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Flannery O'Connor nasceu em Savannah,

Georgia, em 1925.
Católica devota, viveu a maior parte da sua vida
numa quinta em Milledgeville, onde fazia criação
de pavões e escrevia.
Foi autora de dois romances, Sangue Sábio e
O Céu É dos Violentos, e trinta e um contos, além de
inúmeras críticas e ensaios.
�ando morreu, aos 39 anos, a América perdeu
uma das suas maiores escritoras, no auge da sua
capacidade criativa.
Os seus contos completos, publicados postuma­
mente em 1971, foram galardoados com o
National Book Award de ficção.
Últimos Títulos Nesta Coleção:

186. Irene Némirovsky: O Baile


187. Irene Némirovsky: David Golder
188. Vladimir Nabokov: Rei, Dama, Valete
189. Vladimir Nabokov: Ada ou Ardor
190. Cormac McCarthy: A Travessia
191. Dalton Trevisan: O Vampiro de Curitiba
192. Dalton Trevisan: Novel.as nada Exemplares
193. Dalton Trevisan: A Polaquinha
194. Clarice Lispector: Um Sopro de Vida (Pulsações)
195. Junot Díaz: É assim Que A Perdes
196. Clarice Lispector: Laços de Família
197. Irene Némirovsky: O Vinho da Solidão
198. Denis Johnson: Anjos
199. Luigi Pirandello: O Falecido Mattia Pascal
200. Vladimir Nabokov: Riso na Escuridão
201. Dalton Trevisan: Guerra Conjugal
202. Dalton Trevisan: A Trombeta do Anjo Vingador
203. Vladimir Nabokov: A Verdadeira Vida de Sebastian Knight
204. Alice Munro: Amada Vida
205. Hjalmar Sõderberg: O fogo Sério
206. Vladimir Nabokov: Lolita
207. Michel Houellebecq: As Partícul.as Elementares
208. Vladimir Nabokov: Pnin
209. Cormac McCarthy: O Comelheiro
210. Kate Atkinson: Vida após Vida
211. A. M. Homes: Assim para Nós Haja Perdão
212. Jhumpa Lahiri: A Planície
213. Alice Munro: Vidas de Raparigas e Mulheres
214. Rachel Kushner: Os Lança-Chamas
215. Isaac Bábel: Contos e Diários
216. Hermann Broch: A Morte de Virgílio
217. Elena Ferrante: Crónicas do Mal de Amor
218. Margaret Atwood: Ressurgir
219. Katherine Anne Porter: A Torre Inclinada e Outros Contos
220. Nathan Filer: O Choque da Queda
221. Alice Munro: Falsos Segredos
222. Marguerite Duras: Moderato Cantabile
223. Marguerite Duras: Olhos Azuis Cabelo Preto
224. Saul Bellow: Agarra o Dia
225. Michel Houellebecq: Plataforma
226. Saul Bellow: Henderson, o Rei da Chuva
Um Diário de Preces
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© 2013 by the Mary Flannery O'Connor Charitable Trust

Título: Um Diário de Preces


Título original: A Prayer Journal (2013)
Autora: Flannery O'Connor
Tradução: Paulo Faria
Edição com prefácio de Pedro Mexia
Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

©Relógio D' Água Editores, setembro de 2014

O texto deste livro segue o novo Acordo Ortográfico (exceto o Prefácio).

As notas foram feitas a partir das do editor original.

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ISBN 978-989-641-433-7

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda..
Depósito Legal n.º: 379445/14
Flannery O' Connor

Um Diário de Preces

Prefácio de
Pedro Mexia

Tradução de
Paulo Faria

Obras de Flannery O' Connor


Índice

Prefácio: Preces Atendidas 9

Um Diário de Preces 15

Fac-Sírnile 51
Preces Atendidas

Escritora católica no Sul protestante,a ficcionista norte-ameri­


cana Flannery O'Connor estava numa situação privilegiada para
desvendar aquela espécie de «cristianismo enlouquecido» que a
rodeava. Do ponto de vista demográfico e sociológico, a Bible
belt dos estados sulistas ostentava uma fé omnipresente e às vezes
estridente, quando nãofandamentalista. Em termos doutrinais,as
noções católicas e evangélicas tinham um tronco comum mas di­
vergiam em noções essenciais, tanto básicas como sofisticadas.
E,além do mais,O'Connor não era apenas uma católica, ou uma
católica praticante: tinha uma sólida formação teórica, de Tomás
de Aquino e Romano Guardini, ou seja, o seu catolicismo não
resultava apenas da educação ou da convicção mas de um inces­
sante estudo, aliás notório nas dezenas de recensões que escreveu
sobre livros de teologia.
Quatro ensaios coligidos no volume Mystery and Manners
(1969) lembram por isso que um «escritor católico» não é um
apologeta,um ortodoxo,um autor piedoso ou reconfortante. Cer­
tos sectores católicos talvez prefiram uma mensagem «positiva»,
mais de adesão e pro paganda fide do que de problematização;
mas Flannery era uma tomista preocupada com o trabalho, com
o «fazer» («craft»), o que implicava experiências comunais,como
os cursos de escrita criativa, ou solitárias, como a vida de eremi­
ta,sem grande relação com o mundo que não fosse por carta. Foi
assim que, apesar da saúde frágil e da morte precoce, produziu
dois romances e duas colectâneas de contos centrais no cânone
americano, numerosos artigos e conferências, e a volumosa cor­
respondência reunida em The Habit of Being (1979).
No ensaio «The Church and the Fiction Writer», Flannery
O'Connor partiu de uma dupla, ou talvez tripla, definição, para
interrogar o que seja isso, um «escritor católico». Lembremos
que por meados do século havia autores mundialmente conheci­
dos, como François Mauriac, Evelyn Waugh ou Graham Greene,
que eram muitas vezes apresentados como «escritores católicos»,
sendo que quase todos se sentiam mais à vontade com a designa­
ção «católicos [que são] escritores», até porque o «catolicismo»
não esgotava a sua temática ou não correspondia a todas as fases
das respectivas obras romanescas. Nos Estados Unidos, o poeta
Robert Lowell, um dos dois ou três mais importantes do século
americano, começou por publicar livros de fôlego metafísico cris­
tão, embora as colectâneas subsequentes se tenham afastado to­
talmente dessa matriz. Ficcionistas católicos como J. F. Powers
ou Walker Percy tiveram alguma exposição mediática ou algum
sucesso de estima, mas havia quem achasse que tinham um inte­
resse diminuto para leitores não-crentes. «The Church and the
Fiction Writer» deixa claro que O'Connor recusa esse acantona­
mento da ficção católica, e que não lhe interessa pregar a conver­
tidos. Ela sabe que escreve, e que quer escrever, para protestantes
e agnósticos e ateus, os quais, diz, chegarão aos textos com ex­
pectativas e códigos de leitura que divergem bastante das inten­
ções originais da autora. O «escritor católico» ocupa por isso o
vértice de um triângulo: depara-se frequentemente com a incom­
preensão da Igreja, que condena certos textos como demasiado
subjectivistas, idiossincráticos, ou até perigosos; e tem de se de­
bater com a perplexidade ou a recusa do público não-crente, que
suspeita sempre do católico como criatura dogmática, paroquial,
edificante, catequética.
O'Connor defendeu por isso que um «escritor católico» sério
se preocupa acima de tudo com a observação, a especificidade, a
credibilidade, a verdade, não ignorando aquilo que parece super­
ficial e estereotipado, porque isso corresponde a uma manifesta-

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ção imediatamente visível e significativa da sociedade. Aquilo
que o escritor católico não deve fazer é separar a natureza da
Graça, o facto evidente do seu significado enigmático. Os confli­
tos que os romances e contos testemunham e reconstituem, tanto
os internos como os exteriores, são metafísicas mesmo quando
parecem naturalistas ou grotescos. A conhecida categoria a que
se chamou «grotesco sulista» agastava O'Connor,porque parecia
supor que só as vidas sulistas eram bizarras, talvez por causa do
ambiente religioso; ora o «grotesco»,isto é,o paradoxo, o humor
negro, a distorção, cumpriam na literatura uma fanção realista:
identificavam o mal, o fracasso, a falta, o pecado, se quisermos
dizer assim. E faziam-no de uma forma intensa, «exagerada»,
quase revoltante, e por isso insusceptível de indiferença, esse de­
feito teologal. O «grotesco» deixava nítido que o «dogma» cris­
tão é uma hipótese possível sobre o «mistério» da humanidade.
De modo que quanto mais dogmático mais enigmático, ou seja,
mais verdadeiro.
É extraordinário que o juvenil Um Diário de Preces dê conta
destes debates,bem como de algumas dúvidas,com uma determi­
nação precoce. Quando tinha 20 anos e estudava na Universida­
de de Iowa, onde frequentava o prestigiado Iowa Writer's
Workshop,O'Connor manteve um diário (Janeiro de 1946-Setembro
de 1947), umas dezenas defolhas manuscritas num austero cader­
no pautado. O texto integral fac-similado só viu a luz em 2013,
exumado dos papéis da escritora. Trata-se de um monólogo em
diálogo, um diário em forma de oração, oração em forma de diá­
rio,forma hzôrida e em interrogação constante.
O'Connor sentia que as orações tradicionais não lhe serviam,
talvez porque não eram diálogos. «Quem me saiba ensinar a
rezar», escreve ela, enquanto se dirige a Deus com exigências
temperamentais: «make me a mystic, immediatelr>* . É certo que
não há experiências sobrenaturais em Um Diário de Preces, mas
nota-se a conhecida impaciência dos místicos: a diarista queixa­
-se de que não sabe amar e de que não conhece a vontade de

*«faz de mim uma mística, imediatamente».

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Deus; não aceita uma crença de fundo sentimental; não quer
uma divindade à sua imagem e semelhança; diz que às vezes
mantém a fé apenas por preguiça; declara a sua própria medio­
cridade e indignidade; vacila entre a desesperança e a presun­
ção; acusa-se de pensamentos eróticos e de ser tão «estúpida»
como as pessoas que ridiculariza; pede que Deus a ajude a ser
uma escritora a sério, e além do mais «santa de um modo inteli­
gente»; rasga páginas do diário, que aliás termina com um zan­
gado «nada mais resta dizer acerca de mim». É quase o tempe­
ramento de uma Teresa de Ávila.
Bernanos e Bloy são dois dos autores católicos citados,católi­
cos exigentes, ferozes, de terra queimada. Foi esse catolicismo
que Flannery O'Connor praticou no seu Sul hostil aos papistas,
e sabemos que na altura em que mantinha este diário já estava a
escrever o romance Sangue Sábio (1952). É justamente uma no­
ção romanesca como a «suspensão da descrença» que aproxima
a oração da.ficção. Isso e uma «visão do mundo»,a qual depende
sempre de um «conceito de amor». Um amor que em O'Connor é
agreste e contraditório: basta ver como a pós-adolescente, que
nunca terá uma vida amorosa,se refere ao desejo como uma von­
tade ou um tormento, e à ausência de desejo como paz, e ao «ac­
to sexual» como acto religioso, que, na sua forma agnóstica, é
grotesco.
Aos vintes, esta tão invulgar rapariga procura aquela «con­
fiança» que, assegura, é a base de uma vida espiritual. Coisa
difícil,a confiança,sendo a vida «traiçoeira» e «decepcionante».
As orações de Flannery O'Connor estão, como ela explica, entre
a metafísica e a terapêutica. Exprimem adoração, contrição, ac­
ção de graças, súplica, mas também testam verdades que hão-de
alimentar a.ficção ainda por escrever: a ideia de que o inferno é
um conceito mais compreensível do que o céu, de que a Graça é
sem porquê, ou de que o pecado é bom porque orienta para a
salvação: «Concede-me a graça de ver a aridez e a indigência
dos lugares onde Tu não és adorado, mas profanado.»
O'Connor imagina-se a dada altura septuagenária e ainda
com dúvidas; mas só viveria até aos 39. Quando regressou à

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Georgia, onde iria escrever livros e cuidar de pavões, teve o pri­
meiro ataque de lúpus, doença fatal que, em certos momentos,
quase nos parece uma prece atendida.

Pedro Mexia

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Um Diário de Preces
[ENTRADAS SEM DATA]

[ . ]* esforço artístico neste do mínio , ao invés de pensar em Ti


. .

e de me sentir inspirada pelo amo r que tanto desejaria sentir.


Meu bo m Deus, não co nsigo amar-Te co mo pretendo . És o
crescente esguio de uma Lua que avisto , e o meu eu é a so mbra
da Terra que me impede de ver a Lua inteira. O crescente é muito
belo , e talvez uma pesso a co mo eu não deva o u não po ssa ver
mais; mas o que eu receio , meu bo m Deus, é que a so mbra do meu
eu se to me tão grande que o bscureça a Lua inteira, e que eu julgue
a minha própria valia pela so mbra, que nada é.
Não Te co nheço , meu Deus, po rque eu própria Te encubro . Po r
favo r, ajuda-me a arredar-me do caminho .
Desejo muito triunfar no mundo co m as co isas que pretendo
levar a cabo . Dirigi-Te preces a este respeito , esforçando a mente
e o s nervos, mergulhei num estado de tensão nervo sa e disse «o h,
meu Deus, po r favo r» e «tenho de co nseguir» e «po r favo r, po r
favo r». Não Te dirigi o s meus pedido s da maneira certa, sinto -o .
Do ravante, deixa-me pedir-Te co m resignação - o que não é nem
pretende ser um afro uxar das o rações, antes um o rar meno s febril
- , co m a co nsciência de que este frenesi é causado po r uma ânsia
daquilo que desejo , em lugar de uma co nfiança espiritual. Não
pretendo fazer co njeturas. Quero amar.
Oh, meu Deus, po r favo r, desanuvia a minha mente.

*Aparentemente, as primeiras páginas do diário perderam-se.


Por favor, purifica-a.
Peço-Te um amor mais puro pela minha santa Mãe e a ela peço
um amor mais puro por Ti.
Por favor, ajuda-me a entrar no mais fundo das coisas e a des­
cobrir onde Tu estás.
Não pretendo renegar as orações tradicionais que rezei ao longo
de toda a minha vida; mas tenho estado a rezá-las sem as sentir. A
minha atenção é sempre muito fugidia. Assim, tenho-a a cada
instante. Sinto uma onda calorosa de amor a aquecer-me quando
penso nisto e quando escrevo estas palavras para Ti. Por favor,
não deixes que as explicações dos psicólogos a este respeito arre­
feçam de súbito estes meus sentimentos. O meu intelecto é tão
limitado, Senhor, que só me resta confiar em Ti para me conser­
vares na senda correta.
Por favor, ajuda todos aqueles que amo a libertarem-se dos seus
padecimentos. Perdoa-me, por favor.

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Meu bo m Deus, fico abismada ante a po rção de co isas pelas
quais devo sentir gratidão , em termo s materiais; e, em termo s
espirituais, tenho a o po rtunidade de ser ainda mais feliz. Po rém,
parece-me evidente que não esto u a traduzir esta o po rtunidade em
facto s palpáveis. Tu dizes, meu bo m Deus, para pedirmo s a graça,
po is no s será dada. Eu peço -a. Co mpreendo que não me basta
pedi-la, que tenho de agir co mo quem a deseja. «Nem to do s o s
que dizem: Senho r, Senho r, mas sim aqueles que fazem a vo ntade
de Meu Pai. » Po r favor, ajuda-me a co nhecer a vo ntade do meu
Pai - não quero um nervosismo escrupulo so , nem sequer co nje­
turas negligentes, antes um co nhecimento lúcido , sensato ; e, de­
po is disto , dá-me uma vo ntade forte, para ser capaz de a vergar à
vo ntade do Pai.
Po r favor, deixa que o s princípio s cristão s impregnem a minha
escrita, e, po r favo r, faz que haja texto s suficientes da minha lavra
(dado s à estampa) para que o s princípio s cristão s os po ssam im­
pregnar. Temo , o h, Senho r, perder a minha fé. A minha mente não
é forte. Deixa-se seduzir po r to do o género de charlatanice inte­
lectual. Não quero que seja o medo a fazer-me ir à igreja. Não
quero agir co mo uma co barde, ficando junto de Ti só po rque te­
nho medo do Inferno . Devia pensar que, se temo o Inferno , então
po derei estar certa da existência do seu auto r. Os erudito s, po rém,
co nseguem dissecar em meu benefício o s mo tivo s que me levam
a temer o Inferno , e daí extraem a co nclusão de que o Inferno não

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existe. Mas eu acredito no Inferno. Para a minha fraca mente, o
Inferno parece muito mais exequível do que o Céu. Sem dúvida
porque o Inferno é uma coisa de aparência mais terrena. Consigo
imaginar os tormentos dos danados, mas não consigo imaginar as
almas desencamadas suspensas num cristal para toda a eternida­
de, a entoar louvores a Deus. É natural que eu não consiga imagi­
'
nar isto. Se conseguíssemos cartografar o Céu com rigor, alguns
dos nossos cientistas pro missores começariam logo a traçar pla­
nos para o aperfeiçoar, e os burgueses venderiam roteiros, a dez
cêntimos cada exemplar, a todas as pessoas acima dos sessenta e
cinco anos. Mas não pretendo ser espirituo sa, embora, pensando
melhor, pretenda mesmo ser espirituo sa e goste de ser espirituo sa
e queira que me considerem tal. Mas o que mais importa aqui é
que não quero ter medo da exclusão, quero amar a pertença; não
quero acreditar no Inferno , mas sim no Céu. Afirmar isto não me
traz benefício algum. O que importa é o do m da graça. Ajuda-me
a sentir que irei renunciar a tudo o que é terreno para a alcançar.
Não me refiro a to mar-me freira.

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Meu bom Deus, somos tão estúpidos até Tu nos dares qualquer
coisa. Mesmo ao orarmos, és Tu que tens de orar em nós. Gostava
de escrever uma prece bonita, mas falta-me a matéria-prima. Há
em volta de mim um vasto mundo sensível que eu deveria ser
capaz de usar como instrumento em Teu louvor; mas não consigo.
Todavia, num qualquer momento insípido em que eu talvez esteja
a pensar em cera para o soalho ou em ovos de pombo, as primei­
ras palavras de uma prece bonita poderão emergir-me do subcons­
ciente, levando-me a escrever um texto inflamado. Não sou filó­
sofa, caso contrário conseguiria entender estas coisas.
Se eu me conhecesse plenamente, meu bom Deus, se conse­
guisse descobrir em mim própria todos os traços pedantes e ego­
cêntricos, falhos de sinceridade, o que seria eu, afinal? Mas que
faria eu em relação a estes sentimentos que ora são medo, ora
alegria, que se encontram demasiado fundo para que o meu enten­
dimento os alcance? Tenho medo das mãos insidiosas, oh, Senhor,
que buscam às apalpadelas nas trevas da minha alma. Por favor,
sê a minha sentinela contra elas. Por favor, sê a barreira no alto do
desfiladeiro. Será que conservo a minha fé somente por preguiça,
meu bom Deus? Esta, porém, é uma ideia que agradaria a alguém
racional até à medula.

21
. Meu bom Deus, não quero que isto seja um exercício metafí­
sico, mas sim uma manifestação de louvor a Deus. Provavel­
mente, arrisca-se a ser mais terapêutico do que metafísico, com
o elemento do eu subjacente a todos estes pensamentos. As
preces devem ser compostas, parece-me, de adoração, contri­
ção, agradecimento e súplica, e eu gostava de perceber o que
consigo fazer com cada um destes elementos sem escrever uma
exegese. É a adoração por Ti, meu bom Deus, que mais me as­
susta. Não consigo entender plenamente a glorificação que Te é
devida. Do ponto de vista intelectual, concordo: adoremos a
Deus. Mas poderemos fazê-lo sem sentimentos? Para sentir,
temos de conhecer. E para isto, uma vez que nos é praticamente
impossível alcançar sozinhos esse conhecimento, não plena­
mente, é claro, apenas a parcela a que temos acesso, estamos
dependentes de Deus. Estamos dependentes de Deus para a
adoração que Lhe dedicamos, adoração, entenda-se, no sentido
mais profundo do termo. Concede-me a graça, meu bom Deus,
de Te adorar, pois nem sequer isto eu consigo fazer sozinha.
Concede-me a graça de Te adorar com o entusiasmo dos antigos
sacerdotes quando Te sacrificavam um cordeiro. Concede-me a
graça de Te adorar com o assombro que enche os Teus sacerdo­
tes quando sacrificam o Cordeiro nos nossos altares. Concede­
-me a graça de aguardar com impaciência o momento em que Te
verei cara a cara e de não precisar de outro estímulo senão esse

22
para Te adorar. Concede-me a graça, meu bom Deus, de ver a
aridez e a indigência dos lugares onde Tu não és adorado, mas
sim profanado.

23
Meu bom Deus, sinto-me tão desanimada em relação à minha
obra. Isto é, há em mim um sentimento de desânimo. Compreendo
que não sei o que compreendo. Por favor, ajuda-me, meu bom
Deus, a ser uma boa escritora e a conseguir que me aceitem mais
textos para publicação. Este desejo está tão distante do que eu
mereço, é claro, que a desfaçatez com que o formulo me deixa
naturalmente estupefacta. Em mim, a contrição é, em grande me­
dida, imperfeita. Não sei se alguma vez me arrependi de um pe­
cado por, ao cometê-lo, Te ter ofendido. Este género de contrição
é melhor do que nenhuma, mas é egoísta. Para aceder ao outro
género de contrição, é necessário possuir sabedoria, uma fé ex­
traordinária. No fim de contas, tudo se reduz à graça, parece-me.
Trata-se de pedir a Deus que nos ajude a arrependermo-nos de O
ter ofendido, repito. Tenho medo da dor, e deduzo que tenhamos
de a sofrer para alcançar a graça. Dá-me coragem para suportar a
dor e assim alcançar a graça, oh, Senhor. Ajuda-me a viver esta
vida que parece tão traiçoeira, tão dececionante.

24
Meu bom Deus, esta noite não foi dececionante porque me
deste uma história. Não me deixes alguma vez pensar, meu bom
Deus, que eu fui mais do que o mero instrumento da Tua história
- assim como a máquina de escrever foi o meu. Por favor, meu
bom Deus, permite que o sentido da história, ao cabo das suces­
sivas revisões, fique tão claro que não dê azo a quaisquer leituras
falaciosas e vis, porque com esta obra não pretendo denegrir a fé
religiosa seja de quem for, embora, enquanto a ia escrevendo,
não soubesse ao certo o que pretendia alcançar nem o que as
palavras iriam significar. Não sei se possui coerência. Por favor,
não me obrigues a deitá-la fora por, no fim de contas, conter mais
defeitos do que virtudes - ou quaisquer defeitos. Quero trans­
mitir com esta história que a bondade humana por vezes transpa­
rece através do seu mercantilismo, embora isso não seja culpa do
mercantilismo.
Talvez a ideia seja que o bem consegue transparecer, mesmo
através das coisas reles. Não sei ao certo, mas, meu bom Deus,
quem me dera que tomasses em mãos torná-la uma história sóli­
da, porque eu não sei como, do mesmo modo que não sabia como
escrevê-la, mas ela surgiu. Enfim, tudo isto me conduz ao agra­
decimento, o terceiro elemento que devemos incluir na oração.
Quando penso em todas as coisas pelas quais devo estar grata,
pergunto a mim mesma porque é que não me matas aqui mesmo,
pois já fizeste tanto por mim e eu não me tenho mostrado espe-

25
cialmente agradecida. O meu agradecimento nunca toma a forma
de sacrifício - umas quantas orações que aprendi de cor e desfio
à pressa, sem grande atenção, isso sim. Tudo isto me enche de
asco de mim mesma, mas não me inspira o sentimento pungente
que eu deveria experimentar para Te adorar, para me arrepender
ou para Te agradecer. Talvez o sentimento que não me canso de
implorar seja algo, uma vez mais, egoísta - algo para me ajudar
a sentir que nada há de errado em mim. No entanto, parece-me a
coisa mais natural do mundo, mas talvez esta naturalidade seja
afinal egoísmo. A minha mente é muito insegura, não posso con­
fiar nela. Incute-me escrúpulos num momento e, logo a seguir,
deixa-me descuidada. Se me cabe conhecer todas estas coisas
através da mente, oh, Senhor, peço-Te, fortalece-ma. Obrigada,
meu bom Deus, creio que me sinto verdadeiramente grata por
tudo o que fizeste por mim. Quero sentir-me grata. Quero mes­
mo. E agradece à minha boa Mãe, que tanto amo, Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro.

26
Meu bom Deus, Súplica. Eis o único dos quatro em que sou
exímia. Não é necessária qualquer graça sobrenatural para pedir­
mos o que desejamos, e eu pedi-Te sem freio, oh, Senhor. Creio
que está certo pedir-Te e pedir também à nossa Mãe que Te peça,
mas não quero dar demasiada importância a esta vertente das mi­
nhas preces. Ajuda-me a pedir-Te, oh, Senhor, aquilo que é me­
lhor para mim, aquilo que posso ter e que, tendo, me irá ajudar a
servir-Te melhor.
Tenho andado a ler Kafka, e apercebo-me da dificuldade dele
em alcançar a graça. Mas parece-me que não tem de ser assim
para o católico que possa comungar todos os dias. Monsenhor
disse hoje que era obra da razão, não da emoção - o amor a
Deus. A emoção serviria de auxílio. Dei-me conta, da última vez,
de que seria um auxílio egoísta. Oh, meu bom Deus, a razão é
muito árida. Creio que a minha é também preguiçosa. Mas quero
aproximar-me de Ti. No entanto, parece quase um pecado sugerir
sequer tal coisa. Talvez a comunhão não proporcione a proximi­
dade a que me refiro. A proximidade a que me refiro virá depois
da morte, talvez. É aquilo que buscamos a custo, e, se eu a alcan­
çasse, ou estaria morta ou tê-la-ia visto durante um breve segun­
do, e a vida ser-me-ia insuportável. Nada sei acerca disto, nem do
que quer que seja. Parece pueril da minha parte dizer uma coisa
tão óbvia.

27
Meu bom Deus, para não perder o rumo, vou refletir acerca da
Fé, da Esperança e da Caridade. Comecemos pela Fé. Das três, é
a que me causa mais sofrimento mental. Em todas as fases deste
processo educativo, dizem-nos que é uma coisa ridícula, e os ar­
gumentos soam tão credíveis que é difícil não lhes cedermos. Os
argumentos talvez não soassem tão credíveis a alguém com uma
mente mais profícua; mas os meus mecanismos mentais são o que
são, e estou sempre no limiar da anuência - é quase uma anuên­
cia subconsciente. Pois bem, como hei de eu conservar a minha fé
sem cobardia quando estas condições me influenciam assim? Não
consigo decifrar as profundezas particulares da minha pessoa que
fazem luz sobre isto. Há qualquer coisa no mais recôndito de mim
- é mais fundo do que a anuência subconsciente - que nutre um
determinado sentimento a este respeito. Talvez seja isso o que me
refreia. Meu bom Deus, por favor, faz que seja isso em vez da tal
cobardia que os psicólogos examinariam com tanta avidez e ex­
plicariam com tanto desembaraço. E, por favor, não permitas que
seja aquilo a que, tão alegremente, eles chamam compartimentos
estanques. Oh, Senhor, peço-Te, concede às pessoas como eu, que
não têm a inteligência necessária para lidar com isto, peço-Te,
concede-nos uma qualquer arma, não para nos defendermos deles,
mas para nos defendermos de nós próprios depois de eles nos te­
rem examinado de fio a pavio. Meu bom Deus, não quero desco­
brir que inventei a minha fé para satisfazer a minha fraqueza. Não

28
quero ter criado Deus à minha própria imagem, como tanto se diz
por aí. Por favor, concede-me a graça necessária, oh, Senhor, e faz
que não seja tão difícil de alcançar como Kafka dá a entender.

29
Meu bom Deus, no que respeita à esperança, sinto-me um pou­
co perdida. É tão fácil dizer que tenho esperança - a língua es­
correga por cima destas palavras. Acho que talvez só possamos
compreender a esperança se a pusermos em contraste com a de­
sesperança. E eu sou demasiado preguiçosa para desesperar. Por
favor, não me inflijas essa pena, Senhor, eu ficaria tristíssima. A
esperança, porém, é certamente uma coisa diferente da fé. Sem
dar por isso, incluo-a no departamento da fé. Deve ser uma coisa
positiva que eu nunca senti. Deve ser uma força positiva, caso
contrário porquê a distinção entre esperança e fé? Gostava de or­
denar as coisas, para me poder sentir espiritualmente coesa. Acho
que não sou capaz de ordenar as coisas. Mas todos os meus pedi­
dos parecem liquefazer-se e mesclar-se num pedido de graça -
essa graça sobrenatural que exerce o seu efeito, seja lá qual for. O
meu espírito está dentro de uma caixinha, meu bom Deus, no
fundo de outras caixas dentro de outras caixas e de outras e de
outras. Há muito pouco ar dentro da minha caixa. Meu bom Deus,
por favor, dá-me tanto ar quanto eu possa pedir sem que pareça
presunção da minha parte. Por favor, deixa que alguma luz emane
de todas as coisas que me rodeiam, para que me possa sentir coe­
sa. Este pedido, em última análise, é egoísta. Não haverá maneira
de contornar isto, meu bom Deus? Não haverá como fugir a nós
mesmos? E mergulhar numa coisa mais vasta? Oh, meu bom
Deus, quero escrever um romance, um bom romance. Quero fazer

30
isto para satisfazer um bom sentimento e também um mau senti­
mento. O mau sentimento é o mais relevante. Os psicólogos di­
zem que é este o sentimento natural. Deixa-me afastar-me, meu
bom Deus, de todas as coisas assim «naturais». Ajuda-me a incor­
porar na minha obra aquilo que é mais do que natural - ajuda-me
a amar a minha obra e a mostrar-me indulgente com ela por este
motivo. Se tiver de trabalhar arduamente para a criar, meu bom
Deus, pois que seja como se eu estivesse ao Teu serviço. Gostava
de ser santa de um modo inteligente. Sou uma palerma presumida,
mas talvez a coisa vaga em mim que me acalenta seja a esperança.

31
Meu bom Deus, em certa medida fui bem castigada pela minha
falta de caridade para com Mr. Rothburg*, no ano passado. Ele
hoje ripostou, fustigando-me que nem um vendaval, o que, embo­
ra não me tenha magoado muito, me estragou a pose. Tudo isto a
propósito da caridade. Oh, Senhor, por favor, toma a minha men­
te atenta a este respeito. Todos os dias faço muitos, muitos, dema­
siados comentários cruéis acerca das pessoas. Faço-os porque me
dão um ar espirituoso. Por favor, ajuda-me a compreender na
prática como isto é reles. Ainda nada tenho de que me possa or­
gulhar. Sou estúpida, tão estúpida como as pessoas que ridiculari­
zo. Por favor, ajuda-me a deixar de ser assim egoísta, porque Te
amo, meu bom Deus. Não quero passar a vida a desculpar-me,
porém. Pouco valho. Por favor, ajuda-me a cumprir a Tua Palavra,
oh, Senhor.

* Um colega de Flannery O'Connor no curso de escrita criativa na Universidade de


Iowa.

32
4/11 [1946]

Concluí que isto não vale muito como meio direto de oração.
A oração não é sequer tão premeditada como estes meus escritos
- é um impulso do momento, e isto é demasiado vagaroso para o
momento. Iniciei uma nova fase da minha vida espiritual - tenho
confiança. A par desta confiança, prescindi de certas rotinas de
adolescente e de certas rotinas mentais. Não é preciso muito para
nos fazer entender os palermas que somos, mas esse pouco demo­
ra a fazer-se sentir. Aos poucos, apercebo-me do ridículo da minha
pessoa. Uma coisa de que me apercebi esta semana - tem sido
uma semana bizarra - é que me vejo constantemente como aqui­
lo que desejo ser. Não a concretização do que desejo ser, mas o
estilo certo, o embrião correto no animal correto. A consequência
deste delicioso estado de coma será, naturalmente, o eterno em­
brião - e eterno no sentido mais genuíno da palavra. Preciso de
crescer. Tenho direito, creio, a demonstrar este interesse por mim
própria, desde que este meu interesse se centre na minha alma
imortal e no que a mantém pura. «Salvo aos puros, na mais pura
hora», escreveu Coleridge - o dom da imaginação funcionava
apenas nesse momento, apenas para esses. Vou começar pela alma,
e talvez os dons temporais que desejo exercer tenham a sua opor­
tunidade; e, mesmo que isto não suceda, terei já nas mãos a melhor
coisa, a única realmente necessária. Deus tem de estar em toda a
minha obra. Tenho andado a ler Bernanos. É absolutamente mara­
vilhoso. Será que alguma vez saberei seja o que for?

33
6/11/

Mediocridade é um termo severo para aplicarmos a nós mes­


mos; contudo, vejo que se ajusta tão bem à minha pessoa que me
é impossível não me apodar de medíocre - embora compreenda,
no preciso momento em que o faço, que só quando estiver velha
e caduca é que me resignarei a esse epíteto. Resignar-me a ele,
parece-me, seria resignar-me à Desesperança. Deve haver algum
meio de os naturalmente medíocres escaparem à mediocridade[. ]
Esse meio é seguramente a Graça. Deve haver alguma forma de
lhe escapar, mesmo quando sabemos que estamos abaixo desse
nível. Talvez percebermos que estamos abaixo desse nível seja
um primeiro passo. Digo que se ajusta bem à minha pessoa; mas
a verdade é que sou abaixo de medíocre. Andarei sempre aos
tombos entre a Desesperança e a Soberba, encarando primeiro
uma e depois a outra, avaliando qual delas me faz sobressair
mais, qual delas me faz sentir mais confortável, mais descontraí­
da. Nunca engolirei um grande naco de nada. Hei de mordiscar
nervosamente aqui e além. O temor a Deus é uma coisa boa; mas,
meu Deus, não é este nervosismo[. ] É algo colossal, grandioso,
magnânimo. Tem de ser um júbilo. Todas as virtudes têm de ser
vigorosas. A virtude tem de ser a única coisa vigorosa nas nossas
vidas. O pecado é vasto e cediço. Nunca conseguimos acabar de
o comer, nem nunca o conseguimos digerir. Temos de o vomitar.
Talvez esta declaração seja demasiado literária - não posso dei­
xar que este meu diário se tome hipócrita.

34
Como é que posso viver - como é que hei de viver. Obviamen­
te, a única maneira de viver retamente é abdicar de tudo. Mas não
tenho vocação, e talvez esse caminho esteja errado, seja como for.
Mas como eliminar esta minha maneira exigente e cata-espinhas
de fazer as coisas - quero tanto amar a Deus sem peias. Ao mes­
mo tempo, quero todas as coisas que parecem opostas a esse amor
- quero ser uma excelente escritora. Todo e qualquer êxito terá
tendência a subir-me à cabeça - inconscientemente, até. Se algu­
ma vez conseguir tomar-me uma excelente escritora, não será
porque sou uma excelente escritora, mas sim porque Deus me
deixou arrecadar os louros de algumas das coisas que Ele carido­
samente escreveu para mim. No momento atual, não parece ser
esta a postura d'Ele. Não consigo escrever uma linha que seja.
Mas vou continuar a tentar - eis o que importa. E, em cada fase
estéril, irei recordar-me de Quem está a criar a obra quando esta
fica pronta e de Quem não a está a criar naquele momento. Nos
dias que correm, pergunto a mim mesma se Deus alguma vez
tomará a escrever alguma coisa para mim. Ele prometeu-me a Sua
graça; não estou tão certa de que me conceda a outra. Talvez eu
não me tenha mostrado suficientemente grata pelas dádivas rece­
bidas.
Os desejos da carne - excluindo os do estômago - foram-me
subtraídos. Não sei por quanto tempo, mas espero que seja para
sempre. Dá-me muita paz, ver-me livre deles.
Não haverá quem me saiba ensinar a rezar?

35
11/11

Como é difícil manter uma dada intenção[, ] uma dada postura


em relação a uma obra[, ] um dado tom[, ]um dado seja o que for.
Neste momento, sinto na minha alma uma certa paz que muito
me agrada - não nos deixes cair em tentação. A qualidade das
histórias é indiferente. Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Meu bom
Deus, deixa-me trabalhar, obriga-me a trabalhar. Desejo tanto
poder trabalhar. Se o meu pecado é a preguiça, quero ser capaz
de o vencer.
Estive a reler algumas destas entradas.*

* O texto restante nesta página do diário parece ter sido eliminado.

36
2/1/47

Ninguém pode ser ateu sem conhecer todas as coisas. Somente


Deus é ateu. O demónio é o maior dos crentes, e lá tem as suas
razões.

37
11/1147

Será que alguma vez podemos resignar-nos a chamar medío­


cres a nós mesmos - eu a mim própria? Se eu não sou isto ou
aquilo que outrem é, não serei outra coisa que ainda não sou capaz
de ver nem de descrever plenamente? Volto atrás e [ . . . ]
São Tomás [ . . ]* .

Rousseau considera que o protestante tem de refletir; o católi­


co tem de se submeter. Deduz-se, creio, que, em última análise,
o protestante também tem de se submeter; porém, o católico
nunca deve refletir, nomeadamente acerca da natureza da relação
do homem com Deus. Isto é interessante. Sendo o catolicismo
um roteiro para o único meio de comunicar a que vale a pena
submetermo-nos, no entender do católico. E todas as doutrinas
que negam a submissão negam também Deus. O Inferno, um
Inferno literal, é a nossa única esperança. Tirem-nos o Inferno e
iremos converter-nos numa terra completamente devastada, ao
invés de meio devastada. O pecado é uma coisa ótima, desde que
reconhecido como tal. Conduz a Deus muito boa gente que, de
outra forma, não chegaria lá. Mas se deixarmos de o reconhecer,
ou se o tirarmos ao demónio enquanto demónio e o atribuirmos
ao demónio enquanto psicólogo, suprimimos também Deus. Se
não existe pecado neste mundo, não existe Deus no Céu. Não
existe Céu. Há quem prefira assim. Porém, mesmo entre os lite-

* O texto restante nesta página do diário parece ter sido eliminado.

38
ratos tomou-se popular crer em Deus. Há nesta fé qualquer coisa
chocante. Os católicos, no entanto, precisam de alimentar certe­
zas, tanto quanto lhes é possível, ou talvez somente tanto quanto
desejam. Eu. Eu preciso de as alimentar, mas ao escrever estarei
a tentar chocar as pessoas com Deus? Estarei a tentar encaixá-Lo
à força na minha escrita, às três pancadas? Talvez não haja pro­
blema. Talvez, sendo eu a fazê-lo, não haja problema. Talvez eu
seja medíocre. Preferia ser menos que medíocre. Preferia ser
nada. Uma imbecil. No entanto, não devo pensar assim. A medio­
cridade, se é esse o meu castigo, é algo a que terei de me subme­
ter. Se é esse o meu castigo. Se alguma vez descobrir que é, terá
chegado a altura de me submeter. Terei de ouvir muitas opiniões.

39
25/1147

A solenidade dos meus pensamentos esta noite! Será que todas


estas frases soam ao mesmo, tal como me parece? Todas me cau­
sam uma vaga náusea - embora fossem sinceras à época e eu não
renegue nenhum dos meus artigos de fé. Esta noite, imagino-me
teoricamente aos setenta anos, a dizer que tudo acabou, tudo está
terminado, as coisas são o que são, sem por isso estar mais perto
do que hoje. Esta baixeza moral aos setenta anos não será tolerá­
vel. Quero uma revolução agora, uma revolução amena, alguma
coisa que incuta em mim um ascetismo sereno do século xx quan­
do passo diante da mercearia.
As delícias intelectuais e artísticas que Deus nos proporciona
são visões, e, sendo visões, pagamos um preço por elas; e a sede
da visão não acarreta necessariamente consigo uma sede do sofri­
mento concomitante. Olhando para trás, vejo que sofri, não o meu
quinhão, mas o suficiente para lhe chamar sofrimento, embora
haja um fabuloso saldo a meu favor. Meu bom Deus, por favor,
envia-me a Tua Graça.

40
14/4/47

Tenho de escrever que irei tomar-me artista. Não no sentido da


fancaria estética, mas no sentido do engenho estético; caso contrá­
rio, sentirei a minha solidão constantemente - como hoje. A pala­
vra engenho cobre o ângulo do trabalho e a palavra estética cobre o
ângulo da verdade. Ângulo. Vai ser uma vida inteira de luta sem
atingir a consumação. Quando qualquer coisa está concluída, não a
podemos possuir. Nada podemos possuir, exceto a luta. Consumi­
mos todas as nossas vidas em possuir a luta, mas somente quando
acarinhamos essa luta e a orientamos para uma consumação final
exterior a esta vida é que ela tem algum valor. Quero ser a melhor
artista que me seja possível, sob a batuta de Deus.
Não quero sentir-me solitária toda a vida, mas as pessoas, ao
recordarem-nos de Deus, apenas acentuam a nossa solidão. Meu
bom Deus, por favor, ajuda-me a tomar-me uma artista, por favor,
faz que isso me aproxime de Ti.

41
415

Para manter o fio condutor num romance, tem de haver uma


visão do mundo subjacente, e o tema mais importante no que a
esta visão do mundo diz respeito é o conceito de amor - divino,
natural e pervertido. É provavelmente possível dizer que quando
uma visão do amor está presente - uma visão suficientemente
ampla - nada mais é necessário acrescentar para construir a cos­
movisão.
Freud, Proust e Lawrence situaram o amor dentro do ser huma­
no, e não vale a pena pôr em causa esta escolha; contudo, também
não há necessidade de definir o amor tal como eles o fazem -
somente enquanto desejo, uma vez que isto impossibilita o amor
divino, o qual, embora possa ser também desejo, é um género
diferente de desejo. É desejo divino - e, situando-se fora do
homem, consegue elevá-lo ao seu patamar. O desejo humano de
Deus tem os seus alicerces no inconsciente e procura satisfazer-se
na posse física de outro ser humano. Esta fixação, nas suas face­
tas sensuais, é necessariamente passageira e desvanece-se aos
poucos, dado que constitui um pobre sucedâneo daquilo que o
inconsciente busca. Quanto mais consciente o desejo de Deus se
toma, mais bem-sucedida se toma a união com outra pessoa, por­
que o entendimento apreende a relação na sua relação com um
desejo mais grandioso, e se este entendimento estiver presente em
ambas as partes, a força motriz no desejo de Deus toma-se dupla
e beneficia em tomar-se divina. O homem moderno, isolado da

42
fé, incapaz de elevar o seu desejo de Deus a um desejo conscien­
te, afunda-se na postura de ver o amor físico como um fim em si
mesmo. Assim, romantiza-o, espoja-se nele, depois aborda-o com
cinismo. Ou, no caso do artista como Proust, afunda-se na postu­
ra de compreender que é a única coisa que vale a pena ser vivida,
mas vê este amor sem propósito, fortuito, frustrante, uma vez
satisfeito o desejo. O conceito de Proust do desejo só podia ser
este, uma vez que ele faz dele o ponto supremo da existência -
que efetivamente é - , mas sem nada de sobrenatural para o cul­
minar. Este desejo afunda-se cada vez mais no inconsciente, até
ao respetivo âmago, que é o Inferno. Sem dúvida que o Inferno se
situa no inconsciente, tal como o desejo de Deus. O desejo de
Deus talvez esteja numa superconsciência que é inconsciente.
Satã caiu na sua líbido ou no seu id, consoante o termo freudiano
mais completo.
A perversão é o resultado final de negarmos ou nos revoltarmos
contra o amor sobrenatural, descendo da superconsciência incons­
ciente para o id. Nos casos em que a perversão é uma doença ou
o resultado de uma doença, isto não se aplica, porquanto o livre­
-arbítrio não opera. O ato sexual é um ato religioso e, quando
ocorre sem Deus, é um ato postiço, ou, no melhor dos casos, um
ato vazio. Proust tem razão ao afirmar que somente um amor que
não satisfaz pode continuar a existir. Duas pessoas só podem con­
tinuar «apaixonadas» - um termo que o romantismo fétido tor­
nou quase imprestável - se o seu desejo comum uma pela outra
as unir num desejo mais vasto de Deus, ou seja, ao invés de fica­
rem saciadas, sentem um desejo partilhado e acrescido do amor
sobrenatural em união com Deus. Meu Deus, sara estes furúncu­
los e pústulas e verrugas de. romantismo doentio [ . . ]*
.

*A página seguinte do diário foi eliminada.

43
3015

Rasguei a última entrada. Era digna de mim, sem dúvida; mas


indigna da pessoa que eu deveria ser. Bloy veio ao meu encontro.
O mais horrível, depois de o lermos, é sermos capazes de regres­
sar a nós mesmos, sendo ainda nós mesmos. Ele é um icebergue
lançado contra mim para romper o casco do meu Titanic, e espero
bem que o meu Titanic fique feito em pedaços, mas receio bem
que Bloy não seja o bastante para destruir a época dentro de nós
- a época é ainda a Queda do Homem, parece-me, e certamente
o Pecado Original dentro de nós. Podemos subjugá-lo mas não
livrar-nos dele, podemos combatê-lo e mutilá-lo mas nunca matá­
-lo. É difícil desejarmos sofrer; deduzo que a Graça seja necessá­
ria para o desejo. Sou uma medíocre do espírito, mas há esperan­
ça. Sou uma criatura do espírito, pelo menos, ou seja, estou viva.
Então e estes mortos com quem vivo? Então e eles? Nós, os vivos,
teremos de pagar pelas mortes deles. Estando mortos, que hão de
eles fazer? Foi por eles, deduzo, que os santos morreram. Não, os
santos morreram por Deus, e Deus morreu pelos mortos. Eles não
tiveram de se sujeitar à mesma indignidade de Deus. Ninguém
consegue tomar a fazer o que Cristo fez. Estes «Cristos» moder­
nos representados em cartazes de guerra e em poemas - «cada
homem é Jesus; cada mulher, Maria» [- ]teriam causado náuseas
a Bloy. Os restantes de nós perderam a capacidade de vomitar.

44
2219 e Bloy novamente. Deveria ser um grande acicate da hu­
mildade em mim, o facto de eu ser tão inerte ao ponto de precisar
sempre de Bloy para me mergulhar em reflexões sérias - e mes­
mo então estas não se prolongam durante muito tempo. O verão
foi muito árido em termos espirituais e, aqui em Iowa City, ter
começado a ir à missa novamente todos os dias não me tocou -
pensamentos horrendos na sua mesquinhez e no seu egoísmo
vêm-me à cabeça, mesmo com a hóstia na língua. Talvez o Senhor
se tenha apiedado de mim e me tenha posto a deambular pelo
meio das estantes para pegar no livro de Pfleger acerca de Bloy e
de Péguy e de alguns outros. É horrível pensar na minha incons­
ciência quando, na realidade, sei tudo. Demasiado débil para pedir
sofrimento a Deus nas minhas preces[,] demasiado débil até para
entoar uma prece seja para que fim for, excetuando ninharias. Não
quero estar condenada à mediocridade nos meus sentimentos em
relação a Cristo. Quero sentir. Quero amar. Acolhe-me, meu Se­
nhor, e encaminha-me na direção que deverei tomar. Minha Se­
nhora do Perpétuo Socorro, ora por mim.

45
23/9

Oh, Senhor, peço-Te, faz que eu Te deseje. Seria para mim a


maior das beatitudes. Não apenas desejar-Te quando penso em
Ti, mas sim desejar-Te constantemente, pensar em Ti constante­
mente, sentir esse desejo a pulsar dentro de mim, senti-lo como
um cancro dentro de mim. O desejo matar-me-ia como um can­
cro, e essa seria a satisfação suprema. É fácil para esta escrita
revelar um desejo. Há um desejo, mas é abstrato e frio, um dese­
jo morto que transparece bem na escrita porque a escrita é uma
coisa morta. A escrita é uma coisa morta. A arte é uma coisa
morta, morta por natureza, não morta pela crueldade. Trago o
meu desejo morto para o lugar certo[, ] o lugar morto onde este
desejo sobressai mais facilmente, para a escrita. Isto cumpre o
seu fito, caso, pela graça de Deus, desperte outra alma; mas não
me serve de nada. A «vida» que este desejo recebe ao ser passado
a escrito está morta para mim, mais ainda porque parece viva -
um horrível embuste. Mas não a meus olhos, que sei a verdade.
Oh, Senhor, peço-Te, torna vivo este desejo morto, vivo na vida
genuína, vivo tal como provavelmente terá de viver, no sofrimen­
to. Sinto-me demasiado medíocre 'para sofrer. Se o sofrimento
viesse ao meu encontro, nem sequer o reconheceria. Protege-me,
Senhor. Ajuda-me, Mãe.

46
24/9

Ao dar-nos o catolicismo, Deus priva-nos do prazer de o procu­


rar, mas neste caso tomou a mostrar-se misericordioso para al­
guém como eu - e, já agora, para todos os católicos contempo­
râneos - , que, se não o tivesse recebido como dádiva, não o teria
procurado[.] É certamente uma providência divina em favor de
todas as almas medíocres - uma ferramenta para nosso uso; no
caso da figura veneranda de Bloy é ... como chamar-lhe? Deus na
terra? Deus tão próximo de nós quanto nos é possível aqui na
terra. Quem me dera somente ser um dos fortes. Se o fosse, ter­
-me-ia sido dado menos, e eu teria sentido um grande desejo, tê-
-lo-ia sentido e teria lutado para o consumar, para medir forças
com Cristo, por assim dizer. Mas pertenço ao grupo dos fracos.
Sou tão fraca que Deus me deu tudo, todas as ferramentas, instru­
ções para o seu uso, até um bom cérebro para as utilizar, um cé­
rebro criativo para as tomar disponíveis para os outros. Deus está
a alimentar-me, e nas minhas orações peço-Lhe que me desperte
o apetite. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ora por mim.

47
2519

Aquilo que peço é, na verdade, bastante ridículo. Oh, Senhor, o


que eu digo é que neste momento sou um queijo, faz de mim uma
mística, imediatamente. A verdade é que Deus é capaz disso - é
capaz de converter queijos em místicos. Mas porque haveria Ele de
o fazer em benefício de uma criatura ingrata, preguiçosa e suja co­
mo eu? Sou incapaz de permanecer na igreja sequer para dizer uma
oração de ação de graças[, ] e quanto a preparar-me para a comu­
nhão na noite da véspera - tenho a cabeça noutro lugar. O rosário
é para mim mera rotina, enquanto penso noutras coisas, normal­
mente ímpias. Mas gostava de ser uma mística, e imediatamente.
Porém, meu bom Deus, por favor, dá-me um lugar qualquer, por
exíguo que seja, mas deixa-me conhecê-lo e conservá-lo. Se me
cabe lavar todos os dias o segundo degrau, diz-mo e deixa-me lavá­
-lo e deixa que o meu coração transborde de amor ao lavá-lo. Deus
ama-nos, Deus precisa de nós. E também da minha alma. Por isso
leva-a, meu bom Deus, porque ela sabe que Tu és tudo o que ela
deveria desejar, e se fosse sensata Tu serias a única coisa que ela
desejaria, e nos momentos em que ela se enche de sensatez Tu és a
única coisa que ela deseja, e deseja desejar-Te mais e mais. As exi­
gências dela são absurdas. É uma traça que quer ser rei, uma cria­
tura estúpida e preguiçosa, uma criatura néscia, que deseja que
Deus, que criou a Terra, seja seu Amante. Imediatamente.
Se eu ao menos conseguisse conter Deus na minha mente. Se
ao menos conseguisse pensar n'Ele e só n'Ele e em mais nada.

48
26/9

Os meus pensamentos estão tão afastados de Deus. Mais valia


Ele não me ter criado. E os sentimentos que incubo ao escrever
neste diário duram aproximadamente meia hora e parecem-me um
logro. Não quero estes sentimentos artificiais e superficiais esti­
mulados pelo coro de vozes. Hoje demonstrei ser uma glutona
- ávida de bolinhos de aveia integral e de pensamentos eróticos.
Nada mais resta dizer acerca de mim.

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