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NOEL GUARANY

DESTINO MISSIONEIRO

CHICO SOSA
AGRADECIMENTOS:

A Deus, pela graça de me colocar nas mãos


a responsabilidade de elaborar esta obra,

A Neidi Fabricio da Silva,


pela confiança,
sem a qual seria impossível concluir o trabalho.
NOEL GUARANY
DESTINO MISSIONEIRO

2003

CHICO SOSA
PESQUISA / ORGANIZAÇÃO / REDAÇÃO

REEDIÇÃO 2019
NOEL GUARANY - DESTINO MISSIONEIRO - 1941-1998
BIOGRAFIA - HISTÓRIA - REDUÇÕES - REPORTAGENS
MÚSICO - COMPOSITOR - INTÉRPRETE
HISTÓRIA DA MÚSICA MISSIONEIRA RIOGRANDENSE

I - Chico Sosa: Pesquisa - Organização - Textos - Diagramação


II - Neide Silva: Arquivo

CAPA: Chico Sosa


DIGITAÇÃO: Monica S. Trevisan
TEXTURA DA CAPA: Julio Rivatto
IMPRESSÃO: Gráfica Editora Pallotti

REEDIÇÃO E CAPA 2019 : Francisco Souza


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 7

PREFÁCIO 9

HISTÓRIA DAS REDUÇÕES E BOSSOROCA 20

DESTINO MISSIONEIRO 25

GENEALOGIA E HISTÓRIADE NOEL GUARANY 27

REPORTAGENS E DEPOIMENTOS SOBRE NOEL GUARANY 54

CORRESPONDÊNCIA ENVIADA PELOS PARCEIROS 83

DEPOIMENTOS - OPNIÕES DE JORNALISTAS E COLEGAS 98

CARTA ABERTA À IMPRENSA NACIONAL 108

CARTA DE NOEL AO DEPUTADO OLÍVIO DUTRA 110

REPORTAGENS QUESTIONANDO O SILÊNCIO DE NOEL 114

ADEUS NOEL GUARANY 119

UM MEMORIAL PARA NOEL GUARANY EM SUA CIDADE NATAL 125

ENTREVISTAS COM DEPOIMENTOS SOBRE NOEL GUARANY 131

CANÇÕES EM HOMENAGEM A NOEL GUARANY 136


APRESENTAÇÃO
NOEL GUARANY
UM MARCO NA MÚSICA DO RIO GRANDE DO SUL

A INTENÇÃO DE NOEL GUARANY AO CANTAR E GRAVAR ERA


PROMOVER A INTEGRAÇÃO CULTURAL DO POVO LATINO AMERICANO.
ATRAVÉS DO CANTO NOEL ACREDITAVA QUE PODERIA PROMOVER
UM ENTRELAÇAMENTO CULTURAL ENTRE OS POVOS DO CONE-SUL
AUXILIANDO PARA QUE A MÚSICA DA AMÉRICA LATINA FOSSE ACEITA NAS
MESMAS PROPORÇÕES EM QUE A MÚSICA NORTE AMERICANA É RECEBIDA
AQUI.
SEU GRANDE SONHO ERA POPULARIZAR A REGIÃO MISSIONEIRA
ATRAVÉS DE SUAS COMPOSIÇÕES, CONTRIBUINDO PARA DESENVOLVER
UM FLUXO TURÍSTICO PARA A REFERIDA REGIÃO.
APROVEITANDO A AUTOBIOGRAFIA DE NOEL, E TESTEMUNHA QUE
SOMOS DE SEU ORGULHO POR TER NASCIDO MISSIONEIRO, NA CERTEZA DE
QUE A MELHOR HOMENAGEM QUE PODEMOS LHE PRESTAR É DIVULGAR A
SUA HISTÓRIA E SUAS OBRAS, PARA QUE ASSIM SE MANTENHA VIVO O SEU
IDEAL. OPTAMOS POR ESCLARECER ALGUNS ASPECTOS IMPORTANTES NA
HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DE SEU POVO, CONFORME ELE COSTUMAVA A
CHAMAR OS CONTERRÂNEOS REGIONAIS, DESCENDENTES DE ÍNDIOS.
INICIAMOS A PRIMEIRA PARTE DO LIVRO À GUISA DE PREFÁCIO,
REPRODUZINDO UM TEXTO DA PROFESSORA GUIOMAR TERRA DOS
SANTOS, ONDE ELA FAZ UMA INTRODUÇÃO BIOGRÁFICA DE NOEL E TRAÇA
UM ESBOÇO LITERÁRIO SOBRE A OBRA DO POETA E PAYADOR. A SEGUIR
FAZEMOS UMA RESENHA BIOGRÁFICA DE SANTO INÁCIO DE LOIOLA, O
FUNDADOR DA COMPANHIA DE JESUS, E RESPONSÁVEL POR ENVIAR
SEUS DISCÍPULOS A TODAS AS PARTES DO MUNDO PARA DESENVOLVER
AS MISSÕES JESUÍTICAS DE CONVERSÃO CRISTÃ. APROVEITAMOS O
ASSUNTO PARA RELATAR O INÍCIO DAS MISSÕES NO BRASIL, E O SEU
DESENVOLVIMENTO NO CONE-SUL, ONDE POR UM SÉCULO E MEIO
OS JESUÍTAS E OS ÍNDIOS PLANTARAM A SUA CULTURA DEIXANDO
PROFUNDAS RAÍZES, QUE DESENVOLVERAM SÓLIDOS TRONCOS DE
ÁRVORES SECULARES QUE CONTINUAM DANDO FRUTOS.
AINDA NESTA PRIMEIRA PARTE, NOMINAMOS AS 30 REDUÇÕES E
DESTACAMOS OS SETE POVOS DO RIO GRANDE DO SUL E FAZEMOS UMA
RÁPIDA CITAÇÃO SOBRE A “CRUZ DE LORENA” QUE VEIO COM OS JESUÍTAS
A QUAL DEU ORIGEM A CRUZ MISSIONEIRA. CONCLUÍMOS COM ALGUMAS
INFORMAÇÕES SOBRE O MUNICÍPIO DE BOSSOROCA, TERRA NATAL DE
NOEL GUARANY.

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A SEGUNDA PARTE É COMPOSTA PELA AUTOBIOGRAFIA INICIADA
POR NOEL NO COMEÇO DA DÉCADA DE 80, ONDE ALÉM DE FAZER UM
RELATO DAS SUAS ANDANÇAS E SUAS EXPERIÊNCIAS, ELE COLOCA NO
PAPEL A SUA VISÃO SOBRE VÁRIOS ASSUNTOS FRUTOS DE PESQUISAS, SOBRE
ARTE, FOLCLORE, TRADIÇÃO... A IMPORTÂNCIA DO CANTO MISSIONEIRO,
A DISCOGRAFIA E A SUA POSIÇÃO QUANTO AO MOVIMENTO NATIVISTA.
A TERCEIRA PARTE TRAZ UMA SEQÜÊNCIA CRONOLÓGICA FORMADA POR
TÍTULOS E SUBTÍTULOS, COM REPORTAGENS DE VÁRIOS JORNAIS DO PAÍS,
SOBRE OS TRABALHOS E LANÇAMENTOS DOS DISCOS DE NOEL, CARTAS
DOS SEUS PARCEIROS MAIS EXPRESSIVOS, DEPOIMENTOS E OPINIÕES DE
AMIGOS, COLEGAS E JORNALISTAS QUE TIVERAM A OPORTUNIDADE DE
CONHECÊ-LO.
A EDITORIA DO LIVRO CONTINUA COM UMA CARTA ABERTA A
IMPRENSA, ONDE NOEL EXPÕE O SEU DESCONTENTAMENTO PARA COM
OS EMPRESÁRIOS E PRODUTORES FONOGRÁFICOS E A SUA DECISÃO EM
RETIRAR-SE DO MERCADO ATÉ QUE A SITUAÇÃO MUDE.
NA ESPERANÇA DE COLABORAR PARA QUE ESTA MUDANÇA
ACONTEÇA, NOEL ESCREVE UMA CARTA PARA OLÍVIO DUTRA, SEU
CONTERRÂNEO E AMIGO, QUE NA ÉPOCA ERA DEPUTADO FEDERAL,
FAZENDO SUGESTÕES SOBRE O ASSUNTO.
DEPOIS DE UM LONGO PERÍODO FORA DOS PALCOS COMEÇAM
A SURGIR REPORTAGENS QUESTIONANDO A AUSÊNCIA DO CANTOR
MISSIONEIRO. ESCOLHEMOS ALGUNS TEXTOS PARA ILUSTRAR ESTA
PASSAGEM QUE SE PROLONGOU DESDE O AUTO-EXÍLIO ATÉ A
ENFERMIDADE QUE O RETIROU DEFINITIVAMENTE DA VIDA ARTÍSTICA.
OS PRÓXIMOS CAPÍTULOS “ADEUS NOEL GUARANY” E OS DEMAIS
QUE SEGUEM ATÉ O FINAL DO LIVRO, TRAZEM REPORTAGENS E TEXTOS
SOBRE O PASSAMENTO DE NOEL E O SENTIMENTO EXPRESSO PELOS SEUS
MILHARES DE FÃS, CONTERRÂNEOS, COLEGAS E AMIGOS QUE NA FORMA DE
UM MAUSOLÉU CONSTRUIDO EM SUA CIDADE NATAL, TEXTOS PUBLICADOS
EM DIVERSOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO, ENTREVISTAS DE COLEGAS
ARTISTAS E CANÇÕES COMPOSTAS EM SUA HOMENAGEM DEMONSTRAM
O QUANTO É ADMIRADO ESTE ARTISTA QUE SE TRANSFORMOU EM UMA
LEGENDA DA MÚSICA MISSIONEIRA E O VALOR DE SUA OBRA PARA A
CULTURA GAÚCHA, QUE ULTRAPASSA AS FRONTEIRAS, TRANSFORMANDO-
SE EM UMA REFERÊNCIA PARA QUEM PROCURAR CONHECER COMO
ACONTECE A INTEGRAÇÃO DA CULTURA REGIONAL DO CONE-SUL.

CHICO SOSA

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PREFÁCIO

NOEL GUARANY, O GUITARREIRO


DAS MISSÕES
UMA TRAJETÓRIA DE POESIA E LIBERDADE
*Guiomar Terra dos Santos

Noel Borges do Canto Fabrício da Silva (Noel Guarany), o inigualável


cantor-poeta dos pagos missioneiros, nasceu em Bossoroca, em 26 de
dezembro de 1941, e morreu em 6 de outubro de 1998, na cidade de Santa
Maria. Foi criado em Garruchos e São Luiz Gonzaga, sendo filho de João
Maria Fabrício da Silva e Antoninha Borges do Canto. Deixa quatro filhas
(Lia, Linda, Laura e Andréia) e três netos (Luís Felipe, Laís e Amanda). Toda
a sua vida foi dedicada à música sul-riograndense, na pesquisa do folclore, do
ritmo e do verso genuinamente missioneiro. Segundo ele, seu trabalho tinha
como finalidade “divulgar o folclore campesino sul-americano”.
Como descendente de índios guaranis, Noel recebeu destes os
primeiros conhecimentos da cultura nativa. Autodidata, procurou aprender
sozinho o idioma guarani; também sózinho aprendeu a tocar, compor e cantar.
Aos quinze anos, tocava acordeon e, aos dezesseis, adotou como eternos
companheiro o violão.
A partir de 1960, passou a percorrer a América Latina com o esplendor
da sua voz e o som límpido e inigualável de seu violão, tornando-se o
responsável pelo registro do folclore da região das Missões e Alto Uruguai e
pela sua divulgação no Brasil e no exterior.
Seu trabalho não é mera inspiração poética. É resultado de incessante
pesquisa obtida através de entrevistas de índios e velhos violonistas, onde
coletou material sonoro para o ritmo inconfundível de suas milongas,
chamarritas e canções campeiras populares.
Iniciou sua carreira tocando em bailes e na rádio São Luiz, de São
Luiz Gonzaga. Fez um imensa trajetória pela América do sul, onde conheceu
intelectuais, folcloristas, peões de estância e descendentes dos Guaranis,
começando uma busca de integração da cultura dos povos sul-americanos.
Em 1962, fazia a divulgação de zambas argentinas e chilenas. Em 1968, era
responsável por um programa na rádio Cerro Azul, de Cerro Largo.

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Mais tarde Noel Guarany passou a fazer um programa na rádio Guaíba
e, após, na rádio Gaúcha.
Participou de alguns festivais e arrancou aplausos do público mais
simples ao mais exigente em espetáculos folcloristas. Realizou conferências,
apresentou-se para universitários e filosofou para intelectuais. O Palácio
Piratini teve, durante um ano, a presença de Noel Guarany em apresentações
artístico-culturais.
Seu trabalho foi, passo a passo, sendo reconhecido, chegando a ter
duas músicas suas sendo preparadas para ter gravação de Elis Regina. Entre
os compositores e músicos que admirava estão Aureliano de Figueiredo Pinto,
Jayme Caetano Braun, Cenair Maicá, José João Sampaio e Pedro Ortaça.
Noel Guarany, o payador missioneiro, nunca disse meias verdade. Foi
do canto lírico ao canto de denúncia social. Desentendeu-se com gravadoras
e com a Ordem dos Músicos, polemizou falsos valores e conceitos, criticou
o tradicionalismo que não representava a verdade sobre nossos costumes,
nossa história e nossa gente. Segundo ele um tradicionalismo e uma produção
cultural para vender: “Quando voltei ao Brasil, comecei a sentir cheiro de
podridão na arte do Rio Grande do Sul, ao ver cantores suburbanos vestindo
longas e espalhafatosas indumentárias de souvenirs para iludir turistas
trouxas”.
A postura irreverente e combativa fez com que recebesse o título de
“Payador Maldito”.
Acometido, há alguns anos de ataxia cerebral degenerativa, doença
que lhe tirou a coordenação motora e a memória, Noel Guarany que teve como
música mais popular e a 1ª música gravada “Romance do Pala Velho”, nos
deixa vasta produção artística registrada em um total de 12 discos incluindo
participações.

NOEL GUARANY, O POETA

Em toda a vasta produção discográfica de Noel Guarany, tem-se


sempre presente a alta qualidade tanto no ritmo quanto, na mensagem das
letras, quer suas, quer de outros compositores.
O registro do nosso folclore impregna toda a sua arte, sendo que seu
primeiro disco já mostra o talento inigualável do compositor e guitarrista
sulino que reavivou as canções costeiras e cantigas galponeiras popularizando
a região das missões : Argentina, Brasil e Paraguai.
Segundo Barbosa Lessa, o estilo de Noel Guarany pode ser definido
como “meio caminho entre a narrativa declamada e o canto propriamente
dito”. A partir da análise das letras compostas por Noel Guarany pode-se ir

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mais perto da descoberta da sua intelectualidade, seu “eu” poético onde se
mistura o folclore, o amor à natureza e à Pátria, o endeusamento da milonga,
o canto sensual, o orgulho, o sentimento nativista, a verdade, a irreverência,
tudo envolto em denso lirismo.

O amor e a exaltação à Pátria com verdadeira idolatria fluem
espontaneamente. Vejamos os versos 23 ao 28 de “Payador”:
O amor e a exaltação à Pátria com verdadeira idolatria fluem
espontaneamente. Vejamos os versos 23 ao 28 de “Payador”:
“Assim erguemos a Pátria
Como quem ergue um altar.
E guardamos sagrada
No viver e no cantar
As legendas missionárias
Que jamais hão de manchar”
Em Destino Missionário, aproximando canto e querência, diz-nos o
que será a matéria do seu cantar “Hei de cantar o Rio Grande pedaço do
Continente”
O misto do espírito condoreiro que quer sair do bairrismo, do regional
para o universal de um pouco que comunga de iguais costumes e tradição
estão expressos em Defeito (versos 27 ao 32):
“Regionalismo não falo
só em termos continentino
de Oceano para Oceano
do Caribe ao mundo Andino
meu povo só tem fronteiras
marcadas pelo destino”
A irreverência do poeta está presente em muitos de seus versos que,
quando musicados, mostram comunhão perfeita da guitarra irreverente como
o próprio “eu” do payador. Isto pode ter sentido no som contundente, límpido
e inconfundível de sua guitarra.

Vejamos em “Payador” (versos 3 ao 10):


“A Pátria é um fundamento
Um grito no descampado
É um eco renovado
Na garganta da querência
Desafiando a prepotência
Que quer ditar os valores
Mas a esses ditadores
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Não chama de excelência”
Nesses versos, Noel Guarany mostra a irreverência do seu “eu” ao ver
a pátria como sinônimo de liberdade, ao tê-la como “um grito no descampado”
sem limites, sem paredes, sem barreiras. Um grito que brota da “garganta da
querência”, para dizer não à subserviência “desafiando a prepotência que quer
ditar o valores, mas a esses ditadores não chama de excelência”.
A irreverência e o verdadeiro lema que se propõe - sempre dizer a
verdade - é reafirmado repetidas vezes em diferentes versos e por diferente
razões:
Pelo bem da história, em “Payador” (versos 17 ao 20):
“Por isso ao bem da história
hei de cantá-la altaneira
dizendo verdades nuas
no meu estilo campeiro”
Por ser dever do payador (versos 29 ao 32):
“É um dever do payador
zelar ao bem da verdade
com a guitarra nos tentos
no rumo da eternidade”
Por que a verdade tem preço, em “Total” (versos 29 e 30)
“Não nasceu senhor no mundo
que compre as minhas verdades”
Por ser um amante da verdade e resolver cantá-la:
“Com licença meus senhores
vou terminando a payada
cantando sou perigoso
porque a verdade me agrada”
(Total versos 31 ao 34)
Por que ela deve ser dita sempre (versos 14 ao 18 de “Pulperia”):
“Quando canto opinando
sempre fale as verdades
a quem estiver escutando
humilde para o peão de estância
e duro para um contestando”
O espírito impetuoso, forte, veemente se desfaz em mansidão
romântica e delicada em versos de amor, na composição poética de Queixosa,
onde o poeta deixa arrebatar-se pelos olhos lindos da morena com a qual não
pode ser feliz por ser pobre e cantor:
“Fui dançar com a morena, meu senhor,
Me disse que sim sorrindo e com amor!
Aí meu Deus, que olhos lindo, sim senhor!

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Que sorriso, flor e flor!
Em Sonho de Pescador, a sensibilidade acentuada traz a valorização
da natureza, revelando completa identidade entre o cantor guitarreiro capaz
de perceber detalhes e retratá-los em descrição poética só possível a quem
vive em harmonia com ela, como pescador que se deslumbra em seu contato:
“Se eu tenho um rio que murmura
E um rancho para viver
Um caíque pescador
E um amor para querer
E o canto da passarada
Pra alegrar o amanhecer”
(Versos 1 ao 6)
“Às vezes fico pensando
olhando o aguapezal.
O céu que espelha nas águas
Beleza fenomenal
O Uruguai que abraça a terra
Do pampa meridional”
(versos 13 ao 18)
O relato próprio de quem conhece e tem vivência do quotidiano
das lidas de campo aparece no poema “Boi Preto”, onde narra o embate da
peonada para matar a rês escolhida para ser carne de um dia de marcação:
“Dali levaram no laço
entre a casa e o galpão
indiada toda parelha
de causar admiração.
Nisso, sangraram o boi preto,
A carne pra marcação
(versos 37 ao 42)
O elevado sentimento de compaixão faz com que o gaúcho, mesmo
acostumado a lida campeira, se entristeça com a morte do animal. Nega-se,
assim, a brutalidade do gaúcho.
“Quando eu vi ele caindo
somente para morrer
pensei e olhei nas coxilhas
e não vi ninguém vai ver
Diz: está aqui neste mundo
Um que tenha o bem querer”
(“Boi Preto”: versos 43 ao 48).
Os bailes das Missões não poderiam jamais deixar de ser contados

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com o devido registro da presença dos artistas missioneiros que admira e o
auto-elogio ao cantar da Bossoroca, ele, Noel Guarany. Este enfoque pode ser
exemplificado em “Na baixada da manduca” letra de inspiração folclórica:
“O chinaredo lá da estância
Se prepara já faz dias.
Segundo sia Basilísia
Vai trazer várias famílias
Pra escutar o Dom Ortaça
E o gaiteiro Malaquias
E o cantor da Bossoroca
Que canta com galhardia”
(versos 11 ao 18)
A vaidade e o orgulho características do homem sulino, fazem-se
presentes na poética de Noel Guarany, num misto de auto-elogio, de gaúcho
simples e ingenuidade pachola e comovente como nestes versos de “Destino
Missioneiro”:
“Vou chegando mui faceiro
Pras pulperias sorrindo
Neste ritual primitivo
De orgia campejana
Me deu a sorte aragana
Ser pastor deste rebanho.
Se jogo truco ganho,
Se cantar comando farra,
Pois sou mesmo que a cigarra
Pra cantar de contra-ponto
Faço um cantor ficar tonto
E se manear na guitarra”
(versos 7 ao 18)
Ou, nestes outros de “Sonho de Pescador”, onde o pescador simples
e humilde costeiro se transforma no senhor das águas que em dia de festa é o
guitarreiro e o payador que arrasa corações como um feiticeiro, um irresistivel
conquistador:

“Sou pescador, sou costeiro.


Das águas eu sou o senhor!
Nas festas sou guitarreiro
Afamado payador.
Me chamou de feiticeiro
Numa parada da amor.”

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(versos 7 ao 17)
É vã toda e qualquer descrição que se faça de Noel Guarany se
nela estiver ausente a maior auto-descrição que este faz de si próprio: Ser
guitarreiro e payador.
“Ah! Payador indomado
sempre a cantar contra o vento”
(“Payador”, versos 1 e 2)
A condição de payador missioneiro é motivo de infinito orgulho para
ele. É um título que ostenta em versos de diversas payadas como nestes de
“Pulperias”.
Os amores que eu já tive
Nunca contei ninguém
Vivo cantando no mundo
Amando e querendo bem
Sou payador Missioneiro
Digo a importância que tem
(versos 31 ao 36)
Payadas e guitarreadas simbolizam a dedicação completa da vida de
Noel Guarany que declara ser toda a bagagem de seu conhecimento, toda a
sua lição de vida e visão do mundo adquiridas com sua guitarra.
“Me faço de chancho rengo
No meio da sociedade.
Já não sofro mais com os outros
Hoje entendo a humanidade
Total, por ser guitarreiro
Aprendi barbaridade”
(“Total” versos 31 ao 36).
Mostra-se um missioneiro feliz com sorte ímpar de ter nascido
guitarreiro. Humildemente, diz ter “manhas de literato” quando na verdade
compõe verso de qualidade literária incontestável. Vejamos em “Total”:
“Com licença, meus senhores
Vai cantar um Missioneiro
Com manchas de literato
E tino de bom campeiro
Total não há melhor sorte
Do que nascer guitarreiro”
(versos 1 ao 6)

Sua guitarra ganha vida e dá vida a pampa grande. Ela o “acompanha


gaudéria”. É uma figura de destaque a “Deusa da pulperia”, que auxilia seu

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canto e a fecundar, a reavivar valores:
E vou calando a guitarra
A deusa da pulperia
Que me acompanha gaudéria
Nas minhas andanças bravias
Fecundando o pampa grande
Alma, garra e melodia
(“Payador”: versos 41 ao 46)
A densidade das figuras de linguagem usadas na composição das letras
de suas músicas, se enfocados com direcionamento único, poderiam originar
um trabalho exclusivo, tal a riqueza e a diversidade de figuras que fluem
naturalmente no seio de seus versos, fazendo dele um verdadeiro literato.
Vejamos estes versos de “Pulperias”.
Às vezes duro de queixo
Às vezes meio macio
Às vezes com turbulência
Às vezes calma de rio
Destes que embalam estrelas
Em claras noites de frio”
(versos 19 ao 24)
A anáfora “às vezes”, que introduz cada verso, vai gradativamente
introduzindo a poesia, enquanto revela o poeta mais do que com palavras,
através das antíteses: “duro, macio, turbulência, calma” que mostram o ser
controvertido, retratado através das Metáforas “duro de queixo”, “meio
macio” “calma de rio”. A turbulência, no entanto, é ínfima porque a verdadeira
intimidade do poeta se revela na aguçada sensibilidade que demonstra ao
fazer uso da prosopopéia atribuindo ao rio, transferindo ao rio uma calma de
embalar as estrelas nele refletidas.
Ao ser capaz de captar esta imagem não se pode atribuir peso à
turbulência nem aceitar que lhe seja atribuído o título “Payador Maldito”.
Outra figura de linguagem presente em sua poesia e que aparece
repetidas vezes a demonstrar toda a imensidão de seu canto, dos seus anseios,
de sua impetuosidade é a hipérbole que ora aparece para mostrar a amplidão
do seu canto, como em Filosofia de Gaudério:
“Meu canto tradicional
Há de cruzar mil fronteiras”
Ora aparecendo para narrar as lutas da nação guaranítica para defender
sua terra como em Destino Missioneiro (versos 25 ao 28):
“Banharam campos e serras
com sangue de mil combates
sem saber que neste embate
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foi puro amor pela terra”
Ou, ainda, para descrever sua prenda preferida – a milonga, como na
letra de “Milonga Missioneira” (versos 5 ao 8)
“No Brasil meridional
és a lírica bandeira
quando em rodas galponeiras
um payador missioneiro
te ronca de mil maneiras”.
“Romance do Pala Velho” representa um amor a indumentária gaúcha.
O Gaúcho Feiticeiro, conquistador, certa vez foi na cidade “na maldita
perdição”: e lá perdeu seu “Pala Velho” motivo de infinita tristeza:
“Informem a vizinhança este triste sucedido” (versos 25 a 26).
Uma tristeza que o faz diminuto, pequenino, que usa em diminutivo
carinho “meu palinha velho” (verso 23) carregado da dor, do desespero de tê-
lo perdido. Desespero que o faz pelar pela ajuda de Deus “Deus permita que
apareça” (verso 8).
Quem fez isto com ele é um criminoso um bandido que lhe roubou
um bem de tanta estimação “Prendam este bandido” (verso 28), e também um
bem de tanta utilidade na vida de gaúcho humilde:
“E pelo mal dos pecados
Era o forro das crianças.
Com este meu pala rasgado
Passava campos e rios.
Com este meu palinha velho
Não temo chuva e nem frio”.
(“Romance de Pala Velho”, versos 19 ao 24)

Ninguém melhor para fazer sua biografia do que o próprio Noel


Guarany e, ele a faz, toda em versos em “Filosofia de Gaudério”.
Inicia a letra pedindo licença e atenção, pois com seu violão, em seu
estilo missioneiro, o gaudério e payador é um ser triste como todo gaúcho
cantor. (Verso 1 ao 10).

“Senhores, peço licença


Licença pede atenção
Que junto com meu violão
Num estilo missioneiro
Num lamento bem campeiro
De gaudério e payador
Pois se gaúcho senhor

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Que em todo pampa existe
É um homem que canta triste
Por isso eu nasci cantor”.
Diz trazer em si a linguagem, a imagem de índio sul-americano. (Verso 11 ao 16)
“Peço perdão aos senhores
Da minha xucra linguagem
Pois nela eu trago a imagem
Do pampa de muitos anos
De índio sul-americano
Bordoneado de heroísmo”
É o poeta sem escola que aprendeu seu ofício em meio aos costumes do povo
simples da campanha, que é simples, mas sempre altaneiro que se “a caso
levar rodada da um gritito e se levanta”. (Versos 19 ao 24):
“Força minha inteligência
Ser poeta sem catecismo.
Eu aprendi cantar versos
Em faculdades campeiras
Em reuniões galponeiras
E em bulichos de campanha
Tomando um trago de canha”
Sua pátria e seu canto são inseparáveis repontando seu destino que é sempre
cantar a Pátria (versos 29 ao 38).
“Meus versos de selva e campo
Se perdem ao vento teatino
Repontando meu destino
Campeia meu pensamento
Seguem juntinhos com o vento
Se amadrinhando comparsas
Qual duas nuvens esparsas
Em mútuo solidarismo
Acariciando o lirismo
De um branco bando de garças”
Confessa Ter um canto triste e xucro, de estilo tradicional, para o qual não
há limites, nem há fronteiras, pois que “há de cruzar mil fronteiras” sempre
com sua voz límpida e brejeira “num desabafo de peão que aprendeu a cantar
solito” e segue com medo da solidão: (do verso 39 ao 46).
“Mais triste que Urutau
Mais xucro que o pantanal
Meu canto tradicional

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A de cruzar mil fronteiras
Entoadas galponeiras
Romances de um rincão
Um desabafo de peão
Que aprendeu cantar solito”
Sua predisposição de gaúcho é bem clara e determinada ao dizer que
seu canto visará o bem, e apesar de cantor pobre se alegra a sonha, sonha
morrer cantando. (verso 49 ao 58)
“Nunca vou cantar pro mal
Meus versos são para o bem.
Muitos caminhos me vem
Quando me encontro payando
E se por ser peão, pobre eu ando
E se alegro com meu canto
Meus versos cheirando a campo
Faz-me prender sonhador
E se eu nasci pra cantar
Eu hei de morrer cantando”.
Este ideal de morrer cantando presente na letra da milonga missioneira:
“O meu rincão guarani / Eu hei de morrer cantando”, também está inserido
na letra de Queixosa: “Vou cantar a vida inteira, sim senhor. Eu hei de morrer
cantor!” Constitui esta expressão o verso final de “Filosofia de Gaudério”,
letra que ele mesmo define como sua autobiografia:
“Se eu nasci pra cantar eu hei de morrer cantando!”
Diante das reiteradas vezes em que afirma ser este seu sonho, ser este
seu desejo, creio que há muito nosso payador já não vive mais. Sua vida
expirou no momento em que a doença calou sua voz e sua guitarra, pois não
cantar significa morrer para quem tanto almejou “morrer cantando!”.
Um payador! Uma guitarra!
Versos de força poética que se entrelaçam e se harmonizam ao som
mágico das cordas de uma guitarra cuja sonoridade faz ressoar todo o ímpeto,
a força viva, a emoção, a unir canto lírico e irreverência, sonho e realidade.
Versos que reavivam valores dos nossos antepassados, a nossa
histórica, os nossos costumes com a determinação e o talento de alguém que
consegue ser único e por isso incomparável, inimitável. Alguém capaz de
unir “Alma, garra e melodia” e que acreditou acima de tudo que “nativismo é
recompensa, folclore pra replantar”.
Noel Guarany morreu cantando, sim! Seu canto será eterno!
Outubro 1998
*Guiomar Terra dos Santos é professora de Português e Literatura

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INÁCIO DE LOIOLA
(O FUNDADOR DA ORDEM JESUÍTICA)

E O INÍCIO DAS REDUÇÕES JESUÍTICAS


NO CONE SUL

Iñigo Lopez de Loiola nasceu no ano de 1491, no Castelo de Loiola,


em Azpeitia província de Guipuzcoa no Pais Basco, sendo o último de treze
irmãos de uma nobre família da Espanha. Fidalgo e soldado, entrou para o
exército em 1517, onde temperou seu espírito no exercício das guerras, no
heroismo das refregas sangrentas. Lutou contra os franceses que invadiram
Navarra, quando em Pamplona já como capitão resiste com grande bravura
em uma fortaleza, sendo ferido é transportado para o Castelo de Loiola,
onde é submetido a duas intervenções. Durante a convalescença, depois
de ler livros sobre a vida de cristo e de outros santos inicia sua conversão.
Quando se recuperou fez uma dura penitência em Manresa (1522), onde
escreveu o seu Livro de Exercícios Espirituais, depois segue em peregrinação
pela Palestina. Retorna resolvido a pregar os seus exercícios espirituais e
sofre muitas calunias e perseguições. Resolve estudar e se matricula na
Universidade de Paris, em 1528, onde congrega um grupo de discípulos e
amigos, entre eles Francisco Xavier que depois veio a ser santificado. Em
1534 recebeu o grau de mestre em artes, neste mesmo ano junto com os
companheiros resolve organizar a vida espiritual, e na colina de Montmartre
fazem os votos de castidade e pobreza. É ordenado sacerdote em 1537.
Depois de sofrerem várias perseguições, fundam a Companhia de Jesus que
vem a ser aprovada pela bula papal no ano de 1540. No ano seguinte Loiola
é nomeado Geral da ordem recém fundada, cargo que exerceu até o fim
da vida. Em 1541 Loiola funda o colégio Romano, a atual universidade
Gregoriana. Em 1549 manda ao Brasil, junto com a expedição do governador
Tomé de Souza o Pe. Manoel da Nóbrega e mais cinco companheiros. Em
1553, junto com outros companheiros chega José de Anchieta, que será
chamado de O Apóstolo do Brasil, fundam os colégios de São Vicente,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Pernambuco e outros. Com a fundação de
São Vicente, ruma para o sul a atividade apostólica dos jesuítas.
Como decorrência natural da expansão da Companhia no Brasil,
depois de muitos anos de tratativas e especulações é fundada a Província
Jesuítica do Paraguai. Em 1585, o bispo de Tucumã, D. Francisco Vitória,
19
intercede junto ao governador da Bahia e ao provincial do Brasil para a ida
de uma missão da Companhia ao Paraguai. Depois de muitos contratempos
e incidentes, os padres João Saloni, Tomas Fields, e Manoel Ortega são
recebidos festivamente pelo governador e gentes principais de Assunção, no
dia 11 de Agosto de 1588, marcando a data inicial da missão do Paraguai. Em
1599 falece o Pe. Saloni, ficando sob a responsabilidade dos Padres Fields
e Ortega a catequese do Paraguai, Sendo o Pe. Manoel Ortega considerado
o iniciador das missões entre os índios, no cone sul americano, abrindo
caminho para que em 1609 sejam fundadas as primeiras reduções do Guaíra,
iniciando a saga missioneira que durante um século e meio, desenvolveu uma
civilização que deixou um legado sócio-econômico, histórico e cultural que
constaram de trinta povos e marcaram o desenvolvimento de uma imensa
região que hoje se divide entre três países. Brasil, Argentina e Paraguai.

OS TRINTA POVOS MISSIONEIROS

Com a morte do padre Antônio Ruiz de Montoya, a primeira fase das


Reduções está praticamente terminada: 38 Reduções haviam sido destruidas
ou abandonadas, outras haviam sido fundadas em zonas mais seguras. Ficaram
22 Reduções em funcionamento, algumas das quais reuniam as populações
retiradas de Guairá, de Uruguai, do Tapé, que depois de peregrinarem por
diversas localidades haviam conservado seu nome de origem. De 1680
a 1707, fundaram outras oito. Os trinta Povos constituiriam o complexo
chamado “A República Guarani” ou “O Estado Jeuítico do Paraguai”. Das
trinta localidades, oito estavam situadas no território do atual Paraguai: São
Ignacio Guazú (1610); Itapúa (Encarnácion) (1615); São Cosme e Damião
(1632); Santa Maria (1647); Santiago (1651); Jesus (1685); Santa Rosa de
Lima (1698) e Trinidad (1706); Quinze na República da Argentina: Loreto
(1610); São Ignácio Mini (1610); Concepción (1619); Corpus Christi (1622);
Santa Maria a Maior (1626); Candelária (1627); Ypeyú (1627), La Cruz
(1628); São Javier (1629); São Carlos (Borromeo) (1631); Santos Apóstolos
Pedro e Paulo (1631); Santo Tomé (1633); Santa Ana (1633); São José (1633)
e Santos Mártires del Japón (1633). As sete restantes se encontravam no atual
território do Brasil: São Nicolau (1626, retorno em 1687); São Miguel (1632,
retorno em 1687); São Francisco Borja (1682); São Luiz Gonzaga (1687);
São Loureço (1690); São João Batista (1697) e Santo Angelo (1707).

20
OS SETE POVOS DAS MISSÕES
DO RIO GRANDE DO SUL

As frequentes incursões dos portugueses e espanhóis pela banda


oriental do rio Uruguai, o desenvolvimento do caminho entre Laguna e
Colônia do Sacramento, a exploração da erva mate, que além do consumo
interno, se tornava um florescente comércio de exportação com Buenos Aires
e a cobiça que as estâncias de gado despertavam entre estes cruzadores, foram
fatores determinantes para que os jesuítas depois de mais de quatro décadas,
desde quando foram expulsos pelos bandeirantes da região centro do atual Rio
Grande do Sul, resolvessem novamente fundar reduções na margem esquerda
do rio Uruguai.
A formação destas reduções obedeceu a seguinte cronologia:
Em 1682, uma colônia da Redução de Santo Tomé cruza o rio Uruguai
e funda o povo de São Francisco de Borja; No dia 2 de fevereiro de 1687, São
Nicolau se separa de Apóstoles e retorna à margem esquerda do rio Uruguai
para próximo ao local que ocupava em 1626; No mesmo ano, um grupo do
povo de Conceição, forma o povo de São Luiz Gonzaga e ocupa o posto onde
foi Candelária no Caaçapá-mini, mais tarde se muda para o local que hoje
ocupa; Ainda em 1687, o povo de São Miguel, antiga redução fundada no
Tape, na primeira fase das reduções, retorna e localiza-se entre o Piratinizinho
e Santa Bárbara, afluentes do Piratini; Devido aos resultados positivos, três
anos depois, em 1690, é autorizado aumentar o numero das reduções nesta
região. Da redução de Santa Maria Maior, sob a coordenação do Pe. Bernardo
de la Vega, vem uma parte da população que recebe o nome de São Lourenço
Martir e se coloca entre os povos de São Luis e de São Miguel; No ano de
1697, afim de descongestionar o povo de São Miguel, cuja população crescera
muito, o Pe. Antonio Sepp, funda a redução de São João Batista; O último dos
Sete Povos foi o povo de Santo Angelo Custódio, fundado no ano de 1706,
com uma contribuição do povo de Conceição, inicialmente se localiza entre
os rios Ijuí Grande e Ijuizinho, depois no ano de 1707, se desloca mais para o
norte aonde ainda hoje se encontra a cidade de Santo Ângelo.

21
CRUZ DE LORENA E SÃO MIGUEL

CRUZ DE LORENA E SÃO MIGUEL

22
CRUZ DE LORENA

A cruz de Lorena teve este nome em virtude de provir da região


Francesa de Lorena, que se situava entre a França e a Alemanha. No século
IX, cada região ou Ducado tinha sua bandeira com seu brasão. No Ducado
de Lorena, o rei Lotário, como bom católico, mandou colocar uma cruz
na sua bandeira e a escolhida foi esta que ficou batizada como CRUZ DE
LORENA, tal como é até hoje. Com o passar dos anos a cruz tornou-se o
símbolo das armas da França. Logo para onde expandissem as conquistas
francesas ia também a cruz de Lorena e desta maneira chegou a Espanha,
onde algumas vezes é confundida com a cruz de Caravaca, da cidade deste
nome, que esteve sob o dominio Frances por aproximadamente 60 anos.
Depois devido o casamento da família Bourbon com a nobreza espanhola,
esta cruz implantou-se de vez na Espanha e foi de lá que partiram os Jesuítas
em direção a América, implantando aqui suas reduções e trazendo a sua cruz,
isto é a CRUZ DE LORENA. Deste modo ela chegou até nós, e deu origem a
nossa CRUZ MISSIONEIRA, que difere da Cruz de Lorena por um pequeno
detalhe,a Cruz de Lorena original tem as suas hastes terminadas em um
trifólio e a Missioneira termina em corte reto.

O MUNICÍPIO DE BOSSOROCA

Criado em 12/10/1965, o município desmembrou-se de São Luiz


Gonzaga. Tem como etnias predominantes os imigrantes alemães, italianos,
espanhóis, lusos e nativos. Localizada a 550 Km da capital do Estado, numa
altitude de aproximadamente 250m acima do nível do mar, clima subtropical.
Suas terras são planas, altas, com pequenas regiões de rochas. Segundo
o censo 2000, o município contava com 4016 homens e 3781 mulheres.
Segundo a historiografia oficial, consta que a origem do nome
Bossoroca tem suas raízes nos carreteiros, tropeiros e mascates que por ali
passavam, sesteavam e pernoitavam próximo ao cemitério de Igrejinha, local
que oferecia condições para um bom descanso, capão de mato à margem da
estrada geral, com sombra e água límpida e farta, que nasce dentro de uma
barroca. A essa barroca deram o nome de “boçoroca”, vocábulo guarani que
significa sangão fundo, fenômeno que ocorre por efeito das águas em terrenos
arenosos. Antigamente escrevia-se “boçoroca” e, nos dias atuais, a grafia é
Bossoroca. O município tem uma área de 1.528,2 quilômetros quadrados.

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DESTINO MISSIONEIRO
Noel Guarany

Este destino me fez São passado que me orgulho


Cantor em muitas “payadas” De cantar com alma aberta
Parceiro de guitarreadas E há de ser rimas bem certas
Em pulperias estranhas E as cordas bem afinadas
Passatempo de campanha A garganta bem afiada
Que em dia santo e domingo E os acordes bem certeiros
Cada qual em melhor pingo E assim qualquer brasileiro
Num dia folgado e campeiro Ou se escuta algum paisano
Vão chegando mui faceiro Verá que é sul americano
Pra pulperia sorrindo O canto de um missioneiro

Nesse ritual primitivo Verão que as raças se uniram


De orgias campechanas Num potencial varonil
Me deu sorte aragana Pra levantar o Brasil
Ser pastor desse rebanho Índios, gringos e mestiços
Se jogar truco ganho Sem medir sacrifícios
Sem sede sem sentir sono
Se cantar, comando farra Como se a terra, seu trono
Pois, sou mesmo que cigarra Lutando com força e fé
Pra cantar de contraponto Igual como gritou Sepé
Faço um cantor ficar tonto A nossa terra tem dono.
E se manear na guitarra
Evoco o santo cacique
Canto terra, pampa e rio, O imortal Tiarajú
Com campeira vivência Que deu pra este Xirú
De filho desta querência A sublime inspiração
Feito a casco de cavalo De lutar por este chão
Onde os buenos e os malos No mais sério patriotismo
Vaqueanos de muitas guerras Da lança para o lirismo
Banharam campos e serras Da tradição ao presente
Com sangue de mil combates Da incertidão ao consciente
Sem saber que nesse embate Pra o puro brasileirismo
Foi puro amor pela terra.

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Se não entendem meu canto
Neste país muito grande
Hei de cantar meu Rio Grande
Pedaço de continente
E se cantar o que a alma sente
É falta pra um pecador
Meu patrão Nosso Senhor
Que perdoe este gaudério
Vou levar pra o cemitério
Este destino cantor

PROCURA-SE
Procura-se um meio de sensibilizar às massas para aprenderem a
compreender a mensagem do amor, ódio e fraternidade, de quem com seu
humilde instrumento musical anda a clamar.
-Amor pela terra, para que a tratem bem.
-Ódio para aqueles que desrespeitosamente desprezam as humildes
mas sinceras manifestações líricas da poesia voltada para o terrunho.
-Fraternidade para aqueles que, feudalisticamente, as custas da
política, quiseram nos dividir, mas tudo foi infrutífero, porque jamais irão
estancar a cultura das nossas fronteiras.
Somente com a vontade maquiavélica dos colonizadores culturais,
que, deleteriamente buscam descaracterizá-la. Mas nós, os payadores
da América, com a guitarra na mão, não deixaremos sucumbir, pois a soma
traduz seis letras importantíssimas: “Pátria”.
“Assim queremos ver a Pátria / Andar por trilhas singelas / Pátria não
é sociedade / São ânsias verde - amarelas / Queremo-la una e liberta / Sem
bichos e sem mazelas”.

Com carinho, Noel Guarany

25
GENEALOGIA DE NOEL
GUARANY
NOEL BORGES DO CANTO FABRICIO
DA SILVA
Filho de João Maria Fabricio da Silva e de Antonia Borges do Canto.

Sua ancestralidade paterna esta ligada a José Fabricio da Silva,
italiano que veio de São Paulo em data não identificada e que recebeu uma
sesmaria de campo na região da Bossoroca onde se estabeleceu em 1823,
deixando uma grande descendência. Do ramo materno, é descendente direto
de Francisco Borges do Canto, irmão de José Borges do Canto, que recebeu
várias quadras de sesmarias na região das missões.
Baseado em estudo genealógico feito pelo eminente historiador
Aurélio Porto (vol. IV da História das Missões Orientais do Uruguai), sabe-se
da importância e influência que teve a gente de Borges do Canto, na formação
das fronteiras do sul. José Borges do Canto, deixou o seu nome ligado a
conquista dos sete povos das missões do Rio Grande do Sul.
Esta ligação genealógica de Noel Guarany à Borges do Canto,
vem descrita pelo historiador, Raul Pont em sua preciosa obra “CAMPOS
REALENGOS, Formação da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul” Vol.
I.

BREVE CRONOLOGIA DE NOEL GUARANY

-- Noel Borges do Canto Fabrício da Silva, nasceu no município


Bossoroca, antigo distrito de São Luiz Gonzaga, no dia 26 de dezembro de
1941 e faleceu em 06 de outubro de 1998.
-- Em 1956, com quinze anos, aprende por seus próprios meios a tocar.
Inicia com um violão só com três cordas, e depois passa ao acordeon que
chega a tocar razoavelmente. Depois compra um violão que se transforma
no seu companheiro de todas as horas com o qual desenvolve uma técnica
própria.
-- Em 1960 emigra para a Argentina onde executa diversos trabalhos

26
desde tarefeiro de erva-mate, lenhador, balseiro, etc... Depois peregrina por
Buenos Aires, anda pelo Uruguai, Paraguai, Bolívia onde convive com muitos
músicos, aperfeiçoa o violão e aprende muito sobre a cultura musical platina.
-- Entre 1960 e 1968, peregrina por todos os países do Prata, e por
estâncias do Rio Grande do Sul tocando, cantando e enriquecendo o seu
conhecimento sobre a cultura regional.
-- Em 1968, faz o seu primeiro registro fonográfico em um compacto
simples com as músicas romance do pala velho e FILOSOFIA DE GAUDÉRIO,
acompanhado pelo cantor e compositor Cenair Maica, com quem já estava
fazendo dupla, e se apresentando em alguns festivais na Argentina.
-- Em 1970 O duo Guarany e Maica fazem um grande sucesso no
VII Festival do Folclore Correntino em Santo Tomé onde são elogiados pelo
diretor da rádio L.R.A. 12, pelas suas participações em duas edições especiais
na referida emissora.
-- Em 1971 grava o seu primeiro LP. Legendas missioneiras que tem
como parceiros importantes nomes da cultura gaúcha, entre estes, Jaime
Caetano, Glenio Fagundes, Aureliano de Figueiredo Pinto.
-- Em 1971 e 72, viaja por vários estados fazendo espetáculos e
divulgando o seu primeiro LP.
-- Em 1972, Casou com Neidi da Silva Machado, missioneira de São
Luiz Gonzaga. Passa a residir em Porto Alegre, para ficar mais próximo dos
meios de divulgação
-- Em 1973, grava o seu segundo LP. DESTINO MISSIONEIRO, e
continua viajando pesquisando e divulgando a música missioneira.
-- Em 1975 Grava o LP sem fronteira e participa do disco música
popular do sul, produzido em São Paulo pela Marcus Pereira Discos. Cria
em Tramandaí na Avenida Beira-Mar a Penha Guarany, um espaço onde se
reuniam os maiores nomes do folclore gaúcho para cantar e recepcionar os
convidados.
-- Em 1976, Grava o LP independente com participação de Jaime
Caetano Braum, payador, pampa e guitarra, lançado simultaneamente no
Brasil e na Argentina com participação especial dos artistas Raulito Barboza e
Palermo. Neste mesmo ano inicia no rádio em Porto Alegre, assinando carteira
na Rádio Guaíba e participando do programa Brasil Grande do Sul com Jaime
C. Braum e Flavio Alcaraz Gomes, depois passa para a rádio Gaúcha onde
produz e apresenta o programa Tradição e Folclore.
-- Em 1977 faz um espetáculo na Assembléia Legislativa pra divulgar
o LP. Payador, Pampa, e Guitarra, com a participação Raulito Barbosa,
Palermo e Argentino Luna.

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-- Em 1978, lança o LP. Noel Guarany canta aureliano de figueiredo
pinto que vai marcar época no Rio Grande do Sul, pois vem resgatar a obra e
a memória de um dos maiores poetas do regionalismo gaúcho.
-- Em 1979 Grava o LP. DE PULPERIA, que continuando na sua
intenção de promover a integração da cultura platina traz parcerias com
Atahualpa Yupanqui, Anibal Sampayo e Mario Milan Medina.
-- Em 1980 Grava o LP alma garra e melodia, iniciando uma parceria
com João Sampaio da Silva que vai render preciosas obras e uma sólida amizade.
Nesta época a doença (ataxia cerebral degenerativa) que progressivamente
vai lhe tirar todos os movimentos e condena-lo a um calvário, que se arrastara
por muitos anos até ao óbito, começa a se manifestar. Tem lapsos de memória,
esquece letras de músicas se torna mais inquieto e amargo, sente que algo de
anormal esta acontecendo e começa a beber com mais freqüência.
-- Em 1982 lança o LP para o que olha sem ver, titulo em que faz
uma homenagem a Don Atahualpa Yupanqui, que tem uma música com este
mesmo titulo em espanhol, à qual Noel interpreta neste disco. Grava quatro
letras de João Sampaio, reafirmando a sua parceria com ele.
-- Em 1983, quando estava morando em Itaqui, escreve uma carta
aberta a imprensa, aonde expressa o seu descontentamento com descaso dos
órgãos públicos para com a classe dos artistas fonográficos. Finaliza a carta
dizendo que vai parar de cantar até que as autoridades competentes tomem
uma providência.
-- Em 1984 fixa residência na cidade de Santa Maria, local que
residiu até terminar os seus dias. Nesta cidade faz uma contrato com uma
produtora para uma série de espetáculos na região centro do estado. Neste ano
a gravadora RGE lança o LP o melhor de noel guarany, é também reeditado o
LP payador pampa e guitarra.
-- Em 1985 se retira dos palcos conforme a promessa que fizera na
carta aberta a imprensa em 1983.
-- Em 1988 grava com Jorge Guedes e João Máximo, parceiros de São
Luiz Gonzaga o LP a volta do missioneiro. Grava com Jaime Caetano Braum,
Pedro Ortaça e Cenair Maica o LP troncos missioneiros. Se pode notar que
a doença esta afetando o seu registro vocal, já não tem o vigor e clareza dos
áureos tempos. É relançado também neste ano o LP de pulperias.
-- Nos anos a seguir permanece recolhido ao seu auto exílio.
Os veículos de imprensa de todo o estado os colegas artistas e os amigos
questionam freqüentemente a ausência do ídolo missioneiro. Sua vida segue
uma via-crucis, com a doença cada vez mais acentuada que aos poucos vai lhe
tirando toda a atividade motora, necessitando cada vez mais de auxilio para as
funções mais primárias.

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-- Em 1998 no dia 06 de outubro dá o seu último suspiro na Casa de Saúde
em Santa Maria. Seu corpo é transladado para o município de Bossoroca,
sua terra natal, onde hoje repousa em um mausoléu especialmente construído
para abrigar os restos mortais do filho mais popular do município, que morreu
xucro e autêntico como sempre viveu.

TÍTULOS RECEBIDOS

Em 1976, Foi agraciado pelo grupo “Os Morubixabas”, pelos serviços


prestados ao Folclore.
Em 1982 recebeu da Rádio Central Missioneira um Diploma pela
contribuição ao Espetáculo Musical “Canto Missioneiro”
Em 1983, as Missões são reconhecidas como Patrimônio, Histórico da
Humanidade, onde muito do mérito está em seu trabalho de divulgação.
Em 1984, recebeu do jornal “A Notícia”, o diploma “Gente nossa que
faz sucesso lá fora”,
Em 1984, recebeu da Rádio São Luiz o diploma de Personalidade do
ano em Nativismo.
Em 1989, durante a VI Mostra da Arte Missioneira, recebeu diploma
pelo serviço prestado ao Desenvolvimento Cultural Missioneiro.
Em 1991, durante a VII Mostra da Arte Missioneira, recebeu Diploma
pela contribuição à Cultura Missioneira, e Troféu como Homenageado de
Honra.
Em 1993, durante a IX Mostra da Arte Missioneira, recebeu o título de
Embaixador da Arte Missioneira.
Em 1993, Recebeu pelo Chamamento do Pampa em Passo Fundo,
troféu Homenagem Especial do 1º Te Déum de Payadores da América Latina.
Em 1999, durante o Manancial Missioneiro da Canção, 5º edição, na
Bossoroca, foi instituído o Troféu Noel Guarani, para o melhor tema Missioneiro.
Em 18/03/99, foi sancionada pelo Prefeito Municipal de Santa Maria,
Lei 4212/99, instituindo a COMENDA NOEL GUARANI, a músicos e
grupos musicais que se destaquem na produção musical do Município.
Em 19/11/2001 de acordo com o Decreto Legislativo nº 137, foi
também instituída no Plenário Municipal de São Luiz Gonzaga a 1º “Comenda
Noel Guarany”, que será entregue a músicos que tenham destaque na cidade.
Em maio de 2002 foi instituído o troféu Noel Guarany, para premiar a
música mais popular do 1º Minuano da Canção Nativa na cidade de Santa Maria.

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Noel gravou 31 músicas de sua autoria e 53 de vários autores, totalizando 84
músicas...

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MINHAS ANDANÇAS
Lembro-me quando em 1956, nós caminhávamos muito a pé, para
irmos aos bailes que aconteciam normalmente em casas de famílias e de
quando em vez, improvisava-se em ramadas com chão batido de cupim, o
qual umedecia-se bem para não levantar muita poeira, dançava-se até o clariar
do dia e divertíamo-nos muito. Não havia caixas de som, aparelhagens. O
instrumento era um acordeon e um violão, muito raramente um bandoneon.
Nesse tempo ainda não haviam CTGS. Em 1958, eu já havia começado a
tocar violão. Eu já havia descoberto o crime que o acordeon fez ao violão ou
guitarra, como se diz na Argentina ou Uruguai, pois, como diz a quadrinha
popular:
A gaita matou a viola,
O fósforo matou o isqueiro,
A bombacha, o chiripá,
A moda o uso campeiro.
Nessa época eu andava peregrinando, nos bailes e festas junto com
o Reduzino Malaquias. Havia em São Nicolau, um tradicionalista muito
autentico, o qual muito me aconselhou e gostava muito da nossa música, era
o Capitão João Silva. Resolvemos fundar o CTG “Primeira Querência do
Rio Grande”, com a finalidade de educar aquele povo, muito animalizado
na época, era raro o dia que não matavam alguém. Em 1964, surgiu o MTG
e o nosso CTG foi virando apenas mais uma bailanta e perdeu totalmente
o sentido de um Centro de Tradições. Eu empunhava meu violão e saia a
percorrer estância por estância. Nessa época não havia televisão, apenas
alguns rádios e tal era a alegria do povo, com a minha chegada, que logo
carneavam uma vaca e largavam um “próprio” (mensageiro) à vizinhança,
avisar que eu havia chegado e que viessem conhecer o violonista e já estava
formado o baile. Aí eu amanhecia tocando para o povo dançar. Eu ficava dois
ou três dias em cada estância. De quando em quando eu ia para os “comércios
de carreiras”, tocar violão e comer churrascos. Estes eram muito animados.
A cerveja que tomávamos nestes locais eram quentes. Fazia-se um buraco no
chão, mais ou menos grandes, dentro das carpas e punha-se água. Molhava-
se um bolsa de estopa e punha-se acima das garrafas. Ai ficávamos de três
a cinco dias, correndo carreiras de dia e formando-se bailes à noite, junto a
prostitutas. Às vezes de cola atada. Tudo ao som do meu violão. Não estava
ainda definida a música missioneira.
Em 1960, fui servir a Pátria, no 3º Regimento de Cavalaria de São
Luiz Gonzaga, muito orgulhoso, pois já me considerava um homem. Ingressei

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no curso de cabo de comunicações, já que comunicação para mim, é uma
vocação. Mas logo vi que os ministradores do curso, sem distinção de oficiais
graduados a sargentos davam mais valor a um analfabeto puxa-saco do que a
um homem positivo e de fibra. Me desiludi, com isso, então fui negligenciando
até sair expulso do curso. Voltei novamente ao violão, conseqüentemente a
uma boêmia forçada e natural. Não cuidei mais da vida na caserna.
Foi descoberto, nesse tempo, um grande roubo na unidade, liderado
por majores e capitães até aos soldados rasos. Foi outra desilusão que tive.
Não podia acreditar que militares graduados também roubassem. Aprendi
mais tarde que o roubo e a corrupção foram os maiores amigos das ditaduras
militares. Em seis meses de caserna, acossado por castigos e prisões,
presenciar o banditismo efetuado por um tenente psicopata e sanguinário,
que prendeu um soldado de apelido Cêbo, porque o mesmo havia roubado
um revolver 45, e seus companheiros de farra haviam lhe roubado o mesmo
revolver. Essa arma o soldado Cêbo, tomava emprestada ao almoxarifado
quase todos os dias, devolvendo-a no dia seguinte. Nem o Comandante do
Esquadrão, nem o Oficial de Dia, descobriam sua arte. Mas a raposa tanto vai
ao ninho que um dia deixa o focinho, como não pode fazer a devolução, foi
descoberto o roubo. Aberta a sindicancia chefiada pelo tenente Moreira Pinto,
este prendeu o soldado. O tenente levou-lhe a um solitário e retirado local
chamado picadeiro, onde fazia-se equitação em dias de chuva, e aí fazia todo
e qualquer tipo de safadezas e atrocidades, num homem atado e sem defesa,
para que confessasse a quem havia vendido a arma. Como lhe haviam roubado,
não poderia saber. Foi levado então ao Quartel General, com sede em Santa
Maria, para ser ouvido. No caminho, assustaram-lhe tanto como condenação
à morte, prisão perpétua, que o apavoraram a tal ponto que na viagem feita de
Maria fumaça, ao ultrapassar uma ponte, o soldado suicidou-se. Vendo que
uma guarda de ferro passava a poucos centímetros do trem, ele tirou a cabeça,
dando fim a sua vida e deixando impunes seus responsáveis. Vendo isto,
desertei e fui para a Argentina. Neste país comecei como tarefeiro nos ervais
de Concepcion de La Sierra, junto a um tio meu que morava nos ervais de
Santa Maria, espécie de Distrito dessa cidade. Posteriormente, como existiam
várias propostas para desmatamento em San Xavier, Missiones, para o plantio
de cana de açúcar, pois queriam fundar uma usina de açúcar e álcool em San
Xavier, fui para lá, cortar lenha em metro, pois a cooperativa iria consumir
muita lenha. Acabei colaborando assim para destruir a ecologia daquela rica
região em matas, caças, até onça parda existia e eu, totalmente ignorante,
colaborei para a largada do mioto no nosso rio Uruguai. Conseqüentemente,
o desequilíbrio ecológico em ambas as margens do seu leito que tinha águas

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azuis e cristalinas. Não aguentei o serviço e vim para o Brasil, levar gente
para cortar cana, gente essa composta de todo tipo de marginais, que não
tinham para onde ir e para lá se aventuravam. Brigas e entreveros de cachaça,
taios de palmo e meio, pois andavam todos armados de facão, eram quase que
diárias. Todas as segundas feiras, estava eu nas comissárias para afiançar e
tirar maus elementos que trabalhavam comigo. Como eu tinha livre transito
entre os comissários, pois tocava violão para eles, participava de festinhas,
não tive problemas para tal. Mais tarde, abandonei esse serviço e fui trabalhar
numa lancha com o Sr.. Getulio Cândia. Onde aprendi a conduzir lanchas
e acabei me radicando, e fazendo parte da Marinha Argentina. Aí trabalhei
muito tempo, passava contrabandos dos quileiros ao Porto Pindaí, e porto
Xavier, no Brasil. Algumas vezes, nós puchavamos algumas balsas de
madeira para a mesma andar mais depressa, quando o rio começava a baixar.
A balsa levava madeira para os grandes exportadores de matéria prima que
havia em Federacion (Hoje Federacion está debaixo d’água), nem as balsas
existem mais. Em 64 elas foram proibidas. Tive nessa época, oportunidade de
conhecer grandes intelectuais, onde tive grandes amigos e conselheiros como
o Dr. Lizardo Morales, que me diziam: “Se existe a música de Corrientes, a
música de Entre-Rios, e de tantas outras regiões, porque as Missões, no Rio
Grande do Sul, não têm esse tipo de música?” Então, numa ida ao Paraguai,
fiquei sabendo da importância da música de uma região, de um estado, de um
país. Um dia, no Mato Grosso, fui a São Luiz de Cáceres e dali, tocando violão
sempre, fui convidado para passar para a Bolívia. Fui até Santa Cruz de La
Sierra, chegando num restaurante comecei a tocar, para poder comer e tomar
uns tragos. Começaram a chegar musiologos locais, com seus instrumentos e
anunciarem “canções de sua terra”
Nesse ínterim, chegou a polícia boliviana, revistou-nos e ficou por
ali, aparentemente escutando música; notei que me olhavam muito. Eu falava
com um e outro e tinha um excelente e correto castelhano. Até que me pediram
a identidade, mostrei-a, mas não adiantou pois eles estavam acostumados
com identidade do Mato Grosso, que era diferente. Então me levaram preso
a corregedoria. O corregedor não se encontrava, pois era pouco após o meio
dia. Fiquei detido por duas horas ou mais, esperando o chefe para explicar-
lhe que eu era do Rio Grande do Sul, que eu não era Paraguaio. Que eu
estava apenas conhecendo a cidade. Naturalmente o chefe iria entender minha
explicação, pois os soldados militares me pareciam demasiado hostis. Com
a chegado do chefe, expliquei-me e fui liberado. Voltei ao Brasil imbuído de
descobrir onde estava a música missioneira. Como era grande a dificuldade
financeira, depois de muito peregrinar, cheguei a Buenos Aires. Hospedei-me

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em um pequeno hotel e na parte da manhã, eu procurava entrar em contato
com musiologos, folclorologos e comunicadores, à tarde eu pegava o violão
e ia para os bairros, fins de linha. Como eu estava com o violão, não faltava
um portenho a perguntar-me o que eu fazia com a guitarra. Respondia-lhe que
tocava, que era de Corrientes mas que sabia tocar tango, respondia sempre em
castelhano. Começava a tocar e dentro em pouco já estavam passando o chapéu
e tiravam dinheiro para minha despesa diária. Assim, consegui contato com
grandes violonistas da época, aprendendo novas técnicas e tomando novos
rumos ao violão. Voltando a Porto Alegre, comecei a introduzir a música
missioneira em todos os meios possíveis, que tinha oportunidade.
Parecia-me um castigo quando nos rancherios mais humildes fosse
do país que fosse, com olhar sincero de patriotismo, um campesino, mesmo
abandonado, pelos governos e instituições, dizia ao empunhar qualquer
instrumento: “Vou cantar uma canção de minha terra”. Eu considerava uma
verdadeira afronta, isto porque, no Brasil, não existia canto missioneiro, aos
poucos fui me conscientizando do enorme pecado que estava cometendo
pois estava me tornando um grande instrumentista e um aplaudido cantor
campesino só daquilo que o rádio da época tocava e ensinava a tantos outros
tocadores e cantadores como eu vez ou outra tentava ler alguma coisa e mais
o enigma de minhas origens despertando minha curiosidade de saber quem
sou eu, o que estou fazendo aqui? De onde venho? E pra onde vou?
Nessa época o sucesso nas gravações eram do catarina Pedro Raimundo,
os irmãos Bertussi estavam começando, no rádio era “Coração de Luto”,
“Chot Soledade”, “Gaúcho de Passo Fundo”, do Teixeirinha e “Pára Pedro”
de José Mendes. Além disso o rádio vivia a martelar alienações desleais ao
povo sul-americano e grandes cantores entraram no mercado violentamente,
que os próprios “ Sebastião da Silva”, começaram a usar pseudônimos norte-
americanos como Dick Farney e outros, procurando dessa maneira vender
discos como os Frank Sinatras e outros grandes nomes e ídolos estrangeiros.
Além dessa invasão cultural liderada pelas gravadoras multinacionais,
outro atrito existia no Rio Grande do Sul, devido as diferentes regiões como
por exemplo a teuto-riograndense, com suas polcas e bandinhas, a ítalo-
riograndense, com a linha melódica estilizada dos pioneiros do acordeon, na
década de 30, década de ouro do rádio sul-americano, onde podemos citar
o precursor deste instrumento que foi o “Cabo-laranjeira”, o qual nunca se
soube o nome (sabe-se que desapareceu com a Coluna Prestes após a epopéia
da grande Marcha) mas ficaram como exemplo o seu pioneirismo: Tio Bilia,
Reduzino Malaquias, Dedé Cunha, Aparício Saraiva e tantos outros.
Foi então que começou a surgir com muita força, nas missões, a música

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dos irmãos Bertussi, com dois acordeons, totalmente inautêntica, mas muito
apreciada para bailes nos CTGs que estavam proliferando desmedidamente,
não havia músico nas missões, que não tocasse músicas dos Bertussi.
Começaram também a aparecer duplas como os irmãos Teixeira, Primos
Peixoto, Gauchinhas Missioneiras, e uns sem fim de imitadores dos irmãos
Bertussi. Música totalmente alienígena para a região das missões, pois os
Bertussi, italo-riograndenses, já copiavam de Pedro Raimundo, catarinense
de Laguna, sem responsabilidade lírica nenhuma com nosso estado.
Quando comecei a sentir cheiro da podridão da arte no Rio Grande
do Sul e ver cantores alienados, suburbanos, vestindo largas e espalhafatosas
indumentárias de souvenirs para iludir turistas trouxas; a ver falsos
tradicionalistas a berrar alto em potentes emissoras, avalizados por patrões
de CTGs a promover bailes e churrasqueadas principalmente no dia em
que tinham que baixar a cabeça e peregrinar em silêncio numa homenagem
póstuma a heróis anônimos que derramaram seu sangue para sustentar aqueles
gananciosos de poderes e de sesmarias da Revolução Farroupilha; inclusive
cantores de outros estados a confundir a sensibilidade de gaúchos autênticos,
tradicionalistas ansiosos por uma personalidade justa no campo cultural
do país e a mal ensinar aqueles que se acostumaram com a vida simples
do homem do campo riograndense tal como italianos, alemães que vieram
colonizar a solidão de nossas serras, trazendo consigo seu extrovertimento,
com bailes animados de querbs, farras e risos colaborando muito com a nossa
produção e aqui se adaptou ao mate e ao churrasco, exceto à nostalgia do
povo sul americano.
Chegou-se ao ponto de no Rio Grande do Sul não mais se cantar,
bastava uma gaiteiro para armar-se barulhos e peleias com algum gaúcho de
pele indiática, mau olhado pelos moços loiros que o enxotavam.
Além destas barbaridades, alia-se o domínio dos incautos radialistas
de todo o país que lhes dita as emissoras do eixo Rio – São Paulo, devido
a omissão de nossas autoridades sobre o assunto. Por exemplo, no Rio de
Janeiro, cidade absolutamente afro brasileira, a música é o samba. Música essa
mais regionalista de todo o país, mas como têm ritmo, a indústria fonográfica
maldosamente a chama de música popular brasileira.
Notando eu, estas distorções culturais, comecei a condenar a ausência
do que era nosso. Nosso patrimônio cultural, nas missões, onde estava? Quem
o defenderia? Nossa região tão rica em legendas e fatos históricos decisivos
no contexto de entrelaçamento latino americano e um sem fim de riquezas a
clamar por uma manifestação lírica de defesa ao consumo da intelectualidade
do povo. Cantava eu, então, tangos, boleros, canções centro americanas,
serestas, guarânias...
Foi então que resolvi refazer a música missioneira. Para isto, saí para

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os grandes centros, procurando infiltrar a música das missões e sensibilizar os
intelectuais da época.
Foi uma luta árdua para divulgar música de pesquisa. Com o modismo
dos festivais, onde o povo acatava os ritmos impuros e desgastados de música
alienígena ao Rio Grande, era muito difícil ingressar no mundo fonográfico
em São Paulo. Com muita abnegação consegui, para mim e para muitos. Eu
não gravo discos para receber falsos laureis de multinacionais, eu gravo para
mostrar a seriedade que nós os missioneiros devotamos a um instrumento
de nossa Região. Encontrei muitas dificuldades, mas consegui que a música
missioneira fosse escutada.
Tive muitos amigos que ajudaram a divulgar minha música como
Barbosa Lessa, Jorge Karan, Glênio Fagundes. Peregrinei muito em busca
de conhecimentos antigos, que eram novos. Tive grandes companheiros de
viagens, que abraçavam junto comigo a defesa do patrimônio cultural regional,
como Cenair Maicá, Jaime Caetano Braum. Colaborou muito comigo a casa
do poeta riograndense na pessoa do abnegado Nelson da Lenita Faquinelle,
ao saudoso poeta Ciro Gavião, ao Prof. Moacir Santana e ao Grêmio Literário
Gaúcho.
Tivemos muitas passagens difíceis, no exterior, e mesmo no Brasil
posso recordar quando estávamos no parque Anhembi, em São Paulo,
quando um segurança da exposição queria abrir a mala de Cenair Maicá para
certificar-se se não havia roubo na mesma. Ora, nos ofendemos eu disse que
missioneiro não era ladrão e que ele se retirasse dali e deu uma confusão
muito grande, com polícia, repórteres etc... Lembro de uma passagem muito
triste que tive com o amigo Marcus Faemann, no Palácio das Convenções
no Parque Anhembi quando os amigos da convergência socialista queriam
salvar do caos o jornal Versus, naturalmente, que os inimigos número um do
militarismo existente na época, abraçaram a causa e todos se dispuseram a
fazer um Show para o referido jornal, aqueles que sabiam da sujeira muito
grande de Roberto Marinho, através da Rede Globo, aqueles que sabiam da
sujeira do arbítrio e do autoritarismo, posso até nomear a todos que também
lutaram pelas liberdades democráticas em nosso país, mesmo arriscando sua
própria liberdade, são eles: Tarancon, Quarteto em Cy, Dércio Marques, MPB
4, Renato Borgui, Ester Góis, Marilia Medalha, Edu Lobo, Alaíde Costa,
Chico Buarque, Bibi Ferreira, Guarnieri, companheiro Fernando Peixoto,
Hélio Goldsztein, tudo liderado por Marcus Faermann. Eu chegava a ser
chamado por cantor maldito.
Quando, ao consultar velhos payadores e guitarreiros, como também
gente intelectualizada e a receber seus incentivos, soube, sem sombra de
dúvidas que a minha bandeira seria uma só : “Cantar a minha terra”.

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FOLKLORE
“La voz folklore, vocablo inglês, significa saber, ciência del pueblo
(folk, pueblo, y lore, ciência, saber). Actulmente esa plabra ha tomado
carta de naturaleza universal no obstante haberse propuesto substituirla por
otrossinónimos, tales como: volskunde, demologia, volkleher, demopsicología,
volkerpsychología, demopedia, demosofia y demítica.
Estos sinónimos no se vulgarizaron, pro lo cierto es que la ciencia
folklórica trata del saber popular, mnifestado medinte la expresíon de tres
fundamentales elementos diferenciados: las costumbres, los ritos y lass
creencias que en conjunto forman la Tradición”.
Do livro Folklore, ritos e costumbre del pueblo Guaraní – de José
Cruz Rolla, pág 11.

FOLCLORE
A voz folklore, vocábulo inglês, significa saber ou ciência do povo.
Atualmente esta palavra de natureza universal, não obstante haver-se
proposto substitui-la por outros sinônimos, tais como: volskunde, demologia,
volskleher, demopsicologia, volkrpsicologia, demopedia, demosofia, e
dimítica.
Estes sinônimos não se vulgarizaram, mas certo é que a ciência
folclórica trata do saber popular, manifestando mediante a expressão de três
fundamentais elementos diferentes: os costumes, os ritos e as ciências, que
em conjunto formam a palavra tradição.
Por definição e conteúdo substancial o folclore trata única e
exclusivamente da vida popular pelo qual recolhe e estuda manifestações
coletivas e anônimas transmitidas por intermédio da lenda, do conto, do
dito popular, refrão, do canto, de décimas, etc... Todas essas de uma riqueza
inesgotável. Naturalmente o povo abrevia a sede de sua invenção dando vazão
a comentários quase sempre desfigurados, porém com algo de muita verdade.
Para fazer rodar pelos caminhos da vida, passando de boca em boca, de pai
para filho, até adquirir personalidade folclórica, se repete de geração à geração,
se conta, se relata, como se fosse visto, dando-lhe caráter de costumes, ritos e
crenças.
Segundo a opinião generalizada o folclore se ocupa única e
exclusivamente da vida popular, define-se como estudo daquilo que pensa,
sente e faz o povo, em nenhum caso deve confundir-se com o saber de um
povo. A missão do folclore em nosso meio e em todo o mundo consiste em

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demonstrar e faz pouco, menosprezada literatura popular que também faz
parte de nossa atividade folclórica, necessária pois conserva nossa estrutura
social determinando assim uma íntima relação com outras atividades
que configuram nossa fisionomia nacional. Por isto a atividade folclórica
deixou de ser manifestação meramente artística ou caprichosa. Estudiosos
converteram em uma ciência capaz de revelar um passado oculto pelo pó dos
anos, pois ao atualizar vozes e feitos distantes, encontramos um acento, uma
força e uma virtude que dão realidade ao nosso presente. O folclore é uma
espécie de inventário do que resta na atualidade da vida e de tempos idos, e
compreende não somente a vida mental de um povo, senão também suas artes
e seus pensamentos.
Vamos ocupar-nos aqui do folclore do povo guarany e por isso
temos um conjunto de tribos que povoaram os Sete Povos das Missões.
Primeiramente quero explicar que todas as tribos existentes nos Sete Povos
eram de formação guarany, liderados por um “chefe morubixaba”. Haviam as
diferentes tribos espalhadas por todo o estado do Rio Grande do Sul. Como
a dos minuanos, dos charruas, dos índios patos, dos guenoas, dos yaros dos
caingang. Evidentemente o guarany era diferenciado, já com corruptelas em
português e espanhol, devido aos colonizadores da época. Isto se sente até
hoje em nossa toponímia, por exemplo: o rio “Icamaquã”, é uma corruptela
da palavra “Icambaquá”, que quer dizer em guarany: “Rio do poço negro”,
Camba = negro, I =água e qua = de poço e uma porção de outras corruptelas
mais dignas de um profundo e esmerado estudo cultural, mas esta questão de
toponímia abordarei em outro assunto.
O folclore está impregnado em nossa existência, no ditado, na
canção de ninar, nas décimas tão decantadas por nossos trovadores, desde
o passado remoto, até o nosso presente. Não podemos deixar de abordar os
“jogos de pulha” (pegadinhas) nos galpões, do peão de estância ao salvar o
companheiro de um tiro de laço no rodeio, de uma pequena estória que se
transforma num conto improvisado pelo campeiro mentiroso, podendo tornar-
se um lindo romance que aumenta de boca em boca. O folclore do canto, por
exemplo. Eu mesmo, ao colher do folclore, juntamente com Jaime Caetano
Braum. Por ocasião do lançamento de um disco meu, o Paixão Cortes quis
me chamar a atenção porque eu tinha deixado fora alguns versos que ele
queria cantar quando do recolhimento da décima de potro baio. Respondi-
lhe que a referida décima tinha mais de 150 anos e que já devia ter sido
registrada fonograficamente por ele, que era folclorista mais velho do que
eu e a respectiva adaptação era de minha responsabilidade e de Jaime Braum
e mesmo eu sendo um folclorista mais novo, já tinha feito o registro de tão

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maravilhosa obra folclórica. Outra coisa de vital importância é a inspiração
folclórica, dependendo exclusivamente da sensibilidade de cada um. A
inspiração pode ser por meios literários ou musicais. Como exemplo temos
a mãe missioneira, que quando seu filho fugia, à noite, ela o assustava com
o bicho da capela: que é o famoso rasga-seda, ou mesmo corujão de orelha,
que pelo ditado popular tornou-se o bicho da capela. Aqui na Bossoroca há
um ditado sui-generis no estado: Quando um elemento é muito bom, diz-se
“fulano chega a ser muciço de bom”, ou se o sujeito é ruim “fulano chega a
ser muciço de ruim”, ditado esse que já se tornou folclore em nosso meio.

TRADIÇÃO
Se levanta da terra e se apossa do coração estremecido, um não sei
quê, um calor que amadurece a emoção popular. É a voz distante e remota
da recordação que vem em tropel e comove a alma dos homens, fazendo-se
presente através do cancioneiro, de contos, de quadrinhas, que fazer paterno
na voz do lar, que revive nas criancices todo um passado. A tradição, junto aos
contos de galpão, os mexericos das cozinheiras, o sem fim das conversas das
lavadeiras, as lides campeiras, nos fala de coisas distantes que nos emociona.
A tradição vive no subconsciente dos cantores, nos romances, nos contos
falados, nas lendas, nas fábulas dos animais, até nas mães ao ninar seus filhos.
A tradição é um conjunto de dizeres, crenças, contos populares, o jogo
da pulha no galpão, adivinhações, esses dons que uma idade entrega a quem
lhe sucede, para que essa, por sua vez, confie na sua sucessora e dessa forma
vai passando pelos séculos dos séculos. Esse problema de dar essa herança
que se transmite de geração em geração se chama tradição e é antes de mais
nada dizer, recordar, voltar a memória de um feito, rememorar. Isso importa
continuidade no tempo, nada se cria voluntariamente no homem. Seja arte,
ciência ou técnica tudo desaparece e passa a constituir os núcleos sociais
vindouros do futuro. Se adapta no presente e o presente no passado; tradição é
voz, atitude, criação dos povos que sobrevivem a cada geração e se prolongam
como um eco, sucedendo-se como águas de um rio que chegam, passam e
fecundam as costas, as praias e lhes banham sucessivamente. Tradição é a
alma da raça, uma força profunda, oculta, mas certa que a caracteriza. O povo
é um eco telúrico com ressonância secular, que ao sentir uma sensação de
patriotismo, alimenta o orgulho da nacionalidade, aguça o sentido do homem
na concepção dos grandes ideais, da sabedoria e da ética.
A memória, a recordação, é o sentimento fecundo que acalma a
sociedade humana. Está constituído de ritos, costumes, crenças, indumentárias,

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trabalho, canto, danças, brinquedos, comidas, que em conjunto formam o pilar
sobre o qual se firmam os povos com a certeza de perdurar. Não existe núcleo
social seja povo, cidade ou tribos que não contem seu passado com gestas
de seus avós, com guerras de seus antepassados, com dores, com alegrias,
com vitórias, com derrotas, com exôdos, com tragédias, com sentimentos e
com levantamentos de heróicas façanhas. Não existe núcleo de homens, que
não tenham seus mortos, seus heróis, seus santos, seus mártires e até suas
rivalidades, ódios, amores, vinganças, tudo é essência humana e nutre os
povos desde os distantes meados dos séculos.

A ARTE
A arte no Brasil, me preocupa muito. A decadência emergente é filha
nata de uma comunicação errônea por parte dos comunicadores no Brasil.
Ora, os radialistas não tem noção nenhuma da musiologia, os comunicadores
de televisão da mesma forma. O Sr. Roberto Marinho, comete um crime
violento aos profissionais da televisão. A programação diária é composta
por enlatados norte americanos, deixando assim o profissional a ver navios.
A Ordem dos Músicos do Brasil, órgão competente não institui um cachê
digno para o artista, instrumentista ou cantor, apresentar-se na televisão,
conseqüentemente a televisão faz o artista se apresentar gratuitamente, pois o
mesmo precisa de publicidade que a televisão lhes dá.
Vejam os senhores, que o advogado, o médico ou o engenheiro,
não tem condições nenhuma de entender de musiologia regional (embora
muita omissão haja por parte desses mesmos doutores por não lembrarem
dos abnegados folcloristas que arquivam conhecimentos que não existem
em faculdades), e estas são as causas das grandes dificuldades que tive
e ainda tenho em produzir meu trabalho. O maior inimigo da filosofia
musical regional é o chamado povão, pois ele aceita todo e qualquer tipo de
coisa que surge. Vejam por exemplo as músicas dos chamados festivais de
músicas nativas, que nada tem de nativismo: são músicas feita por amadores,
aventureiros, em busca de prêmios. E essa discografia vai aos poucos matando
os mais autênticos valores da terra e criando mostrengos musicais a mentir
para o povo com seus samba – canções, fados, baladas, com instrumentos
alienígicos como pianos, flautas, bombo-leguerro, iludindo esse povo que é
carente de raízes autênticas. Creio na universalidade das coisas autênticas,
que por modesta que seja a obra, ela caminha para a glória, veja por exemplo;
Atahualpa Yupanqui na Argentina, Fred Willians, na Alemanha, eu aqui e o
Luiz Gonzaga na Bahia, pois eu tenho somente 8 LPs e os mesmos continuam

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vendendo tranqüilamente. Temos obrigação de transmitir um alento lírico ao
nosso povo, talvez com muita intensidade como o Geraldo Vandré, mas com
muita objetividade “mais vale um cantor livre para produzir sua mensagem
do que um cantor tolhido pelos organismos criados pelo arbítrio e pela
insensibilidade dos militares” que mal conduziram este país por mais de anos
com isto a cultura de nossos povos também foi agredida e nós os fazedores
de arte nos vimos também manipulados pelo regime. Mesmo assim, falando
somente o que era permitido, fiz várias declarações a imprensa do meu país,
as quais coloco a seguir a título de ilustração e para divulgação.

OS MISSIONEIRENSES

Em 1756, quando Gomes Freire e Andonaegui conseguiram seus


intentos de destruição dos índios missioneiros, nos comprova que, em toda a
história do mundo, nunca houve bom censo pelos aborígenes. A exemplo disso
temos as ruínas que: na América do Sul, formaram 33 povos; no Peru, temos
TIAHUANACO, SACSSAHYHUAMAN, NASCA, MACHUPICCHU; no
México, as ruínas de YUCATÃ, USXATUN, PALENQUE, YASCHILAN E
BONAMPAC, etc.... Ruínas essas que, junto com outras tantas, marcaram
inúmeras tragédias que o branco só pagara no dia do juizo final.
O pior é que além dos genocídios, vêm a luta pela descaracterização
racial nos meios indígenas ainda existentes, tais como, com os caigangues, os
índios do Xingu, os índios do grande Amazonas, como se não bastasse o roubo
da terra que lhes é de direito. Um exemplo de desrespeito e descaracterização,
eu vi nas missões, estupro às indiazinhas de seus 12 ou 13 anos, alcoolismos
gratuitos aos índios e as índias para bel-prazer dos brancos, chacotas
desenfreadas dos pseudos-granfinos da cidade para com as vestimentas, aliás,
legítimos e sem enfeites, paramentos indígenas.
Quando mataram Sepé Tiarajú, Nicolau Languirú e outros líderes
indígenas, com mais 1500 índios, em Caibaté, a solidão tomou conta das
Missões, no Rio Grande do Sul, foi quase sepulcral, ...houve a deserção de
índios e índias que ainda podiam caminhar, para o Paraguai e para vários
pontos do estado. Inclusive Romeu Beltrão registra a deserção de índios para

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Santa Maria da Boca do Monte. Devido a essa solidão, em 1801, Borges do
Canto e Santos Pedroso, não tiveram dificuldade nenhuma para conquistar as
Missões, para o Rio Grande do Sul.
Quando André Guacurari, tentou retomar as missões, em 1819,
houve outro grande genocídio, culminando com sua morte na prisão, no Rio
de Janeiro. Quando dessa intentona, quase exitosa, de Guacurari, é que os
coronéis da época começaram a se apossar em massa da terra missioneira dos
aborígenes, mas ainda continuaram solitárias as missões, pois os coronéis e
os gran-senhores iam nas missões, tomavam posse e voltavam a sua cidade
de origem, como Rio Pardo e tantas outras. Graça a isso o super êxito da
redestruição da igrejas missioneiras por Frutoso Rivera, em 1825 saqueando
e pondo fogo em tudo que havia sido feito pelos missioneiros e missionários,
levando em carretas tudo que era valioso para a república oriental do Uruguai
pois não havia ninguém nas missões, salvo os anciões e alguma crianças
aborígenes.
Menos mal que a única região no estado que tem uma história original
são as missões, mesmo com a chegada de alemães, poloneses, italianos e
outros, estes já com um comportamento diferente por serem missioneiros,
mais propriamente adaptados à filosofia missioneira da nostalgia aborígene e
da cultura espanhola inaciana, ou melhor dito, de Inácio de Loiola.
Digo-lhes que não há demérito nenhum em chamar alguém de
missioneirense, é sim a palavra exata a uma pessoa que não tem vínculo
nenhum com as missões. Já o missioneiro é filho por parte de mãe e de pai
que também são missioneiros por vínculo genealógico e hereditário. Por isso,
quando chegar na sua frente alguém caracterizado, ou seja, de Santo Angelo,
que é muito comum, de Ijuí, até mesmo de São Luiz Gonzaga, um gringo
com nome de Fritz, Schimidt, e o mesmo estufar o peito: “sou missioneiro”.
Diga-lhe, por favor: “Tu és missioneirense e como tal deve orgulhar-te”. Se
estou dizendo isto é para separar os pouco crioulos da terra que ainda existem
nas missões, últimos gaúchos legítimos, produtos do meio, tão gaúchos como
os verdadeiros gaúchos de Corrientes, de Missiones, do Chaco, de Entre -
Rios na Argentina, como gaúchos de Aparício Saraiva, Antonio Lavalleja,
Artigas e tantos outros hermanos gaúchos da República Oriental do Uruguai,
forja hispanica e aborígene da qual nasceu o gaúcho. Nós os missioneiros
Riograndenses tivemos a infelicidade da avalanche triste e maquiavélica dos
mamelucos vicentinos: Raposo Tavares, Gomes Freire de Andrade e toda a
colonização portuguesa que veio predar-nos física, moral e intelectualmente.

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GRUPO DE NOEL GUARANY:

PEPITO GONZALES, DIOLANDA E MARGARINO NACIMANTO,


CHALOY YARA. ABAIXADOS: RAMÃO, NOEL, CAVIA.

OS MISSIONEIROS: JAIME, JOÃO, NOEL, ORTAÇA, DEDÉ,


CHALOY, CENAIR.

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A IMPORTÂNCIA DO CANCIONEIRO
GUARANÍTICO
A importância do cancioneiro guaranítico em nosso país, é realmente
incontestável, neste quase continente em que vivemos, verdadeiro mosaico de
raças e miscigenação, temos realmente um produto complexo. De uma forma
geral uma mescla de ameríndio versus gringo. Claro que aquilo que importa
é a filosofia rítmica do cancioneiro de cada região, basta que um musiólogo
tenha sensibilidade para tanto; mas dado a falta de experts no assunto, como
uma espécie de colonialismo cultural, torna-se extremamente vulnerável
nossa cultura própria.
Começou na América, pela Argentina, a luta pelo mercado de folclore
sul americano e se estendeu mais tarde ao altiplano e a pampa grande e por
último às Missões, isto quando a música folclórica Argentina engatinhava,
o “chamamé” não existia, existia sim, na região guarany do país, mais
propriamente “corrientes” (pois Misiones naquela época era um selva
intransponível): a música guarany, isto é: a canção guarany. Buscava-se então
um meio para encontrar mercado para o cancioneiro guaranítico, foi então
que surgiu Samuel Aguayo, de origem paraguaia, o qual foi a Buenos Aires e
gravou fonograficamente a primeira canção guarany, a qual para se conseguir
vender teria que ser algo autêntico mas que fosse com um roupagem nova e
então deram o nome de “chamamé” e com isso conseguiram pleno êxito.
Nas Missões do Paraguai, a mais autentica de todas, predomina a
canção guarani, entre as canções, que só diferem no apelido pois existem
guarânias, polcas guarânias, galopas, polcas galopas, todas com suas
coreografias e características próprias.
O Uruguai, naturalmente influenciado pelas emissoras de rádio de
Buenos Aires, de fácil penetração e comunicação com o orientais, via Carlos
Gardel que na época cantava folclore pampeno, mesmo porque o tango até
então só era instrumentalizado, não existia letras para o mesmo e somente
era tocado e interpretado por grandes orquestras. Gardel não encontrando
mercado para o folclore, refundiu e estilizou o tango, tornando-se assim um
mito do cancioneiro sul americano. Em contrapartida descaracterizou e muito
o cancioneiro guaranítico do Uruguai, o qual possuía um cancioneiro rural
muito autentico.
O meu conhecimento do cancioneiro guaranítico, foi principalmente
através de andanças e investigações “in loco”, em missiones Paraguai,
missiones Argentina e Missões do Rio Grande do Sul. Tive grandes
conselheiros, independentemente de minha vivência. Por exemplo: tive

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na Argentina o grande indiscutivelmente uma das maiores autoridades do
cancioneiro guaranítico e outros grandes entendidos que ouviam-me tocar e
discutir o assunto e diziam-me “com todo esse teu potencial de voz e violão,
é uma pena irreparável que tu não seja Argentino, Noel Guarany, e eu te
levaria a Buenos Aires e te faria gravar um disco”. Não sei como no Brasil
não valorizam um cancioneiro guaranítico.
Segundo Hemérito Veloso da Silveira, a tribo Guarany dos Sete Povos,
era bilíngüe. A partir de 1801, com a conquista das Missões por Manoel dos
Santos Pedroso e José Borges do Canto, foi tornando-se trilingüe: tanto falavam
na sua língua primitiva, o guarany, como o espanhol e o português. Eis a razão
porque José João Sampaio da Silva escreveu e eu musiquei “AQUARELA
GUARANY”, pois o próprio Hemérito José Veloso da Silveira, homem de
alta sensibilidade, registrou os índios das missões orientais do Uruguai no
estado do Rio Grande do Sul, falando em português e cantando seus cantos
religiosos em guarany; eis uma parte de seu canto:

PASSIO DOMINI NOSTRI JESU CHRISTI

Christo Nhandejara, comi borara acuera y quatiá pirera


Nandemoñgara
Christo Nhandejara
Conde, guarepoti, yocuá acuera,
Nãdemonàngara yocuá pirera
Ah! Christo Nhandejara
Conde, t at áhendê, hecá acuera,
Nandemoñangara, hecá hecá pirera.
Ah! Christo Nhandejara. JOÃO SAMPAIO E NOEL

Aquarela guarany é um fruto de um estudo meticuloso por parte de


José João Sampaio da Silva com a colaboração de minha parte; estudei o
guarany na minha juventude, no Paraguai, numa tentativa de registrar o que foi
esse extraordinário povo aborígene dos sete povos missioneiros e gravamos
fonograficamente e na obra literata do meticuloso e importante literato que é
José João Sampaio da Silva. Além desses versos, tentando registrar o que foi
nas primitivas missões e o que é agora através do valoroso vate, Rincão da
Cruz. Tenho certeza que são versos que não caem na vala comum do vulgar,
dos incautos chacais da literatura que devoram criminosamente nossa cultura
tão cheia de riquezas no universo da sabedoria e da poética, que o amigo leitor
enriquecerá sua biblioteca.

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PORQUE CANTADOR MISSIONEIRO?
Quando, no rancherios mais humildes, do país que fosse, um campesino,
com olhar sincero de patriotismo, mesmo abandonado pelos governos e
instituições, dizia, ao empunhar seu instrumento: “Vou cantar uma canção
da MINHA TERRA”. Eu considerava uma verdadeira afronta, isto porque no
Brasil não existia canto missioneiro. Aos poucos fui me conscientizando do
que estava acontecendo pois estava me tornando um grande instrumentista
e um aplaudido cantor campesino só daquilo que o rádio da época tocava e
ensinava a tantos outros cantores e tocadores como eu. Vez por outra buscava
ler alguma coisa e mais o enigma de minhas origens foi despertando minha
curiosidade, em saber o que estou fazendo e para quê?
O sucesso no rádio, nessa época, era “coração de luto”, “Chot
Soledade”, gaúcho de Passo Fundo” do Teixeirinha e “Pára – Pedro” de José
Mendes. Além disso o rádio vivia a martelar alienações desleais ao povo sul
americano e grandes cantores entraram no mercado, violentamente, que os
próprios Sebastião Silva, começaram a usar pseudônimos Norte Americanos
como Dick Farney e outros, procurando dessa maneira vender discos como os
Frank Sinatra e outros grandes nomes e ídolos estrangeiros.
Além dessa invasão cultural liderada pelas gravadoras multinacionais,
outro atrito existia no Rio Grande do Sul, devido as diferentes regiões como
por exemplo a teuto – riograndense, com suas polkas e bandinhas, a Italo –
riograndense, com a linha de melodica estilizada dos pioneiros do acordeon,
da década de 30, década de ouro da rádio sulamericano, onde podemos citar
o precursor deste instrumento que foi o “cabo – laranjeira”, do qual nunca
se soube o nome (sabe-se que desapareceu na coluna Prestes, após a epopéia
da grande marcha), mas ficaram como exemplo seu pioneirismo Tio Bilia,
Reduzino Malaquias, Dedé Cunha e tantos outros.
Começou então, a surgir com muita força, nas missões, a música
dos irmãos Bertussi, com dois acordeons, totalmente inautêntica, mas muito
apreciada para bailes nos CTGs que estavam proliferando desmedidamente,
não havia músico no Rio Grande do Sul, que não tocasse música dos Bertussi.
Começaram também a aparecer duplas como os Irmãos Teixeira, Primos
Peixoto, Gauchinhas Missioneiras, irmãos Moreira e um sem fim de imitadores
dos Bertussi, música totalmente alienígena para a região das missões, pois os
Bertussi ítalos – riograndenses, já copiavam de Pedro Raimundo, catarinense
de Laguna, sem responsabilidade lírica nenhuma com nosso estado.
Quando comecei a sentir o cheiro da podridão da arte no Rio Grande
do Sul e ver cantores alienados, suburbanos vestindo largas e espalhafatosa
indumentárias de souvenirs para iludir turistas trouxas, a ver falsos
tradicionalistas a berrar alto em potentes emissoras, avalizados por patrões

48
de CTGs a promover bailes e churrasqueadas principalmente no dia em que
tinham que baixar a cabeça e grinar em silêncio numa homenagem póstuma
a heróis anônimos que derramaram seu sangue para sustentar aqueles
gananciosos de poderes e de sesmarias da Revolução Farroupilha, inclusive
cantores de outros estados a confundir a sensibilidade de gaúchos autênticos,
tradicionalistas ansiosos por uma personalidade justa no campo cultural
do país e a mal ensinar aqueles que se acostumaram com a vida simples
do homem do campo riograndense tal como Italianos, alemães que vieram
colonizar a solidão de nossas serras, trazendo consigo seu extrovertimento,
com bailes animados de quers, farras e risos, colaborando muito para nossa
produção e aqui se adaptou ao mate e ao churrasco, exceto à nostalgia do
povo sul americano. Chegou-se ao ponto de, no Rio Grande do Sul, não mais
se cantar, bastava um gaiteiro para armar-se barulhos e peleias com algum
gaúcho de pele indiática, mau olhado pelos moços loiros que o enxotavam.
Além destas barbaridades, há ainda o domínio de incaustos radialistas
de todo o país pelo que lhe dita as emissoras do eixo Rio – São Paulo, devido
a omissão de nossa autoridades pelo assunto. Por exemplo no Rio de Janeiro,
cidade Afro – brasileira, a música é o samba, a música mais regionalista
de todo o país, mas como tem ritmo, a indústria fonográfica maldosamente
chama de música popular brasileira.
Notando eu, essas e outras distorções culturais, comecei então a
condenar a ausência do que era nosso. Quem defenderia nosso patrimônio
histórico cultural nas missões? Nossas regiões tão lindas em fatos históricos
e tão ricas em legendas, decisivas no contexto de entrelaçamento latino
americano e um sem fim de riquezas a clamar por uma manifestação lírica
de defesa ao consumo da intelectualidade do povo. Cantava eu, então tangos,
boleros, canções centro americanas, serestas, guarânias...
Foi então que resolvi retrazer a música missioneira. Para isso, saí para
os grandes centros, procurando infiltrar a música das missões e sensibilizar
os intelectuais da época, mas graças a minha abnegação e objetividade fui
conseguindo fazer com que a música missioneira fosse escutada. Colaborou
muito para isto a casa do Poeta Riograndense, onde não posso deixar de
reverenciar ao abnegado irmão de luta em defesa da cultura Nelson da
Lenita Faquinelle, ao saudoso poeta Ciro Gavião, ao valoroso homem de
altas culturas prof. Moacir Santana e todo o não menos reverenciado Grêmio
Literário Gaúcho, ao qual levei minha humilde mensagem. De sorte que,
quando começavam a surgir companheiros que abraçavam junto comigo
essa luta em defesa do patrimônio histórico cultural regional, como Cenair
Maicá, Pedro Ortaça, entre outros, quando ao consultar velhos payadores e
guitarreiros, como também gente intelectualizada e a receber seus incentivos,
soube que a minha bandeira seria uma só “CANTAR A MINHA TERRA”.

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DISCOGRAFIA
Em 1971, gravei “LEGENDAS MISSIONEIRAS”, que de certa
forma causou surpresa aos intelectuais do Rio Grande do Sul. (Não vendeu na
época), tentei me apresentar em todos os meios sociais do meu país e mostrar
aos jovens o que eu havia aprendido nos rancherios e nos galpões de minha
terra.
Em 1973, voltei gravando “DESTINO MISSIONEIRO”, causando
mais surpresas, (devido aos falsos tradicionalistas, a juventude ao ver um
homem de bombachas nos olhavam estupefatas como se a gente fosse de
outro mundo).
Voltei, em 1975 com “NOEL GUARANY SEM FRONTEIRAS”
e participando de um mapa musical “MÚSICAS POPULAR DO SUL”
produzido por Marcus Pereira, considerado este como um dos mais importantes
pela imprensa do Brasil.
Em 1976, com “PAYADOR, PAMPA E GUITARRA”, a intenção era
promover a integração Continentina. A formação racial e cultural do povo
latino americano é a mesma e no canto também deve haver essa integração.
Em 1977, “NOEL GUARANY CANTA AURELIANO DE
FIGUEIREDO PINTO’, dentre as letras de Aureliano de F. Pinto, foi que
encontrei condições de afirmar que “ESTA É A MÚSICA MISSIONEIRA”.
Tenho certeza que meu trabalho é honesto, sério e sincero.

*Em 1979 é gravado o LP De Pulperias continuando o projeto de


intregração com a música sulamericana, interpreta faixas com clássicos de
parceiros Argentinos e Uruguaios como Athaualpa Yupanqui, Anibal Sampayo
e Mario Milan Medina.
*Em 1980, ALMA GARRA E MELODIA, produzido pela Discos
Marcus Pereira, trazendo a apresentação redigida pelo próprio Marcus Pereira.
*Em 1982, “PARA O QUE OLHA SEM VER” é o último trabalho
solo gravado. *Em 1984, foi produzida uma recompilação pela gravadora
com o titulo, “O MELHOR DE NOEL GUARANY”.
*Em 1988, após um longo tempo fora das gravadoras, retorna com o
disco, “A VOLTA DO MISSIONEIRO”, com a participação de Jorge Guedes
e João Máximo.

*A continuação da cronologia é de responsabilidade do organizador da edição.

50
UTOPIA DO NATIVISMO
Se lusos e posteriormente espanhóis e sucessivamente toda a espécie
de gringos da terra, destruíram os aborígenes e o que deles restou, a palavra
“nativismo” não existe para os riograndenses. Existe sim, “tradicionalismo”,
a qual pode ser utópica e falsa, já que etnológicamente estamos fartos de
gringolismos e de patriotismo, neste despatriótico país. O tradicionalismo e
seus barbarismo que muitos desconhecem, dado a sensibilidade dos gaúchos,
que são voltados com arragaimento incrível às tradições do Rio Grande do
Sul. Os de minha faixa etária, lembram-se naturalmente de 63, quando da
legalidade: a força total dos CTGS acudindo ao chamamento de Leonel
Brizola para a legalidade. Vejam os senhores, que até o CTG com o nome
de “os legalistas” de Santo Ângelo, saiu em homenagem a essa legalidade,
conclamada por Brizola, João Goulart e outros segmentos da sociedade, na
época. Em 1964, surgiu o famigerado MTG, dirigido por militares tais como:
Cel. De Camino – MTG, Cel. Hugo da Cunha Alves – CTG 35. Ainda criaram
outro organismo tão fajuto quanto estes, o qual denominou-se “Instituto
Riograndense de Tradição e Folclore”, dirigido pelo Cel. de brigada Hélio
Mouro Mariante. Nos CTGS, sargentões de brigada, ou eram patrões ou
dirigiam os mesmos. Com isto, a situação conseguiu dominar o movimento
tradicionalista no estado, criando assim, uma série de complicações perniciosas
ao tradicionalismo em nosso estado:

Exemplo 1- Os homens que verdadeiramente conhecem o tradicionalismo,


afastaram-se do movimento, calando-se por verem barbaries incutidas pelos
tecnocratas, falsos tradicionalistas, detentores da força e do arbítrio que
herdamos da suposta revolução de 64.

Exemplo 2 - O presidente do MTG, tem que ser fantoche dos dirigentes maiores
e para isso recebem anualidade dos CTGS e dos Piquetes para andarem junto
com o Governador, Secretários e lideranças políticas, fazendo politicagens e
dizendo-se tradicionalistas, por andarem de bombachas.

Exemplo 3 - Foi proibido taxativamente se falar em política nos galpões,


contrariando-se assim os princípios tradicionalistas de nossa terra. Se Gaspar
Silveira Martins já fazia política nos galpões, retrocedendo mais, Onofre
Pires de Oliveira e Canto, na sua luta pela República, já o fazia.

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Exemplo 4 - Deram aval aos festivalecos, para com isso haver rigorosa
censura na triagem das letras que tomam parte nos ditos festivais, causando
assim espécie de cala-boca aos verdadeiros poetas de nossa terra.

Exemplo 5 - Não existe um consenso na música e nem na coreografia. Saem


do Rio Grande do Sul, culturas absurdas e alienígenas, pois não há interesse
em mostrar nossas humildes verdades, pois o elitismo vulgar tomou conta
dessas entidades.

Exemplo 6 - Doutores, com falsas pesquisas, com danças e músicas voltadas


ao caotismo, iludindo cetegianos, que as aceitam pois foram ditas por
doutores.
.
Exemplo 7 - Falsos musiologos, travestidos de gaúchos, concorrendo com
músicas chamadas gaúchas ou nativas, que ora são fados portugueses, ora
sambinhas, transformados em milongas.

Exemplo 8 - Existe um organismo chamado “Ordem dos Músicos do Brasil”,


que arrecada milhões por ano, para suas burocracias, não trazendo benefício
nenhum aos músicos do Brasil. Lá entrou o famigerado Paixão Cortes,
coordenando os ditames da revolução de 64.

Exemplo 9 - Eu vendo discos para o Brasil e para a América Latina e nem


mesmo sou reconhecido como músico gaúcho pelo MTG, sou limbo da
história musical do Rio Grande do Sul.

Exemplo 10 - O tradicionalismo gaúcho é apresentado fora do estado de


uma maneira reacionária, faltando com a realidade social existente em cada
segmento como: O peão nas estâncias, o mineiro nas minas, o empregado na
construção civil, o estivador nos portos.

Exemplo 11 - As festividades tradicionalistas, no estado, são cuidadosamente


coordenadas pela brigada militar, para melhor êxito de seus intentos.

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REPORTAGENS E
DEPOIMENTOS SOBRE
NOEL GUARANY
APRESENTAÇÃO DE BARBOSA LESSA
LP DESTINO MISSIONEIRO FEVEREIRO DE 1973

No Rio Grande do Norte vi grupos de trabalhadores cantando, por
horas a fio, temas de chegada e marujada. No Rio há uma tradição já que
centenária de compositores e cantores populares. Em Minas e São Paulo são
inúmeras as duplas cantadoras, além de grupos vocais de reis e divinos. Na
Bahia, então, canta-se para tudo: para chamar os orixás, para lutar capoeira,
para dançar, para passar o tempo, para tudo.
No Rio Grande do Sul tradicional canta-se quase nada. Até mesmo no
baile – que é uma das grandes paixões do gaúcho – o gaiteiro precisa ser bom
instrumentista, mas nunca se exigiu que fosse também cantor. Quando, há um
século, a gaita matou a viola, também matou os violeiros cantadores do Sul.
Mas no Rio Grande existe o galpão – que não existe em nenhum dos
outros Estados acima mencionados. No galpão, que é uma espécie de clube
masculino herdado do índios, todas as noite cultiva-se a arte da conversação.
Da arte de contar casos nasceu a paixão do gaúcho por “décimas” (histórias
rimadas) e declamações. Ninguém no Brasil gosta tanto de declamar quanto
o gaúcho. Por horas a fio ele é capaz de dizer e ouvir poesias narrativas, de
cunho romântico, geralmente voltadas para as coisas da natureza e para as
proezas do viver campeiro.
A meio caminho entre narrativa declamada e o canto propriamente
dito se situa a CANTIGA DE GALPÃO – geralmente em ritmo de milonga.
Inconfundível. Inimitável. De voz solista e de cunho acentuadamente
individualista. Aqui importa mais letra que a harmonia, mais o fato acontecido
do que a rima burilada, mais a emoção transmitida pelo texto do que o impacto
de achados melódicos. E cantada ao violão, competindo ao violão acentuar,
enfatizar, realçar as nuances da alegria, saudade, melancolia ou rancor. E é
admirável observar como o texto, canto e violão se integram coesamente para
alcançar a dramaticidade pretendida.

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Essa maneira tão expressiva de cantar estava ameaçada de desaparecer
sem que ficasse registrada em disco. Em boa hora, pois, a Sinter nos traz Noel
Guarany para uma saborosa conversa de galpão com o público brasileiro.
Ouvir esse disco significa mergulhar nas raízes da gente missioneira. Gente
xucra, bagual, rebelde, meio arredia à lei e à ordem, mas, não obstante, de
impressionante sensibilidade para comungar com os valores mais eternos da
natureza humana.
Noel Guarany é autentico como cantor e autentico como gente. Traz
consigo todas as virtudes e também todos os endeusados defeitos de sua raça.
Quando lhe mostrei um cantiga minha que fala de um gaúcho moço que quer ir
para a cidade a fim de “deixar de ser bagual”, Noel Guarany me confidenciou
num tom de voz profundo e com impressionante sinceridade:
— Dom Lessa, eu acho muito mais importante continuar sendo bagual...
Agora escutem este jornal missioneiro. Respeitável como artista. E autêntico
em seu orgulho de ser talvez um dos últimos baguais do Rio Grande do Sul.

NOEL GUARANY, O MAGO DA CANÇÃO NATIVA


CRUZ ALTA, 31/12/73 RUBENS DARIO SOARES

(Da Estância da Poesia Crioula)


Diretor do Museu Municipal e CASA ÉRICO VERÍSSIMO

De tempos em tempos, surgem dos atavismos da raça, como que um


presente de Deus às criaturas, as mais autênticas figuras do mundo da arte, na
escultura, na literatura, na música, nas letras em fim!
O Rio Grande do Sul, rincão esplendoroso de feitos homéricos, tem
dado ao Brasil e ao mundo, as mais autenticas figuras, quer na arte através da
música, quer nos feitos de guerra, quando surgiram do cerne dos entreveiro
as mais expoentes figuras guerreiras que transformariam o Rio Grande num
verdadeiro celeiro de guapos!...
Estamos quase que nos afastando dos verdadeiros objetivos desta
charla. Nossa intenção é falar sobre “NOEL GUARANY”, um indiozinho
valente, cria da BOSSOROCA, velho rincão encravado no coração das
primitivas reduções Jesuíticas, que também, mas como poucos, traz em seu
sangue e na sua alma, as mais perfeitas consonância de atavismos baguais, na
mais pura e simples expressão gauchesca! NOEL GUARANY, moço de vinte
e poucos anos, carrega na garganta e no bojo de seu violão (companheiro
inseparável) a mais pura fisionomia de seus ancestrais guaranys, catequizados
pelos jesuítas! E, nas suas canções, nos acordes de seu violão, como que

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dedilhado por mãos invisíveis, nos traz de uma maneira insofismável, a
própria fisionomia do Rio Grande nascente, inimitável nas suas expressões
artísticas e humanas, carrega nos pessuêlos de suas vocações as mais legitimas
afirmações do cancioneiro guasca, autenticidade em toda a plenitude, alma
simples e despretensiosa, ressurge como que das cinzas dum passado lendário
como figura exponencial de nossa canção crioula! Ouvir NOEL GUARANY
é sentir no entrevero dos versos que sua imaginação privilegiada transformou
no dedilhar de seu pinho, nas mais belas e vibrantes melodias, que, trazendo
de seu berço humilde de “costeiro” faz parar o Rio Grande para escutá-lo!...
Com NOEL GUARANY, renasce no pago e a mais autêntica afirmação
do cancioneiro crioulo, bem melhor que a leitura desta charla despretensiosa
e modesta, continuemos ouvindo o cantor, sentindo nos acordes que emergem
sua garganta, a mais pura e sublime evocação do velho RIO GRANDE DE
SÃO PEDRO!

A VERDADEIRA MÚSICA DOS POVOS DAS MISSÕES


JORNAL DA TARDE - FOLHA DE SÃO PAULO MAURICIO KUBRUSLY
Alongo prazo, vou saldando dividas que o ano de 75 me deixou, os lançamentos
foram tantos que não foi possível registrar todos os que mereciam divulgação. Como
este Sem Fronteiras, editado pela Odeon através do seu selo popular, Coronado.
Reune interpretações de Noel Guarany revelações do universo da música do extremo
sul, ainda uma incógnita para nós.
Noel Guarany é de São Luiz Gonzaga, no Rio Grande do Sul, uma das sete
cidades dos Sete Povos das Missões. Fala espanhol e guarany com a desenvoltura
do português. E faz tempo que se dedica a pesquisar e a cantar a música do Sul, o
folclore desta parte que une o Brasil à América Latina. Este é o terceiro LP que grava,
mantendo sempre o mesmo nível de exigências, obsessivamente, sem concessões.
Este rigor começa em seu trabalho de campo. ...Minhas pesquisas são feitas
anonimamente e não de gravador na mão, coisa que até os próprios índios guaranis
já aprenderam a ridicularizar, dizendo absurdos ao microfone e, depois, rindo muito
quando o “pesquisador” se retira.
Noel Guarany, graças ao seu trabalho, pode olhar para baixo e contemplar
o universo das suspeitas. Ele, se quiser, pode apontar o que existe de arremedo, por
exemplo, até no trabalho de um grupo como Os Tapes, por alguns saudados como o
que de mais genuíno a música jovem do sul jamais gerou. Em Noel Guarany nada é
postiço.

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Sendo tão castiço assim, é lógico que a sua música é irrepreensivelmente
maravilhosa. Acompanhado apenas por seu violão, este cantador missioneiro entoa
seus causos com a galhardia máscula típica dos gaúchos. Utilizando um vocabulário
para nós as vezes hermético, Noel Guarany apresenta um repertório de versos
belíssimos, rudes em suas imagens pampeiras. (Um encarte com letras acompanha
o disco). E as suas comparações adjetivos e construções representam um material
riquíssimo para estudos diversos. Mais abaixo desta sugestão elitista, porém encontra-
se a imposição, a obrigatoriedade, para todos, de imediatamente estabelecer um
contato com este disco magnífico.
Sem alarde, com a discrição dos verdadeiros artistas populares, Noel Guarany
vai construindo sua obra - consistente, sem arranjos ou adaptações, in natura. E, como
dizem os versos de Barbosa Lessa, que Noel canta em “Balseiros do Rio Uruguai”
...Sem fronteira é um convite para “rever as naturezas que ninguém descobriu”.

NOEL GUARANY QUIS CONHECER


A AMÉRICA LATINA
APRENDEU QUE É PRECISO CANTAR SUA TERRA
FOLHA DA MANHÃ 13 DE ABRIL DE 1976
De Quinta-feira até Domingo próximo, Noel Guarany, intérprete
da canção missioneira do Rio Grande do Sul, estará participando de um
festa crioula no Uruguai. Nesta festa se reunirão estancieiros de Bagé e de
Livramento, bem como de Dom Pedrito, que possuem propriedades no país
vizinho. Segundo Noel Guarany, sua grande importância estará no fato de
possibilitar uma confraternização entre a peonada. Se possibilitará também
confraternização entre peões e patrões, isso não ficou esclarecido.
O cantor gaúcho irá, naturalmente, representando a arte gauchesca
ou a música missioneira, guarnítica. Nascido em Bossoroca, quando ainda
era distrito de São Luiz Gonzaga (se emancipou no final da década de 60)
ele tem três discos gravados o último deles NOEL GUARANY ... SEM
FRONTEIRA. Além disso, participou da coleção poderia ter resultado num
trabalho mais autêntico se tivesse sido feito por gaúchos que entendem de sua
própria manifestação musical mais popular.

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Atualmente está preparando seu quarto LP, que pretende gravar em
Buenos Aires, com selo ainda não escolhido. Talvez a RCA. Afirma que
gravará na Argentina, que “os violonistas de lá se entendem melhor comigo
que os do Rio e de de São Paulo, que só entendem de samba”. O disco
chamará PAYADOR PAMPA E GUITARREIRO e em sua elaboração Noel
Guarany tem colaboração de um parceiro quase constante, Jayme Caetano
Braun. “Ele terá muito que ver com a Missões, pois elas se entendem até o
Uruguai e enfocaremos a região da fronteira”. Deverá ser lançado no Brasil,
provavelmente, ainda no fim deste ano, quebrando uma regra que vinha sendo
seguida por Noel: a de lançar disco somente de três em três anos, porque gosta
de trabalhar com vagar e sempre visando a maior autenticidade.
Com a mesma autenticidade com que, por exemplo, declama
BOCHINCHO – o que na fronteira significa baile de baixa categoria – de
Jayme Caetano Braun, que fez uma descrição entre humorada e maliciosa do
que são esses acontecimentos: “Um bochincho – certa feita / Fui chegando
– de curioso / Que o vício – é que nem sarnoso / Nunca pára, nem se ajeita
/ Baile de gente direita / Vi de pronto que não era / Na noite de primavera /
Gaguejava a voz dum tango / E eu ou louco por fandango / Quem nem pinto
por quirera /... Da apresentação de um ambiente característico, iluminado
com candieiro e fumacento, o autor volta o recém-chegado: “Dei de mão
numa tiangaça / Que me cruzou no costado / E saí entreverado / Entre a poeira
e a fumaça / Oigalê china lindaça / Morena de toda a crina / Dessas de venta
brasina / Com cheiro de lichiguana / Que quando ergue uma pestana / Até a
noite se ilumina/...
É óbvio que o herói gaúcho fez o que pode nesse bochincho, que
Jayme Caetano segue descrevendo com um linguajar quase que só feito de
palavras usadas na campanha. A isso acrescenta a rítmica característica do
gaúcho a falar e uma sonoridade toda especial conseguida através do uso
de certas adjetivações, quase sempre seguida de uma interjeição ou de um
pequeno intervalo que funciona no sentido de enfatizar. E à medida que noite
avança, também o bochincho se transforma, até virar em briga: “Não há quem
pinte o retrato / D’um bochincho quando estoura / Tininho de adaga – espora
/ E gritos de desacato / Berros de quarenta e quatro / De cada canto da sala / E
a velha gaita baguala / Num vanerão pacholento / Fazendo acompanhamento
/ D’um turumbamba de bala!!!
Mas nosso gaúcho herói não é bobo nem nada para entrar a força que
o desafia nos quatro canto da sala. Também não há china que lhe mereça a
vida. Por isso, entre uma bala e outra, tem tempo para se refazer do primeiro e
de pensar num jeito de sair do entrevero: “E a coisa ia indo assim / Balanciei
situação / Já quase em munição/ E todos atirando em mim/ Vi qual ia ser meu
fim/ Me dei conta – de repente/ não vou ficar pra semente/ Mas gosto de andar

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no mundo/ Me esperavam lá nos fundos/ E saí na porta da frente”.
Saber dizer
Noel afirma que Jayme Caetano Braun também compõe dentro da
linha pornográfica, da qual gosta. Mas acha que a pornografia, no caso de seu
parceiro pajador, é bem desenvolvida e que, por isso, não tem porque sofrer
a ação de qualquer tipo de censura. “Tudo é um questão de saber dizer”,
acrescenta ele, dizendo depois que “tem coisas por aí que, sinceramente, não
deveriam ter sido liberadas. É o caso daquela música de OS ARAGANOS
gravaram e que desenvolve toda uma malícia ao falar sobre a troca de sapato.
Entre outras coisas, a letra da música diz que “o meu fica bom no teu”. Isso,
colocado ao lado de outras barbaridades, compõe todo um jogo de mau gosto.
E, por falar em mau gosto, Noel Guarany conta que já teve oportunidade
de ver como o fãs de Valdick Soriano, no nordeste, reagem ao ouvir música
cantada por seu ídolo. “Eles podem estar na cozinha, entretidos com alguma
coisa, mas largam tudo quando ouvem o Valdick cantar. E não minto, eu
vi homem suspirando”. Acha que Valdick não merece tanto, mas também
não gostaria de atingir um tipo de público como o dele, por considerá-lo
desinformado demais. Por isso mesmo, sujeito a “desgraçadamente”, criar
outro ídolo do nível de Valdick. No Rio Grande do Sul de qualquer maneira,
parece-lhe difícil reunir um dia, em torno de si, a admiração do povo, daquele
que escuta rádio. Isto, porque “em especial as emissoras da capital ainda são
muito acovardadas e não tocam, com raras exceções, a música que gente
como eu faz. E nem precisaria haver comentários, bastaria que tocassem o
disco discretamente, mostrando-o o público”.

Fora
Em 1957, Noel Guarany deixou o Brasil e foi conhecer a América
Latina colonizada pelos espanhóis. “Observador inveterado”, viu muita coisa
que não lhe agradou, como a Bolívia, “um país muito triste por tudo, inclusive
pela situação climática”. Mas viu outra que lhe agradaram. Assim, foi se
demorando por lá até 1964, quando voltou, indo primeiro ao Mato Grosso.
Sua bagagem de conhecimentos havia aumentado consideravelmente
e Noel havia conhecido a Argentina, o Uruguai, o Paraguai, em cuja fronteira
com a Bolívia “andei observando o comportamento do guarani/boliviano”,
verificando então que ele possui muita semelhança nos costumes com o
nosso homem da campanha. Mas a coisa mais importante que aprendeu foi
que é preciso cantar a própria terra, pois “vi que todo mundo canta a sua”.
Reconheceu então que embora o trabalho de uma dupla como TONICO E
TINOCO façam um caipirismo do mais ingênuo possível, isso é válido na
medida em que se refere às suas raízes. Aqui no Rio Grande do Sul “cultura

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campesina”, afirma Noel Guarany, “nunca recebeu o mesmo incentivo”.
Principalmente, porque consumimos o que vem de fora, o que, segundo ele,
nos é imposto pelo imperialismo norte-americano, de cujo submundo cultural
importamos a alienação. Foram essas conclusões ás quais chegou em suas
andanças pela América Latina.
Elas lhe acrescentaram em termo desconhecimento o que é a música
missioneira. E seu mestre, nesse aspecto, foi Osvaldo Soza Cordeiro, “que se
tornou famoso quando compôs Anaí” – “índia flor agreste/ da voz tão suave
como aguaí / Anaí, Anaí / teu vulto no campo / destaca entre as flores / que
são para ti”. Como a guarânia ÍNDIA, também ANAÍ se tornou conhecida
no Brasil através da interpretação da dupla Cascatinha e Inhana. “Osvaldo
Soza Cordeiro criou a música guarnítica”, salienta Noel Guarany, que não
se esquece de dizer também que “no Paraguai os folcloristas são ao natural,
simplesmente porque o país não deixa entrar o imperialismo cultural vindo do
submundo dos Estados Unidos”.

AS MISSÕES DE NOEL GUARANY, O CANTADOR


FOLHA DE SÃO PAULO 07/07/77 DIRCEU SOARES
Noel Guarany, por aqui, pouca gente conhece. Ele é gaúcho, mais
especificamente, da região das missões, e canta, segundo ele, a autêntica
música do sul, como a chimarrita e a milonga. Já esteve ano passado em
São Paulo, cantando – de graça para estudantes na Fundação Getúlio Vargas
e, anteontem, não fosse a censura proibir o show organizado por um jornal
paulista, teria se apresentado no Anhembi.
— Luto contra a descaracterização que vem sofrendo a música
brasileira – disse ele. Pesquiso há dez anos e gravei quatro discos. Mas vejo
que não é só a música estrangeira que atrapalha, são também as gravadoras.
Elas deturpam as músicas originais até no ritmo, porque acham que assim
discos vendem mais. Teixeirinha e Waldick Soriano são exemplos desta sub-
música comercial. Eles gostam do dinheiro e da fama, por isso não se importam
se o que estão cantando é autêntico ou não. No meu caso é diferente: minha
preocupação é cultural, não tenho compromisso com as gravadoras nem com
a massa popular consumidora.
No início da carreira, em 1971, ele acreditou que as gravadoras
pudessem divulgar sua música. Gravou três LPs, um na RGE (Legendas
Missioneiras), outro na Fonogran (Destino Missioneio), dois anos depois, e o

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terceiro na Odeon (Noel Guarany Sem Fronteiras), em 1975.
— Mas estes discos não foram divulgados, não venderam, não me
pagaram os direitos autorais. Já que é assim, rompi com estas multinacionais
e canto para os jovens, quase sempre sem cobrar nada. No ano passado gravei
um LP, Payador, Pampa, Guitarra, financiado por uma entidade que estuda
folclore, o Centro Nativista Gaspar Silveira, de Bagé. A edição do disco
custou-lhes 400 mil cruzeiros, ouve uma cotização entre os seus associados.
Os estudantes têm me ouvido bastante e noto que muitos deles andam
preferindo, agora, cantar nossas músicas do que os rocks despejados pelas
rádios de São Paulo e Rio.
Noel, 35 anos, nasceu em São Luiz Gonzaga, nas Missões, filho de
uma índia guarani e um italiano – seu sobrenome verdadeiro é Fabricio – e diz
que herdou da mãe o gosto pelas coisas da terra. Foi peão de fazendas gaúchas
e, depois, no Mato Grosso. Cantava para os amigos e, um dia, ficou a pensar:
“Mas a música que tocam nas rádios não é a nossa música. E por que é que a
nossa música autentica não pode ser tocada?
Iniciou suas pesquisas do folclore das Missões e viu, através de
informações orais, que as raízes das músicas tinham sido deturpadas. Conta
que algo semelhante aconteceu com a guarânia paraguaia, desde que, na
década de 30, inventaram a polca paraguaia. “Originalmente, a guarânia era
lenta, nostálgica, lírica. Aí, as gravadoras, pensando na sua divulgação pelo
mundo, apressaram o seu ritmo: seria como se um disco fosse gravado em
33 rotações por minuto e tocado em 45. E foi uma pena, porque, para mim, a
guarânia reúne a alma de todos os índios da América Latina.
Sobre a milonga gaúcha, explica que veio da sifra, tipo de canção
antiquíssima, onde o cantador contava uma história sem nenhuma preocupação
rítmica. Dividida em quadras, resultou na milonga. Já a chimarrita veio da
Ilha da Madeira. É uma música sem fronteira e é tocada também no Uruguai
a na Argentina.
A deturpação da música das Missões, na verdade, começou mesmo
antes das gravadoras existirem, quando houve a invasão dos portugueses
para anexar o território, antes espanhol, ao Brasil. Eu não diria nem mesmo
invasão portuguesa, diria bandeirante. Aí houve uma deturpação geral dos
costumes da terra, no empenho de abrasileira-la à força. Mais tarde, já por
volta de 1850, somou-se a esta intromissão, a chegada da cultura européia
trazida pelos colonos.
Noel Guarany tem um programa de rádio em Porto Alegre, das 7 as 8
da manhã, além de apresentar músicas folclóricas, fala também de problemas

60
ecológicos, defendendo a paisagem do Rio Grande. Lamenta, por exemplo, a
recente urbanização que está sendo feita em São Miguel, também nas Missôes
seculares são derrubadas pelos tratores. Fala também do descaso da Secretaria
do Estado com o aspecto turístico de São Miguel, onde as ruínas da catedral
são visitadas, nos fins de semana, por cerca de 70 ônibus de excursionistas.
Obviamente, o Noel gaúcho, ao contrario do carioca, não vive de
música, sobrevive da compra e revenda de cavalos. Além de violão, ele toca –
mas só em roda de amigos – um acordeon de oito baixos, do tipo fronteira, de
poucos recursos sonoros, usado, principalmente para executar uma chimarrita
ou um chamame. Disse que nunca teve problemas com a censura porque canta
música da terra e não há o que censurar.
Particularmente – disse ele – acho que impedir um cantor de
cantar é uma das coisas mais horríveis que se pode fazer. Mesmo os mais
medíocres, pois toda mensagem é válida. Existe a música estrangeira que nos
descaracteriza e a censura impede os nossos artistas de se expandirem. Como
resultado, o que é que a juventude vai ouvir? E, entre os jovens de hoje, estão
os nossos futuros governantes dos anos 2 mil.

NOEL GUARANY E A BELEZA DO CANTO


NA FRONTEIRA DA POESIA
JORNAL DO BRASIL – RIO DE JANEIRO J. R. Tinhorão

Em 1975, quando a Odeon lançou despretensiosamente o disco Noel
Guarany – Sem Fronteira..., saudamos desta coluna o aparecimento de um
autêntico cantador-poeta de uma região brasileira riquíssima de história e de
ligações – realmente sem fronteiras, considerando-se as condições geográficas
especiais do pampa – com países vizinhos de cultura espanhola.
Agora, dois anos depois, e bafejado pela onda de latino-americanidade
de inspiração literária que domina os meios intelectuais do Centro-Sul, Noel
Guarany está de volta em dois novos discos quase simultâneos: um gravado
em Buenos Aires em parceria com o payador Jayme Caetano Braun, intitulado
Payador – Pampa – Guitarra; outro gravado (e pessimamente prensado) pela
RGE – Fermata, sob o título Canto da Fronteira.
Descontada a moda do “soy latino-americano” (que desemboca
num engano ideológico, pois se os problemas do subdesenvolvimento são
semelhantes, as soluções terão que ser individuais, nacionais), deve-se saudar
ainda outra vez Noel Guarany – mais do que por seu talento e sua poesia – por
sua reafirmação da existência de um canto regional muito mais rico do que se
supunha.

61
Na verdade, quem pensa em música gaúcha apenas em termos de
gaitas e rancheiras, prepare-se para encontrar-se em Noel Guarany em seu
excelente parceiro Jayme Caetano Braun um universo muito mais amplo: o
da contrapartida sulina do cantador nordestino, ou do cururuzeiro paulista,
nas histórias falado-cantadas dos payadores (vide a maravilha que é Filosofia
de Gaudério); o orgulho e sentimento nativista comum à gente do Prata,
identificada pela fisionomia do pampa (“El patriotismo y la hombria / Lo
guardamos en el pecho”); o amor quase sensual – “mais agarrado do que
amor de prima” – pelo amigo e companheiro de trabalho e diversão, o cavalo;
o humor fino e irônico, o sentimento de bucolismo e poesia, e, finalmente, o
transportes de entusiasmo pessoal que levam Noel Guarany a dizer, em
Costumes Missioneiros:
“Até eu mesmo admiro
Das gauchadas que eu faço.”

E não é só: com Noel Guarany, cantor de uma cultura que se nega a
deixar-se asfixiar por padrões internacionais impostos a partir dos grandes
centros (que no Brasil, são hoje, meras estações repetidoras de modas ditadas
pelas multinacionais da indústria do lazer), aprende-se a amar a natureza (Eu
e o Rio) e a valorizar as coisas mais simples (Romance do Pala Velho).
E tudo isso de envolto com uma poesia e uma musicalidade (veja-se
o trabalho de dois violões na Canção do Peão Arriero) que fazem da figura
do trovador missioneiro Noel Guarany uma das mais importantes figuras da
música popular brasileira do momento.

MÚSICA BRASILEIRA AINDA RESISTE


NO RIO GRANDE DO SUL
JORNAL DO BRASIL J. R. TINHORÃO

Em meio à alienação geral da música popular brasileira divulgadas


através do rádio e da televisão (indicador, naturalmente, do processo de
dominação cultural paralelo ao processo de dominação econômica), o
aparecimento de dois discos parece mostrar que, no país ocupado pela
multinacionais, ainda há focos de resistência. Essas baluartes da luta subterrânea
contra o invasor estariam no Rio Grande do Sul, pois é de lá que chegam em
dois discos as vozes e cantos regionais e brasileiros de Noel Guarany – Noel
Guarany Canta Aureliano de Figueiredo Pinto (RGE / Fermata 3063064) – e
o festival de música VII Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul.
Noel Guarany, que estreou em disco quase clandestinamente em 1971,
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com seu LP no selo Premier intitulado Filosofia de Gaudério, firmando-se
nos últimos anos como cantor – compositor, graças à voga romântica da
latino-americanidad, não apenas apresenta em seu novo disco outro bom
poeta gaúcho, o seu parceiro Aureliano de Figueiredo Pinto, mas reforça
por suas qualidades de criador, a posição quase isolada que assume entre os
poucos que criam, no momento, uma música realmente brasileira. Gaúcho
missioneiro pelo estilo das canções e pela linguagem regional de que se serve,
Noel Guarany e seu parceiro Aureliano de Figueiredo Pinto revelam-se no
entanto nacionais pela poesia e por um certo orgulho comum entre o corajoso
povo brasileiro: Pobre, mas livre, gauchito / no sol a sol sou o que sou / pois
nem D. Pedro II não pôde / o senhor de um mundo / dobrar meu bisavô.
A essa qualidade de coragem na afirmação da sua orgulhosa condição
regional (sobre a qual pesa, do equivocado ponto de vista das camadas urbanas
em ascensão, o estigma do subdesenvolvimento), Noel Guarany acrescenta
qualidades pessoais de criador e intérprete que fazem lembrar o trabalho
também isolado de outro compositor – cantor singular: o baiano Elomar, cujo
primeiro e único disco, de 1973, acaba de ser relançado pela Phonogram. O
que leva, desde logo, à necessidade urgente de se ouvir os dois, para depois
ligar o rádio (a qualquer hora do dia e da noite) e chegar-se a certas conclusões.

FOLCLORE GAÚCHO, UM TEMA PARA REFLEXÕES


O ESTADO DE SÃO PAULO ENIO SQUEFF

O cantador Noel Guarany e o repentista (“pajador”), Jayme Caetano
Braun, não são certamente sérios candidatos ao estrelismo, nem se propoem
a isso. Trajados com estivas roupas de gaúchos, eles não diferem em seus
espetáculos dos que comparecem regularmente às apresentações do gênero,
principalmente no Rio Grande do Sul. Na semana passada, porém, além
de se terem mostrado num espetáculo da empresa para a qual gravaram
recentemente – A Marcus Pereira _ ambos revelaram alguns aspectos apenas
adivinhados tanto em relação a cultura popular, espontânea, como em relação
ao folclore gaúcho, bem mais desconhecido do que sugerem os chamados
“Centro de Tradições Gaúchas”, entidades destinadas a preservar o folclore
mas que, até o presente, pouco ou nada acrescentaram ao que já se conhece
da cultura popular sulina. Dos dois artistas, Noel Guarany se mostrou o mais

63
surpreendente. A primeira vista, trata-se de mais um cantador de milongas –
dos muitos que existem no Rio Grande do Sul. Mas uma vivência constante
no campo (foi peão de estância desde os 14 anos e ainda hoje cuida da fazenda
do irmão, perto de Porto Alegre), faz dele um tipo especial, exatamente
o personagem que os expertos chamam de agente da cultura popular. E a
conseqüência disso é que o reconhe autenticidade. Entre outros, Noel Guarany
revelou um Rio Grande do Sul musical praticamente inédito. A reconhecida
influência espanhola e portuguesa, responsável pelos gêneros gauchescos,
Guarany mostrou uma milonga que poderia provar a interferência do negro
na cultura pampeana brasileira, revelando que o índio “missioneiro” pode ser
um personagem fundamental na gênese da expressão gaúcha. Não obstante
tudo isso, o possível reconhecimento da arte de Guarany ou de Caetano Braun
está longe de representar a vitória da cultura espontânea em termos mais
amplos. Este foi o outro aspecto que a apresentação dos gaúchos suscitou.
Segundo Jaime Caetano Braun, repentista em versos decassílabos, o
gaúcho como tipo social específico é ainda uma realidade palpável na região
pampeana do Rio Grande do Sul. A pecuária extensiva, cenário da formação
do tipo característico de cavaleiro voltado sempre para o horizonte sem limites
do pampa, é ainda uma forma de produção importante no Rio Grande do Sul.
E isso garante uma expressão artística distinta, do qual Guarany, segundo
Caetano Braun, é um exemplo relevante. A opinião do repentista é bastante
mais intelectualizada no sentido acadêmico, parece conferir uma autenticidade
irrefutável a Noel Guarany. Nas rancheiras, polcas, milongas e um sem número
de gêneros do pampa, cantado pelo guitarrista, também ex-peão da Argentina,
do Uruguai, Mato Grosso e Rio Grande, estaria um manancial inesgotável de
um folclore que não estancou, a despeito do que sugere o repertório repetitivo
dos Centros de Tradição, uma questão básica, porém, continua: qual a relação
do Brasil português com os gêneros tipicamente espanhóis, como a milonga
ou a havanera” (“habanera”)? Para Guarany e Caetano Braun, a resposta é
sempre o “pampa largo” com sua forma específica de produção. As fronteiras
culturais não são geográficas, tanto que, mesmo no pampa da língua
espanhola, o gênero musical milonga não define um tipo único de música.
A milonga portenha (de Buenos Aires), bem mais lenta, com características
sensíveis que, aqui sim, já podem definir as fronteiras políticas ou culturais.

64
A MILONGA.
Na expressão musical de Noel Guarany distingue-se duas espécies de
músicas: a canção, ou dança alegre (polcas, chotes...), normalmente fanfarrona,
do homem do campo, entre ingênuo e debochado, quase sempre aguerrida e
vitoriosa, e a música tipicamente intimista, que é a milonga. Para os dois
casos como sugere Caetano Braun, a realidade histórica e social do gaúcho
explica os traços principais. Por que o “machismo” constante? A explicação
aparentemente simples não deixa de ser verdadeira: o gaúcho (visto como todo
homem dos pampas) é o personagem de uma terra até bem pouco contestado
em vários níveis, com fronteiras variáveis e vivamente disputadas. A canção
fanfarrona, alegre, seria a expressão ideológica de uma situação de constante
conflito, no qual, a mulher, por ter uma participação indireta na produção, ou
nos conflitos fronteiriços, têm também uma importância bastante minimizada
na expressão gauchesca.
Para o gaúcho, a valentia não seria apenas um valor, mas a garantia
de sua própria sobrevivência, tendo em vista as constantes tropelias de lado
a lado. Daí também a contrafacção de tudo isso – a milonga pampeana -,
uma expressão intimista, normalmente amarga, de ritmo lento, onde o gaúcho
canta sua solidão na “vastidão dos pampas”. É isso que aparece nas milongas
de Noel Guarany, com uma particularidade importante: os arremates de cada
frase musical transmudam-se no ritmo estrito das palavras dos versos. Para
alguns, esses recursos ao ritmo prosódico denotariam a herança do gregoriano,
recolhida da expressão indígena dos “missioneiros” (Guarany é da região em
que se localizavam os Sete Povos das Missões, reduções jesuítas do Rio Grande
do Sul). Para outros, a milonga pampeana seria apenas a herdeira imediata de
alguns gêneros musicais espanhóis, o que, de qualquer modo, abre a questão
a uma série de perguntas que deveriam igualmente preocupar a folcloristas e
musiólogos. Trata-se de apurar uma questão igualmente levantada pelo mesmo
Guarany: a de que existe um tipo de milonga trabalhada pelo negro escravo.
O exemplo que Guarany recolheu em suas andanças (muitas das canções que
gravou para Marcus Pereira e para a Continental resultam disso) mostra, de
fato, uma milonga algo diferente, bem mais ritimada. Mas seria uma “milonga
de Candomblé” como diz o cantor? Eis uma questão que, mesmo para os não
iniciados, demandaria bastante mais provas do que o respeitável depoimento
do artista.

OS DESCONHECIDOS.
De tudo o que disseram os dois artistas, o que ficou não foram apenas
a riqueza praticamente desconhecida da música riograndense – mas algumas

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dúvidas suscitadas pelo folclore gaúcho e que têm muito a ver com a cultura
popular em todos os níveis.
Até bem pouco, muitos folcloristas, mesmo gaúchos, consideravam
inautênticas as manifestações espontâneas riograndenses que incluíssem
gêneros comuns a América Espanhola. Na realidade não encaravam o
gaúcho como um típico resultado de uma situação social particular. As raízes
culturais comuns aos gaúchos de todas as fronteiras, ao gaúcho brasileiro
teriam de se acrescentar manifestações consideradas mais consentâneas com
o modelo do resto do país – culturalmente português, indígena ou africano.
A contribuição da América Latina – refletindo ainda um claro conflito luso-
espanhol – seria espúria, quase hostil à autêntica e decisiva influência cultural
portuguesa. Negava-se o peso cultural da realidade geográfica e social do
pampa “sem fronteiras”. Era o inverso de alguns depoimentos nada restritivos
de Argentinos e Uruguaios, levantadas, entre outros, pelo próprio Caetano
Braun. Assim é importante assinalar, a propósito a opinião do escritor
argentino Jorge Luiz Borges, para quem, a despeito de sua nacionalidade – o
gaúcho brasileiro é ainda o mais autêntico e o ultimo representante de um
tipo já em extinção no pampa argentino e uruguaio. É um depoimento que,
a parte de equívocos de alguns especialistas, serviria também como alerta
aos gaúchos de certas cidades riograndenses que, igualmente, não parecem
preocupar-se com esta outra realidade da formação da cultura espontânea de
seu Estado. Até recentemente, o próprio Noel Guarany não era aceito em
muitos centros urbanos do Rio Grande do Sul. Os meios de difusão de massa,
os ideais padronizados da sociedade de consumo (erigida como vocação
de toda a sociedade brasileira, impunham regras que só foram rompidas a
pouco, quando o decidido empenho empresarial, como o de Marcus Pereira,
valendo-se dos mesmos meios de divulgação acabou abrindo caminho para
certas manifestações consideradas incompatíveis com o gosto urbano. O
sucesso da apresentação de Noel Guarany, ou mesmo de Caetano Braun,
provariam o contrário? Talvez. Mas, como observou Jaime Braun, nada supõe
que o conjunto de manifestações espontâneas mais ligadas a uma estrutura
artesanal venham agora encontrar maior guarida. É o que ressalta quando
Caetano Braun aponta as restrições do mercado a todo o tipo de manifestação
espontânea que não encontra o “alvará” imediato (leia-se aproveitamento), da
sociedade industrial. E era o que se despreendia indiretamente da observação
de outro gaúcho, o domador Jorge Caran. Ele comentava sobre a mistificação
espalhada pelos filmes de cowboys, onde os cavalos, via de regra, são
amansados em rodeios “uma doma de cavalo – afirma caran – leva no mínimo
seis meses, mas isso ninguém parece se importar em saber”.

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NOEL GUARANY
HUGO RAMIREZ
Com sua estampa jovem e simpática de guitarrista e cantor missioneiro,
Noel Guarany lembra-nos de imediato a lenda do “ANGOERA”, o índio sisu
do que depois de batizado se tornou não apenas alegre, mas votado de corpo
e alma, a alegrar todo mundo ao seu redor. Onde canta, voz moça e brejeira,
lírica e brincalhona de Noel Guarany atua como um tônico reanimador,
autêntico limpa-bancos de galpões e salões de baile. Cada vez que o escuto
remoço um pouco e me revejo galopando contra o vento, nas planuras das
campanhas, ou contrito diante das ruínas cheias de oníricos vozerios, salmos,
rufos de tambores e sapateados do povo de São João Velho, lindeiro do de
São Miguel. Noel Guarany é único, está sozinho a representar o autêntico
Rio Grande gaúcho, dos ritmos límpidos e joviais, isentos das notas caóticas
e sofisticadas que não vem da decadência dos grandes centros europeus e
que s elites corruptas da América perfilham num ato suicida. O Rio Grande
se moderniza, a legislação alfandegária ergue muros mais fortes que os
alambrados de arames para separar nossas Pátrias Gaúchas, mas isso tudo de
nada valerá para nos distanciar, a brasileiros do sul e a americanos de caras
morenas e vozes líricas, enquanto houver a presença insinuante e as milongas,
chamarritas e canções campeiras e populares de Noel Guarany.
O “ANGOERA” da canção sul-riograndense transpôs as fronteiras
para alegrar almas e ambientes com suas melodias singelas, esfuziantes,
irresistíveis.

OS DOUTORES E O FOLCLORE
11 DE JULHO DE 1977 JANER CRISTALDO
Fui convidado, na semana passada, pelo Instituto Gaúcho de Tradição
e Folclore, para um debate sobre a música regionalista gaúcha. O convite
intrigou-me, afinal não é exatamente esta a minha área. Esporadicamente
abordo o tema, é verdade. Mas sem nenhuma pretensão de expert. Minhas
abordagens, no fundo, são mais palpites de um homem que nasceu no campo,
bebendo água de cacimba e apojando vacas, ouvindo as coplas de Matin
Fierro da boca de meu pai, os olhos ardendo com a fumaça de graveto verde
do fogo no galpão. Depois do mate em cambona, sol já alto, íamos tratar das
vacas que berravam na mangueira. Ordenhadas as leiteiras, eu partia para a
revista dos mundéus, algum gavião podia Ter cortado a tranca no dia anterior
e... Mas falava de folclore.
Da reunião participaram vários advogados, era Dr. Para lá, Dr. Para
cá, o Dr. Tem a palavra, o Dr. Permite um aparte? Olhei em volta e não vi
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nenhum Doutor, pelo que sei os mais graduados não passavam de bacharéis.
Mas, afinal, não era este o motivo da reunião, a discussão de títulos. Em todo
o caso, não entendi a ausência, na lista de convidados, da maior autoridade
em folclore que temos aqui no Sul, Lilian Argentina, cujo nome é respeitado
nacionalmente. Como tampouco entendi a ausência de um Noel Guarany, que
se não é doutor nem bacharel tem autoridade de quem sai campo a fora em
busca de suas canções em vez de compor em gabinetes ou salões de CTGs.
Como as reuniões terão continuidade, não deixei de sugerir a participação de
Lilian e Guarany nos futuros debates, afinal suas presenças são obrigatórias
em qualquer discussão sobre a nossa música e folclore.
Havia um outro grande ausente na reunião, depois falo dele. Antes
quero registrar meu espanto ante as considerações de Luiz Coronel – este
precursor gaúcho da poesia de Vinícius de Moraes – embasadas em leituras
muito em voga na década passada. Discutíamos serenamente música gaúcha
e/ou rio-grandense, quando Coronel nos brinda com copiosas citações,
brandindo Ernst Fischer, Marshall MacLuhan, Guimarães Rosa e Ariano
Suassuna. Fischer e Mac-Luhan, se bem lembro, eram vedetes da “ derniére
saison” intelectual, dos idos de 68. Que tinham a ver com um debate sobre
folclore? Rosa, se não estou enganado, era aquele diplomata poliglota que
publicou aquele imenso “tijolo” que tantos citam e tão poucos lêem, o
“Grande Sertão: Veredas”. Quanto a Suassuna, vá lá. Mas gostaria de saber
quantos foram até o fim de “Pedra do Reino”. A discussão, no entanto, era
sobre música gaúcha. ...Ou rio-grandense, como sublinharam alguns.
Levantou-se o problema da pouca divulgação de nossa música. Por que
as canções de nossos compositores não conseguem atravessar as barrancas do
rio Uruguai? E foi nesse momento que me lembrei do grande ausente daquela
reunião, Vitor Matheus Teixeira, o Teixeirinha. Tão marcante foi sua ausência
que a discussão girou em sua maior parte em torno de Teixeirinha. Não defendo
– esclareço – as composições de Teixeirinha sob o ponto de vista estético.
Mas uma evidencia não pode ser negada: o inculto Teixeirinha, que não usa
nenhum anel de grau, com suas letras de gramática estropiada, morreria de
rir se alguém lhe perguntasse como atravessar as barrancas do Uruguai. Pois
Teixeira está há muito em Paris, Estocolmo, Nova Yorque, Lisboa, Açores,
Moçambique, Otawa, só pra citar algumas cidadezinhas. Comunica-se com o
operário urbano e com o peão de estância, com o analfabeto e o alfabetizado,
com o brasileiro e com estrangeiros que nada entendem de português. Se
esse fenômeno não merece uma certa análise, que mais merece? A trajetória
publicitária de Gaudêncio Sete Luas?
Teixeirinha só é apreciado por gente inculta objetou alguém. Por sorte

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lá também estava Dante Barone, que teve de fazer uma projeção particular
dos filmes do Teixeira para o embaixador da Romênia, tal foi sua insistência
em conhecer o cantor gaúcho. Lembro-me, agora, de que Teixeirinha homena
geou, no ano passado os jornalistas gaúchos, no galpão do Palácio Piratini, a
convite do governador Sinval Guazelli.
Gente inculta, estes apreciadores do Teixeirinha? Não me parece. Em
todo o caso, de onde nasce o folclore? De gente inculta, como é a nossa gente?
Ou de “doutores” de anel no anelar?

NOEL GUARANY FAZ UM RELATÓRIO


CONTA (E CANTA)
O QUE DESCOBRIU SOBRE A NOSSA
MÚSICA REGIONAL

FOLHA DA MANHÃ 04/08/1977


Noel Guarany – hoje, às 21h no auditório da Assembléia Legislativa,
apresentação do compositor e cantor regionalista gaúcho, com músicas de
eu próximo disco e uma retrospectiva de sua carreira. Ingressos à venda
na King’s Discos e Loja Lau por Cr$ 50.00 (público em geral) e Cr$ 20.00
(estudantes).
Vestindo os trajes típicos dos revolucionários assisistas, que em 1924
– liderados por Assis Brasil – voltaram-se contra a eternização de Borges de
Medeiros na presidência da Província do Rio Grande do Sul, o payador e
milongueiro das Missões, Noel Guarany, fará um única apresentação em Porto
Alegre. Sozinho com seu violão, Noel fará uma retrospectiva de seus 15 anos
de música regional, cantando músicas de seus quatro discos gravados e do
próximo, dedicado à obra do escritor gaúcho Aureliano de Figueiredo Pinto.
Entre sua músicas e suas histórias, Guarany cantar peças do folclore latino-
americano, num espetáculo informal que ele classifica como um prestação de
serviço, um relatório do que tenho feito ao público que me prestigia.
Até 1960, Noel ser um simples cantor, com repertório voltado para o
tango e o bolero. Neste ano, ele desertou do exército e viajou pela América
Latina. Foi entrando em contato com a farta e rica música folclórica do
Continente e decidiu-se por “cantar a coisas da minha terra, na minha terra”.
Voltou para o Rio Grande do Sul e começou a investigar as formas existentes
de milonga na região onde nasceu, Missões e Alto Uruguai.
Com um pequeno gravador disfarçado entre seus pertences, Noel
Guarany entrevistou índios e velhos violonistas, coletando material sonoro

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para eu trabalho. Este trabalho lento e exaustivo tem que ser feito de maneira
mais discreta possível, pois “os índios se assustam muito facilmente e, depois
aparecem muitos mentirosos, que pensando deixar seu nome na História,
inventam coisas e dão as informações mais absurdas”. Por que Noel Guarany
pesquisa?
Há 20 anos atrás ainda existiam velhos guitarristas que, com suas mãos
trêmulas, tocavam milongas, cifras e cielitos. Depois, a indústria fonográfica
descobriu a música regional como algo comercializável e passou a adaptá-
la ao gosto do homem urbano, alterando e confundindo toda a filosofia e
musicalidade de nossa cultura folclórica. O rádio teve uma função importante
na poluição cultural da nossa música. Figuras como Pedro Raimundo também
giram neste sentido: vinham com uma cultura apaulistada, vestindo uma
caricatura do gaúcho e, em vez de usar valores, apenas os ridicularizavam.
O que Noel Guarany procura, é juntar o restos ainda existentes dessa
cultura na sua forma mais pura, mais popular. “Os costumes e tradição do
povo nunca estão na camada mais elevadas da sociedade. O que existe em
termos artísticos e culturais no folclore do Alto Uruguai e Missões, foi o que
sobreviveu nas áreas de maior resistência popular. É nas zonas de meretrício,
onde estão os marginalizados, os velhos e desprezados músicos, que se
consegue os resquícios mais vivos, com a mensagem do passado vivendo a
sua decadência.
Os resultados das investigações do músico gaúcho estão gravados em
eu quatro discos. Cada um em gravadora diferente, pois “não divulgam e
nunca vejo a cor dos direitos autorais”, são: Leyendas Missioneiras, de 1971;
Destino Missioneiro, de 1973; Noel Guarany Sem Fronteiras, de 1975; e o
único encontrável no mercado, Payador Pampa e Guitarra, de 1976. Além
destes participou em três faixas e na complementação das pesquisas do álbum
quádruplo Música Popular do Sul, editado pela Marques Pereira.
No espetáculo de hoje, Noel Guarany mostrará algumas canções de seu
próprio disco, a ser gravado no início do segundo semestre, com letras de
Aureliano de Figueiredo Pinto. Médico nascido em Tupanciretã, Aureliano
de Figueiredo viveu em Santana do Livramento, onde escreveu a maior parte
de sua obra. Com inúmeros livros de poesia regionalista, é ainda autor de
um romance, Memórias do Coronel Falcão, considerado um dos melhores
da nossa prosa tradicionalista. Noel já gravou varias música com letra de
Aureliano de Figueiredo Pinto, como Tubiano Capincho, Gaudério e Bisneto
do Farroupilha.
Desde os primeiros discos gravou letras de Aureliano, diz o compositor
missioneiro – porque dizem muito dos meus sentimentos, das paisagens e

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coisas da minha terra. Ele tem uma maneira muito fina de dizer as coisas.
Sua obra passa despercebida porque até os centros tradicionalistas não tem
condições ou não querem entender que Aureliano de Figueiredo Pinto foi e é
o melhor poeta do Rio Grande do Sul.
Com apresentações periódicas no centro do país (participou de todos
o shows da revista Versus) e no interior do Estado, o plano do compositor
gaúcho, além do próximo disco, incluem um trabalho diferente: atender o
convite feito pelo cineasta Silvio Back para compor a trilha sonora de seu
próximo filme, que conta a história da terra natal de Noel Guarany, as Missões.

A VERDADE DO CANTO DE NOEL GUARANY


JUAREZ FONSECA 24/06/1978

Noel Guarany ao vivo não é a mesma coisa que Noel Guarany em


disco. Mas isso não significa que ele seja menos forte em um ou outro.
Ao vivo ele é aquilo que umas 500 pessoas assistiram semana passada no
auditório da Assembléia. Um violeiro e cantador que diz coisas, que apresenta
uma imagem totalmente diferente daquelas que as pessoas se acostumaram a
ver (com raras excessões), quando se trata de ver cantores ou grupos – vamos
dizer – gauchescos, Noel mostra um ufanismo diferente, sem as habituais
doses maciças de nostalgia. Sua agressividade guerreira também é objetiva
(aliás, esse é um dos traços de seu temperamento), sem se perder nas brumas
e revoluções. O mito em Noel Guarany é diferente do mito no tradicionalismo
oficial. Outra coisa que se pode ver nos shows de Guarany o vivo é seu público
da mesma forma nostálgico do ancestral campeiro, não é um público que se
interessa didaticamente pelo “folclorismo”, não é um público que vai assistir
o “culto das nossas tradições”.
Mesmo que também atinjam parte desse público, o shows de Noel Guarany
estão cada vez mais tendo a participação de estudantes e de gente que sabe
que ele canta a partir do presente e a partir do passado voltado objetivamente
para o presente. Porque é atual, ele não se repete. Já o tradicionalismo oficial
se repete quase como definição. E mesmo que o tradicionalismo oficial (ou
suboficial) rejeite a forma e a verdade de Noel Guarany, mesmo que ele tenha
muitas restrições ao temperamento de Noel Guarany ser um poeta e cantador
nativista de importância. Porque seu trabalho tem força, porque ele sabe o que
canta e porque seu canto tem nitidez e qualidade. Como depoimento pessoal,
eu mesmo já tive e tenho diferenças com Noel, seu modo de ser, mas quando
o ouço cantar, quando ponho um de seus discos na vitrola, o que ouço e o que
ele me informa sobre a força inegável do nativismo, me obrigam a eliminar,

71
ao nível da arte, essa diferença. Nessa hora não me importa se ele tem fama
de brigão, se às vezes ele comenta fanfarronices, se ele se desentende com
muita gente.
Noel Guarany Canta Aureliano de Figueiredo Pinto, seu quarto elepê
lançado recentemente, continua a linha de ascenção do cantador marcado pelo
disco de 77, Payador Pampa Guitarra. Em oito das onze faixas está presente
a figura do título, Aureliano de Figueiredo Pinto. Médico e poeta, Aureliano
morreu na década de 50 e, embora apareça hoje como uma figura mitológica
da poesia nativista gaúcha, é o típico caso do criador de exceção que só se
torna realmente após sua morte. Aureliano canta a região missioneira. No
disco, Guarany musicou e canta alguns poemas de Aureliano, declama outros
e declama-quase-cantando os demais, apoiado no dedilhar de seu violão.
Aliás o disco não tem nenhum instrumento além da voz e do violão de Noel
Guarany. Ele canta tão bem como toca e tão bem como declama. A primeira
faixa do elepê é dividido em três: primeiro, um poema de José Hernandez,
Aqui Me Pongo a Cantar, musicado por Noel, depois um poema de Aureliano,
De Noite ao Traquilo (Por Meio Tantã da Idéia) e encerrando a Milonga
Missioneira, do próprio Noel, cuja letra da uma idéia precisa do que ele pensa
da coisa oficial, através de palavras cáusticas: “Amar a terra aprendi / Com
minha guitarra na mão / Conheci muita lição / Que nos nega a sociedade /
Mostrengos de faculdade / Tentam nos dar mas não dão”. As faixas seguintes
são todas com Aureliano, Os Cantos do Guri Campeiro, Oração de Posteiro
e Gaudério. O segundo lado é aberto por Versos (Versus), música sobre o
poema de Rubens Dario Soares, uma milonga perfeita, com violão excelente,
falando do destino de cantador: “Canto no amor / Canto na paz / Canto na
guerra / Mesmo que seja / Pra meu bem ou pra meu mal”. Na mesma música,
o poeta utiliza a forma feminina para falar da pampa (como os Argentinos),
ao contrário do oficialmente estabelecido e masculino o pampa. E as outras
quatro faixas são todas com Aureliano: Aquele Zaino (cantada e declamada),
Tobiano Capincho (é um dos poemas mais famosos de Aureliano), Toada de
Ronda (faixa forte, em declamação-quase-canto – ou vice-versa) e Bisneto
de Farroupilha (um poema que mostra claramente o sentido libertário da
obra de Aureliano). Ao fim, é pela força e pelo sentido universal do canto de
Guarany, demonstradas não apenas neste disco, mas nos anteriores e em suas
apresentações ao vivo, que eu sou mais ele. Não contra tudo e contra todos,
mas contra muitos. Acho que ele é um cantador importante, que abriu um
novo segmento formal e musical no estático canto gaúcho de raiz histórica.
E se há algum tempo cantava mais ou menos sozinho, hoje Noel Guarany já
tem pelo menos dois compositores que ingressam na picada aberta por ele,

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ambos presentes no show da semana passada. Pedro Ortaça e Cenair Maicá.
Noel Guarany Canta Aureliano de Figueiredo Pinto é lançado pela gravadora
Premier / RGE.

ALMA, GARRA E MELODIA


MARCUS PEREIRA - PRODUTOR
Depois de ter participado da coleção “Música Popular do Sul”,
lançada em 1975, Noel Guarany prosseguiu nas suas andanças de divulgação
da música missioneira lá da sua região das Missões. Muitos se surpreendem
com a humildade deste índio miúdo, habituados com a exuberância narcisista
e falsa destes Sidney Magal que narcotizam os adolescentes que freqüentam
os programas domingueiros de TV, à procura do lazer-esmola que preencha
de mentiras os seus sonhos e que recheie de impostura as suas fantasias de
moças de subúrbio.
Mas Noel Guarany é uma dessas surpresas comuns no Brasil, para
quem se disponha a conhecer o País em que vive. Em 1975, por ocasião da
apresentação ao vivo da coleção “Música Popular do Sul”, no Palácio das
Convenções do Parque Anhembi, Noel Guarany, sozinho com sua guitarra,
arrebatou o público presente. É inacreditável que uma figura aparentemente
frágil, e que se utiliza de um só instrumento, arrebate e leve ao delírio, pelo
fascínio épico de sua música, de sua voz e de seu violão que fantasmagoreia
uma dimensão irreal em suas mãos, e inunde, de emoção de beleza, o maior
teatro brasileiro. Foi o que viu, e o que ouviu, quem o ouviu cantar, naquela
noite, “Potro sem dono”. Cito o testemunho insuspeito de Júlio Lerner. Os
“Puristas” – e aqui ocorre, “stricto sensu”, o chamado ato-falho – o acusam
de utilizar, ou em seus poemas, ou nos poetas que interpreta, a língua hispano-
brasileira, que a gíria chama de portunhol. O fato é que Noel Guarany vive há
muito tempo e convive com fronteiriços dos países hispano americanos que
confinam com o nosso. Talvez por um descuido do Ministério da Educação
desses países, as línguas que neles se ensina às crianças é o espanhol ou
castelhano. E as crianças crescem com esse impróprio hábito. E pulam o muro
da fronteira que, ao contrário dos muros convencionais que projetam as frutas
dos vizinhos ranzinzas, são intocáveis e invisíveis. E isto ocorre no sentido
inverso também, quando brasileiros vão brincar no quintal do vizinho latino
americano. E todo o mundo sabe como é criança: não respeita nem muro alto,
ainda mais quando não tem. Desse convívio absolutamente natural, através
dos séculos, decorreu uma cultura própria, uma música própria, híbrida e
brasileira. Porque as fronteiras políticas não são fronteiras culturais e isso
já ficou dito na contra-capa da coleção ‘Música Popular do Sul”: “Porque

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a língua e os costumes desconhecem os limites políticos, para eles não há
fronteiras e por lá – nas barbas dos fiscais da alfândega – ocorre o mais
descarado contrabando de cultura e de fraternidade. E isso ocorre nos dois
sentidos, como prova de sucesso de Vinícius e Roberto Carlos em Buenos
Aires.
Os “Puristas” (e os psiquiatras sabem disso) disfarçam, muitas vezes,
sua capitulação – essa sim invasora e criminosa – à música estrangeira de
péssima qualidade, imposta pela dominação cultural e econômica a que
estamos submetidos, criticando o portunhol que se canta por aí. Nenhum
mapa que consultei mostra o Brasil fazendo fronteira com a Califórnia. No
entanto, o lixo musical que lá é produzido e que lá deveria ser incinerado, é
jogado neste quintal que somos.
Noel Guarany é um dos maiores cantores, compositores e guitarristas deste
país. Lá no pago dele, convive com os irmãos da América Latina e com
eles permuta o talento comum, Dom de Deus. E batalha, solito, contra a
dominação cultural estrangeira, espúria, imposta. E adoça suas canções com
o mate amargo, hábito do pampa, que também é brasileiro.

HOMEM DE RAIZ, MÚSICA DE RAIZ


REVISTA SOM DO SERTÃO JUNHO DE 1982
Noel Guarany é um artista que luta pela preservação: não quer deixar
morrer a natureza nem as tradições culturais de sua terra.
Noel Guarany é filho de um índia guarani e de um italiano. Tem 40
anos e nasceu em São Luiz Gonzaga, região das Missões, no Rio Grande do
Sul. Foi de sua mãe que ele guardou com carinho o goto pelas coisas de sua
terra tão marcada por guerras, revoluções e matanças de milhares de índios,
em séculos passados. Essa região histórica passou do domínio espanhol para
o domínio português em 1801. A partir daí os portugueses fizeram tudo para
aniquilar a cultura espanhola que já tinha se enraizado nas Missões. Por volta
de 1850 aumentou ainda mais o ataque aos costumes e tradições culturais,
com chegada dos colonos europeus que iriam trabalhar na agricultura. Tudo
isso precisa ser dito para se entender o trabalho de Noel Guarany. Natural
de uma região tão importante histórica e culturalmente, ele percebeu que as
Missões mereciam ser cantadas, que deveria existir um canto missioneiro. Em
outras palavras: ele decidiu que aquelas tradições não poderiam ser enterradas
para sempre.
Mas não foi fácil tentar divulgar essa autentica música gaúcha, sem
influências de gêneros musicais modernos. Ele enfrentou dificuldades, mas

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também teve apoio de gente interessada em eu projeto. Hoje Noel Guarany
já começa ficar conhecido do grande público, pois d crítica especializada já
merece, há muito tempo, grandes elogios. Seu último LP acaba de sair pela
RGE, e se chama “Para o que Olha em Ver”. Traz algumas faixas inéditas
e outra escolhidas a partir do rico folclore gaúcho. Noel tem programas de
rádio no Rio Grande do Sul, onde, na qualidade de defensor da ecologia, traz
sempre sua mensagem em favor da preservação da natureza, preocupação
presente em algumas de suas músicas. Noel Guarany, portanto, é um artista
que por meio de seu trabalho, dá suas opiniões. Disse ele certa vez: “Meu
trabalho pode não ser para tocar em rádio, mas não povão nem da minha arte.
Quero cantar aquilo que sempre quis. Não vou me vender, já estou muito
coroa”.

NOEL GUARANY DIZ QUE ESTÃO CONFUNDINDO


FOLCLORE GUARANÍTICO COM ARTE MISSIONEIRA
A NOTÍCIA SÃO LUIZ GONZAGA 19 DE NOVEMBRO DE 1987
Noel Guarany visitou ontem o jornal A Notícia e fez considerações
em torno da IV Mostra da Arte Missioneira. Para esse artista, o evento deixou
a desejar, “porque confundiu folclore guaranítico, que tem uma abrangência
ampla, com arte missioneira, mais restrita”. Para Guarany, a própria presença
de conferencistas e músicos, “sem compromissos com o projeto cultural da
Mostra da Arte Missioneira mostrou um desvio de conduta que parece ter sido
percebido pelo povo”.
Considerando-se um do autores do movimento da arte missioneira,
Noel Guarany narrou sua longa e penosa caminhada artística, cujas conclusões
só aconteceram depois de muitos anos de estudo e pesquisa, o que lhe exigiu
uma caminhada por grande parte da América Latina.
Para Noel Guarany, Aurélio Porto é a melhor referência da história
das Missões e que, partir de sua obra, o povo aqui residente deve realizar
sua pesquisa a fim de, por sua própria conta, cuidar do movimento que visa
preservar a nossa história.
Noel Guarany, que antes militou no PDT e hoje está no PT, disse que,
o movimento artístico desta região “parece estar subordinado à ditadura do
PMDB”, e que “é preciso romper essas amarras para que haja crescimento
real”.
Lembrou o artista que, quando iniciou sua caminhada artística, o que

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e ouvia no Estado era “Coração de Luto” e “Para Pedro”, que nada tinham a
ver com nossa cultura. Com orgulho disse que “criei uma arte e a partir dela
iniciou um importante movimento musical”.
Noel Guarany, disse, finalmente, que ao se programar alguma coisa
em torno de folclore guarani e arte missioneira, ele precisa ser ouvido antes,
bem como Jayme Caetano Braun e José Gomes, entre outros.
O artista São-luizense, atualmente residindo em Santa Maria,
suspendeu temporariamente sua carreira, mas pretende retomá-la no mais
breve possível. Ontem, ele transitou por São Luiz, tendo como destino a
cidade de Itaqui, onde foi tratar de negócios.

A VOLTA DE NOEL GUARANY


FOLHA DE SÃO BORJA - DEZEMBRO 1990 ISRAEL LOPES
Noel Fabricio da Silva, o cantor NOEL GUARANY, depois de um
longo tempo afastado do disco, agora volta com mais um elogiadíssimo
trabalho. Aliás, todo o seu trabalho sempre teve compromisso com a nossa
cultura, com a nossa música de raiz. Noel transmite em suas canções a herança
de nossos “avoengos”, que por atavismo, a receberam dos índios missioneiros.
Cantor que, juntamente com o saudoso Cenair Maicá, Pedro Ortaça
e o poeta Jayme Caetano Braun formaram o GRUPO MISSIONEIRO, da
chamada MÚSICA MISSIONEIRA, com estilo próprio da região. Por onde
tem andado, tem divulgado a tradição de sua terra. Estudioso do folclore, tem
um livro escrito onde conta sua caminhada que iniciou em 1969, mostrando as
canções que pesquisou e a verdadeira história do Rio Grande do Sul. Elucida
o termo “mameluco”, mestiço de branco e de índio (curiboca) que em nossa
região, chamava-se “MAMELUCO”. Conta a história do “Cabo Laranjeira”, a
respeito da “dança”. Enfim, um estudo de fôlego, de resgate de nossos valores
culturais.
Em razão da seriedade do seu trabalho, tem merecido elogios e critica
especializada do nosso país. Depois de ter gravado 9 discos, esteve, afastado,
por descontentamento, principalmente com o trato que é dado aos direitos
autorais, o que levou-o a “berrar” na imprensa.
Agora volta ao disco, graças à Gravadora Discoteca, do Alemão Alex
(ex-Caverá), com o mesmo propósito de defender a cultura missioneira. Já, na
milonga “DO MEU MANGRULHO”, de sua parceria com José João Sampaio
da Silva, diz:

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“Passei anos “mangrulhando”
Sempre o mesmo PAYADOR
Com a integridade campeira
De pioneiro e precursor
Quando eu canto o que é crioulo
Não peço amadrinhador”
Encerra considerando a sua música um “hino nacional”. Uma espécie de
“Luar do Sertão”, que salta da garganta do rapsodo.
“Defendendo a alma da gente
O PATRIMÔNIO CULTURAL
Ninguém me leva por diante
Nem prostitui meu ideal
Cada milonga que eu canto
É um HINO NACIONAL”.
Inclui mais uma milonga, com o mesmo parceiro, “ PRA QUE
VOLTEM OS CONDORES”, constituindo-se num canto libertário, exaltando
os paladinos da América.
“Quando o ventos redentores
Se alçam ninguém domina
Esta AMÉRICA LATINA
Serão vôos de condores
Os anseios multicores
Pontiaram qual um vaqueano
EL CORAZÓN DOS HERMANOS
E que será o EPICENTRO
Pra resgatar tempo a dentro
O ideário Boliviano”.
Exalta figuras, como as de Luther King, Tiradentes, Allende, Lincoln,
Prestes, Sandino, Artigas, Sepé, Benito, Soarez, Malmaceda ...

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“Não se matam ideais
Populares precursores
Mas, aí estão os grão-senhores
E os grotescos arsenais
Os indigentes mentais
E deles não te compadeças
E cada mata espessa
Militarizam os ares
Com espadas nucleares
Pairando em nossas cabeças”
Incluiu “À VILLA GUILHERMINA”, um chamamé clássico, de
Gregório Molinas e Visconti Vallejos. Na CHAMARRITA DE GALPÃO,
retrata fielmente o gaúcho pampeano.
“Sou domador de mão cheia
Ginetaço flor e flor
Tranco o laço, inda por cima
Tenho sorte no amor
Não sou manco na guitarra
Guitarreiro e payador”.
PORTO ALEGRE INGRATO, uma chamarrita, recolhida do folclore
e adaptada, é um desabafo do gaúcho do interior que se dá mal na cidade
grande, afugentado pela má sorte. Na guarânia, AQUARELA GUARANY,
usa o vocabulário dos nossos primitivos.
“Sou raiz grande de Pátria
Missioneiro e guarany
Se nasci lá nos ESTEROS
Junto ao rio CAMBAÍ
Sinto artérias que pulsam
Lá no velho TARAGUÍ”

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No outro lado do disco, Noel apresenta os seus missioneiros – JORGE
GUEDES, o GUGA, e o JOÃO MÁXIMO (este exímio gaiteiro, na década
de 60, antes de Pedro Ortaça se filiar à MÚSICA MISSIONEIRA, formaram
a dupla Canário e Canarinho). Jorge Guedes grava dois clássicos de Noel:
NA BAIXADA DO MANDUCA (chamarrita) e DESTINO DE PEÃO
(rasguido doble). Já, o João Máximo, grava em solo de gaita o seu ECOS DE
CHAMARRA. Jorge Guedes canta mais três composições: RIO DE TRÊS
PÁTRIAS (chamamé), dele e do grande poeta Amaury Beltrão de Castro;
PEÃO TRONQUEIRA (chamarrita), dele, do Julinho Fontella, do Adalberto
Machado e do João Máximo; e, esse seu grande sucesso TROVAS DE
MISSIONEIRO (chamarrita), de João Máximo e Juarez Chagas.
“Sou cria da BOSSOROCA
Lindeira ali de São Luiz
Não saio da minha toca
Se ali me sinto feliz
Pode não ser para os outros
Mas para mim sempre será
Terra de livres e potros
Que alguém jamais domará”.

A VOLTA DO MISSIONEIRO
GILMAR EITELVEIN
Durante uma década, ele tornou-se um nome respeitadíssimo na
América Latina com sua obra de inspiração missioneira. No início dos anos
80, meteu-se em confusões, brigou muito, afundou na bebida, e sumiu. Agora
o compositor Noel Guarany está de volta, lançando um novo LP e preparando-
se para alguns shows. Aos 48 anos, jeito surrado, Noel se diz cansado de
brigar pela verdadeira cultura num mundo atrasado. “To canado desta situação
de pais preciso passar por mil peripécias culturais. Sou um especialista em
folclore missioneiro, mas nunca me chamaram para falar sobre isso. Preferem
outros bobalhões por razões políticas. O Brasil é um país comandado por
mentecaptos”, dispara. Após seis anos afastado, Noel Guarany resolveu voltar
a gravar – “mas só porque conheci dois grandes valores, e quis lançá-los. Eles
são os culpados”. Ele refere-se ao cantor Jorge Guedes e João Máximo, que

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aparecem na contracapa de seu novo LP. A Volta do Missioneiro.
O afastamento de Noel do mundo artístico tem várias razões, umas
claras e outras não. Sabe-se que ele sempre carregou uma fama de truculento
e, nos últimos anos, de se tornar um alcoólatra. “É mentira”, retruca ele,
“não sou dependente da bebida; bebo de vez em quando e até me passo, mas
não sou alcoólatra”. Quanto à sua agressividade, aproveita para zombar da
má fama: “tenho uma coceirinha no dedo. De seis em seis meses tenho que
dar um tiro em alguém”. Mas ele garante que nada disso tem a ver com sua
carreira, porque minha música é imaculada. Podem não gostar de mim mas
gostam da minha música. E tenho crédito, minha conta bancaria é ilimitada”.
O compositor sabe o que está dizendo quando se refere à sua música e aos
direitos que não recebeu por ela, um dos maiores motivos de sua revolta e de
seu afastamento temporário da vida artística: “Me desiludi com a ECAD, a
Ordem dos Músicos e a indústria fonográfica. Voltei mesmo só pelos amigos.
O ECAD é uma falcatrua”. Embora seus discos sempre tenham vendido bem
no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, ele afirma que nunca viu a
grana do direito autoral, tendo construido sua vida com o que ganhou fazendo
shows. Até o cineasta Sylvio Bach está na lista negra do compositor. Acontece
que Noel fez a trilha sonora e trabalhou no filme República dos Guaranis, sem
receber nada em troca até hoje.
Artista identificado com posições políticas de esquerda, Noel Guarany
gravou 10 LPs e construiu sua carreira cantando muito nas universidades,
sem jamais desfazer da máxima que acompanhou desde o início da carreira:
“Se hay gobierno, soy contra”. Sempre enfrentando problemas com a censura
nos anos 70, e perseguições da Polícia Federal, ele hoje ri das situações que
enfrentou e diz que não pretende mais correr atrás da máquina. “Não posso
me queixar do que consegui com a música; poucos artistas conseguiram isso.
Continuo sendo solicitadíssimo e quero voltar a fazer alguns shows, mas só
em lugares especiais. Cansei, estou acomodado”, admite. Durante os seis
anos de afastamento, Noel Guarany diz que trabalhou muito em pesquisas
diversas, na sua casa em Santa Maria e na fazenda de um amigo em Itaqui,
sobre a cultura latino-americano, como documentos históricos linguajar
característico dos povos, o folclore e personagens como Che Guevara, Allende
e Getúlio Vargas, ao lado do poeta José João Sampaio da Silva, “o maior
poeta da atualidade”, segundo ele. “Temos uma enorme biblioteca de cultura
americana”, garante Noel, que há três anos trabalha numa autobiografia que
não deverá ser editada até sua morte. “Vou deixar para minhas filhas (tenho
quatro) para editarem depois que eu morrer. Não vou ganhar nada mesmo.
Também não queria lançar este disco, apenas deixar a fita para a posteridade”,
80
confessa. Mas convencido pela gravadora Discoteca, não apenas lançou seu
décimo LP como já assinou contrato para gravar um próximo em março do
ano que vem.
Conversar com Noel é interessante por ser um homem sem meias
palavras. É taxativo, por exemplo, ao dizer que não suporta atual música
gaúcha da geração dos festivais. “É um caos: ninguém tem conhecimento de
causa e nem pesquisa. Como cantar o Rio Grande do Sul sem conhecer sua
base cultural que é a região das missões? Quem não beber daquela fonte não
faz música gaúcha”, acredita. Ele não poupa também críticas ao que chama de
“culturas estrangeiras” – os italianos, alemães e japoneses. “São predadores
culturais, não são gaúchos”. Perguntei de quem ele gosta e respeita: “Adair
Freitas, Jorge Guedes, José Cláudio Machado, Cenair Maicá, Pedro Ortaça,
Telmo de Lima Freitas, Aureliano de Figueiredo Pinto, José João Sampaio
da Silva e Amaury Beltrão. Só”. Perguntei também se ele queria fazer
algum pedido para aqueles que fazem a cultura musical gaúcha hoje. Ele
não pestanejou: “Peço encarecidamente aos rio-grandenses que pesquisem
a literatura do Rio Grande do Sul para não ficar perdido no CTGs bebendo e
comendo carne”. No novo disco, Noel gravou 12 faixas, interpretando lado A
e colocando seus seguidores, Jorge Guedes e João Máximo, para interpretar
as músicas do lado B. Na ficha técnica, foi omitido o nome do letrista José
Hilário Retamozzo como autor de Trovas de Missioneiro, ao lado de Juarez
Chagas.

81
CORRESPONDÊNCIA
ENVIADA PELOS
PARCEIROS MAIS
EXPRESSIVOS DE NOEL

82
JORGE GUEDES, NOEL E JOÃO MÁXIMO

83
CARTAS DE BARTOLOMÉ PALERMO
Buenos Aires 4/5/77

Querido amigo Noel


Recebi tu tarjeta postal con mucha alegria, hace poco estuve por
Uruguaiana con el amigo caro Mosar. Y tuve ganas de hacerme una corrida
hasta Porto Alegre. Pero no habia tiempo. Teniamos que actuar en Buenos
Aires, yo hace poco tiempo que le mande a Caetano mas discos a la direción
de radio “Guaiba” junto con una carta donde te mandaba saludos para vos,
pero no tuve contestación, puesto que no se si recebio. Si llegar a saber
algo mandame la noticia si en realidad los discos llegaran. Noel contestame
esta carta y contame algo de tu querido Brasil que nunca olvido, mientras
recuerdos a tu señora a tu nenita y tu querida madre. Te imaginare que siempre
tengo ganas de hacer una gira con vos avisame que posibilidades hay de que
podramos hacer unos recitales junto contigo.
Un gran abrazo.
Tu amigo Bartolomé Palermo

Querido amigo Noel Buenos Aires


Recebi tu carta en la que me contás toda tu actividad artística, lo que
me alegra mucho.
Yo en Bs. A. como siempre. En estos dias salió un long-play que tengo
con una orquesta de cuerdas donde intervenimos tres solistas, en cuatro temas
una canto, en otros cuatro bandoneón y orquesta y el resto guitarra con la
orquesta. La gente de la produccion nos quiero costar un viaje a Porto Alegre.
Dentro de poco tiempo viajemos, primero promocionamos el disco unos diez
dias, y durante ese tiempo que estamos podriamos arreglar algo con vos para
poder hacer algunos trabajos juntos, tambien aprovecharia la oportunidad
para levarte los discos de Tarragó y Luna, yo voy a avisarte unos quince dias
antes de nuestra partida por carta. Me gustaria parar en algun lugar que nos
saliera barato. Podria ser aquel apartamento donde paramos con Raul, yo te
aviso para que nos consigas algo.
Bueno Noel, te mando un gran abrazo y mi recuerdo y muchos cariños
a tus familiares.
Por favor, contestame lo antes posible.

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CARTA DE SILVIO BACK
PRODUTOR E DIRETOR CINEMATOGRÁFICO

04/ 03/ 78 Caro Noel



Tenho tido mais notícias suas do que v. de mim (através do Deonísio
da Silva, por exemplo, de cuja casa escrevo este bilhete; do Kolecza, também).
Mas tudo bem. Estive alguns dias em Porto Alegre e falando com o Kolecza,
ele me informou que v. mudara para Santa Rosa, e que nesses dias v. estaria
em São Paulo. Vim novamente pra região missioneira, conhecer, estudar
mais, trocar idéias do roteiro com o Deonísio. Queria muito te colocar a par
das transações do “Republica Guarani”. Aparentemente o processo do filme
estaria em compasso de espera. Ledo engano. As coisas estão a todo vapor.
Como te falei em Caaró, a realização do filme seria, e esta sendo feita por
etapas. Não esquenta que a tua vez chegará. E eu sei que v. está ligadissimo
no filme. Da minha parte, me sinto tranqüilo sabendo que tenho o teu talento
pra trilha musical do “Republica Guarani”. Agora, em abril, reiniciaremos
as filmagens: aí pelo Paraguai, Argentina e voltamos a São Miguel. Até lá
faço um contato pessoal com você pra v. nos ajudar efetivamente nalgumas
filmagens especialmente com índios guaranis brasileiros e paraguaios. E,
nesta hora, vamos acertar os nossos ponteiros financeiros. Outra coisa: o que
filmamos em Caaró ficou muito bonito e vai dar uma significação toda especial
para a parte do filme que vai tratar do Roque Gonzales. O Deonísio me contou
entusiasmado o show que v. deu aqui em Ijuí com o Martim Coplas. Fico
satisfeito em ver o teu trabalho sendo cada vez mais reconhecido. Ainda há
poucas semanas, fui entrevistado pela Radio Jornal do Brasil sobre o filme e,
como eu havia presenteado o dono do programa com um LP teu, na hora de
falar na musica, falei em você, e a radio tocou duas faixas do “Payador, Pampa
e Guitarra”. Uma glória. V. tem acompanhado as notícias sobre o filme? Tem
saido muita coisa, especialmente em Porto Alegre, São Paulo e Rio.
Caro Noel, numa dessas a gente se encontra. E quando for algo efetivo
pro nosso trabalho comum, deixo recado, telefono, te encontro, enfim. Ok?
Abraços,
SILVIO BACK

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CARTA DE SANTIAGO CHALAR E SANTO INZAURRALDE
(Consagrados artistas do folclore Uruguaio)

Minas, 7 de marzo de 1980 Gran amigo Noel:


Desde ya mis disculpas por la salida tan apresurada desde Bagé pero
el tiempo es parejero, habia mucho camino por delante e una hora impropia y
ademas hermano, no me gustan las despedidas de las personas que quiero.
El habernos conocido en esa ocasión parece mentira, pero el destino de
cantor de ambos en una comuníon de sentires y gustos por lo nuestro, por lo
tradicional, por todo lo que contiene en tus tres maravilhosos larga duracion
excelentemente grabados, acerca de tal forma a las personas, que realmente
difícil olvidar los momentos convividos y hace dificil tambíen el partir
Estoy en lo de Santos disfrutando de tus grabaciones y me nacío la
idea de escribirte. Comente con la gente de este medio lo pasado en Bagé
escuche las grabaciones hechas en tu carpa gaucha y tu voz defendiendo la
guitarra y el canto criollo y nos dío más fuerza para realizar la idea de la ya
programada por nosotros MARCHA DE TRES BANDERAS.
Probablemente a mediados de abril voy con un grupo de cantores
orientales a La Plata y espero conocer a tu amigo personal Argentino Luna.
Alí planificaremos la marcha. En priciplo creo que es firme la idea de
la marcha de Vichadero a Bagé yo voy a intentar una marcha de Dolores
(Argentina) a La Plata. Así los tres Tu Luna y yo con unos caballos de la zona
donde esteamos podramos pasar momentos de canto a campo abierto y en
espetáculos organizados en escenarios de las ciudades que visitemos.
Recibi una carta del amigo argentino de Dolores que conocí en tu
carpa y pone a dispoicíon la sociedad nativista que el integra en Dolores a
los afectos de la organizacíon de caballada y escenarios. Voy a ponerme en
contacto con el (si puedo personalmente) y de lo que surja te tendré al tanto.
Como anda en sus pagos el amigo gaitero Ambrosio? Ah! Tooro! Fino
en el tecleteo! Dale un abrazo de mi parte y espero verlo en la marcha o en la
próxima topada.
Bueno hermano vuelvo a agradecer los momentos vividos tu
apadrinada en aquel escenario que era como un hormiguero “patiao” la
amistad compartida en momentos de cantos lejos de la querencia un sincero
abrazo de tu hermano en el canto.
SANTIAGO CHALAR

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La máquina de escribir está desafinada, por eso la escritura del cantor
salió medistorcida. Pero lo importante quedó dicho. Quando mi lindos
recuerdos de la semana de Bagé, que entre otras cosas muy gratas, me dió le
de conocerte junto al humo del hogón y la gaita de Ambrosi.
Nos veremos. Mientras tanto um fraternal abrazo.
SANTOS INZAURRALDE

CARTAS DE RUBENS DARIO SOARES

Querido amigo e indômito companheiro Noel Guarany


Saludos miles!
Cruz Alta, 14 de agosto de 1981
Foi com indizível satisfação que recebi teu recado, através de
correspondência de 6/8/81. Com nossa composição agora irmanada “AO
PAYADOR MISSIONEIRO” somente tu, meu velho e estremecido táura
crioulo, raça ameríndia, que estridula na garganta de pássaro alçado,
acompanhado por esse violão de mágicas sensitivas, que, nesse interland de
sonhos castos, herdeiro promissor da legendaria raça missioneira, somente
tu, repito, poderia dar a estes versos, tamanhas sonoridades, acordando o
descampado perdido pelas distâncias, como já fizeste tantas vezes, acordando
o pago com teu canto e teu amor a esta terra que tanto amamos!... peço a Deus
que me permita ouvi-lo ainda, sentado à sombra de meu rancho pobre, com
teu violão, invejando os pássaros canoros que todas as manhãs, visitam as
ventanas de meu rancho!...
Encerro aqui, pois hoje, a emoção é muita, e pode, de maneira inusitada
descontrolar os compassos já apagados deste pobre coração de guasca!...

Recomendações a Exma. Esposa e filhos.


Do amigo de sempre que aqui permanece ao teu inteiro dispor,
orgulhoso da nossa grande e imorredoura amizade.
Abraços
RUBENS DARIO SOARES

Cruz Alta, 17 de fevereiro de 1976



Caro e prezado amigo Noel Guarany!...
Recuerdos! Recomendações à sua dileta esposa e filhinha, a quem
desejo um mundo tranqüilo de PAZ E FELICIDADE junto ao pai gaudério!...

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Cumprindo as determinações que assumi em durante a existência em
enviar-lhe minhas modestas produções; das quais gozarás todos os direitos
depois de minha morte, conforme documento em teu poder, hoje compus esta
milonga, que se não é deveras bonita, é algo comercial, pois que fala de nossa
fronteira oeste, principalmente de minha terra, Uruguaiana!...
Acredito que teu talento musical e artístico transformará numa bela
composição!...
Do amigo certo que muito o estima
Rubens Dario Soares

CARTA DO DR. ANTERO MARQUES

Caro amigo Noel Guarany Porto Alegre, 1/11/82


Um dia, não sei quem (e já não recordo onde) contou-me: “Encruzilhada
de estradas largas, uma venda, algumas árvores e uma ramada de faxina,
oferecendo sombra e descanso aos andantes...” O mesmo quadro comum e
encontradiço, em todas as encruzilhadas e estradas de todo o Rio Grande...
_ “Um andante, queimado do mormaço, vinha do tranco, chegou,
saudou um gaúcho, desconhecido, que lhe ofereceu o mate que estava
tomando, a beira do fogo onde assava sua carne: Conversaram... O andante
cortou-a; matearam; e, quando o sol melhorou, encilharam e saíram ao tranco,
pois levaram o mesmo rumo...”
_ “Adeante – diria o conto – não muito longe o da carne e do mate foi
atacado por um inimigo, feio... E teve o corpo coberto pelo companheiro, que
o defendeu, de armas na mão...”
Já não me lembro o desfecho, e não quero inventa-lo... o caso repete
um feitio comum a todos os gaúchos...
Minha amizade por Aureliano Pinto era assim: O livro, que lhe mando,
mostra isso. E eu queria dizer-lhe, que os amigos do Aureliano são também
meus amigos!
Um abraço
ANTERO MARQUES

88
CARTA DE CARLOS ALBERTO KOLECZA
“Bugre” velho
Um abração

Estão coladas na porta de um armário, aqui na Redação, as letras de


“Pulperias” e “Total”, para inspiração do pessoal nos momentos de aperto.
Dizer isso não é o melhor jeito de mandar um abraço de aniversário, mas é o
jeito que me vem à cabeça neste momento da calmaria por aqui. É véspera do
Denúncia 17, aproveito o alívio para te escrever. “Bugre” Velho, tudo de bom
pra ti.
Às vezes fico te imaginando aí no retiro, mirando o firmamento,
matutando. “Bugre” como tens coisas pela frente, como te precisam em
muitas peleias, tanto de lirismo como ideológicas.
“Bugre”, pra ti que, de repente, pode se achar meio extraviado, quero dizer
que não deixes esfriar o teu ânimo, a tua vontade de fazer as coisas que faltam.
Mais uma coisa de que deves ter certeza: pouca gente sabe o que deve ser
feito.
É isso, Velho, Tudo de bom
Lembranças a Neidi e as três Princesas,
Do Kolecza PA, 22/12, Quarta-feira

CARTA DE JOSÉ JOÃO SAMPAIO DA SILVA

Itaqui, 31 de Maio de 1991


Prezado amigo Noel:
Salud... Plata y Alegria:

Aproveito este agradável veranico de fins de maio, veranico este, por


sinal, pródigo em dias ensolarados e noites amenas, aproveito para galopear o
potro das idéias e rabiscar algumas mal traçadas linhas, como diriam aqueles
floreados escrevedores de cartas de antigamente.
Pois, remexendo no meu baú de quinquilharias, topei com uma fita
antiga, tão antiga que nem lembrava mais, e na referida fita encontrei uma
milonga pampeana “LOS ALAMBRADOS (QUEJA DE LOS INDIOS
PATAGÔNICOS)” cuja letra é um primor e um verdadeiro manifesto
ecológico, em consonância com os princípios de respeito e preservação da
cultura das minorias, de um modo amplo e geral.
Aliás, os índios, também de um modo geral, só são minoria pela ação

89
perniciosa e gananciosa do predador branco, investido de conquistador do
mundo e exterminador do patrimônio cultural aborígene, nos quatro cantos
deste nosso maltratado planeta.
Esta milonga foi gravada há muitos anos pelo inolvidável CAFRUNE,
sendo portanto praticamente desconhecida aqui no RS. Inclusive, como só
possuo uma fita reiúna, não posso, no momento, informar quem é o autor da
mesma, mas sei de um amigo em ALVEAR, que tem o disco do CAFRUNE,
assim vou providenciar de imediato descobrir o autor e te informarei. Assim
sendo, pela qualidade e atualidade temática da referida milonga, estou te
remetendo a letra da mesma para que possas fazer uma avaliação mais detida e
isenta desta “LOS ALAMBRADOS”. Se te agradar e agora quando vieres nos
dar o prazer de passar uns dias aqui conosco, se realmente vier a te interessar
a música, gravaremos uma fita para ti. Aproveito também para te remeter
as versões em espanhol que fiz de PRÁ QUE VOLTEM OS CONDORES e
AQUARELA GUARANY, que inclusive, mandei igualmente, ao hermano
Anibal Sampayo.
Encontrei ainda, no mencionado baú, uma letra despretensiosa que
fiz há 15 anos atrás, ESTRELA GALPONEIRA, acho que a letra consegue
com certa elegância e sobriedade, falar de sentimentos tão perenes e caros a
condição humana. Vou aguardar a tua vinda, para trocarmos idéias a respeito
de alguns temas que estão em gestação embrionária na minha cabeça.
Há muita gente torcendo pela tua volta em estilo de gala, não te
afloxa bugre véio! Pois a pampa e seus mágicos encantos ainda – graças a
Deus e a nós – ainda é nossa. Tenho certeza que voltarás em grande forma,
para regalo da verdadeira arte terrunha e para quebrar as pernas – não uma,
as duas mesmo! – de certos mercenários, mercantilistas inescrupulosos do
patrimônio, que nunca foi nem nunca será deles.
Bueno Noel, fecho a cordeona por aqui e boto um pé-de-amigo na
goela que hoje está destravada.
Recebe, extensivo a Neidi e demais membros da tribo o abraço fraterno
e amigo do “ermão”

José João Sampaio da Silva

90
CARTAS DE ANIBAL SAMPAYO

Malmö 31 de Octubre de 1991.


Queridos amigos, Noel y Joazinho
Recebí con mucha alegría Noel, tu targeta postal, la que me trajo
imborrables recuerdos de esa hermosa placita, en la que tuve la oportunidad
de actuar en el año 48, en una gira que hice, y la comuna de Santa Maria.
Me contrató para hacer un recital al airelibre en esa plaza. Está igual, con los
mismos canteros, las palmeras, y las garotas paseando por las aceras. Bueno
hermano, yo creo que te lo dije por el vintiuno (21) de Noviembre pienso
andar por mi ciudad natal, Paysandú y me quedaré en el país, unos cuantos
meses, hasta julio o agosto en que volveré a Europa, a cumplir compromisos
de grabación, y giras por Scandinavia, Suecia, Dinamarca, y Noruega.
Por lo tanto sería lindo que nos viéramos por allí, y si sale, hacer
algo juntos. Yo tenía una propuesta en Porto Alegre, de hacer una grabacioón
con otros artistas brasileños, y argentinos, como Antonio Tarragó Ros, pero
luego me tuve que venir y quedó en suspenso todo. A lo mejor viajo a Porto
Alegre, y nos vemos, o paso por Santa María a darte un abrazo. De cualquier
manera, espero tus noticias en Paysandú, yo vivo como siempre en la calle:
Dr. Verocay 1154. Payandú. Uruguay. Allí está tu casa, cuando quieras darte
una vuelta, largate nomás, que un mate, y algún churrasco se consigue
Aqui te envío. Una tarjeta en donde se puede ver el sol de media
noche. En el norte de Suecia, en la mitad del verano el sol no se esconde y se
puede ver durante todo el tienpo, la postal lo muestra a las doce de la noche.
Es un espectáculo hermoso, yo anduve en una gira al norte de Finlandia, en
donde viven los Lapones, (esquimoles) y pude maravillarme con todo eso.
Bueno hermano, recibe tú, Joazinho, y familia mi afecto, y la seguridad de mi
gran estima. Tu amigo:
Anibal Sampayo

Malmö 20/06/94
Querido hermano Noel
Ayer he vuelto a Suecia, y me he encontrado con la amarga noticia de
tu enfermidad. He quedado muy dolorido, y pido a Dios de corazón, por tu
recuperación. Pido a tus amigos y familiares que, me escriban por favor para
saber de tu salud. Aqui te envio uma foto mia sacada aqui en mi casa, te la
envio para que me recuerdes. Desde Uruguay te enviaré mis últimos discos,
volveré por octubre o Noviembre cuanto me gostaria acercarme asta Santa
Maria para darte um fuerte abrazo. Dios ha de querer, y verte de nuevo dueño

91
de esa tu voz tan hermosa y gaucha.
Al amigo F. daSilva, que creo es el que escribe, te agradeceré que me
des noticias de Noel.
Para todos um gran abrazo:
Tu amigo
Anibal Sampayo

NOEL E SEUS AMIGOS

1 2

3 4

1- Noel Guarany e o Argentino Luna;


2 - Anibal Sampayo; 3 - Noel e Raulito
Barbosa; 4 - Lucio Martinez e Noel.

92
5

Noel, Pedro, Cenair, Chaloy e Dedé

10 11

93
7 12 13

14 15

17

16

5 - Carlos Cardinal Oliveira; 6 - Amaury B. de Castro;


7 - Glenio Fagundes; 8 - Talo Pereira; 9 - João Sampaio
e Chico Sosa; 10 - Noel e Dedé; 11 - Carlos Alberto
Kolecza; 12 - Atahualpa Yupanqui; 13 - Chaloy Jara;
14 - Barbosa Lessa; 15 - Silva Rilo; 16 -Juarez Fonseca;
17 - Dedé Cunha;

94
20 18 19

18 - Tao Golin;
23 25
19 - Jorge Guedes;
20 - Noel, Aparício
Silva Rilo e Zila
Espíndola.
21- Caetano Braun;
22 - Xiruzinho;
23 - Santos Izaurralde
e Santiago Chalar;
24 - Pedro Ortaça;
25 - Chaloy Jara;
26 22 21

24

26 - Olívio Dutra; 27 - Rubens Dario; 28 - Mario Meira; 29 - Maria Luiza;


30 - Xiru Wasseur. 31- Noel e Galeano; 32 - Chico Sosa e Byrata;

95
27 28 29 30

33 32

35

31

34

37 36

33 - Inezita Barroso; 34 -
Plínio Ivar; 35 - Sérgio Reis;
38
36 - Rubens Fabricio;
37 - Paulinho Domingues; 38 - Cenair Maicá e Gildo de Freitas.
96
DEPOIMENTOS
SOBRE NOEL
OPINIÃO PESSOAL DE JORNALISTAS E COLEGAS

Arlindo Gagliotto – Capa de apresentação do Compacto do Noel
Guarany gravado em 1968
Sempre me sinto honrado quando me é confiado a falar de grandes
valores da música brasileira, ainda mais quando vejo na música um
vestimento missioneiro. Neste Compacto tenho o prazer de apresentar um
grande conhecedor do folclore Riograndense. Artista de grande quilate que
se destaca como compositor e cantor, e um verdadeiro ás do violão, quero
me referir a Noel Guarany possuidor de uma excepcional voz e que executa
suas composições com carinho e perfeição, ao gosto de todos aqueles que
apreciam as coisas belas e sabem o que é bom. Noel Guarany, um dos grandes
valores do nosso Rio Grande.

Barbosa Lessa- Revista Som Imagem – julho 1973


“Noel Guarany revive as cantigas de galpão”. Conforme Barbosa
Lessa, no Rio Grande do Sul, não se canta quase nada, a exceção são as
“cantigas de galpão” que Noel Guarany tenta preservar. A meio caminho
entre a narrativa declamada, as décimas e o canto propriamente dito, situa-se
essas “cantigas de galpão”, geralmente em ritmo de milonga. Inconfundível,
inimitável, de voz solista e de cunho individual, importando mais a letra
que a harmonia, mais o fato que a rima burilada, mais a emoção transmitida
pelo texto, do que o impacto de achados melódicos. É cantada ao violão. E
texto, canto e violão, se integram para alcançar a dramaticidade pretendida.
Essa maneira expressiva de cantar estava ameaçada de desaparecer não fosse
Noel Guarany nos trazer uma conversa de galpão com o público brasileiro.
Ele é autêntico como cantor e autêntico como gente. Quando lhe mostrei
uma cantiga minha que fala de um gaúcho que quer ir para a cidade para
deixar de ser bagual, Noel me confidenciou, num tom de voz profundo e com
impressionante sinceridade: “Dom Lessa. Eu acho muito mais importante
continuar sendo bagual.” Apesar dos problemas que Noel teve com a censura
federal, a música regionalista do Rio Grande do Sul ganhou um importante
documento.

97
Janer Cristaldo – Os doutores e o folclore –FM julho/77
Fui convidado pelo IGTF para um debate sobre música regionalista
gaúcha. O convite intrigou-me, afinal não é exatamente a minha área.
Esporadicamente abordo o tema, mas sem a pretenção de um expert. Da
reunião participavam vários advogados. Era Dr. prá lá, Dr. prá cá,... olhei em
volta, não vi nenhum Dr, pelo que sei os mais graduados não passavam de
bacharéis. Mas afinal, não era este o motivo da reunião, a discussão de títulos.
Em todo o caso, não entendi a ausência, na lista de convidados da maior
autoridade em folclore que temos aqui no sul: Lilian Argentina, cujo nome
é respeitado nacionalmente; como também não entendi a ausência de um
Noel Guarany, que se não é doutor, nem bacharel, tem a autoridade de quem
sai a campo em busca de suas canções em vez de compor em gabinetes ou
salões de CTGs. Como as reuniões terão continuidade, não deixei de sugerir
a presença de Lilian e do Noel, nos futuros debates. Afinal suas presenças são
obrigatórias em qualquer discussão sobre música ou folclore.

Osvil Lopes – Som Imagem – 08/77


Atualmente Noel é um dos intérpretes gaúchos de maior projeção
nacional, tanto que foi o único artista do RGS programado para o show de
aniversário do jornal “versus”, em SP. Caderno de Cultura – 12/90 : Noel
transmite em suas canções a herança dos nossos “avoengos” que por atavismo
a receberam de índios missioneiros. Em razão da seriedade de seu trabalho,
tem merecido elogios da crítica especializada do nosso país.

J. R. Tinhorão – Música Popular – Jornal do Brasil – junho/78


Música brasileira ainda resiste no RS - Gaúcho missioneiro pelo estilo
das canções e pela linguagem regional de que se serve, Noel Guarany revela-se
nacional pelo orgulho comum entre o corajoso povo brasileiro. Noel Guarany
apresenta qualidades de criador e intérprete e nos mostra que no RS ainda
há focos de resistência contra o processo de dominação cultural paralelo ao
processo de dominação econômica. Noel é um dos maiores nomes do folclore
gaúcho. Cantador da estirpe dos nativistas argentinos, que têm o folclore mais
aprimorado e divulgado da América Latina. Sua música não nasce em salas
confortáveis nem em rodas de chimarrão urbanas, mas em peregrinações pelo
interior, e no contato com a realidade do homem campeiro.

Juarez Fonseca – A verdade do canto de Noel Guarany – 06/78


Mesmo que o tradicionalismo oficial rejeite a verdade do canto de
Noel Guarany, ninguém pode negar o fato de Noel ser um nativista e cantador

98
de importância. Seu trabalho tem força, porque ele sabe o que canta e porque
seu canto tem nitidez e qualidade. Como depoimento pessoal já tive e tenho
diferenças com Noel Guarany, mas quando o escuto, o que ouço ou o que
ele me informa sobre a força inegável do nativismo, me obrigam a eliminar
a nível de arte, essa diferença. No disco Noel Guarany canta Aureliano de
Figueiredo Pinto, ele musicou e canta alguns poemas, declama outros, e
declama quase cantando os demais. Apoiado no dedilhar de seu violão ele
canta tão bem como toca, e tão bem como declama.

Revista Peteca Som – Gráfica e Editora – Curitiba Paraná – 1979


No Rio Grande do Sul Noel Guarany é o cantor folclorista mais
respeitados No seu novo disco, na RGE, nos traz gravações de Aureliano de
Figueredo Pinto, compositor dos mais férteis.

Hugo Ramires:
Com sua estampa jovem e simpática de guitarrista e cantor missioneiro,
Noel Guarany lembra-nos de imediato a lenda do “ANGOERA”, o índio
sizudo que depois de batizado se tornou não apenas alegre, mas votado, de
corpo e alma, a alegrar todo mundo ao seu redor. Onde canta, a voz moça
e brejeira, lírica e brincalhona atua como um tônico reanimador, autêntico
limpa bancos de galpões e salões de baile. Cada vez que o escuto, remoço um
pouco e me revejo galopeando contra o vento, nas planuras das campanhas,
ou contrito diante das ruínas cheias de oníricos vozerios, salmos, rufos de
tambores e sapateados do povo de São João Velho, lindeiro do de São Miguel.
Noel Guarany é único, está sozinho a representar o Rio Grande gaúcho, dos
ritmos límpidos e joviais, isentos de notas caóticas e sofisticadas que nos
vêm da decadência dos grandes centros Europeus e que as elites corruptas da
América perfilham num ato suicida. O Rio Grande se moderniza, a legislação
alfandegária ergue muros mais fortes que os alambrados de arames para separar
nossas Pátrias Gaúchas, mas isso tudo de nada valerá para nos distanciar, a
brasileiros do sul e a americanos de caras morenas e vozes líricas, enquanto
houver a presença insinuante e as milongas, chamarritas e canções campeiras
e populares de Noel Guarany.
O “ANGOERA” da canção sul-riograndense transpôs as fronteiras
para alegrar almas e ambientes com suas melodias singelas, esfuziantes,
irresistíveis

99
Balbino Marques da Rocha
Do Payador Missioneiro, da Colônia do Sacramento, derivam os
gaúchos de três Pátrias... Porque a terra nua e xucra, só o pioneiro é quem a
veste, reparte e amansa. As nações se enraizaram e das raízes das civilizações,
brota a poesia e o cantor.
Dos tentáculos bárbaros de troncos que secundaram a conquista, com mãos
queimadas de coivara, cresceu herváltico o payador, entre perfis históricos de
vaqueanos, domadores de potros e preadores de gado bravio.
Na encruzilhada da vibração sensitiva que sacudiu a terra, arredores da
posse, rezunindo à submissão o meio reacionário, foi ele a síntese melodiosa
de momentos emotivos, aos soluços da guitarra acompanhado o pulso do
coração pampeano, que deixava de ser a gleba insópita, para se tornar na
Pátria estremecida. Do ambiente amoroso que a terra encandecia, surgiu,
como da sarça ardente, o vulto que definiu, nos versos e nas toadas.

Maurício Kubrusle – Jornal da tarde –Sobre um dos discos do


Noel Guarany
“É lógico que sua música é irrepreensivelmente maravilhosa.
Acompanhado apenas por seu violão, este cantador missioneiro entoa seus
causos com a galhardia máscula típica dos gaúchos. Utilizando um vocabulário
para nós às vezes hermético, Noel Guarany apresenta um repertório de versos
belíssimos, rudes em suas imagens pampeiras. E as suas comparações adjetivas
e construções representam material riquíssimo para estudos diversos. Além
da imposição, encontra-se a obrigatoriedade de imediatamente conhecer Noel
Guarany.

Marcus Pereira- Produtor -março de 1981


“Noel Guarany é um dos maiores cantores, compositores e guitarristas
deste País”. Noel é um grande artista popular, um representativo, profundo,
agudo, fiel artista popular. Acho que é o nome mais marcante, mais forte, de
maior talento espontâneo, que possui o nativismo gaúcho hoje. Um disco de
Noel Guarany é uma certeza de ótima arte nativista, uma documentação do
Rio Grande do Sul e quando o ouço não permito que conceitos extra artísticos
interfiram em minha satisfação de ouvi-lo. Ele canta muito bem, toca muito
bem e compõe com grande força.

Revista Som do Sertão – Editora Abril, 1982


Homem de raiz, música de raiz. Noel Guarany é um artista que luta
pela preservação: não quer deixar morrer a natureza, nem as tradições culturais

100
de sua terra. Ele decidiu que as tradições de sua terra não poderiam ser
enterradas para sempre. Não foi fácil divulgar essa autêntica música gaúcha.
Ele enfrentou muitas dificuldades mas teve também apoio de gente que acredi
tou no seu projeto. Noel é um grande defensor da ecologia, traz sempre sua
mensagem em favor da natureza. Noel é um artista que dá opiniões.

Aparicio da Silva Rillo – Poeta, escritor – 05/84


Quem no Rio Grande desconhece Noel Guarany, sangue de bugre
missioneiro, gênio difícil, mas dono de um violão e de uma voz incomparável,
no seu tibre com gosto de chão e flor do campo?

Mendes Ribeiro – Jornalista.


Quem não descobriu, que se apresse. A música nativista do Rio Grande
do Sul é constituída de verdadeiras peças de arte. São apelos sociais, feitos
com coragem, sem perder a ternura. Chamamentos para as desigualdades,
a fome, a falta de teto, com a firmeza de quem sabe querer, conservando
a doçura de quem faz versos como religião, porque canta a sua fé. Quem
ainda não descobriu se apresse. Nossa música não têm igual. Noel Guarany,
entre preservar seus ideais e vender por qualquer preço suas convicções, não
titubeou. Em tempo me alisto como voluntário contra o mercantilismo que
tenta valorizar a vulgaridade, contra quem se encantaria e se encanta, com
canções de nunca mais esquecer.
Segundo Tristão da Cunha: “não há nações sem música. A música é
como o pão e é de todos”.

Jayme Caetano Braun


Ele não traz no peçuelo / Promessa de compra ou venda
Como chasque da legenda / Que não conhece sinuelo
Vem de volta, pelo apelo / No instinto de tropeiro,
De vaquiano costeiro / Paleteando o uruguai:
O eco dum sapucay / No manancial missioneiro!

Por tudo o que representa / Dentro da canção nativa,


E a inspiração sempre viva / Que na terra se alimenta
Quando o mundo se apresenta / É o índio chucro que assoma,
O pajador sem diploma / Vestindo como couraça
O próprio impulso da raça. / Que a história mata e não doma!

101
Sopa de Letras – Personagem – Noel mais Guarany – julho/91
Artista sedimentado no confronto direto. Noel Guarany é uma expressão
viva da mais genuína música guaranítica. Seu folclore é marcado por arroubos.
Sua voz potente e seu violão inconfundíveis que fecundam o imaginário de
seus patrícios. A repercussão de seu trabalho está na reapropriação cultural da
mais crua música gaúcha. Sinônimo de resistência cultural, sua revolta contra
a depredação cultural. O ECAD e a ORDEM dos MÚSICOS. A depredação
da música gaúcha (música contemporânea, de festivais), lhe dão esta certeza.

José Grisolia Filho – Jornal a notícia- 04/92


Sua música já está imortalizada. Exímio em seu violão, perfeito
nas interpretações. Nada se dirá sobre a música missioneira, sem se fazer
referências diretas ao trabalho desenvolvido por Noel Guarany.

Jornal O Desgarrado - Caderno Especial – 04/94
Noel Guarany gravou discos, encantou platéias, ecoando como um
clarim, em defesa da música de raiz, representou o arranco do movimento
nativista, até porque foi o primeiro a obter destaque aparecendo nos palcos
com um violão, fazendo o tipo “cantador e guitarreiro”.

Jornal Santa Sexta – Do Laboratório de Comunicação Social
UFSM – 12/94
O homem que já foi tratado como ídolo do nativismo e chegou a
quebrar o vidro do palácio das convenções em São Paulo, com a vibração do
seu canto missioneiro, foi homenageado na Tertúlia deste ano pelo clássico
sertanejo Sérgio Reis.

Jornal à Notícia – Segundo Caderno –João Antunes – 12/97
NOEL GUARANY – UM MARCO DA MÚSICA MISSIONEIRA
Deste chão colorado da Bossoroca, buena terra missioneira, surgiu
Noel Guarany. O maior cantor missioneiro que este estado já viu. Veio para
fazer de sua música a mais bela expressão cultural. Polêmico, personalidade
irreverente, espírito indomável, autodidata, apaixonado desde piá, pelo idioma
guaraní. Noel, com sua payada, mistura entre narrativa declamada e canto, se
fez potro xucro, que desconheceu aramados para ganhar o campo aberto e
os horizontes largos da América Latina, com seu “Potro sem dono”; se fez
popular “Romance do pala velho”; seguiu filosofando para os intelectuais
“Filosofia de gaudério”; mas jamais olvidou-se de cantar o cotidiano do
homem simples “Destino de peão”; sempre soube conduzir com sua proposta

102
musical, as bandeiras de seu povo. No fascínio épico de suas canções
“Tobiano capincho”; sempre esteve viva a memória guaranítica “Lamento
missioneiro”; a cantiga galponeira “Na baixada do manduca”; a rebeldia
gaudéria “Chairando”; o telurismo “ Canto para um pescador ; o sentimento
nobre de integração “Milonga de três bandeiras”; o lirismo “Entre o Guaiba
e o Uruguai ; a valentia ; a denuncia “chairando”; seu canto entonado, com
cheiro de terra. Assim a obra iluminada deste payador, o manancial que brotou
das fendas do chão, deve ser pesquisa viva do folclore missioneiro.

Jornal A Razão- 05/95
Noel Guarany foi o elo perdido entre o gaúcho primitivo e o atual.
Chamado de “o trovador maldito”, por suas idéias revolucionárias. Noel
trouxe o canto missioneiros nos anos 60 e 70 e percorreu a América Latina,
compondo canções populares e filosofando para os intelectuais com sua
“filosofia de gaudério”.

João Antunes – Jornal A Notícia – Dez/1997


“Foi o maior cantor missioneiro que este estado já viu, veio para
fazer de sua música a mais bela forma de expressão cultural”. Polêmico,
personalidade irreverente, espírito indomável, autodidata, apaixonado pelo
idioma guarani, fez de seu canto entonado, natural com cheiro de terra, uma
obra iluminada, um verdadeiro manancial que brotou das fendas do chão,
para pesquisa do folclore missioneiro; Pois: “Tudo o que é belo morre no
homem mas não morre na arte”.

Gilberto Monteiro (músico, compositor)


Noel Guarany é uma bandeira da cultura gaúcha e sempre vai estar no
coração das pessoas que amam o Rio Grande.

Jorge Guedes – Cantor – 10/98


Todos que tinham uma formação cultural encaravam o trabalho de
Noel Guarany acima da pessoa, não tinha meio termo, era ou não era teu
amigo. Noel nunca deixou de ser admirado pelas suas interpretações e
composições.
Folheto que acompanha o disco de Elomar Figueira –“Na Quebrada
das Águas Perdidas”, Elomar é relacionado como tendo a significação de
Artistas Populares como Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Violeta Parra,
Nicolás Guillén e Noel Guarany.
Jorge Nascimento – Alternativas

103
Opinar é algo que raros brasileiros tentam, mas ainda que a certidão
de óbito seja fornecida no intento de autenticidade contido neste artigo,
valerá a intenção. Noel Guarany é um sujeito que se atreve a contestar os
valores mercadológicos preponderantes no setor da música mesmo que
em seus versos flutuem as tautologias que alimentam os acervos da crítica
academicista, em sua essência absorvida pelas maquinações do sistema.
Um sociólogo classificou Noel Guarany de “mero acumulador de frases em
melodias que nada dizem em termos evolutivos”. Queria polemizar. Porém,
vale argumentar que dizer não a incultura da música gaúcha de Teixerinha e
outros, significa caminhar a uma etapa superior. E, se Chico Buarque e Milton
Nascimento incluíram os gaudérios acordes de Noel Guarany, no show que a
censura boicotou em São Paulo, teríamos denominado de “grossa” a luta do
pesquisador missioneiro. Alternativas: crescer ou cerrar os olhos para o sono
da vegetatividade.
Carlos Alberto Kolecza
Há mais gente cantando agora os encantos e mistérios do rio Uruguai,
desde que Noel Guarany apareceu com seus achados missioneiros. Há
cheiro de polêmica no ar em torno da música mística dos sete povos, mas
seja qual for o resultado do entrevero que está armando, o nativismo vai sair
ganhando. – Missioneiro o órfão da história – Na música ele fala por todos os
missioneiros, nas palavras, só por si, pronto para o revide desaforado se elas
chocarem ouvidos não acostumados a verdades cruas. Seu canto é ao mesmo
tempo regional e latino americano. O missioneiro possivelmente descobriu
primeiro que os latino americanos tem a mesma nacionalidade, independente
das fronteiras.

José João Sampaio da Silva – Poeta Compositor


Noel é uma legenda imperecível, ele é o precursor da verdadeira integração
cultural do continente, e neste “manojo de flexilha”, expressa seu pensamento:

Na integração das fronteiras


Resgatando um testamento
Foste um deus bugre na terra
Com o primeiro chamamento.

Por isso tua alma vive


No som de cada instrumento
Co’as cordas de tua guitarra
Vibrando ao soprar do vento. JOÃO SAMPAIO

104
Aléx Silveira - Cantor e Compositor Nativista
Ao escutar os belíssimos violões de Aroldo Torres, a voz melodiosa de
Jorge Leal, alicerçado pela poesia nostálgica do meu “irmão”, Osmar Proença,
voltei ao passado. Para lembrar de minha infância ouvindo Noel Guarany
e suas canções. Das campereadas na estância Santa Verônica, com meu
amigo Miguel Batistella, assobiando e cantando “MEUS DOIS AMIGOS” e
“TOADA DE RONDA” passando pelo cinema Vitória, lotado, para ouvir e
aplaudir uma apresentação de Noel Guarany de boina, bombacha castelhana,
alpargata e seu violão companheiro entoando: “ROMANCE DE PALA
VELHO”, “POTRO SEM DONO”, entre outros clássicos de seu repertório,
muitos anos se passaram.
Pois agora, Jorge Leal, Aroldo Torres e Osmar Proença fazem rebrotar
novamente esta saudade de Noel Guarany e, relembrar que “PALA VELHO”
ainda abriga muitas almas órfãs desse missioneiro.

PRODUÇÃO. Henrique Mann - TEXTO: Jorge Lerina - PROJ.


SOM DO SUL - FASCÍCULO Nº 20
Noel Guarany foi a primeira grande expressão musical representativa
da cultura das Missões. Falando o idioma guarani deste guri, pesquisando
além-fronteiras em busca das influências hispanicas formadoras do nosso
estado, Noel forjou um jeito missioneiro de cantar o gauchismo. Distante
da música de baile (que menosprezava publicamente) e da canção mais
popularesca, o compositor trilhou uma senda distinta, caracterizada pela
preocupação com temas sociais e pela aclimatação regional de sonoridades
argentinas, uruguaias e paraguaias. Junto com o poeta Jayme Caetano Braun,
seu conterrâneo de Bossoroca o musico buscou transmitir em sua arte a gestalt
do que seria uma ‘‘nação missioneira’’, um enclave cultural e sociológico em
pleno Rio Grande vivendo a sombra de três bandeiras (como costumava dizer
Caetano Braum): indígena, platina e brasileira.
Para cantar-falar de seu povo, Noel popularizou entre os gauchos a
payada, forma musical, originaria da Argentina e do Uruguai cujos verdadeiros
interpretes contan-se nos dedos além de Noel Guarany e Jayme Caetano
Braun,os entendidos apontam apenas Pedro Ortaça; não por acaso também
ele um missioneiro.
A golpes de adaga e a manotaços, Noel abriu caminho para nomes
como Cenair Maicá, Jorge Guedes,Pedro Ortaça e ‘‘Os Tapes’’, artistas que
a despeito das diferenças de estilo, ressoam indiscutivelmente os ecos das
Missões em seus trabalhos.

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Tau Golin - Apresentação de um CD ao vivo - in memória - Fev. 2003
Eis aqui o registro do talento de um guitarreiro. O termo define um
estilo de artista que, no passado recente,buscava se identificar com a figura
do andejo,do gaúcho,incorporando a identidade altaneira de um canto de
liberdade, romanesco,descritivo de um modo de vida indumentário, com
vínculos latino-americanos. O artista guitarreiro, um ser que se totalizava
com o violão e a voz - teve em Noel Guarani a sua maior expressão sulina
brasileira. Nas décadas de 1970 e 1980, Noel Guarani foi descoberto pelos
universitários. Seu público, antes predominantemente gauchesco, aumentou e
ele, com sua música, passou a fazer parte de um grupo de artistas que ancorava
o movimento contra a ditadura militar e pela volta da democracia no Brasil.
Nesse período, eu apresentava o programa Continente Latino-Americano,
primeiro na Rádio Santamariense e, depois, Imembuí, em Santa Maria,
RS. Concomitantemente, o DCE da UFSM era o grande produtor cultural
e de manifestações políticas, contribuindo com a programação e o acervo
do programa, que gravava e retransmitia os shows. Este CD é um registro
histórico-cultural do enorme talento de Noel Guarani, em uma apresentação
realizada no cinema Glória de Santa Maria, em 1980. Sozinho, com seu
violão, o cantor missioneiro conseguia uma sinergia impressionante com a
juventude universitária e o público. Aqui se encontra documentado um dos
momentos mais sublime da música e da empatia quase hipnótica de Noel
Guarani.

Juarez Fonseca: encarte CD ao vico - Fev. 2003


Ao morrer, em 06 de outubro de 1998, Noel Guarany agregou à sua
legenda de cantador o epíteto de mestre. Não que já fosse visto assim por seus
tantos seguidores, como continua a acontecer. Mas por maior que seja, um
artista vivo é passível de tropeços e sempre há alguém imaginando-o não tão
grande assim. Já a morte, ao mesmo tempo que cristaliza a obra, permite que
sobre ela nasçam novos olhares, novas atenções, e assim a obra avança, e seu
autor revela até entendimentos que nos passaram despercebidos. Já a morte
reposiciona os mestres, os criadores, e com Noel Guarany não é diferente.O
artista e o homem de carne-e-osso deram lugar ao mito.

106
CARTA ABERTA À
IMPRENSA NACIONAL
ENVIADA AOS VEICULOS POR NOEL EM MAIO DE 1983

A finalidade desta é alertar todos os organismos nacionais, tais como:


Congresso Nacional, Assembléias Legislativas, etc. ... Das injustiças sofridas
por todos os cantores autóctones, ou não, que defendem gratuitamente o
patrimônio lírico-cultural de suas respectivas regiões, por parte da Ordem
dos Músicos do Brasil, ECAD, e multinacionais responsáveis pela indústria
fonográfica no país.
O Fato: por motivo de saúde, estive impossibilitado de atuar,
artisticamente, durante o período de 09 (nove) meses, no qual tentei de todas
as formas, assistência social, através do órgão federal, INAMPS, sem lograr
êxito.
Caros leitores, propostas vultuosas recebi de outra gravadora, que não
a minha, todavia, encontro-me impossibilitado de aceitar, pelo simples fato de
estar vinculado à gravadora por três anos e até o momento só ter cumprido um,
e quando necessito de amparo social que é decorrência de qualquer vínculo
empregatício, a gravadora simplesmente não se responsabiliza por nada.
Pergunto então. Onde se encontram os encargos sociais por parte da
“gravadora”? Qual a razão do compromisso assumido ser unilateral? Qual
a razão dos contratos sinalagmáticos? Onde está a responsabilidade da
gravadora com o artista? Tudo exigem, nada compensam?...
A coisa assume proporções assustadoras, os fatos se repetem nas
mesmas esferas, pois a Ordem dos Músicos do Brasil, seção RS, obstaculizou
o pagamento da anuidade, na data do seu vencimento, simplesmente para
receber com acréscimo de 30%, correspondente ao atraso. Não fora as
intervenções do deputado Porfírio Peixoto, do diretor do jornal “Denuncia”,
Alberto Kolecza e do cantor missioneiro Cenair Maicá, o resultado da minha
tentativa de pagamento no vencimento, seria alguns dias no cárcere, como se
fora um delinqüente qualquer, pois foi chamada a “Força de Choque”, pela
seção RS.
Por derradeiro, existe ainda a figura simplória e fantasmagórica,
chamada “ECAD”, à esta se não for efetuado de 10% do contrato de shows
ou “bordêros”, não são liberados; o fato mais gritante é que desde a criação
do mesmo, 1975, até a presente data, recebi a “vultuosa” quantia de CR$
23.696.00, a título de direitos autorais, por milhares de discos colocados
no mercado, e, por centenas de shows realizados. O que é feito desta verba

107
arrecadada? Quem se beneficia? Por certo não são os artistas.
Em razão de tais acontecimentos, lamentáveis e deprimentes, sou
forçado a tomar medida profiláctica, que é “parar de cantar”, até que os
organismos competentes legalizam a situação do trabalhador fonográfico.
Como conclusão desta breve mensagem, sou levado a crer da
necessidade imperiosa de um processo de moralização, por quem de direito
e espero sem cantar as providencias que por certo serão tomadas pelos canais
competentes.
Itaqui, maio de 1983.
Noel Guarany

MANIFESTAÇÃO SOLIDÁRIA ENVIADA


AO JORNAL CORREIO DO POVO

Pelo leitor: Dr. LAZARO W. ATHAYDES DE SOUZA CAÇAPAVA DO SUL



Em carta aberta à imprensa, o cantor e compositor missioneiro Noel
Guarany, declarou ter suspenso suas atividades artísticas, como medida de
protesto. E esse protesto se resume num apelo às autoridades competentes
contra o caráter unilateral do contratos entre artistas e gravadoras, e contra
atitudes, segundo ele, arbitrárias por parte da Ordem do Músicos do Brasil e
da ECAD. Arbitrariedades que atentam contra o patrimônio artístico cultural,
principalmente no que se refere à manifestação espontânea e gratuita da arte
musical autóctone. E esse inconformismo parece ser mesmo de um expressivo
número dentre os que se dedicam à arte musical. Noel Guarany, entretanto,
com a mesma espontaneidade que caracteriza o seu trabalho, é que da o passo
inicial para o que ele chama de “processo de moralização” numa atitude
corajosa, onde não hesitou empenhar uma carreira brilhante e em pleno vigor.
Mas, o que mais valoriza esse gesto, é consciência altiva de que o pagamento
desse pesado ônus é por um ideal que possivelmente beneficiará somente aos
que lhe sucederem. Seria lamentável se o sacrifício a que se impôs um dos
nomes mais queridos da música nativista gaúcha se diluísse no comodismo da
omissão.
Não é pouco comum observar que os órgãos, os quais deveriam agir em
defesa de determinada classe, se elitizem e na sua “torre-de-marfim” ignorem
ou finjam ignorar a verdadeira realidade pela qual deveriam lutar. Por isso,
seria justo que todos aqueles que se sensibilizaram com o fato demonstras
sem sua solidariedade a Noel Guarany. E, com a mesma coragem e altivez,
músicos profissionais ou não, compositores, interpretes e fãs assumissem
também, de peito aberto, defesa de valores que devem ser adequadamente
preservados.

108
CARTA DE
NOEL GUARANY AO
DEPUTADO OLÍVIO DUTRA
Santa Maria, 21 de Março de 1987
Conforme contato mantido por telefone, estou enviando umas sugestões
com referência a Ordem dos Músicos, ao ECAD e a Indústria Fonográfica.
Sei que embora não esteja diretamente ligada a Comissão que tu fazes
parte, tenho certeza que o que estiver ao alcance do amigo, poderei contar.
Item 1 – A QUESTÃO DO ECAD – Em todos os estados da federação,
todos os clubes sociais, emissoras de rádios, bares e casas de shows artísticos,
e inclusive todos os artistas são obrigados, para atuarem, a pagar o ECAD,
taxas recolhidas pelos escritórios regionais e remetidas à Brasília perfazendo
um total de arrecadações de direitos autorais que, depois de descontadas todas
as mordomias dos escritórios centrais de arrecadação de direitos, sobra um
valor líquido dos quais 70% é destinado aos artistas do eixo Rio – São Paulo
– Brasília, 25% é destinado ao artista estrangeiro, restando apenas a bagatela
de 5% para o artista regional dos demais estados.
SOLUÇÃO: Precisamos DESCENTRALIZAR o ECAD – Cada estado
da federação deverá ter autonomia para a distribuição de sua arrecadação, em
seu estado. Colocando em primeiro plano seus respectivos artistas e depois
faria-se o pagamento aos artistas de sucesso nacional dos outros estados,
numa proporção coerente e justa.
Mandarei anexo o último recibo de pagamento que recebi do ECAD
vejam que me mandaram a relação de algumas músicas das 83 que tenho
gravadas. E as outras? Acontece que eu e meus colegas artistas estamos
sendo roubados, principalmente eu que tive uma enorme despesa com
viagens ao Paraguai, Uruguai e Argentina e gastei uma existência para tornar
conhecida a música missioneira. Dessas 83 músicas, com 8 LPs gravados,
com sucessos tocados em vários estados do Brasil, nunca recebi dinheiro
a não ser insignificâncias que me mandam agora. Qualquer duvida sobre a
minha pessoa no mundo artístico, pode ser tirada na ANACIM (Associação
Nacional de Compositores e Intérpretes Musicais) aí em Brasília.
Item 2 – A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NO BRASIL –
Evidentemente as multinacionais são portadoras de contratos artísticos que
são absolutamente unilaterais, tirando do artista todo e qualquer direito.

109
Estou anexando uma cópia de um contrato da Phonogran, mais conhecida por
Philips, hoje Poligran, o qual comprova o que estou dizendo.
Já que somos contratados com tanto rigor, teríamos de ter direito
pelo menos a carteira assinada, como todo empregador brasileiro assina,
mas isto não acontece, a Indústria Fonográfica é absoluta em tudo. Jamais o
artista saberá quantos discos vendeu porque sobre eles há direitos artísticos a
recolher. Já que a produção nacional de um disco, entre luvas de contrato ao
artista, despesas de studio, etc... sai mais dispendioso, a industria fonografica
da preferência aos “enlatados” ingleses ou americanos, que já vem pronto
e lhes custa apenas um cachê a Roberto Marinho, Rede Globo ou Bloch,
TV Manchete, os quais largam a cada minuto que o artista é a sensação do
momento, que vendeu milhares de cópias, iludindo assim ao jovem alienado
brasileiro e roubando com isso todo espaço ao abnegado artista brasileiro mal
pago em todos os níveis.
Item 3 – A MÁFIA DA ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL – Todo
o artista é obrigado a pagar uma anuidade para eles, para sustentar suas altas
mordomias sem que com isto, traga qualquer benefício ao artista brasileiro. A
ordem dos músicos não deixa ninguém atuar por amador ou profissional que
seja músico ou cantor que não seja filiado, tirando assim a possibilidade da
transmissão da nossa cultura regional de pai para filho, de folclore regional.
Além disso, em troca de uma paternalistica divulgação permite ao artista,
além de sair de seu estado a se apresentar no Programa Som Brasil da Rede
Globo em São Paulo. E o Sr. Roberto Marinho ganha assim altos cachês às
custas do artista. Ora, era um meio desses grandes empresários dividirem
com o artista uma parcela de seus lucros, como a Ordem dos Músicos se
abstém, isso não ocorre. Nós somos obrigados a pagar anuidades mas não
ficamos sabendo da escolha das novas diretorias nem onde vai nosso dinheiro.
Dizem que uma parte do mesmo, não sei porque é destinado ao Ministério do
Trabalho. Gostaria de sabê-lo. A Ordem dos Músicos só vai funcionar com
a não obrigatoriedade do pagamento de anualidade pelos artistas, porque se
ela for realmente competente, naturalmente o artista fará questão de pagar e
pertencer aos seus quadros de sócios.
Item 4 – CASO FRANK SINATRA ATUANDO NO BRASIL – Cobrou
1 milhão de dólares para apresentar-se no Brasil – Maracanã – RJ, sem ficar nada
para o Brasil ou para a Ordem dos Músicos, simplesmente levou um milhão
de dólares, assim como outros artistas estrangeiros que vem, fatu ram e vão
embora. Sugiro que o artista estrangeiro para se apresentar no Brasil tem que
pagar altas taxas à Ordem dos Músicos ou ao ECAD, pois além de estar tirando a
oportunidade ao artista nacional, não está contribuindo com nada para o Brasil.

110
Sugiro que esse enorme patrimônio que é a Ordem dos Músicos seja
convertido na Casa do Artista, pois atualmente o mesmo fica velho ou inválido
sem ter para onde ir, que seja transformado em algo absolutamente social e
necessário aquele que trabalhou e colaborou para a cultura de nosso povo.

PREZADO AMIGO E CONTERRÂNEO


DEPUTADO OLÍVIO DUTRA.
Desde já desejo todo êxito. Um abraço do Noel Guarany

DA ASSESSORIA DO DEP. OLIVIO DUTRA


A NOEL GUARANY
CÂMARA DOS DEPUTADOS
DIRETORIA LEGISLATIVA
ASSESSORIA LEGISLATIVA

TIPO DE TRABALHO: Estudo Técnico Específico


ASSUNTO: Direitos autorais e contribuição à Ordem dos Músicos
INTERESSADO: Deputado OLÍVIO DUTRA
ASSESSOR: Lúcio Naves
DATA: fev./ 88
S. Exa., o Deputado Olívio Dutra, encaminhou a esta Assessoria
matéria que lhe foi oferecida pelo Sr. Noel Guarany, de Santa Maria, RS,
como sugestões para elaboração de projeto de lei. De acordo com as
anotações que recebemos, a proposta do Sr. Noel Guarany visa a:
I – promover a descentralização do sistema de arrecadação de direitos
autorais, através da criação de um escritório em cada Estado da Federação;
II – obrigar às empresas fonográficas a assinarem as carteiras de
trabalho dos músicos por elas contratados;
III- tornar facultativo o pagamento de anuidade à Ordem dos Músicos
do Brasil.
Após examinarmos o assunto, consideramos oportuno, antes de
passarmos à elaboração de qualquer texto, fazer as seguintes ponderações ao
Deputado Olívio Dutra:
I – Relativamente à questão da carteira de trabalho, devemos lembrar
que a lei vigente trata satisfatoriamente do problema. Assim, sempre que uma
empresa fonográfica contratar, como empregado, um músico, deverá assinar
sua Carteira de Trabalho. A este assunto a CLT dedica todo o Capítulo I do
Título II, através dos arts. 13 a 56.

111
Devemos, também, deixar claro que as relações estabelecidas entre
os músicos e as empresas fonográficas nem sempre caracterizarão vínculo
de emprego. Com efeito, certas relações são de ordem civil, constituindo a
chamada locação de serviços. Em tais hipóteses, não se falará em Carteira de
Trabalho. Quando, porém, se estabelecer uma relação de emprego, a empresa
será obrigada a anotar e assinar a Carteira de Trabalho do empregado.
O vínculo jurídico estabelecido entre as empresas e o músico é
caracterizado pelas condições da prestação de serviço, e a lei, seja civil ou
trabalhista, dispõe exaustivamente sobre a questão, de forma que, qualquer
que seja a modalidade de prestação desses serviços, a relação daí resultante
será, sempre e seguramente, classificada como civil ou trabalhista.
Por conseguinte, podemos concluir que, em verdade, não há qualquer
necessidade de se editar novas disposições legais sobre a matéria.
II – A questão relativa as anuidades devidas a Ordem dos Músicos
parece-nos inconveniente, vez que tais contribuições constituem-se na
principal, para não dizer a única fonte de recurso da entidade. Se tornássemo –
la facultativa, quase ninguém pagaria suas anuidades e a Ordem dos Músicos
ver-se-ia obrigada a cerrar suas portas. Aliás, é bom lembrar que todas as
entidade de classe, como os sindicatos, a Ordem dos advogados, a Associação
Médica, o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura etc., sobrevivem das
contribuições de seus associados.
Face ao exposto, sugeriríamos ao deputado Olívio Dutra que
encaminhasse as presentes ponderações ao Sr. Noel Guarany, a fim de que este,
juntamente com outros colegas de profissão, refletissem sobre as observações
aqui desenvolvidas e, se for o caso, revissem suas posições e procedessem à
reformulação de suas propostas.

Caso, porém, S. Exa. Não concorde com nosso ponto de vista,


estaremos a sua inteira disposição para, no mais breve prazo, elaborar o
trabalho solicitado.

Brasília, em 2 de fevereiro de 1988.


Assessor Legislativo

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REPORTAGENS
QUESTIONANDO O
SILÊNCIO DE NOEL

GUARANY
REVISTA TARCA - CULTURA GAÚCHA - Porto Alegre.
Onde está este missioneiro, bagual uma barbaridade, que sumiu do
rinhadeiro? Te aprochega vivente. Não fica de porteira cerrada, vem tomar
um mate conosco. Noel Guarany a voz que o Rio Grande canta.

JORNAL O DESGARRADO - SANTA CRUZ DO SUL - ABRIL/94


POR ONDE ANDA NOEL GUARANY!?
Saiba como vive um dos maiores ídolos do nativismo
Há muito tempo que nossos leitores nos pedem notícias e uma
reportagem sobre Noel Guarany. Fomos ao encontro do velho cantador e o
encontramos na Vila Santos, em Santa Maria (RS). E aqui estão as notícias
que temos sobre esse que é um dos maiores ídolos dos gaúchos nativistas.
Quando a década de setenta anunciava para o Rio grande e para o
Brasil uma nova era na música rio-grandense, o povo sulista lotava ginásios,
teatros e praças para viver a explosão do regionalismo gaúcho através dos
festivais e das tertúlias populares. Novos espaços se abriam nas rádios e a
produção fonográfica com a marca deste chão crescia como nunca. Era o
arranco do Movimento Nativista.
Entre tantos artistas que despontaram, um veio marcado para ser único em
estilo, estampa e trabalho musical. Não que tenha sido o maior de todos, mas até
porque foi o primeiro a obter destaque aparecendo nos palcos só com um violão,
fazendo o tipo “cantador e guitarreiro”. Noel Fabrício da Silva foi para todos o
“NOEL GUARANY”. Gravou discos e encantou platéias ecoando como um clarim
em defesa da música de raiz. Missioneiro declarado, com composições próprias
ou de autores como Jaime Caetano Braun, Aureliano de Figueiredo Pinto e Anibal
Sampaio, fez história como “boi-de-ponta” de uma juventude que buscava uma
bandeira musical com a marca da querência e que tivesse conteúdo, com temperos
de protesto, história e cultura regional. Não chegava a ser uma proposta nova. Ele
era mais uma aproximação da música da fronteira com o grande público urbano.

113
Vinte anos depois ainda se roda muito suas musicas pelos programas
gauchescos, seja com a interpretação do próprio, ou através de regravações.
Seu discos estão com as tiragens esgotadas e já são considerados raros nas
lojas especializadas, apesar da procura.
A VISITA – Chegamos na Vila Santos, arredores de Santa Maria
(RS), numa tarde mormacenta desse março que passou. Qualquer pessoa
perguntada pela rua sabia onde morava Noel Guarany. Encontramos o velho
ídolo sentado sob a sombra do arvoredo que rodeia o sobrado onde mora,
cuidado pela família, pois não goza de boa saúde. Aos 52 anos, o “Velho
Bugre” sofre de uma doença degenerativa que atrofia o cerebelo e o sistema
nervoso, apresentando um quadro aparentemente irreversível. Está aos
cuidados da esposa Neide e de suas filhas. Pouco se lembra do que fez e
viveu na musica e responde vagamente as perguntas, pois tem dificuldade
para formar frases mais longas.
Fomos muito bem recebidos por todos, tomamos um mate recém
cevado e tentamos conversar com o cantor, na busca de material que
enriquecesse a reportagem tão cobrada pelos incontáveis fãs do artista. Muito
pouco conseguimos! A maioria das respostas nos era dada pela filha Lia, já
que a dona Neide não havia regressado do trabalho.
Entre as poucas respostas que obtivemos em conversa direta com
Noel, destacamos a lembrança que ele ainda tem de Atahualpa Yupanqui, do
uruguaio Anibal Sampaio, de Jaime Caetano Braun, Pedro Ortaça, Cenair
Maicá e da música “Romance do Pala Velho” que, na opinião dele, foi sempre
a grande preferida do público que o assistia.
ESQUECIDO – Se as músicas e o nome de Noel Guarany são lembrados
diariamente pelo mundo musical, a pessoa do artista está praticamente
esquecida, pois poucos amigos o visitam e nada de novo tem sido publicado a
seu respeito. Desde 1989, quando apresentou-se pela última vez em público,
no Clube Caixeiral, em Santa Maria mesmo, Noel Guarany está fora da vida
artística e dificilmente voltará a cantar, pois seu estado de saúde o tirou parece
que definitivamente dos palcos. Hoje ele nem ouve mais músicas e nem toca
mais o seu violão, que se encontra guardado “a sete chaves”, como destacou
a filha Lia.
A FAMA – Noel Guarany se transformou numa espécie de legenda
musical, ao mesmo tempo em que muitas estórias se contavam sobre o seu
temperamento forte e suas reações inesperadas. Um ladino, para muitos!
Quando indagado sobre seu comportamento, às vezes irreverente, e causas
de brigas e gauchadas, ele, como num sobressalto nos respondeu: “...era tudo
mais ou menos verdade...”

114
DINHEIRO – Ao conversarmos posteriormente pelo telefone com a
esposa Neide, ela nos confirmou que a renda que o cantor e compositor recebe
hoje, por tudo o que fez e gravou, não passa de um salário mínimo mensal,
além da aposentadoria como músico, também do mesmo valor. Apesar de tudo,
a família o mantém nas condições que a própria medicina pode oferecer hoje.
Ao final da conversa, dona Neide nos pediu que não fotografássemos
Noel Guarany, para que todos pudessem continuar tendo dele a imagem do
que ele foi quando fazia sucesso.
Deixamos a casa de Noel Guarany com uma certa tristeza, mas com a
certeza de termos acabado de rever um dos maiores nomes da música gaúcha
de todos os tempos. Gostaríamos de trazer-lhes mais e melhores notícias,
mas a vida nos contou mais um dos seus causos sem graça. Da conversa
que tivemos, guardamos uma frase em especial, para o fim desta matéria. E
vale lembrar também que quando ela foi dita pelo Noel, seus olhos deixaram
escapar um brilho especial, numa expressão que jamais esqueceremos. Ele
nos disse: “EU GOSTAVA MUITO DE SER CANTOR”.

NOEL GUARANY, UM MARCO DA MÚSICA DO RS


JORNAL A NOTÍCIA DEZEMBRO DE 1997
João Antunes
Deste chão colorado de Bossoroca, Buena Terra Missioneira, quando
ainda pertencíamos a São Luiz Gonzaga, aos 26 de dezembro de 1941, nascia
Noel Fabricio da Silva – o Noel Guarany, o maior cantor missioneiro (sem
desmerecer o demais), que este estado já viu, que veio para fazer da sua
música a mais bela forma de expressão cultural. Polêmico, personalidade
irreverente, espírito indomável e apaixonado desde pequeno pelo idioma
guarani. Autodidata, buscou maior parte do aprendizado sozinho, assim
também a tocar violão, cantar e compor com seu estilo próprio a alma e a
essência das Missões.
Na sua característica, Noel Guarany com sua payada (mistura entre
narrativa declamada e canto), se fez um potro xucro que desconheceu aramados,
para ganhar o campo aberto e o horizontes largos da América Latina, assim,
o autor do Romance de Pala Velho” (canção mais popular) seguiu filosofando
para os intelectuais, ficando célebre com a música “Filosofia de Gaudério”,
mas jamais olvidou-se cantar o cotidiano do homem simples, o interiorano e
sempre soube conduzir através da proposta musical o seu compromisso com
as bandeiras do povo.
O seu talento incontestado e suas verdades através do canto lhe tornaram
um do maiores representantes da música sul-americana. No fascínio épico de
suas canções sempre esteve viva a memória guaranítica, a cantiga galponeira,
a rebeldia gaudéria, o telurismo, o sentimento nobre dos autênticos, o lirismo

115
e a denúncia. Numa época em que muitos se omitiam em dizer de onde eram,
este payador cantou e sempre falou com orgulho da sua pequenina Bossoroca.
Dono de uma personalidade irreverente, não temeu a ditadura nos
anos de chumbo, criticou os alienados e a importação de cultura jogada ao
povo na forma de lixo musical ditado pelo poderio econômico. Brigou com as
gravadoras defendendo os direito naturais e incorporou lutas. Noel Guarany é
o marco distinto que divide música do Rio Grande do Sul em dois tempos.
Hoje, o Guarany está carente de recursos, sem o contato íntimo
com a guitarra que o consagrou e longe da ribalta. Esse bugre missioneiro,
maestro ao dedilhar as cordas e garganta de ouro, encontra-se adoentado com
“ataxia cerebral degenerativa”, lhe ocasionando pouca coordenação motora
e memória reticente, porém sua obra ímpar continua viva e seu legado nos
orgulha. Todo o ser humano é frágil quando a doença se apresenta e da mesma
forma as intempéries dos anos.
O nosso guitarreiro foi submetido a esse calvário, um tanto cedo
para a nossa visão, mas assim é a vida e, mesmo mutilado em sua saúde,
seu canto entonado, natural, com cheiro de terra, nascido e amadurecido nas
regiões missioneiras do Brasil, Paraguai e Argentina, permanece vigoroso,
identificado através dos registros fonográficos. “Tudo o que é belo morre no
homem, mas não morre na arte”. Assim, a obra iluminada desse payador,
um verdadeiro manancial que brotou das fendas do chão, é pesquisa viva do
folclore missioneiro.
TRIBUTO A NOEL GUARANY FOI UM SUCESSO
JORNAL DA REGIÃO 14 DE MAIO DE 1998
João Antunes
Com este versos, o apresentador Jairo Velloso deu início na abertura do
show “Tributo a Noel Guarany”: “por tudo que representa/ dentro da canção
nativa/ Inspiração sempre viva/ Que da terra e alimenta/ Quando o mundo se
apresenta/ É o índio xucro que assoma/ o payador sem diploma/ Que veste
como couraça/ O próprio impulso da raça/ Que a história mata, mas não doma”.
A iniciativa da família Fabricio, Rotary Clube e a presença maciça do
público local e inúmeros visitantes que também prestaram a sua solidariedade a
este evento beneficiente fizeram com que o ginásio de esportes da nossa cidade,
lotado, e tornasse o palco da cultura poético-musical deste estado, na noite de 8
de maio. Foi um momento memorável, extraordinário, recheado de expressivos
nomes da música rio grandense, que se ergueram em coro nesse tributo a Noel
Guarany.
Os artistas que trouxeram seu apoio e brilharam no palco foram Júlio
Saldanha, Mano Lima, Grupo Estampa, Deziderinho, Joaõ Máximo e irmãos
Galarce, Marcos Schineider, Pedro Ortaça e filhos, Jorge Guedes, Adalberto
Machado, Gilberto Monteiro, Nélio Lopes (com versos de João Sampaio),
116
Mário Meira, Mano Monteiro, Pedro Bica, Lourenço Notargiácomo e Laura,
filha de Noel. As apresentações que causaram maior animação no público
foram as de Pedro Ortaça e filhos e dos irmãos Galarce, de São Luiz Gonzaga.
Vários momentos foram marcantes. Um foi quando Laura Guarany
se apresentou, mostrando o talento que herdou do pai. Outro, foi quando
Mário Meira subiu ao palco acompanhado de grandes nomes, como Mano
Monteiro, Jorge Guedes, Gilberto Monteiro, João Máximo e Ricardo Galarce
e, juntos, ao som da harpa, bandoneon, gaita e violão, interpretaram a música
“Kilômetro 11”. Também, quando o deputado Carlos Cardinal prestou sua
homenagem à Neide Fabricio pelo companheirismo, dedicação e carinho que
ela vem prestando ao marido, nesses anos de casados, e especialmente nesses
momentos difíceis em que ele convive com a doença.
Além das autoridades locais, estiveram presentes o deputado Cardinal,
os delegados de polícia Álvaro Neto, de Roque Gonzales, e Erom Lemos,
de São Luiz Gonzaga, o ex-prefeito José Moacir Dutra de Bossoroca, Jauri
Oliveira, de São Luiz Gonzaga, e Luiz Carlos Heinze, de São Borja.
O veículos de comunicação que fizeram cobertura ao evento foram
o Jornal A Notícia, Expresso Ilustrado e Zero Hora e as rádios São Luiz,
Missioneira 7 Povos e Central Missões- FM.
Este gesto humano da família Fabricio e do Rotary Clube avalizado
pela comunidade bossoroquense e regional, de colaborar com o nosso artista
maior, poderia ser seguido por outros municípios, pois é bom para a cultura
e ameniza o sofrimento físico de Noel Guarany, porque ele é, para o Brasil,
uma lenda viva e um mito na musica missioneira. Quem conhece a sua obra
sabe o quanto ele disse verdades e se encanta com o fascínio épico de suas
canções onde esteve sempre viva a memória guarnitica, a cantiga galponeira,
a rebeldia gaudéria, o telurismo, o sentimento nobre dos autênticos, o lirismo
e a denúncia.
Quis o destino que não ouvíssemos mais de viva voz o canto e a guitarra
campeira do payador da “Buena Terra Missioneira”, mas temos o privilégio
de sua obra no registro fonográficos, obra essa que, pelos seus méritos, o fez
um marco da música do Rio Grande do Sul e que com certeza continuará viva,
latente e perpétua através dos acordes das suas melodias e pela rimas de suas
poesias, sempre que for cantada por outros payadores nesta sucessão da roda
viva da vida.
A presença de público foi de 900 pessoas e o valor angariado para
Noel Guarany foi em torno de R$ 2.150,00.
A família Fabrício e o Rotary Clube agradecem a Mário Meira, ao
Jornal A Notícia, o Grupo de Escoteiros Guaranis, aos colaboradores, empresas,
Status Som, ao Banco do Brasil, gerência e funcionário do Banrisul, às prendas
e patronagem do CTG Sinuelo das Missões, Brigada Militar, músicos e
ao público local e visitantes por valorizarem a iniciativa do Tributo a Noel
Guarany.

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ADEUS NOEL GUARANY
(1941 – 1998)
7 de outubro de 1998 Ceneu Salcedo
Às 9h e 40min do dia 06 de outubro morreu na Casa de Saúde de
Santa Maria, aos 56 anos, após prolongada enfermidade, o cantor missioneiro
NOEL GUARANY, payador iluminado e considerado um divisor de águas da
música do Rio Grande do Sul que encantou o Brasil e a América Latina com
o brilho dos gênios.
O corpo de Noel Guarany foi velado no Clube 3 de Julho na Bossoroca,
sua terra natal, com o funerais organizados pela Prefeitura Municipal na
pessoa da prefeita Jacira Dutra que decretou luto no município por três dias.
O velório do músico transcorreu num clima totalmente diferente do habitual
pois a família de Noel Guarany pediu aos seus amigos que ficassem à vontade
e fizessem tudo aquilo que achassem que agradaria ao Noel desde cantar,
beber, tocar e até jogar truco.
Entre os que foram dar o último adeus a Noel Guarany estavam
os artistas e amigos João Sampaio (que falou emocionado ao JORNAL
NACIONAL ao lado do caixão do amigo) Jorge Guedes, Pedro Ortaça e
Filhos, Xiru Missioneiro, João Máximo, Rodrigo e Adalberto Machado que
permaneceram o tempo todo ao lado da esposa de Noel Guarany, Neide
Fabricio da Silva e das filhas Laura, Linda e Andréia.
O enterro atrasou em mais de cinco horas pois a família estava
esperando chegada de uma das filhas de Noel, Lia que reside em São Paulo
onde é aeromoça da VARIG e que acabou se acidentando no caminho não
chegando tempo.
No cemitério, em clima de intensa emoção Jorge Guedes cantou
acompanhado por Pedro Ortaça, Xiru Missioneiro e João Sampaio o clássico
“Romance de Pala Velho”. Inclusive ainda no cemitério ocorreu um fato que
pela magia inusitada comoveu todos os presentes: um anônimo do povo, após
fecharem o caixão de Noel Guarany que estava sob um cavalete, colocou em
cima do mesmo um violão com cordas de aço e de repente em meio aquele
silencio de pedra ouviu-se um acorde como que tocado pela mão do vento.
Foi um energia misteriosamente diferente, pois o caixão estava a sombra e
abrigado do vento. São coisas do divino.
Verdadeira heroina foi a viuva Neide Fabricio da Silva que ao longo
desses longos oito anos de nefasta enfermidade foi uma Jacqueline Kennedy
crioula pelo desvelo, carinho e sóbria classe e elegância com que se conduziu.
Representando Olívio Dutra (que foi amigo e conterrâneo de Noel),

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se fez presente a irmã Marlene Dutra que conversou longamente com João
Sampaio sobre participação dele e dos demais artistas missioneiros na
campanha de Olívio no segundo turno.
Jayme Caetano Braun o payador missioneiro afirma que “Noel Guarany
é o maior cantor do Rio Grande do Sul, um exceção de cantor missioneiro”.
Para Jorge Guedes, o (sucessor de Noel) “todas as pessoas que tinham uma
formação cultural encaravam o trabalho dele acima da pessoa”.
Gilberto Monteiro o mago da gaita ponto considera que Noel se tornou
uma referencia: “Ele foi uma bandeira que se ergueu para realçar a música
missioneira. Fazia música com uma pureza, com uma cultura profunda”.
Para Olivio Dutra Noel “era um guri rebelde”. Pedro Ortaça acha
“que Noel é fundamental para a cultura da América Latina que se deslumbrou
diante da beleza do seu trabalho missioneiro”.
Para o poeta João Sampaio (parceiro de Noel ao lado de Jayme Caetano
Braun e Aureliano Pinto) “Noel Guarany é como diria Brecht um daqueles
homens imprescindíveis para o tempo em que vive Noel tinha carisma e estilo
próprio e cantava com grande dignidade. Sua música tem uma estranha e
mágica fosforescência.
João Sampaio sintetizou em versos perda irreparável do amigo e irmão:

“Quando se foi o GUARANY


Para os celestiais desertos
Em nossa alma campeira
Ficou uma cruz missioneira
Com quatro braços abertos!”

NOEL GUARANY CANTOU O PEÃO, A PRENDA,


AS FIGURAS POPULARES DO SOLO MISSIONEIRO
JORNAL NOTÍCIA SÃO LUIZ GONZAGA

A cultura gaúcha e missioneira perdeu um dos seus mais consagrados
músicos, o bossoroquense Noel Guarany, que morreu Terça-feira, às 9h e
45min., em Santa Maria, aos 56 anos, depois de uma longa enfermidade. Ele
sofria de ataxia cerebral degenerativa, uma doença rara que provoca a degenera
ção do cérebro, que havia se manifestado a sete anos e debilitou lentamente o
organismo do músico. O corpo do payador missioneiro foi velado no clube 3
de Julho, de Bossoroca, e o enterro realizado às 16h de ontem, no cemitério
desta cidade.
Como um potros sem dono, o polegar direito de Noel Guarany

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cavalgou, nas cordas da guitarra campeira, dando ritmos missioneiro. Sua
sede de liberdade o fez um peão em destino, talvez, mas rompeu as sagas da
hipocrisia que reinava na cultura musical rio-grandense e prendiam o grito
daqueles que queriam ser livres novamente. Ele cantou o peão, a prenda, a
chinoca, o índio, o cachaceiro e outra figuras populares que, em carne e osso,
povoam o solo missioneiro.
Quando a década de 70 anunciava para o Rio Grande e para o Brasil
uma nova era na música rio-grandense o povo sulista lotava ginásios, teatros
e praças para viver explosão do regionalismo gaúcho, através dos festivais
e das tertúlias populares. Novos espaços se abriram na rádios e a produção
fonográfica com a marca deste chão crescia como nunca. Era o arranco do
movimento nativista.
Entre tantos artistas que despontaram um veio marcado para ser único
em estilo, estampa e trabalho musical. Era Noel o missioneiro único em
estilo, estampa e trabalho musical. Não que tenha sido o maior de todos, mas
até porque foi o primeiro a obter destaque, aparecendo no palcos só com um
violão, fazendo o tipo cantor e guitarreiro.
Gravou discos e encantou platéias ecoando como um clarim em defesa
da música de raiz. Noel Fabrício da Silva foi, para todos, o Noel Guarany.
Missioneiro declarado, com composições próprias ou de autores como
Jayme Caetano Braun, fez história como “boi-da-ponta” de uma juventude
que buscava um bandeira musical com a marca da querência e que tivesse
conteúdo, com temperos e protestos, história e cultura regionais.
Noel Guarany se transformou numa espécie de legenda musical ao
mesmo tempo em que muitas histórias e contavam sobre seu temperamento
forte e suas reações inesperadas. “Era o maior cantor do Rio Grande do Sul,
uma exceção de cantor missioneiro”, destaca Jayme Caetano Braun. Para
Jorge Guedes, “todos os que tinham uma formação para a cultura encaravam
o trabalho dele acima da pessoa. Não tinha meio termo: ou era ou não era teu
amigo”.
Pedro Ortaça, um dos companheiros musical e amigo de Noel ao
comentar a morte do payador, destacou emocionado: “lamentamos a perda
do grande amigo e companheiro de arte Noel Guarany. A importância do seu
trabalho artístico é fundamental para a cultura missioneira e para as futuras
gerações que se deslumbraram diante da beleza de seu trabalho do canto
missioneiro”.
Em uma de suas visitas a residência de Pedro Ortaça em São Luiz
Gonzaga, Noel Guarany escreveu uma de suas fotos: “Em claras noites de
lua, meu pala solito ao vento ia abanando pachola pras luzes do firmamento”.

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DEPOIMENTO PELO PASSAMENTO DE NOEL GUARANY
Calou-se o canto, morreu o homem, revela-se o mito, eterniza-se a
arte, arte pura, arte genial e rude como a natureza mais bruta, mais íntima,
deste gaúcho, xirú, irreverente, missioneiro, autêntico de expressão incomum
quando com uma viola nos braços.
Arte nobre, vertente cristalina, inspiração divina capaz de um repente,
traduzir a história, acendendo luzes de passado imortal, calando fundo a voz
da alma a inconformidade rebelde e o entusiasmo candente que só os que
bebem liberdade são capazes de traduzir.
Noel entra na privilegiada dimensão dos mitos. Deixa de ser
personagem para ser a própria personificação de sua arte.
Noel entra na dimensão dos poucos que cruzarão os anos vindouros, e
nesses anos estará cada vez mais viva sua arte. Porque a sua arte tem a força
audaz e destemida de querer ser grito, de querer ser asas para voar liberta por
horizontes continentinos, sem fronteiras. De querer ser vento para enfunar
velas e redemoinhar procelas.
E de tanto querer, de tanto ousar, este guri rebelde, que um dia talhou,
moldou, criou um tosco porongo com cordas esticadas, no seu sonho, na sua
ansiedade, via nisto um violão. Para a história, o mito, a essência pura do
dom, do talento, do privilégio divino, e da prova incontestável nos mostrando
que por maior a aspereza do ambiente, por mais inóspita e desafiadora as
circunstâncias que se imponham, será revelada sempre a profissão de fé, de
generoso talento dos que tem a leitura da alma do mundo e da força da natureza
ao alcance. E Assim se fez a voz, o canto, admiráveis notas sobrepostas em
culepes de desabafos e repontes, que de imediato revolveram nossos instintos
mais entranhados e nos celebraram deleite de acordes e canções.
Como trovão ribombando os clarões de tempestade, cortante como
verdades resolutas, desafiadoras na poesia instigante, saborosa, confortante
da justiça, tão sonhada, de autoria dele, dele com os amigos ou dos amigos
com ele.
Declarações de amor telúrico, reminiscências de guri ligeiro, andanças
de tauras, teatinos, torenas de cavalos, de carreiras, de causas, até de brigas,
porque uma boa briga é até as vezes calmante prá um coração caborteiro,
aporreado e valente.
Por que os rebeldes são diferentes? Por que o mundo acha que os
rebeldes são diferentes? Porque não contemplam mansos, brandos, calados,
omissos, os mandos e os desmandos?? Porque protestam e no protesto criam
a arte e da arte emprestam, traduzem os nossos sentimentos mais íntimos.
Este é o rebelde Noel. O rebelde da causa do homem da terra.

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Tinha na verve a magia dos que nos arrancam do sono, da letargia
acomodada dos dias, para as causas sociais de liberdade, causas de pátria, de
terra, de gente, de amor aos nossos, da insubmissão, da repulsa ao jugo dos
poderosos, da preservação da história, pela manifestação cultural da música e
pela conservação arquitetônica de nosso patrimônio jesuítico. Noel Guarani
fez do seu canto a consagração das ruínas de São Miguel, da herança talhada
pelos nossos antepassados, um direito inalienável como patrimônio histórico
da humanidade.
Não temos a pretensão da apologia, da ode biográfica de um gigante
como foi em sua arte o Noel. Até aqui, em tal circunstancia, o mais difícil é
resumir, sintetizar, tamanho legado, tão expressiva e viva, como dissemos, a
obra mítica. Aos familiares D. Neide, a irmã Bárbara, as filhas Laura, Lia e
Linda, aos amigos inesgotáveis e incontáveis. Se alguém foi prestigiado até o
fim pela devoção da mais sincera definição da palavra amizade esse alguém
foi o Noel. Pelos seus compreensivos companheiros, desses que respeitam as
pessoas como elas são e não como gostaríamos que fossem.
Nos versos de Aureliano de Figueredo Pinto, queremos encerrar dizendo:
“Pobre mas livre gauchito No sol a sol, sou o que sou
Pois nem Dom PedroII não pode, o Sr. de um mundo,
dobrar o meu bisavô.
Com esta alma guapa nos tentos, debaixo do meu sombreiro,
pelo poder e o dinheiro nunca ninguém me levou.
Pois nem o taura Castilhos famoso pelos codilhos
pode voltear meu avô
E ao tranco do meu lubuno passam por mim carros finos
com espertos e ladinos que a escovação empilchou.
Sigo, à vezes, sem nenhum cobre sem que a secura me dobre
e se meu velho, está índio pobre é porque a ninguém se dobrou.
Conterrianos moços lindos com humildade de escola curvam a
espinha de mola no culto de um ditador, seja qualquer que ele for
Co’a fumaça de um bom fumo, chapéu torto, corto o rumo
ao tranco do meu lubuno sem dar louvada ao Senhor.
Deus velho dá o sol também ao que sabe ser torena
e não suporte, cadena de feiticeiro ou pagão,
não me enredo nestas trampas e vou cruzando estes pampas
só escravo do coração.
Ah, amigos quando eu me for ao País do eterno olvido,
aqui fica este pedido, antes que a morte comande
ponham no peito, sem xuxo, o santo trapo gaúcho, da tricolor do
Rio Grande.”

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DESTINO MISSIONEIRO
Jornal à Notícia São Luiz Gonzaga 08/11/98
Jorge Fagundes
O vento minuano assoviava uma triste canção.
O menino sofrenou o baio, pois parecia ouvir o lamento de um cacique
que tombava.
Os pássaros silenciaram e as gotas de sereno que caiam das árvores
mais pareciam lágrimas.
O gado mugia campo afora, enquanto as garças alçavam vôo.
Todos pareciam desconfiar que naquele momento o Rio Grande
acabava de perder Noel Guarany, legenda da música missioneira, precursor
do nativismo, misto de índio e terra.
Noel Guarany sempre foi um gaúcho autêntico que trazia nas veias o
sangue de Sepé Tiarajú
Cantava nossos costumes com entono e afinação qual galo batará.
Foi um homem que o destino fez cantor em muitas payadas.
Quando amanhecia com os pés apapagaiados, arisco como boi preto,
pegava seu bodoque e ia nadar com Gení Pakú, pelados, lá no Ximbocú, onde
ensaiava suas canções, imitando os pássaros e o murmúrio das águas. Amava
o Rio Grande, onde os gaúchos são valentes e as chinócas são faceiras.
Também gostava de ouvir o tinido das esporas, no compasso da vaneira.
Mas, um dia quando voltava da estância, depois de banhar o gado,
Noel teve que viajar para outros pagos, para tratar de sua saúde.
Deixou aqui, Pedro Ortaça, Jorge Guedes, João Máximo e muitos
outros artistas missioneiros para representá-lo.
E ninguém imaginava que ele brevemente partiria para a estância
celestial, sereno, cantando: “Adeus morena, que eu vou embora. Não sou
daqui, sou lá de fora.”
Noel Guarany partiu como um gaúcho que vai ver sua namorada, com
a mala na garupa carregada de amor pelas coisas de sua terra.
O careca Saragoza vive triste, já nem liga pras gineteadas, muitas
noites desperta paleteando a solidão.
O xirú do posto, anda vagando por aí, com um pala velho embaixo do
braço, como se a procura de alguém.
A prendinha Ana Luiza desistiu de botar água de cheiro.
Também ficou muito cantor tonto e se maneando na guitarra.

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UM MEMORIAL PARA
NOEL GUARANY EM SUA
CIDADE NATAL
JORNAL DO NATIVISMO ABRIL DE 99

Um pôr do sol matizou o horizonte sobre s coxilhas de Bossoroca,
como se o Patrão Celeste pretendesse colorir a tarde um que um artista, o mais
conceituado da “Buena Bossoroca”, estava sendo homenageado.
A cidade natal de Noel Fabricio da Silva, Noel Guarany, ergueu um
Memorial, cuja criação é de Plinio Ivar da Rosa, onde repousam os restos
mortais do cantor. A inauguração do Memorial aconteceu às 18 horas do dia
27 de março, tendo contado com a presença da prefeita municipal daquela
cidade Jacira do Carmo Dutra Schmitz, do governador do estado Olívio
Dutra, do presidente e diretores do IGTF Eraci Rocha, João Menine e Alex
Della Méa, do Secretário adjunto do Estado Luiz Marques, do presidente do
Manancial Missioneiro da Canção Odilo Ferst, da viúva Neide Fabricio da
Silva, filha e netas do artista, alguns amigos e conterrâneos de Noel Guarany
que totalizaram aproximadamente uma centena de pessoas.
O cerimonial iniciou-se com o pronunciamento de Leandra Dutra
que falou em nome da família. Jorge Guedes e Dedé Cunha apresentaram
uma música inédita ao guitarreiro, chamada Para Noel Guarany, de autoria
de Jorge Guedes, João Sampaio, Amauri Beltrão de Castro e Felipe Alegre.
Posteriormente a prefeita municipal leu parte de um poema de João Sampaio
que retrata o pajador, e deu referencias da importância da figura ilustre no
campo artístico. Neide, viúva de Noel Guarny, fez um pronunciamento rápido
e ofereceu homenagem ao povo admirador da arte de seu marido. Plinio Ivar
da Rosa, o idealizador do Memorial, pronunciou-se com dados históricos
da região, até chegar ao estilo de cantar do homenageado. No público era
notada a presença de Pedro Ortaça e família, Paulo de Freitas Mendonça,
Glênio Reis, Vinícius Pitágoras Gomes, Mauro Marques, Carlitos Magallanes
e Deise Nunes, entre outra pessoas conhecidas. O governador Olívio Dutra,
conterrâneo de Noel, fez um discurso de aproximadamente 15 minutos,
referenciando o ideal das civilizações missioneiras, com fortes críticas ao

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neoliberalismo, a globalização, ao sistema político nacional e ao FMI, e
encerrou dizendo que “Noel é cada um de nós. É todos nós. Sua luta é a luta
de todos nós... devemos realizar as mudanças que Noel queria”.
O Memorial foi construído junto ao túmulo de Noel no cemitério
municipal, estando ao centro do conjunto que possui tronqueiras e varejões
na porteira, uma torre, a cruz missioneira, um violão, o pala velho, uma taipa
de pedras, uma escala musical e correntões que significam a lembrança que
unem os admiradores ao cantor, que levou o nome das regiões do Estado aos
quatro cantos.

MEMORIAL NOEL GUARANY

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A ARTE POPULAR
MISSIONEIRA RENOVOU
A MÚSICA REGIONAL GAÚCHA
REVISTA MUITO + Novembro/2000 Carlos Alberto Kolecza

Um Rio Grande do Sul mais chucro se ajeita como pode, apertado,
pendurado no rio Uruguai, na face mais rústica do Rio Grande do Sul já rebelde
por natureza. Foi da Espanha, quando o Rio Grande do Sul já era Português,
e província à parte depois que um bando de aventureiros, por conta própria,
expulsou as guarnições castelhanas.
É o Rio Grande do Sul das Missões, o território dos Sete Povos, as
Reduções dos Guaranis que os jesuítas fincaram no meio do mato e à beira
dos rios tribitários do mar doce do Rio da Prata. É a terra vermelha, de
gente silenciosa, teimosa, fatalista, um tipo gaúcho destoante do inflamado
fronteiriço e do extrovertido serrano, os mais conhecidos. O mais bicho do mato
dos gaúchos, se assim quiserem simplificar. Cuidado com a simplificação. Os
outros gaúchos pensam duas vezes antes de lidar com o missioneiro caladão.
O missioneiro é assim porque exatamente naquela banda rústica, na fronteira
com a Argentina, a savana desnuda do fim do Sul se funde à selva subtropical
fechada do fim do Norte. No ponto de choque da geografia desigual, a história
também bateu de frente com uma utopia de convívio social, desastre que o
missioneiro não esquece 250 anos depois.
As ruínas da majestosa Catedral de São Miguel, diante das quais meia
dúzia de guaranis ainda perambula sonambulicamente, são o testemunho
perene dessa derrota da humanidade. Um clima de luto permanente ainda
envolve a região. O lenço de pescoço preto é tradicional até nas festas. O luto
é o mesmo nas Missões argentinas e paraguaias. Fronteiras à parte, as Missões
são uma pátria espiritual transnacional e os escombros de seus templos um
panteão cultural e político antes de religioso.
Nos fundões das estâncias, personagens solitários, peões, posteiros,
alambradores fantasmas de carne e ossos são os sobreviventes culturais
daquele tempo mítico, guardiões de causos de assombrações e lendas de
tesouros enterrados. Mantém quente a memória da era de ouro trágica, entre
goles de cana e ponteios de violão.
Em qualquer lugar, porém nas varandas, botecos, galpões ou escolas,
há sempre alguém assuntando como seria agora se as águas do passado
continuassem a correr livres como o rio Uruguai.

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Getúlio Vargas sorveu o passado amargo em mateadas pela madrugada
sobre as páginas da utopia socialista de Saint Simon, antes da arrancada de
30. Volta e meia um gaudério larga tudo e sai mundo afora, à procura de sons
perdidos e vestígios das fendas encantadas. Assim foi com um descendente
de Borges do Canto, o líder dos aventureiros que expulsaram os espanhóis
das Missões. Piá de pé no chão – costume que os missioneiros herdaram
dos índios – Noel Guarany cismou que arrancaria do chão algum tesouro
escondido de que tanto falavam. Um cabedal que tinha a ver com os sons
que só ele pressentia em noites curtidas com peões insones em volta do fogo
de chão e ao relento no balanceio do caíques sestrosos tenteado dourados e
surubins.
No quartel, obrigação de que nenhum jovem escapava na época,
aquele potro sem dono, desbocado e insubmisso que não aceitava ordens,
caiu nas mãos de um oficial arataca prepotente. Cadeia após cadeia, deu um
jeito de fugir, desertor como o antepassado destemido. Entrou clandestino na
Argentina, andarilhou de estância em estância. Chegou no Paraguai, aprendeu
o Guarani, e saiu no Mato Grosso, pronto para sua missão.
De volta ao Rio Grande do Sul, ainda levaria algum tempo se
escondendo, enfiado nos bolichos, tascas e galpões, até abrir o peito, as mãos
cheias de acordes e versos garimpados nas barrancas dos rios, no chão batido
dos ranchos rescendendo picumã, nas beiras de estrada e ajuntamentos de
cancha reta.
Em 25 anos de andanças, gravações e apresentações, Noel Guarany
salvou do esquecimento a música popular missioneira e renovou a música
regional gaúcha. Ao morrer em 98 um outro piá pé no chão, que com ele correrá
pelos mesmos potreiros e ruas de Bossoroca, não pôde ir ao sepultamento. A
campanha eleitoral ao Governo do estado entrava encrencada na reta final
e não o deixaram se despedir do amigo de infância. De Porto Alegre ficou
imaginando a cantoria dos guapos cantadores missioneiros em volta do
caixão e a tristeza do povo. Assim que venceu, Olívio Dutra, outro gaudério
insubmisso das Missões rumou para o cemitério da terra natal. Quem pisou
um dia um campo santo missioneiro entendeu o gesto mais que emotivo do
governador eleito. Há música também na política e o ritmo de agora tem a
cadência histórica sempre viva das Missões. Uma mistura cristalina de flauta
pagã e harpa cristã, o instrumento que Noel Guarany queria devolver à música
gaúcha. Há muito de Noel Guarany em Olívio Dutra e bastante de Nheçú, o
poderoso feiticeiro que tramou a morte do padre Roque Gonzalez (hoje santo
do Paraguai), nos dois e em todo missioneiro. Os guaranis iam à missa de dia
e davam uma escapada à noite à gruta dos feiticeiro.
Berço de Noel Guarany e Olívio Dutra e outro tantos gaudérios
desgarrados, Bossoroca é hoje uma espécie de capital sentimental dos
missioneiros e poderá ainda ser muito mais. O lunar de Sepé Tiaraju, o
guerreiro santo dos missioneiros, parece brilhar sobre ela.

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UMA VIDA DEDICADA
AO FOLCLORE GAÚCHO
JORNAL A CIDADE -SANTA MARIA JANEIRO DE 2002
Noel Guarany, falecido em 1998, é considerado criador da música
missioneira do Rio Grande doSul.
A dosagem ideal entre folclore e notas musicais foi um do principais
motivadores na vida do compositor e estudioso Noel Guarany, que dedicou
mais de 40 anos à música nativista. Com a tradição e o nome guarani, Noel
que faleceu em 1998, gravou 9 disco e é considerado o criador da música
missioneira no Estado.
Nascido no município de Bossoroca, em dezembro de 1941, o músico,
que morava em Santa Maria desde 84, iniciou cedo sua trajetória musical.
Sob influência do pai italiano e da mãe guarani, aos 14 anos, Noel já fazia
shows em pequeno bares de São Luiz Gonzaga, de onde tirava verba para seu
sustento. “Ele era de família pobre e precisava se sustentar”.
Considerado o criador da música missioneira riograndense, Noel era
um estudioso do folclore do povo gaúcho e também atuou como radialista.
Autodidata, viajou desde adolescente por diverso países da América Latina,
onde prendeu a falar o espanhol e o guarani. Além de divulgar a canção
missioneira, tradicional dos povos guaranis, Noel também divulgava a
milonga e a chimarrita, músicas da região dos pampas gaúchos.
Com um personalidade forte, que o destacava dos demais músicos,
Noel costumava dizer que não se submetia às imposições do mercado musical
e fazia somente musica que gostava. Ao todo foram 9 discos gravados, entre
1971 e 1998, que lhe renderam, entre vários prêmios, o de Embaixador da
Arte Missioneira, em 1993.

Um vida de luta na busca dos seus direitos


Durante o mais de quarenta anos dedicados à musica, Noel sempre
se manteve neutro quanto aos interesses das gravadoras, compondo apenas
músicas que estivessem relacionadas com o folclore gaúcho. Devido a este
motivo, enfrentou diversos conflitos, tanto com as gravadoras quanto com os
órgãos de fiscalização que atuam no país, principalmente no que e refere aos
direitos autorais de suas músicas.
Para realizar shows e divulgar a música que o tornou um dos mais
conhecidos compositores do Estado, Noel pagava uma anuidade à Ordem dos
Músicos, órgão no qual ele não era registrado como músico profissional. “Ele
recebeu um carteira de músico amador, como se o trabalho dele não tivesse

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importância”, desde o início da carreira, Noel teve dificuldades com o órgãos
de fiscalização.
Mas o ponto culminante do conflito entre Noel e os órgãos
fiscalizadores se deu em 1983, quando o músico escreveu uma carta aberta
à imprensa nacional. Na carta, que ele resumia em um apelo às autoridades,
Noel denunciou arbitrariedades do ECAD – Escritório Central de Arrecadação
e Distribuição dos Direito Autorais – contra o patrimônio cultural do país.
Em protesto o tipo de contrato feito entre as gravadoras e o músicos, Noel
suspendeu por quatro anos suas atividades profissionais, retomando as
gravações apenas em 1988 com o disco A Volta do Missioneiro.
No último trimestre de 2001 a viúva de Noel recebeu da Fermata
– Editora e Importadora Musical – R$ 46,00, dinheiro pago pelos direitos
autorais do músico. Segundo Neide, que está fazendo um levantamento
sobre as músicas de Noel que foram regravadas, o valor pago é “irrisório” e
desvaloriza o trabalho do artista. “Vou lutar por todos os direitos do Noel”,
comenta a viúva, ao salientar que não recebe os direitos autorais da maioria
das músicas do cantor que foram regravadas. Ao todo, Noel Guarany gravou
84 canções.

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ENTREVISTAS COM
DEPOIMENTOS SOBRE
NOEL GUARANY
TRECHOS DA ENTREVISTA COM MARIA LUIZA BENITEZ
RS REVISTA OUTUBRO DE 86

RS Revista: Como foi o início da tua carreira?


Maria Luiza: Quando eu tinha quatro anos participei de um programa
de auditório onde estava Mary Terezinha também. Em 66 montamos um
conjunto de Jovem Guarda em Bagé. Quando entrei na faculdade tive contato
com o pessoal de Uruguaiana e, por conseqüência, com a Califórnia da Canção,
numa época em que só a Oristela Alves cantava. Eu, que até então só gostava
de música latino americana e regional, o que é muito comum na fronteira, fui
pegando gosto pela música nativa. Em 77 conheci o Jayme Caetano Braun,
Noel Guarany e Raulito Barbosa, fizemos um tertúlia na minha casa e acabei
me apaixonando pela música nativista. Foi quando decidi vir embora para
Porto Alegre.
RS Revista: Até então tu não tinhas participado de nenhum festival?
Maria Luiza: Não, o meu sustento era música e a rádio, onde
trabalhava desde 69. Quando entrei na Rádio Gaúcha e comecei a cantar na
noite de Porto Alegre. Fiquei dando “canjas” e peguei as manhas. Quando
surgia uma oportunidade, pegava o violão e fazia duas ou três milongas do
Noel Guarany. Na época as pessoas riam porque eu usava alpargata e poncho,
me chamaram até de sapatão quando usei uma bota campeira. Hoje isto não
existe mais.

TRECHOS DA ENTREVISTA COM CENAIR MAICÁ


REVISTA TARCA N.º 5 DEZEMBRO DE 84

Tarca: Cenair, vamos falar sobre o período em que estivestes em
São Paulo, numa época em que havia recrudescido a censura. Chegaste a
participar de um espetáculo com outro músico gaúcho?

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Cenair: Nós tivemos uma época de ouro, foi a época em que fui
para São Paulo com o Noel Guarany. Ele já tava lá. Eu fui ver um cartaz.
O primeiro nome do cartaz era o dele, depois Chico Buarque de Holanda,
Milton Nascimento, Elis Regina. A censura pegou aquele espetáculo e foi o
azar do pobre Noel.
Os caras deram força para ele, ele teve na pauta, ia comandar todo
aquele troço praticamente. Um ano depois eu fui para lá com o Noel e nós
tivemos o apoio daqueles caras. Eles reuniam na época, os jornalistas para
fazer uma cobertura boa para o nosso trabalho.
Tarca: Cenair, e quanto o fato de já existir um número expressivo
de artista cantando no estado este estilo de vida, você pode dizer que dentro
do contexto da nossa música já existe um estilo missioneiro de cantar, com
influência e espaço garantidos na nossa música?
Cenair: Bom, a verdade é que música missioneira sempre existiu,
no Paraguai, na Argentina, no Uruguai. No Brasil é que não existia. Então a
partir da década de 70, sessenta e pouco, nós fizemos os primeiros registros
dessa música com o Noel. Eu e ele gravamos um compacto nas Missões e
iniciamos campanha para afirmar nossa música que aqui não era reconhecida.
Vínhamos aqui em Porto Alegre e nos diziam: Ah, essa música acastelhanada,
e tal. Então iniciamos uma campanha com uma música mais no estilo cultural,
porque na época o músico tinha que tocar música de baile, como os Bertussi,
ou música sertaneja paulista, senão não era música que o povo estivesse
acostumado. Havia uma predominância da música sertaneja e dessa serrana
dos Bertussi.
Então iniciamos cantando essa música das Missões e tivemos
dificuldades, é claro. Depois iniciamos no meio estudantil – Santa Maria é
que deu força para nossa música.
Aí surgiu o festival de Uruguaiana, e então o negócio foi melhorando,
pegando força, surgindo novos valores.
Tarca: Mas vocês apenas usaram o que já esteve disponível em termos
de ritmo, de motivação, ou trabalharam em cima disso e criaram um estilo
novo, uma nova forma de cantar?
Cenair: Praticamente criamos o estilo. Eu, por exemplo, como iniciei
a cantar – é claro que a gente tinha influencia da Argentina, de toda a parte,
de São Paulo, dos Bertussi – mas procurei fazer assim da maneira que eu
sentia, que eu gostava, numa mescla que deu certo. Ela e diferencia de toda
as outras. O meu estilo, o de Noel, o de Pedro Ortaça, somos todos de uma
mesma região, mas cada um com seu trabalho e com sua característica.

131
NOEL E CENAIR NO INÍCIO DA CARREIRA

132
TRECHOS DA ENTREVISTA COM PEDRO ORTAÇA
JORNAL “O DESGARRADO” SANTA CRUZ DO SUL
Desgarrado: Como surgiu a música missioneira?
Pedro Ortaça: A música missioneira surgiu com o Noel Guarany que
andou pela Argentina fazendo algumas pesquisas e trabalhando nos canaviais,
escutando os hermanos. Ser missioneiro não é só aqui no Brasil, missões
existem na Argentina e no Paraguai também, e quando o Noel veio com essa
cantiga diferente e já havia ouvido com o mestre da música da América Latina,
Atahualpa Yupanqui. A partir disso nós resolvemos criar um estilo próprio e
esta aí, consagrada graças a Deus.
Desgarrado: O que caracteriza ser missioneiro?
Pedro Ortaça: Nós nascemos aqui, eu, o Noel, o Cenair, o Jayme,
então a gente traz no sangue. O Jayme até colocou muito bem em uma
oportunidade dizendo que não sabe como o sangue de Sepé Tiaraju entra no
sangue de seus filhos depois de quase 300 anos, e que nós nascemos com esse
dom e principalmente o amor pela terra e as coisas que nós temos nas missões
do Rio Grande do Sul.
O Desgarrado: Em que oportunidade o Quatro Missioneiros, Pedro
Ortaça, Noel Guarany, Cenair Maicá e Jayme Caetano Braun se conheceram?
Pedro Ortaça: O primeiro que conheci foi o Noel Guarany, ele estava
fazendo um apresentação em um parque de diversões que estava em um
praça em São Luiz Gonzaga, ficamos amigos e resolvemos abraçar a mesma
causa. Depois conheci o Cenair, nas festas que aconteciam lá, na Timbaúva,
município de Bossoroca, onde conheci também o Jayme Caetano Braun.
O Desgarrado: O que significam Noel Guarany e Jayme Caetano
Braun pra ti?
Pedro Ortaça: o Noel Guarany é um lutador, um abridor de picadas
da música do Rio Grande, aliás nós, os missioneiros fomos discriminados
porque diziam que nós éramos castelhanos. O Noel sempre teve essa vontade
enorme de ter uma música diferente, com mensagem de história da terra,
infelizmente ele está muito doente e não vai mais voltar a cantar, mas é um
amigo que cantou junto e daqui a cem anos vão estar pesquisando o sentido
da música que Noel Guarany fez.
O Jayme Caetano Braun é um marco na poesia do Rio Grande, mesmo
ele sendo Braun de origem alemã pelo lado paterno e Caetano pelo lado da
mãe, ele mesmo disse que como é que, com esse sangue ele pode ser tão
missioneiro. Até um dia eu estava conversando com o governador Alceu
Collares, ele me disse que Jayme Caetano Braun na poesia é a mesma coisa
que Martin Fierro na Argentina

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Acervo: Pedro Ortaça

ORTAÇA, COLARES, NOEL E FLORENCIO

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CANÇÕES EM HOMENAGEM
A NOEL GUARANY
PAYADA PAMPEANA
JOSÉ JOÃO SAMPAIO DA SILVA E QUIDE GRANDE

I VI
Não tem coração que aguente Tua voz ecoa no pampa
Hoje escutando teu canto Como um crioulo clarim
Faz qualquer gaúcho taura Dizendo neste chamado:
Encher os olhos de pranto “Cantem as Missões por mim!”

II VII
Tinha mil clarins na goela Sei que guardas na retina
O sabiá NOEL GUARANY Uma saudade que machuca
E o Rio Grande guarda sua obra E o recuerdo dos fandangos
Como um tesouro prá si Na BAIXADA DO MANDUCA!

III VIII
Na integração das fronteiras Aonde houver um comércio
Resgatando um testamento Em Bagé ou em Itaqui
Foste um Deus bugre na terra Entre os que debulham pata
Com o primeiro chamamento Vai estar o MITAY

IV IX
Por isso tua alma vive Era um bagual num potreiro
No som de cada instrumento Cantava pedindo espaço
Co’as cordas da tua guitarra Teu verso saía firme
Vibrando ao soprar do vento Que nem armada de laço!

V X
NOEL GUARANY Cacique Te vejo num pingo mouro
Tua legenda não tem fim História adentro passo a passo
Pois teu canto nos dá força Co’a guitarra na garupa
Igual orvalho no capim E um PALA VELHO no braço!

135
DE BOINA E ALPARGATA
HOMENAGEM DE AMAURY BELTRÃO DE CASTRO A NOEL GUARANY

Até não sei bem por que, E na outra extremidade,


O patrão Onipotente, Deste perfil altaneiro,
Em meio de tanta gente Simbolizando o costeiro,
Que o nosso mundo retrata, Que o rio Uruguai retrata,
Fez a lua cor de prata, Te irmanas velha alpargata,
Pousar em minha cabeça, À boina, amiga de fé,
Filtrando em ti Boina-Preta, Pra destorcer um “Chamamé”,
Lampejos de serenata. Que n’algum bochincho desata.

E de ti provém os raios, E daí acoreiando as duas,


Refletindo a mesma lua, Ao meu viver teatino,
Para que a noite na rua, Me boliei contra o destino,
Me abrace no meu violão Na busca de ser alguém,
E inspirado em seu clarão, E não sei se mal ou bem,
Chegue até a sua janela, Neste instinto guitarreiro,
E por fim cante pra ela, Procurei ser milongueiro
Segredos do coração. Da minha terra muito além.
Amaury

Esta boina que eu carrego, E hoje passados os anos,


Sentado meio de esguelha, E com meu por de sol já perto,
Tapeado da testa a orelha, Se tracejei o rumo certo
Me acariciando as melenas Procurem sentir no cheiro
É quem enconcha minhas penas, Que eu vou pedir, altaneiro,
Quando me volto estropeado, De boina, alpargata e violão,
É enfim, me achego deitado, Oh! de casa, meu Patrão,
Sobre o colo das morenas. Licença prá um Missioneiro!

136
DÉCIMAS
Autor: ALGACIR COSTA
Publicada em 1995
Santa Maria é o centro Um abraço para a Neide
daTertulia Nativista que companheira,que china
e la residem artistas um beijo para as meninas
do mais cotado quilate desde pequenas conheço
mora lá o grande vate Lia e Linda eu não esqueço
da minha raça missioneira a terceira uma bugrinha
fez da guitarra a bandeira se não falha idéia minha
para cantar o seu lirismo como aquelas de São Luiz
traz do bugre o catecismo foi o destino quem quis
Noel Guarany e sua carreira te dar as tres guriazinhas

PARA NOEL GUARANY


JOÃO SAMPAIO, FELIPE ALEGRE
AMAURY BELTRÃO DE CASTRO

Ouço repiques de sinos No coração das Missões


Das torres da tua semente Bom lugar pra ser feliz
Salmos em guarani e latim Enristava uma lança bugra
Te alumbram eternamente Quando cantava São Luiz.
E o yaguaretê que vive na selva
Vem ser seu contraparente! Ele nasceu na Bossoroca
Num galpão de santa-fé
Por isso quando abro o peito Carregava a pátria na voz
Pra cantar assim pra ti Com o entono de Sepé
Se acorda dentro de mim E enquanto andou nesta terra
Um cacique guarani Levou o Rio Grande de pé!
Que faz as pedras chorá sangue
E o sol demorá a saí!! Uma boina cor da noite
A proteção de Tupancy
Ele veio dos Sete Povos E um pala ocre franjado
Graças a Deus é de lá Sobre a alma guarani.
Com a firme convicção
Que terra melhor não há.

137
Ninguém descobre o segredos Quando se foi o Guarany
Das milongas do Noel Pro céu por rumos incertos
Prenhas de bugres mistérios Em nossa alma campeira
Dos campos de São Miguel! Ficou uma cruz misssioneira
Com os quatro braço abertos!!
Quando chegou primavera
Num outubro verde e bonito Missões... Missões... Missões
O cantor dos Sete Povos Terra do teu bem querer
Foi guitarrear no infinito! Razão de sonho e trabalho
Que ultrapassa o teu viver
Pois se um dia ressuscitares
aqui que vais renascer!!

DEPOIS QUE AS CORDAS SE CALAM


LETRA: OSMAR PROENÇA MÚSICA: JORGE LEAL

Uma guitarra entristeceu lá nas missões


quando o cantor vestiu silêncios na garganta
Uma bolcada leva o corpo chão à dentro
Mas deixa a alma que cantando se levanta
Ficou seu canto nas crescentes de setembro
Que são tropeiras quando o rio não tem cancelas
Embala o sono das canoas nos remansos
E pelos ranchos leva jujos pra mazelas

Eu tive um sonho missioneiro


Que vi Noel Guarany
Dando água no potreiro
Pra o petiço mitay

Até o vento leva as coplas de regalo
Pra quem entende um versejar de rio e campo
No murmurar das lavadeiras do uruguai
Num sapucay se desdobrando nos barranco
Sigo rondando a tropilha dos teu versos
Que volta e meia vem pastar cá na fronteira
E quando a noite se veste de lua clara
Vai coça a cara nas ruínas missioneiras

138
A DOM NOEL GUARANY
LETRA: OSMAR PROENÇA MÚSICA: JORGE LEAL
ARRANJO: AROLDO TORRES

Deito a cerca da divisa Um riograndense com mescla de


Prá o missioneiro que passa castelhano
E a guitarra se adelgaça Catequizado no altar dos
Numa milonga campeira campesinos
Cheirando a chão de mangueira Que tem a lua e boeira como guia
E a fumaça dos galpões E o sovéu das três marias pra
É o payador das missões boleá o próprio destino
Que vem cantar na fronteira
Senta-lhe o freio na cara de um
Vem um paisano de a cavalo num peste maula
petiço Que aperta um taura como um
Que a gurizada domou pra correr car- pealo de bolcada
reira Que eu vou pedindo pra São
E no costado vem um capincho tobiano Pedro nas alturas
Que é velhaco e aragano Fazer reza e benzedura pra o
pra encilhar Segunda-feira senhor das guitarreadas

Boleia a perna na terra dos marechais
Que a gauchada te saúda com entono
Bebe do rio onde Sepé teu irmão
Junto de um fogo de chão deito pra o
eterno sono

Alma costera no bailado das canoas
Domando enchentes numa balsa rio a
fora
Tirando boi do rodeio a bico de bota
Reunindo tropas no cincero das esporas

Essa guitarra que soluça no teu peito


Sinal e marca das barrancas do
uruguai
Irmana raças no rodeio da bailanta
E o Noel abre a garganta trovejando Jorge Leal e Aroldo Torres
um sapucai

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TRIBUTO AOS PAYADORES
LETRA: JOÃO ANTUNES / JOÃO RIBEIRO
MÚSICA: LUIZ BASTOS

Dom Jayme o senhor da rima O menestrel das Missões


Nativo galo de guerra No verso tradicional
Nos versos cheirando a terra poeta fenomenal
Afiado na poesia Com a rima sempre ensilhada
Peleava com a tirania que na força da payada
Na força do seu entono Escrita no rumo certo
Mostrando a soberania Era o próprio Rio Grande
Desta terra que tem dono correndo num rio liberto

Noel o bugre indomável O guitarreiro charrua


Na sua estirpe bravia O nosso cantor gaudério
Campereou com maestria Com sopros de rimas puras
Nos versos incontestados Exalou céus de ternura
E os dedos do guitarreiro Nos versos que se eternizam
Qual corcéis em rebeldia E alargando divisas
Desconheciam aramados Cantou o ventre da vida
Libertando melodias Que é o chão que a gente pisa

Abriu-se uma bossoroca


Na geografia do verso
E quedaram submerso
Dois pajadores daqui
E o canto em fraternidade
Hoje reponta saudades
Do Jaime e do Guarany

João Antunes e João Ribeiro

140
“um payador que se preza
mesmo rodando nÃo cai
recorre a vida cantando
aos pÉs do eterno pai
e depois volta de novo
canta para o povo e se vai”

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