a distância
social entre lideranças e índios comuns, podemos caracterizar as patentes de oficiais como
verdadeiros patrimônios comunitários, perdidos com o processo de formação do Estado
nacional brasileiro. Capitães, sargentos e outros líderes militares dependiam do
reconhecimento de suas comunidades, e por elas lutavam a partir dos postos que ostentavam.
Com a Guarda Nacional, a restrição da ascensão social de lideranças indígenas por meio de
patentes prejudicou a atuação política dos grupos, contribuindo para sua desagregação e o
processo de dispersão dos índios ao longo das décadas de 1830 e 1840.
216

CAPÍTULO 6
AUTORIDADES MILITARES INDÍGENAS

“Eu, Antônio Tavares Nunes, de nação índio, [...] juro aos Santos
Evangelhos, que quanto em mim for, terei sempre prestes a dita gente
para o serviço de Sua Majestade”.
(Termo de juramento como capitão-mor da vila de Arronches.
Fortaleza, 3 de janeiro de 1821. APEC, GC, Livro 61, p. 82-83)

“Eu, Vitorino Correa da Silva, [...] juro pelos Santos Evangelhos, [...]
que quanto em mim for terei sempre a dita gente para o serviço
nacional e imperial”.
(Termo de juramento como capitão-mor da vila de Arronches. Fortaleza, 25
de dezembro de 1823. APEC, GC, Livro 61, p. 101V)

A formação de elites indígenas a partir do contato dos povos ameríndios com a Coroa
lusitana remete ao início da dominação portuguesa na América. Como abordamos no capítulo
anterior, as mercês concedidas pela Coroa aos que atuavam no Novo Mundo buscavam
estreitar os laços entre a Metrópole e sua colônia e retribuíam serviços ligados ao envio de
informações e a ações bélicas. Nestes dois aspectos, a inserção dos índios aliados e a
nobilitação de suas lideranças eram imprescindíveis.
Com a expansão do mundo atlântico português no século XVI, a adjetivação por cores
dos habitantes do império seria, “tanto ou mais do que descrever, classificar socialmente”. 1
Como vimos desde o início desta tese, a legislação e a política lusitanas eram específicas para
cada circunscrição administrativa e grupo social. Contudo, ainda que nem todos fossem iguais
– e muito menos estivessem no mesmo “patamar” – a Coroa necessitava de sua fidelidade
para a garantia da dominação nos diversos territórios. Segundo João de Figuerôa-Rego e
Fernanda Olival, até pelo menos a primeira metade dos setecentos, a ascensão de não-brancos
a cargos nobiliárquicos era mais flexível no Brasil no que dizia respeito aos recrutamentos. 2
Citam o exemplo da Ibiapaba, onde as insígnias da Ordem de Santiago cedidas aos índios
dom Sebastião Saraiva Coutinho, dom José Vasconcelos e dom Felipe de Souza e Castro
dispensaram inquirições por parte do rei dom João V. “Os imperativos da economia de
mercês”, ligados às garantias de serviços na colônia, “por vezes falavam mais alto do que os
preconceitos sociais”.3

1
FIGUERÔA-REGO, João de. OLIVAL, Fernanda. Cor de pele, distinções e cargos: Portugal e espaços
atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII). Tempo, vol. 15, n. 30, 2011, p. 116-117.
2
Ibid., p. 126-127.
3
Ibid., p. 142-143. Sobre limites e flexibilizações da ascensão social indígena na colônia, vide: ALMEIDA,
Maria Regina Celestino de. O enobrecimento dos líderes indígenas na capitania do Rio de Janeiro: reflexões
sobre significados e usos políticos diversos. Revista Ultramares, nº 5, vol. 1, 2014, p. 61-62.
217

As autoridades indígenas eram geralmente nobilitadas com patentes militares,


ressaltando a importância desses povos para os interesses bélicos da Coroa. Os chefes
ameríndios assumiram, portanto, papel de destaque na política da Coroa como elo entre as
comunidades – no sentido de congregá-las para agir pelos interesses metropolitanos – e o rei.
José Eudes Gomes mostra como mercês e hábitos de Cristo foram concedidos a lideranças
indígenas desde o final dos seiscentos no Ceará, no início da ocupação portuguesa na
capitania.4
Uma das mais proeminentes a atuar em território cearense, compreendendo a capitania
de Pernambuco e suas anexas, foi Potiguaçu, chefe dos potiguares, nascido provavelmente em
1580 e batizado em 1612 com o nome de Antônio Felipe Camarão. Recebeu os títulos de
“Dom” e de “Capitão-mor e governador de todos os índios do Brasil” e as comendas
“Cavaleiro da Ordem de Cristo” e dos “Moinhos de Soure e o Brasão das Armas”. 5 Segundo
Juliana Lopes, a promoção militar representou “um degrau a mais no status social na
Colônia”, possibilitando que o nome “Camarão” tenha se tornado um título concedido aos
seus sucessores.6 Para a autora, o poder de influência da família Camarão sobre outros grupos
indígenas e seu o potencial de reunião de tropas não poderia ser dispensado pela Coroa. Tal
característica era particularmente importante no Ceará, estigmatizado à época como “terra
sem lei” por conta das distâncias em relação aos grandes centros como Recife e São Luís e de
seu precário aparelho burocrático. Já para os chefes indígenas, assim como outras lideranças,
a aliança com os portugueses tinha uma série de vantagens, como aumento de poder de
negociação, recebimento de títulos, mercês, soldo, entre outras.7
As características da posição de liderança militar indígena colonial eram bem
diferentes do que a etnografia tradicionalmente apontou para os chefes dos grupos nativos da
América. Pierre Clastre, em sua análise sobre o exercício do poder político em comunidades
indígenas, indicou quais seriam as três principais atribuições de uma chefia: fazedor de paz,
generoso e bom orador. Apresentada de maneira genérica, a reflexão do autor delimita grupos
que não possuíam hierarquia ou lideranças coercitivas. Mas, ainda que a mesma não seja

4
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 141
5
ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII: o caso
Camarão. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 116, 122. IZECKSOHN, Vitor.
Ordenanças, tropas de linha e auxiliares, p. 492.
6
ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII, p. 122-123.
7
Idem, p. 20, 140, 148. RAMINELLI, Ronald J. Nobreza indígena – os chefes potiguares, 1633-1695. In:
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa,
2011, p. 60-61. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena
Souza e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais.
Fortaleza: v. 43, n. 2, 2012, p. 12-13.
218

válida para comunidades integradas ao império colonial português, tais atributos podem ter
permanecido, mesmo que com muitas modificações. Em relações aos dois últimos pontos, o
caráter de orador também poderia estar presente em ações de requerimento – quando escrevia
às instâncias governamentais em prol de seus liderados – e sua generosidade – por meio da
qual dava e fazia tudo pelo grupo – se expressava pela manutenção de sua posição no interior
de suas comunidades mesmo quando aparentemente não ganhava muito.8
Sobre as atribuições de um chefe indígena, Raminelli apresenta o exemplo de Antônio
Paraupaba, liderança potiguar aliada dos holandeses no século XVII que, passando a viver nos
Países-Baixos, pleiteou durante anos seu retorno à América e o reestabelecimento de sua
posição como liderança militar de seu povo, sob o pretexto de novamente congregá-lo em prol
dos interesses batavos. O autor não esclarece, entretanto, diante de quem Paraupaba buscava
retomar o seu prestígio.9 É preciso considerar que, pela lógica ameríndia, não haveria outro
caminho para esta liderança recuperar seu status: a manutenção de seu título só faria sentido
se fosse de interesse do grupo, seguindo os mecanismos próprios das comunidades.
Ao contrário da lógica europeia, a autoridade tribal indígena era destituída de poder, e
a impotência da instituição estava estruturalmente articulada à essência da sociedade. A
respeito da primeira atribuição apontada por Clastres, o poder do líder aumentava
eventualmente em situações de guerra, mas sua função principal era a de mantenedor da
harmonia do grupo.10 A autoridade da chefia indígena colonial, portanto, estabeleceu-se –
instrumentalizada pelo colonizador e agindo pelos interesses de suas comunidades – a partir
do modelo social militarizado dos corpos de ordenanças. As ações bélicas não eram raras
(contra gentios, insubordinados e ameaças estrangeiras) e, quando não aconteciam, os índios
aldeados viviam com a disciplina dos recrutamentos, das revistas e da vigilância no cotidiano
das vilas e roçados. Se nos povos que tinham pouco contato com os colonizadores havia dois
chefes – um titular (“de paz”) e outro de guerra11 – com tal sociedade militarizada as
lideranças indígenas guerreiras se firmaram diante de suas comunidades e da administração
colonial.
Para Beatriz Perrone-Moisés, discordando da recusa do poder e da hierarquia
defendida por Clastres, a duplicidade era a marca das sociedades ameríndias: em um mundo

8
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política. Porto:
Afrontamento, 1979, p. 27.
9
RAMINELLI, Ronald J. Nobreza indígena – os chefes potiguares, 1633-1695. In: OLIVEIRA FILHO, João
Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 58.
10
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado, p. 27.
11
Ibid., p. 47-48. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões: elementos de filosofia
política ameríndia. Revista de Antropologia (USP), v. 54, n. 02, 2011, p. 859-860.
219

com diferentes chefes para cada situação, o que se recusava era a escolha. Não se tratava,
portanto, de recusar “o ‘poder’ em nome da ‘liberdade’ ou a ‘hierarquia’ em nome da
‘igualdade’”. Todavia, com o estreitamento da relação dos grupos ameríndios com outras
concepções políticas, novas fontes de prestígio e formas de autoridade poderiam surgir.12 A
inserção militarizada das comunidades indígenas no império atlântico, portanto, reconfigurou
o sentido das chefias.
Como vimos no capítulo anterior, o Diretório não trouxe inovações acerca das
ordenanças, mas delimitou o papel dos oficiais indígenas.13 Segundo Mauro Cezar Coelho, os
dois fatores que sofreram a maior inflexão com a introdução da lei pombalina foram a coerção
e a hereditariedade: justamente o que Clastres apontou como avesso ao poder político
indígena. Coelho é enfático em afirmar que o Diretório não inaugurou tais características no
seio das comunidades índias aldeadas, mas acentuou a integração dessas populações à
sociedade colonial portuguesa, objetivo central da lei pombalina. “Nesse sentido, o papel das
chefias [...] passa a constituir os projetos e as iniciativas de ocupação e reprodução da
sociedade colonial – material e culturalmente”.14
Com o Diretório, as lideranças militares indígenas não somente atuaram na defesa dos
domínios portugueses, mas foram também pivôs na transformação dos índios em vassalos
produtivos e fiéis ao rei. Redimensionando suas posições como oficiais de ordenança, a lei
pretendia, segundo Rita Heloísa de Almeida, reforçar o princípio de que os índios estariam
“aptos a formarem quadros de representação política”. Estes deveriam, em primeiro lugar,
agir para modificar os costumes de suas comunidades.15 Ângela Domingues defende que, com
o Diretório, houve a formação de uma elite indígena. Possuindo patentes nas ordenanças,
intentavam “diferenciar-se do comum da população”, na busca de privilégios e
reconhecimento por parte da sociedade colonial.16 Segundo Rafael Ale Rocha, no século
XVIII isso era de certa forma facilitado em regiões como a Amazônia, cujo peso percentual

12
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões, p. 876.
13
Ao regulamentar o papel das lideranças como intermediadores das determinações da Coroa, o Diretório
enfatiza a figura dos “principais”, como eram chamados os chefes indígenas tradicionais e bastante comentados
pela historiografia. Entretanto, não encontrei nesta pesquisa, ou em trabalhos que abordem o período pombalino
no Ceará, nenhuma referência ao termo, com exceção de algumas cartas patentes que o utilizam como recurso
formal.
14
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo,
2005, p. 214.
15
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século
XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 183.
16
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil
na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2000, p. 174-175.
220

dessa população na sociedade era significativo.17 Maria Regina de Almeida também concorda
que o papel das lideranças como “intermediários entre as autoridades e os demais índios” foi
“particularmente valorizado com a política pombalina”. A autora ressalta que nesse período os
índios deixavam de ser incluídos entre as chamadas “raças infectas” e sua atuação a partir das
patentes militares foi ampliada.18
A importância que tinham tais lideranças para a Coroa portuguesa foi demonstrada na
pompa com que foram recebidos os chefes das aldeias do Ceará e de outras capitanias anexas
a Pernambuco no Recife, para discutir a instalação das vilas pombalinas, em 1759. 19
Viabilizadores da “civilização” pretendida pela monarquia europeia para os nativos
americanos, as chefias eram, de acordo com Fátima Lopes, provenientes de famílias
tradicionalmente ligadas aos interesses da administração colonial. 20 Segundo Lígio Maia, com
as transformações da política pombalina na segunda metade dos setecentos, tais lideranças se
mantiveram ao longo de décadas “justamente porque se adequaram às inovações do Diretório,
decidindo elas que a colaboração com as autoridades colonialistas era então
imprescindível”.21
Para Adriano Paiva, a ambição das lideranças por prestígio e benefícios se deu em
detrimento de seus grupos. Segundo ele, um “novo esquema sociopolítico indígena”
possibilitou a criação de uma posição de “chefe que não mais representaria os interesses de
suas comunidades”.22 O autor simplifica bastante a ação dos líderes militares, como se o
Diretório tivesse acentuado seu egoísmo. Entretanto, isso não necessariamente acontecia. O
poder que tais autoridades adquiriram de fato se transformou, passando a emanar do rei, mas

17
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-
1798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 15-16.
18
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010,
p. 119-120. Nesse período os cristãos-novos também deixaram de ser considerados como raça-infecta. Cf.
FIGUERÔA-REGO, João de. OLIVAL, Fernanda. Cor de pele, distinções e cargos, p. 145.
19
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 125-126. LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de
índios: novos interlocutores nas vilas da capitania do Rio Grande do Norte. Anais do XXV Simpósio Nacional
de História – ANPUH. Fortaleza, 2009, p. 2. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a
vila de índios: vassalagem e identidade no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História),
Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 271. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O enobrecimento dos
líderes indígenas na capitania do Rio de Janeiro, p. 71-72. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do
período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa. In: OLIVEIRA FILHO, João
Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 133-134.
20
LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios, p. 3-4. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na
Amazônia pombalina, p. 59.
21
MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Souza e
Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: v.
43, n. 2, 2012, p. 20.
22
PAIVA, Adriano Toledo. “O domínio dos índios”: catequese e conquista nos sertões de Rio Pomba (1767-
1813). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2009, p. 156-187.
221

ainda dependiam de seus comandados, como aponta Bárbara Sommer.23 Segundo Patrícia
Sampaio, apesar do Diretório ter reforçado as “hierarquias indígenas”, a manutenção das
prerrogativas dos líderes continuava a depender, também, “de sua capacidade de fazer valer o
atendimento das necessidades dos seus ‘vassalos’”.24
O poder das lideranças indígenas, ainda que transformado com as patentes de oficiais
de ordenança e detalhado com o Diretório, não se desvinculava dos interesses de suas
comunidades e de suas lógicas culturais. Para Mauro Coelho, as “bases tradicionais, próprias
das populações indígenas, e o reconhecimento das autoridades metropolitanas” eram os
pilares de sustentação das chefias indígenas durante a vigência do Diretório.25 Nos casos
analisados por Clastres, se “o poder est[ava] contra o grupo”, a reciprocidade existia como a
“dimensão ontológica [...] da própria sociedade” indígena.26 Entretanto, o mesmo pode ser
dito sobre as lideranças índias coloniais – imbuídas de hierarquia – acerca de seu caráter
recíproco, ainda que tivessem passado a conhecer o poder coercitivo. É por isso que, mesmo
com a perda de importância das ordenanças de índios diante do governo brasileiro e a
desagregação das comunidades na primeira metade do século XIX, as autoridades nativas se
mantiveram por tanto tempo.
Antes da independência, no início dos oitocentos, os oficiais de ordenanças indígenas
ainda possuíam seus postos e sua relevância. Apesar da famosa passagem de Koster, em que
relata o exemplo do capitão-mor índio ridicularizado pelos brancos,27 Bárbara Sommer faz
referência a lideranças indígenas que mantiveram suas posições no século XIX no Pará,
mesmo com a abolição do Diretório.28 Caio Prado Junior acertadamente observou que o
viajante inglês, ao ironizar o oficial índio, não viu o sistema que representava e a importância
das ordenanças para a sustentação da “ordem política e administrativa da colônia”.29
No Ceará, onde a lei permaneceu em vigor nos oitocentos, oficiais indígenas ainda
comandavam ordenanças e participaram de eventos bélicos, como veremos nos próximos

23
SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil,
1758-1798. Tese (doutorado) – University of New Mexico, 2000, p. 221.
24
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus:
Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 201-202.
25
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar, p. 218.
26
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado, p. 40.
27
A partir de sua estadia no Ceará em 1810, o viajante registrou que os “indígenas têm também seus capitães-
mores cujo título é vitalício e dá algum poder sobre os seus companheiros, mas como não há salário, o capitão-
mor indígena é muito ridicularizado pelos brancos, e com efeito, um oficial meio nu, com sua bengala de castão
de ouro na mão é um personagem que desperta o riso nos nervos mais rijos”. KOSTER, Henry. Viagens ao
nordeste do Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo/Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 177.
28
SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements, p. 236.
29
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961,
p. 326.
222

capítulos. É possível afirmar, portanto, que nesta capitania ainda havia uma “elite indígena”
no início do século XIX que continuou pela própria permanência do Diretório que a
consolidou. Os descendentes das antigas lideranças militares setecentistas, ainda que não
tivessem o respeito exigido por lei de autoridades coloniais, eram prestigiados pelos
governantes metropolitanos e por seus liderados. Capitães e sargentos-mores indígenas
mantiveram a existência de uma hierarquia hereditária nessas comunidades pelo menos até a
passagem das décadas de 1820 e 1830.
Com a descentralização da política indigenista e a promulgação da lei da Guarda
Nacional, o espaço de prestígio pela via militar se tornou bastante restrito para os índios.
Várias pesquisas acerca dos kaingangs no sul do país fazem referência a diversas lideranças
que atuaram na ocupação de territórios e na luta contra índios arredios na década de 1830,
como Vitorino Condá e Viri. Segundo Lúcio Mota, ainda nesse período, mesmo que de certa
forma colaborassem “com os brancos, jamais lhes foram totalmente submissos e
confiáveis”.30 Eram, entretanto, indispensáveis para os planos do império brasileiro, e por isso
receberam salários, ferramentas, tecidos e até títulos militares, como conta Kátia Malage.31
Patentes foram concedidas a índios mesmo após a independência, mas diminuíram
drasticamente com a Guarda Nacional, salvo as raras exceções que vimos no capítulo anterior.
No Ceará, elas desaparecem no final da década de 1820, bem como as referências à atuação
dos oficiais na documentação.

6.1. NOMEAÇÕES E JURAMENTOS

O Regimento dos Capitães-mores de 1570 estabelecia, em seu §1º, que a ocupação de


cargos de oficiais de ordenanças era feita a partir de eleições nos senados das vilas.32 Segundo
Angélica Camargo, a realização desses pleitos nas câmaras “estabelecia um vínculo estreito
entre estas e as ordenanças, que acabaram por assumir o caráter de braço auxiliar na execução
da política administrativa metropolitana”. No governo de dom José I (1750-1777) verificou-se
o ápice do processo de “restrição gradual do poder de ingerência das câmaras” nesses

30
MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná
(1769-1924). Maringá: Eduem, 2008, p. 231.
31
MALAGE, Kátia Graciela Jacques Menezes. Condá e Viri: chefias indígenas em Palmas-PR, década de 1840.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Paraná, 2010, p. 105-107.
32
Regimento dos capitães-mores e mais capitães e oficiais das companhias da gente de cavalo e de pé e da
ordem que terão em se exercitarem. 15 de dezembro de 1570. Disponível em:
<http://www.arqnet.pt/exercito/1570capitaesmores.html>.
223

regimentos auxiliares, que já vinha ocorrendo em períodos anteriores.33 Nessa época, os


vereadores passaram a apenas indicar os nomes que seriam empossados pelo rei ou pelo
governador das capitanias. Entretanto, a nova forma não impediu a articulação das elites
camarárias com as tropas locais, como vemos nos exemplos trabalhados por José Eudes
Gomes.34 O Diretório, também criado no reinado josefino, não trouxe alterações na forma de
escolha das autoridades de ordenanças indígenas.35 Mas, ao elevar as aldeias a vilas, criou
novas formas de distinção social por meio das câmaras e o vínculo entre oficiais militares e
índios vereadores, consolidando as hierarquias e as elites nativas nas comunidades.
Como apontou Rafael Rocha, os textos das nomeações e cartas patentes costumavam
seguir regras formais que indicavam as pretensões da Coroa acerca do papel das lideranças
indígenas nas vilas. Ressaltavam a importância na hierarquia da qual faziam parte, a função
de intermediários entre os interesses monárquicos e seus subordinados e, às vezes, o ganho
advindo de sua patente.36 Algumas, entretanto, eram bem sucintas, restringindo-se a apontar
os nomeados e seus respectivos cargos, como foi o caso de Manoel de Jesus, posto no cargo
de alferes da companhia de ordenança dos índios de Arronches em março de 1799, por ordem
do governador Luis da Motta Féo e Torres.37
Também foi concisa a nomeação de Virgínio da Costa Lima como capitão-mor das
ordenanças do povoado de Baepina, no mesmo mês da anterior: aqui, entretanto, o documento
assinala para o fato de que o nome de Lima foi “proposto pela câmara de Vila Viçosa”. 38 A
liberdade que os vereadores das vilas de índios tinham para indicar pessoas para ocupar
postos militares é um indício da relativa importância das lideranças indígenas na sociedade
colonial. Ainda que os líderes fossem submetidos a um diretor, com quem muitas vezes
mantinham relações conflituosas, as indicações de oficiais pelas câmaras proporcionavam que
o ambiente político em tais vilas fosse marcado pela resistência aos abusos dos
administradores leigos. Consequentemente, um grupo mais ou menos coeso de autoridades
nativas se montava com o reconhecimento de suas comunidades.

33
CAMARGO, Angélica Ricci. Companhia de ordenanças. In: Mapa: memória da administração pública
brasileira. Disponível em: <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=4768>, p. 2-3.
34
Cf. GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey, p. 90, 210.
35
O diretor, figura criada com a política indigenista pombalina, provavelmente não atuava na escolha de oficiais
de ordenanças indígenas, já não lhe cabia “exercitar jurisdição coativa nos índios, mas unicamente à que
pertence ao seu ministério, que é diretiva”. Cf. DIRETÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios do
Pará, e Maranhão, enquanto sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758,
§2.
36
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 71.
37
Nomeação de Manoel de Jesus como alferes da vila de Arronches. Fortaleza, 1 de março de 1799. APEC, GC,
livro 65, p. 228V.
38
Nomeação de Virgínio da Costa Lima como capitão-mor de Baepina. Fortaleza, 27 de março de 1799. APEC,
GC, livro 65, p. 229V.
224

A indicação de Manoel José da Rocha para sargento-mor de Monte-mor Novo também


havia sido proposta pela câmara da vila, em junho de 1799. Sua nomeação, entretanto, é mais
extensa, sendo mais rica em aspectos formais: previa que diretor e outros principais o
deixassem “servir e exercitar com toda a jurisdição” o posto a que era nomeado, “que pelos
regimentos e ordens de Sua Majestade”. Da mesma forma, exigia que os “índios seus
subordinados o reconhece[ssem] por seu sargento-mor, e como tal lhe obedece[ssem],
cumpri[ssem] e guarda[ssem] as suas ordens, por [?] e de palavra, como devem e são
obrigados”.39
Rafael Rocha destaca a função de intermediários dessas lideranças militares índias e
sua atuação na consolidação do governo nas vilas.40 Ainda que diretores e outros
representantes da Coroa geralmente não respeitassem sua posição, a relação que mantinham
com seus subordinados costumava ser de respeito. A situação se explicava, além de se
posicionarem frequentemente em defesa de sua comunidade, pelo próprio fato de que seus
postos e destaque eram reconhecidos e constituídos pelo monarca.
Nomeações e patentes de oficiais indígenas também ressaltavam a importância do
Diretório e de sua estrutura administrativa nas vilas. Em outubro de 1799, o governador
Bernardo Manuel de Vasconcelos nomeou Antônio Ferreira Pessoa e Gabriel Ferreira Maciel
aos cargos de comandante de Monte-mor Velho e Monte-mor Novo, respectivamente.
Obedecendo ao diretor, capitão-mor e mais principais, e “conformando-se com as
determinações do Diretório”, deveriam “executar as ordens que se acham estabelecidas”. Da
mesma forma, às autoridades da localidade, ordenou-se que o reconhecessem, honrassem e
estimassem, assim como pagassem os “emolumentos que direitamente lhe pertencem”.41
Fazia parte das incumbências de um oficial indígena garantir a plena execução da lei,
disciplinando seus subordinados e atuando para sua integração à sociedade portuguesa. Os
registros também atestam a política diferenciada da Coroa portuguesa para distintas realidades
de sua colônia: pouco tempo após a promulgação da Carta Régia de 1798 no norte da Colônia,
as referidas cartas patentes são exemplos de que a distinção social incentivada pela política
pombalina ainda era vigente em algumas regiões.
Assim como ocorria desde a instalação das vilas, a posição de liderança continuou
tendo a ver com linhagens familiares. Em 7 de março de 1800, foram confirmadas as patentes

39
Nomeação de Manoel José da Rocha como sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 18 de junho de 1799.
APEC, GC, livro 65, p. 235.
40
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 95.
41
Nomeação de Antônio Ferreira Pessoa como comandante de Monte-mor Velho. Fortaleza, 14 de outubro de
1799. Nomeação de Gabriel Ferreira Maciel como comandante de Monte-mor Novo. Fortaleza, 31 de outubro de
1799. APEC, GC, livro 66, p. 6 e 12.
225

de sargento-mor para Francisco da Costa Vasconcelos e de capitão-mor para José da Costa


Vasconcelos Mascarenhas, nas ordenanças de Vila Viçosa.42 A família Vasconcelos era uma
das mais importantes da Ibiapaba, e seus membros aparecem recorrentemente nos registros
ligados à autoridades nativas da região.43 O capitão-mor Vasconcelos Mascarenhas faleceu
em 1807, e com a vacância de seu posto foi nomeado Ignácio de Souza e Castro: o mesmo
que, em 1817, encabeçou o elogioso abaixo-assinado em homenagem a Manoel Ignácio de
Sampaio, que analisamos no capítulo 4.
Souza e Castro era membro de outra família indígena tradicional e descendente de
figuras importantes para estabelecimento português no Ceará.44 Na sua carta patente, o
governador José Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg ressaltou que o nome do novo
capitão-mor fora indicado pela câmara da vila: mais um indício da posição de destaque em
sua comunidade, em que havia sido sargento-mor. No seu lugar, foi nomeado no mesmo dia
João da Costa da Anunciação, que já havia assumido o posto de capitão de uma das
companhias da mesma ordenança. Pelo texto de suas nomeações, Souza e Castro e
Anunciação não receberiam soldo nos novos postos, mas gozariam “de todas as honras, graças
e privilégios que em razão dele[s] lhe[s] pertencerem”.45
A proeminência de um oficial indígena em virtude da possibilidade de acúmulo
material, de que falam Fátima Lopes e Lígio Maia,46 parecia não ser uma regra, já que oficiais
de tropas auxiliares não eram pagos. Henry Koster, inclusive, explicou o deboche sofrido
pelos capitães-mores índios por não receberem salário.47 Até mesmo uma autoridade como
Ignácio de Souza e Castro – membro de uma família importante, descendente de figuras
destacadas e com uma reconhecida experiência nos serviços da Coroa – não receberia
qualquer pagamento como mercê pela nova patente. Ainda assim, o fato não diminuía a
relevância do papel que ocupava como ponte de ligação entre o monarca e sua comunidade.
Daí talvez viesse a zombaria mencionada por Koster: mesmo sem remuneração, os capitães-
mores provavelmente se percebessem como socialmente importantes. Na relação recíproca de

42
Nomeação de Francisco da Costa Vasconcelos como sargento-mor de Vila Viçosa. Confirmação de patente de
capitão-mor de Vila Viçosa a José da Costa Vasconcelos Mascarenhas. Fortaleza, 7 de março de 1800. APEC,
GC, livro 66, p. 45.
43
Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 95-96. XAVIER, Maico
Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios do termo da Vila
Viçosa Real - século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 27-30.
44
Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 282-290.
45
Nomeação de Ignácio de Souza e Castro como capitão-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 4 de fevereiro de 1807.
APEC, GC, livro 67, p. 115. Nomeação de João da Costa da Anunciação como sargento-mor de Vila Viçosa.
Fortaleza, 4 de fevereiro de 1807. APEC, GC, livro 67, p. 116.
46
LOPES, Fátima Martins. Oficiais de ordenanças de índios, p. 9. MAIA, Lígio José de Oliveira. Honras, mercês
e prestígio social, p. 12-13.
47
KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil, p. 177.
226

fidelidade – prestada pelo vassalo – e mercê – dada pelo rei – não havia privilégio maior para
um índio do que a possibilidade de comunicação direta com o soberano português.
Prova disso foi a isenção do subsídio militar em 1819, uma demonstração de
reconhecimento de dom João VI da atuação das ordenanças indígenas em 1817. O decreto,
que abolia o imposto cobrado aos índios, veio após a súplica de Manoel Ignácio de Sampaio
e, principalmente, a iniciativa dos índios da Ibiapaba – com destaque para o já mencionado
abaixo-assinado organizado por Souza e Castro. Além disso, a nomeação sem soldo de
Anunciação não o impediu de defender a manutenção da ordem em nome do governo contra
os índios revoltosos da Ibiapaba em 1822, como vimos no capítulo 3. Atestamos, portanto,
que no início do século XIX as lideranças militares indígenas ainda mantinham suas
prerrogativas diante do rei e poder sobre seus comandados, compondo as hierarquias
hereditárias das comunidades.
A ascensão de um oficial por meio das ordenanças de índios não se dava apenas por
vacância de um posto ou pela proposição da câmara, mas também pela iniciativa individual de
alguns. Um caso já analisado por Lígio Maia e por mim foi o de Antônio de Verçosa que, em
1815, solicitou a patente de alferes e o ofício de vaqueiro em uma das fazendas reais no Piauí.
Para isso, alegou ter sido soldado nas ordenanças sua vila e ser descendente de Lopo Tavares
da Silva, ajudante de dom Felipe Camarão, o que foi posteriormente provado ser falso.48 Mais
sucesso encontrou Antônio Alves Barbosa, que em 1804 teve seu pedido deferido para ser
nomeado comandante dos índios de Baepina. Em sua carta patente, destaca-se a obrigação de
“manter a paz e o sossego entre seus comandados, e a aplicá-los à cultura das terras e
plantações, principalmente da mandioca, na conformidade do Real Diretório”.49
Mais uma vez fez-se referência à política pombalina enquanto regulamento das
competências de uma autoridade militar. Em seu papel de transmitir as intenções da Coroa
para as comunidades que lideravam, os oficiais militares indígenas também eram peças
importantes na civilização dos seus comandados por meio do incentivo trabalho e do sucesso
da produção nas vilas de índios. Cientes de sua posição na sociedade portuguesa e do
reconhecimento e mercês que recebiam do rei, costumavam agir a favor dos interesses reais. E
mesmo nas situações já estudadas em que encabeçaram mobilizações a favor da abolição do
Diretório, o que pleiteavam não era o fim do trabalho e, muito menos, a quebra de vínculos

48
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 280-281. COSTA, João
Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina:
EDUFPI, 2015, p. 324-329.
49
Nomeação de Antônio Alves Barbosa como comandante de Baepina. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1804.
APEC, GC, livro 70, p. 2V.
227

com a monarquia e outras autoridades, mas, sim, respeito às suas posições e autonomia em
suas terras.
A Coroa também poderia ganhar com a concessão dos títulos de oficial aos índios, na
medida em que conseguia estender geograficamente seu poder para a população do município
de uma vila de índios, empossando-os para localidades distantes e afastadas das sedes das
vilas. Os casos a seguir são exemplos desse funcionamento das ordenanças como instrumento
de capilaridade social. Entre 1819 e 1820 foram passadas patentes de capitão-mor a quatro
oficiais de distritos: Antônio Francisco Pereira na Pavuna e Ignácio da Silva Campelim na
Caracanga, povoados de Messejana; Gabriel da Silva Rios para a 3ª companhia das
ordenanças de Soure, “cujo distrito principia da serra Taquara até o rio Ceará, e de largura da
Urucutuba até a serra do Coité”; por fim, Francisco de Paula Barbosa na 20ª companhia de
Vila Viçosa, correspondendo do “lugar denominado Tape até a povoação de São Pedro de
Baepina”. Em todas as referidas cartas patentes o capitão-mor empossado havia sido indicado
pela câmara, ocupando o posto por vacância e sem receber soldo.50
Como foi dito, a ausência de soldo não impedia o reconhecimento de uma autoridade
indígena perante os seus. Mesmo sem pagamento, a existência de tais cargos era uma
possibilidade real de distinção social para índios que viviam em comunidades afastadas, além
de ser uma chance de obtenção de outros privilégios. Assim funcionava o sentido da
capilaridade das companhias de ordenança, fazendo com que a militarização e a disciplina
alcançassem todos os vassalos.
As cartas patentes de capitão-mor para Atanásio de Faria Maciel, de Messejana,
Francisco da Costa Lira, de Soure, e Antônio Tavares, de Arronches, tem formato semelhante
às analisadas há pouco. Eles ocuparam os cargos por vacância, indicados pelas câmaras
respectivas e não receberiam soldo, gozando, contudo, “de todas as honras, graças,
privilégios, liberdades, isenções e franquias que em razão dele lhe pertencerem”. 51 A pesquisa
conseguiu localizar os termos de juramento desses três oficiais. Os textos são os mesmos,
pelos quais os recém-empossados capitães-mores identificaram-se como “de nação índio”,

50
Nomeação de Antônio Francisco Pereira como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 12 de junho de 1818.
Nomeação de Ignácio da Silva Campelim como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 12 de junho de 1818.
Nomeação de Gabriel da Silva Rios como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 17 de fevereiro de 1819. Nomeação
de Francisco de Paula Barbosa como capitão-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 12 de dezembro de 1819. APEC,
GC, livro 70, p. 59, 60, 66 e 85V.
51
Nomeação de Atanásio de Faria Maciel como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 5 de dezembro de 1820.
Nomeação de Francisco da Costa Lira como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 5 de dezembro de 1820.
Nomeação de Antônio Tavares como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 5 de dezembro de 1820. APEC, GC,
livro 74, p. 23V, 24V e 25V. Registro de patente de capitão-mor de Soure a Francisco da Costa Lira. APEC, GC,
livro 62, p. 281V.
228

tendo “sempre prestes a dita gente para o serviço de Sua Majestade, e defensão do dito lugar e
obediente aos seus mandados como bom e leal vassalo”. Com “a dita gente” fariam guerra
quando ordenado pelo rei, mas jamais usariam dela para defender interesses particulares.
Fizeram homenagem nas mãos do monarca, “uma, duas, três vezes segundo o uso e costume
destes reinos”, jurando aos Santos Evangelhos usar apenas da jurisdição dada pelo soberano
lusitano.52
Diferentes da documentação do século XVIII analisada por Rafael Rocha, a dos
oitocentos já não mais constava o grupo étnico do oficial nomeado, referência substituída pela
indicação que o mesmo era de “nação índio”.53 Segundo Marcus Carvalho, o “interesse em
distinguir as nações por suas raízes étnicas perdera-se na primeira metade do século
dezenove”, quando os índios “passaram a ser identificados apenas pelo local onde estavam
aldeados”.54 A nova expressão presente nos juramentos relacionava-se com os objetivos
integradores da política indigenista da época e de diluição étnica dos índios, desvinculando-os
de seus costumes ancestrais. O termo “nação” demarcava a busca pela inserção dos grupos
indígenas, desfeitos de suas antigas diferenças e especificidades culturais, como um dos
corpos que constituíam a sociedade portuguesa.55
O formato destes juramentos, feitos pouco tempo antes da separação política
brasileira, difere também em aspectos importantes do único encontrado por esta pesquisa para
o período após 1822, talvez a última patente de oficial indígena de ordenança no Ceará. O
registro é referente à nomeação de Vitorino Correa da Silva como capitão-mor de Arronches
em 5 de dezembro de 1823,56 cujo juramento se deu no dia 25. À frente dos homens brancos
e índios das ordenanças da vila, com a mão direita sobre os evangelhos, jurou ter “sempre
prestes a dita gente para o serviço nacional e imperial, e defensão do dito lugar, obediente aos
seus mandados como fiel súdito”. Fez “preito e homenagem à nação e à S. M. I. [Sua

52
Termo de juramento de Atanásio de Faria Maciel como capitão-mor de Messejana. Fortaleza, 12 de dezembro
de 1820. Termo de juramento de Antônio Tavares Nunes como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 3 de
janeiro de 1821. Termo de juramento de Francisco da Costa Lira como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 17 de
janeiro de 1821. APEC, GC, livro 61, p. 82-83.
53
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 74.
54
CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848):
Ideologias e Resistências. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e
problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002. p. 76.
55
“A sociedade moderna concebia-se a si mesma como um corpo. A sua constituição proviria, tal como a do
corpo, da natureza. A vontade, quer do rei, quer dos súditos, não a poderia alterar. Os diversos órgãos sociais
(famílias, Igrejas, comunidades, grupos profissionais) teriam, tal como os órgãos do corpo, uma extensa
capacidade de auto-regulamentação”. Cf. XAVIER, Ângela Barreto. HESPANHA, Antônio Manoel. A
representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo regime
(1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, s/d, p. 122.
56
Nomeação de Vitorino Correa da Silva como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 5 de dezembro de 1823.
APEC, GC, livro 62, p. 352.
229

Majestade Imperial]” e afiançou guardar “em tudo o Diretório, e as determinações


diretoriais”, usando inteiramente da “jurisdição que pela nação e S. M. I. é-me dada”.57
O termo nação é recorrente nos juramentos apresentados, mas guardam significados
distintos, característicos dos momentos em que foram feitos. Na primeira, se refere aos índios
que os capitães-mores lideravam: faziam parte daquele povo, constituinte, por sua vez, da
heterogeneidade de súditos da Coroa portuguesa. Já quando utilizado no caso de Vitorino
Correa da Silva, reflete o momento de formação do Estado brasileiro e sua nacionalidade.
Como veremos no próximo capítulo, os índios também estiveram inseridos nesse processo,
seja através da formação de tropas em alerta a qualquer chamado, em situações de juramento
à bandeira do novo país como também em combates reais contra a resistência portuguesa no
Piauí, ocorrida poucos meses antes da nomeação do referido oficial de Arronches.
No dia seguinte ao juramento de Vitorino da Silva registrou-se sua carta patente, com
formato bem semelhante às outras já analisadas. Difere, entretanto, em aspectos formais que
ressaltam a constituição da nova nação. Esperava-se dele que, “em tudo o de que for
encarregado do serviço nacional”, haveria “com pronta satisfação, desempenhando o conceito
que forma de sua pessoa, e mais por se achar o proposto nas circunstâncias do decreto de 9 de
outubro de 1812 e mais ordens imperiais”. Não receberia soldo, gozaria de “graças,
privilégios, liberdades, isenções e franquezas” e era obrigado a confirmar patente no prazo de
um ano. Oficiais e soldados subordinados deveriam obedecê-lo e guardar “suas ordens no que
pertencer ao nacional serviço”.58
De acordo com José Caros Chiaramonte, o conceito de “nação” tende a despojar seu
sentido étnico desde, pelo menos, o século XVIII. Com a passagem para os oitocentos, o
“Estado” muda sua natureza, “adotando a palavra nação para arrogar-se a soberania”.59 Para
François-Xavier Guerra, no Antigo Regime, o termo nação se referia a um grupo de
indivíduos de origem comum. Após a independência, adquiriu seu sentido moderno,
significando a “associação voluntária de indivíduos iguais”. Passou-se a pensar uma
sociedade comum,60 sem os corpos sociais que caracterizavam, por exemplo, as divisões
militares no Brasil colonial. Mas, como lembrou Istvan Jancsó, para as elites brasileiras a

57
Termo de juramento de Vitorino Correa da Silva como capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 25 de dezembro
de 1823. APEC, GC, livro 61, p. 101V.
58
Registro de patente de capitão-mor de Arronches a Vitorino Correa da Silva. Fortaleza, 26 de dezembro de
1823. APEC, GC, livro 72, p. 120.
59
CHIARAMONTE, José Carlos. Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII. In:
JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p.
67, 87.
60
GUERRA, François-Xavier. A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István
(Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 52-55.
230

hipótese de integrar a população do novo país a partir de uma “coesão interna com base em
critérios universais (fundamento da ideia nacional), pareceu-lhes absurda. Para elas, o corpo
social, no seu todo, não formava a nação, nem deveria formá-lo.”61
A nomeação de um oficial de companhia de ordenanças índias após a independência,
jurando defender, ao mesmo tempo, a nação e as determinações do Diretório, é um sinal desse
aspecto. Era notória a continuidade de aspectos do Antigo Regime no pós-independência,
especialmente no que dizia respeito às hierarquias sociais e identificações étnicas por conta do
conservadorismo característico do período, como defende Carlos Guilherme Mota. Segundo o
autor, somente com a marginalização do poder central, em 1831, é que o “Brasil vai
consolidar sua identidade propriamente nacional”, opinião também compartilhada por
Kenneth Maxwell.62
Assumamos o desafio proposto por João Paulo Pimenta acerca dos estudos sobre o
processo de independência do Brasil, para que se investiguem indivíduos e grupos de
diferentes condições sociais relacionando-os com as transformações das categorias.63 Para um
oficial indígena como Vitorino da Silva, os dois conceitos de “nação” – ligados ao seu povo e
ao país – se sobrepunham. Segundo Ângela Xavier e Antônio Manuel Hespanha, a função do
rei no Antigo Regime, sendo a cabeça do corpo social, era a de representar a sua unidade e
“manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é
próprio [...], garantindo a cada qual seu estatuto”.64 Por sua vez, a nova “nacionalidade”
brasileira, ao ter o monarca como centro e amálgama, ainda guardava muitas características
do regime político anterior. Dessa forma, não necessariamente o vínculo étnico que tinha com
seu grupo se extinguia, e mais do que isso, era possível adquirir uma posição de destaque
advinda tanto do reconhecimento comunitário como também da nação e de seu rei.
Seguindo as sugestões de Tamar Herzog, é preciso buscar reconstruir os significados
das comunidades, bem como das categorias, critérios e mecanismos de exclusão e inclusão,

61
JANCSÓ, István. Este livro. Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp,
2003, p. 28.
62
MOTA, Carlos Guilherme. Ideias de Brasil: formação e problemas (1817-1850). Viagem incompleta. A
experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 223. MAXWELL,
Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In. MOTA, Carlos Guilherme (Org.).
Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo,
2000, p. 194.
63
PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da
produção acadêmica. Revista de História Ibero-americana, v. 01, n. 01, 2008, p. 90-91.
64
XAVIER, Ângela Barreto. HESPANHA, Antônio Manoel. A representação da sociedade e do poder, p. 123.
LARA, Silvia Hunold. Introdução. In: LARA, Silvia Hunold. Ordenações Filipinas, livro V. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 19-20. PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos
tempos da independência. Lua Nova, n. 81, 2010, p. 19.
231

para as pessoas que nelas viveram no período aqui estudado.65 Oficiais indígenas reforçavam
suas posições de vassalo e de autoridades por meio dos juramentos que prestavam e pelo
compromisso de defenderem os desígnios das monarquias a que eram fieis. Enxergavam-se
como dignos súditos da Coroa lusitana e, posteriormente, como partícipes da nação brasileira.
Por um lado, a manutenção de divisões por corpos característicos do Antigo Regime,
como as ordenanças entre 1822 e 1831, fora sintoma do conservadorismo de uma elite
escravocrata e paternalista que não aceitava a igualdade entre os membros do país e nem sua
convivência com índios, negros e mestiços nas mesmas companhias. Por outro, o fim dessas
corporações militares pode ser considerado o decreto do estabelecimento dessa política
conservadora, visando dificultar o acesso de não-brancos aos cargos do oficialato. Tidas como
“liberais”, as promulgações da Constituição de 1824 e da lei da Guarda Nacional em 1831 não
foram suficientes para fazer dos índios “iguais”: apesar do argumento de “igualdade perante a
lei”, a cidadania brasileira passou a ser vivida de forma gradativamente excludente. A partir
do período regencial e com o advento do Segundo Reinado, a existência de lideranças
militares indígenas se tornou cada vez mais rara.

6.2. A ATUAÇÃO DOS OFICIAIS INDÍGENAS

Um detalhe que geralmente escapa à historiografia quando comenta o relato de Henry


Koster sobre o ridicularizado capitão-mor indígena era que, apesar da forma como era tratado
pelos brancos, o mesmo tinha “algum poder sobre seus companheiros”.66 Aparentemente
pouco, porque limitado, esse poder já era, por si, significativo, levando em consideração a
forma pela qual o papel dos chefes nas sociedades tribais ameríndias era tradicionalmente
descrito, como vimos no início deste capítulo. Também nos possibilita a reflexão acerca da
posição de intermediários desses oficiais nativos entre os desígnios da Coroa e as expectativas
de seus comandados. A integração desses povos pelo meio militar, reforçada pelo Diretório,
incentivou uma hierarquização no seio dessas comunidades, ainda que a capacidade de
coerção dessas lideranças se impusesse até certo ponto, o que talvez explique a expressão
“algum poder” por parte do viajante inglês.
Conflitos internos e contestações de subordinados poderiam existir nas comunidades
indígenas, como vimos nos exemplos de Viçosa e Maranguape nos capítulos 3 e 4, quando

65
HERZOG, Tamar. Identidades modernas: estado, comunidade e nação no império hispânico. In: JANCSÓ,
István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 119.
66
KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil, p. 177.
232

oficiais combateram outros índios pela defesa da ordem governamental. Dentro das
ordenanças isso também era possível, como aconteceu em Almofala em 1813. O índio Jacinto
Tavares e outros companheiros foram presos por deixarem de “executar a ordem do seu
capitão-mor quando foram chamados para uma diligência do Real Serviço”. 67 Da mesma
forma foi detido o cabo de esquadra Gonçalo José Dias, que em 1816, na mesma povoação,
“desobedeceu e injuriou ao capitão-mor também índio Luiz Farias da Silva”.68
As punições por insubordinação eram praxe no mundo militar, independente da
corporação. O fato de acontecerem em ordenanças de índios, no entanto, é digno de reflexão a
respeito das hierarquias nas comunidades que, como vimos anteriormente, por mais que não
fossem novidade com o Diretório, haviam sido por ele reforçadas. Tanto a disciplina quanto o
respeito às diligências reais eram valores que se buscavam sempre incentivar nos grupos
nativos. Prestar obediência aos oficiais, portanto, fazia parte do processo civilizador que a
Coroa pretendia para os índios, na medida em que essas lideranças eram postas como
representantes dos desígnios reais. Mas, como vimos acima, isso nem sempre acontecia, o que
revela os limites tanto da disciplina estabelecida pelas ordenanças e por meio do Diretório,
quanto da subordinação aos capitães-mores indígenas e ao cumprimento de diligências
monárquicas.
Os chefes militares índios eram incumbidos de uma série de serviços pelos governos
imperiais (português e brasileiro) e da capitania. Além de questões ligadas a defesa,
comandantes, sargentos e capitães-mores eram delegados para a vigilância e imposição da
ordem em suas comunidades. Em fins do século XVIII e início dos oitocentos, a política
portuguesa procurava aliar crescimento econômico e controle da população, fazendo das
corporações militares armas de combate à vadiagem e mecanismos de disciplinamento dos
trabalhadores.69 Tais intentos são expressos claramente em uma comunicação do governador
Manuel Ignácio de Sampaio a um sargento-mor da vila de Monte-mor Novo de 1812:

67
De Manuel Ignácio de Sampaio a Vicente Ferreira da Ponte. Fortaleza, 28 de novembro de 1813. APEC, GC,
livro 34, p. 130.
68
De Manuel Ignácio de Sampaio a Francisco Braga. Fortaleza, 15 de fevereiro de 1816. APEC, GC, livro 20, p.
139V.
69
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São
Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 141-143, 254-255. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem
e recrutamento militar entre as populações indígenas no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos
Latinoamericanos, n. 11, 2006, p. 94. AMARAL, Manuel. D. Rodrigo de Souza Coutinho e o exército. A
guerra peninsular, perspectivas multidisciplinares. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar e Centro
de Estudo Aglo-portugueses, 2008. Disponível em: <http://www.arqnet.pt/exercito/rodrigo_exercito.html>, p. 1-
4. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação
Ana Lima, 2008, p. 265. IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços
militares luso-brasileiros. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial,
volume 3 (ca. 1720 – ca. 1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 507-508.
233

“Vossa mercê me informará se será necessário criar algum outro comandante de


distrito de novo a fim de se conseguirem os dois fins principais do estabelecimento
dos comandantes, a saber: a manutenção da boa ordem e do sossego público e o
adiantamento da agricultura no que os ditos comandantes devem também ter a maior
vigilância persuadindo e obrigando os povos a que façam roçados e plantações,
principalmente de mandioca, e remetendo presos a esta vila os que desprezando
estes avisos continuarem a ser vadios ficando-me responsáveis pela falta de
execução a esta mesma ordem”.70

Para não serem considerados vadios, os índios deveriam viver em sua vila de origem e
trabalhar de forma ordenada como todos seus conterrâneos (com exceção dos que possuíam
propriedades agrícolas produtivas em vilas de brancos). Aí entrava a função dos oficiais
índios, cujos comandantes de distrito eram destacados pelo governador, já que suas ações de
controle, vigilância e incentivo ao trabalho nos roçados deveria ser feita de forma cotidiana
em cada uma das localidades dos municípios indígenas. Articulava-se, portanto, a atuação dos
oficiais indígenas com o controle social e o desenvolvimento econômico (no caso cearense, da
cultura da mandioca) pretendido pela Coroa portuguesa no início do século XIX.
Outro aspecto a se destacar do ofício de Sampaio é a consulta feita ao sargento-mor
acerca da necessidade de nomeação de novos comandantes índios. Como vimos nas cartas
patentes, os oficiais indígenas também atuavam na escolha de lideranças, procedimento
comum em outros regimentos auxiliares. Em 1809, o sargento-mor dos índios de Monte-mor
Novo Manoel José da Rocha foi designado para a abertura de pelouros para vereador nas vilas
de Arronches e Soure.71 Em dezembro de 1812, o governador Sampaio ordenou ao capitão-
mor dos índios de Vila Viçosa que fizesse junto à câmara a “proposta dos postos vagos que se
acharem no corpo das ordenanças dos índios do seu comando, seguindo em tudo o que se acha
determinado pelo regimento das ordenanças e Diretório a qual me dirigiram”.72 Por se achar
vago o posto de sargento-mor do “terço de ordenanças” de Messejana, o governador ordenou
ao senado da câmara da dita vila que, “chamando o capitão-mor respectivo, na conformidade
da lei e mais reais determinações, deverão fazer proposta para os ditos postos vagos”.73
Apesar dos conflitos e desacatos serem possíveis internamente, não anulavam a
autoridade que era dada aos oficiais indígenas de executar diligências e de impor a disciplina

70
De Manuel Ignácio de Sampaio ao sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 22 de junho de 1812. APEC,
GC, livro 15.
71
Cf. CATÃO, Pedro. Baturité: subsídio geográfico, histórico e estatístico. Revista do Instituto Histórico do
Ceará. Fortaleza: Ramos e Pouchain, 1938, tomo LII, p. 185-186.
72
De Manuel Ignácio de Sampaio ao capitão-mor de Vila Viçosa. Fortaleza, 2 de dezembro de 1812. APEC, GC,
livro 16, p. 54.
73
De Francisco Alberto Rubim para a câmara de Messejana. Fortaleza, 20 de dezembro de 1820. APEC, GC,
livro 101, p. 137V.
234

em seus comandados. Segundo Freire Alemão, a partir de relatos que obteve da “gente mais
antiga” de Baturité (Monte-mor Novo) em 1859, até o início do século XIX os índios da vila
eram “particularmente governados pelos seus capitães”.74 Todas estas questões, somadas à
liberdade que tinham de escolher suas próprias lideranças, mostram que a dependência de
suas prerrogativas em relação às comunidades continuava fazendo parte da cultura política
desses grupos. Reuniam-se em uma mesma política indigenista, como expôs Sampaio, os
padrões militares das ordenanças – relativos à indicação de oficiais – com os objetivos de
integração civilizatória do Diretório, ainda vigente no Ceará oitocentista.
O prestígio que tais figuras assumiram em seus respectivos grupos era expressivo.
Vimos no 3º capítulo um memorial dos índios de Messejana de 1822 para que fossem
abolidos os diretores e passassem a ser administrados por seus capitães-mores. Além do
combate dos índios ao instituto da tutela e aos abusos desses representantes do governo, o
registro pode ter a ver com o interesse particular das lideranças em assumir posições de
comando de forma mais autônoma. Por outro lado, isso não exclui a possibilidade de o texto
ter sido uma demonstração do valor que os oficiais militares indígenas tinham em suas
comunidades e da vontade dos índios em substituir os diretores pelos seus capitães, sargentos
e comandantes. A hierarquização imposta pelas ordenanças e reforçada pelo Diretório
transformara a figura dos chefes: de “os que reúnem” 75
passaram também a coagir; de
“iguais” passaram a detentores de prestígio. E, ainda que aspectos tradicionais da relação que
mantinham com seus líderes tenham permanecido, era inegável a preferência dos índios por
eles, em detrimento de outros administradores.
A importância de tais postos também se demonstrava na forma como defendiam suas
posições e invocavam os privilégios que consideravam a eles inerentes, como afirma Ângela
Domingues.76 Há registro de duas atestações solicitadas pelos “capitães oficiais das
ordenanças índias” de Messejana à câmara da vila em 1810 e 1817.77 Não consta na
documentação os motivos dos pedidos – possivelmente relativos à concessão de passaporte –
mas sinalizam vantagens disponíveis apenas àqueles que ocupavam tais posições. Em de
outubro de 1814, os oficiais índios das ordenanças de Arronches solicitaram isenção “de todo

74
ALEMÃO, Francisco Freire. Notícias sobre o povoamento e o desenvolvimento de Baturité. Apud. Anais da
Biblioteca Nacional: os manuscritos do botânico Freire Alemão [catálogo e tradução por Darcy Damasceno e
Waldir da Cunha]. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, vol. 81, 1961 [1964], p. 313-314, p.
339
75
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões, p. 875.
76
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 175.
77
Termo de vereação da câmara de Messejana. Messejana, 12 de novembro de 1811. APEC, CM, câmara de
Messejana, livro 58, p. 271V. Termo de vereação da câmara de Messejana. Messejana, 25 de fevereiro de 1817.
APEC, CM, câmara de Messejana, livro 59, p. 45.
235

serviço das suas companhias enquanto ocupam algum lugar na câmara dessa vila”. Em
resposta, o então governador Sampaio argumentou que:

“semelhante pretensão não tem fundamento algum nem entre os índios, nem mesmo
entre os brancos, porquanto nenhum capitão de ordenanças branco deixa de
comandar a sua companhia nem de executar todas as ordens relativas ao Serviço das
ordenanças enquanto ocupa algum lugar de vereador”. 78

Ainda que o Diretório buscasse utopicamente promover uma equiparação dos índios
aos demais vassalos,79 os indígenas não eram assim tratados.80 Tal situação, ainda que clara –
como indicara Koster – não era impedimento para que os oficiais se percebessem como
dignos de mercês e buscassem vantagens para si,81 e que, neste caso, beneficiaria até os
indígenas comuns que serviam na companhia. Em sua resposta, mesmo que talvez tentasse
parear índios e brancos, o governador deixava claro que tais grupos não estavam no mesmo
patamar.
Em um de seus comentários no processo sobre o grande requerimento dos índios da
Ibiapaba, analisados no capítulo 1, Sampaio também reconheceu a estima dos índios em
relação aos seus postos. Vimos que o decreto de isenção do subsídio militar e do pagamento
de selo no registro das patentes para os índios do Ceará, da Paraíba e de Pernambuco,
promulgado por dom João VI em 1819, decorreu de suas opiniões sobre os impostos pagos
pelos índios. Segundo o governador, o subsídio militar, estabelecido no Ceará desde 1800,
motivava muitos indígenas a migrar para o Piauí, onde não era cobrado tal tributo, e por isso
pedia sua extinção.82 Solicitava a mesma “augusta contemplação de Sua Majestade” em
relação ao selo das patentes. De acordo com Sampaio, “uma das coisas que, com efeito, mais
estimula os índios é a promoção aos diversos postos de ordenanças índias”, e mesmo que
pobres, os oficiais indígenas eram “dignos de toda a estimação”. Portanto, requeria ao rei que
os selos fossem pagos pela secretaria do governo da capitania.83

78
De Manuel Ignácio de Sampaio a Florêncio José de Freitas Correia. Fortaleza, 26 de outubro de 1814. APEC,
GC, livro 19, p. 108.
79
Cf. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios, p. 165. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios
eram vassalos, p. 38. GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas
indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 74. ALMEIDA,
Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 108.
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 23.
80
Cf. COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar, p. 244. ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na
Amazônia pombalina, p. 77.
81
Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 341.
82
De Manuel Ignácio de Sampaio ao Marquês de Aguiar. Fortaleza, 01 de agosto de 1815. BN, C-199, 14
83
De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de
1818. BN, C-199, 14.
236

O pedido do governador, atendido pelo monarca, visava estreitar ainda mais os laços
de fidelidade entre os oficiais indígenas e a Coroa. Mesmo que, em muitas ocasiões, não
estivessem em pé de igualdade com os brancos, eram dignos da atenção real pela presteza e
comprometimento dos serviços que prestavam. Tal dignidade não era apenas imaginada pelos
índios, mas era comprovada pela monarquia e se materializava nas relações de fidelidade e
concessões de mercê. O estímulo que tinham com a promoção nos postos de ordenança vinha
do reconhecimento que recebiam do rei, exemplificado no decreto de isenção de tributos de
1819, o que alimentava o caráter externo de seu prestígio.
Em seu estudo sobre a realidade do Rio de Janeiro, Rafael Corrêa destacou a
importância que as chefias davam às patentes que solicitavam, reforçando o reconhecimento
da autoridade do rei e o estabelecimento de seus domínios.84 O Diretório, além disso, instituía
e consolidava a ordem social hierárquica da sociedade portuguesa nas povoações indígenas,
reforçando as diferenças entre oficiais e liderados.85 Os índios comuns, mesmo demonstrando
em diversas ocasiões serem soldados competentes e fieis ao rei,86 não recebiam os mesmos
benefícios que suas lideranças. Todavia, como lembra Elisa Garcia, conhecendo bem os
códigos dos agentes coloniais, os chefes buscavam garantir não apenas seu lugar de destaque,
mas também “benefícios para os seus liderados”.87
É preciso, portanto, atentar para o caráter interno do prestígio: ou seja, o
reconhecimento dos líderes por parte dos de sua comunidade. Podemos perceber tal relação
pela forma como oficiais militares atuavam em prol de seus comandados, a exemplo do
memorial de Messejana. Vimos também no 3º capítulo a proposta de extinção do cargo de
diretor de Monte-mor Velho, levada à câmara de Aquiraz pelo comandante José Francisco do
Monte em 1821. No grande requerimento dos índios da Ibiapaba, a que nos referimos há
pouco, em quase todas as assinaturas dos indígenas que participaram do abaixo-assinado
constavam patentes militares. Estava dividido entre a primeira (composta por um tenente, dois
sargentos e cinco cabos), segunda (um capitão, um tenente, um alferes, dois sargentos e
quatro cabos) e terceira companhias das ordenanças de Vila Viçosa (um capitão, um tenente,
um alferes, dois sargentos e três cabos), além da divisão do capitão-mor Ignácio de Souza e

84
CORRÊA, Luís Rafael de Araújo. A aplicação da política indigenista pombalina nas antigas aldeias do
Rio de Janeiro: dinâmicas locais sob o Diretório dos Índios (1758-1818). Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal Fluminense, 2012, p. 222-223, 246.
85
Ibid., p. 295. SOMMER, Bárbara Ann. Negotiated settlements, p. 188.
86
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio, p. 85. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e
invenção, p. 287-304.
87
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio, p. 80.
237

Castro (com mais três capitães, um tenente, três sargentos, dois alferes, um cabo, um ajudante
e outros 10 indivíduos sem patente registrada).88
Os objetivos dos oficiais indígenas nem sempre eram os mesmos de seus comandados.
Por um lado, já observamos em outros momentos desta tese que a heterogeneidade de
interesses dentro dos grupos era uma realidade constante. Por outro, como disse há pouco, as
lideranças militares, lutando pela melhoria dos seus, agiam também em benefício próprio.
Além disso, aquilo que entendiam ser vantajoso para si e sua comunidade poderia não ser
necessariamente compartilhado pelos seus subordinados.
Lembremo-nos do abaixo-assinado encabeçado pelo capitão-mor Ignácio de Souza e
Castro, onde ele e mais de 20 outros oficiais – além de vários indivíduos sem patente –
manifestaram o desejo que tiveram de participar dos conflitos de 1817 e defenderam a
permanência de Manuel Ignácio de Sampaio na capitania.89 Como disse no 4º capítulo, as
lideranças indígenas conheciam bem o combate do governador contra os abusos que sofriam
dos proprietários e de outras autoridades locais, além de seu ideal de ordem, disciplina e
produtividade que também compartilhavam e defendiam. Entretanto, não seria de se espantar
que alguns índios comuns tivessem vibrado pela não convocação para a guerra – apesar de
não termos encontrado registros a respeito – e que muitos não nutrissem os mesmos
sentimentos afetuosos pelo governo – a tirar pela intensa perseguição promovida por Sampaio
aos dispersos e punição aos considerados vadios.
Mas em muitas ocasiões o ganho comunitário era bem mais evidente, como em um
caso registrado por Freire Alemão nas cópias que elaborou de documentos da Ibiapaba
quando por lá passou em 1860.90 Em 1798, o capitão-mor dos índios de Viçosa, José da Costa
Vasconcelos Mascarenhas (falecido em 1807 e substituído por Ignácio de Souza e Castro,
como vimos anteriormente neste capítulo), colaborou com o capitão-mor branco da mesma
vila, Antônio Luiz Cavalcante, elaborando uma certidão para um requerimento seu.
Cavalcante fazia uma reclamação ao governador da capitania dos abusos do diretor da vila,
Amaro Rodrigues de Souza, que impedia que os índios trabalhassem para ele em suas
lavouras, ameaçando-os com castigos. Isso porque Cavalcante não estaria obedecendo a
Souza, que estaria tratando-o como “se fosse seu dirigido, e pois que o suplente percebe que
88
Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar
a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
89
Abaixo-assinado de Ignácio de Souza e Castro e demais índios de Viçosa a dom João VI. Vila Viçosa,
31 de julho de 1817. AN, AA, IJJ9 518.
90
Diário de Francisco Freire Alemão, “Requerimento do capitão-mor Antônio Luiz Cavalcante; despacho, e uma
certidão passada pelo capitão-mor José da Costa Vasconcelos Mascarenhas. Vila Viçosa, 12 de julho de 1798”.
Vila Viçosa, dezembro de 1860. BN, I-28, 9, 13. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos
parágrafos pertencem a esse documento.
238

ele só é diretor dos índios, e nada mais”. O capitão-mor branco se disse “manso, pacífico e
caritativo com os índios, pagando-lhes todos os seus jornais na forma de costume, e a sexta
parte que toca ou pede o diretor”. Por ser “falido de escravos”, Cavalcante não via “outro
remédio senão valer-se unicamente de V.ª S.ª para que se sirva mandar que o capitão-mor
desta vila dê índios ao suplente que promete lhes pagar o seu salário sem haver faltas nas
sextas partes” do diretor, com “aumento dos dízimos reais ou o que V.ª S.ª for servido
conferir”.
Na cópia de Freire Alemão encontram-se registrados o despacho do governador do
Ceará, Luiz da Motta Féo e Torres, e a certidão do capitão-mor índio José Mascarenhas. O
líder da capitania lembrou a distribuição de índios que deveria ser feita para as plantações dos
moradores com os devidos pagamentos. Segundo ele, “Sua Majestade no mesmo Diretório o
recomenda ir”, considerando como “extravios da Real Fazenda as repugnâncias dos diretores
em darem índios para as lavouras”. Já o capitão-mor Mascarenhas firmou conhecer
Cavalcante havia quatro anos, e certificou que o mesmo era...

“... manso e pacífico, muito temente a Deus e ao seu pároco, e à justiça de Sua
Majestade e com muita caridade e união com os naturais e sobrenaturais [não-
índios], vivendo de suas plantas de algodão e mais negócios de fazendas secas, e me
consta que tem pago os jornais a todos que trabalham, como também as sextas partes
que [?] o diretor lhe toca, e intencionalmente dá cumprimento a todos os seus tratos:
e quem disser o contrário é pouco temente a Deus, e o que posso informar em fé do
meu cargo e jurarei se necessário for”.

O caso é mais um exemplo, largamente abordado pela historiografia, de abuso de


poder dos diretores em vilas de índios, mas aqui nem mesmo uma autoridade militar branca
escapou dos excessos do administrador. Os argumentos utilizados por Cavalcante e reforçados
por Torres buscam explicitar o quanto as atitudes de Souza atingiam o desenvolvimento
econômico – prioridade da política portuguesa na passagem dos séculos XVIII e XIX – e
feriam as determinações do Diretório, ainda vigente no Ceará. Mas por que o capitão-mor
indígena se comprometeu em ajudar nas reclamações de seu colega branco?
Poderia se pensar, a priori, que um chefe índio seria uma figura que, em defesa de seu
povo, lutaria sempre contra a utilização do trabalho indígena. Todavia, como vimos no
capítulo 3, em suas mobilizações políticas, os índios não eram a favor do ócio ou
reivindicavam ficar sem trabalhar, mas combatiam a exploração violenta de sua mão-de-obra.
É possível também supor que havia interesses envolvidos na relação pessoal de Mascarenhas
e Cavalcante, mas não há no registro qualquer prova de que o capitão-mor indígena ganhasse
239

alguma coisa. Faz-se necessário, portanto, procurar outros motivos que fizeram com que
Mascarenhas se unisse ao capitão-mor branco contra o diretor.
17 anos depois, Amaro Rodrigues de Souza foi citado como um dos diretores de que
passaram por Viçosa no grande requerimento dos índios desta vila, de 1814, que visavam
abolir o Diretório pelos males provocados por esses representantes da Coroa. Foi denunciado
pelos solicitantes por mandar os “filhos dos índios aos moradores no interesse dos donativos
das quatro patacas de passaporte a dois mil réis”. Era violento ao cobrar as sextas partes,
prendendo os que não pagavam, e “por ser tão injusto nas suas justiças requereram os índios
ao ilustríssimo governador e o botaram fora de sua direção”.91 Os índios tinham, portanto,
motivos suficientes para combaterem o diretor, tendo mostrado, inclusive, seu poder de
mobilização ao conseguirem removê-lo do cargo, como aponta Maico Xavier.92
Para Rafael Rocha, a inserção de lideranças indígenas na sociedade colonial e o
manejo da burocracia imperial portuguesa possibilitou que soubessem solicitar a intervenção
das autoridades metropolitanas contra ações arbitrárias de administradores locais,
influenciando inclusive na escolha ou exoneração de diretores.93 Voltemos a 1798: era bem
mais vantajoso para os índios trabalhar para quem pagava em dia e os tratava bem do que
viver sob a tirania daquele que os explorava de diversas formas. O capitão-mor Mascarenhas,
ao produzir sua certidão em apoio a Cavalcante, não ganhava aparentemente nada, mas agia
em benefício de sua comunidade.
Um segundo caso ocorreu em Messejana em janeiro de 1816. O comandante Atanásio
de Faria Maciel, os capitães-mores Veríssimo da Silva Carneiro e Antônio José Correa, os
alferes José da Silva Carneiro e Francisco Pereira Correa Lima “e todos os mais soldados que
moram e plantam no lugar do Cambeba [hoje, bairro de Fortaleza]” pediram providências a
respeito do gado dos vizinhos que invadiam seus roçados. Segundo eles, viviam nessa
localidade havia muitos anos, “mansos e pacificamente, plantando suas lavouras para a
sustentação de suas famílias” e pagando “o dízimo a Deus”. Passaram, porém, a ser
“desinquietados e flagelados, perseguidos de gados, e muito principalmente depois que se
veio introduzir vizinhos dos suplicantes”. Pediram proteção do governador para que se fizesse
justiça pelas “circunstâncias em que se acha[vam] as terras desta vila [que] é de índios”. Com
tamanha “pobreza nela não produzem as plantas, [...] e nesta forma se veem os suplicantes em
consternação de largarem o exercício da agricultura, e tudo por falta de humanidade dos

91
Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar
a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
92
XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 91.
93
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 115.
240

donos dos bois”. Por fim, requereram ao líder da capitania, “como pio, justo e reto”, que
impusesse pena a quem levasse o gado sem pastoreio, “e com isto virá a notícia de vossa
excelência o aumento da agricultura desta vila”.94
Nesta situação, se atendidos, todos ganhariam, e os oficiais, ainda que tenham sido os
únicos a ser citados nominalmente, se colocaram como tão afetados quanto seus liderados. Os
primeiros, cujos sobrenomes se repetiam (da Silva Carneiro e Correa), provavelmente faziam
parte de famílias tradicionais em postos de liderança na vila. O comandante Atanásio de Faria
Maciel, mesmo não pertencendo a nenhuma destas duas famílias, foi nomeado capitão-mor
em 1820 – como analisamos anteriormente – sendo mais um exemplo de ascensão social por
meio das ordenanças. No texto, os requerentes se utilizaram da hierarquia do Antigo Regime
na estrutura formal do pedido, se colocando à frente da causa, mas sem esquecerem-se dos
outros moradores, referidos como soldados recrutados das ordenanças da comunidade. A
organização dos solicitantes e a forma como se apresentaram é reflexo do sistema militarizado
desta sociedade e da maneira como os índios eram nela integrados. Também era um recurso
discursivo dos índios, por meio do qual buscavam destacar a posição social de seus líderes e
sua função como defensores dos interesses da monarquia.
Outro argumento utilizado – recorrente em várias solicitações indígenas analisadas
nesta tese e na do capitão-mor de Viçosa que vimos há pouco – foi o “aumento da
agricultura”, que viria naturalmente caso a justiça do governador se impusesse. De acordo
com os requerentes, a terra era bem-sucedida enquanto apenas eles, pacíficos e religiosos,
viviam na região. Pensando na identidade como marcada pela diferença em relação ao outro,95
os índios, ao se descreverem como súditos trabalhadores e ordeiros, retratavam ao mesmo
tempo os recém-chegados de forma negativa. É mais um exemplo de como o posicionamento
indígena defendia que a prosperidade só seria possível pela sua posse efetiva de seus
territórios. Em contrapartida, o “flagelo” e o fracasso da produção agrícola eram atribuídos
aos proprietários brancos, desfeitos de humanidade. Assim como os índios descritos por
Targini, como vimos no primeiro capítulo, invertiam a origem da barbárie a eles tantas vezes
imputada.

94
De Atanásio de Faria Maciel, Veríssimo da Silva Carneiro, Antônio José Correa, José da Silva Carneiro,
Francisco Pereira Correa Lima e mais índios do Cambeba a Manuel Ignácio de Sampaio. Primeiro despacho em
Fortaleza, 10 de janeiro de 1816. AN, 8J, p. 105.
95
“A produção da identidade do ‘forasteiro’ tem como referência a identidade do ‘habitante do local’. [...] uma
identidade é sempre produzida em relação a uma outra”. WOODWARD. Kathryn. Identidade e diferença: uma
introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 46. XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos", p. 242-244
241

Também aqui o âmbito militar se aliava ao desenvolvimento econômico na


caracterização do lugar dos índios no império lusitano, que dizia respeito tanto aos desígnios
da Coroa quanto aos interesses dos próprios nativos. Para o governo, os índios aliados eram
importantes seja para a defesa como para a cultura da terra. Reconhecer sua fidelidade e a
posição de seus oficiais, nesse caso, teria como consequência a continuidade da produção
agrícola. No lado indígena, a nobilitação militar lhes dava respaldo diante dos governantes
para combater os intrusos, proteger suas terras e garantir a subsistência de seus comandados.
Por fim, vejamos outro caso ocorrido em Soure, em agosto de 1827. O secretário do
governo José de Castro Silva escreveu ao diretor da vila a respeito da requisição do
comandante parcial dos índios e de polícia desse distrito. Ordenou-lhe que as satisfizesse “a
bem da mesma polícia”, na esperança que cessassem “as representações de faltas respectivas
que por vezes tem feito aquele comandante subir à sua presença”. 96 O registro não esclarece
com mais detalhes o motivo das representações. Entretanto, por terem sido pelo “bem da
polícia” e pela insistência com que eram feitas, é possível deduzir que foram ações em que
este chefe militar agiu como porta-voz dos anseios de sua comunidade.

*
* *

As referências à atuação de lideranças militares indígenas na primeira metade dos


oitocentos desaparecem nos registros da década de 1820 por conta do fim dos corpos de
ordenanças. A criação da Guarda Nacional em 1831 e a extinção das antigas companhias
auxiliares restringiram ao máximo a possibilidade de ascensão de índios por meio de patentes.
Havia exceções: a pesquisa de Kátia Malage mostra como o chefe Vitorino Condá passou da
qualidade de “assassino” para a de “pacificador” pelas autoridades do sul da província de São
Paulo (atual Paraná), por meio de sua colaboração no combate aos índios selvagens. 97 No
Ceará a realidade parece ter sido oposta. No tempo do império português, mesmo que nem
sempre recebessem emolumentos ou outras quantias em dinheiro, os oficiais possuíam outras
vantagens e reconhecimento por parte da monarquia. Mas após 1831, sem nem ao menos
prestígio, ser líder de uma comunidade indígena parecia ter proveitos ínfimos.

96
De José de Castro Silva ao diretor de Soure. Fortaleza, 14 de agosto de 1827. APEC, GP, CO EX, livro 7, p.
92.
97
MALAGE, Kátia Graciela Jacques Menezes. Condá e Viri, p. 95-96.
242

Com poucas possibilidades de conseguir benefícios individuais, diante da


desagregação comunitária, da usurpação das terras e da crescente discriminação, porque
alguém continuaria ocupando a posição de chefia de um grupo de índios após a década de
1830? Para responder esta pergunta, observemos um exemplo que foge de nosso recorte
temporal, mas que pode nos ajudar na reflexão acerca das transformações e da relação ao
longo dos oitocentos entre o universo militar, o significado dos postos de liderança e a
condição política dos índios.
Francisco Freire Alemão e Antônio Bezerra, a partir das informações que registraram
em suas passagens pela serra da Ibiapaba, fizeram referências a um índio idoso chamado Luiz
de Miranda, que era tratado pelo título de capitão. Quando esteve em São Benedito em 1860,
Freire Alemão conversou com ele, que teria sido responsável pela permanência dos índios de
sua comunidade em suas terras, combatendo os esbulhos que frequentemente aconteciam,
especialmente após a Lei de Terras de 1850.98 Antônio Bezerra visitou a localidade em 1884,
e escreveu a respeito do já falecido Miranda, “chefe dos índios e capitão-auxiliar de polícia,
título que lhe foi conferido pelo governo e que honrou sempre”. Passava revista aos membros
de sua comunidade, punia os que não compareciam e havia sido “uma garantia de ordem entre
os seus”.99
O capitão Miranda citado pelos viajantes era o mesmo índio Luiz José de Miranda a
quem o presidente Francisco de Souza Martins fizera referência em 1840 como um dos que
combateram os rebeldes da balaiada em São Benedito.100 Parece ter sido uma exceção entre os
índios do Ceará, já que, em meados do século XIX, conseguira uma patente policial pelo
governo. De forma semelhante a Vitorino Condá, possuíra certo destaque em sua localidade e
contava com o reconhecimento governamental.
Note-se aqui a conjunção de dois fatores para a existência de um chefe militar nesse
período posterior ao fim das ordenanças. Por um lado, sua posição social tinha uma origem
externa, amparada com o título dado pelo governo. Em nome do Estado impunha a ordem,
ostentava sua patente como prerrogativa de autoridade. O segundo fator era interno: a
comunidade o reconhecia como líder, e ele, por sua vez, lutava por ela, pela posse de suas
terras e por sua sobrevivência. A natureza da liderança militar indígena ao longo dos
oitocentos, portanto, não se resumia apenas em interesses pessoais, mas se vinculava de forma

98
Diário de viagem de Francisco Freire Alemão. “Viagem de Fortaleza até a Serra Grande”, 1860-1861. BN, I-
28, 8, 11.
99
BEZERRA, Antônio. Notas de viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1965, p. 166.
100
MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza
Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º
de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 6.
243

visceral com o grupo e sua organização, guardando, assim, características tradicionais que
ainda sobreviviam e conviviam com as transformações culturais e políticas vivenciadas pelos
índios. Apesar das ordenanças terem produzido hierarquias, reforçadas pelo Diretório, as
mesmas não aboliram por completo a inerente reciprocidade em relação às comunidades, que
continuaram inclusive após a criação da Guarda Nacional.
Por fim, um último aspecto a se mencionar é o posicionamento do capitão Miranda
durante a Balaiada, enfrentando os insurgentes que, no caso do Ceará, eram indígenas de
outras localidades da Ibiapaba. Ele e seus companheiros de São Benedito buscavam
reconhecimento do governo a partir da luta que travavam pela manutenção e definição do que
eles eram enquanto índios e do seu chefe enquanto liderança.
Respondendo ao desafio proposto por Rafael Rocha, de “saber se (e como) os índios
internalizaram os ideais de poder do mundo dos brancos”,101 vimos que as transformações
vivenciadas pelos líderes nativos não se davam com uma absorção completa dos padrões
governamentais. Tampouco a partir de uma negação aberta: constituíam leituras próprias –
indígenas – dos momentos que viviam, da legislação e conjuntura política disponíveis e a
partir da luta por benefícios. Isso é valido tanto para análise da atuação de oficiais de
ordenanças quanto para de chefes com menos prestígio, como era o caso do capitão Miranda e
seus liderados da Ibiapada. Em relação aos últimos – e a outros que assumiram
posicionamentos diversos – suas ações estavam inseridas na construção do Estado brasileiro e
tinham a ver com a forma como queriam dela participar, como veremos nos próximos
capítulos.

101
ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina, p. 90.
244

CAPÍTULO 7

OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS GUERRAS DE INDEPENDÊNCIA

"Armados de arcos e de flechas este povo miserável


posto em armas torna-se tremendo"
(José Pereira Filgueiras, 1823. AN, IN, caixa 742,
pacote 1)

“É sempre bom lembrar que não se deve


tomar os outros por idiotas”
(CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes
de fazer. Petrópoles: Vozes, 2008, p. 273)

A solução brasileira para os problemas nas relações com Portugal em meados de 1822
não era óbvia nem unânime nas diversas regiões do país. Como afirma André Roberto
Machado, em sua análise sobre a realidade paraense, nem ao menos a questão se os habitantes
da América lusitana queriam se alinhar ao Rio de Janeiro ou continuar unidos a Portugal era
pertinente. Segundo o autor, “é só em um contexto mais amplo, o da crise do Antigo Regime
português, que este processo pode ser compreendido”. Para fugir do anacronismo, que
tradicionalmente pretende visualizar uma identidade nacional brasileira bem anterior à
separação política do Reino Unido, Machado ressalta, primeiramente, a multiplicidade de
projetos possíveis para as pessoas contemporâneas à independência. Em segundo lugar, assim
como no Pará, em qualquer outro lugar do Brasil dificilmente havia uma posição hegemônica
a respeito dos rumos a seguir, o que provocou profundas cisões nas províncias.1
Admitir-se brasileiro e opor-se aos portugueses era uma das várias opções plausíveis
aos que viviam no Brasil naquele período – e isso acabou prevalecendo em épocas e por
motivos diferentes para cada circunscrição administrativa. Portanto, o antilusitanismo,
marcante no Brasil desde a reunião das Cortes em Lisboa em 1821, precisa ser caracterizado
em seus contextos locais. Segundo Roland Rowland, os próprios conceitos de “brasileiro” e
“português” não se definiam como nacionalidades, não foram dadas de antemão e nem sequer
diziam respeito, necessariamente, aos locais de origem. Os termos se referiam a quem apoiava
ou não o projeto centralizador de dom Pedro I, independentemente se tivesse nascido ou não
na Europa.2 Para ele, “nas décadas de 1820 e 1830, o antilusitanismo tinha um evidente

1
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo
regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006, p. 38-39.
2
ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo e ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade
nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo:
Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 372-373.
245

sentido político e foi utilizado quer como discurso de legitimação do novo Estado
independente, quer nas lutas a respeito da centralização do Estado”.3
Como defende Gladys Ribeiro, nem mesmo a palavra “independência” se referia
diretamente à separação política entre Brasil e Portugal. Segundo ela, “a emancipação política
não estava em questão” entre 1821 e 1822, tendo em vista que, em termos econômicos, o
Brasil já não dependia de Portugal. Para a autora, a emancipação política “foi muito mais obra
do combate pela liberdade, que até o último momento se pensava em obter dentro da Nação
portuguesa”.4 Não se tratavam, portanto, de lutas apenas pela prevalência de projetos
nacionalistas, mas de embates por meio dos quais os grupos sociais atuavam em busca de
vantagens. Desde 1821, as notícias que chegavam das Cortes de Lisboa, que passavam a ser
vistas como “tirânicas e desejosas de agrilhoar novamente a ex-Colônia”, geraram
manifestações em diversos lugares no país, exigindo “respeito às nossas especificidades, às
nossas instituições, à nossa emancipação, entendida como autonomia”.5
Segundo Ribeiro, as disputas de nacionalidade conviveram com as clivagens de cunho
étnico-raciais que caracterizavam aquelas sociedades. O envolvimento de grupos sociais
subalternos (como escravos, libertos, mestiços, brancos pobres e índios) nos conflitos
contemporâneos à separação política brasileira, independente de que lado apoiavam, se
relacionava à busca pela liberdade e igualdade.6 Foi assim com os índios de Maranguape, que
analisamos no capítulo 3. Divergindo dos que imaginam que as pessoas não tinham uma
noção clara dos acontecimentos, deixando-se cooptar facilmente pelos poderosos, a autora
destaca que a base das agendas reivindicatórias dos que lutavam naquele período eram suas
experiências, mesmo que estivessem afastadas do poder político.7 Além disso, as lutas em
torno de identidades nacionais que ainda estavam sendo construídas escondiam, muitas vezes,
os preconceitos raciais “e também os desforços na busca por melhores condições de vida. [...]
Os conflitos antilusitanos tinham muito mais um conteúdo racial e ‘patriótico’, sem serem
nacionalistas”.8
Os tumultos de rua nos centros urbanos, os eventuais motins nos sertões e os acirrados
debates políticos mostram que a separação política de Brasil e Portugal “não foi nada
amigável”, pois “processou-se com lutas e ao custo de muito sangue derramado”. Mas, além

3
Ibid., p. 384-385.
4
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no
Primeiro Reinado. Tese (doutorado) – Universidade de Campinas, 1997, p. 88.
5
Ibid., p. 85.
6
Ibid., p. 271.
7
Ibid., p. 299.
8
Ibid., p. 311-312.
246

disso, este período também foi caracterizado pelas diversas batalhas entre forças armadas que
se estenderam até 1823. Carlos Daróz chega a defender, inclusive, que o exército brasileiro
“foi criado e forjado na luta contra os portugueses”. Com o efetivo das tropas brasileiras
formado, em sua maioria, por regimentos auxiliares, o autor, contudo, não problematiza as
motivações políticas dos voluntários e quem seriam os “vagabundos” que na ocasião foram
recrutados à força. Segundo Daróz, “coube a esses homens lutar na Guerra de Independência
do Brasil”. Ao utilizar letras maiúsculas, o autor não percebe que não houve apenas “uma
guerra”, deixando de lado a heterogeneidade de contextos onde ocorreram batalhas e de
interesses entre os diversos grupos sociais.9
A respeito das lutas pela adesão do Piauí à separação política brasileira, Bernardo
Pereira de Sá Filho foi um dos primeiros a estudá-las a partir da participação das classes
populares. Para o autor, era impossível que a sociedade piauiense tivesse consciência política
do que acontecia porque “a grande maioria da população era constituída de analfabetos”. Sua
pesquisa não “verificou uma verdadeira participação social decorrente da formação de uma
consciência política”. Segundo ele, sendo meramente aliciado, o povo não teria participado
“efetivamente do processo de independência do Piauí, pois não lhe fo[ra] dado o direito de
decidir sobre sua história”.10 De maneira contrária, Claudete Dias vai além da ideia de
cooptação popular e defende a “participação autônoma de parcela das forças sociais diante do
projeto de independência desejado pelas autoridades governamentais e militares”. Para a
autora, a repressão às manifestações populares era prova de que os subalternos tinham
consciências próprias do momento que viviam e não apenas executavam os ditames da elite
letrada,11 tornando insustentável o argumento de Sá Filho.
A tese de Dias se complica quando destaca, de maneira anacrônica, que a guerra
excedia em “patriotismo e heroísmo em favor da causa da independência”,12 buscando
enxergar o conceito moderno de “pátria” no contexto da independência. 13 A autora também

9
DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas: o soldado brasileiro da guerra de independência.
Revista Brasileira de História Militar, vol. 4, n. 11, 2013, p. 41 e 49.
10
SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. A participação popular no processo de independência do Piauí. Revista
Espaço-Tempo, Teresina, v. 1, n. 1, 1991, p. 163-169.
11
DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história: o processo de independência do Brasil, visto pelas
lutas no Piauí – 1789/1850. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999, p. 243.
12
Ibid., p. 296.
13
No contexto da independência, “pátria” se referia à terra onde nasceu ou à província de origem. Cf. JANCSÓ,
Istvan e PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da emergência da
identidade nacional brasileira. Revista História das Ideias, v. 21, 2000, p. 391. GUERRA, François-Xavier. A
nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado
e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 36. BERBEL, Márcia. Pátria e patriotas em
Pernambuco (1817-1822): nação, identidade e vocabulário político. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil:
formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 350.
247

faz referência ao antilusitanismo dos subalternos quando diz que “o enfrentamento direto era a
oportunidade para manifestar sentimentos de rancor da população sertaneja”. A explicação de
Dias para o ódio aos portugueses por parte dos mais pobres é vaga. Mesmo reconhecendo a
heterogeneidade da composição social das tropas, não explica por que “a vingança que se
apresentava contra séculos de dominação”14 se dirigia bem mais aos portugueses que às
autoridades e aos proprietários brasileiros.
A crítica mais contundente ao tratamento da historiografia sobre a participação das
classes populares nas guerras de independência do Piauí foi de Iara Moura. Discordando do
trabalho de Sá Filho, a autora afirma que a consciência política de um grupo tem origem em
suas “experiências de vida, isto é, o desejo de acabar com a exploração e a dependência
econômico-política”. Também se contrapõe a Claudete Dias, que critica o tratamento
apologético da “história positivista referente a esta temática”, mas acaba por fazer a mesma
coisa com as massas em sua obra, “baseada em argumentos nacionalistas”.15
Acerca da marcante presença das classes populares nas guerras pela independência na
Bahia, Sérgio Guerra Filho chama atenção para as diferentes expectativas diante do novo
Estado soberano. A vitória por parte das elites que decidiram pela separação de Brasil e
Portugal não representou o fim das diferenças sociais internas e a inclusão de outros setores
menos favorecidos no cenário político. Tampouco a participação das camadas populares nas
batalhas representava uma homogeneidade social: o envolvimento desses grupos estava
baseado nas experiências específicas e nas demandas distintas em relação às elites políticas e
econômicas brasileiras. Como afirma o autor, as “classes populares deixavam claro, com sua
presença em vários episódios [bélicos], que a ‘vontade do povo’ nem sempre se
compatibilizava com as atitudes e os objetivos” das lideranças político-militares provinciais.16
Os índios participaram ativamente desse contexto de indefinições políticas, quando se
colocava em jogo o destino de suas conquistas e as possibilidades para o futuro. Além dos
motins analisados no capítulo 3, as comunidades indígenas também atuaram ao atenderem as
chamadas de recrutamento diante de situações de conflito bélico, por tradicionalmente
exercerem funções de defesa do Estado. Ainda que obedecessem a ordens superiores, não
deixaram de expressar seus interesses e manifestar fidelidade aos projetos que consideravam
vantajosos.

14
DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 294.
15
MOURA, Iara Conceição Guerra de Miranda. A visão da história social sobre a “batalha do Jenipapo”.
Cadernos de Teresina, v. 39, 2008, p. 79-80.
16
GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a guerra: participação das camadas populares nas lutas
pela independência do Brasil na Bahia. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, 2004, p. 57-61.
248

Ao contrário do que diz o autor e Carlos Dároz, segundo o qual os índios da Bahia não
teriam sido “incorporados formalmente às fileiras do exército”,17 André Rego apresenta
alguns exemplos de grupos recrutados no serviço miliciano, sem, contudo, problematizá-los.18
Quais seriam, então, as razões para a inserção indígena nas lutas pela causa brasileira,
“justamente no momento em que recrudesciam as disputa entre estes [os índios] e a
‘civilização branca’ por terras e recursos naturais”? Sobre a realidade baiana, Guerra Filho
levanta a possibilidade de que a “penúria em que se encontravam tenha levado os índios a se
aproximarem das tropas” em busca de alimento, opinião compartilhada por Daróz. 19 Ainda
que a explicação dos autores possa fazer sentido – o que precisa ser avaliado para cada
realidade específica – ela obscurece as motivações políticas nativas para, no caso dos da
Bahia, se colocarem ao lado dos que invadiam seus territórios e apoiarem a separação política
do Brasil.
Acerca do contexto baiano, Guerra Filho também argumenta que a população indígena
encontrou mais dificuldade que outros grupos subalternos para ingressar nas guerras porque,
segundo ele, “não se incorporava – ou de forma deliberada se recusava a se incorporar – à
dinâmica social [...] relacionada à economia colonial”.20 O autor, entretanto, não explica de
que maneira o nível de interação de uma comunidade indígena com as dinâmicas
socioeconômicas coloniais complicaria “dimensionar a contribuição das populações indígenas
para a experiência histórica do povo”21 que, à época, lutava pelos destinos do Brasil.
Traçando caminho inverso ao de Guerra Filho, André Roberto Machado percebe na
conjuntura do Pará na independência a relação que havia entre as relações de trabalho dos
índios, a partir de sua exploração enquanto mão-de-obra, e seu recrutamento. Constituindo
“grande parte das forças armadas” paraenses, o próprio controle da mão-de-obra dos índios
“estava fundamentado no obrigatório alistamento destes em corpos de milícia”.22 Os
indígenas participaram “ativamente da ebulição política do período, contribuindo para

17
DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 41-42.
18
REGO, André de Almeida. Trajetórias de vidas rotas: terra, trabalho e identidade indígena na província da
Bahia (1822-1862). Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2014, p. 53-54.
19
GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a guerra, p. 117. DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A
milícia em armas, p. 42.
20
GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a guerra, p. 115. Tal afirmação, contudo, dificilmente
pode ser atribuída aos índios do período, integrados de forma maciça à produção brasileira como mão-de-obra.
No caso da realidade baiana, analisada por Guerra Filho, vide: BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild
heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early nineteenth centuries. The Americas, v.
51, n. 03, 1995, pp. 325-368. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos
territórios indígenas nos sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014. REGO, André de Almeida. Trajetórias de
vidas rotas.
21
Ibid., p. 116.
22
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 66-67.
249

instabilidade então vivida através de suas ações no exército, em grupos de desertores, ou de


diversas outras formas que tornaram factíveis, em muitos momentos, a ameaça de subversão
da ordem”.23 Compondo de forma majoritária as tropas e a força de trabalho na província, e
insatisfeitos com a exploração e os recrutamentos forçados no período da independência, os
índios e outros grupos subordinados provocaram temor nas autoridades,24 inclusive bradando
contra o governo dos brancos.25 A discrepância de interesses e expectativas com os rumos do
país era um claro sinal da heterogeneidade de ações políticas neste contexto, quando a voz
indígena se fez presente ao perceber naqueles anos uma possibilidade de garantir sua
liberdade.
Outro caso de participação indígena nas guerras de independência foi o dos xucurus e
paritiós aldeados em Cimbres, Pernambuco. Chamados de “fanáticos realistas absolutos”,
foram presos em 1823 acusados de darem vivas a dom João VI e serem contrários à
independência do Brasil. Marcus Carvalho compreende as imputações aos indígenas como
pertencentes ao jogo político da época. Os índios, na realidade, teriam se posicionado
contrários a poderosos locais, partidários da separação brasileira, porque havia tempos estes
buscavam tomar suas terras. Aproveitando-se da tradicional fidelidade indígena à Coroa, vista
por eles como máxima instância protetora, um opositor político de Cimbres os teria cooptado.
Dessa forma, segundo Carvalho, “os índios foram pegos pela independência”, participando,
por isso, dessas “brigas de brancos do século dezenove”.26
Mariana Albuquerque Dantas também analisa o conflito de Cimbres, percebendo a
inserção do posicionamento político indígena “num quadro complexo de disputas locais pelas
terras do aldeamento e por cargos políticos”.27 Trazendo outros elementos não abordados por
Carvalho, a autora leva em consideração o histórico de confrontos entre os índios e as
autoridades da vila. Segundo a autora, os índios estavam “imersos em relações de violência,
de recrutamento forçado e de tentativas de invasão de suas terras” com a câmara partidária da
separação política brasileira, o que motivou sua aliança com os portugueses e a realização de
levantes em defesa de dom João VI. Indo além da ideia de “pegos pela independência” em

23
Ibid., p. 70
24
Ibid., p. 165.
25
Ibid., p. 175.
26
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Clientelismo e contestação: o envolvimento dos índios de
Pernambuco nas brigas dos brancos na época da independência. In: MONTEIRO, John Manuel. AZEVEDO,
Francisca L. Nogueira de. (Org.). Confronto de culturas: confronto, resistência e transformação. São Paulo:
EDUSP/Expressão e cultura, 1997, pp. 329-342, p. 334-337. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados:
indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 267-270.
27
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal
Fluminense, 2015, p. 139
250

meio a uma “briga de brancos”, defendida por Marcus Carvalho, Dantas reconhece nessas
ações estratégias indígenas “para fazer frente a essa situação local de conflitos e disputas
políticas”.28
Se em muitas regiões do Brasil as comunidades indígenas se posicionaram fiéis à
Coroa – representada seja por dom João VI como por dom Pedro I – o mesmo não pode se
dizer dos grupos estudados por Elisa Garcia no Rio da Prata. O estudo se concentra na atuação
de Andrés Guacurarí, o “Andresito”, liderança das missões e importante apoiador do projeto
de José Artigas de independência da Cisplatina. Natural da Província Jesuítica de Missões do
Paraguai, Andresito cresceu durante a administração hispânica e presenciou a invasão lusa na
região. Portanto, “conhecia muito bem a administração portuguesa e espanhola dos povos, e
parece ter percebido em ambos mais malefícios do que benefícios”. Artigas o nomeou
“Comandante General de Misiones” em 1815, ciente de que a “nomeação de um índio
potencializaria a adesão dos demais”.29 Os indígenas, por sua vez, viam no apoio a Artigas
uma “possibilidade de autogestão na e da província por eles construída e habitada desde o
século XVII”.30
O fato de que apenas as elites políticas e econômicas à época da separação do Estado
brasileiro e se beneficiariam com a mudança de regime não fazia de seus aliados
desfavorecidos meros cooptados. Como afirma Gladys Ribeiro, os grupos subalternos não se
envolveram nos embates desses anos “somente porque eram pau mandados de autoridades
estabelecidas ou de homens partidariamente posicionados. [...] os populares tinham uma
ideologia própria, elaborada a partir de suas vivências e dos conflitos existentes naquela
sociedade”.31 Os índios, por sua vez, não foram apenas “pegos pela independência”: estavam
inseridos neste contexto, dialogando com diversos outros grupos (de classe e cor distintas) e
agindo a partir de concepções próprias do que significava aquele momento e a luta que
empreendiam.
A compreensão dos conflitos políticos locais é fundamental para uma análise coerente
dos embates na independência e da razão para as escolhas tomadas por cada um dos lados
diante dos projetos possíveis. Mas a relação dos indígenas com a Coroa – que, no caso dos de
Cimbres, era de fidelidade com dom João VI – talvez mereça uma análise mais demorada do
que a de Dantas e Carvalho. Era um aspecto igualmente importante para o posicionamento

28
Ibid., p. 143-146.
29
GARCIA, Elisa Frühauf. Dimensões da igualdade: os significados da condição indígena no processo de
independência no Rio da Prata. Anais do XIX Encontro Regional de História da Anpuh-SP, 2008, p. 6-7
30
Ibid., p. 11.
31
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção, p. 280 e 297.
251

dessas comunidades nas guerras de independência por, pelo menos, duas razões. Primeiro
porque se conectava aos conflitos com outros grupos sociais na luta em prol de suas terras,
prerrogativas e liberdade. Em segundo lugar, porque era a manutenção da monarquia –
entendida como algoz ou protetora – que estava em jogo, o que incidia diretamente nos seus
interesses e na sua qualidade de vida.
No contexto analisado por Elisa Garcia, a Coroa portuguesa representava prejuízo para
os índios e perda de autonomia pelas terras que invadira. Em 1819, Andresito foi preso,
enviado ao Rio de Janeiro, e provavelmente morto nesta cidade em 1822. “Seus projetos
coletivos, entre eles a construção de uma relação mais paritária com o restante da sociedade,
baseada principalmente na gestão de uma província essencialmente guarani, saíam bastante
enfraquecidos”.32 Em contrapartida, a prisão deste líder indígena ocorreu no mesmo ano do
decreto de dom João VI que beneficiou os índios de Pernambuco, Paraíba e Ceará.
Tais casos são exemplos da necessidade de atentarmos para as realidades locais
específicas durante as guerras de independência. O posicionamento dos índios recrutados em
território cearense, diante das trocas de governo durante a separação política brasileira, e seu
apoio incondicional à monarquia, não se deram pela manipulação de agentes externos. Foram
manifestações políticas em prol de suas comunidades, inseridas em batalhas de uma guerra
que também era sua.

7.1. O ARMAMENTO GERAL DOS ÍNDIOS

Os conflitos políticos no Ceará que culminaram com a adesão cearense à


independência no Brasil começaram em 1821, por conta das notícias relativas às Cortes de
Lisboa. Vimos no terceiro capítulo o confronto entre a câmara de Fortaleza e o então
governador Francisco Alberto Rubim em torno das restrições de uso da mão-de-obra indígena
pelos proprietários. Entretanto, este não foi o único motivo daquela disputa. Com a chegada
da notícia de que dom João VI havia jurado a constituição portuguesa em fevereiro, as
autoridades da capital cearense passaram a pressionar Rubim – “homem partidário do sistema
vigente, que buscou de todas as maneiras resistir às ideias mais liberais” 33 – para que também
ele jurasse fidelidade à nova ordem jurídica portuguesa no mês de abril. Em julho, o

32
GARCIA, Elisa Frühauf. Dimensões da igualdade , p. 11.
33
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos
políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 82
252

governador foi deposto, e, assim como ocorrera em Pernambuco e na Bahia, formou-se a


primeira junta de governo provisório cearense.
“Houve, a seguir, quase permanente anarquia em todo o Ceará, dividindo absolutistas
e constitucionalistas”, segundo Bruno Barbosa.34 Keile Felix conta que, após a formação da
primeira junta, vários tumultos ocorreram no interior da então província. Figuras como o
capitão-mor José Pereira Filgueiras e o coronel Leandro Bezerra Monteiro, apoiados por
grandes contingentes de cabras e mulatos, “não aceitavam nem o juramento da Constituição e
nem a formação de juntas governativas”. Segundo a autora, os motins deixam clara a
percepção dos grupos locais – sendo ou não da elite – de que o “movimento do Porto estava
buscando barrar o poder do príncipe regente ao criar uma constituição que, baseada nos
princípios liberais, limitaria o poder supremo que este detinha”.35
Essa foi, inclusive, a motivação para as sublevações indígenas deste período.
Entretanto, as ações contrárias à formação das juntas eram heterogêneas, e os grupos agiam a
partir de interesses próprios. Até mesmo os “processos de adesão às Cortes em cada uma das
capitanias” foram bastante diversificados, como afirma André Roberto Machado.36 No Ceará,
as elites das vilas do interior se rebelavam receosas com o acúmulo de poder da câmara de
Fortaleza, que via, neste contexto, “o momento para obter maior autonomia local”. 37 Para os
índios, esta mesma autonomia poderia se expressar em medidas anti-indigenistas, já que um
dos membros do primeiro governo provisório era Joaquim Lopes de Abreu,38 grande
proprietário de Maranguape e usurpador de terras indígenas.39
Em novembro de 1821 uma nova eleição nomeou a segunda junta governativa do
Ceará, contando com a presença de Marcos Antônio Brício.40 Outros dois membros eram
Mariano Gomes da Silva e José Raimundo do Paço Porbém Barbosa – este último um
“partidário exaltado da causa portuguesa” segundo Antônio Martins Filho41 – que foram
novamente eleitos na terceira eleição para a junta de governo, em fevereiro de 1822.42

34
BARBOSA, Bruno. A independência no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia
Minerva, tomo XXXVII, 1923, p. 3.
35
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 86-87.
36
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 146.
37
Ibid., p. 87.
38
Cf. Ibid., p. 86.
39
Não por acaso, foi por eles ameaçado em setembro de 1822.
40
O mesmo que liderou a expedição contra índios de Maranguape no ano seguinte.
41
MARTINS FILHO, Antônio. Episódios da independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições
Universidade Federal do Ceará, tomo C, 1986, p. 9.
42
Cf. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 88. Meses depois, ordenaram a truculenta
repressão ao motim indígena.
253

Segundo Denis Bernardes, as juntas governativas visavam desarticular o centralismo


monárquico. Foram “instaladas por movimentos locais que se autolegitimaram, invocando,
evidentemente, o movimento constitucionalista e a futura Constituição”. Sem obedecer a
nenhuma “formalidade jurídica ou política preexistente na legislação do Reino”, a instalação
das juntas “foi um misto de pronunciamento militar e aclamação popular direta impondo, nos
dois casos, um novo governo local em substituição aos antigos delegados reais”. Por isso a
“grande instabilidade e a efemeridade de muitas juntas locais, eleitas hoje, para serem
substituídas amanhã”.43
As eleições das três juntas em Fortaleza, apoiadas no constitucionalismo das Cortes e
convivendo com motins defensores do rei no interior, são exemplos do contexto analisado por
Bernardes. A tensão era tamanha que, em 16 de outubro de 1822, o colégio eleitoral da
comarca do Icó organizou um “Governo Temporário”, em discordância com Fortaleza.
Segundo Keile Felix, talvez “temendo as consequências que poderiam advir com a atitude da
câmara do Icó”, a junta governativa da capital aclamou dom Pedro de Alcântara imperador
constitucional do Brasil em 24 de novembro de 1822.44 Reunidos na câmara da vila, juraram
defender o imperador e a pátria, proclamando a “independência moderada a bem da santa
causa luso-brasileira”.45
O posicionamento aparentemente contraditório da junta chamou muito a atenção da
historiografia. Segundo Bruno Barbosa, o “governo cearense era legitimista, era
constitucionalista português”, o que acabou “provocando a reação, que na maioria dos ânimos
despertava o entusiasmo da causa nacional”.46 Luis Sucupira acredita que a Junta agiu de
maneira titubeante e indecisa, procurando “aceitar um fato aparentemente consumado, mas
que ainda não merecia completa adesão”.47 Para José Aurélio Câmara, os “cearenses que
assinaram o documento [o juramento a dom Pedro I] constituíam a facção simpática aos
interesses lusos”. Por isso, o texto não traduzia o “pensamento dos autênticos revolucionários
cearenses, daqueles que vinham agitando o interior contra o conservadorismo filo-português
da capital”.48

43
BERNARDES, Denis. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Hucitec, Fapesp;
Recife: UFPE, 2006, p. 317-318.
44
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 89.
45
Ata da Junta Governativa do Ceará. Fortaleza, 24 de novembro de 1822. Apud. BARBOSA, Bruno. A
independência no Ceará, p. 5.
46
Ibid., p. 4.
47
SUCUPIRA, Luís. Os cearenses e o 7 de setembro de 1822. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora
Henriqueta Galeno, tomo especial, 1972, p. 86.
48
CÂMARA, José Aurélio. A adesão do Ceará à independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Editora Henriqueta Galeno, tomo especial, 1972, p. 220-221.
254

Ao contrário do que afirmam estes autores, não é possível apontar, para aquela época,
a existência de uma “causa nacional brasileira”. A Junta de Governo não necessariamente
titubeava ao proclamar seus anseios de união luso-brasileira porque a separação de Brasil e
Portugal não era algo claro nos meses anteriores. Inclusive, a aclamação da junta se assemelha
bastante a uma proclamação do próprio dom Pedro de julho de 1822, quando defendia a
“causa santa da liberdade do Brasil” e sua “independência moderada pela união nacional”.
Para Gladys Ribeiro, a “nação” que se referia o então príncipe era a portuguesa, formada por
“cidadãos com direitos iguais”.49 A dissolução do Reino Unido, portanto, não era algo há
muito desejado, muito menos por todos.
Apoiando-se no constitucionalismo das Cortes, a junta certamente não era indecisa.
Sua intenção não era apenas, como diz Felix, “usar a moderação como princípio norteador de
suas ações”,50 mas procurar compactuar com o liberalismo de Lisboa e combater o
centralismo da monarquia. Diferente do que afirmou Câmara, os opositores do interior não
eram necessariamente “revolucionários”, e não havia nada de “conservador” nas autoridades
de Fortaleza: era justamente o contrário. Por um lado, as lideranças reunidas no Icó se
revoltavam contra a submissão forçada do rei e, rivalizando com a capital, lutavam pela
manutenção do absolutismo. Por outro, o governo em Fortaleza, insistindo na “santa causa
luso-brasileira”, ainda pendia para o liberalismo vindo da Europa, na busca por maior
autonomia. E, para os índios, como vimos, a ameaça era clara, já que tal acúmulo de poder
facilitava a usurpação de suas terras e bens.
A manifestação da junta governativa do Ceará de apoio a dom Pedro, aclamado
imperador do Brasil em 12 de outubro de 1822, pode ter sido resultado tanto das crescentes
hostilidades entre a Corte no Rio de Janeiro e Portugal quanto das pressões vindas do interior.
Diversos documentos produzidos antes da aclamação cearense de 24 de novembro revelam
que o esforço da junta cearense em se mostrar fiel à causa brasileira, ainda que desejosa da
união com o governo luso, e a tensão diante de seus opositores eram bem anteriores. Uma
certidão do secretário do governo afirma que no dia 27 de setembro “se expediram ordens às
sete direções de índios desta província para porem os ditos na maior atividade e disciplina
com as suas armas competentes, o que assim se executou”.51 Tal resolução de armamento dos
índios pode ter sido consequência tanto da declaração guerra às tropas mandadas de Portugal

49
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção, p. 97-98.
50
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 90.
51
De José de Castro Silva à Junta Governativa do Ceará. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 170.
255

de 1º de agosto, decretada por dom Pedro I, quanto uma prevenção a um possível ataque do
interior.
Entre o fim de setembro e o início o mês seguinte, o padre Francisco Gonçalves
Ferreira Magalhães, a serviço da Junta, organizou diversas viagens para vilas no norte Ceará a
fim de combater “a falsidade dos princípios por que queriam os loucos tentar e segurar a
independência do Brasil”. No dia 5 de outubro enviou ofício à câmara de Viçosa para
tranquilizar a população da vila a respeito de uma comissão que para lá se dirigia. Determinou
que “fizesse[m] constar aos índios, e mais habitantes, quais eram as intenções do governo na
expedição do destacamento que para ali marchava”. Magalhães foi obrigado a mudar sua rota,
“para não sacrificá-lo à fúria e violência dos mal-intencionados, pois me constou que os
índios estavam destacados nas entradas das ladeiras, por lhe haverem dito” que seriam
presos.52
A difusão de notícias de procedências duvidosas no período pode ter sido uma
estratégia política dos diversos lados em disputa. Se os índios realmente se puseram a postos
por conta de um boato, o mesmo fora espalhado por quem visava colocá-los contrários ao
governo de Fortaleza. E ainda que a própria informação da mobilização indígena possa
também ter sido inventada para mudar os planos do destacamento, era bem possível que os
índios ainda se ressentissem da repressão que sofreram em agosto do mesmo ano por conta da
expulsão do padre Felipe Benício.
Buscando manter o poder na província e evitar agitações contrárias no interior, a junta
ordenou o armamento de tropas para sua defesa em diversas localidades. No caso dos índios,
em 7 de outubro – dois dias depois da tentativa de acalmar os ânimos dos indígenas da
Ibiapaba – foi ordenado aos capitães-mores de Monte-mor Velho e Messejana que
recrutassem soldados para a “defesa da costa desde Maceió até Mucuripe”.53 O diretor de
Almofala foi encarregado de mobilizar os índios da povoação para auxiliar os presídios
“desde a barra do Mundaú até Aracatimirim”, e o índios de Viçosa, de servir da “alagoa do
Castelhano até Amarração”.54

52
De Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães à Junta Governativa do Ceará. Sobral, 8 de outubro de 1822. AN,
AA, IJJ9 170.
53
De José de Castro Silva aos capitães-mores de Aquiraz, Monte-mor Velho e Messejana. Fortaleza, 7 de
outubro de 1822. APEC, GC, livro 98, p. 132V.
54
Certidão de José de Castro Silva. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 170.
256

Mapa 4: Postos de guarda das tropas indígenas na costa cearense, outubro de 1822

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

Com a reunião do colégio eleitoral do Icó em 16 de outubro e a criação de um novo


governo, a junta passou a temer ainda mais seus opositores, que os acusava de “falta de
energia e pouca adesão à causa do Brasil” e ameaçavam destituí-la por vias militares. Por isso,
os membros do governo provisório produziram um relato ao imperador acerca dos últimos
acontecimentos na província, buscando dissipar “de uma vez o anárquico abuso de se
levantarem e deporem governos por mero arbítrio popular ou por facções armadas” – como se
a própria formação das juntas de governo não tivesse ocorrido desta forma. Segundo eles,
antes de terem tido conhecimento do decreto de 1º de agosto, que declarava guerra às tropas
mandadas de Portugal, “se tinham estacionado presídios em toda a longa extensão da costa”.
Com o recebimento da determinação, “formaram-se imediatamente planos de defesa” do
litoral. Diversas outras medidas militares foram tomadas: entre elas, no dia 1º de novembro,
“determinou-se e armamento geral dos índios”.55
A alegada fidelidade da Junta às ordens do imperador não era o único motivo para a
grande mobilização militar ordenada em toda a província. Como fica bem claro no próprio
relato citado acima, o temor diante das pressões vindas do interior era evidente. A tensão
ficou ainda maior com a notícia de que uma tropa liderada pelo capitão-mor José Pereira
Filgueiras estava se dirigindo à capital, recrutando vários adeptos pelo caminho, com o
objetivo de destituir o governo provisório.

55
Da Junta Governativa do Ceará ao imperador dom Pedro I. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9
175-a.
257

Segundo Raimundo Girão, Filgueiras assinou uma proclamação no Icó em 29 de


outubro que declarava “insubsistente a junta governativa de Fortaleza”. 56 Ou seja, o
armamento geral dos índios de 1º de novembro, cujas tropas de ordenança se localizavam em
sua maioria no entorno da capital, também visava a proteção dos membros do governo.
Quatro dias depois, a Junta transmitiu uma série de ordens militares após receberem a notícia
de que Filgueiras marchava “à testa de dois mil homens armados” para Fortaleza, “sem se
declararem para que fim, e com que pretexto”. Ao sargento-mor José Felix de Andrade foi
ordenado que reunisse “seu batalhão na vila de Soure para estarem prontos ao chamamento
deste governo”.57
As medidas tomadas pela desesperada junta não surtiram efeito, e as tropas vindas do
interior conseguiram congregar mais adeptos em defesa da monarquia. Em 3 de dezembro de
1822, os membros do governo se demitiram, entregando-o a Francisco Xavier Torres em
caráter interino, com Filgueiras no comando de suas milícias – que entraram em Fortaleza em
23 de janeiro de 1823.58 Como diz Felix, se o capitão-mor “anteriormente provocava motins
para defender dom João VI, sua fidelidade agora passava a ser do imperador dom Pedro I”, 59
o então representante da Coroa.
Os índios, antes recrutados para defesa do governo, se voltaram contra seus membros
em busca de sua liberdade. Após o fim das juntas em 1823, José Raimundo do Paço Porbém
Barbosa e Mariano Gomes da Silva, “saindo da capital para levantar gente, e com ela
abaterem o que eles chamavam ‘insurreição do Icó’, [...] procuraram revoltar os índios de
Monte-mor Velho, das vilas de Messejana, Arronches e Soure, as quais circulam a capital”.
Porém, como vimos no capítulo 3 pelo relato de Filgueiras, “nada conseguiram; [...] o
governo extinto havia acossado os índios de Maranguape tão barbaramente, que eles todos,
apesar dos diretores quase todos europeus imperiosos, repugnaram obedecer-lhes”.60
Por serem compostas de portugueses61 adeptos do liberalismo das Cortes, as juntas
representavam uma ameaça às comunidades indígenas. O desejo das autoridades de Fortaleza
de mais autonomia e acúmulo de poder não era apenas uma ideia difundida externamente,

56
GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1984, p.
130-131.
57
Ata da Junta Governativa do Ceará. Fortaleza, 5 de novembro de 1822. APEC, GC, livro 32, p. 40-42.
58
Cf. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 131.
59
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 91.
60
De José Pereira Filgueiras a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1823. AN, IN,
caixa 742, pacote 1.
61
Cf. Da Junta Governativa do Ceará ao imperador dom Pedro I. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA,
IJJ9 175-a. De José Pereira Filgueiras a José Bonifácio de Andrada e Silva. Fortaleza, 20 de fevereiro de 1823.
AN, IN, caixa 742, pacote 1.
258

para os índios, já que fora sentida por eles meses antes em Viçosa e Maranguape. Analisando
a situação do Pará, André Roberto Machado observa que havia interesse por parte dos índios
em se valer de garantias constitucionais “como forma de minar as estruturas que os obrigavam
ao trabalho compulsório”.62 No Ceará ocorria o oposto. De setembro a novembro, os
indígenas defenderam as juntas porque eram a elas subordinados, mas quando puderam
escolher, se posicionaram politicamente contrários aos simpatizantes da constituição
portuguesa.
Acerca do contexto de Cimbres, em Pernambuco, Mariana Dantas 63 e Marcus
Carvalho fazem construções coerentes do panorama político local e das ligações dos índios
com os interesses de autoridades da região. Indicam convincentemente os fortes vínculos
indígenas com a monarquia e de que maneira se conectavam com suas demandas específicas,
que transcendiam bastante as disputas de projetos nacionalistas. No entanto, Carvalho
apresenta os índios como se tivessem sido “apreendidos” pela independência, pelo contexto,
ou por grupos mais poderosos que eles. Mas, ao contrário do que afirma o autor, era
justamente porque tinham suas próprias razões e experiências que as brigas não eram apenas
“de brancos”, mas também deles e de todos os que nelas se envolveram. As guerras de
independência não tinham “dono”: se o cerne dos conflitos era o mesmo – a separação do
Brasil com Portugal – as motivações para o envolvimento de cada grupo diferiam bastante. Os
índios buscavam nas guerras de independência, assim como em outros momentos analisados
neste trabalho, a garantia de sua liberdade, entendida como autonomia em seus territórios e
condições dignas de trabalho.
No Ceará, o recrutamento dos índios pela terceira junta governativa era reflexo das
pressões sofridas pelo povo do interior e sinal da importância bélica indígena. Por mais que
em seus relatos buscasse provar sua fidelidade ao novo imperador do Brasil, as medidas
militares do governo provisório tinham muito mais a ver com a instabilidade política do
momento, iniciada em 1821, e que não se definiu no Ceará até, pelo menos, o início de 1823.
O apoio da terceira junta a dom Pedro I pode ter sido tanto por ainda acreditarem na união
luso-brasileira quanto porque não viam possibilidades de resistência ao que era decidido no
Rio de Janeiro e ansiado pelo interior. Composta por portugueses simpáticos ao liberalismo de
Lisboa, sua maneira particular de apoiar a causa do Brasil era prova de que, neste contexto, os
conflitos não se tratavam, necessariamente, nos termos de uma guerra entre nacionalidades.

62
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 108.
63
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro, p. 133-146.
259

Os embates eram de caráter político, o que deu o tom ao heterogêneo antilusitanismo no


Ceará deste período.
Cada grupo social tinha seus próprios motivos para “odiar” os lusitanos e,
consequentemente, as juntas governativas. Estas, formadas pela elite de Fortaleza que forçara
o último governador da capitania a jurar a constituição portuguesa e, em seguida, o depusera,
haviam se apoiado no liberalismo das Cortes. As lideranças do interior, vendo seus
antagonistas compactuando com algozes de seu rei, passaram a perceber nos portugueses uma
ameaça à ordem que impedia a concentração de poderes na capital. Tanto que, conforme
Raimundo Girão, no dia 29 de janeiro de 1823 foi “ordenada a exclusão dos portugueses que
estivessem ocupando cargos públicos”.64
Os índios, por sua vez, não estavam alheios ao que se passava, e seu antilusitanismo
não se dava apenas porque os nascidos no Brasil seriam menos opressores. Tinha a ver,
principalmente, com o que os naturais da Europa passaram a representar, desde que as Cortes
de Portugal se opuseram a seu protetor, e com o medo do que poderia acontecer com suas
terras e outras garantias. Em um primeiro momento, foram acionados pela obrigação militar
em relação ao governo a que estavam submetidos. Enquanto que os índios de Cimbres, em
Pernambuco, se revoltaram contra os recrutamentos – associados pelos índios às coerções de
autoridades ambiciosas por suas terras, como mostra Dantas65 – os do Ceará não fizeram o
mesmo talvez por conta do discurso do governo cearense de agir contra as tropas de Portugal.
Posteriormente, se manifestaram contrários à junta deposta, cujo posicionamento se
coadunava cada vez mais ao liberalismo português, e apoiaram o novo governo chefiado por
Pereira Filgueiras. Passaram a ver em dom Pedro I e nas novas lideranças da então província
do Ceará a manutenção do regime que defendiam em nome da defesa de suas prerrogativas.
Por isso, não hesitaram em novamente pegar seus arcos e flechas, já que os inimigos da Coroa
ainda resistiam na província do Piauí.

7.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS LUTAS DO PIAUÍ

No Piauí, as manifestações de apoio à separação de Brasil e Portugal liderada por dom


Pedro I se iniciaram em Parnaíba, no litoral da província, com a aclamação da coroação do

64
Cf. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 131.
65
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro, p. 146.
260

imperador pela câmara da vila em 19 de outubro de 1822. 66 A junta governativa piauiense,


sediada na cidade de Oeiras e fiel às Cortes portuguesas, recebeu com preocupação a notícia
da atitude dos vereadores parnaibanos. Prontamente enviou à vila separatista o militar João
José da Cunha Fidié, incumbido de debelar o movimento. Nomeado governador das armas
por dom João VI em setembro de 1821, no contexto de reforma das forças armadas no
Brasil,67 Fidié liderou a resistência portuguesa no Piauí até meados do ano seguinte, quando
foi rendido por tropas brasileiras em Caxias, no Maranhão, preso e remetido a Lisboa, onde
foi recebido como herói.
Fidié chegou com uma tropa bem armada a Parnaíba em dezembro de 1821, tendo
encontrado o apoio do capitão Francisco de Salema Freire Garção, que ancorara um brigue
próximo à vila havia poucos dias.68 Antes disso, as autoridades separatistas de Parnaíba
haviam fugido para o Ceará, onde puderam buscar apoio do novo governo desta província fiel
a dom Pedro I.69 Durante a estadia de Fidié no litoral, diversas vilas no interior do Piauí e a
própria capital, Oeiras, passaram a aclamar a independência do Brasil, o que fez com que o
militar retornasse à capital no final de janeiro de 1823 na tentativa de reprimir os movimentos
separatistas.70
Enquanto isso, o governo do Ceará começou a organizar o envio de tropas para a
província vizinha com o objetivo de defender os adeptos da separação brasileira, combater
Fidié e expulsar os que buscavam assegurar a adesão do Piauí às Cortes portuguesas. 71 Foram
recrutados diversos voluntários cearenses e piauienses liderados por Luis Rodrigues Chaves,
cuja tropa era composta de homens mal armados e sem formação militar, como vaqueiros e
lavradores. Durante o retorno de Fidié e sua tropa à capital, no dia 13 de março, à beira do

66
MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Editora Instituto do Ceará, 1945, p. 234-235.
67
FIDIÉ, João José da Cunha. Vária fortuna d’um soldado português, oferecida ao público pelo brigadeiro
Fidié. Lisboa: Tipografia de Alexandrina Amélia de Sales, 1850. MARTINS FILHO, Antônio. Episódios da
independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, tomo C,
1986, p. 12. DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 35.
68
NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié. Teresina: FUNDAPI, 2006, p. 77-79. DIAS, Claudete Maria Miranda.
O outro lado da história, p. 261-263. CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo:
reminiscências da cultura material em uma abordagem arqueológica. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, 2014, p. 128-129.
69
CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo, p. 55. MARTINS FILHO, Antônio.
Filgueiras e o exército libertador, p. 235.
70
PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão. Itinerário da
expedição de Caxias. Independência. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal
do Ceará, tomo C, 1986, p. 56-57. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 267. ARAÚJO,
Johny Santana de. O Piauí no processo de independência: contribuição para a construção do império em 1823.
Clio: Revista de Pesquisa Histórica. Série História do Nordeste, v. 33, 2015, p. 35.
71
MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 235. PINHEIRO, Raimundo Teles.
Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 56.
261

riacho Jenipapo, próximo à vila de Campo Maior, os regimentos inimigos se encontraram, em


um dos confrontos mais sangrentos das guerras de independência do Brasil.72
O resultado foi massacrante pela larga desvantagem numérica e bélica das tropas
brasileiras em comparação com a dos constitucionalistas.73 Mas, apesar da expressiva derrota,
os homens liderados por Chaves tiveram o trunfo de roubar diversos armamentos e
suprimentos dos portugueses, o que tornou impossível a continuidade da marcha de Fidié a
Oeiras.74 Segundo Antônio Martins Filho, as primeiras notícias sobre a derrota na batalha do
Jenipapo chegaram a Fortaleza em 24 de março.75 Em seguida, tropas cearenses foram
enviadas a Campo Maior com o objetivo de garantir sua segurança,76 e formou-se no Ceará,
sobre a liderança de Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras, o Exército Libertador e
Pacificador, criado para derrotar os portugueses e garantir a adesão piauiense à
independência.77 Fidié mudou a rota para Caxias, a convite da própria câmara da vila, adepta
das Cortes, em busca de apoio,78 mas acabou sendo cercado por tropas separatistas vindas do
Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco e Bahia no mês de agosto de 1823.79
A Batalha do Jenipapo foi largamente abordada pela historiografia piauiense como um
marco da formação do Estado brasileiro. Ainda assim, muito pouco se fala sobre a
participação indígena nas guerras de independência no Piauí, geralmente de forma sucinta ou
negativa.80 Até mesmo os poucos autores cearenses que escreveram sobre a participação de
tropas do Ceará nos conflitos nada falam sobre os índios envolvidos.

72
PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 57. GIRÃO,
Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 132.
73
CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. Batalha do Jenipapo, p. 138.
74
PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 57
75
MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 237. ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí
no processo de independência, p. 36.
76
PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 56.
CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência. Revista da Academia Piauiense de Letras.
Teresina: v. III, 1972. p. 27. CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil.
Teresina: Alínea Publicações Editora, 2005, p. 105. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história,
p. 301.
77
MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 237. PINHEIRO, Raimundo Teles.
Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do Maranhão, p. 57. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do
Ceará, p. 132-133.
78
Cf. Da câmara de Caxias a João José da Cunha Fidié. Caxias, 3 de abril de 1823. Apud. FIDIÉ, João José da
Cunha. Vária fortuna d’um soldado português, oferecida ao público pelo brigadeiro Fidié, p. 106-107.
79
ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão. Revista do Instituto
Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, tomo
XLVIII, 1885, p. 236. De igual conteúdo em: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva,
tomo XXVII, 1913, p. 244. PINHEIRO, Raimundo Teles. Cooperação do Ceará à independência do Piauí e do
Maranhão, p. 60.
80
NUNES, Odilon. Pesquisa para a história do Piauí: a Independência do Brasil, especialmente no Piauí.
Manifestações republicanas. A ordem. Teresina: FUNDAPI; Fundação Monsenhor Chaves, 2007, p. 68. NEVES,
Abdias. A Guerra do Fidié, p. 115-116, 169. CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência,
p. 30. CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 106-108.
262

Entretanto, as fontes pesquisadas dão informações sobre a participação indígena nos


embates contra os adeptos do constitucionalismo português no Piauí desde o final de 1822.
Em ofício ao ministro da Marinha, Inácio da Costa Quintela, de 1º de janeiro de 1823, o
capitão Francisco de Salema Freire Garção deu notícias de suas atividades militares desde
novembro do ano anterior, quando aportara em Tutóia, no Maranhão, próximo a Parnaíba. Seu
objetivo era “manter em segurança e firmes no sistema constitucional os habitantes daquela
parte da predita província”. No dia 13 de dezembro de 1822, após a fuga dos vereadores de
Parnaíba para o Ceará, entrara na vila piauiense e se mantivera à espera do governador das
armas Fidié, que o incumbira da formação de um reduto na barra do rio Igaraçú, fronteira com
o Ceará. Segundo ele, recebera notícias de que havia no lado cearense um presídio de tropa
composto por cerca de 140 homens, “sendo parte deles milicianos da Granja, e os outros
caboclos, armados de flechas”. Dizia-se que pretendiam “reunir mais gente para atacar” a vila
de Parnaíba, ainda em poder dos constitucionalistas, “porém até o presente não tem feito
tentativa alguma”.81
Os “caboclos” a que se referiu o capitão Freire Garção eram os índios de Viçosa,
recrutados em outubro para servirem entre a lagoa do Castelhano e o porto da Amarração,
como vimos anteriormente. Sua função era proteger a costa cearense contra possíveis ataques
da marinha portuguesa.82 Entre dezembro de 1822 e janeiro de 1823, os indígenas já não mais
seguiam ordens da junta que os havia recrutado: passaram a ser fieis ao novo governo,
declarando oposição às Cortes lusitanas. O antilusitanismo indígena, atrelado ao retorno
coercitivo de dom João VI a Portugal, se iniciara em Maranguape ainda em outubro de 1821,
com os boatos sobre a constituição portuguesa, e teve seu ápice em setembro de 1822, com os
gritos dos amotinados “contra os europeus”. Ao final deste mês havia notícias de que alguns
índios fugitivos de Maranguape teriam entrado em contato com os de Viçosa, que havia pouco
tempo expulsaram o padre Benício. O contato provavelmente aconteceu, e o “ódio aos
portugueses” passou a aflorar entre os indígenas da Ibiapaba, cujas expressões mais evidentes
veremos mais à frente.
Ao final de janeiro de 1823 o Ceará iniciou de maneira efetiva a organização de tropas
com o objetivo de atacar os adeptos das Cortes na província vizinha. Havia a necessidade, por
parte do governo cearense, de proteger as vilas da fronteira, na Ibiapaba, contra as ideias
liberais e para evitar uma possível invasão de constitucionalistas no Ceará, como afirmam

81
De Francisco de Salema Freire Garção a Inácio da Costa Quintela. Parnaíba, 1º de janeiro de 1823. Apud.
DOCUMENTOS do tempo da independência (coleção Studart). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Minerva, tomo XXXVI, 1922, p. 320-322.
82
Cf. Certidão de José de Castro Silva. Fortaleza, 20 de novembro de 1822. AN, AA, IJJ9 170.
263

Martins Filho e Monsenhor Chaves.83 No dia 23 o governo do Ceará recebeu diversos


requerimentos das “vilas do norte” para enviar forças contra Fidié.84 No dia seguinte, por
meio do frade Alexandrino da Purificação, tiveram notícias das lideranças militares de Vila
Viçosa, Vila Nova d’El Rei, Sobral e Granja. Segundo o religioso, os chefes de várias
corporações, “depois de prometerem marchar para o Piauí a libertar seus irmãos oprimidos,
afracaram (sic)”. Por isso, ele pedia “que os fizessem marchar, ou demitissem dos postos”. O
deputado José Joaquim Xavier Sobreira sugeriu que as tropas destas vilas fossem enviadas
para Parnaíba.85
Apesar do anseio em combater os portugueses, a relutância das lideranças militares
provavelmente se devia à desvantagem bélica em relação às tropas de Fidié, situação
confirmada pelos acontecimentos dos meses posteriores. Em fevereiro de 1823, um ofício da
câmara de Sobral relatava ao rei “que esta província está falta de munições e petrechos de
guerra, e mesmo de oficiais hábeis que saibam dirigir com acerto as tropas”. 86 Anexo ao
ofício está uma cópia da ata de vereação da câmara de 8 de dezembro de 1822, quando já se
falava dos acontecimentos em Parnaíba, das possibilidade de auxílio aos adeptos da separação
e do temor de que o Ceará fosse invadido pelo governador das armas do Piauí. Várias
sugestões foram levantadas para que houvesse mobilizações militares na região em direção à
província vizinha, como a formação de um regimento, e que “se expedisse ordens para que os
índios de Vila Viçosa se reunissem também à tropa”.87
As ordenanças de índios da Ibiapaba combatiam em defesa dos interesses da Coroa no
Piauí desde, pelo menos, o final do século XVII.88 Os próprios índios, em suas requisições,
faziam menção aos feitos de seus antepassados nas terras além da serra, especialmente nos
conflitos contra grupos indígenas inimigos.89 No contexto da separação política do Brasil, a
força militar dos índios de Viçosa, aliada a dom Pedro I e carregada de antilusitanismo, não
poderia ser dispensada, especialmente em uma situação de falta de recursos bélicos. Mas foi a
própria comissão militar de Viçosa que passou a solicitar o auxílio do governo cearense antes
de seguir para a missão em Parnaíba. A junta deliberou no dia 10 de março que fosse enviada

83
MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 234. CHAVES, Monsenhor Joaquim. O
Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 62.
84
Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 23 de janeiro de 1832. APEC, GC, livro 32, 56V.
85
Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 24 de janeiro de 1832. APEC, GC, livro 32, 57-59.
86
Da câmara de Sobral ao rei dom Pedro I. Sobral, 15 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 4.
87
Ata de sessão da câmara de Sobral de 8 de dezembro de 1822, anexa ao ofício da câmara de Sobral ao rei dom
Pedro I. Sobral, 15 de fevereiro de 1823. AN, IN, caixa 742, pacote 4.
88
Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade
no Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 94.
89
Cf. Abaixo-assinado dos índios da Ibiapaba à rainha dona Maria I, anexo ao ofício do Marquês de Aguiar a
Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1814. APEC, GC, livro 93.
264

a embarcação do sargento-mor João da Silva Pedreira, juntamente com “vinte soldados, uma
peça de campanha e um sargento, além do que já se achava a bordo”.90 Com o mesmo
objetivo, “em consideração ao que representa a comissão militar de Vila Viçosa”, foi enviado
o sargento-mor João Nepomuceno com “mantimento, armamento e mais petrechos de guerra”
para a “expedição da Parnaíba, para o fim do ataque do inconfidente Cunha Fidié”.91
No dia 13 de março ocorreu a batalha do Jenipapo, em Campo Maior, com o massacre
das tropas mal armadas dos separatistas. Demoraram alguns dias para se ter notícia do conflito
em Fortaleza, e até lá, outros pedidos de reforços chegaram ao governo do Ceará. Em 16 de
março a junta governativa deliberou sobre um novo ofício da comissão militar de Viçosa “em
que pedia providências sobre a expedição do Piauí”, prometendo fazer marchar em socorro
das tropas cearenses o coronel José Vitoriano Maciel.92 Já era tarde para remediar a derrota
sofrida: no dia 24 o governo recebeu “várias participações oficiais de Quixeramobim, Monte-
mor Novo, Vila Nova d’El Rei e de outros comandantes e autoridades sobre o destroço de
nossas tropas auxiliadoras aportadas em Piauí, feito pelas tropas de Fidié”. Diante da notícia,
a junta governativa decidiu agir ofensivamente, expedindo “tropas para a fronteira norte para
serem guarnecidas e entrarem para o Piauí logo que o governador das armas [do Ceará]
de[sse] as ordens”.93
Diante da emergência da situação, vários regimentos militares da Ibiapaba seguiram
para as vilas próximas ao riacho Jenipapo, com o objetivo de protegê-las de um possível
retorno de Fidié, que já marchava para Caxias. A comissão de Viçosa não poderia mais
esperar reforços para partir. Mas, ao invés de rumar para o litoral, mudou sua rota para Campo
Maior no final de março; a partir de abril registraram-se as primeiras informações sobre a
presença da tropa de índios do Ceará no Piauí.

90
Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 10 de março de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 68-68V.
91
Da junta governativa do Ceará a João Nepomuceno. Fortaleza, 10 de março de 1823. Apud. ARARIPE,
Tristão de Alencar. Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e Maranhão, p. 242-243.
92
Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 16 de março de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 80V.
93
Ata da junta governativa do Ceará. Fortaleza, 24 de março de 1823. APEC, GC, livro 32, p. 88.
265

Mapa 5: Locais de atuação dos índios durante a guerra de independência no Piauí

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Piauí disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Piauí

“Mata que é corcunda!”

Não encontrei documentos que comprovem o envolvimento de tropas de índios vindas


do Ceará em confrontos contra regimentos militares constitucionalistas no Piauí. A ata da
sessão da junta governativa cearense de 24 de marços de 1823, que citei acima, faz referência
ao comunicado do comandante de Monte-mor Novo, que era vila de índios, sobre a derrota no
Jenipapo, mas não esclarece se havia indígenas compondo o regimento durante a batalha.
Alencar Araripe cita um ofício de Pereira Filgueiras ao diretor da missão da Conceição em
que solicitou o envio de “todos os índios que puderem seguir com seus competentes arcos e
flechas” para a vila do Crato e, de lá, para o Piauí.94 As tropas da região do Cariri de fato se
uniram ao Exército Libertador95 no posterior cerco a Fidié em Caxias, no mês de agosto de

94
De José Pereira Filgueiras ao “Sr. diretor dos índios da missão da Conceição José...”. Quartel general de São
João, 12 de abril de 1823. Apud. ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedição do Ceará em auxílio do Piauí e
Maranhão, p. 281-283. Não encontrei qualquer referência a uma “missão da Conceição”, em que província se
localizava ou o nome completo de seu diretor.
95
Cf. MARTINS FILHO, Antônio. Filgueiras e o exército libertador, p. 239.
266

1823, mas não foi possível encontrar comprovação de que havia índios participando desta
marcha.96
Tudo indica que os índios de Viçosa não chegaram a ir para Parnaíba e muito menos
estiveram na batalha do Jenipapo. Mas isso não significa que estivessem ausentes dos
acontecimentos posteriores. De acordo com Francisco Pereira da Costa, em 30 de março
“chegavam notícias a Oeiras de que o capitão Alexandre Neri Pereira Nereu entrara em
Campo Maior comandando um troço de 800 homens trazidos da Ibiapaba”, e de “que se
reuniam na serra mais de 600 índios que desceriam em breve para se bater pela
independência”.97 Em 5 de abril o governo do Piauí escreveu a Nereu, incumbido de
comandar o efetivo militar responsável pela proteção da referida vila e que lá chegara no dia
16 de março. Respondia a um ofício no qual o capitão alegara já esperar a tropa indígena da
Ibiapaba, e se lamentava pela falta de efetivo militar e das poucas munições disponíveis. A
junta piauiense aconselhou-o a dispensar todos os que “não estiverem armados com armas de
fogo”. Entretanto, advertia que “os índios não devem ser dispensados por forma alguma,
porque estes se devem considerar armados, visto que o arco e flecha é sua arma”. 98 A mesma
opinião foi transmitida ao capitão-mor Joaquim Nunes de Magalhães: os “índios, uma vez que
tragam arco e flechas, não os considera este governo na classe dos desarmados, por serem
aquelas suas armas”.99
O poder bélico dos arcos e flechas indígenas já era bastante conhecido e, mesmo que
não pudessem utilizar armas de fogo, não deixavam a desejar em relação a outros regimentos.
O governo do Piauí só não contava com o comportamento insubmisso da tropa dos índios, que
entrara na província manifestando toda sua fúria antilusitana.
Quando a junta piauiense escreveu a Nereu, ainda não havia recebido o outro ofício do
capitão do dia 4 de março, em que relata alguns dos problemas que enfrentara com regimentos
cearenses em Campo Maior. Disse ter sido atacado diversas vezes, “tanto de meia dúzia de
soldados pagos que aqui se acham do Ceará e dessa cidade, como de uma tropa de índios
vindos de Vila Viçosa, os quais tem feito os maiores insultos e roubos possíveis por falta de
subordinação de seus comandantes”. Alguns desses soldados, depois de terem sido
“seduzidos” pelos irmãos Vicente Bezerra da Costa e Luis Pinto, foram à porta da casa de
96
Claudete Dias afirma que “certamente” havia índios nas tropas que cercaram Fidié no Maranhão, mas não
apresenta provas documentais. Cf. DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 321.
97
COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. Rio de Janeiro: Editora
Artenova, 1974, volume II, p. 317.
98
Da junta governativa do Piauí a Alexandre Neri Pereira Nereu. Oeiras, 5 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7,
p. 9.
99
Da junta governativa do Piauí a Joaquim Nunes de Magalhães. Oeiras, 5 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7,
p. 12.
267

Nereu dirigindo-lhe “palavras injuriosas”, e por isso foram presos. Como reação às prisões,
foi a vez dos índios irem até a residência do capitão gritando “morra que é corcunda”. Para
que Nereu pudesse se “ver livre desse ataque foi preciso mandar chamar o capitão mandante
dos ditos índios e mostr[ar]-lhe os meus papeis a fim de acomodar a vil gente”. A
insubordinação dos índios em Campo Maior só teria cessado definitivamente no dia 2 de
abril, quando chegara à vila o tenente Simplício José da Silva, mandando

“soltar certa porção de animais que se achavam pegados e peados pelos ditos índios,
os quais escandalizados, não só por isso, mas também por se tratar de outros roubos
mais que eles tinham feito, hoje pelas 7 horas do dia se foram todos embora junto
com os seus capitães, dizendo que estavam adoecendo todos de sezões, por isso se
retiravam”.100

Monsenhor Chaves foi um dos poucos historiadores a trabalhar de forma mais


minuciosa estes documentos, narrando a presença dos índios em Campo Maior para além de
curtas citações, ainda que com tom abertamente racista. Relatou a afronta indígena contra
Alexandre Nereu, “homem fraco, indeciso, que não queria se comprometer com coisa
alguma”.101 O autor afirma que o “capitão mandou chamar o comandante dos índios e lhe
mostrou a sua patente para provar àquele imbecil que não era um corcunda e sim um chefe
independente. Muito estranho tudo isso”. Com a chegada do tenente Simplício, os “índios
nem reagiram. Perceberam que estavam diante não de um molenga, mas de um homem
enérgico e perigoso. Tinham pela frente agora um filho da terra, [...]. Trataram logo de
inventar doença e arribaram”.102
Chaves tende a caracterizar a presença militar cearense em Campo Maior após a
batalha do Jenipapo como uma invasão desastrosa. Em sua narrativa, é clara a diferença de
postura entre Nereu – cearense comandante das tropas da província vizinha – e o piauiense
Simplício José da Silva. Nas palavras do autor, os índios seriam ainda piores pela própria
“imbecilidade” de seu líder. Entretanto, o agrupamento de Viçosa não foi apenas enganado: é
possível perceber que a alegada insubmissão indígena se somava à de outros agentes
subalternos que formavam a soldadesca do Piauí e do Ceará. A luta contra os
constitucionalistas era extremamente heterogênea porque não se tratava meramente de um
confronto entre Brasil e Portugal, ou de naturais destes dois países. Por um lado, na tropa de

100
De Alexandre Neri Pereira Nereu à junta governativa do Piauí. Campo Maior, 4 de abril de 1823. APEPI, SI,
livro 4.
101
CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 105
102
Ibid., p. 108.
268

Fidié não havia “um único português em seu efetivo de praças”, como afirma Carlos Daróz.103
Por outro, soldados e índios possivelmente mantinham um diálogo e convivência mais
estreitas e certamente não tinham os mesmos objetivos que os oficiais de alta patente.
Acerca das ações ofensivas dos índios contra o capitão Nereu, Claudete Dias afirma
que a “violência contra certos oficiais serve como exemplo para explicar a atitude que certos
grupos populares adotaram de autonomia em relação à condução oficial da guerra”.104
Entretanto, se contradiz ao acreditar que havia um “sentimento de pátria e até mesmo de
nação mobilizando a população piauiense unida à do Ceará”.105 A própria saída dos índios de
Campo Maior, relatada por Chaves com deboche,106 tendo sido seu pretexto inventado ou não,
era sinal de que eles tinham motivações diferentes. Dias está correta quando diz que os atos de
violência demonstravam discordância “quanto aos rumos da causa pela qual lutavam”. 107 Mas
não é possível concordar que tenha havido um “patriotismo” unindo grupos sociais e étnicos
tão diferentes. Ainda que estivessem do mesmo lado, nem todos combatiam pela mesma
“pátria” ou em prol dos mesmos objetivos. Os significados da guerra, da independência, das
identidades e do futuro eram múltiplos.
Para os índios, era mais viável acreditar nas palavras de líderes populares do que na de
um capitão branco, que só pôde comprovar não ser um “corcunda” – termo que se referia
pejorativamente aos portugueses – mediante a entrega de papeis ao comandante indígena. Este
não era nada “imbecil”: conhecia a burocracia e a documentação da época e detinha um
efetivo poder de liderança diante de sua comunidade numa situação de guerra. O que a
historiografia e as autoridades da época qualificaram como “insubmissão” pode ser
interpretado como concepções próprias, indígenas, sobre as relações com seus líderes e de
como lidar com os inimigos.
Mas quem seriam, de fato, os corcundas e de que maneira deviam ser tratados? A
análise de outros registros pode nos fornecer novos elementos para refletir sobre o caráter
político tanto das atitudes indígenas quanto de outros agentes. Nem tudo era tão estranho,
como acreditava Chaves.
Em 12 de abril de 1823, a junta governativa do Piauí informou ao tenente Raimundo
de Souza Martins ter recebido notícias de que “as tropas em Campo Maior têm estado em

103
DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. A milícia em armas, p. 43.
104
DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 311.
105
Ibid., p. 302.
106
CHAVES, Monsenhor Joaquim. O Piauí nas lutas pela Independência do Brasil, p. 108.
107
DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 311-312.
269

total desarranjo, que já se debandou dela e que os índios se foram todos embora”. 108 No
mesmo dia, respondeu ao capitão cearense Luiz Rodrigues Chaves, concordando que “não só
os soldados do Ceará que cometem roubos, mas sim de mistura com muitos desta província e
outras pessoas”.109 Já no dia 18, lamentou ao capitão Nereu “os repreensíveis procedimentos
dos índios e dos soldados de linha”. Assegurou que os do Piauí seriam castigados, e os índios
ficariam a cargo do governo cearense de “dar providências para evitar a continuação destes
abusos”.110
O governo do Piauí percebia a dependência militar em relação ao Ceará pela falta de
condições materiais para manter suas tropas. Por isso não havia muita coisa que a junta
piauiense pudesse fazer, a não ser punir os soldados de sua província e esperar atitudes do
governo cearense. Mas, além disso, contrariando o bairrismo do Monsenhor Chaves, as
manifestações do governo mostram que os causadores das desordens não eram
exclusivamente cearenses e, muito menos, os índios, que brevemente deixaram a província.
De acordo com Abdias Neves, a “bala e o facho incendiário eram os argumentos
convencedores nestes dias negros. De Campo Maior e de Valença, sobretudo, chegavam as
notícias mais alarmantes de crimes perpetrados em nome da causa vencedora”.111 Segundo
Monsenhor Chaves, após a “retirada de Fidié, Campo Maior se transformou num pesadelo.
Nem o mais mínimo resquício de autoridade existia ali, e muito menos condições para exercê-
la”.112 O caos era generalizado nos dias posteriores à batalha do Jenipapo porque a população
percebia a realidade em que vivia de maneira bastante particular, e cada grupo agia por
motivações próprias em relação aos que consideravam inimigos.
Alguns autores buscaram explicações para o ambiente conturbado que se instaurou na
região, relacionando-as com a precária situação das tropas e da população e com seu
exacerbado antilusitanismo. Segundo Bernardo Pereira de Sá Filho, os combatentes
cometeram atos de vandalismo porque não haviam “recebido o pagamento do soldo
prometido pelos dirigentes”.113 Johny Santana de Araújo destaca como uma das preocupações
do governo piauiense a negociação “com as tropas oriundas do Ceará, que cobraram pela

108
Da junta governativa do Piauí a Raimundo de Souza Martins. Oeiras, 12 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7,
p. 33V.
109
Da junta governativa do Piauí a Luiz Rodrigues Chaves. Oeiras, 12 de abril de 1823. APEPI, SI, livro 7, p.
32.
110
Da junta governativa do Piauí a Alexandre Neri Pereira Nereu. Oeiras, 18 de abril de 1823. APEPI, SI, livro
7, p. 46V-47.
111
NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 171.
112
CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 28.
113
SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. A participação popular no processo de independência do Piauí, p. 168.
270

atuação na guerra da independência”.114 Para Iara Moura, as promessas de distribuição de


terras por parte das lideranças favoráveis à independência foram fundamentais para conseguir
o apoio popular. Marcados pela fome, o objetivo do povo seria “acabar com a estrutura
colonial de produção, totalmente o contrário da elite, que visava preservar esta ordem, pondo
fim apenas às restrições coloniais que dificultavam o comércio livre”. Apesar de citar os
saques e assassinatos contra portugueses, Moura não estabelece a ligação que havia entre tais
ações violentas e o antilusitanismo115, que sequer chegou a ser mencionado por Sá Filho.
Johny Araújo argumenta que, para as elites piauienses, “foi necessário cooptar nos
meios populares forças para garantir, por meio das armas, a expulsão dos portugueses”.
Acredita que os pobres “foram seduzidos pelo discurso nacionalista” das elites, ansiosas em
“se ‘descolonizar’ [...] tanto no âmbito político quanto no cultural”.116 Com isso, o autor não
percebe haver um antilusitanismo próprio dos grupos subalternos, manifestado violentamente
após a batalha do Jenipapo. Monsenhor Chaves e Maria do Amparo Carvalho relatam que,
após a batalha, portugueses foram mortos, roubados, e os que moravam em Campo Maior
tiveram suas casas saqueadas.117 Segundo Abdias Neves, enquanto “houve bens de
portugueses, foram roubados. Quando se extinguiram, foram atacados os das pessoas
suspeitas, ou como tais indigitadas”. Fazendo algum esforço interpretativo para as ações, o
autor afirma que “o furto cercava-se de um nimbo luminoso de patriotismo, era considerado
ação meritória”.118 Tais exemplos enfatizam claramente que os habitantes portugueses eram o
foco da fúria popular. Mas se as motivações estavam em confrontar o sistema econômico,
porque a população escolheu despejar sua insatisfação contra os lusitanos, “unindo-se” às
autoridades brasileiras que também os submetia?
É necessário, portanto, analisar as motivações políticas de cada grupo envolvido a
partir de suas próprias experiências. Como vimos em relação aos índios do Ceará, seu
antilusitanismo plantara raízes em 1821, quando as Cortes submeteram o rei e circulavam
histórias negativas a respeito da constituição que se fazia em Portugal. No ano seguinte, os
portugueses eram representados pela então junta governativa do Ceará, que visava aumentar
seu poder e que reprimira fortemente os movimentos de Maranguape e de Viçosa. Já em 1823,
a tropa desta vila, ao chegar a Campo Maior, se deparou com os resultados do massacre

114
ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí no processo de independência, p. 36.
115
MOURA, Iara Conceição Guerra de Miranda. A visão da história social sobre a “batalha do Jenipapo”, p. 82-
83.
116
ARAÚJO, Johny Santana de. O Piauí no processo de independência, p. 30.
117
CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 27-28. CARVALHO, Maria do Amparo
Alves de. Batalha do Jenipapo, p. 59.
118
NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 114.
271

perpetrado pelos lusitanos. O ódio que os índios nutriam dos portugueses não vinha
simplesmente de uma “revolta contra a dominação”, como alega de maneira vaga a
historiografia. Tinha a ver com o contexto específico do período: o “corcunda” que os
indígenas perseguiam com tanto afinco era um representante do país que visava instaurar um
novo sistema, e todos os que agissem assim também seriam perseguidos. O antilusitanismo
dos índios, além de buscar vingar violências sofridas, também significava lutar pela
manutenção de antigas garantias.
Em meados de abril de 1823, os indígenas de Viçosa já não estavam mais em Campo
Maior, mas sua estadia havia sido marcante o suficiente para ser negativamente referida em
várias correspondências militares posteriores. Segundo o tenente Simplício José da Silva,
escrevendo à junta piauiense no dia 21, os soldados cearenses já haviam quase todos saído de
Campo Maior, levando

“consigo os animais que puderam ajuntar, de tal sorte que em alguma fazenda
suponho que nem sementes deixaram, e muito principalmente causado este destroço
pelos índios; tropa que nos é inútil, antes sim causa um formidável prejuízo a esta
província por serem insubordinados”.119

No dia 25, o sargento-mor Bernardo Antônio Saraiva respondeu a uma sugestão da


junta governativa do Piauí de enviar os índios de Viçosa para Oeiras, a fim de proteger a
capital. Disse achar a medida “inútil pela má conduta, insubordinação de semelhante gente”, e
pela “destruição que tem causado aos povos desta província, com mortes e roubos, sem mais
atenção a superior algum”.120 Em 7 de maio, o juiz José Marques Freire relatou ao governo
piauiense haver um grande clima de denúncia contra quem fosse lusitano. Segundo ele

“aos povos só lhes serviam o nome (grito) de ‘morra, é corcunda’. [...] Depois foram
muitos roubados pelos índios, que não deixaram em casa vidros, e nem coisa
alguma. [...] Nesta vila ficaram todas as casas abertas por as tombarem as portas; e
roubarem tudo; assim estavam fazendo por fora a quem possuía alguns bens; bastava
ter alguma coisa para ser chamado ‘corcunda’, e ser logo roubado”. 121

Monsenhor Chaves mais uma vez deixa transparecer seu racismo nos comentários
feitos acerca do relato do juiz Freire. Segundo ele, os índios teriam sido uma “calamidade que

119
De Simplício José da Silva à junta governativa do Piauí. Estanhado [União], 21 de abril de 1823. APEPI, SI,
livro sem número [correspondências recebidas].
120
De Bernardo Antônio Saraiva à junta governativa do Piauí. Oeiras, 25 de abril de 1823. APEPI, SI, livro sem
número [correspondências recebidas]. Havia grande “preocupação em defender a capital” e, por isso, vários
pedidos de envio de tropas foram feitos aos governos de Pernambuco, Paraíba e Bahia. Cf. DIAS, Claudete
Maria Miranda. O outro lado da história, p. 306.
121
De José Marques Freire à junta governativa do Piauí. Campo Maior, 7 de maio de 1823. APEPI, SI, livro 4.
272

o Ceará nos mandou naquela hora”, não teriam feito “outra coisa senão roubar, com toda
aquela cara de bestas que Deus lhes deu” e quando “pressentiram que a repressão ia começar,
se escafederam com muita presteza”.122 Entretanto, a retirada indígena não se deu de forma
tão acabrunhada. Vimos anteriormente, pelo ofício de Nereu, que após soltarem os gados
roubados, a tropa se retirara “escandalizada”, em clara insatisfação com a atitude do tenente
Simplício.
A represália não foi suficiente para afastar os índios de Viçosa definitivamente do
Piauí. Em 25 de abril, o governador das armas Joaquim de Souza Martins foi comunicado
pelo sargento-mor Bernardo Antônio Saraiva sobre as providências tomadas “para evitar a
invasão dos índios que na Piracuruca [próxima a Campo Maior]” praticavam furtos.
“Semelhante gente tem dado provas de serem inúteis”, e por isso ordenou em 9 de maio que o
sargento-mor não consentisse em novas entradas. Caso ocorressem, que os mandasse “prender
para serem remetidos para a província a que pertencem”.123 Sobre a situação de Piracuruca
nos meses posteriores à batalha do Jenipapo, Abdias Neves comentou que os soldados
responsáveis por protegê-la “haviam desertado quase todos e se reuniam aos índios que
desciam da Ibiapaba, para atacar e roubar os sertanejos”. Segundo ele, a vila estava “quase em
abandono pelas correrias dos índios da Serra Grande”.124
É curioso o verdadeiro “trauma” que as ações indígenas acarretaram nas autoridades
brasileiras, mesmo que ambos estivessem lutando pela “causa do Brasil”. A repulsa dos
oficiais em relação à tropa de Viçosa se devia a uma convivência que os membros da junta
piauiense, sediada em Oeiras e longe do palco dos saques, não tiveram. Todos reconheciam o
potencial bélico indígena, mas os militares não conseguiam admitir a insubmissão nativa, que
agia a partir de seus objetivos e não obedecia ao que era ordenado. Deixaram Campo Maior
porque foram privados da liberdade de atacar, por meios próprios, os inimigos portugueses.
Tantas divergências são provas de que, ainda que houvesse um discurso patriótico brasileiro
proferido pelas autoridades adeptas da separação, isso não significava uma união em torno de
um mesmo “sentimento nacional”. As discordâncias entre índios e lideranças militares e
administrativas na forma como lidar com os portugueses eram exemplos da heterogeneidade
dos que lutavam pela independência, em meio às disputas pelas concepções de futuro.
A análise dos saques e depredações promovidas pelos índios não indica apenas que
suas ações eram motivas por autonomia. Os índios não faziam o que queriam – já que se

122
CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 30.
123
De Joaquim de Souza Martins para Bernardo Antônio Saraiva. Oeiras, 9 de maio de 1823. APEPI, SI, livro
sem número [ofícios do governador das armas].
124
NEVES, Abdias. A Guerra do Fidié, p. 115-116.
273

viram impelidos a deixar o Piauí – mas não foram impedidos de voltar quando podiam e nem
de caracterizar o inimigo de maneira particular. Como vimos no relato do juiz José Marques
Freire, os “corcundas” já não eram apenas os naturais de Portugal, mas todos aqueles que
tivessem “bens”, contrariando a assertiva de Abdias Neves. Claudete Dias afirma que, após a
batalha do Jenipapo, “os delitos eram cometidos, em várias vilas piauienses, exatamente
contra europeus e brasileiros, contanto que fossem proprietários”. A autora não consegue
responder, entretanto, qual era “o significado ou a razão desses delitos” e por que as
violências passaram a atingir também os nascidos no Brasil.125
Dias ainda compartilha da ideia de que os “’insultos’ e ‘roubos’” eram manifestações
populares que visavam “enfrentar a opressão dos europeus, [...] daqueles que ditavam as
regras há muito tempo”,126 esquecendo-se de que os brasileiros ricos eram opressores
igualmente antigos e os verdadeiros dominadores naquelas regiões. Como afirma André
Roberto Machado, a alteridade entre “brasileiros” e “portugueses” era “construída no
desenrolar da própria luta política”, e nem toda tensão se resumia ao choque entre essas duas
identidades. No Pará, a fúria dos populares adeptos da separação não se restringia “apenas aos
europeus, mas também a brasileiros tidos [...] como entraves à implementação dos objetivos
políticos dos rebeldes”.127 Os inimigos das comunidades indígenas, evidentemente, não se
restringiam àqueles que haviam nascido na Europa.
Na cultura política dos índios no Ceará, “portugueses” e “Coroa portuguesa” não
significavam a mesma coisa. O rei era aquele que havia garantido suas mercês e os havia
protegido das ambições dos proprietários; e os nascidos em Portugal, com o
constitucionalismo de Lisboa, passaram a representar uma ameaça contra esses benefícios. A
união de indígenas e de outros grupos populares com as autoridades brasileiras ocorreu pelo
desejo compartilhado de expulsão dos lusitanos. Com o decorrer dos acontecimentos, a figura
do inimigo se transformou na associação entre europeus e todos aqueles socialmente
superiores. “Portugueses”, “ricos” e “corcundas” passaram a significar praticamente a mesma
coisa e a luta indígena mudou de rumo. Não se guerreava apenas pela “causa do Brasil”: para
os índios, os combates da “independência” representavam uma oportunidade de enfrentar a
submissão que sofriam e que poderia recrudescer ainda mais.
Diferente do que afirma Eunice Duhram, o processo de inferiorização das populações
indígenas não conseguiu ser “mascarado durante as lutas de independência” e nem teve

125
DIAS, Claudete Maria Miranda. O outro lado da história, p. 315-316.
126
Ibid., p. 314.
127
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 224.
274

sucesso a “afirmação da unidade fictícia [...] através da ideia de povo”, já que as autoridades
militares faziam questão caracterizar os índios soldados enquanto presenças indesejáveis.128
Não havia unidade patriótica – e muito menos nacionalista – e nem homogeneidade entre os
adeptos da separação política brasileira. Na mudança indígena, na qual os alvos se ampliaram
dos europeus para “quem possuía alguns bens”, os “novos” inimigos eram, na verdade, os
mesmos de séculos atrás.

*
* *

Monsenhor Chaves citou um trecho de um ofício do tenente Simplício José da Silva


em que dizia que “parte das pessoas habitantes desse distrito [de Campo Maior] tinha
extraviado bens alheios, uns por serem dessa conduta, outras pelo vocábulo que corria entre as
pessoas rudes dos bens serem comuns”. O comentário de Chaves a respeito de Simplício não
poderia ser mais sarcástico. “Poxa vida! Marx ainda não tinha 5 anos e em Campo Maior já
havia tanta gente progressista...”.129 O autor não acreditava que houvesse qualquer sentido nos
saques que tomaram conta do Piauí em 1823 para além da pura baderna.
Entretanto, é possível analisar tais situações turbulentas a partir de outras perspectivas.
A respeito de uma revolta ocorrida no Pará, contemporânea ao que analisamos neste capítulo,
André Roberto Machado vai de encontro à opinião de autoridades da época que a viam como
uma “espasmódica manifestação de banditismo”. O autor percebe nela o caráter político das
ações dos índios e de diversos outros grupos étnico-sociais envolvidos, ainda que suas
variadas dissensões convergissem apenas no combate aos “inimigos da independência”. 130 No
caso piauiense, o que muitos definiram como calamidade diante da falta de qualquer controle
eram, de fato, manifestações políticas de setores muitas vezes distantes de posições de poder,
mas obstinados em construir o próprio futuro.
O pensamento relatado pelo tenente Simplício era mais antigo do que a turbulenta
guerra de independência no Piauí. Em 1818, o governador da então capitania do Ceará,
Manuel Ignácio de Sampaio, tecera alguns comentários sobre a insurreição do ano anterior

128
DURHAM, Eunice Ribeiro. O lugar do índio. O índio e a cidadania. São Paulo: Comissão Pró-Índio/SP,
Editora Brasiliense, 1983, p. 12.
129
CHAVES, Monsenhor Joaquim. Campo Maior e a Independência, p. 32.
130
MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades, p. 258.
275

com o ministro João Paulo Bezerra.131 Os conflitos foram contemporâneos à seca que
assolava a região desde 1816, dando “ocasião a uma excessiva fome de que não havia
memória de igual desde 1792 até o presente”. Para Sampaio, em meio a tais “calamidades
públicas [...] os crimes se tornam de ordinário mais frequentes” e “sempre são acompanhados
das mais terríveis consequências”. Durante esse contexto, uma das pessoas mais temidas pelos
realistas foi o ouvidor João Antônio Rodrigues de Carvalho, expressivo apoiador do
liberalismo pernambucano no Ceará. Em meio ao flagelo da estiagem e às tensões
revolucionárias

“o ouvidor Carvalho se lembrou de proclamar o princípio totalmente subversivo da


ordem social, a saber ‘que todos os bens são comuns’. Este princípio, que jamais
deixa de estar arraigado no espírito de todos os índios, ainda os mais civilizados, e
que agrada por extremo a todas as castas de misturados, que constitui a maior parte
dos habitantes deste sertão, sendo sustentado pelo ouvidor da comarca levou à maior
desesperação os agricultores, donos de fazendas de gado e em geral todos os
proprietários da capitania, e seria bastante para excitar uma grande desordem, e até
uma revolta mesmo independente das mais sugestões”. 132

Durante os conflitos de 1817, as palavras proferidas pelo ouvidor não foram


suficientes para convencer os índios das vilas do Ceará, que se posicionaram contrários aos
insurretos de Pernambuco. Estes, lutando por sua liberdade, não necessariamente pretendiam
transformar a sociedade em um mundo igualitário onde todos tivessem direito à propriedade.
As propostas dos líderes mais radicais do movimento, contudo, eram recebidas pela
população pobre de maneiras diversas. Os índios que obedeceram aos recrutamentos no
Ceará, apesar terem relações comunais com seus bens e terras, percebiam que os autores das
revoltas deste período turbulento eram geralmente os mesmos que, tradicionalmente,
ambicionavam a expropriação de seus territórios.
Os indígenas compreendiam a conjuntura em que viviam de maneira particular, e seu
envolvimento em eventos bélicos desta época não seguia cegamente os ditames das
autoridades às quais estavam submetidos. No próximo capítulo analisaremos a participação
dos índios no Ceará nas guerras liberais oitocentistas, tanto na condição de recrutados quanto
na de revoltosos. Em todos estes momentos manifestaram seu desejo de defender suas
garantias e sua insatisfação contra aqueles que não as respeitavam durante um período que

131
João Paulo Bezerra, ministro dos Negócios Estrangeiros, faleceu em 29 de novembro de 1817. Cf.
AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. Os túmulos de um claustro. Revista do Instituto Histórico,
Geográfico e Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, tomo XXIX, primeira parte, 1866, p. 278.
Quando escreveu a Bezerra, o governador Sampaio ainda não sabia de sua morte.
132
De Manuel Ignácio de Sampaio a João Paulo Bezerra. Fortaleza, 21 de janeiro de 1818. AN, 88, p. 83-83V.
ARARIPE, Tristão Alencar. Documentos para a história do Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 94-95.
276

cada vez mais os cerceava. A luta contra proprietários e pelo direito a uma vida autônoma e
comunal marcou a atuação política indígena em seu envolvimento nas guerras oitocentistas.
277

CAPÍTULO 8

ATUAÇÃO INDÍGENA NAS INSURREIÇÕES LIBERAIS

“Viva os intrépidos e valorosos índios do Ceará!”


(Manuel Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de
1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V)

“Os chefes indianos, assim como a gente que deles dependia,


foram de grande préstimo na restauração da ordem, [...]
formando, com efeito, os melhores padrões da raça nativa que
eu vira na América do Sul”
(Lord Cochrane. Narrativa de serviços no libertar-se o
Brasil da dominação portuguesa. Londres: James
Ridgway, 1856, p. 185)

“Entre os índios do Buriti [...] nunca cesse de recrutá-los


para que pouco a pouco se vá desaparecendo daí essa gente
avezada aos atentados”
(José Joaquim Coelho. Fortaleza, 11 de agosto de 1841.
APEC, GP, livro 48, p. 171V)

8.1. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817

O dia 6 de março de 1817 se distinguiu por algo inédito na história da monarquia


portuguesa: pela primeira vez, parte de seus antigos súditos lançou-se “no crime de separar-se
do corpo do rei, de não ser mais, simbólica e praticamente, parte dele, em solo então marcado
pela presença da Corte e elevado à categoria de Reino Unido”. Constituindo uma república
que pretendia se estender de Alagoas ao Ceará, o movimento liderado por militares,
comerciantes, proprietários rurais e representantes do clero residentes em Pernambuco
instaurou, segundo Denis Bernardes, o “tempo da pátria, no qual a legitimidade do poder real
deixou de ser reconhecida e uma nova soberania a substituiu”.1
Segundo Evaldo Cabral de Mello, mais do que a república, “a independência foi o
verdadeiro motor de Dezessete”, mas ainda assim não se compatibilizava nem ao menos com
a ideia de um império constitucional.2 Não se tratava, entretanto, de uma revolução
separatista, como alerta o autor, já que não havia nessa época uma unidade nacional no Brasil
a ser quebrada. Tampouco o movimento pretendia constituir uma nação brasileira:3 o que
ocorreu, como vimos com Bernardes, foi a quebra dos laços que uniam os adeptos da

1
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São
Paulo-Recife: Aderaldo & Rothschild Editores, FAPESP, Editora Universitária UFPE, 2006, p. 205.
2
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo:
Editora 24, 2004, p. 39.
3
Ibid., p. 44.
278

insurreição ao corpo de vassalos do rei lusitano. Pelo excesso de tributos cobrados nas
províncias – principalmente as do norte – para a manutenção da Corte no Rio de Janeiro,4 o
movimento recorreu ao “argumento mais abrangente da violação pela Coroa do próprio pacto
constitutivo da nação portuguesa”.5
O movimento abrangeu áreas de reconhecida influência histórica e econômica
pernambucana, como o Ceará,6 mas é de questionar o verdadeiro impacto da revolução nesta
capitania.7 A adesão das vilas do Crato e Jardim à república de 1817, liderada por José
Martiniano de Alencar em 3 de maio, durou apenas 8 dias, sendo, em seguida, debelada por
José Pereira Filgueiras.8 Para Guilherme Studart, “o movimento de 17 no Ceará foi obra de
uma família, não interessou às diversas classes sociais, não foi produto da opinião pública”.9
O autor percebeu com clareza que a insurreição dos Alencar teve impactos mínimos em
território cearense, mas desconsiderou a presença das classes populares que se manifestaram
em apoio ao movimento. Em seu texto, o fracasso da rebelião é atribuído apenas às ações do
governador do Ceará Manuel Ignácio de Sampaio em impedir a difusão das ideias liberais na
capitania.10
A postura de Studart compõe o discurso da antiga historiografia da insurreição
pernambucana acerca do envolvimento dos mais pobres, independente de quais lados
estivessem.11 Segundo Denis Bernardes, era “quase geral, entre os que escreveram sobre
1817, [...] a ideia de que a participação popular na revolução foi, quando existente, mínima,
sem grande importância ou, [...] teria permanecido como caudatária da direção dos senhores
ou da elite dominante”.12 Apesar dos avanços posteriores em reconhecer o peso significativo
da presença do povo nas tropas liberais e realistas, ela ainda é muitas vezes caracterizada
como se tivesse apenas seguido os desígnios das lideranças abastadas.

4
Ibid., p. 29.
5
Ibid., p. 46.
6
Ibid., p. 32.
7
Ibid., p. 54. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo constitucional, p. 72-73.
8
GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1984, p.
128.
9
STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817: o movimento de 17 no Ceará. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXI, 1917, p. 159.
10
Ibid., p. 159-160.
11
STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo
LXXIV, 1960 [1961], p. 9. MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo/Editora Perspectiva, 1972, p. 189. MONTENEGRO, João Alfredo de
Sousa. O trono e o altar: as vicissitudes do tradicionalismo no Ceará, 1817-1978. Fortaleza: BNB, 1992, p. 26.
12
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817. In: DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, motins e
revoluções: homens livres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011,, p. 73.
279

Interpretações semelhantes foram desenvolvidas sobre a presença indígena nos


conflitos.13 Como afirma Bernardes, tais tipos de interpretações contêm diversas limitações
por serem “baseadas em um exame parcial, incompleto ou deliberadamente seletivo da
documentação”. Além disso, aqueles autores não se questionavam acerca das “condições de
exercício da ação política”, seja em uma “situação de quebra repentina” do Antigo Regime14
ou de apoio ao mesmo. Em relação aos índios, Marcus Carvalho defende que eles não eram
“meros peões na política local, mas agentes históricos com interesses próprios”. As
“comunidades aproveitavam aqueles momentos em que eram requisitadas a participar como
parte de uma força armada a serviço dos potentados rurais, para tentar preservar alguns dos
seus direitos tradicionais em face desses mesmos potentados”.15 Mariana Dantas afirma que o
“recrutamento de índios e o uso da força militar eram práticas inseridas nos jogos políticos
locais, que iriam ter reflexos [e não meramente soterrariam] no pensamento político dos
indígenas”.16 Estudando o desenrolar da revolução na Paraíba, Serioja Mariano argumenta
que, na “perspectiva indígena, ficar de um lado ou de outro poderia garantir a posse da
terra”.17
Os índios do Ceará, assim como os da maioria das capitanias envolvidas, foram
recrutados na ação militar realista e se posicionaram como fieis defensores do rei. Sem se
prender em perspectivas “alienantes”, a análise da documentação nos permite vislumbrar as
motivações dos indígenas para se colocarem de forma tão aguerrida contra os revolucionários
que visavam desmantelar o “injusto” e “desigual” corpo de súditos do monarca português.

“Viva os índios do Ceará!”

Denis Bernardes apresenta três aspectos pelos quais se é possível refletir sobre as
possíveis motivações das classes populares em aderir ao movimento revolucionário liberal no
Recife em 1817. Em relação ao aparato judiciário do Antigo Regime, o autor afirma que

13
MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817, p. 182. MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O trono e o
altar, p. 24. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 62.
14
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817, p. 73.
15
CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848):
Ideologias e Resistências. In. ALMEIDA, Luiz Sávio de. GALINDO, Marcos. Índios do Nordeste: temas e
problemas – III. Maceió: EDUFAL, 2002, p. 93. GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e
independencia de Brasil. Studia Historica. Historia Contemporánea, n. 27, 2009, p. 268.
16
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas (1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal
Fluminense, 2015, p. 110.
17
MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro. Memórias da insurreição de 1817 na Paraíba: o diário do sargento
Francisco Inácio do Vale. Anais do VI Encontro Nacional de História Cultural, 2012, p. 5.
280

“todos eram desiguais perante a lei”, o que fazia com que as penas fossem bem mais
truculentas para os réus de baixa condição.18 Em segundo lugar, o “poder do Estado
absolutista em matéria fiscal gerou uma série de abusos que pesavam sobre a maioria da
população, deles excetuados os nobres e o clero, o que tornava mais odioso e inaceitável sua
imposição”.19 Por fim, o recrutamento militar, “espécie de sequestro oficial sobre a população
dos homens livres pobres”, era para eles um flagelo que “atingia a força de trabalho familiar
dos pequenos agricultores ou artesãos”.20
Por mais que isso fosse uma realidade para grande parte dos pobres livres da capital
pernambucana, as mesmas questões eram vivenciadas de maneiras distintas pelos índios no
Ceará deste período. No que se referia à justiça, o governador do Ceará à época, Manuel
Ignácio de Sampaio, era muito bem quisto pelas comunidades indígenas da capitania por
conta de seu combate aos abusos dos proprietários, como mostrei em trabalho anterior 21 e
como veremos mais à frente. Acerca do recrutamento militar, a população indígena não era
mobilizada para a tropa de linha, e, como vimos nos capítulos 5 e 6, sua atuação por meio das
ordenanças era, para eles, um caminho importante de atuação política.22
Além disso, ao contrário das camadas populares de Recife, os indígenas das vilas do
Ceará provavelmente tiveram muito pouco contato com as ideias liberais em 1817. Domingos
José Martins, um dos líderes da revolução, chegou a fazer perguntas sobre Manuel Ignácio de
Sampaio a dois índios correios vindos de Pernambuco, o que não foi suficiente para
estabelecer uma relação mais permanente dos liberais com os indígenas.23 De acordo com
Keile Felix, já havia intenções de inserir o Ceará no movimento revolucionário desde pelo
menos 1815, a partir da nomeação de João Antônio Rodrigues de Carvalho como ouvidor da
comarca da capital e a introdução das primeiras lojas maçônicas. 24 Carvalho recebia várias
pessoas em sua residência em Fortaleza, com quem tratava de assuntos considerados

18
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817, p. 75.
19
Ibid., p. 76.
20
Ibid., p. 77.
21
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820).
Teresina: EDUFPI, 2015, p. 139-150.
22
No que dizia respeito aos impostos, a abolição do subsídio militar, do pagamento de selo nas patentes e dos
6% dos seus diretores, decretadas dois anos depois dos conflitos, foram tentativas fortalecimento do vínculo de
vassalagem entre os índios e o rei.
23
Cf. Portaria a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 24 de abril de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 114. O Correio
do Norte do Brasil, por meio dos “índios correios”, foi ferramenta importante do governo Sampaio na coleta de
informações provenientes de outras vilas e províncias sobre os acontecimentos relativos à revolução. Cf.
NOBRE, Geraldo da Silva. A revolução de 1817 no Ceará. In: SOUZA, Simone de. (Org.). História do Ceará.
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1984, p. 132. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p.
237-238
24
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos
políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 61
281

“perigosos” pelos defensores da monarquia. Para Felix, já seria possível visualizar no Ceará
deste período “toda uma nova cultura política que vinha pouco a pouco minando as crenças e
ideias centrais típicas de sociedades do Antigo Regime”.25
A afirmação da autora é precipitada ou, pelo menos, generalizante. Os acontecimentos
desenrolados anos depois em decorrência da separação política brasileira são prova de que a
difusão de princípios revolucionários e liberais em 1817 ainda não havia sido suficiente para
“minar” o absolutismo no Ceará. Além disso, as reuniões promovidas pelo ouvidor Carvalho
certamente não agregavam representantes de todos os extratos da sociedade, muito menos os
índios. Segundo Studart Filho, nem havia essa preocupação por parte dos pedreiros livres
cearenses.26 Mas mesmo antes que ela surgisse, as ações preventivas do governador Sampaio,
tomadas assim que soube dos acontecimentos em março no Recife, abortaram rapidamente os
planos dos liberais para o Ceará. Não foi possível, portanto, o desenvolvimento em 1817 de
uma “nova cultura política” que fosse capaz de ameaçar o Antigo Regime em território
cearense.
Segundo Guilherme Studart, desde o final de março e nos meses seguintes, “muitas e
importantes medidas tomou Sampaio para sufocar qualquer tentativa de levante”.27 Vários
suspeitos de conspirar contra a integridade da monarquia foram presos, destruindo
prematuramente a difusão dos planos republicanos a partir de Fortaleza.28 Mandou deter
embarcações, guarneceu fronteiras e estabeleceu presídios na costa, como os do litoral
próximo a Itapajé, que ordenou serem protegidos pelos índios de Almofala em setembro.29
Além disso, também “armou os índios das aldeias vizinhas da capital”.30
Em 19 de maio de 1817, Sampaio expediu ordem aos diretores de Soure, Arronches e
Messejana para “terem prontos em estado de defesa todos os índios daquela direção para
qualquer operação”, pelos “augustos direitos de Sua Majestade e a manutenção do sossego e
boa ordem da capitania”.31 No dia 23, o governador ordenou que 300 índios das três vilas,
armados de arco e flecha, se dirigissem às fronteiras do Ceará com a Paraíba e o Rio Grande

25
Ibid., p. 71-72.
26
STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará, p. 9.
27
STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817, p. 111.
28
Cf. Ibid., p. 110-111. HISTÓRIA da revolução de 1817 por Muniz Tavares na parte relativa ao Ceará. Revista
do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XII, 1898, p. 259. STUDART FILHO, Carlos. A
revolução de 1817 no Ceará, p. 29-32. NOBRE, Geraldo da Silva. A revolução de 1817 no Ceará, p. 134-135.
GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 126-127
29
De Manuel Ignácio de Sampaio a Pedro Luís Pessoa. Fortaleza, 12 de setembro de 1817. APEC, GC, livro 21,
p. 175.
30
STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817, p. 111.
31
De Manuel Ignácio de Sampaio aos diretores de Arronches, Soure e Messejana. Fortaleza, 19 de maio de
1817. APEC, GC, livro 21, p. 132V.
282

do Norte para se unir à companhia liderada pelo coronel Alexandre Leite de Chaves e Melo.32
Também mandou armar, no dia seguinte, mais 100 índios da vila de Monte-mor Novo para
que se juntassem aos outros que rumavam aos limites da capitania.33 Ainda no final de maio,
os cerca de 1.700 homens liderados por Chaves e Melo atravessaram as fronteiras cearenses,
prendendo alguns liberais que se refugiavam na região do rio do Peixe, compreendendo as
vilas de Portalegre, no Rio Grande do Norte, e Souza e Pombal, na Paraíba.34
As referências à participação dos 400 índios do Ceará nas ações militares de repressão
à revolução nas obras dos historiadores tradicionais são muito poucas e bastante sucintas,
talvez não reconhecendo nela qualquer importância. Mas a leitura da "Proclamação aos índios
do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de autoria de Manuel
Ignácio de Sampaio, aponta para um sentido inverso: a presença bélica indígena não era, de
forma alguma, insignificante:

“Índios do Ceará, é necessário cortar de uma vez esta série de desgraças que não
pode deixar de ser organizada pela ignorância que tais traidores disfarçados inimigos
da fé cristã têm ou afeitam ter dos heroicos fatos praticados na gloriosa restauração
de Pernambuco da mão dos holandeses e flamengos pelos habitantes dessas
Capitanias principalmente pelos índios, e mais que tudo pelos índios do Ceara. É
necessário que tão infames traidores paguem mui caro com esta afetada ignorância
dos heroicos feitos dos vossos pais e avós. [...] Índios do Ceara, nas vossas veias
corre ainda o sangue dos Algodões, dos Camarões, dos Pinheiros, dos Tavares, dos
Campelins e de outros muitos heróis que se distinguirão assim nos ataques sobre o
gentio como na primeira restauração de Pernambuco. Mostrai a todos que sois
dignos filhos. [...] Vós sois valorosos. Nada vos resistirá. Invejo-vos a glória de que
todos vós ides cobrir. Viva a nossa Santa Religião, viva o nosso Rei o Senhor Dom
João 6º e Toda Real Família, viva os intrépidos e valorosos índios do Ceará!”35

O governador se utilizou de elementos discursivos bastante valorizados na cultura


política das comunidades indígenas desse período e frequentes em suas requisições, como no
caso das referências às ações militares de seus antepassados em defesa dos interesses da
Coroa portuguesa. Além disso, indo de encontro aos apelos da tradição pernambucana
utilizada pelos liberais, como vimos anteriormente com Evaldo Cabral de Mello, Sampaio

32
De Manuel Ignácio de Sampaio ao diretor de Messejana. Fortaleza, 23 de maio de 1817. APEC, GC, livro 21,
p. 136. De Manuel Ignácio de Sampaio José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 23 de maio de 1817. APEC, GC,
livro 21, p. 136V.
33
De Manuel Ignácio de Sampaio a José Severino de Vasconcelos. Fortaleza, 24 de maio de 1817. APEC, GC,
livro 21, p. 140.
34
Cf. STUDART, Guilherme. 3 de maio de 1817, p. 146. FEITOSA, Carlos. A descendência de Antônio Leite
de Chaves e Melo. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Editora do Instituto do Ceará LTDA, tomo
LXVIII, 1954, p. 156. STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará, p. 64. NOBRE, Geraldo da
Silva. A revolução de 1817 no Ceará, p. 137.
35
"Proclamação aos índios do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de Manuel
Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V.
283

inverteu os elementos dessa memória, ressaltando que a expulsão dos batavos fora
protagonizada pelos índios em nome do rei lusitano. Não buscava, apenas, “forjar” uma
realidade de amor e fidelidade dos soldados ao rei,36 mas ressaltar sentimentos de uma relação
recíproca que, segundo ele, existia há muito tempo. Ainda que as palavras de Sampaio tenham
sido utilizadas apenas com o objetivo de despertar nos índios o orgulho e a obstinação para
partir para o campo de batalha, a própria necessidade de produzir a proclamação revela que a
importância história da força militar indígena não era ignorada.
A presença dos índios de outras capitanias nas tropas contrarrevolucionárias em 1817
também foi destacada por alguns autores.37 Mariana Dantas também segue uma linha
argumentativa semelhante, supondo que os recrutamentos de índios pela Coroa em 1817
tenham sido forçados, mesmo que as fontes trabalhadas não apresentem nada a respeito.38 A
autora se baseia na história das conscrições de índios no período posterior à década de 182039
– que, como vimos no capítulo 5, tinham características diferentes às do contexto analisado
aqui. Apesar de reconhecer a tradicional relação de fidelidade dos índios com a monarquia,
Dantas acredita que, em 1817, tinham que ser convencidos a lutar pelo rei, já que “a
continuidade de uma cultura política do Antigo Regime não seria o suficiente para levá-los a
pegar em armas e arriscar suas vidas”.40
Mas a documentação referente à participação das tropas de índios do Ceará fornece
elementos que nos permitem rever tais interpretações. Em 24 de maio, Manuel Ignácio de
Sampaio escreveu ao coronel Chaves e Melo comunicando-lhe que os “índios vão com um
ânimo extraordinário” ao seu encontro nas fronteiras.41 No dia 29 o governador escreveu à
câmara de Fortaleza tratando das ações tomadas em prol do combate aos liberais. Relatou o
envio do sargento-mor José Agostinho Pinheiro, vereador da capital e diretor de Arronches e
Soure, “à testa de um corpo de índios seus dirigidos de quem é por extremo amado e
respeitado”.42 Em 31 de maio, Sampaio ordenou o coronel Chaves e Melo que atacasse a

36
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 317.
37
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 63. CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o
Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848), p. 77-88. Por mais que admita a histórica figura de
proteção que o rei possuía entre os índios das vilas oitocentistas, o autor, também aqui, percebe o envolvimento
indígena nas insurreições liberais como fazendo parte das redes clientelistas em que estavam inseridos, ou
buscando vantagens em meio a “brigas de brancos”.
38
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro, p. 100-103.
39
Ibid., p. 107.
40
Ibid., p. 116.
41
De Manuel Ignácio de Sampaio a Alexandre Leite de Chaves e Melo. Fortaleza, 24 de maio de 1817. APEC,
GC, livro 24, p. 9.
42
De Manuel Ignácio de Sampaio à câmara de Fortaleza. Fortaleza, 29 de maio de 1817. APEC, CM, câmara de
Fortaleza, livro sem número (1813-1818), p. 69.
284

região do rio do Peixe, tendo em vista os regimentos que receberia e “à vista do entusiasmo
com que vão os índios do Pinheiro”.43
A postura indígena na marcha contra os liberais é bem diferente do que supôs Mariana
Dantas para os índios de Pernambuco. Em seu entusiasmo estava o orgulho presente nas
palavras da proclamação que os enviou ao campo de batalha. Para os índios, a luta de 1817
era uma oportunidade de repetir os atos heroicos e garantir, mais uma vez, prestígio diante da
monarquia que defendiam.
Outras referências aos índios estão nos ofícios de 2 de junho dirigidos a diversas
autoridades de fora de Ceará produzidas por Sampaio. Ao conde da Barca, relatou a fidelidade
dos corpos militares da capitania, inclusive dos “índios aldeados e em geral de todo o povo
inculto”, dignos “da melhor sorte” e merecedores de “que Sua Majestade tenha com eles
alguma contemplação enquanto a tributos”.44 Ao governador da Paraíba, comunicou-o das
súplicas de várias autoridades locais em que pediam “licença para ir atacar esses rebeldes”, e
fez referência ao “corpo de índios armados de arco e flecha”, destinados “para operarem com
os demais corpos” nas fronteiras.45 Para o chefe da divisão que bloqueava o posto do Recife,
informou que marchavam para a capital pernambucana “tropas de linha e de milícia, de
ordenanças e de índios armados com arco e flecha: ninguém quer ficar”. 46 E ao governador do
Rio Grande do Norte também versou sobre os vários pedidos de “câmaras e outras
corporações [...] para irem atacar e restaurar as vilas de Souza e Pombal, [...] licença que eu só
concedi aos índios como mais próprios para resistirem aos incômodos do sertão”.47
As palavras de Sampaio para estas autoridades bem que poderiam ser exageradas,
ditas em busca de construir uma imagem da capitania que comandava como uma terra de
habitantes fiéis à monarquia, e de si, como um governante competente. Todavia, os registros
não fazem nenhuma referência a tumultos ou resistência dos índios. Estes, ao contrário, teriam
pedido, assim como outros grupos sociais, para se lançar contra os inimigos da Coroa. Se não
fosse assim, o governador não reconheceria os indígenas como merecedores da atenção real:
no caso dos tributos, as isenções tanto contrariariam as reclamações dos insurgentes liberais

43
De Manuel Ignácio de Sampaio a Alexandre Leite de Chaves e Melo. Fortaleza, 31 de maio de 1817. APEC,
GC, livro 24, p. 13.
44
De Manuel Ignácio de Sampaio ao conde da Barca. Fortaleza, 2 de junho de 1817. AN, 88, p. 9.
45
De Manuel Ignácio de Sampaio ao governador da Paraíba. Fortaleza, 2 de junho de 1817. APEC, GC, livro 23,
p. 146V. DOCUMENTOS da revolução de 1817 (do arquivo do barão de Studart). Revista do Instituto do
Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXXI, 1917, p. 73.
46
De Manuel Ignácio de Sampaio a Rodrigo José Ferreira Lobo. Fortaleza, 2 de junho de 1817. APEC, GC, livro
23, p. 148.
47
De Manuel Ignácio de Sampaio ao governador do Rio Grande do Norte. Fortaleza, 2 de junho de 1817. APEC,
GC, livro 23, p. 148V.
285

quanto atenderiam as súplicas feitas pelos índios desde 1814, com o grande requerimento dos
da Ibiapaba. Inclusive, a demora na resposta do rei em relação aos pedidos que haviam feito
não impediu que os índios de Viçosa, em 30 de julho de 1817, declarassem sua fidelidade ao
rei e seu desejo de defendê-lo. Como vimos no capítulo 4, mesmo não tendo sido recrutados,
desejavam “pegar em armas, derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa
Majestade”.
Em 13 de agosto, meses depois do fim dos conflitos, Sampaio escreveu novamente ao
conde da Barca contando detalhes do que havia acontecido nas vilas sublevadas e da
repressão bem-sucedida que ele organizara. Apesar do entusiasmo dos índios que marcharam,
registrado nos ofícios que vimos há pouco, não houve solenidades com a queda da revolução
“nas vilas de índios de Arronches, Soure e Messejana, [...] por serem mui insignificantes, ou
talvez por outros motivos de que eu não possa ainda com segurança informar”. 48 Também
pode ter sido porque, no início de agosto, os que se encontravam nas fronteiras tinham
acabado de voltar às suas vilas,49 e se mantiveram em alerta até o dia 23 de setembro, quando
foram desarmados por conta da “boa ordem que vão tomando os negócios das três capitanias
[...] que há pouco estiveram sublevadas”.50
Isso não quer dizer, de forma nenhuma, que os índios foram indiferentes aos mais de
dois meses que estiveram longe de casa, a serviço do rei. Como disse acima, se o
comportamento indígena tivesse sido insubordinado ou desagradado ao governador, este não
os teria defendido diante de dom João VI, que em setembro de 1817 já tomava conhecimento
de sua conduta.51 Em resposta à consulta do rei sobre a situação dos índios de Viçosa,
Sampaio alegou, em julho de 1818, que os indígenas

“não só marcharam desta capital para atacar os rebeldes com uma prontidão, uma
fidelidade e um entusiasmo que muito me satisfez, mas tendo sempre feito grandes
marchas forçadas, só se entristeceram quando receberam ordem para retrogradar, e
chegaram a esta capital lastimando-se de não terem tido ocasião de verem a cor do
sangue dos patriotas, e acrescentando que os poucos que encontraram foram tão vis
que nem a mais pequena resistência lhes fizeram, não lhes tendo, por esta maneira,
permitido que usassem dos seus arcos e flechas em defesa do seu rei” 52

48
De Manuel Ignácio de Sampaio ao conde da Barca. Fortaleza, 2 de junho de 1817. AN, 88, p. 20-27.
49
Cf. De Manuel Ignácio de Sampaio ao intendente da Marinha. Fortaleza, 4 de agosto de 1817. APEC, GC,
livro 28, p. 58.
50
De Manuel Ignácio de Sampaio aos diretores de Arronches, Soure e Messejana e ao capitão-mor de Monte-
mor Novo. Fortaleza, 23 de setembro de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 176V-177V.
51
De Thomas Antônio de Vilanova Portugal a Manuel Ignácio de Sampaio. Rio de Janeiro, 3 de setembro de
1817. AN, AA, IJJ9 56, p. 188.
52
De Manuel Ignácio de Sampaio a Thomas Antônio de Vilanova Portugal. Fortaleza, 2 de julho de 1818. BN,
C-199, 14. Salvo indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento.
286

Sampaio não ganharia muito inventando uma imagem de fidelidade e intrepidez sobre
os índios que não existisse – além, talvez, de passar a imagem de bom e eficiente governante,
que sabia infundir nos habitantes de sua capitania lealdade à monarquia. Tal bravura indígena
em campo de batalha era comumente registrada nas fontes coloniais, 53 inclusive nas próprias
palavras dos índios, quando se reportavam aos seus antepassados mais ilustres que morreram
guerreando em nome dos reis. O relato de Sampaio ressalta, mais uma vez, a importância da
guerra para essas comunidades e a forma como se aliava à imagem que tinham do monarca:
era usando seus arcos e flechas que garantiam o lugar que acreditavam ser de destaque diante
de seu soberano. A ausência de solenidades em suas vilas pode também ter sido consequência
das expectativas frustradas por não terem visto o sangue dos inimigos do rei, e que, portanto,
era seu também. Essa briga também lhes pertencia.
Na continuidade de seu relato, Sampaio ponderou um possível exagero: disse que os
índios “voltaram contentes” de sua empreitada, “tão somente com a pena de não terem batido
com os rebeldes”. Por ter mandado distribuir para eles “uma camisa e umas calças de pano de
algodão da terra (que eles denominam o seu fardamento)”, os índios “ficaram por extremo
satisfeitos, desejando a repetição de semelhante comissão”. As ordens de Sampaio para que se
providenciassem tecidos para os índios que haviam voltado das fronteiras havia pouco tempo
foram emitidas no início de agosto de 1817.54 Diferente do que afirmei em trabalho anterior,55
o ato não era, necessariamente, mais importante para o governo do que para os próprios
índios. Não eram simples roupas: na concepção desses indígenas, se tratavam de
“fardamentos” de guerra, símbolos do prestígio que conquistaram pelos serviços prestados ao
rei.
Sampaio não agia, portanto, à revelia da vontade dos índios. Estes, por sua vez, viam
no governador uma autoridade que os reconhecia como dignos de atenção, a partir de atos
como a proclamação a eles dirigida ou o envio de suas vestimentas. O governador também fez
referência à adesão que muitos indígenas manifestavam a sua pessoa, já que não eram
“poucos os que diziam [...]: ‘nós não temos medo que eles (os rebeldes) cá venham atacar o
nosso governador, nós cá estamos para o defendermos’”. O receio dos índios seria apenas que
armassem alguma traição contra Sampaio, “porque ele não se acautela, e então tudo está

53
Cf. CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-
1848), p. 70-71. DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação
do Estado nacional brasileiro, p. 102-103.
54
Cf. De Manuel Ignácio de Sampaio ao intendente da Marinha. Fortaleza, 4 de agosto de 1817. APEC, GC,
livro 28, p. 58. De Manuel Ignácio de Sampaio ao capitão-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza, 24 de setembro
de 1817. APEC, GC, livro 21, p. 178.
55
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 129-130.
287

perdido”. O temor indígena não era infundado: o êxito do governador do Ceará em combater
os rebeldes era bastante conhecido, e já vimos o quanto Sampaio representava para os índios
em termos de proteção e luta por seus benefícios – a exemplo do decreto de 1819.
É possível pensar, a priori, que isso não passava de um “autoelogio” exagerado de um
administrador desejoso de enaltecer sua imagem perante os superiores por ser querido pela
população que governava. Mas um ofício produzido pela câmara dos índios de Messejana, em
janeiro de 1820, confirma a boa relação entre eles. Escrevendo ao próprio “Soberano e
Augusto Rei e Senhor”, os vereadores da vila se lamentavam, de maneira muito poética, da
“tristíssima [sic] notícia da saída” do governador da capitania e, por isso, sua “felicidade, que
ia sendo tão vigorosa”, murchava “como uma flor tirada do pé”. Sampaio era, para eles,
“benfeitor”, “pai”, “protetor da verdade, da justiça e da inocência”, e seu “sábio governo” e
“suas brilhantes virtudes” se manifestavam em questões muito caras aos indígenas. Seriam
ilimitados os

“benefícios que recebem os índios desta capitania, e entre as aldeias é esta nossa
uma delas, fazendo-os civilizados neste giro do correio, a que são preferidos, o
pronto pagamento de seus jornais e de seus filhos, que alguns brancos pretendem
negar-lhes, e que conhecida a verdade os faz pagar prontamente, a proibição de se
darem índios para as vilas longe das aldeias, a que nunca mais tornavam, e por isso
hoje as aldeias estão aumentadas em população, não só neste princípio, como pela
escolha que faz das pessoas para diretores.”

Por tudo isso, segundo eles, chamavam Sampaio “mais nosso pai que governador”.56
Não se tratava de submissão indígena diante de seus administradores: os benefícios que
descreveram atingiam demandas que estavam, havia muito, em suas comunidades,
relacionadas ao bem estar de seus filhos e a condições dignas de trabalho. Por esta forma, a
civilização era, inclusive, desejada pelos líderes índios porque partiam de ganhos reais, como
as remunerações regulares e o crescimento de suas vilas. Os vereadores de Messejana – de
onde foram enviados 100 índios de arco e flecha em 1817 – não chegaram a mencionar os
eventos ocorridos nas fronteiras em sua caça aos liberais, mesmo após a isenção de impostos
promulgada em 1819. Contudo, deixaram transparecer em seu texto remetido ao rei que o
ânimo com que lutaram e a boa relação que tinham com o governador não eram meros
“exageros discursivos”.

56
Da câmara de Messejana ao rei dom João VI. Messejana, 3 de janeiro de 1820. AN, 8J, p. 106V-107V. As
políticas de combate à dispersão e de incentivo ao trabalho do governo de Manuel Ignácio de Sampaio
proporcionaram o crescimento e desenvolvimento econômico das vilas de índios. Cf. COSTA, João Paulo
Peixoto. Disciplina e invenção.
288

O relatado “entusiasmo dos índios” não era, apenas, uma tentativa do governo de criar
um novo “regime de verdade”, por um lado, ou uma tática indígena diante de um espaço de
escolha reduzido, por outro.57 Bem mais do que isso, a secular fidelidade dos índios das vilas
do Ceará em relação à Coroa se manifestava como um posicionamento político por meio do
qual viam um caminho para alcançar seus objetivos comunitários. Não se trata aqui de
generalizar a visão dos índios em território cearense, mas ainda que a perspectiva das
lideranças nem sempre tenham sido as mesmas dos liderados, as benesses elencadas pela
câmara de Messejana atingiam a todos.
Em 1817, os recrutamentos indígenas no Ceará para reprimir a revolução de
Pernambuco provavelmente não foram forçados, e não se pode supor ter havido violência,
como característica inerente às conscrições no Antigo Regime. A fidelidade que os índios
demonstravam ter com o rei não fazia deles manipulados, já que a relação era mútua e, por
meio dela, ganhavam mercês das quais se orgulhavam. Fazendo parte da vassalagem pela qual
compunham o corpo de súditos do monarca, a sincera vontade de muitos indígenas (e porque
não dizer “da maioria”?) em querer defender o rei não excluía sua luta em prol de interesses
comunitários: ambas estavam vinculadas. Sua posição de súditos da Coroa portuguesa era a
garantia de poder lutar contra os abusos de proprietários e autoridades locais sobre suas terras
e mão-de-obra. Escrito quase 20 anos depois da revolução pernambucana de 1817, o
comentário de Francisco Constâncio sobre a postura dos índios em defesa do rei confirma esta
perspectiva:

“Se nesta e outras semelhantes ocasiões se mostraram os indígenas, assim como os


escravos africanos, favoráveis à autoridade régia e dispostos a combater contra os
habitantes sublevados, é porque, sujeitos ao pesado jugo dos proprietários do solo,
só nos agentes do governo encontravam alguma proteção”.58

Neste contexto, a continuidade do Antigo Regime era muito mais importante para os
índios das vilas do afirma Mariana Dantas e não se dava em detrimento de demandas
cotidianas. Ao contrário, era justamente em nome de sua liberdade, da incolumidade de suas
terras e de dignas condições de trabalho que amparavam suas expectativas de reciprocidade
com o rei que defendiam. Ou seja, era fundamental a permanência da qualidade de vassalos
do rei para a garantia de suas prerrogativas. A insatisfação das classes subalternas em relação
ao soberano português não era óbvia: como nos lembra Denis Bernardes, “gente do povo,

57
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção, p. 291-304.
58
CONSTÂNCIO, Francisco Solano. História do Brasil, desde seu descobrimento por Pedro Álvares Cabral
até a abdicação do imperador dom Pedro I. Paris: Livraria Portuguesa de J. P. Aillaud, 1839, p. 219.
289

escravos, índios, pequenos lavradores, lutaram ao lado da legitimidade monárquica e


festejaram a derrota dos patriotas. São partes, também, da história popular de 1817”. 59 Assim
como no contexto da independência, as “brigas” de que tratamos não eram apenas de brancos:
faziam parte de todos os que constituíam o corpo social de súditos no império luso e, no caso
dos índios, sua luta extrapolava a questão da terra. A manutenção do território era
fundamental, mas era uma garantia que se somava às outras mercês concedidas pela Coroa,
como os cargos políticos e militares. As próprias leis indigenistas, ainda que fossem
desrespeitadas muitas vezes pelos proprietários e administradores coloniais, eram caminhos
na luta indígena por benefícios vindos do rei em troca de sua fidelidade.

Mapa 6: Locais de atuação dos índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual dos estados da região Nordeste disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Região_Nordeste_do_Brasil

8.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR

Apesar do curto período que separou a Revolução Pernambucana de 1817 e a


Confederação do Equador em 1824, nele as capitanias do norte do Brasil vivenciaram intensas
transformações políticas e experiências de participação popular. Após a insurreição liberal-

59
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. 1817, p. 89.
290

republicana que pretendeu se separar do corpo de súditos do rei de Portugal, os habitantes do


Brasil tiveram que lidar com as transformações provocadas pelos liberais do Porto, em 1820.
No ano seguinte, as Cortes reunidas em Lisboa exigiram o retorno da família real para a
Europa e submeteram o monarca a uma constituição, promovendo a descentralização do poder
no império. Os planos portugueses de recolonização do Brasil, no entanto, motivaram a
dissolução do Reino Unido e a criação do novo Estado soberano no lugar da antiga América
lusitana em 1822. Apesar disso, as ideias liberais difundidas pelas Cortes de diminuir a
concentração do poder nas mãos do rei foram bem recebidas pelas autoridades provinciais
brasileiras. A independência do Brasil, portanto, foi marcada por disputas de projetos e
interesses locais, em que a adesão de cada circunscrição administrativa ao Rio de Janeiro se
deu por motivos próprios.
Em contrapartida, a concentração de poder pelas elites desagradava muita gente. Para
os índios, o liberalismo provincial e o encolhimento da figura do rei podiam significar o uso
abusivo e ilimitado de sua mão-de-obra e a usurpação de suas terras por parte dos poderosos
proprietários rurais. No Ceará, o apoio indígena ao grupo político do interior durante a
separação política brasileira não se deu necessariamente por afinidade ideológica. Em 1822 e
1823, os líderes sertanejos e os índios tinham inimigos comuns: a elite de Fortaleza e os
portugueses, representantes das ideias que defendiam o acúmulo do poder nas capitais
provinciais.
Por isso, mal proclamada a independência do Brasil, as ações centralizadoras do
recém-coroado imperador dom Pedro I passaram a provocar tanta insatisfação. Em março de
1823, a vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção foi erigida à categoria de cidade, 60
sendo “mais uma medida tomada pelo imperador com o objetivo de ter as capitais [...] sob seu
domínio”,61 como afirma Keile Felix. Com isso, o monarca visava conquistar a adesão das
câmaras mais importantes de cada província aos seus planos de concentração de poder, o que
não agradou aos grupos políticos do interior cearense que, no final do ano anterior, haviam se
garantido no governo da província, com apoio, inclusive, dos índios.
A oposição a dom Pedro I ganhou ainda mais força quando, em novembro de 1823, ele
dissolveu a Assembleia Constituinte. Entre o final deste ano e o início de 1824, o monarca
propôs um novo projeto de Constituição – trazendo como novidade o famigerado poder
moderador – e nomeou novos presidentes para as províncias, abolindo os governos eleitos

60
Cf. Alvará de 17 de março de 1823. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-41119-17-marco-1823-575028-
publicacaooriginal-98105-pe.html>. Acesso em: 29 de agosto de 2016.
61
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 102.
291

localmente. As crescentes tensões entre a Corte no Rio de Janeiro e as autoridades em


Pernambuco culminaram, em julho de 1824, com a proclamação da Confederação de
Equador, tendo a adesão do Ceará acorrida no fim do mês de agosto.
Como afirma Denis Bernardes, as diferenças substanciais entre os dois movimentos
insurrecionais iniciados em território pernambucano estavam no fato de que, em 1817, “ainda
vigorava sobre o espaço brasileiro o poder de uma monarquia absoluta, apegada à cultura do
Antigo Regime”, enquanto que, em “1824, o quadro era outro e havia conhecido profundas
mudanças”. Prova disso, como Bernardes observa, é que, apesar de diversas experiências
políticas, princípios e participantes terem estado presentes nestes dois momentos, muitos dos
envolvidos na primeira rebelião encontravam-se em lados opostos na segunda.62
Um exemplo no Ceará foi a história da família Alencar. José Martiniano e seu irmão
Tristão Gonçalves lideraram, em 1817, o movimento republicano no Crato, rompendo laços
com a Coroa, e foram derrotados após oito dias por José Pereira Filgueiras. Em 1822, os
antigos inimigos se aliaram para destituir a junta governativa cearense, acusada de ser
excessivamente “portuguesa”, e derrotar Fidié no Maranhão no ano seguinte em defesa de
dom Pedro I. Por conta da dissolução da Constituinte, os antigos defensores do rei passaram a
ser acérrimos opositores do monarca. Nesses conflitos havia, segundo Bernardes, a
“existência de uma dinâmica local que, embora não desvinculada dos processos políticos mais
amplos, não estava, necessariamente, alinhada às decisões ou legitimações institucionais”.63
Apesar das mudanças de lado, em todos esses momentos estavam os anseios das elites locais
pelo poder. O apoio ou não ao soberano ou a determinadas correntes de pensamento dependia
de contra quem rivalizavam e do contexto político do Brasil.
Para Denis Bernardes, a contestação do absolutismo no império português e a
reestruturação do pacto que fundara a nação e dera legitimidade ao rei a partir das Cortes
instauravam “uma nova ordem política e social”. Assim, “cada categoria social, cada fração
da sociedade, cada identidade e interesse étnico, econômico, religioso e mais que fosse,
buscou afirmar suas reivindicações, buscou assegurar um lugar no novo pacto”.64 Por isso
que, como vimos, não apenas as elites político-econômicas, mas também os grupos populares
participaram com intensidade das lutas políticas que marcaram a formação do Estado nacional
brasileiro. Os índios de Maranguape, por exemplo – assim como os membros da família

62
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador. In: DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, motins e revoluções: homens livres e libertos no
Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p. 133-134.
63
Ibid., p. 147.
64
Ibid., p. 137.
292

Alencar – também tiveram sua condição política alterada: de presos passaram a “defensores
da independência”, por conta da sua atuação neste período quando, também eles, tentavam
construir seus lugares no novo pacto e garantir a permanência de seus benefícios.
Após as experiências político-militares no período entre a Revolução Pernambucana e
as guerras de independência no Piauí, as tropas indígenas do Ceará também estiveram
presentes nos embates de 1824. Cada conflito era diferente; os contextos, ainda que
temporalmente próximos, eram repletos de particularidades; e os inimigos e aliados dos
soldados indígenas mudavam constantemente. Entretanto, para eles, a defesa do rei, em
conexão com a manutenção de suas garantias, foi uma constante com poucas variações.
A mesma postura foi notada entre os indígenas de outras províncias. Evaldo Cabral de
Mello observou que durante a Confederação do Equador novamente havia índios de Jacuípe,
Alagoas, entre as tropas realistas.65 De acordo com Marcus Carvalho, para os que viviam nas
matas da fronteira alagoana com Pernambuco, que eram terras da Coroa, fortaleceu-se a
imagem do imperador como garantidor de seus territórios.66 Denis Bernardes conta que os
indígenas em 1824 reafirmaram “a já antiga tendência de apoiar o poder real”. Defendendo o
rei, os índios “talvez estivessem fazendo um cálculo político e de vantagens sobre qual dos
lados em disputa poderia ser-lhes mais favorável em caso de vitória”, o que não significava,
entretanto, “que não existiam determinadas tendências sociais na identificação com tal ou qual
projeto”.67 Mariana Dantas destaca os benefícios recebidos pelos índios de Jacuípe e de
Barreiros por parte Coroa ao longo dos séculos, e conclui que “defender o imperador em
campo de batalha frente às tropas confederadas significava manter e proteger as terras doadas
e o usufruto sobre as matas do vale do Jacuípe, de onde tiravam seu sustento”.68
A peculiaridade dos índios do Ceará foi que, pela primeira vez, estiveram ao lado
daqueles que se opuseram às políticas reais, ao menos por um momento inicial. A defesa do
rei, ainda que tenha prevalecido ao final, conviveu com outras variantes, relativas à sua
postura frente aos interesses das elites locais e às formas como estas se posicionavam diante
de suas demandas.

65
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 233.
66
CARVALHO, Marcus J. M. de. Os índios e o Ciclo das Insurreições Liberais em Pernambuco (1817-1848), p.
78.
67
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador, p. 154.
68
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro, p. 132.
293

“Temos por brasão o arco e a flecha”

Em dezembro de 1823, José Martiniano de Alencar – que passara da condição de


preso político em 1817 a deputado na Assembleia Constituinte – deixou o Rio de Janeiro em
direção ao Ceará. Na passagem pelo Recife, tomou conhecimento da reunião do Grande
Conselho que empossara Manuel de Carvalho Paes de Andrade como presidente e que exigia
uma nova Constituinte. Segundo Evaldo Cabral de Mello, Carvalho enviou Alencar ao
território cearense “com a tarefa de organizar apoio à luta pela reconvocação”. 69 De acordo
com Torres Câmara, as notícias foram logo difundidas, “com grande escândalo, às câmaras da
província”, tomadas de uma “irritação sem limites” e do “espírito de revolta que lavrava entre
os patriotas”.70
Em janeiro de 1824, as câmaras de Quixeramobim e do Icó chegaram a proclamar a
república, e em outras vilas, ainda que não tenham feito o mesmo, os vereadores
manifestaram sua insatisfação em relação à política adotada pelo imperador. De igual forma, o
governo da província do Ceará protestou contra a centralização de dom Pedro I através de
ofício em 31 de março.71 No dia 14 de abril as tensões aumentaram ainda mais quando Pedro
José da Costa Barros, presidente nomeado da província, aportou em Fortaleza. Com apoio da
câmara da capital, Costa Barros foi empossado, provocando a fuga do antigo governo interino
para Arronches. Após alguns dias recrutando adeptos, as lideranças depostas – tendo a frente
Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras – montaram um quartel general em Messejana e, no dia
29, depuseram o presidente nomeado e tomaram à força o governo da província.72

69
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 166.
70
CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador em 1824 e revolução, que a produziu, como
consequência da dissolução da nossa primeira constituinte a 12 de novembro de 1823 e jamais de intuitos ou
ideias separatistas. A ação de um de seus chefes, o futuro senador Alencar, decisiva a abril de 1831, para a
manutenção do império e com este talvez a da unidade nacional. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p 309-310.
71
Cf. Ibid., p. 310-311. PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte
relativa ao Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XIII, 1899, p. 35-36.
PEIXOTO, Eduardo Marques. Ceará: movimento político de 1824. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Minerva, tomo XXI, 1907, p. 39-40. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 135-136.
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 97-100. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra
independência, p. 190.
72
Cf. PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao
Ceará, p. 35-36. NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará, primeiro reinado. 1º presidente: coronel Pedro José
da Costa Barros. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Econômica, tomo IV, 1890, p. 53.
PEIXOTO, Eduardo Marques. Ceará: movimento político de 1824, p. 41-42. CÂMARA, João Eduardo Torres. A
Confederação do Equador..., p. 313-317. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará,
p. 613-614. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 136-137. FELIX, Keile Socorro Leite.
“Espíritos inflamados”, p. 97-104. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 190.
294

O que a historiografia não observou é que as duas vilas que serviram de suporte
militar aos liberais para a ação de retomada do poder no Ceará eram de índios. Guilherme
Studart notou que a valia de Gonçalves e Filgueiras “crescera entre o povo pelos triunfos que
haviam colhido na campanha contra Fidié”.73 Para os índios, entretanto, os motivos para a
aliança com esses dois líderes eram bem mais profundos: Gonçalves e Filgueiras atuaram na
libertação os presos de Maranguape e encabeçaram a destituição do governo que reprimira
com tanta violência os amotinados indígenas. Pouco se falou sobre a composição da tropa que
submeteu a câmara de Fortaleza e destituiu Costa Barros, mas era bem provável que fosse
formada, em grande parte, por índios destas duas vilas.74
A postura dos índios em favor dos liberais não significava que houvesse respeito a eles
ou reconhecimento por parte de todos os aliados de Gonçalves e Filgueiras. Um exemplo está
no editorial da única edição conhecida da Gazeta do Ceará, de 6 de abril de 1824. O redator
anônimo, opositor das medidas autoritárias de dom Pedro I, denunciou a avareza dos ricos,
que construiu sua fortuna “à custa da pobreza” do povo. Entretanto,

“a gente pobre, que compõe as três quartas partes da população do Brasil é


naturalmente ociosa, e falível nas suas promessas. Pouco, nada se lhe dá a mudança
de senhor ou de habitação [...] contanto que tenham a barriga cheia, durmam a sono
solto e vivam à sua vontade”

Em seguida, explicou em nota que havia exceções. Para ele, existia “na classe comum
do povo inumeráveis heróis de patriotismo; mil filhos dos Camarões, dos Mel-redondos, dos
Dias, e de outras famílias brasileiras as quais vivem prostradas pelo orgulho europeu”. 75 A
aparente simpatia do redator liberal aos índios, com os exemplos de lideranças antigas, na
verdade colocava o elemento indígena no campo do mitológico, enquanto que os “vivos”,

73
STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 614.
74
Na ata da sessão de 29 de abril de 1824 do governo provisório do Ceará, que decidiu pela deposição do
presidente nomeado Pedro José da Costa Barros, constam as assinaturas de Francisco Joaquim da Costa Lira e
Vitorino Correia de Souza Parangaba. Cf. N. 12. ATA da sessão extraordinária de 29 de abril de 1824. Apud:
Parte documental: documentos para a história da Confederação do Equador coligidos pelo Barão de Studart.
Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 376. O primeiro talvez
seja o capitão-mor de Soure Francisco da Costa Lira, “de nação índio”, que prestou juramento em 17 de janeiro
de 1821. Cf. Termo de juramento de Francisco da Costa Lira como capitão-mor de Soure. Fortaleza, 17 de
janeiro de 1821. APEC, GC, livro 61, p. 82 e 83. O segundo nome guarda, no mínimo, semelhanças com o de
Vitorino Correia da Silva, “homem índio e morador do termo [...] de Arronches”, que recebeu em 26 de
dezembro de 1823 patente de capitão-mor de sua vila, antiga aldeia da Parangaba. Cf. Registro de patente de
capitão-mor de Arronches a Vitorino Correa da Silva. Fortaleza, 26 de dezembro de 1823. APEC, GC, livro 72,
p. 120.
75
Gazeta do Ceará. Fortaleza, 6 de abril de 1824, Tipografia Nacional, p. 2. AN, J040.
295

contemporâneos à formação do Estado brasileiro, eram categorizados como fardos de miséria


e ociosidade que a nação carregava.76
Chama atenção a adoção por parte de muitas lideranças liberais de sobrenomes em
tupi-guarani (como o “Araripe” adicionado a Tristão Gonçalves de Alencar). Tal
manifestação procurava realçar seu sentimento patriótico brasileiro em oposição a Portugal,77
que supostamente planejava uma recolonização do país recém-independente em associação
com dom Pedro I. De acordo com Denis Bernardes, o aumento das tensões, “com ampla
participação das mais diversas camadas sociais, inclusive da gente do povo”, era decorrente
das notícias de que na antiga metrópole “se preparava uma grande expedição para recolonizar
o Brasil”.78 Tais rumores se originaram, por sua vez, do bloqueio naval no Recife imposto
pelo imperador no início de maio de 1824, em represália às negativas de Pernambuco em
aceitar o presidente nomeado. Segundo Evaldo Cabral de Mello, após o bloqueio, as
manifestações das lideranças pernambucanas em relação a dom Pedro I expunham a
“descrença quanto à sua apregoada conversão às aspirações brasileiras”.79
O governo do Ceará reagiu firmemente às ações repressivas do imperador no Recife,
associando-as também a uma traição do monarca, acusado de estar voltado aos interesses do
absolutismo português. Analisamos no capítulo 4 o ofício do dia 18 de maio que o então
presidente Tristão Gonçalves escreveu aos diretores das vilas de índios, ordenando-os que
armassem seus subordinados. Para Gonçalves, nas condições do contexto em que escrevia,
não haveria “brasileiro tão infame que preferi[sse] o cativeiro à liberdade”, e estava certo de
que “os índios, meus valorosos patrícios, não querem ser escravos”. Por isso, exigiu que cada
indígena estivesse pronto com

“50 flechas e dois arcos ao primeiro aceno da invasão da Europa, desse Portugal
orgulhoso só, que nos tem abismado há mais de 300 anos no mais ignominioso
estado. Vossa mercê avise aos nossos irmãos dos seus deveres, e plenamente execute
o que aqui se lhe ordena”.80

76
“A exaltação de símbolos indígenas no discurso político da época distanciava-se das práticas concernentes a
estes povos”. LOURENÇO, Jaqueline. Um espelho brasileiro: visões sobre os povos indígenas e a construção
de uma simbologia nacional do Brasil (1808-1831). Dissertação (mestrado) - USP, 2010, p. 10-11.
77
Cf. ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo e ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade
nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo:
Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 380.
78
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador, p. 147-148.
79
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 191.
80
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos diretores de Arronches, Soure, Messejana, Monte-mor Novo,
Vila Viçosa, Almofala, Monte-mor Velho e São Pedro de Ibiapina. Fortaleza, 18 de maio de 1824. APEC, GP,
CO EX, livro 2, p. 44. Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 2 de junho de 1824, nº. 9, p. 1V. AN, IN, caixa
742, pacote 1.
296

Destoando do tom de desprezo do redator da Gazeta do Ceará em relação aos índios e


outros setores sociais subalternos, é curiosa a maneira irmanada de Gonçalves tratar os
indígenas. Há em seu texto tanto o reconhecimento pelo apoio recebido destes grupos nas
duas vezes que chegara ao governo – em dezembro de 1822 e abril de 1824 – quanto a busca
por consolidar essa aliança. Por isso, não é à toa que, tratando-os como irmãos da mesma
pátria, o inimigo apontado é “Portugal”, que tentava novamente escravizá-los, e não o
imperador, que nem ao menos foi citado. Além disso, o argumento utilizado para insuflá-los
contra essa “invasão orgulhosa” da Europa era justamente algo muito caro nas demandas
indígenas dos anos anteriores: a busca por sua liberdade.
De fato, como aponta a historiografia, antes de proclamarem a Confederação do
Equador, os líderes não falavam em “separação”, “república” ou nada que pusesse em cheque
diretamente à figura do rei. Segundo Evaldo Cabral de Mello, os dissidentes pernambucanos
buscavam “atingir seus propósitos sob a bandeira da reconvocação da Constituinte, não da
mudança do regime”.81 De acordo com o autor, a “unidade brasileira não era posta em causa”,
mas exigia-se a feitura de uma constituição que demandasse a participação de todas as
províncias.82 Para Denis Bernardes, nos meses que antecederam a Confederação, havia em
Pernambuco e em outras províncias próximas a reivindicação de “uma organização do Estado
que contemplasse mais largamente determinados interesses locais tanto no tocante à escolha
dos dirigentes provinciais quanto no referente ao controle das rendas e da força armada”. As
lutas locais não foram motivadas por um “separatismo antinacional” e nem eram contrárias à
unidade, mas “recusavam uma política que viam como a expressão do antigo absolutismo”.
As reclamações se encontravam, portanto, muito mais nas atitudes do que na própria figura do
soberano: as críticas a dom Pedro I não visavam sua deposição, mas que o mesmo agisse de
acordo com uma monarquia constitucional.83
Nas comunicações feitas aos índios do Ceará, Gonçalves era bastante cuidadoso. Por
um lado, não citava o rei, indicando Portugal como inimigo; por outro, sabendo da
reciprocidade que havia na histórica relação de vassalagem entre essa população e a Coroa
portuguesa, o presidente procurou também ele se representar como um benfeitor para os
indígenas. Respondendo a ofício do diretor de Arronches, Gonçalves solicitou ao capitão-mor
da vila em 21 de maio uma “relação circunstanciada dos postos vagos das suas ordenanças e

81
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 164.
82
Ibid., p. 182-183.
83
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador, p. 151-152.
297

daqueles oficiais que servem sem título competente”.84 As atitudes do presidente não eram
altruístas, decorrendo da lei de 1823 que estabelecera a promoção das patentes de ordenança
como competência provincial. Mas serviram como estratégia para Gonçalves, que levava em
conta o já conhecido apreço indígena pelo serviço militar e das lideranças por seus títulos. O
presidente buscava, ao atender o ofício do diretor, beneficiar os oficiais e sutilmente substituir
o rei na função de provedor.
Tal medida, em atendimento aos oficiais indígenas de Arronches, ocorreu poucos dias
depois do armamento geral dos índios promovido diante da possível invasão lusitana, como
vimos há pouco. As ações do presidente também se somavam ao já destacado antilusitanismo
indígena do período – tão evidente nas manifestações de Maranguape, no temor da
constituição de Lisboa e na presença das tropas de Viçosa no Piauí. Em 1824, o “ódio aos
portugueses” por parte dos índios foi aproveitado pela presidência do Ceará para estreitar os
laços com essas comunidades. Em 31 de maio, Gonçalves ordenou ao juiz ordinário de Soure
que executasse a prisão dos “europeus Francisco dos Santos, Custódio José de Almeida e
Alberto Antônio Lopes, [...] e imediatamente os fará processar”, em atendimento à “denúncia
inclusa da oficialidade e mais índios dessa vila por corpo de delito”.85
Por ainda viverem no Brasil em 1824, estes três portugueses provavelmente não
tinham se submetido às Cortes de Lisboa em 1822. Entretanto, ainda que tivessem apoiado o
projeto da independência do Brasil, é provável que sua convivência com os naturais da
América, ao longo desse período, não tenha sido pacífica. O rápido atendimento da denúncia
indígena também atingia os já comentados anseios da presidência em consolidar sua relação
com essas comunidades, buscando conciliar os objetivos de cada um em torno do mesmo
inimigo: o absolutismo português.
Vendo o caso por outro ângulo, a atribuída agressão dos portugueses contra os índios
pode nos fornecer mais elementos. Denis Bernardes chamou a atenção para o antilusitanismo
popular que se materializou “em manifestações de violência, seja individual ou coletiva,
contra potenciais suspeitos de apoiar a recolonização do Brasil”.86 Mas o caso de Soure
mostra que os índios, assim como outras classes populares, também poderiam ser alvo de
ataques. Além do antilusitanismo indígena, a denúncia revela que o apreço do governo por
84
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ao capitão-mor de Arronches. Fortaleza, 21 de maio de 1824. APEC,
GP, CO EX, livro 2, p. 50V. De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe a Antônio José de Vasconcelos.
Fortaleza, 21 de maio de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 51. Diário do Governo do Ceará. Fortaleza, 2 de
junho de 1824, nº. 9, p. 2. AN, IN, caixa 742, pacote 1.
85
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe ao juiz ordinário de Soure. Fortaleza, 31 de maio de 1824. APEC,
GP, CO EX, livro 2, p. 70V-71.
86
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador, p. 148.
298

essa população não era compartilhado por todos, muito menos pelos proprietários que viviam
em Fortaleza e nas vilas do entorno. Para estes, os índios não passavam de mão-de-obra
barata, semelhantes aos escravos, por quem nutriam não mais que desprezo. Gonçalves, sem
querer se desfazer desses importantes aliados (pelo menos no quesito bélico), teve de lidar
com estas tensões. Em circular aos comandantes de ordenanças da província, o presidente
ordenou que cada soldado estivesse municiado de arcos e flechas, como forma de contornar o
problema da falta de armamentos em meio a um ataque externo iminente.

“Estou antevendo que os meus patrícios e concidadãos objetarão que não são
caboclos; eu responderei que nós todos temos por brasão o arco e a flecha, e mesmo
lhe darei o exemplo quando a necessidade o pedir. Não escute vossa mercê escusa
alguma, e faça cumprir exatamente este ofício.”87

A reação dos não-índios prevista pelo presidente remete ao que vimos anteriormente
acerca dos sobrenomes em tupi-guarani adotados pelos apoiadores de Gonçalves e Filgueiras.
O “arco e flecha” serviriam para eles, neste contexto, apenas como brasão, símbolo de
patriotismo, que poderia se expressar na memória de lideranças do passado ou mesmo em
seus nomes, mas não necessariamente instaurando uma relação de igualdade com os índios
vivos, pejorativamente chamados de “caboclos”.
O presidente, em contrapartida, buscava remediar diversos problemas de uma só vez.
Primeiramente, chamava os índios de “irmãos” e “valorosos patrícios” pela necessidade de
construir com eles uma boa relação, tendo em vista sua importância militar. Evaldo Cabral de
Mello destaca que a presença indígena nas tropas realistas foi fundamental porque faziam “a
guerra do país” – guerrilha nas matas – enquanto que os confederados apenas conheciam “a
dos europeus ou portugueses” – ou seja, em campo aberto.88 Por isso Gonçalves, na mesma
circular aos comandantes das ordenanças, buscou convencê-los de que uma “flecha despedida
de uma mão destra faz quase tanto estrago como a bala vomitada das granadeiras [...] porque
alcançam de longe, e por entre os matos ofendem ao inimigo e defendem o atirador”. Não
podiam, portanto, “apresentar batalha em campo raso, e a grande vantagem leva[vam] das
guerrilhas e dos caçadores”.89 Segundo Hugo Victor, tendo em vista a “falta de força militar”
e sabendo “ser nula a resistência na capital”, Tristão “preferiu a tática (se assim se pode

87
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos comandantes de ordenança. Fortaleza, 27 de maio de 1824.
APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 64-65.
88
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 233.
89
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe aos comandantes de ordenança. Fortaleza, 27 de maio de 1824.
APEC, GP, CO EX, livro 2, p. 64.
299

chamar) das guerrilhas do interior”.90 Conhecendo o potencial dos índios na guerra, o


presidente visava, em segundo lugar, solucionar o problema da falta de armamentos
implementando as táticas indígenas nas outras tropas.
Consolidando sua aliança com os índios, fazendo-os conviver com os outros patrícios
e contornando a carência de estrutura bélica, o governo do Ceará protegeria a província das
ameaças que julgava vir dos supostos conluios entre dom Pedro I e Portugal, intensificadas no
mês de julho.91 No dia 2, pela falta de posicionamento da Coroa a respeito das exigências
constitucionalistas, Manuel de Carvalho Paes de Andrade proclamou a Confederação do
Equador no Recife. Segundo Cabral de Mello, os revoltosos não falavam em república, tendo
como principal objetivo a montagem “de uma frente de províncias do Norte para resistir ao
despotismo de Portugal e do Rio”.92 Para o autor, não se tratava, entretanto, de uma
“alternativa ao Brasil”, mas de uma proposta de união federal flexível entre as províncias,
contrária ao centralismo do Estado.93
Enquanto a notícia não havia sido recebida no Ceará e nem se organizava um
posicionamento por parte do governo, Tristão Gonçalves continuava a conclamar os
habitantes da província a se oporem às ameaças externas. Entre os índios os contatos se deram
de maneira semelhante, mas a definição do “inimigo” não era tão clara. Em 21 de julho, o
presidente respondeu a um ofício da câmara de Arronches do dia 15 agradecendo suas
“expressões de amizade”. Assegurou que até o fim conservaria seus sentimentos patrióticos
“sem duvidar jamais da probidade dos valorosos brasileiros da vila de Arronches”. Alertou-os
que, se quisessem ser escravos, que assinassem o projeto de constituição, mas quanto a ele “e
aos liberais”, com armas na mão, preferiam morrer mil vezes do que assinar “uma só vez o
selo abominável do servilismo”. Contava, portanto, com a fidelidade dos vereadores da vila e
dos índios que lá viviam, “esses miserandos despojos do furor europeu”. Por fim, ordenou à
câmara que procedesse a promoção dos oficiais indígenas e convidou que cada um fosse
“obter (grátis) o seu título da secretaria deste governo”, bem como ao escrivão, que mandasse
“requerer da secretaria deste governo (grátis) a sua provisão”.94

90
VICTOR, Hugo. A defesa marítima de Fortaleza na Revolução do Equador. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Ramos e Pouchain, tomo L, 1936, p. 39-40.
91
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 203-204. BERNARDES, Denis Antônio de
Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador, p. 148.
92
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência, p. 211-214.
93
“Sequer o título de Confederação do Equador pode ser acoimado de regionalista, em vista da tendência
retórica a denominar o Brasil de Império do Equador”. Ibid., p. 218.
94
De Tristão Gonçalves de Alencar Araripe à câmara de Arronches. Fortaleza, 21 de julho de 1824. Diário do
Governo do Ceará. Fortaleza, 30 de julho de 1824, nº. 15, p. 1V. AN, IN caixa 742, pacote 4.
300

Percebemos que não há neste ofício qualquer referência ao imperador. O inimigo é


apontado indefinidamente como o “furor europeu”, que despojara os índios ao longo de toda a
colonização. Em contrapartida, Gonçalves identificava os índios com o termo “brasileiros”,
destacado em itálico no original, e associava novamente o projeto de constituição à
escravidão. O uso cuidadoso das palavras buscava mais uma vez construir uma relação estável
com os indígenas, sem ofender o rei – que historicamente haviam defendido – e indicando o
autoritarismo do governo central com o “servilismo” sempre denunciado nas reclamações e
manifestações dos índios. Completando seu argumento com a oferta gratuita de títulos –
ancorando-se no apreço indígena pelas patentes militares – o presidente visava solidificar
ainda mais a adesão dos índios aos liberais e sua amizade recíproca, como se infere pelo início
do ofício.
A aliança indígena com o grupo de Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras não se dava
pela conversão dos índios ao liberalismo. Em um primeiro momento, entre a repressão aos
motins de Maranguape e Viçosa e a deposição da terceira junta governativa em 1822, os
“liberais” eram representados especialmente pela elite de Fortaleza. Apoiando-se nas ideias
vindas da Europa, as autoridades da capital visavam adquirir cada vez mais poder,
configurando-se em grande ameaça às garantias das comunidades indígenas. Curiosamente, os
novos “liberais” de 1824 eram, em 1822, os defensores do absolutismo. Como afirma Julio
Gómez, as disputas entre “conservadores” e “liberais” desse período tinham pouco de
ideológico e muito de luta pela terra e pelo controle sobre as populações provinciais.95 Em
termos locais, a postura dos índios se definiu a partir de demandas cotidianas e das
particularidades do contexto. Em 1824, se a câmara de Fortaleza apoiava as medidas do rei
com o objetivo de barrar o poderio do interior, aos índios era mais sensato ficar do lado dos
“liberais” de então que, desde o ano anterior, davam provas de boa vontade, ou, pelo menos,
de que atenderiam às suas expectativas.96
Até então, a correspondência entre o governo cearense e as autoridades nas vilas de
índios aqui analisada não atacava diretamente a figura do rei. Contudo, as lideranças
indígenas certamente sabiam do posicionamento dos liberais e, apesar da sua histórica relação
de fidelidade à monarquia, mantiveram-se aliadas a eles. As ações de Tristão Gonçalves em
benefício aos índios oficiais de ordenanças sinalizavam que o liberalismo pregado por ele e

95
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados, p. 267.
96
Como, por exemplo, a libertação dos presos de Maranguape e o combate aos portugueses no Piauí e
Maranhão, em 1823, e a utilização de Arronches e Messejana como bases militares para a deposição do governo
de Costa Barros apoiado pela câmara de Fortaleza – que talvez tenha aproximado ainda mais os liberais das
lideranças indígenas destas vilas – em 1824.
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por seus correligionários não atingiria negativamente as garantias conquistadas durante o


Antigo Regime.
A postura de pelo menos parte das lideranças indígenas foi confirmada com a sessão
que proclamou a adesão do Ceará à Confederação do Equador em 26 de agosto de 1824.
Reunindo autoridades do governo da província, de várias vilas e das câmaras do Aquiraz e de
Messejana, os presentes denunciaram os “perjúrios de dom Pedro, príncipe de Portugal
(chamado imperador do Brasil)”, que desrespeitara o “pacto social” e os “foros da liberdade”.
O soberano teria cometido ações autoritárias como a dissolução da Constituinte, construindo
“por si, como se viu, do infame projeto de constituição, que não só deu, mas também mandou
arbitrariamente jurar por todas as câmaras das províncias do Brasil, reputando-nos escravos
ou propriedade sua”. Por isso, foi acusado de pretender sujeitar os brasileiros “novamente ao
domínio português, não cumprindo assim as condições essenciais pelas quais havia subido ao
trono”. Por fim, foi proposta a criação de um Grande Conselho no Ceará – a exemplo do que
se fizera em Pernambuco – e o presidente eleito, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, jurou
fidelidade “à confederação do Equador, que é a união das quatro províncias ao norte do cabo
de Santo Agostinho, e as demais que para o futuro se forem unindo”. Em seguida todos
prestaram juramento, prometendo fazer guerra ao despotismo imperial que pretendia
“escravizar-nos e obrigar-nos a fazer união do Brasil com Portugal”.97
A historiografia cearense que abordou a sessão de 26 de agosto de 1824 destacou as
denuncias contra a tendência absolutista de dom Pedro I e seus planos de unir-se a Portugal
para recolonizar o Brasil.98 Não foi sequer mencionada, contudo, a presença de representantes
das vilas de índios da província, como Mathias Alves de Figueiredo Rocha, José da Rocha
Mota, José Felix de Freitas e Paulo Fontanelas, procuradores, respectivamente, das câmaras
de Arronches, Soure, Baturité (a mesma Monte-mor Novo) e Vila Viçosa. Além deles, em
meio às mais de 400 assinaturas, é possível identificar a de, pelo menos, quatro índios:
Francisco da Costa Lira (capitão-mor de Soure), Atanásio Faria Maciel (capitão-mor, juiz de
fora e presidente da câmara de Messejana), Vitorino Correa da Silva “Parangaba” (“capitão-

97
Os juramentos e o registro foram feitos no dia seguinte. ATA da sessão extraordinária e grande conselho
provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824. Apud. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p. 292-294.
98
PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p.
40. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 321-322. STUDART, Guilherme. O
movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 620. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 138.
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 106-108.
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mor e eleitor” de Arronches) e João da Costa da Anunciação (“sargento-mor e eleitor” de Vila


Viçosa).99
A presença tão significativa de lideranças indígenas indica uma mudança de
perspectiva no posicionamento político dos índios, cuja tendência à defesa da monarquia foi
bastante comentada pela historiografia mais recente, como vimos anteriormente. Os motivos
para esta nova postura estavam ligados aos principais argumentos levantados na sessão de
adesão do Ceará à Confederação: a associação entre as atitudes autoritárias de dom Pedro I e
os supostos planos recolonizadores portugueses. Para os índios, desde 1821, Portugal passou a
significar uma ameaça às suas liberdades, como se de lá viessem intenções de novamente
submetê-los à escravidão, assim como haviam sofrido seus antepassados.100 Por isso é curioso
o acréscimo de “Parangaba” que o capitão-mor de Arronches Vitorino Correa da Silva fez ao
seu nome. Apesar da contradição costumeira dos brancos desse período, o capitão Vitorino,
sem medo de se associar aos costumes “bárbaros” dos ancestrais, fez referência ao antigo
nome de sua vila – aldeia da Parangaba – como forma de se opor a qualquer ação
escravizadora que viesse de fora.
A adesão à Confederação do Equador se seguiu pelas câmaras da província, e há pelo
menos um registro de sessão de juramento feita por vereadores de uma vila de índios. Apenas
no dia 10 de outubro, a câmara de Monte-mor Novo reuniu seus membros e diversas outras
pessoas do município para declarar apoio ao ato sufragado em Fortaleza no mês de agosto.
Entre as assinaturas, que não traziam qualquer informação sobre ocupação profissional ou
origem étnica, a única que identifiquei ser de um indígena é a do sargento-mor Manoel José
da Rocha.101 A ata da sessão não faz nenhuma referência ao fato de a vila ser de índio, 102
mesmo porque, no início do século XIX, a maior parte da população de Monte-mor Novo,
bem como de sua câmara municipal, era de extranaturais.103

99
ATA da sessão extraordinária e grande conselho provincial. Fortaleza, 27 de agosto de 1824. Apud.
Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXV, 1911, p.
295-299. As nomeações dos quatro oficiais indígenas foram analisadas no capítulo 6.
100
Quando esteve no Ceará 14 anos antes da Confederação do Equador, Henry Koster observou a repugnância
dos índios “no uso do vocábulo senhor”, supondo “ter começado nos imediatos descendentes dos indígenas
escravos e se haja perpetuado essa repulsa na tradição. [...] os indígenas com quem tenho conversado, e tenho
visto muitos, parecem saber que seus ancestrais trabalharam como escravos”. KOSTER, Henry. Viagens ao
nordeste do Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo/Fortaleza: ABC Editora, 2003, p. 178.
101
Cuja nomeação analisamos no capítulo 6.
102
ATA da sessão extraordinária da câmara de Monte-mor Novo, 10 de outubro de 1824. APEC, CM, câmara de
Monte-mor Novo, livro 54, p. 124-129V. Apud. Parte documental: documentos para a história da Confederação
do Equador no Ceará coligidos pelo Barão de Studart. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia
Gadelha, tomo especial, 1924, p. 412-415.
103
Cf. CARVALHO, Antônio Rodrigues de. Memória sobre a capitania do Ceará no ano de 1816. Publicações
do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Arquivo Nacional, n. XXIV, 1929, p. XXVIII. “Mapa
da população da capitania do Ceará extraído dos que deram os capitães-mores no ano de 1813”. BN, II-32, 23, 3.
303

É de se questionar, portanto, o quanto o juramento do sargento-mor Rocha, ou o de


outros indígenas mencionados anteriormente representavam os anseios da maioria dos índios
de Monte-mor Novo e de outras vilas da província. Evidentemente, não temos acesso às
opiniões daqueles que não ocupavam postos militares ou de câmara, mas a presença de
oficiais índios em sessões de tal importância indica o direcionamento político das lideranças
indígenas. À frente de suas comunidades, posicionavam-se favoravelmente ao grupo que,
naquele momento, governava a província, por conta das perspectivas de respeito às suas
garantias e das ameaças tidas como recolonizadoras e escravizadoras.

“De grande préstimo na restauração da ordem”

Enquanto o governo do Ceará aderia à Confederação do Equador, o território sob o


domínio do movimento sofria com a investida contrarrevolucionária por ordem de dom Pedro
I. Ainda em julho a região da bacia do rio do Peixe, na fronteira da Paraíba com o Ceará,
recebera ocupação dos regimentos imperialistas.104 Em agosto, já estavam presentes no litoral
pernambucano as forças fieis à Coroa, lideradas pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva e
pelo lorde inglês Thomas Alexander Cochrane, que lutava à época a serviço do governo
brasileiro. No dia 12 de setembro entraram no Recife, e em outubro já se encontravam em
Mossoró, no Rio Grande do Norte, próximo à fronteira cearense. Sabendo que a vila do
Aracati havia sido tomada, Tristão Gonçalves partiu acompanhado de uma tropa de índios em
12 de outubro, conseguindo recuperá-la ao domínio confederado no dia 18.105
Entretanto, neste mesmo dia, a armada de lorde Cochrane ancorava em Fortaleza,
rendendo o governo da província – deixado por Gonçalves a cargo de José Felix de Azevedo e
Sá – e, de acordo com a historiografia, hasteando sem qualquer resistência a bandeira
imperial.106 A fortificação que protegia e dava nome à capital do Ceará, segundo Hugo Victor,

104
Cf. STUDART, Guilherme. Parte Cronológica. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia
Gadelha, tomo especial, 1924, p. 149-150.
105
PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p.
42. GALVÃO, Sebastião de Vasconcelos. Confederação do Equador: 24 de julho de 1824. Revista do Instituto
do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVIII, 1914, p. 64. STUDART, Guilherme. O movimento
republicano de 1824 no Ceará, p. 621. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 138-139. FELIX,
Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 108. Domingos Jaguaribe afirma que Luís Rodrigues Chaves,
enviado ao Pernambuco junto com os índios, foi convencido a lutar pela causa contrarrevolucionária e comandou
a invasão do Aracati que motivou a marcha de Tristão Gonçalves para retomá-la. Cf. JAGUARIBE, Domingos.
Notas para a história das repúblicas de 1817 e 1824, p. 51. Entretanto, para Torres Câmara, Chaves seguiu para o
Recife em maio, e os índios só estiveram no Aracati na companhia de Gonçalves. Cf. CÂMARA, João Eduardo
Torres. A Confederação do Equador..., p. 321-329.
106
PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p.
44. JAGUARIBE, Domingos. Notas para a história das repúblicas de 1817 e 1824, p. 51. CÂMARA, João
304

“não oferecia vantagem para resistir a um bloqueio marítimo”. Para o autor, “não resta dúvida
quanto à sua inutilidade na defesa da revolução”.107 Com a tranquila rendição, o então
presidente Azevedo e Sá – perdoado e autorizado a continuar no cargo por Cochrane –
ordenou ao sargento-mor indígena João da Costa da Anunciação – que estivera presente na
sessão de adesão do Ceará à Confederação do Equador – que fizesse “congregar todos os
índios seus subordinados” e os pusesse em marcha “logo e logo para esta capital”
comandados por ele. Lá encontraria o presidente “pronto para defender os sagrados direitos de
S. M. I. [Sua Majestade Imperial] o Sr. dom Pedro I Imperador Constitucional e Defensor
Perpétuo deste Império”.108
Sem dar maiores explicações, as ordens dirigidas a Anunciação devem tê-lo deixado,
no mínimo, intrigado. Não sabemos qual foi a reação do sargento de Vila Viçosa, mas a
convocação de sua tropa já indicava o pleno estabelecimento do poder imperial em Fortaleza
e a importância de se ter a força militar indígena na defesa dos interesses de dom Pedro I. A
medida inesperada, contudo, nos faz refletir, por um lado, sobre a inviabilidade militar
daquelas províncias para resistir ao governo central e, por outro, se havia de fato obstinação
por parte dos aliados de Araripe em continuar com este projeto.
Nos relatos que escreveu acerca de suas atividades no Brasil, Cochrane contou como
se deu a negociação para a tomada da capital cearense.109 Após o hasteamento da bandeira
imperial, o lorde mandou que se “oficiasse a todas as partes da província, anunciando o
regresso da cidade à obediência”. Mandou comunicações às forças revolucionárias “cujas
tropas abandonaram todas”, e mesmo o “corpo sob o comando imediato do presidente
revolucionário Araripe [que se encontrava no Aracati] foi reduzido a 100 homens – até os
índios, sem exceção, abandonando o seu estandarte”. Atribuiu o sucesso da pacificação da
província à anistia geral que ofereceu à população, inclusive ao próprio Tristão Gonçalves,
“remonstrando-lhe [sic] sobre a loucura da carreira que estava prosseguindo”. Prevendo a
negativa do liberal e sua consequente fuga para o interior – o que realmente ocorreu em 20 de
outubro – Cochrane ofereceu

“a quem o apreendesse recompensa suficiente para induzir os índios que antes


haviam sido seus sustentadores a partir em busca dele, resultando a vir a ser morto, e

Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 330. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de


1824 no Ceará, p. 616. GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 139. FELIX, Keile Socorro Leite.
“Espíritos inflamados”, p. 109.
107
VICTOR, Hugo. A defesa marítima de Fortaleza na Revolução do Equador, p. 40-41.
108
De José Felix de Azevedo e Sá a João da Costa da Anunciação. Fortaleza, 18 de outubro de 1824. APEC, GP,
CO EX, livro 1, p. 26.
109
Cf. JAGUARIBE, Domingos. Notas para a história das repúblicas de 1817 e 1824, p. 48.
305

todos seus sequazes apreendidos. Os chefes indianos [sic], assim como a gente que
deles dependia, foram de grande préstimo na restauração da ordem, combinando
robustez corporal superior com atividade, energia, docilidade, e força de aturar que
nunca falhava – formando, com efeito, os melhores padrões da raça nativa que eu
vira na América do Sul”.110

O relato de Cochrane permite mais uma vez perceber a importância militar que tinham
as tropas indígenas para a manutenção do governo de Tristão Gonçalves. A mesma valia foi
percebida pelo lorde inglês, fazendo dessa população peça fundamental para o
restabelecimento do poder imperial. Em contrapartida, os índios viram naquele momento que
a aliança com a armada de Cochrane e a retomada dos laços de fidelidade com a Coroa eram o
melhor caminho. A aceitação da “recompensa” – que o lorde não deixou claro do que se
tratava – mostra que a rendição de Fortaleza ocorreu também pelas vantagens vislumbradas
pelas lideranças, inclusive as indígenas. Mas apenas isso foi suficiente para que os índios
rompessem uma relação tão estreia, da qual dependia o futuro de suas comunidades, a ponto
de passarem de “sustentadores” a “perseguidores” do liberal?
Em 21 de outubro, três dias depois da adesão de Fortaleza às forças imperiais, o
presidente Azevedo e Sá ordenou ao capitão Manoel Cavalcante que convocasse “os índios da
vila de Arronhces, e depois de ler-lhes o ofício de Cochrane de 18 de outubro do corrente”,
que os enviasse para a capital.111 A Plácido Fontenelle, de Vila Viçosa, comunicou no dia 23
que dom Pedro I já havia sido aclamado imperador constitucional e defensor perpétuo do
Brasil, e que mandava “pela segunda vez ao capitão-mor e diretor dos índios dessa vila” que
os fizesse marchar para a capital.112 Inteirou João da Costa da Anunciação das ordens que
passara “a todas as câmaras e autoridades constituídas afim desta província de jurarem e
prestar obediência e fidelidade ao Augusto Sr. dom Pedro de Alcântara”.113
Não consegui encontrar o ofício de Cochrane aos índios. A ação de contatá-los, no
entanto, mostra que os motivos reais da mudança de lado indígena provavelmente iam muito
além da recompensa oferecida. As transformações que o cenário político lhes impunha não
deixavam de estar vinculadas às suas perspectivas para o futuro. A necessidade de uma
110
COCHRANE, Thomas Alexander. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação
portuguesa. Londres: James Ridgway, 1856, p. 184-185. Extrato da narrativa de lorde Cochrane, conde de
Dundonald e marquês do Maranhão, na parte relativa ao Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Studart, tomo XII, 1898, p. 62-63. Apud. Parte documental: documentos para a história da
Confederação do Equador no Ceará coligidos pelo Barão de Studart. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 454-455.
111
De José Felix de Azevedo e Sá a Manoel Cavalcante. Fortaleza, 21 de outubro de 1824. APEC, GP, CO EX,
livro 1, p. 29V.
112
De José Felix de Azevedo e Sá a Plácido Fontenelle. Fortaleza, 23 de outubro de 1824. APEC, GP, CO EX,
livro 1, p. 31V.
113
De José Felix de Azevedo e Sá a João da Costa da Anunciação. Fortaleza, 23 de outubro de 1824. APEC, GP,
CO EX, livro 1, p. 32.
306

segunda ordem ao sargento Anunciação indica que as novidades não devem ter sido
facilmente digeridas. Contudo, diante da superioridade bélica da armada que dominara tão
rapidamente Fortaleza, resistir poderia representar um suicídio, e a anistia, somada à
recompensa oferecida, possibilitava uma nova representação para a figura de dom Pedro I.
No início de novembro de 1824, aquele que havia pouco tempo era tido como um
déspota recolonizador a serviço de Portugal já era aclamado em toda a província, e seus
últimos inimigos eram perseguidos. Tristão Gonçalves, após o abandono de sua tropa – dentre
eles, os índios – fugira para o sertão do Jaguaribe, onde foi assassinado no dia 31 de
outubro.114 Em 3 de novembro, a câmara de Monte-mor Novo, tendo conhecimento dos
acontecimentos de 18 de outubro, “visto que as tropas se achavam destroçando o povo e da
mesma sorte derribando suas moradas”, juraram fidelidade ao imperador, constando também a
assinatura do sargento-mor indígena Manoel José da Rocha.115
A demora na reação da vila – que ficava apenas a cerca de 100 km de Fortaleza, ou
seja, possivelmente não tardara em saber da ação de Cochrane – pode indicar que a adesão de
algumas câmaras no interior da província tenha sido muito mais por medo do que por reais e
instantâneos sentimentos de fidelidade ao rei. No dia 8 de novembro, o presidente ordenou ao
comandante de Vila Viçosa e Ibiapina que mandasse “destroçar toda a tropa de índio do seu
comando” que mandara “reunir e marchar para esta capital pelo meu ofício de 19 do mês
passado”. A marcha já não era mais necessária “visto que se acha[va] esta capital e província
em tranquilidade pela morte do tirano Tristão Gonçalves [...] e outros sequazes republicanos,
tão infiéis como desobedientes ao Augusto Imperador Defensor Perpétuo do Brasil”. 116 Se,
passado um mês, a ordem para o deslocamento das tropas de índios da Ibiapaba ainda não
havia sido cumprida, a nova situação política do Ceará não foi recebida com a aceitação
passiva de que Gonçalves era um tirano. Mas a rápida tomada da capital e a morte do antigo
líder eram sinais claros de que não havia mais condições para resistir.
O inimigo vitorioso, no entanto, não eram apenas as forças imperiais. Keile Felix
argumenta que a escolha de Fortaleza como sede do poder no Ceará visava barrar o grande

114
Cf. PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao
Ceará, p. 42. STUDART, Guilherme. Parte Cronológica. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia
Gadelha, tomo especial, 1924, p. 160. CÂMARA, João Eduardo Torres. A Confederação do Equador..., p. 333.
GIRÃO, Raimundo. Pequena história do Ceará, p. 139. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”,
p. 110.
115
ATA da sessão extraordinária da câmara de Monte-mor Novo, 3 de novembro de 1824. Apud. Parte
documental: documentos para a história da Confederação do Equador no Ceará coligidos pelo Barão de Studart.
Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Gadelha, tomo especial, 1924, p. 459-462.
116
De José Felix de Azevedo e Sá ao Comandante de Vila Viçosa e Ibiapina. Fortaleza, 8 de novembro de 1824.
APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 65.
307

poderio local que as elites do interior da província construíram ao longo de todo o período
colonial. A luta desses poderosos do sertão cearense no século XIX sempre foi em torno de
sua autonomia: em 1817 havia sido contra a monarquia portuguesa; em 1822 contra um
“liberalismo” conveniente às ambições de sua rival, a elite de Fortaleza; “já em 1824, após a
independência, foi motivada pelo despotismo do imperador e o centralismo representado pelo
poder do Rio de Janeiro, no momento da instalação do Estado nacional”. Nesta luta entre o
“litoral” e o “sertão”, a “escolha de Fortaleza como local sede do poder se coaduna justamente
com a tentativa de retirar desse sertão ‘insubordinado’ o poder de mando que usufruíam”.117 O
hasteamento da bandeira imperial representava, portanto, a vitória da capital, que não era mais
comandada por lideranças do interior.
A aceitação da mudança na situação política do Ceará por parte dos índios e de outros
grupos da província não foi necessariamente fácil, como vimos pela relativa demora nas
respostas da câmara de Monte-mor Novo e da tropa indígena de Vila Viçosa. Entretanto, para
os índios, o poder ocupado pela elite de Fortaleza já não se desenhava mais como em 1822 –
quando se baseara no liberalismo das Cortes de Lisboa, por meio do qual o exerceriam
ilimitadamente na província – mas estava centralizado nas mãos do monarca. Como lembra
Mariana Dantas, as “alianças e o posicionamento político dos grupos indígenas podiam ser
reelaborados de acordo com as mudanças ocorridas nos cenários local, provincial e
nacional”.118 Por isso, no caso aqui analisado, ao aceitar a soberania do rei, os índios evitavam
o massacre pelas forças imperiais, ao mesmo tempo em que viam garantidas suas terras e
outros benefícios.
As ações de apaziguamento das companhias indígenas prosseguiram em novembro: no
dia 9, Azevedo e Sá expediu aos índios “ordens a destronarem para as suas habitações, visto
não se precisarem mais reunidas”. Ao sargento-mor José Felix de Mendonça, com quem até
aquele momento os indígenas estavam reunidos, recomendara que os “fizesse ver quanto bem
resultará sempre da tranquilidade e paz em que devemos todos viver”.119 Pelo que expôs o
presidente, deve ter havido alguma necessidade de convencimento para que a tropa de índios
– que, pelo menos até outubro, estava no Aracati – aceitasse o novo contexto político. Já em
Monte-mor Velho, o governo encontrou alguma resistência para impor a ordem. Em 11 de
novembro, Azevedo e Sá comunicou ao diretor da povoação que havia tomado providências

117
FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 111-112.
118
DANTAS. Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena na formação do Estado
nacional brasileiro, p. 133.
119
De José Felix de Azevedo e Sá a Manuel Moreira Barros. Fortaleza, 9 de novembro de 1824. APEC, GP, CO
EX, livro 1, p. 70.
308

em relação ao índio José Francisco do Monte, “para evitar o mal que ele causa[va] a esses
povos tranquilos”, e ordenou que os índios voltassem aos seus roçados.120 No mesmo dia
ordenou ao comandante de Monte-mor Velho que não se descuidasse do referido índio,
devendo “procurar manter a boa ordem nesses povos”.121
O comandante indígena José Francisco do Monte foi o mesmo que, em 1821,
propusera junto à câmara do Aquiraz a abolição do cargo de diretor em sua povoação, como
vimos no capítulo 3. Naquela ocasião, liderou uma ação que visara maior autonomia para sua
comunidade, e, em novembro de 1824, se inquietava com a nova situação política na qual a
elite de Fortaleza novamente assumia o comando da província obedecendo a um imperador
tido por despótico. Apesar do reinado definitivamente centralizado que dom Pedro I passaria a
exercer, o contexto posterior a 18 de outubro não tranquilizou facilmente a todos os índios.
De acordo com Antônio Pereira Pinto, após o “encerramento da revolta no Ceará, à
anarquia promovida pelos revolucionários sucedeu a anarquia das classes baixas da província,
que acobertadas com o manto da legalidade cometeram toda a casta de atentados”.122 Acerca
deste mesmo contexto, Manoel Ximenes Aragão relatou em sua memória as ações da
“populaça lembrada dos acontecimentos desastrosos da ilha de Santo Domingos”, em que
invadiam povoações e vilas “com o desígnio de matar os patriotas”, como chamavam as
“pessoas que possuíssem alguma coisa” ou mesmo que tivessem “couro alvo”.123 Também o
presidente Azevedo e Sá se lamentava das ações dos cabras que juntavam “campos de
cadáveres daqueles que apelidam patriotas”, esperando, “em tempos tão melindrosos, que não
queira essa gente tomar aos homens brancos em consideração para os matar”.124 Por isso que
as ações das tropas indígenas foram tão necessárias, como já tínhamos visto no relato de
Cochrane. Apesar das divergências internas, a maioria dos índios, ainda que discordassem,
não tiveram como se opor à conjuntura que se desenhava e passaram a agir em prol dos
interesses imperiais, do estabelecimento da ordem e da perseguição aos liberais fugitivos.
Em 19 de novembro, Azevedo e Sá enviou uma tropa de “300 praças militares e 200
índios”, sob o comando de José Felix de Mendonça, ao Aracati, para se reunirem ao

120
De José Felix de Azevedo e Sá a José Rodrigues Pereira. Fortaleza, 11 de novembro de 1824. APEC, GP, CO
EX, livro 1, p. 79.
121
De José Felix de Azevedo e Sá a Vicente Ferreira Ramos. Fortaleza, 11 de novembro de 1824. APEC, GP,
CO EX, livro 1, p. 79V.
122
PINTO, Antônio Pereira. A Confederação do Equador por Antônio Pereira Pinto na parte relativa ao Ceará, p.
44.
123
ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases da minha vida: genealogia. Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo XXVII, 1913, p. 71.
124
De José Felix de Azevedo e Sá a Manuel Antônio de Amorim. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC,
GP, CO EX, livro 1, p. 103V-105.
309

regimento de Luis Rodrigues Chaves. Seu objetivo era encontrar o liberal José Gomes do
Rego, o Cazumbá, que fugira de Pernambuco, a fim de se conhecer suas intenções em
território cearense.125 No mesmo dia, ordenou ao almoxarife dos armazéns nacionais e
imperiais de Fortaleza para dar assistência aos índios de Vila Viçosa, que somavam de 300 a
400 praças e lá ficariam por cinco dias, fornecendo-os “quatro matolages [sic] e seis alqueires
de farinha por dia”.126 Em 22 de novembro, em resposta a um ofício do sargento-mor
Mendonça, mandou soltar o capitão-mor indígena de Arronches que estava preso – de cujo
nome disse não saber – e o levasse na expedição.127 O presidente provavelmente não conhecia
sequer o motivo da punição ao capitão-mor, mas a necessidade de manter a ordem era
urgente. A prisão de tal liderança indígena é mais uma prova de que divergências internas
ocorreram, mas não impediram que a maioria da população e das tropas de índios se
mantivesse obediente ao imperador e ao governo de Fortaleza.
Já em janeiro de 1825, 200 índios de Viçosa foram mobilizados para vila de Granja
com o objetivo de capturar o coronel João de Andrade Pessoa Anta. O historiador João
Brígido contou que, no dia 22, os indígenas “se dispersaram pelas ruas e cometeram toda sorte
de violências, saqueando e açoitando homens e mulheres, até de famílias importantes.
Dezenove pessoas sofreram esse vilipêndio”. As “mais importantes da vila” fugiram, e “após
isto os índios tomaram quartel na casa da câmara”. O grupo só teria se tranquilizado depois
que Joana da Mota “tratou de ganhar o sargento-mor dos índios, chefe ostensivo deles, com
fazendas e quinquilharias. Eles eram, na verdade, comandados por Gonçalo Luiz de Carvalho,
inimigo rancoroso de Andrade pelo fato de este o haver processado por furto de gados”.128
Passando a imagem de desordeiros aos índios sem citar fontes – construindo seu texto
a partir de relatos de sobreviventes do confronto – Brígido não informou qual seria a relação
deles com Carvalho. Independentemente se havia de fato tal contato, o autor não observou
que no início de janeiro de 1825 os índios já estavam, havia muito tempo, a serviço das
determinações imperiais e em caça aos liberais. Além disso, as confusões decorrentes da

125
De José Felix de Azevedo e Sá a Luís Rodrigues Chaves. Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO
EX, livro 1, p. 102. De José Felix de Azevedo e Sá a Manuel Antônio de Amorim. Fortaleza, 19 de novembro de
1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 103V-105. De José Felix de Azevedo e Sá a José Felix de Mendonça.
Fortaleza, 19 de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 105-105V.
126
De José Felix de Azevedo e Sá ao almoxarife dos armazéns nacionais e imperiais de Fortaleza. Fortaleza, 19
de novembro de 1824. APEC, GP, CO EX, livro 1, p. 105.
127
De José Felix de Azevedo e Sá a José Felix de Mendonça. Fortaleza, 22 de novembro de 1824. APEC, GP,
CO EX, livro 1, p. 114V.
128
Uma das vítimas dos índios ainda era viva quando Brígido escreveu seu texto: o “patriota” José Tibúrcio de
Almeida Fortuna, que teria levado “um ferimento de seta”. BRÍGIDO João. Biografias: coronel João de Andrade
Pessoa Anta. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Econômica, tomo III, 1889, p. 66.
MARTINS, Vicente. Pessoa Anta (biografia). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva,
tomo XXXI, 1917, p. 290. STUDART, Guilherme. O movimento republicano de 1824 no Ceará, p. 627.
310

perseguição a Pessoa Anta não eram fatos isolados: o comandante das armas Conrado Jacob
de Niemeyer relatou ao presidente Azevedo e Sá, em setembro de 1825, “que os índios de
Vila Viçosa [eram] insolentes, que os anarquistas da Granja não sossega[vam] e [estavam] em
contínua rivalidade com os ditos índios”.129
A tensa situação da perseguição de Pessoa Anta foi um fragmento de um contexto
muito mais complexo do que supôs João Brígido. A “anarquia das classes baixas” citada por
Pereira Pinto, Ximenes Aragão e Azevedo e Sá revelava uma intensa insatisfação popular que,
com o fim da Confederação do Equador, expressou sua fidelidade ao rei e sua revolta contra
as elites locais ambiciosas por poder. Apesar da relutância da tropa de João da Costa da
Anunciação após o hasteamento da bandeira imperial, como vimos anteriormente, os índios
de sua vila também se envolveram em conflitos contrários às “famílias mais importantes”, de
onde vinham muitos “patriotas” ou “anarquistas”. A “insolência” dos indígenas de Viçosa
observada por Niemeyer se assemelha à “insubordinação” imputada a eles quando estiveram
no Piauí em 1823. Por mais que tivessem os mesmos inimigos das autoridades imperiais, as
causas de sua aversão aos “ricos liberais” e as formas de combatê-los eram próprias. Também
por isso, com o término da Confederação do Equador, não tiveram o mesmo reconhecimento
que haviam recebido no tempo do governador Sampaio.

“Dignos da imperial contemplação”

Em 21 de maio de 1825, José Felix de Azevedo e Sá enviou ao ministro do império


Estevão Ribeiro de Rezende o requerimento de João da Cunha Pereira, diretor da vila de
Messejana, em que pedia aumento de ordenado. Pereira se julgava “digno da imperial
contemplação” porque, desde que começara a exercer seu emprego, não tivera “a menor nota
em sua conduta, e f[izera] conter os índios de sua direção nos limites de seus deveres no
tempo em que tudo era desordem”.130 Em sua versão, aceita pelo presidente do Ceará, nenhum
índio mereceu ser mencionado como colaborador para o posicionamento que a comunidade de
Messejana assumira a partir de 18 de outubro de 1824. Curiosamente, João da Cunha Pereira
dividira com Atanásio Faria Maciel, capitão-mor indígena desta vila, a sala da sessão onde foi
promulgada a adesão do Ceará à Confederação do Equador em 26 de agosto de 1824. Tanto
um quanto o outro estiveram à frente dos índios de Messejana em cada um desses momentos.

129
De Conrado Jacob de Niemeyer a José Felix de Azevedo e Sá. Fortaleza, 20 de setembro de 1825. AN, IN,
caixa 742, pacotes 4 e 5.
130
De José Felix de Azevedo e Sá a Estevão Ribeiro de Rezende. Fortaleza, 21 de maio de 1825. AN, IN, caixa
742, pacote 5.
311

Já em 15 de junho de 1825, o presidente Azevedo e Sá também remeteu ao ministro


Rezende uma relação “dos indivíduos que mais se distinguiram” no combate à Confederação
do Equador no Ceará. Por seus serviços, mereciam ser “atendidos por S. M. I.” ou mesmo
“condecorados com mercês de hábitos”. Um deles foi Manoel Caetano de Freitas Barros, juiz
de fora e diretor da vila de Soure: de acordo com o presidente, Barros “sempre fugiu da
carreira dos rebeldes, e quando se levantou a bandeira imperial, moveu os índios de sua
direção a pegarem em armas e unirem-se à capital, tendo feito com que até então nunca
servissem ao partido rebelde”. Era, portanto, “merecedor de ser condecorado com a mercê da
Ordem de Cristo”. Outro foi o padre José Felix dos Santos de Soure, por ter se prestado “à
frente de 600 índios de sua freguesia no segundo dia do levantamento da bandeira imperial”,
sendo, por isso, também merecedor da mercê do Hábito da Ordem de Cristo. Nenhum índio
foi citado nominalmente por Azevedo e Sá.131
Comparando os períodos posteriores às derrotas da Revolução Pernambucana de 1817
e da Confederação do Equador em 1824, as menções à atuação dos índios do Ceará para a
manutenção da ordem imperial (lusitana e brasileira) são radicalmente diferentes. Na
primeira, quem comandava a capitania cearense era um português, minimamente
comprometido com as demandas indígenas e que colaborara diretamente com a isenção de
impostos de 1819, promulgada por dom João VI. Na segunda, quem passou a assumir o
comando da então província era um membro da elite de Fortaleza, há muito ambiciosa das
terras e do usufruto ilimitado da mão-de-obra indígenas. Por isso, convenientemente ignorou
opiniões como a de Cochrane.
Diante da mudança na conjuntura política do Ceará com a queda da Confederação,
parecia não haver saída para os índios, a não ser manifestar apoio a dom Pedro I. Segundo
Denis Bernardes, a derrota do projeto liberal e a vitória das tropas imperiais “conteve e
limitou as possibilidades de ampliação de cidadania” no Brasil.132 De acordo com Julio
Gómez, o Estado pós-independente marginalizou os pobres e não-brancos de qualquer chance
de participação política.133 De fato, após 1824, a situação dos indígenas no Ceará só piorou:
dois anos depois, os índios de Monte-mor Velho foram expulsos de sua povoação por uma
ação da câmara do Aquiraz, como vimos no capítulo 4. Por outro lado, os autores não
perceberam que a autoridade das elites locais ainda era limitada durante o reinado de dom

131
De José Felix de Azevedo e Sá a Estevão Ribeiro de Rezende. Fortaleza, 15 de junho de 1825. APEC, MN,
MI, livro 310, p. 40V-52.
132
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador, p. 157.
133
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados, p. 266.
312

Pedro I. Somente com sua abdicação foi que o liberalismo “à brasileira” pôde, a partir da
década de 1830, realmente cercear o exercício da cidadania por parte da população pobre e
não-branca do país. Para os índios no Ceará, esta época significou a abolição das vilas, dos
cargos políticos, das patentes militares e de mecanismos jurídicos efetivos para garantir a
posse de suas terras.
Segundo Bernardes, à época da Confederação do Equador, os chefes indígenas, “com
alguma razão, viam na Coroa a garantia da posse de suas terras e da legitimação de uma
hierarquia de poder da qual se sentiam parte”.134 Em outubro de 1824, apoiar o juramento de
Fortaleza à constituição imperial não era uma opção agradável para os índios, mas era a
melhor possível, tendo em vista que dom Pedro I “moderaria” a atuação dessas autoridades.
Com sua partida do Brasil, o poder das elites locais não encontrou barreiras para usurpar o
que pudesse das comunidades indígenas. Estes, em contrapartida, reagiram como puderam. O
comandante José Francisco do Monte – que, como vimos há pouco, fora acusado de causar
transtornos em Monte-mor Velho após o hasteamento da bandeira do império na capital –
moveu uma ação em 1831, junto com outras lideranças, para retornar sua comunidade – que
havia sido removida à força para Messejana – à povoação de origem, valendo-se da
prerrogativa constitucional – e liberal – de “cidadãos”, como analisamos no capítulo 4.
Outros, contrariando a afirmativa de Matos Ibiapina de que “a repressão do governo foi tão
cruel [...] que, daí para cá, nunca mais se agitou outro movimento cívico de valor”, 135
seguiram caminhos distintos. Alguns índios da Ibiapaba, revoltados com os recrutamentos
forçados, se juntaram em 1839 a uma rebelião bem mais longa do que as duas tratadas até
aqui.

134
BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador, nota 52, p. 165-166.
135
IBIAPINA, Matos. Confederação do Equador. Revista do Instituto do Ceará, p. 89.
313

Mapa 7: Locais de atuação dos índios do Ceará na Confederação do Equador

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

8.3. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA BALAIADA

As insatisfações em torno das medidas centralizadoras de dom Pedro I não se


restringiram à Confederação do Equador. Mesmo após o sucesso da repressão ao movimento,
os protestos se seguiram em várias regiões do país, especialmente na capital do império. O
envolvimento do monarca na disputa pelo trono lusitano com seu irmão, dom Miguel,
intensificou ainda mais seu estigma de “português”. Somadas às dificuldades diplomáticas e
econômicas,136 sua fama de tirano vendido aos interesses de Portugal avivou as críticas e
conspirações contra seu governo, culminando em sua abdicação no dia 7 de abril de 1831.137
Enquanto o herdeiro, dom Pedro II, não atingia a maioridade, o país passou a ser
comandado por uma sucessão de governos regenciais. Iniciava-se, segundo Marco Morel, um

136
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 10-13.
137
Ibid., p. 18-19.
314

“grande laboratório de formulações e de práticas políticas e sociais, como ocorreu em poucos


momentos na história do Brasil”. Uma série de conflitos de origem ideológica, social e étnica
veio à tona, por meio dos quais diversos setores da sociedade – entre eles, os índios –
manifestaram suas múltiplas expectativas. Para o autor, o período regencial “foi momento-
chave para a construção da nação brasileira, quando, ao custo de muitas vidas e despesas,
garantiu-se a independência e o caminho de uma ordem nacional”. Morel acredita que essa
época, que possibilitou tamanha agitação e novas formas de expressão política, era
caracterizada pela “ausência de poder centralizado na figura do monarca e pela emergência de
atores históricos variados com suas demandas sociais”.138
Segundo Almir de Oliveira, no Ceará, a conjuntura política após 1831 foi uma das
mais conturbadas, quando “as disputas entre os grupos locais se acirraram profundamente”.139
Uma das mais importantes expressões desses conflitos de interesses em território cearense foi
a rebelião de cunho restauracionista comandada pelo tenente Joaquim Pinto Madeira, que
acreditava que a abdicação de dom Pedro I havia sido forçada e exigia seu retorno ao trono.140
A Revolta de Pinto Madeira foi uma dentre as várias que estouraram pelo país e que
marcaram o período regencial, ao ponto de que, segundo Marco Morel, a grande preocupação
da política da Corte ter sido “parar o carro revolucionário”.141
Com a nomeação do general Francisco de Lima e Silva – o mesmo que, ao lado de
Cochrane, comandara a tomada do Recife em 1824 – como um dos membros da Regência
Trina Permanente, em 17 de julho de 1831, implicava, de acordo com o autor, “a existência de
uma militarização do poder político no período monárquico”.142 No mês seguinte foi criada a
Guarda Nacional que, com o tempo, se voltou cada vez mais “para o fortalecimento dos
proprietários e senhores locais e do poder central”.143 Como vimos no capítulo 5, iniciava-se,
simultaneamente, um período de intensas ações de recrutamento como forma de controle
social. A própria necessidade em combater as revoltas regionais motivou, segundo Mathias
Assunção, o aumento das conscrições da população pobre e livre.144

138
Ibid., p. 9-10.
139
OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX:
autonomias locais, consensos políticos e projetos nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone
Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará –
compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP,
tomo I, 2009, p. 22.
140
Cf. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 113-193.
141
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 20.
142
Ibid., p. 27.
143
Ibid., p. 29.
144
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841). In: ZARTH,
Márcio. MOTTA, Márcia. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao
315

Segundo Almir de Oliveira, após a repressão à Revolta de Pinto Madeira, assistiu-se


em meados da década de 1830 no Ceará a uma “paz provincial”, especialmente com a
promulgação do Ato Adicional de 1834, quando os poderes regionais foram fortalecidos por
meio das Assembleias legislativas.145 Neste mesmo ano, o padre Felipe Benício Mariz
promoveu “desordens” na Ibiapaba ao alertar os índios que a reforma constitucional visava
recrutá-los, como vimos no capítulo 2. Em 1835, o então presidente cearense José Martiniano
de Alencar – antigo líder das rebeliões em 1817 e 1824 – alegou que o interior da província
estava em “perfeita paz” e que “não apresenta[va] probabilidade de um rompimento”, por ter
posto “força distribuída por aqueles lugares” onde uma turbulência era possível.146 Para
Mathias Assunção, ações como a de Alencar levavam a um círculo vicioso: “o recrutamento
intensivo provocava, em retorno, resistência armada, o que aumentava por sua vez a
necessidade de recrutamento”.147 Acreditando em uma paz permanente, o presidente não
contava com a adesão, anos depois, de parte dos habitantes da Ibiapaba à Balaiada.
A revolta, iniciada no Maranhão e com forte repercussão no Piauí, durou entre os anos
de 1838 e 1841 e teve um saldo de cerca de 15 mil rebeldes mortos nos conflitos.148 Mathias
Assunção caracteriza o conflito como uma “guerra de resistência do campesinato contra o
recrutamento arbitrário e os abusos de uma elite que se considerava branca e superior”. 149 A
revolta era social e etnicamente heterogênea, envolvendo amplamente a população cabocla do
interior dessas duas províncias, além de índios, negros escravos e forros, brancos pobres,
vaqueiros, camponeses e, em território piauiense, significativa participação de fazendeiros
contrários ao barão de Parnaíba, que estava à frente do governo do Piauí desde a
independência. Suas principais reivindicações giravam em torno da defesa da Constituição, da
religião católica, da pátria e do imperador.150

longo da história. Concepções de justiça e resistência nos Brasis. Volume 1. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p.
179.
145
OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX, p.
28.
146
De José Martiniano de Alencar a Manuel do Nascimento de Castro e Silva. Fortaleza, 10 de outubro de 1835.
In: CARTAS do padre José Martiniano de Alencar, presidente do Ceará, a Manuel do Nascimento de Castro e
Silva, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza:
Tipografia Minerva, tomo XXII, 1908, p. 59.
147
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 180.
148
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 64-65.
149
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 171.
150
Ibid., p. 172. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a
Pátria e o Imperador”. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão. In: DANTAS, Mônica Duarte
(Org.). Revoltas, motins e revoluções: homens livres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda,
2011, p. 305. OLIVEIRA, Maria Amélia. A balaiada no Piauí. In: ANDRADE, Manuel Correia de. Movimentos
populares no Nordeste no período regencial. Recife: FUNDAJ, Editora Massananga, 1989, p. 16-19. DIAS,
Claudete Maria Miranda. Balaiada: a guerrilha sertaneja. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 05, 1995, p. 79-
82. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX: resistência e luta dos balaios no Piauí.
316

Na historiografia há citações muito rápidas a respeito do Ceará como palco ou terra


natal dos envolvidos no conflito.151 Claudete Dias apenas menciona a província como um
local de fuga dos rebeldes a partir de 1839, ano de intensa expansão do movimento.152 Jofre
Vieira e Maico Xavier vão mais além, percebendo que, na Ibiapaba, os balaios encontraram
tanto resistência quando adesão por parte da população indígena local. Dentre os que se
uniram à rebelião, a motivação se encontrava também no recrutamento.153 Além dessas obras,
não encontrei análises mais densas sobre o envolvimento de cearenses na Balaiada,154
realidade bem diferente do que já foi produzido no Ceará acerca da Revolução Pernambucana
de 1817 e da Confederação do Equador. Os autores antigos deram preferência a movimentos
liderados pela elite política da província, enfatizando seu caráter separatista e republicano. A
Balaiada, por sua vez, ocorreu em um momento quando o Estado nacional brasileiro já estaria
consolidado – tendo sido a Revolta de Pinto Madeira a última ameaça a esse processo – além
de ter sido protagonizada por grupos subalternos.
Se nos ativermos à produção historiográfica a respeito do tema, talvez a conclusão seja
de que a Balaiada não tenha tido maiores reflexos no Ceará, cuja participação se restringira a
ter sido mero local de fuga dos rebeldes. A situação seria um reflexo da “bem-sucedida”
pacificação ocorrida em meados da década de 1830, arrefecendo os últimos ânimos exaltados
existentes na província. No entanto, de acordo com a memória Ximenes Aragão, a conjuntura
parece ter sido ser bem mais complexa. O autor foi contemporâneo aos conflitos, e residia, à
época, no Maranhão. Em uma de suas viagens de negócios no natal de 1838, encontrou em
um povoado próximo a Chapadinha “um grande número de pessoas de ambos os sexos
naturais da província do Ceará, principalmente da Serra Grande”. Estes contaram que estavam

In: ZARTH, Márcio. MOTTA, Márcia. (Org.). Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de
conflitos ao longo da história. Concepções de justiça e resistência nos Brasis. Volume 1. São Paulo: Editora
UNESP, 2008, p. 205-209.
151
DANTAS. Beatriz G. SAMPAIO, José Augusto L. CARVALHO, Maria do Rosário G. de. Os povos
indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP: 1992, p. 448.
GÓMEZ, Julio Sánchez. Invisibles y olvidados: indios e independencia de Brasil. Studia Historica. Historia
Contemporánea, n. 27, 2009, pp. 273-274.
152
DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 204.
153
VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes: o motim dos pretos da Laura em 1839. Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 105-106. XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso
oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil – trabalho, terras e
identidades indígenas em questão. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, 2015, p. 156-161.
154
Na Revista do Instituto do Ceará há, apenas, uma publicação sobre o tema – cópias de correspondências entre
autoridades cearenses e do Piauí – e duas que o abordam de forma secundária: NOGUEIRA, Paulino.
Presidentes do Ceará: período regencial. 10º presidente, bacharel Francisco de Souza Martins. Revista do
Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, tomo XV, 1901, pp. 5-61. ARAGÃO, Manoel Ximenes de.
As fases da minha vida: genealogia, pp. 47-157. DOCUMENTOS sobre a Balaiada. Revista do Instituto do
Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva, tomo LXXX, 1966 [1968], pp. 253-276.
317

envolvidos na revolução chefiada por Raimundo Gomes, e eram os mesmos revoltosos que,
em 1824, haviam matado certo João de Farias na região de onde vieram. Segundo Aragão,
nutriam ódio aos portugueses, mas como “caboclos e cabras eram os comandantes dessa
horda de malvados”, poderiam escapar os que fossem casados com “cunhãs”.155
A “paz provincial” tinha, portanto, seus limites. Os cearenses que residiam no
Maranhão ainda levavam em sua memória os acontecimentos de mais de 10 anos antes. O
citado Raimundo Gomes era o vaqueiro piauiense que, em dezembro de 1838, iniciara a
revolta na Vila do Manga (atual Nina Rodrigues, Maranhão), motivada pelo recrutamento de
seu irmão.156 Percebemos, por um lado, que apesar de sua extensão geográfica, a revolta foi
uma só, tendo em vista não apenas os contatos frequentes que lideranças de lugares distintos
travavam entre si como também a semelhança dos motivos de insatisfação. Por outro, cada
grupo – sejam vaqueiros, lavradores, escravos ou fazendeiros – possuía demandas distintas,
tanto por suas condições de vida diferenciadas quanto por suas culturas políticas particulares.
Entre as matrizes culturais que compunham a população campesina envolvida no
conflito no Maranhão, Mathias Assunção cita os índios das vilas e os migrantes cearenses,
que pelo menos desde a seca de 1824-1826 haviam buscado refúgio na província.157 Levando
em conta o relato de Aragão, é possível supor que boa parte desses lavradores oriundos do
Ceará fossem índios da Ibiapaba. Tanto estes quanto os que ainda viviam na serra recordavam
sua atuação política na década de 1820. Os fatos citados por eles de 1824 se conectavam aos
conflitos que se seguiram em 1825 – contra as “famílias importantes” e os “anarquistas” de
Granja – e se assemelhavam às motivações étnico-raciais da Balaiada. Estas lembranças,
aliadas às demandas do contexto em que viviam, serviram de base para sua participação na
rebelião.

“Raimundo Gomes, nosso irmão”

As primeiras notícias que encontrei sobre o envolvimento de índios do Ceará na


Balaiada datam de julho de 1839. Escrevendo ao barão de Parnaíba no dia 4, o subprefeito de
Piracuruca, no Piauí, José Rodrigues de Miranda, comunicava seu temor em relação à
proximidade da povoação com a

155
ARAGÃO, Manoel Ximenes de. As fases da minha vida: genealogia, p. 143-146.
156
Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia. A balaiada no Piauí, p. 20. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos
sociais do século XIX, p. 203. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão
(1838-1841), p. 186. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica,
amar a Pátria e o Imperador”, p. 298.
157
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 173.
318

“serra e Vila Viçosa, lugares estes que tem grande número de índios e outros de
iguais sentimentos, e onde não há homens de qualidade que contenham os impulsos
desses incautos, e onde já desobedeceram ao presidente quando os mandou reunir
para vir socorrer a esta província, em cujo lugar já ousam chamar a Raimundo
Gomes, nosso irmão, e com a maior satisfação dizem que o que se tem praticado no
Brejo é justo”158

Os piauienses, de fato, ainda não haviam esquecido a “traumática” – apesar de breve –


presença indígena em seu território em 1823, cujo grande pecado havia sido a desobediência
às autoridades. Ou seja, mesmo que governantes do Piauí e índios do Ceará tivessem lutado
contra os mesmos inimigos, a postura destes era inadmissível para aqueles. Agindo por conta
própria, revelaram sua obstinação em defender seus interesses e também as ameaças internas
que os governantes do Brasil recém-independente teriam que enfrentar. Tais receios foram
particularmente enfatizados durante a Balaiada: as autoridades que buscavam construir um
Estado nacional unificado tiveram que lidar com uma massa popular que não aceitava ser
submissa às arbitrariedades que sofriam. Este tipo de atitude “desobediente” estava presente
na adesão irmanada dos índios da Ibiapaba a Raimundo Gomes e no apoio aos acontecimentos
ocorridos na vila de índios do Brejo, Maranhão, tomada pelos balaios em abril de 1839.159
Em apenas seis meses após o início da revolta os índios da Serra Grande já
reverenciavam o líder Raimundo Gomes Vieira Jutahy, que reivindicava a igualdade das
cores, ou, como se dizia à época, das diferentes “qualidades” de homens.160 Por isso, Mathias
Assunção caracterizou a Balaiada como uma expressão de “liberalismo popular”: a população
subalterna se apropriou da linguagem do partido maranhense bem-te-vi (termo também
adotado como autodesignação pelos rebeldes) de defensores das leis do império, opondo-se
aos conservadores, os chamados cabanos. Para o autor, as classes populares adaptaram ideias
divulgadas pela imprensa liberal e manifestaram seu “liberalismo” com características
próprias, a exemplo da defesa da igualdade racial.161
As ideias dos revoltosos do Maranhão foram bem recebidas pelos índios da Ibiapaba
em 1839 porque os conflitos étnico-sociais já faziam parte de sua memória e cultura política.
O “liberalismo popular” maranhense pode ter tido uma releitura por parte da população
indígena da Serra Grande. Por mais que em muitos momentos – na Revolução de 1817, no

158
De José Rodrigues de Miranda a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 4 de julho de 1839. APEPI, SB, livro
6.
159
Cf. ARAÚJO, João Mauro. Insurreição Balaiada. Repórter Brasil, agosto de 2006. Disponível em:
<http://reporterbrasil.org.br/2006/08/insurreicao-balaia/>. Acesso em: 7 de setembro de 2016.
160
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o
Imperador”, p. 311-313.
161
Ibid., p. 300-304.
319

Piauí em 1823, nos conflitos de Granja em 1825 – tenham combatido “patriotas”, os


verdadeiros alvos da gana dos índios era a elite branca e proprietária. Os que antes eram
“liberais” passaram a ser, neste contexto, conservadores, associados muitas vezes aos
portugueses, mas, na prática, ambiciosos em usurpar o trono do rei e privar os indígenas do
exercício da cidadania.
Outra questão evidente no ofício de Miranda é que, em meados de 1839, o contato dos
rebeldes maranhenses com os habitantes da Ibiapaba já era frequente e, pela maneira com que
se manifestavam, a região onde viviam era muito mais que um local de fuga. No dia 8 de
setembro um destacamento de 20 homens estacionado no povoado de Matões (atual Pedro II,
Piauí), próximo à fronteira com o Ceará, foi atacado por 56 rebeldes, que mataram alguns
soldados, roubaram munições e queimaram casas. Desses, alguns que eram de Vila Viçosa
seguiram para Piracuruca e, com a chegada de numerosas tropas de linha e Guardas Nacionais
nos dias 16 e 17, “se abarracaram mui bem entrincheirados, armados e municiados na fazenda
Bebedor”, a 38 quilômetros da vila. Em 20 de setembro os rebeldes foram sitiados, travando
fogo de 5 da manhã até as 18 horas, entregando-se no dia seguinte – com um saldo de 15
mortos – e sendo remetidos presos em número de 48 a Parnaíba no dia 25. Segundo o prefeito
de Piracuruca, Albino Borges Leal, muitos rebeldes que vinham da Serra Grande, ao saberem
da derrota ocorrida na vila, “voltaram às carreiras”.162
No segundo semestre de 1839, a Ibiapaba já era claramente um foco de rebeldes e de
onde partiam operações armadas de ataque. Escrevendo ao barão de Parnaíba, Leal relatou
que, dentre os mortos, estavam o inspetor Pedro Celestino, “comandante de tal club [sic] do
Ceará”, e Pedro da Costa, que dizia governar “as forças bem-te-vis dos Matões e seus
arredores”. Os dois, segundo o prefeito, “eram legitimamente cabras, e até desprezíveis”.163
Maico Xavier argumenta que o aparecimento de categorias como cabras, caboclos ou
“descendentes de índios” na documentação referente à Balaiada “denota certa relutância em
reconhecer as identidades indígenas”.164 Entretanto, grupos identificados como “índios de
Viçosa” não deixam de aparecer nos registros, mostrando que, na verdade, havia grande
diversidade étnica na região e, provavelmente, interesses distintos. Cabras e índios não

162
De Albino Borges Leal a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 26 de setembro de 1839. APEPI, SB, livro 6.
163
De Albino Borges Leal a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 26 de setembro de 1839. APEPI, SB, livro 6
[ofício produzido na mesma data do supracitado].
164
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 158.
320

necessariamente se identificavam como pertencentes ao mesmo grupo étnico,165 mas a matriz


indígena comum possibilitava a convivência e a partilha de alguns objetivos.
Sabendo do potencial bélico dos insurrectos da serra, os governantes do Piauí e do
Ceará passaram a tomar uma série providências de defesa. Em 4 de outubro, um destacamento
foi montado pelo prefeito de Piracuruca em Columinquara, na estrada que seguia para Vila
Viçosa, porque soubera que lá haviam passado rebeldes em 17 de setembro.166 Enquanto isso,
o governador do Ceará João Antônio de Miranda informava ao ministro da Guerra, o conde de
Lajes, a respeito dos cerca de 50 cearenses que haviam se reunido aos “sediciosos de Matões”.
Teriam sido “seduzidos” por um tal de José Paulino e seriam “quase todos índios”. Miranda
afirmou ainda que, durante o cerco de Piracuruca, os líderes do grupo afirmavam ser “chefes
da religião católica de Jesus Cristo”.167
A fala do presidente se assemelha ao que fora dito sobre os índios de Viçosa em
Granja no ano de 1825, quando também teriam sido “cooptados” por uma liderança da região.
Para os governantes desse período, as ações indígenas, por mais enérgicas que fossem, não
poderiam ter suas próprias prioridades como iniciativa. Entretanto, as falas do chefe em
Matões referentes ao catolicismo podem nos fornecem outra pista acerca do posicionamento
político dos índios que quiseram se agregar às lutas dos rebeldes. Nesse contexto, o governo
central afastava-se da Igreja168 e, durante o processo de extinção das vilas de índios, suas
antigas freguesias também não eram mais consideradas patrimônio comunitário indígena.169
Além disso, como demonstra a preocupação do prefeito de Piracuruca e de outras autoridades
da fronteira entre o Piauí e o Ceará, a movimentação bélica indígena seguia por caminhos que
eles escolhiam, mesmo que fosse seguindo os convites de outros revoltosos.
Em janeiro de 1840 já circulavam notícias de que rebeldes da Ibiapaba tencionavam
atacar Buriti dos Lopes, no Piauí, e sitiar Parnaíba,170 e em março ameaçavam marchar para

165
“difícil distinguir os índios [da Ibiapaba] do mais povo, principalmente estando aquela raça já tão misturada
que pela maior parte só são tratados por índios os que querem ser”. Da câmara de Granja a José Maria da Silva
Bittencourt. Granja, 23 de setembro de 1843. APEC, CM, câmara de Granja, pacotilha 1843-1845.
166
De Albino Borges Leal a Manoel de Souza Martins. Piracuruca, 4 de outubro de 1839. APEPI, SB, livro 6.
167
De João Antônio de Miranda a João Vieira de Carvalho. Fortaleza, 8 de outubro de 1840. APEC, GP, CO EX,
livro 41, p. 12V-14.
168
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 29.
169
As freguesias de Soure, Arronches e Monte-mor Velho foram extintas por meio das leis n. 16, de 2 de junho
de 1835, e n. 32, de 27 de agosto de 1836. Cf. OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.).
Leis provinciais, p. 57 e 83. A de Viçosa não foi abolida porque a vila continuou existindo, mas deixou de ser
de índios na década de 1830.
170
De José Francisco de Miranda Osório a Manoel de Souza Martins. Parnaíba, 10 de janeiro de 1840. APEPI,
SB, livro 12.
321

Viçosa.171 No mesmo mês apareceram rebeldes na vila a mando de Domingos Ferreira,


“pedindo pólvora e munição e juntamente notificando os índios para se lhe reunirem”.172
A partir de abril, tropas cearenses contrarrevolucionárias passaram a se organizar em
defesa da vila.173 Enquanto isso, provavelmente em decorrência da ocupação da Ibiapaba
pelas forças repressoras, o litoral piauiense se tornava o novo reduto dos rebeldes do Ceará.
Para deter esta movimentação, o major Joaquim da Rocha Moreira mandou colocar no fim
deste mês “vários piquetes [...] em cima da serra a pôr obstáculos aos índios que estão fugindo
a reunirem-se nas Frexeiras, por convite de sedutores que vivem por ali os seduzindo”.174
Enquanto isso, cerca de 600 homens de Pernambuco e do Ceará seguiam para a costa do
Piauí, “procurando bater na marcha os rebeldes da Vila Viçosa e Frexeiras”. 175 O lugarejo
citado localizava-se próximo a Parnaíba e, apesar das barreiras impostas pelos militares,
passou a receber continuamente, ao longo de maio, pessoas que desciam a Ibiapaba. Um
dissidente dos insurrectos das Frexeiras relatou às lideranças contrarrevolucionárias que “da
Serra Grande tem ido uma porção de índios para os mesmos rebeldes, porém uns desarmados,
e outros com armas finas, e todos sem munição – que eles cometem, porém, que o terror é
muito”.176
Vinha dos próprios índios, portanto, a motivação pelo combate, advinda de
insatisfações particulares e que deitavam raízes em situações muito antigas. Reunidos em
Frexeiras com combatentes de lugares diferentes e de outras origens étnicas, puderam trocar
experiências e compartilhar expectativas. Unidos por situações igualmente opressoras, índios
e outros segmentos não-brancos e pobres fundiam suas particularidades históricas em um
mesmo movimento de revolta. Segundo Mathias Assunção, a violência dos rebeldes se dirigia
“antes de tudo contra escravocratas ou autoridades que se tinham destacado por suas
crueldades e maus-tratos [...]. Nesse sentido não é uma violência primeira, mas uma reação
contra violências anteriores”. Aliando-se a outros grupos e prometendo botar o terror, os

171
De José Euzébio de Carvalho a Joaquim da Rocha Moreira. Granja, 20 de março de 1840. APEPI, SB, livro
12. De Manoel da Costa Sampaio a Joaquim da Rocha Moreira. Granja, 30 de março de 1840. APEPI, SB, livro
12.
172
De Joaquim da Rocha Moreira a José Feliciano de Moraes Cid. Ubatuba, 31 de março de 1840. APEPI, SB,
livro sem número.
173
De Joaquim da Rocha Moreira a José Francisco de Miranda Ozório. Ubatuba, 1º de abril de 1840. APEPI, SB,
livro 12.
174
De Joaquim da Rocha Moreira a José Feliciano de Moraes Cid. Porteiras, 28 de abril de 1840. APEPI, SB,
livro 11.
175
De Luís Alves de Lima e Silva a Alexandre Manuel Vieira de Carvalho, o conde de Lajes. São Luís, 16 de
maio de 1840. AN, OG, cód. 927, vol. 1, p. 31-32.
176
Relato sem data, local ou autoria, anexo ao ofício a José Feliciano de Moraes Cid. Ponto da Conceição, 5 de
maio de 1840. APEPI, SB, livro 12. Também anexo ao ofício de José Feliciano de Moraes Cid a Manoel de
Souza Martins. Capela do Livramento, 13 de maio de 1840. APEPI, SB, livro 11.
322

índios de Viçosa faziam “um autêntico movimento de inversão, em que o perseguido de


ontem virou perseguidor, e vice-versa”.177
As pendengas indígenas em 1840 não eram exclusivas deste período. Desde 1814,
como vimos nos capítulos 1 e 3, o grande requerimento já expressara a percepção dos índios
de Viçosa em relação aos brancos, tidos como uma presença desagradável e a causa de seus
sofrimentos. Entre sua presença no Piauí em 1823 e no período posterior à Confederação do
Equador, seus inimigos foram se delineando com características étnico-sociais que
culminaram com sua adesão aos bem-te-vis. Ainda que não fossem escravos, reclamavam
havia muito que eram tratados como tais, o que possibilitava que sua revolta se coadunasse
com aqueles que enfrentavam escravocratas ou quaisquer outros exploradores da população
pobre. Rebelavam-se com o fato de que o país que ajudaram a formar privilegiava
exclusivamente uma pequena elite branca, proprietária e usurpadora.

Antes viver sob as armas do que o jugo das autoridades

Até então, a documentação nos forneceu elementos para refletir sobre quem eram os
alvos do terror prometido pelos índios. Mas o que de fato pretendiam? O presidente do Ceará
Francisco de Souza Martins esteve próximo a Frexeiras e conseguiu obter informações com
alguns indivíduos presos que lá tinham estado. Em junho de 1840, Martins escreveu ao
ministro Francisco Ramiro de Assis Coelho sobre a vida e as “doutrinas” dos insurrectos.
Segundo ele, os rebeldes eram,

“pela maior parte, descendentes de indígenas, outros são de cor mista, a que chamam
cabras, e alguns negros fugidos dos seus senhores: todos de supina ignorância, e
apenas algum se encontra que saiba ler. [...] Seus hábitos são muito semelhantes aos
dos índios, de que quase todos descendem, e parecem que amam a mesma
independência selvagem”.178

A descrição do presidente se assemelha bastante ao que sempre se disse dos índios


desde o início do século XIX, como já vimos em outros momentos desta tese. Mais do que a
convivência com os outros rebeldes, percebemos que a cultura indígena fazia parte da origem
de parcela considerável dos amotinados das Frexeiras. Entretanto, a união entre mestiços,
negros escravos e índios extrapolava a semelhança de hábitos: ainda que esta pudesse facilitar

177
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 192.
178
De Francisco de Souza Martins a Francisco Ramiro de Assis Coelho. Vila Viçosa, 20 de junho de 1840.
Apud: NOGUEIRA, Paulino. Presidentes do Ceará, p. 31-33. Salvo indicação em contrário, as citações nos
próximos parágrafos pertencem a esse documento.
323

suas relações, o que os agregava eram os objetivos em comum e a mesma situação de


subalternidade.
Além disso, as necessidades bélicas no enfrentamento das tropas governamentais
faziam com que adaptassem táticas de guerrilha semelhantes às dos índios, somando-as a
outros recursos mais efetivos. Segundo Martins, os rebeldes faziam “exercícios de armas que
têm aprendido de alguns soldados desertores ou prisioneiros, mas quase nenhuma disciplina e
subordinação conservam dos chefes”. Sua guerra era de emboscada, utilizando-se de trilhas
nas matas ao lado das estradas, trincheiras de pedra e “numerosos espias pelas estradas e
lugares, onde existem destacamentos de nossas tropas, o que lhes é fácil conseguir por meio
de outros pobres moradores desses sítios, os quais todos têm com eles relações mais ou menos
simpáticas”. Nunca faziam enfrentamento em campo raso, atacando as tropas em caminhos
cobertos de mato. Quando descarregavam sua munição, “somem-se de corrida pelo interior
das matas, e raras vezes acontecem que alguns sejam apanhados”.
A descrição reforça o argumento de que o grupo de Frexeiras, assim como outros
focos de atuação dos revoltosos, era multiétnico, como bem observou Jofre Vieira. 179 Os
índios de Viçosa, portanto, eram percebidos pelos observadores dos governos provinciais
como elementos importantes da atuação rebelde. A Balaiada agregou elementos diferentes,
vindos de uma sociedade diversificada e igualmente insatisfeitos, desde soldados desertores
até espiões facilmente aliciáveis. Os recrutamentos, estopim do movimento, atingiam a todos,
mas compunham um contexto de exploração e controle social muito mais complexo.
Martins também tomou conhecimento de que os rebeldes rezavam o terço todas as
noites, fato que o induziu a supor que o envio de missionários poderia “sem custo conseguir
que eles largassem as armas e se submetessem à autoridade. Lembra-me que n’outro tempo
assim se praticava com os indígenas, de quem os atuais inimigos pouco diferem”. Os
insurrectos declaravam ainda

“obedecer à S. M. o Imperador, e fazer guerra aos cabanos, que querem governar em


nome do mesmo Augusto Senhor. Mostram-se muito pertinazes em não se
sujeitarem, preferindo antes viver sob as armas, foragidos pelas brenhas [...] do que
se submeterem ao jugo da autoridade legal”.

Aqui as demandas dos rebeldes são mais evidentes. O movimento não somente lutava
“contra algo”, mas também a favor de reivindicações que transformassem a realidade que
viviam, contradizendo parte da historiografia. Maria Amélia de Oliveira, por exemplo,

179
VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes, p. 106.
324

classificou a Balaiada como um movimento pré-político, “pois, mesmo que tenha alcançado
graus inusitados de violência e de mobilização popular, foi incapaz de articular um projeto
político como uma alternativa às formas vigentes de dominação”. 180 Para Claudete Dias, "a
massa popular analfabeta e rude está apta para lutar e escolher seus líderes, mas não para
governar". Por isso que, na Balaiada, "os índios, os escravos, os sertanejos pobres não
souberam formular suas ideias, mas, na prática, agiram em sua defesa".181 Comprando o ponto
de vista dos contrarrevolucionários, presente na maior parte da documentação, as autoras
duvidaram da capacidade das pessoas que estudavam. Como se fossem limitados mental e
politicamente, os pobres só poderiam, para elas, agir pelo uso da força.
Talvez por conta do período e contexto acadêmico em que escreveram, Oliveira e Dias
não questionaram as fontes a partir da origem social de seus autores. Estes nem sempre
entendiam – ou não procuravam entender – as culturas e reivindicações políticas dessa
população, como mostra a caracterização de “indisciplina” a respeito da maneira como
lidavam com seus chefes. Para avançar na investigação, não é possível afirmar a não
existência de ideias e projetos: ao contrário, é necessário examinar “a contrapelo” os
documentos produzidos pelos governantes acerca dos revoltosos. No caso aqui analisado,
diferente de outros grupos envolvidos na Balaiada,182 não encontrei registros escritos dos
índios de Viçosa. Entretanto, é possível entrever suas ambições a partir das alianças que
faziam e de seus referenciais na luta. Bem mais do que agir exclusivamente motivados por
suas insatisfações – que não eram poucas e nem banais – os índios também compactuavam
com exigências relativas ao fim das diferenças sociais. O Brasil ainda guardava uma série de
características da sociedade do Antigo Regime, mas as garantias indígenas de quando eram
vassalos portugueses passaram a ser usurpadas com muito mais violência por uma elite que,
além de dona da terra, ocupara os cargos da administração pública. Como vimos ao longo
deste trabalho, a “cidadania” – condição jurídica, mas nem sempre efetiva – lhes trouxera
muito mais prejuízos do que benefícios.
Ressaltando sua fé católica e sua fidelidade ao rei, os amotinados de Frexeiras tinham
pautas muito semelhantes ao que Mathias Assunção encontrou em escritos rebeldes
apreendidos no Maranhão. Estes davam vivas à religião católica, ao imperador, à carta magna

180
OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 15.
181
DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada, p. 82-83. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do
século XIX, p. 211. Contraditoriamente, a autora diz se amparar na história social para analisar o movimento. Cf.
DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaiada, p. 77. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século
XIX, p. 201.
182
Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 21. ASSUNÇÃO, Matthias
Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”, p. 306.
325

do país e às tropas bem-te-vis, opondo-se aos cabanos que estariam “se aproveitando da tenra
idade de dom Pedro para infringir a Constituição e oprimir ‘os povos’”. Segundo Assunção, a
“ênfase na religião católica era complementada pela acusação de que os cabanos formavam
sociedades secretas”, expressando a desconfiança da maçonaria.183 Apesar do presidente
Martins não fazer referência a direitos constitucionais sobre as reivindicações dos de
Frexeiras, estes também lutavam para fosse respeitada sua cidadania.
Há nos anseios dos rebeldes muitos elementos da cultura política dos índios que
sempre se portaram como devotos católicos e fieis vassalos. Apesar do curto período de
adesão aos liberais do Ceará, os indígenas de Viçosa terminaram a Confederação do Equador
perseguindo os chamados “patriotas”, vindos de uma elite proprietária e exploradora. Dom
Pedro I voltara a proteger os índios da ambição dos poderes locais, mas as pressões para sua
abdicação criaram uma conjuntura política de crescente privação do exercício da cidadania
por parte da população pobre e, principalmente, não-branca. No que dizia respeito aos índios,
o retorno da centralização do poder na figura de um rei – que estaria submetido a
aproveitadores – poderia fazer com que recuperassem o que haviam pedido com a partida do
imperador. Ou seja, ao contrário do que argumentou Maria Amélia Oliveira, havia demandas
políticas efetivas por parte dos rebeldes que pretendiam transformar a situação de dominação
em que viviam a partir do respeito à sua condição de cidadãos, que só seria possível por meio
da defesa do rei. Diferente do que afirma Claudete Dias, os índios de Viçosa amotinados em
Frexeiras formularam ideias e lutaram por elas, buscando a melhoria de sua realidade e
baseados nas memórias de quando governavam sua vila.
As características guerreiras dos índios – atuando por emboscada, sem chefias
definidas, locomovendo-se facilmente nas matas – foram de suma importância para a
resistência e ação do movimento. Apesar da ofensiva promovida pelas forças dos governos
provinciais em 22 de junho, os rebeldes conseguiram se deslocar das Frexeiras e contra-atacar
a Ibiapaba, de onde muitos índios “haviam desertado dos arrabaldes para se unirem [...] aos
rebeldes”. No dia 1º de julho invadiram São Pedro, “onde assassinaram a seis ou sete pessoas,
roubaram e queimaram as casas” e de lá desceram para o Ipu, matando um homem e roubando
algumas casas. Em seguida subiram novamente a serra e atacaram São Benedito, onde
enfrentaram paisanos liderados por Luis José de Miranda, “chefe índio da povoação”, e
guardas nacionais. Após intenso combate, os insurrectos apossaram-se do lugar e “largaram
fogo às casas”. No dia 12 as tropas de Ceará “atacaram os rebeldes fortificados no lugar do

183
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o
Imperador”, p. 306-309.
326

Buriti”, próximo à Vila Viçosa, “onde haviam feito fossos transversais na estrada, erriçados
de espinhos por dentro, e por cima cobertos por folha de palmeira e terra”. Com a ofensiva, os
revoltosos foram “desalojados, deixando quatro mortos vistos, além de outros que se supõem
terem morrido”, contra um soldado do governo morto. De lá, se reuniram novamente em
Japitaraca, termo de Vila Viçosa. De acordo com o presidente Martins, “como estes lugares
ficam sobre a chapada da Serra Grande cobertas de densas e vastas matas, e estes rebeldes são
em parte dos mesmos índios habitadores das povoações mencionadas, que conhecem todas as
veredas e esconderijos”, era preciso que as explorações militares do governo durassem mais
tempo.184
As ações violentas imputadas aos revoltosos estão presentes em toda a documentação
referente ao movimento em cada uma das províncias como também em de grande parte da
historiografia tradicional. Sem negar que tais atos realmente ocorreram, há de se considerar
que, muitas vezes, tratavam-se de respostas a situações tanto vividas historicamente por essas
populações contra a exploração quanto localizadas no decorrer dos embates.185 No caso
acima, a incursão dos índios rebeldes por sua região de origem – e que era cada vez menos
sua – indica, pelo menos, duas relações conflitosas. Em primeiro lugar, seu trânsito pela
Ibiapaba foi um contra-ataque às “autoridades locais” que combatiam por conta da ofensiva
que haviam sofrido em Frexeiras. Em segundo, os assassinatos e as queimas de casas tinham
íntima relação com a atuação do índio Luis José de Miranda, o capitão de São Benedito sobre
quem refletimos no capítulo 5. Eles e seus paisanos representavam uma parcela
provavelmente significativa da população indígena da Ibiapaba que não apoiava a revolta,
trabalhava em obediência ao governo do Ceará e, por isso, foi atingida pela represália rebelde.
Era clara a heterogeneidade de posicionamentos entre os índios da Ibiapaba.
Semelhante ao que se vivenciara durante a expulsão do padre Felipe Benício em 1822, havia
em 1840 índios contrários aos mais radicais e dispostos a manter a ordem governamental,
ainda que seja difícil conhecer as motivações dos “paisanos” de Miranda. O capitão, em
contrapartida, provavelmente percebia as vantagens pessoais e prestigiosas que receberia com
o sucesso da repressão, opondo-se a grupos que, como afirmou o presidente, não eram
subordinados aos próprios chefes. Apesar da obstinação dos revoltosos e de suas vantagens na
guerrilha, a utilidade da corporação de São Benedito cresceu ainda mais após os embates de

184
De Francisco de Souza Martins a Luís Alves de Lima. Fortaleza, 24 de julho de 1840. AN, AA, IJJ9 174. De
Francisco de Souza Martins a José Paulino Soares de Souza. Fortaleza, 27 de julho de 1840. Apud: NOGUEIRA,
Paulino. Presidentes do Ceará, p. 42-43.
185
Cf. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 190-
194.
327

julho, tanto pelo fortalecimento das forças contrarrevolucionárias quanto pela chegada da
notícia da maioridade de dom Pedro II.

Amor ao soberano e adesão ao seu governo

O relatório do presidente do Ceará Francisco de Souza Martins, de agosto de 1840,


descreveu o que ocorrera até o fim do mês de julho com os adeptos da Balaiada na província.
Tratou das ofensivas e reforços recebidos pelo governo, das táticas de guerrilha dos rebeldes,
da colaboração do índio Luis José de Miranda e do confronto no Buriti.186 Mas, diferente de
comunicações anteriores, propôs uma explicação para a adesão de parte dos indígenas da
Ibiapaba ao movimento. Segundo ele, os índios se revoltaram como consequência das leis que
os excluíram “de todos os empregos públicos”, por serem “sempre lesados em seus contratos”
e pela degradação de sua “posição social”. Suspirando pelo “antigo regime”, as 60 famílias de
São Pedro se dispuseram a “tomar partido na rebelião, [...] abandonando suas casas e
lavouras, das quais algumas se achavam em estado esperançoso. Julgo que, por análogas
razões, eles aliaram com os partidos rebeldes no Maranhão e no Pará”.187
Ter lavouras produtivas não era o suficiente para uma população a cada dia mais
explorada e que via suas prerrogativas serem abolidas: degradava-se sua posição social e
política e nem sequer se concretizava seu direito à cidadania. Não adiantava ter colheitas
fartas se suas terras eram gradativamente usurpadas e se eram abusados como mão-de-obra
dos proprietários. Ainda que percebesse não faltarem razões para os índios se revoltarem, o
presidente não esclarece quais os possíveis objetivos dos insurrectos: novamente, fala-se do
contra o que lutavam, mas obscurece-se o a favor de que. Mathias Assunção vê muitas
semelhanças entre o ideário dos bem-te-vis e as revoltas camponesas do Antigo Regime no
mundo atlântico, que acatavam a “autoridade central do monarca” ao mesmo tempo em que
pediam a “remoção das autoridades locais”. A diferença era que os primeiros “também
invocavam o princípio da soberania popular e de cidadania”, ultrapassando, portanto, as
intenções dos camponeses.188 De maneira semelhante, o mesmo ocorria com os índios
insurrectos da Ibiapaba: sua cultura política agregava as expectativas de períodos anteriores

186
MARTINS, Francisco de Souza. Relatório que apresentou o Exm. Sr. Doutor Francisco de Souza
Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia legislativa provincial no dia 1º
de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional, 1840, p. 6-7.
187
Ibid., p. 12.
188
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 186.
328

de usufruir de sua condição de cidadãos. Apesar da aparente contradição, “suspirar pelo


antigo regime” não os impedia de defender a Constituição e o imperador.
Mas, se a luta dos rebeldes era para que dom Pedro II assumisse definitivamente o
trono, sem a interferência de regentes e livre para defender os direitos constitucionais do
povo, os rumos do movimento mudaram com a chegada, em agosto, das notícias da
antecipação de sua maioridade. O “golpe” – conduzido sem votação no Legislativo – foi,
segundo Marco Morel, “uma solução ansiada por grupos dirigentes que, assim, buscavam
retomar a coesão perdida” e a “restauração da plenitude monárquica”.189 O fato era também
esperado pelas classes populares e produziu, inclusive, “perplexidade entre os rebeldes”. De
acordo com Mathias Assunção, a mudança no cenário nacional levou muitos bem-te-vis a
reavaliar a situação. Para a segunda metade de 1840 o autor percebeu uma “nítida mudança de
tom nas cartas rebeldes”, por meio das quais vários consideravam abandonar o movimento ou
até mesmo mudar de lado.
Com o governo dos regentes chegando ao fim, o aferro dos combatentes perdia o
sentido, principalmente após o anúncio de anistia aos que se rendessem também em agosto.190
No Ceará isso é perceptível pela escassez de registros sobre os conflitos no segundo semestre
de 1840. Em referência aos índios, encontrei apenas um ofício do ministro da Justiça Antônio
Paulino Limpo de Abreu ao novo vice-presidente do Ceará do mês de outubro. Segundo o
ministro, já que os revoltosos diziam “obedecer à S. M. o Imperador, e fazer guerra aos que
em Seu Augusto Nome governavam”, era necessário comunicar-lhes a declaração da
maioridade do rei e que ele já governava “na forma da Constituição”. Abreu também
recomendou que fossem informados de que um dos primeiros atos do soberano havia sido
“perdoar a todos os seus súditos que a essa ocasião tenham cometido crimes políticos e
estavam compreendidos neste indulto, uma vez que [depusessem] as armas”.191
Mais uma vez a figura do monarca apresentava-se aos índios como um benfeitor
generoso, mas o destaque do ministro para o funcionamento “constitucional” do governo de
dom Pedro II revela a importância desta contrapartida para os rebeldes. O perdão aos
indígenas mediante a deposição das armas, portanto, passava a ser viável porque seu estatuto
de cidadãos podia ser respeitado e efetivado. Suas ações armadas, entretanto, não deixaram de
ser consideradas criminosas por terem desrespeitado as autoridades constituídas, mesmo

189
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 68.
190
Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 23. DIAS, Claudete Maria
Miranda. Balaiada, p. 74. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 203.
191
De Antônio Paulino Limpo de Abreu ao vice-presidente do Ceará. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1840.
APEC, MN, MJ, livro 38.
329

anistiadas por um imperador benévolo. Menos explícita no texto de Abreu é a consciência do


governo central de que, sem a antecipação da maioridade, nem a Balaiada ou outras revoltas
do período poderiam ser controladas.
O segundo semestre de 1840 seguiu com poucas referências aos índios insurgentes em
território cearense, indicando que muitos possivelmente cederam às propostas do governo
central diante das mudanças no cenário político nacional. Entretanto, novos conflitos
estouraram no final deste ano. Em dezembro de 1840 já circulavam notícias de um “princípio
de revolta no Ceará”, o que poderia, segundo o presidente do Maranhão Luis Alves de Lima
(o futuro duque de Caxias), “reanimar o espírito da revolta nesta província, onde os
habituados à rapina estão sempre prontos a seguir a quem a isto os conduza”.192
Lima repetiu dois argumentos comuns utilizados pelos governos provinciais à época: o
caráter criminoso da ação dos insurgentes e a fácil cooptação de uma população mentalmente
incapaz. O presidente não procurou refletir, contudo, quais seriam os motivos para que os
habitantes da Ibiapaba voltassem às manifestações violentas. No Piauí e no Maranhão a luta
continuara após a anistia de agosto de 1840, muito por conta dos soldados que desertavam das
tropas legais pelas péssimas condições em que viviam. Com o fechamento do cerco em
diferentes regiões destas províncias e o recrudescimento da violência, em janeiro de 1841 já
era anunciado o fim da Balaiada em seus territórios.193 Segundo Mathias Assunção, apesar
dos apelos dos insurrectos para que houvesse um cessar-fogo, “na sua última fase a guerra
assumiu proporções de genocídio da população ‘cabocla’ por parte das forças da legalidade”.
Mas “por que o núcleo duro dos rebeldes não se entregou”?194
Assunção acredita que muitos eram conscientes de que a “aproximação com os
escravos punha ainda mais entraves a um perdão por parte da legalidade”. 195 A convivência
com cativos fugidos também ocorrera nas Frexeiras, mas parece não ter impedido que a
anistia prometida aos índios tivesse ocorrido com aparente tranquilidade até, pelo menos,
dezembro de 1840.
Em fevereiro de 1841, o então presidente do Ceará José Martiniano de Alencar –
novamente à frente do governo – comunicou a Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque
a presença na província dos líderes rebeldes Domingo Ferreira de Veras e o preto Antônio de

192
De Luís Alves de Lima e Silva a Francisco de Paula Cavalcante de Albuquerque. São Luís, 5 de janeiro de
1841. AN, OG, cód. 972, vol. 1, p. 26V-27.
193
Cf. OLIVEIRA, Maria Amélia Freitas Mendes de. A balaiada no Piauí, p. 23. DIAS, Claudete Maria
Miranda. Balaiada, p. 84. DIAS, Claudete Maria Miranda. Movimentos sociais do século XIX, p. 203.
194
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o
Imperador”, p. 319.
195
Ibid., p. 317-320.
330

Souza Cabral. Segundo Alencar, eles haviam sido responsáveis por reunir “as grandes forças
rebeldes no lugar Frexeiras”, que seria propriedade de Veras. Muitos revoltosos não haviam
se entregado há mais tempo “temendo que algumas atrocidades se praticassem contra eles, de
que infelizmente alguns exemplos houve, dados por oficiais das forças da legalidade”. O
presidente julgava justa a compaixão do imperador com os insurrectos, já que haviam lutado
em seu nome. O “pensamento político único” dos insurgentes era

“um expressivo amor à sagrada pessoa do soberano e muita adesão a seu governo,
como composto dos homens que trabalharam pela sua maioridade, pois dizem eles
que quando pegaram em armas foi só para fazer com que S. M. I. subisse ao trono,
persuadidos brigavam contra o partido que se opunha a que o imperador entrasse no
governo do Estado. A alguns ouvi dizer que se achavam pagos de todas as fadigas e
inconvenientes por que haviam passado, uma vez que viam a seu monarca no trono,
único alvo a que se dirigiam seus esforços”

O próprio preto Cabral, natural do Maranhão, confidenciara a Alencar que desejava


“lançar-se aos pés de S. M. I. e ter o gosto de ver ao seu soberano por quem, diz[ia] ele, tantas
vezes arrisc[ara] sua vida”. Na visão do presidente, porém, sua presença no Ceará era
perigosa, “pois é inegável que no oeste desta província, onde [fora] o teatro de suas façanhas,
tem uma grande ascendência sobre os índios e a gente de sua cor”, de maneira que ainda
poderia reunir “muitos homens capazes de pegar em armas”.196
Alencar foi um dos únicos governantes a tratar por “pensamento político” o
posicionamento dos rebeldes, talvez por sua experiência com as classes populares durante as
revoltas liberais que protagonizara. O entendimento da postura dos insurrectos e o diálogo
travado com eles era também um reconhecimento que a nova ordem política nacional
interessava a todas as partes envolvidas, possibilitando reinstaurar a “paz provincial” de que
se orgulhara em seu mandato anterior. Sabia, entretanto, que ainda havia alguns entraves a
superar.
Índios e outros rebeldes viam com muita esperança o governo definitivo do imperador
de quem eram tão devotos: a aclamação de dom Pedro II representava a vitória de seu
movimento. Seus inimigos, contudo, não eram apenas os opositores à maioridade, mas
também os que contra eles agiram com violência. Um retorno da ação radical por parte dos
índios da Ibiapaba era algo iminente na visão de Alencar, especialmente por conta do que
haviam sofrido e do que ainda poderiam sofrer. A precaução do presidente em livrar os

196
Segundo José Martiniano de Alencar, Antônio de Souza Cabral embarcara com destino à Corte “por sua
muito livre vontade como passageiro do Estado no vapor São Sebastião”. Cf. De José Martiniano de Alencar a
Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Fortaleza, 7 de fevereiro de 1841. APEC, GP, CO EX, livro 41,
p. 40-40V.
331

indígenas de possíveis “más influências”, portanto, não teria muita serventia se fosse
executada sem atentar para a convivência com outros setores mais abastados e para outras
demandas presentes desde o início do movimento.
Em julho de 1841, o juiz de Parnaíba José Gomes de Araújo alertou o então presidente
do Ceará José Joaquim Coelho acerca de uma “porção de rebeldes da província do Maranhão”
que teriam sido “acossados pelas autoridades daquela província, ou recrutamento, ou por
andarem amoambados [sic] sem se apresentarem por gozarem da anistia que tão
caridosamente lhe concedeu o nosso amável monarca”. Os fugitivos estariam se refugiando
em Viçosa, São Pedro e outras imediações da fronteira do Ceará com o Piauí, e estariam
atacando legalistas. Para o juiz, caso aparecesse um “malvado que os influa e dirija, eles
estarão prontos a entrarem novamente na vida” de insurreição.197
Os temores dos antigos revoltosos continuavam já que, diante das violências, a
“caridade” do soberano pouco lhes servia. Por mais que declarassem que o trono imperial era
a única razão pela qual lutavam, este deveria representar, na prática, um amparo contra os
abusos de seus verdadeiros inimigos: as autoridades locais. Mas, se tal proteção não fosse
efetiva, as razões para a insatisfação poderiam vir novamente à tona. Segundo Mathias
Assunção, a vitória das tropas da legalidade e a “pacificação” do Maranhão e do Piauí foi, na
verdade, uma “paz de cemitério”.198 Como lembra Marco Morel, em 18 de julho ocorreu a
pomposa coroação de dom Pedro II no Rio de Janeiro. “Ao mesmo tempo, a cerca de três mil
quilômetros dali, o coronel Luís Alves de Lima e Silva erguia a espada do Império contra os
rebeldes da Balaiada, em sua maioria escravos, índios e pobres livres. Os caminhos da nação
ainda seriam árduos”.199
Tal futuro tenebroso também era sentido pelos pobres do Ceará. As notícias que
receberam dos refugiados do Maranhão não eram necessárias para que alguns habitantes da
Ibiapaba se indignassem mais uma vez. A tão esperada posse do trono imperial por dom
Pedro II não impediu que os recrutamentos, estopim para o início da Balaiada, voltassem a ser
utilizados pelos governos provinciais, como revelou o juiz de Parnaíba. Também em julho de
1841 o presidente Coelho recebeu notícias sobre movimentações de “grupos de índios
existentes na serra, principalmente nas matas do Buriti”.200 Em agosto, ordenou ao major
Joaquim Ribeiro da Silva que retomasse as conscrições que haviam sido suspensas na

197
De José Gomes de Araújo a José Joaquim Coelho. Parnaíba, 14 de julho de 1841. Apud: DOCUMENTOS
sobre a Balaiada, p. 262.
198
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 194.
199
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 69.
200
De José Joaquim Coelho à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 22 de julho de 1841. APEC, GP, CO EX, livro
48, p. 139V.
332

Ibiapaba. Entre os índios do Buriti, que fizesse o recrutamento “com toda a aparência de
justiça, prendendo, sobretudo, os que vivem ociosos, afim de não se persuadirem que lhes faz
guerra em massa e por seus anteriores crimes no Maranhão e no Piauí”. O objetivo do
presidente era que, gradativamente, fosse “desaparecendo daí essa gente avezada aos
atentados que já ameaçou a tranquilidade dessa comarca, e pode para o futuro voltar a
incomodar-nos”.201
Terminada a revolta e coroado o imperador, as políticas de controle social no início da
década de 1840 voltaram a ser as mesmas utilizadas no decênio anterior, destruindo a
esperança de muitos pobres livres. As ações orquestradas por Coelho se assemelhavam
bastante com o que Vânia Moreira apontou para os recrutamentos no Espírito Santo a partir
dos anos 1830 e que continuaram em meados do século XIX.202 Mas na Ibiapaba pós-
Balaiada, além do combate aos vadios – ou seja, à população pobre não produtora de
excedentes agrícolas –, a presidência pretendia evitar o risco de novos distúrbios, destinando
os índios às forças armadas. O que Coelho não percebia é que não havia como executar
recrutamentos de forma tranquila, muito menos aparentando justiça, e que era justamente
contra esta prática que os índios haviam se revoltado.
O resultado das ações do governo provincial foi previsível. Em seu relatório
apresentado à Assembleia provincial em setembro de 1841, o presidente Coelho contou que
“alguns índios do Buriti, urdidos pelo temor do recrutamento a que tenho mandado proceder,
em virtude de ordens mui positivas que recebi da Corte, reuniram-se em magotes armados em
rumo de Vila Viçosa, mas foram logo dispersos”.203 A reação violenta dos recrutados já não
tinha a mesma dimensão de anos anteriores, talvez por ter sido executada de maneira mais
cuidadosa, mas, certamente, porque aí contava com o amparo da Corte, governada pelo
próprio imperador.
A dispersão a que se referiu Coelho não era suficiente. Em 8 de outubro de 1841, o
próprio presidente respondeu a câmara de Vila Nova (atual Guaraciaba do Norte) sobre o
temor da povoação ser “invadida pelos magotes de índios, outrora rebeldes no Maranhão e no
Piauí”, e que neste período “infesta[vam] a vizinhança”. Para batê-los, remeteu apenas 10
praças, acreditando que “esta pequena força” poderia “intimidar os malvados” e “neutralizar-

201
De José Joaquim Coelho a Joaquim Ribeiro da Silva. Fortaleza, 11 de agosto de 1841. APEC, GP, CO EX,
livro 48, p. 171V.
202
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Caboclismo, vadiagem e recrutamento militar entre as populações
indígenas no Espírito Santo (1822-1875). Diálogos Latinoamericanos, n. 11, 2006, p. 111-118.
203
COELHO, José Joaquim. Relatório recitado pelo Ex.º Senhor Brigadeiro José Joaquim Coelho,
presidente e comandante das armas da província do Ceará, na abertura da Assembleia Legislativa
Provincial, no dia 10 de setembro de 1841. Recife: Typographia Santos e Companhia. 1842.
333

lhes as más intenções”.204 A Alexandre Mourão, que lideraria este destacamento, ordenou que
defendesse a vila “de qualquer agressão dos índios que do Piauí e do Maranhão emigraram
para essas imediações”. Seu objetivo seria “capturar o maior número deles para recrutas”,
conduzindo a ação “com toda a moderação, prudência e tolerância”.205
Na verdade, os índios do Buriti não eram “do Maranhão e Piauí”. Vinham das
Frexeiras, próxima à fronteira destas províncias com a do Ceará. Como era comum acontecer,
dificilmente a “moderação” seria seguida à risca por Mourão, ainda mais sabendo que o grupo
havia praticado os atos tidos por “criminosos”. Os índios não ofereciam grandes preocupações
para o governo porque eram poucos, mas não podiam deixar de ser recrutados, destino
daqueles desprovidos de “importância” socioeconômica, para que se evitasse qualquer futura
turbulência. Como vimos, chegaram de fato a ameaçar uma marcha para Viçosa – talvez
visando recuperar um espaço que já havia sido deles – mas fugiram por cerca de 80
quilômetros até as imediações de Vila Nova. Como notou Maico Xavier, utilizaram-se de
recurso recorrente para se livrarem do recrutamento,206 presente, inclusive, na memória de
muitos remanescentes do “tempo do pega” entrevistados por Mathias Assunção.207
Os índios não puderam escapar por muito tempo, como vimos no capítulo 5, pois
foram recrutados para a Armada imperial e remetidos para a Corte em 1842, acompanhados
de seu líder, Antônio Marques da Costa. Segundo o presidente Coelho, Costa era o “chefe da
rebelião do Buriti”, comandara “os índios em São Pedro quando fizeram sete mortes”, estivera
no “fogo de Mumbaba” e seduzira “os índios de Tapera Acima”. 208 Presos na condição de
criminosos, o destino nas forças armadas para aqueles que lutavam contra os recrutamentos
forçados parecia uma ironia, como observou Silvana Jeha.209 Representava, entretanto, as
condições por meio das quais se construiu a cidadania brasileira a partir da consolidação do
Estado nacional.

204
De José Joaquim Coelho à câmara de Vila Nova. Fortaleza, 8 de outubro de 1841. APEC, GP, CO EX, livro
49, p. 112V.
205
De José Joaquim Coelho a Alexandre da Silva Mourão. Fortaleza, 8 de outubro de 1841. APEC, GP, CO EX,
livro 49, p. 113.
206
XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social, p. 160.
207
ASSUNÇÃO, Matthias Röhring. Balaiada e resistência camponesa no Maranhão (1838-1841), p. 178-181.
208
De José Joaquim Coelho. Fortaleza, 1842. AN, XM 14. Apud: JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar:
indígenas na Armada Nacional e Imperial do Brasil. Anais do VI Encontro Estadual de História –
ANPUH/BA, 2013, p. 2.
209
JEHA, Silvana Cassab. Caboclos do mar, p. 2.
334

Mapa 8: Locais de atuação dos índios do Ceará na Balaiada

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Piauí disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Piauí

*
* *

Ao longo deste capítulo, analisamos a atuação dos índios no Ceará em três momentos
temporalmente bastante próximos, mas, muito distintos. Pudemos perceber que o recurso das
armas era uma importante forma de manifestação política da população indígena desde o
período colonial e atravessou a separação política brasileira. A característica comum de defesa
da Coroa – de Portugal ou do Brasil – presente no posicionamento das diferentes
comunidades e lideranças indígenas poderia até encontrar variações em meio à
heterogeneidade dos e entre os grupos. Contudo, a fidelidade às monarquias era patente para a
esmagadora maioria dos índios e em suas atuações armadas, porque a figura do rei sempre
havia representado proteção. A caracterização dos inimigos dos índios, apesar de
aparentemente confusa, agregava todos aqueles que ambicionavam a descentralização política
do soberano – fossem eles liberais, portugueses, corcundas, brancos ou “membros de famílias
importantes” – e, consequentemente, a usurpação das terras, força de trabalho e liberdade
indígena.
Tornar-se um cidadão que usufruísse plenamente de sua liberdade, para os índios,
transfigurou-se em “utopia” ou mera categoria jurídica. Em pleno período regencial, lutavam
com afinco pelo rei porque sua cultura política, com raízes plantadas no Antigo Regime, ainda
remetia à sociedade dividida em corpos equilibrados por uma cabeça real. Conheciam também
335

o novo momento constitucional que, com seus arcos e flechas, ajudaram a construir, e por isso
percebiam a si mesmos como merecedores das prerrogativas de cidadãos livres que a
Constituição lhes garantia. Mas as elites proprietárias se sobrepuseram, triunfando sobre a
antiga ambição colonial do mando quase ilimitado e a exclusão dos pobres da política ou do
exercício da cidadania. Como afirma Marco Morel, a

“engrenagem nacional centralizadora, modernizante e defensora da ordem social,


urdida por agentes históricos, incorpora e homogeneíza os multifacetados rebeldes,
não somente eliminando-os, mas também digerindo-os e assimilando os pedaços
partidos, na busca de uma nação próspera e desigual” 210

De “intrépidos e valorosos”, “fundamentais para a manutenção da ordem”, os antigos


soldados indígenas passaram a ser criminosos sujeitos ao recrutamento no país pelo qual
derramaram o sangue. No recém-nascido Brasil independente, “o arco e a flecha” deveria ser
apenas um brasão.

210
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840), p. 65-66.
336

CONCLUSÃO

O Diretório dos Índios e a Carta Régia de 1798 são dois marcos da política indigenista
lusitana na segunda metade do século XVIII que tiveram reflexos importantes nos oitocentos.
As duas leis visavam inserir os grupos indígenas ao corpo social português na condição de
vassalos livres. O Diretório, promulgado no reinado de dom José I e no ministério de Pombal,
continuou a ser utilizado no multifacetado reinado joanino, convivendo com ações mais
integradoras ou ofensivas, a depender da realidade de cada capitania. Seu utópico projeto de
inserção dos índios na sociedade colonial permaneceu como uma das vertentes do governo de
dom João VI, declarando-os livres, mas limitando a liberdade por meio da tutela, do trabalho
compulsório e da presença de extranaturais em suas vilas. Por isso, a pretensa igualdade dos
índios na sociedade portuguesa, ansiada pelo Diretório, nunca aconteceu.
Entretanto, no auge da crise do Antigo Regime, esta população era reconhecida como
importante pela Coroa e pelos seus fieis agentes administrativos na América. A função
econômica dos índios no Ceará não era a mesma dos que viviam no norte do Brasil, o que
explica, em parte, as diferenças na legislação vigente. A Carta Régia de 1798, que aboliu o
Diretório, podia ser observada em regiões que necessitavam dos índios não mais submetidos à
tutela e, portanto, que estivessem mais "livres" para atuar no povoamento de fronteiras
internas e na proteção das externas. No caso cearense, com poucas áreas a serem exploradas,
o Diretório era ideal para os anseios de desenvolvimento da lavoura algodoeira e de outras
culturas.
Havia outras razões para as distintas situações legais. No Ceará, os governadores do
início do século XIX enfatizavam a necessidade de se limitar a liberdade dos índios por conta
da dependência em relação à sua força de trabalho e por serem ainda “pouco civilizados”.
Percebemos nos exemplos analisados nos capítulos iniciais da tese que a política indigenista
muitas vezes traçava caminhos de acordo com a agência indígena, cujas prioridades
frequentemente destoavam do governo da capitania e da Coroa. Apesar de todas as proteções
contra eventuais abusos, a monarquia lusitana nunca atendeu aos anseios dos índios por maior
autonomia em suas vilas.
Além disso, militarmente, não havia dúvidas de que os indígenas eram imprescindíveis
para a defesa daqueles domínios, tanto pela força dos arcos e flechas quanto pela fidelidade
dos soldados indígenas. Desde o Diretório, as lideranças militares eram percebidas como
peças fundamentais para o estabelecimento dos desígnios da Coroa entre os índios. Em
337

contrapartida, os oficiais indígenas, amparados na lei, operacionalizavam o serviço das armas


para reivindicar benefícios para suas comunidades e manifestar seus posicionamentos diante
das transformações políticas pelas quais passaram o Ceará e o Brasil. A guerra e as patentes
eram importantes caminhos por meio dos quais as lideranças e seus subordinados lutavam, em
nome da Coroa, pela manutenção de suas prerrogativas.
Os índios conheciam bem a ambiguidade de sua condição, e era a partir dessas
nuances que agiam politicamente. Seus interesses muitas vezes se relacionavam a
reivindicações de mais autonomia, mas geralmente tinham a ver simplesmente com a
necessidade de garantir o respeito às mercês concedidas pela Coroa, registradas nas leis, como
retribuição aos históricos serviços das armas. A liberdade, a mais importante das
prerrogativas, nunca deixou de ser lembrada em todas as ações e solicitações e, por isso, dom
José I era frequentemente referido nas petições relativas a esse tema. Contudo, mesmo tendo
promulgado as leis de liberdade, este monarca instituiu o Diretório que, junto com
prerrogativas políticas, trouxe a presença de brancos nas vilas de índios e criou o cargo de
diretor. Por isso, a atuação política indígena, na grande maioria das vezes, não se dirigia
contra a monarquia, mas contra os “extranaturais”, que geralmente não respeitavam sua
condição de súditos livres e ou as patentes militares de suas lideranças.
Exemplos disso são os diversos pedidos dos índios para a abolição dos cargos de
diretor ou do próprio Diretório e de expulsão dos intrusos de suas terras, ao mesmo tempo em
que participavam obstinadamente de guerras em nome da Coroa lusitana. Ciente disso, os reis
davam os devidos retornos a vassalos tão dedicados, contanto que as medidas que
beneficiassem os indígenas não atrapalhassem seu disciplinamento e a produção econômica
da Colônia. Mesmo assim, era na monarquia que os índios viam proteção e reconhecimento, e
eram amparados em tais premissas que se manifestaram durante a separação política
brasileira. O liberalismo e o constitucionalismo português ameaçavam sua condição de vida,
na medida em que subordinavam o poder dos reis aos intentos das elites locais.
Com o Brasil independente, por meio de um processo no qual lutaram com seus arcos
e flechas, a posição da Coroa poderia ser garantida juntamente com suas prerrogativas. A
permanência do Diretório no Ceará durante o primeiro reinado, portanto, foi consequência da
relação de dom Pedro I com esta população reconhecidamente fiel e economicamente
importante. A manutenção da lei, neste sentido, significava a inviolabilidade de conquistas
adquiridas pelos índios desde, pelo menos, o reinado de dom José I e o ministério do marquês
de Pombal, como a posse das terras e cargos políticos. A Constituição de 1824, em si, não
alterava essa realidade. Por outro lado, o Diretório vigente era sinal tanto do período de
338

redefinições políticas quanto da operacionalização do sistema legislativo do Antigo Regime


nesse novo contexto liberal, em uma sociedade ainda corporativa.
O medo indígena de perda de direitos e prerrogativas se concretizou no período
regencial.1 Ainda que não tivessem sido atendidos inteiramente no que solicitavam durante o
período joanino, as perdas posteriores foram tamanhas que provocaram a nostalgia tantas
vezes expressada por eles. Pouco antes da abdicação, dom Pedro I promulgou a lei de 1828
que, em teoria, limitava o acesso dos índios aos cargos de câmara e abolia leis anteriores
referentes aos municípios, como era o caso do Diretório. Sofrendo pressões das elites locais, o
imperador deixou o trono para o seu filho. Foi neste contexto que as patentes de oficiais de
ordenanças foram extintas e que se decidiu abolir a antiga lei indigenista do século XVIII no
Ceará. Alguns anos depois, a serviço de proprietários carentes de mão-de-obra barata, o
legislativo cearense decidiu reativar o Diretório, sem, contudo, restaurar as prerrogativas
indígenas do tempo dos reis portugueses e nem fornecer mecanismos jurídicos realmente
comprometidos com a manutenção do pouco que lhes restava.
Vimos, portanto, que a permanência do Diretório no Brasil tinha motivações
diferentes, a depender da época ou da região. No Ceará do período joanino, a vigência da lei
fazia parte dos planos da Coroa, não destoando do funcionamento legislativo da monarquia
portuguesa. No primeiro reinado, tinha a ver, como disse acima, com a utilização de leis
antigas nesse novo contexto e com os interesses do rei em manter os benefícios indígenas e o
usufruto de sua mão-de-obra. O que se seguiu – a abolição e a posterior reativação – era
decorrente dos interesses das elites cearenses.
Para muitos índios do Ceará, o sentido da continuidade da vigência do Diretório
mudou com o tempo: no reinado de dom João VI, significava limitações à sua condição de
vassalos livres; no primeiro reinado, era sinônimo de um tempo bem mais favorável; em
1843, mais um mecanismo de exploração. Quando eram vassalos do rei de Portugal, a
reivindicação por respeito a suas terras e por uma liberdade efetiva e sem tutela aparecia até
mesmo em situações militares, seja por meio de requerimentos encabeçados por oficiais de
ordenanças ou quando lutavam em conflitos armados. Já como súditos de dom Pedro II,
queriam ser livres para ter, pelo menos, suas terras, uma cidadania na prática e uma igualdade
que não fosse apenas na lei.

1
A este respeito, é curioso o exemplo analisado por Francieli Marinato do capitão indígena Francisco José Pinto,
que teria morrido de desgosto em 1833 “pela pouca conta que dele se fazia em razão de ser índio”, mesmo sendo
cidadão. Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do
Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007,
p. 223.
339

Durante todas essas transformações, as atuações indígenas diante da legislação e pelas


armas se davam a partir da luta pela manutenção de suas prerrogativas, limadas com a
consolidação do Brasil independente. Na Confederação do Equador, os índios lutaram para
que seus inimigos não se apossassem definitivamente no poder; após o período regencial, isso
foi inevitável. Por conta de ardis legislativos, os indígenas viram sua nova condição de
cidadania se transformar gradativamente em algo que, na prática, poucas vezes se
concretizava. Perderam cargos políticos, patentes militares e proteção, tanto para suas terras
quanto contra a exploração de sua força de trabalho. A conjuntura de recrutamentos forçados
que culminou com a Balaiada era um exemplo de que ser cidadão não garantia que sua
liberdade seria respeitada.
A nostalgia dos índios da década de 1840 em relação ao Diretório e ao “rei velho” não
era mera ficção de sua memória nem tampouco esquecimento da exploração presente em suas
histórias. Ainda que a política joanina com os botocudos tenha sido marcada pela violência,
para as comunidades indígenas do Ceará a situação era bastante diferente, mesmo com os
gentios que habitavam esse território. A fidelidade que os índios efetivamente demonstravam
em relação a dom João VI estava baseada na mutualidade presente em suas culturas históricas
e políticas. Além disso, quando se referiam a algum monarca, geralmente iam até dom José I,
por meio de quem haviam garantido sua liberdade. Em cada um desses momentos, os
posicionamentos indígenas não se davam por puro apego à ideologia realista: eram frutos de
suas próprias experiências.
As expectativas de reciprocidade dos índios no Ceará em relação à Coroa estiveram
presentes em 1817 – concretizaram-se com a isenção de impostos em 1819 – e manifestaram-
se em todos os conflitos da primeira metade do século XIX. O curto período da Confederação
do Equador, em que as lideranças indígenas aderiram aos liberais, não anulou esta tendência:
em primeiro lugar, a deposição da figura do monarca não era, necessariamente, a intenção dos
combatentes. Em segundo, tal “exceção” só ocorreu porque, nesta conjuntura específica, o
apoio a Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras parecia ser o melhor caminho em prol da mais
cara das prerrogativas: o pleno respeito à condição de cidadãos livres. Já na Balaiada, a
coroação de dom Pedro II representou um trunfo para muitos combatentes e uma
possibilidade de alento diante das injustiças das autoridades.
As especificidades do Ceará – uma economia essencialmente agrícola com poucas
regiões a povoar, com elites locais em disputas e ambiciosas por terra e trabalho e uma
significativa população de índios e mestiços – podem iluminar a complexidade dos processos
de crise do Antigo Regime português e de formação do Estado nacional brasileiro, sem estar
340

necessariamente desvinculada de questões mais gerais. De igual forma, fornecem elementos


para conhecermos a construção política desses povos, por meio de suas experiências em lidar
com as leis e em guerrear por benefícios para suas comunidades.

*
* *

Passando aos dias de hoje, presenciamos no Brasil um contexto indígena marcado por
uma série de conquistas. Suas garantias constitucionais, enquanto cidadãos plurais, plenos em
direitos e capacidade e cuja organização social deve ser preservada, são relativamente
recentes.2 A partir da Constituição Federal de 1988, os paradigmas conceituais e jurídicos da
política indigenista se alteraram, extinguindo-se a figura da tutela e reconhecendo-se a
autonomia e os direitos dos povos indígenas do país.3 Em decorrência desse contexto, é
crescente o número de índios nas disputas eleitorais no Brasil, inclusive no estado do Ceará.4
Por outro lado, presencia-se a continuidade do pouco apoio no cenário político. Os índios
ainda lutam contra ameaças vindas de setores do Congresso Nacional que tentam criar
mecanismos legais para atentar contra a demarcação de suas terras.5
No que diz respeito aos territórios indígenas nas fronteiras do país, a questão da defesa
e da presença militar é especialmente sensível. Apesar da tensa relação com os índios ao
2
Cf. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, capítulo VIII (Dos índios), art. 231-232.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 3 de outubro
de 2013.
3
POLÍTICA indigenista no Brasil: avanços e desafios, p. 2. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/index.php/todos-presidencia/2901-politica-indigenista-no-brasil-avancos-e-desafios>.
Acesso: 11 de outubro de 2016. De acordo com o Programa de Promoção e Proteção dos Direitos dos Povos
Indígenas, o “conceito de proteção não implica em tutela, rejeitada pelo texto constitucional de 1988, e que
pressupunha uma incapacidade dos povos indígenas e uma natural condição assimétrica entre os superiores
capazes (os ocidentais tutores) e os incapazes (os indígenas tutelados). A "proteção" diz respeito, sim, à garantia
contemporânea de que os direitos dos povos indígenas não sejam violados por uma relação assimétrica de poder,
historicamente observada entre esses povos e a sociedade envolvente, implicando em graves ameaças à
integridade física e cultural dos índios e sobre suas terras tradicionalmente ocupadas”. Cf.. Ibid., p. 5.
4
Nas eleições municipais de 2016, o número de vereadores indígenas aumentou 30%. No Ceará foram eleitos
Weibe Tapeba, em Caucaia, Erivaldo Carvalho, em Barroquinha, e Vicentinho Potiguara, o mais votado de
Monsenhor Tabosa. Cf. CASTILHO, Alceu Luís. Número de vereadores indígenas aumenta 30%; PT e
PSDB elegem mais, outubro de 2016. Disponível em:
<http://outraspalavras.net/deolhonosruralistas/2016/10/05/pt-e-psdb-elegem-mais-vereadores-indigenas-pelo-
pais/>. Acesso em: 11 de outubro de 2016. Idem. Candidatos indígenas se elegem nas cinco regiões do país,
outubro de 2016. Disponível em: <http://outraspalavras.net/deolhonosruralistas/2016/10/03/norte-nordeste-
sudeste-e-centro-oeste-elegem-candidatos-indigenas/>. Acesso em: 11 de outubro de 2016.
5
Como é o caso da PEC 215, que pretende transferir ao poder legislativo – composto em grande parte por
latifundiários – a competência na demarcação de territórios de comunidades tradicionais. A Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil ainda luta pelo seu arquivamento. Cf. SOUZA, Oswaldo Braga de. PIRES, Victor.
“PEC 215 não é prioridade na minha agenda”, diz presidente da Câmara. Instituto Socioambiental, agosto de
2016. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pec-215-nao-e-
prioridade-na-minha-agenda-diz-presidente-da-camara>. Acesso em: 11 de outubro de 2016.
341

longo dos séculos XIX e XX,6 o exército promulgou diretrizes positivas nos últimos anos
acerca do relacionamento com as comunidades.7 É cada vez maior o número de índios nas
fileiras militares, tendo em vista sua importância na vigilância de regiões pouco povoadas da
Amazônia.8 Certamente, o debate sobre a presença de bases das forças armadas em terras
indígenas necessita de maior aprofundamento, atento às ocorrências de desrespeito à
autonomia e aos interesses dos índios9 e às dificuldades de seu acesso a cargos do oficialato.10
No fundo de todas as lutas indígenas – no exército, nas terras ou no Congresso
Nacional –, está o combate contra o desrespeito e a incompreensão sobre seu lugar na
sociedade brasileira. As motivações que impulsionaram essa pesquisa partiram da constatação
de que os povos indígenas são, ainda hoje, ilustres desconhecidos para muitas pessoas. Apesar
de tal distanciamento, são notáveis os avanços das pesquisas nas universidades e a presença
cada vez maior dos índios em espaços como a mídia e os meios de comunicação. Suas
associações cresceram em número e atuação, e novas lideranças surgiram 11 – como
professores, pesquisadores, políticos ou oficiais do exército12 –, resultantes de vitórias
conseguidas por seus movimentos nos últimos anos.
Em meio a esta conjuntura surgiram os incontáveis frutos da nova forma de analisar os
índios na história proposta, principalmente, pelo saudoso John Manuel Monteiro,13
possibilitando novas pesquisas e o nascimento de centros de estudos e investigação
espalhados pelo Brasil. Todavia, faz-se cada vez mais necessário que tais produções alcancem

6
Cf. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais. SILVA, Edson Hely. Xukuru: memórias e história
dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988. Tese (doutorado) – Universidade de Campinas,
2008. MÉLEGA, Roberta. Uma crônica da relação índios e militares na Cabeça do Cachorro. Disponível
em: <https://site-antigo.socioambiental.org/esp/indiosemilitares/robertamelega.htm>. Acesso em: 11 de outubro
de 2016. CAMPOS, André. Treinados pela PM, índios soldados reprimiam seus pares. Última Instância, 2013.
Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/64177/treinados+pela+pm+indios-
soldados+reprimiam+seus+pares.shtml>. Acesso em: 11 de outubro de 2016.
7
Cf. EXÉRCITO define diretrizes de relacionamento com os índios. Disponível em: <https://site-
antigo.socioambiental.org/noticias/nsa/detalhe?id=633>. Acesso em: 11 de outubro de 2016.
8
Cf. KAWAGUTI, Luís. Indígenas ajudam a defender fronteira do Brasil. BBC Brasil, agosto de 2012.
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/08/120815_militares_indios_lk.shtml>. Acesso
em: 11 de outubro de 2016.
9
Cf. RICARDO, Beto. SANTILLI, Márcio. Povos indígenas, fronteiras e militares no Estado democrático de
direito. Interesse Nacional, ano 1, n. 3, 2008.
10
Cf. KAWAGUTI, Luís. Prestígio e dinheiro atraem índios para a carreira militar. BBC Brasil, agosto de 2012.
Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/08/120815_soldado_indio_lk.shtml>. Acesso em: 11 de outubro
de 2016.
11
Cf. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Bons chefes, maus chefes, chefões: elementos de filosofia política
ameríndia. Revista de Antropologia (USP), v. 54, n. 02, 2011, p. 876.
12
Cf. FERRAZ, Ana. Primeira mulher indígena a se tornar oficial do exército brasileiro. Folha Militar, maio de
2012. Disponível em: <http://folhamilitar.com.br/2012/05/primeira-mulher-indigena-a-se-tornar-oficial-do-
exercito-brasileiro/>. Acesso em: 11 de outubro de 2016.
13
Talvez o exemplo mais importante seja o GT da Anpuh "Os Índios na História", criado em 2009 durante o
XXV Simpósio Nacional de História, em Fortaleza.
342

setores ainda resistentes na academia e atravessem os muros das universidades, chegando


tanto aos índios quanto aos não-índios. A busca por conhecer o passado indígena pode ser um
exercício de convivência e respeito em meio a um mundo tão intolerante, mas também um ato
de "olhar no espelho". Compostos de distanciamentos cruéis e esquecimentos convenientes
para alguns, "nós" e eles – esses índios de 200 anos atrás – compartilhamos muito mais
caminhos convergentes do que imaginamos. Falar dessas pessoas, cujos descendentes atuais
são vistos de maneira farsante e quase animalesca como "extintos", talvez seja um caminho
para que a tal "sociedade envolvente", o mundo majoritário dos "outros", responda à pergunta:
"quem somos nós”?
343

FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES ARQUIVÍSTICAS

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Fundo Conselho Ultramarino (CU), Série Brasil-Ceará (006)
Caixas 13 (documentos 745 e 769), 15 (documento 840), 17 (documento 946) e 24
(documento 1390)

Arquivo Nacional (AN)


Câmara de Messejana (8J)
Confederação do Equador (IN)
Caixa 742: pacotes 1, 4 e 5
Gazeta do Ceará (J040)
Ministério da Guerra (OG)
Códice 927: volume 1
Secretaria do Governo do Ceará (88)
Série Interior (AA)
Códices IJJ9 56, IJJ9 91, IJJ9 168, IJJ9 170, IJJ9 174, IJJ9 175-a, IJJ9 513, IJJ9 518,
IJJ9 576
Série Justiça (A1)
Códice IJ¹ 719
Série Marinha (XM)
Códice 14

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC)


Fundo Ministérios (MN)
Ministério da Guerra (MG): livro 99
Ministério do Império (MI): livros 89 e 310
Ministério da Justiça (MJ): livro 38
Ministério da Marinha (MM): livros 81 e 83
344

Fundo Governo da Capitania (GC)


Livros 15, 16, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 28, 30, 31, 32, 34, 48, 49, 61, 62, 65, 66, 67, 70,
72, 74, 93, 98, 101
Fundo Governo da Província (GP)
Atas da Junta do Governo Provisória (AJ)
Correspondências Expedidas (CO EX). Livros: 1, 2, 7, 13, 14, 19, 20, 25, 28, 40, 41,
48, 49, 52, 58, 62, 65, 66, 68
Fundo Câmaras Municipais (CM)
Câmara de Aquiraz: livros 28 e 29 e pacotilha 1835-1839
Câmara de Fortaleza: livros “sem número” (1813-1818) e 55
Câmara de Granja: pacotilhas 1843-1845 e 1843-1845
Câmara de Imperatriz: pacotilha 1843-1849
Câmara de Jardim: pacotilha 1840-1849
Câmara de Messejana: livros 58 e 59
Câmara de Monte-mor Novo: livro 54 (caixa 22)

Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI)


Série Independência (SI): livros 4, 7, “sem número” [correspondências recebidas],
“sem número” [ofícios do governador das armas]
Série Balaiada (SB): livros 6, 11, 12 e “sem número”

Biblioteca Nacional – Seção de Manuscritos (BN)


Códices: C-199, 14 / C-750, 29 / I-28, 8, 68 / I-28, 9, 13 / II-32, 23, 3 / II-32, 23, 63 /
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FONTES IMPRESSAS

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<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-16-12-agosto-1834-532609-
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Decreto nº 143 de 15 de março de 1842. Regula a execução da parte civil da lei nº 261 de 3 de
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2015.
Decreto n.º 285, de 24 de junho de 1843. Autoriza o governo para mandar vir da Itália
missionários capuchinhos, distribuí-los pelas províncias em missões; e concede seis loterias
para aquisição ou edificação de prédios, que sirvam de hospícios aos ditos missionários.
Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/18241899/decreto28524junho1843560688public
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exercícios de 1843-1844, e 1844-1845. Disponível em:
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acaooriginal83949pe.html>. Acesso em: 20 de agosto de 2015.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, capítulo VIII (Dos índios), art. 231-
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Acesso em: 3 de outubro de 2013.

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Legislativa Provincial, no dia 1º de agosto do corrente ano. Fortaleza: Tipografia
Constitucional, 1839.
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Souza Martins, presidente desta província, na ocasião da abertura da assembleia
legislativa provincial no dia 1º de agosto de 1840. Fortaleza, Tipografia Constitucional,
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Coelho, presidente e comandante das armas da província do Ceará, na abertura da
assembleia provincial, no dia 10 de setembro de 1841. Recife: Tipografia de Santos e
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