Mirando as artes plásticas-visuais a partir do fotográfico o caso
Duchamp em Rosalind Kraus
Abaixo transcrevo trecho que figura logo início do artigo, Marcel
Duchamp e o campo imaginário, precisamente nas segunda e terceira páginas.
Se há uma parte deste artigo seminal que informa aspectos
importantíssimos da dessacralização que Duchamp opera na arte de seu tempo, é este. E Krauss nos explica o papel axial da fotografia nesse momento em que o ele deixa a pintura cubista e parte em procura de um realismo nativo do baixo material. Uma parte significativa da arte de Duchamp é debochada e licenciosa. Ele é conhecido no imaginário popular por ter pintado bigodes na Gioconda, embora o homem do povo provavelmente ignore a parte essencial do gracejo, as letras “L.H.O.O.Q.” — que aparecem como uma espécie de legenda difamatória ao pé da “obra” de Duchamp como resposta á famosa e enfadonha pergunta que se fazia no século xix sobre a natureza do sorriso de Mona Usa. O interesse dessa provocação não é saber se achamos divertida a piada (o que geralmente não vale para os universitários), e sim que ela demonstra a determinação de Duchamp em praticar uma arte das mais vulgares e optar pelo popularesco, pelo escabroso, pelo comum neste terreno. Se houver portanto uma distinção importante ou útil entre Duchamp e Picasso (e Octavio Paz teve toda razão em insistir nessa distinção), deverá ser efetuada segundo critérios diferentes dos que sempre funcionaram na tradição iconográfica. Em vez de perpetuar a antinomia entre desenho e cor, entre espírito e corpo ou idealismo e sensibilidade, seria mais oportuno reorientar o eixo da oposição seguindo a direção e distinguir entre alto e baixo, sério e trivial. Pois o que Duchamp recusou quando rejeitou o cubismo violentamente foi, na minha opinião, a auto-suficiência da pintura, a seu ver intolerável, sua seriedade excessiva, sua concepção sagrada de missão e o fervor religioso com que o cubismo perseguia a ideia de uma autonomia da obra de arte que, dia após dia. a protegia um pouco mais de qualquer contato com o mundo real. Tendo portanto decidido deixar as altas esferas da seriedade, Duchamp não se contentou em descer na direção de uma prática bufa, mas alcançou o que seria o equivalente das formas miméticas “baixas" nas artes visuais. Em outros termos, ele se converteu ao realismo no estado em que esse se encontrava no início do século, quer dizer no momento preciso em que era mais desacreditado e mais aviltado no plano estético. Com efeito, Duchamp se dedicou a um certo comércio com a fotografia e a hipótese que gostaria de sugerir é que, se da superfície de sua arte se depreende uma hilaridade algo desatinada c desconcertante, eis aí uma qualidade cômica resultante da decisão de fazer de sua arte uma meditação sobre a forma mais elementar do signo visual, forma que se conhece no mais das vezes pela fotografia. Sua implicação muito nítida com a fotografia é evidente quando se vê os numerosos objetos que produziu em diferentes momentos de sua carreira. (KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, pp.77-78).