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Gláuks v. 7 n.

1 (2007) 102-118

MURILO RUBIÃO E A RENOVAÇÃO


ARTÍSTICA NA LITERATURA BRASILEIRA

Adriana dos Santos Teixeira*

RESUMO: Este trabalho tem como propósito reunir discussões


da crítica literária no que tange ao início da carreira do contista
mineiro Murilo Rubião (1916-1991) uma vez que sua produção
literária, do ponto de vista geográfico temporal, apareceu de
maneira incomum. A fundamentação teórica de Todorov,
Schwartz, Candido e Arrigucci possibilitam um diálogo com
este estudo, ao sintetizar o movimento literário do período
anterior e atual à década de 40, época em que Murilo Rubião
inicia sua carreira literária.

PALAVRAS-CHAVE: Tradição literária; inovação literária;


Murilo Rubião; precursor; literatura fantástica.

Apesar de a crítica literária ter sempre apontado a


dívida literária do contista mineiro Murilo Rubião
com o escritor tcheco Franz Kafka, a preferência pelo fantástico,
segundo o próprio contista, “foi herança da infância, das
intermináveis leituras de contos de fadas, do Dom Quixote, da
História Sagrada e das Mil e uma Noites” (RUBIÃO apud
SHWARTZ, 1982: 3).

*
Mestre em Teoria Literária e Crítica da Cultura, pela Universidade Federal de São
João del-Rey.
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 103

De acordo com Vera Lúcia Andrade (1985), o escritor


mineiro declarou que conhecera a obra do escritor tcheco
somente quando já havia escrito seus três primeiros livros. E
ainda afirma que só leu a obra completa de Kafka quando
trabalhou na Embaixada Brasileira na Espanha, entre 1956 e
1960.
É importante pensar, portanto, o que os outros escritores,
desta mesma época ou até um pouco antes, estavam produzindo
enquanto Murilo escrevia contos fantásticos.
Fábio Lucas, em seu livro O caráter social da
literatura brasileira, no último capítulo, intitulado “Ficção
brasileira contemporânea”, salienta a situação do conto
brasileiro, afirmando que a valorização do conto no Brasil
aconteceu de certa forma depois da Segunda Guerra Mundial.
Isso ocorreu devido à “crise do romance, manifestada em todo o
mundo no após-guerra” (LUCAS, 1976: 122). Os ficcionistas,
segundo Lucas [...] “preferem, modernamente, situações
dramáticas de curta duração e psicológicas adaptadas às
contingências do momento de intensidade emocional. Além do
mais, aprimorou-se o gosto das soluções no plano verbal; a arte
da ficção se tornou mais ‘literária’” (Ibidem).
Para Lucas, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Murilo
Rubião, dentre outros ficcionistas, renovaram, nessa mesma
época, a tradição literária brasileira. A inovação artística “não se
limita apenas à mudança de ponto de vista em relação à
sociedade, ao indivíduo, à natureza e às situações dramáticas da
vida” (Op. cit., p. 105), mas também com relação à mudança de
ponto de vista em relação à realidade que se cria com a
expressão literária.
Contistas por excelência, Lucas destaca Murilo Rubião e
Breno Accioly. O “início da renovação do conto brasileiro pode
ser marcado com a obra O Ex-Mágico de Murilo Rubião”,
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publicada em 1947, afirma o crítico (Op. cit., p. 40). Ninguém


entendia a arte deste contista. Não era para menos, pois a arte de
Murilo Rubião era inaugural. O contista era um caso de
originalidade e, por isso, desorientava a todos. Um ano antes do
lançamento de O Ex-Mágico, Guimarães Rosa publicara
Sagarana e Clarice Lispector, O Lustre.
Antonio Candido, no texto “Literatura e cultura de 1900
a 1945”, de seu livro Literatura e sociedade, traça uma síntese
do movimento literário deste período. Para o autor, no século
XIX (1836-1870) o Romantismo e no século XX (1922-1945) o
Modernismo representaram dois momentos decisivos na
literatura brasileira. Sendo assim, ele discute o Romantismo, o
Naturalismo, o Simbolismo, até chegar ao Modernismo. O que
vai interessar, especialmente, neste trabalho, são os anos 1940
em diante, época em que Murilo Rubião estava produzindo,
mesmo que timidamente, seus contos insólitos.
Segundo Candido, depois de 1940 ou, até mesmo, um
pouco antes, eram perceptíveis elementos que constituíam um
novo período na literatura, pois a partir de 1940, ao lado dos
escritores que corroboravam para produzir uma literatura
universalmente valiosa, isto é, por meio de uma literatura que
integrasse os problemas do momento através de um rígido
compromisso ao local, houve rejeição do local considerado
apenas “pitoresco e extra literário; e um novo anseio
generalizador, procurando fazer da expressão literária um
problema de inteligência formal e de pesquisa interior”
(CANDIDO, 2000, p. 116).
Durante essa fase, o Modernismo diminui a força no que
tange o regionalismo, o folclórico, o libertino, o populista,
manifestando maior preocupação com a forma ou esforço anti-
sectário no conteúdo (Ibidem). Para Candido:
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 105

[...] é o momento em que os próceres dos dois decênios


publicam algumas das suas melhores produções (Fogo Morto,
de José Lins do Rego e Terra do sem-fim, de Jorge Amado, por
exemplo, ambos de 1943; Sentimento do mundo e Rosa do
povo, de Carlos Drummond de Andrade, em 1940 e 1946) [...]
Em poesia, as melhores vozes ainda nos vêm de antes, com a
de Henriqueta Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vinícius de
Morais (Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar
Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujos
primeiros livros são de 1930, ou Manuel Bandeira, pré-
modernista e modernista da primeira hora [...] No romance, é
significativo o êxito de um veterano, José Geraldo Vieira, cuja
obra é revalorizada depois da publicação, em 1943, de A
quadragésima porta [...] Não menos significativo, o de Clarice
Lispector (Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946)
(Op. cit, p. 116-117).

No final da década de 40, a literatura brasileira ganha


algo realmente novo, isto é, os contos de Murilo Rubião. No
Brasil não existia uma tradição fantástica quando o contista,
desde o seu primeiro livro, mostrou sua singularidade dentro da
literatura brasileira.
É verdade que naquela época ainda não se imaginava o
“realismo mágico” que, “no final dos anos 60, através de Jorge
Luís Borges, Júlio Cortazar e Gabriel García Márquez, ficaria
sendo o selo da literatura latino-americana”, conforme frisa
Humberto Werneck (WERNECK, 1987:12).
Jorge Schwartz, em seu texto intitulado “O Fantástico em
Murilo Rubião”1, destaca a situação de Murilo na história das
letras brasileiras. O crítico, considerando o contista como
pioneiro na narrativa fantástica na literatura brasileira, mostra
que a obra de Murilo aparece de forma insólita, assim como a
temática dos seus contos, “desengajada de qualquer movimento

1
Este texto fora publicado, primeiramente, na Revista Planeta em 25 de setembro de
1974. Em 19 de outubro de 1974, quase um mês depois, foi publicado no
Suplemento Literário do Minas Gerais.
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literário no Brasil” (SCHWARTZ, 1974: 7) no que se refere aos


aspectos vanguardistas do ponto de vista geográfico temporal.
Segundo Schwartz, o fantástico em Murilo Rubião está
no cotidiano e não há rupturas no decorrer da narrativa ou
provocação de suspense no leitor, pois acontecimentos,
“referencialmente antagônicos e inconciliáveis, conciliam-se
tranquilamente pela organização da linguagem. Dragões,
coelhos e cangurus falam, mas não há mais o clássico “enigma”
a ser desvendado no final” (Ibidem).
É importante notar que, em 1987, no Suplemento
Literário do Minas Gerais, no especial comemorativo de 40
anos do livro O Ex-Mágico (Especial 1, 2 e 3), vários críticos
discutiram a nova tendência da literatura fantástica aduzida na
obra do mineiro Murilo Rubião.
Rui Mourão, abrindo o Especial 1, afirma que Murilo,
desde seu primeiro livro, lançado em 1947, “não se parece com
ninguém que veio antes” (MOURÃO, 1987, p.1). Jorge
Schwartz declara que a “total ausência de uma tradição narrativa
fantástica no Brasil cria um impasse quanto à definição do
gênero no momento em que ele nasce das mãos de Murilo
Rubião” (SCHWARTZ, 1987: 6).
Humberto Werneck, seguindo o mesmo pensamento,
sustenta a idéia de que “desde o primeiro livro Murilo chamou a
atenção da crítica, por sua extraordinária singularidade dentro da
literatura brasileira” (WERNECK, 1987: 12). Werneck, para
realçar ainda mais a singularidade de Murilo Rubião, cita,
primeiramente, as palavras de Fábio Lucas quando faz uma
observação curiosa: “A ficção de Murilo não tinha qualquer
conexão com o que se fala no Brasil”. “Era mesmo uma
aventura solitária” (Ibidem) correndo, pois, risco de não dar
certo. Em seguida, Werneck lembra as palavras de Eliane
Zagury, quando fala que o mineiro, “escreveu adiantado e
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publicou escondido – contradições que já são um lugar-comum


dos grandes escritores” (ibidem).
Álvaro Lins explica que se a obra de Murilo Rubião não
é composta de originalidade absoluta no sentido universal, sem
dúvida nenhuma, no Brasil sua obra significa uma novidade,
pois Murilo Rubião não “procurou forma fácil de expressão,
nem ficou a lidar com elementos já vistos e explorados. Buscou
um caminho novo e soluções próprias” (LINS, 1987: 9).
No Especial 2, Carlos Vogt observa que a literatura
brasileira conheceu o gênero fantástico, “tendo na solidão
paciente do trabalho de Murilo um raro caso de expressão
maior” (VOGT, 1987: 4).
Davi Arrigucci Jr., no Especial 3, tratando também da
estréia de uma nova tendência da literatura fantástica em Murilo,
no panorama da literatura brasileira, afirma que o contista “rompe
os padrões do realismo tradicional e só encontra antecedentes ou
parentesco fora de nosso âmbito literário, com a obra de Kafka e
dos pós-kafkianos” (ARRIGUCCI JR., 1987: 2).
Arrigucci Jr. explica que a literatura fantástica, no Brasil,
nunca sustentou tradição antes de Murilo, pois nos séculos XIX
e XX, encontram-se apenas narrativas mais ou menos insólitas
dos românticos, uma vez que caíam sempre nas margens do real.
Assim sendo, Murilo Rubião foi o primeiro a tomar impulso no
jogo da fantasia, aqui no Brasil. Abaixo, Arrigucci Jr. discorre:

Uma razão externa dessa singularidade pode ser percebida


facilmente, [...] no contexto brasileiro, a Literatura Fantástica
sempre foi rara. A tradição dominante do realismo demonstrou,
entre nós, desde as origens, a preferência pela ficção de vôo
curto, lastreada na observação e no documento, avessa ao livre
jogo da imaginação. E toda vez que se inclinou para o pólo da
fantasia, esta sempre foi corrigida pelo costeio do real. Neste
caso, em geral toda expansão imaginária tende coincidir com o
momento da ilusão, logo trazida ao chão pela ironia realista.
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Embora a Literatura Fantástica não se oponha necessariamente


ao realismo, como se verifica ao longo do desenvolvimento
desse gênero, a tendência, em nosso meio, não foi de certo para
incentivá-la. Assim, nossa ficção do século XIX e do começo
do século XX serve mal como antecedente de Murilo, ainda
que o explique por outros ângulos. Narrativas fantásticas,
estranhas ou vagamente insólitas dos românticos, de Machado
de Assis, de Aluísio Azevedo, de Afonso Arinos, de Monteiro
Lobato e outros não chegam a constituir uma tradição forte do
gênero, capaz de sustentar uma explicação para as
peculiaridades do fantástico em nosso Autor (ARRIGUCCI,
1987: 1).

Segundo Arrigucci, com o Modernismo houve uma


abertura maior para quem quisesse arriscar-se no imaginário.
Com isto tornou-se possível uma investigação do supra-real como
Murilo realiza em seus contos algum tempo depois. Porém, “as
preocupações específicas, reveladas nas primeiras obras
modernistas, já estão distantes do universo muriliano e ajudam
pouco a entendê-lo” (Ibidem), conforme frisa Arrigucci Jr.
Somente da década de 30 para frente o quadro sofre uma
modificação e, assim, surgem novidades. Arrigucci Jr.,
preferindo falar em afinidades literárias, cita dois escritores mais
perto de Murilo Rubião, que foram marcados pelo insólito e se
formaram sob o estilo do Modernismo: Cornélio Penna e Aníbal
Machado.
De fato, Murilo Rubião esteve por bastante tempo
sozinho no que se refere ao gênero escolhido por ele. Deleuze e
Guattari, no livro Kafka: por uma literatura menor, discutem
o que é uma literatura menor, num capítulo de mesmo título. Já
no início do texto os autores apontam que uma “literatura menor
não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz
em uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1977: 25).
De acordo com eles, “menor” não classifica mais certas
literaturas, mas as condições que as caracterizam pela inovação,
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 109

pela originalidade, pela possibilidade de renovar os padrões


estabelecidos de toda a literatura no interior daquela a que
atribuímos qualidade de grande, ou seja, daquela que se firmou.
A obra de Murilo Rubião é relativamente curta, pois
conta com trinta e três contos publicados. Em seus contos
encontram-se situações dramáticas, em um contexto estranho.
Segundo Fábio Lucas, “misturam-se o arbitrário das situações
com o realismo óptico das personagens principais ou do
narrador” (LUCAS, 1987, p. 11).
Talvez por isso a publicação de seu primeiro livro não
tenha sido tarefa fácil, pois, conforme afirma Perez, cerca de
quatro anos rodaram os originais pelas editoras – do Rio, de
Porto Alegre. “Ninguém se aventurava a publicar aquelas
histórias meio estapafúrdias que fugiam de tudo o que se
considerava literatura” (PEREZ, 1987, p. 2).
Acredito que Murilo Rubião foi um escritor que ficou à
margem do que estava em voga na década de 40, como
analisado por diversos críticos mencionados acima. Isto é, a
literatura de Murilo era inaugural.
Murilo Rubião era solitário em seu estilo literário.
Ninguém antes, no Brasil, havia se enveredado pelos caminhos
do fantástico. Pode-se dizer que seus contos estavam exilados
numa época em que não se produzia tal coisa. Sendo assim, era
tido como estranha (como estrangeira?) a sua obra.
Dessa forma, concordo com Deleuze e Guatari, quando
dizem que “se o escritor está à margem ou afastado de sua frágil
comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de
exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de
uma outra consciência e de uma outra sensibilidade” (Op.cit.,
p. 27).
A obra de Murilo Rubião, por estar distante, isolada de
toda a produção da época, causou enorme estranheza a todos,
110 Gláuks

quando o escritor escolhe um gênero que ainda não era


conhecido no Brasil. O que causa estranheza é a literatura
fantástica de Murilo, isto é, a novidade. Desse modo, é
importante discorrer a seguir sobre o gênero em que a obra do
contista está inserida.
O estruturalista Tzvetan Todorov, em sua obra intitulada
Introdução à Literatura Fantástica, discursa sobre o
fantástico sob uma perspectiva tradicional, diferente do
fantástico encontrado na obra de Murilo Rubião. Porém, é
importante ressaltar este estudo para perceber como a literatura
de Murilo Rubião se difere da literatura fantástica do século
XIX, discutida pela professora Vera Lúcia Andrade, em sua tese
de doutorado, intitulada Marbre: une lecture du fantastique
chez Pieyre de Mandiarques, onde ela traz importantes
informações sobre o histórico da Literatura Fantástica.
Apesar de aparecerem elementos fantásticos na literatura
desde a Idade Média, a Literatura Fantástica, segundo Andrade,
nasceu no século XIX. Já Todorov afirma que o fantástico
apresentou-se de forma sistemática por volta do final do século
XVIII, com o autor Cazotte, no livro Le diable amoureux.
Conforme Andrade, temas que mais tarde fizeram parte
do domínio fantástico encontram-se nos anos 1580 a 1670 na
literatura barroca. Esta se definia por uma temática da
metamorfose, da dualidade, do duplo. Além disso, o macabro e
o sinistro acompanhavam o cenário. Dessa forma, a literatura
barroca apresentava uma constante confusão entre os domínios
do sonho e do real.
O romance gótico também pode ser considerado um dos
precursores do fantástico, pois se apoiava em cenários de pavor:
nas ruínas desoladas, nos castelos mal-assombrados, nos
enigmas angustiantes etc. Todavia, no romance gótico “tudo se
explica por artifícios engenhosos” (ANDRADE, 1985:16).
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 111

Mais tarde, conforme Andrade, em 1820, Maturin e


Nodier estabeleceram outra categoria: o frenético, no qual se
prolongava o cenário mórbido do romance gótico para um
desencadeamento do horrível, isto é, houve o aumento de seres
monstruosos, dos personagens híbridos, das mutações
inconcebíveis se produzindo.
Segundo Andrade, apesar destes precursores, a Literatura
Fantástica, na França, só nasce, efetivamente, em 1830. Tal fato
está ligado, por um lado, à história do Romantismo em geral e,
por outro lado, ao começo da época cientificista e positivista.
Para a autora, o fantástico “procura e deve chegar a alterar nosso
mundo, mundo este submisso a uma causalidade rigorosa” (Op.
cit, p. 20).
Andrade cita Roger Caillois, um importante crítico da
Literatura Fantástica, para salientar a quebra que o sobrenatural
opera num mundo estável. Conforme o autor, o “sobrenatural
surge como a ruptura da coerência universal devido a uma
agressão interdita, ameaçante que rompe a estabilidade de um
mundo coerente cujas leis até então eram tidas como rigorosas e
imutáveis” (CAILLOIS apud. ANDRADE, 1985: 20).
É importante ressaltar também o estudo do estruturalista
Todorov. Em sua obra, o autor focaliza o aspecto formal da
relação do fantástico com os gêneros vizinhos, o estranho ou o
maravilhoso. Para ele, o fantástico está no meio, ele só ocorre na
incerteza entre uma e outra possível solução, pois se o leitor
optar por uma ou outra escolha de explicação para os
acontecimentos entrará em um gênero vizinho, ou seja, o
estranho ou o maravilhoso.
Mais adiante, Todorov aponta a implicação do fantástico
na integração do leitor ao universo das personagens. O leitor,
portanto, é quem definirá o fantástico pela percepção ambígua
acerca dos acontecimentos narrados. Sendo assim, conforme
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afirma Todorov, a “hesitação do leitor é pois a primeira


condição do fantástico” (TODOROV, 1992: 37).
Um ponto importante que resume o espírito do
fantástico, segundo Todorov, é quando se chega quase a
acreditar, pois é a hesitação que dá vida ao fantástico. Quem
hesita tanto pode ser o personagem quanto o leitor que é posto
em integração com o mundo dos personagens. Para Todorov, há
“um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras,
por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A
possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito
fantástico”2. (Op. cit, p. 31).
A respeito do efeito produzido no leitor, Jorge Schwartz
contesta o método proposto por Todorov, dizendo que “sua
crítica é de caráter eminentemente axiomático: deve existir a
dúvida na leitura da narrativa fantástica? Sem tensão, não há
conto, mas a ausência da dúvida elimina o fantástico?”
(SCHWARTZ, 1981: 68).
Segundo Schwartz, o modo narrativo de Murilo Rubião é
contrário à teoria do fantástico articulada por Todorov, “onde a
dúvida é assumida como condição sine qua non para definir o
gênero narrativo em questão” (Ibidem).
No terceiro capítulo do livro, o estruturalista afirma que
o fantástico dura apenas o tempo de uma hesitação e esta é
comum ao leitor e à personagem. Para diferenciá-lo do gênero
estranho, o autor diz que neste o leitor ou a personagem “decide
que as leis da realidade permanecem intactas” (TODOROV,
1992: 48) e o contrário disso acontece no gênero maravilhoso,
isto é, quando se admitem “novas leis da natureza, pelas quais o

2
O pensamento supracitado pertence a Louis Vax, em sua obra L’art et la littérature
fantastiques, quando ele explicitou a ambigüidade na obra The turn of the screw,
de Henry James e declarou que o fantástico ideal se mantém na hesitação.
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 113

fenômeno pode ser explicado” (Op. cit., p. 48). O fantástico


existe se estiver ligado à ficção e ao sentido literal.
Outra importante observação de Todorov é com relação
às funções do fantástico na obra, tais como: efeito de medo ou
horror sobre o leitor; o suspense e função tautológica, quer
dizer, admite-se descrever um universo fantástico sem que este
tenha qualquer realidade fora da linguagem.
O último capítulo do livro, que é conclusivo, tem como
assunto a literatura e o fantástico. Neste, Todorov não mais
pergunta “o que é o fantástico?”, mas sim “por que o
fantástico?” Ele explica que a primeira interrogação traz a
preocupação com a estrutura do gênero, já a segunda tem como
propósito as suas funções.
Com relação à estrutura do gênero, Todorov afirma que o
fantástico fundamenta-se na hesitação do leitor; o leitor
identifica-se a um personagem e hesita quanto à natureza de um
acontecimento estranho; a hesitação pode ou não ser resolvida e
o fantástico exige certo tipo de leitura.
Já com relação às funções do fantástico, Todorov se
firma na observação feita por Peter Penzoldt que diz: “Para
muitos autores, o sobrenatural não era senão um pretexto para
descrever coisas que não teriam ousado mencionar em termos
realistas” (PENZOLDT apud. TODOROV, 1992: 167).
O sobrenatural também era pretexto para franquear
certos limites inacessíveis (temas proibidos, tais como:
homossexualismo, incesto, amor a vários, necrofilia,
sensualidade excessiva) pela censura, tanto a institucionalizada
quanto a da psique do autor. Ainda, o sobrenatural era usado
para tratar de temas tabus ou loucuras; para evitar as
condenações sociais, os crimes, as drogas; subtrair do texto a
ação da lei e com esta mesma transgredi-la. Para Todorov, o
114 Gláuks

fantástico é mais do que um simples pretexto, “é um meio de


combate contra uma e outra censura” (Ibidem).
A produção literária de Murilo Rubião se encontra
inserida no gênero fantástico. E isto causava inquietação ao
público não só na década de 40 como ainda na década de 80,
pois em uma entrevista intitulada “Rubião, pirotécnico da
palavra” publicada no jornal Alternativa, Giselle Dupin e
Francisco de Morais Mendes queriam saber se o Realismo
Fantástico de Murilo Rubião era uma opção política.
Segundo o jornal, a resposta do contista é de que ele acha
que “o Fantástico pode perfeitamente ser utilizado como uma
metáfora política. Como qualquer outro tipo de literatura, desde
que o escritor esteja engajado no contexto social” (RUBIÃO
apud DUPIN e MENDES, 1981: [s/p]).
Para Murilo, a presença do social aparece em grande
parte de sua literatura, uma vez que sobre o livro O Convidado,
Murilo afirma que dois contos são extremamente políticos, a
saber: “Botão de Rosa” e “A Fila”. E ainda diz o contista que no
livro O Pirotécnico Zacarias, o conto “A Cidade” é a
contestação do Estado Novo. Murilo Rubião vivenciou esta
situação e sentiu-se afetado por ela, uma vez que à época
trabalhava em jornal sob censura, o que acabava aparecendo em
seus contos. Entretanto, sua opção pelo fantástico não foi
motivada pela censura. Num depoimento consciente no que
tange a sua opção por este tipo de literatura, Murilo Rubião
afirma:

O Fantástico, de maneira alguma, é um tipo de literatura de


escape, para driblar a censura. Como a literatura feita com
seriedade não é panfletária, então, o que tem de contestação às
vezes é mais sutil. Às vezes é preciso uma segunda leitura para
se perceber. E já começa que a censura não entende nenhum
livro, nem aqui nem em outros lugares (Ibidem).
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 115

Voltando às funções dentro do próprio interior da obra,


Todorov, em seu livro, discorre sobre três: 1) a função
pragmática: o sobrenatural emociona, assusta ou mantém em
suspense o leitor; 2) a função semântica: o sobrenatural constitui
sua própria manifestação: é uma autodefinição; e 3) a função
sintática, que aparece no desenvolvimento da narrativa.
Já nas últimas páginas, Todorov se interroga não mais a
respeito da função do sobrenatural, mas sobre a reação que este
suscita. Daí, ele se indaga: “Por que a literatura fantástica não
existe mais?” (TODOROV, 1992: 175). Em outro momento ele
se pergunta: “Em que se transformou a narrativa sobrenatural no
século XX?” (Op. cit, p. 177).
Com base na obra A metamorfose, de Franz Kafka,
Todorov acredita que aí se inicia um novo gênero. Gênero este
que ele desconhece. Ele afirma que se “abordarmos esta
narrativa com as categorias anteriormente elaboradas, vemos
que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas
tradicionais” (Op. cit, p. 179).
Para Todorov, na narrativa kafkiana a hesitação não é
mais possível como anteriormente (no século XIX) foi
representada no interior do texto:

A narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente


natural para alcançar o sobrenatural, “A Metamorfose” parte do
acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa,
uma aparência cada vez mais natural, e o final da história é o
mais distante possível do sobrenatural. Qualquer hesitação
torna-se de imediato inútil: ela servia para preparar a percepção
do acontecimento inaudito, caracterizava a passagem do natural
ao sobrenatural (Ibidem).

Sobre as diferenças existentes entre a obra fantástica


tradicional e a moderna, a autora Vera Lúcia Andrade explica:
116 Gláuks

Nas obras fantásticas tradicionais, o elemento sobrenatural


intervém no curso normal dos acontecimentos e provoca uma
ruptura; um “suspens” [...]. Pelo contrário, na narrativa
fantástica moderna, os elementos sobrenaturais não intervêm
mais, esta não interfere na ordem natural do fato narrado. O
fantástico, o misterioso e o curso natural dos acontecimentos
convivem pacificamente na linguagem organizada da narrativa
(ANDRADE, 1985: 22).

A ausência de hesitação diante de um fato sobrenatural é


característica também da narrativa de Murilo Rubião. Segundo
Jorge Schwartz, por meio da linearidade e coerência do sistema
discursivo da ficção, este estabelece o “status necessário e
suficiente para que o leitor dê credibilidade à narrativa”
(SCHWARTZ, 1981: 59). Como exemplo, Schwartz aborda a
narrativa do conto “Teleco, o Coelhinho”:

O fato da personagem não questionar a presença do coelhinho


faz com que nós também o aceitemos no ato da leitura. Esta
integração é feita graças à extraordinária força dos dados
miméticos que configuram o discurso, e a fusão
fantástico/cotidiano é imediata, não havendo lugar para
surpresas, dúvidas ou desconfianças (Op. cit, p. 60).

Daí a modernidade da obra de Murilo Rubião. Sua


narrativa se diferencia da narrativa tradicional, estudada por
Todorov. Quanto à sua familiaridade com a obra de Kafka, o
próprio Murilo, como dito anteriormente, declarou que só veio a
conhecê-la mais tarde. Sendo assim, Murilo Rubião foi pioneiro
na narrativa fantástica na literatura brasileira. Como observou
Rui Mourão, ele não se parecia com ninguém que tinha vindo
antes. E Fábio Lucas foi categórico ao afirmar que a literatura de
Murilo foi uma aventura solitária. De fato, a produção de
Murilo não tem parentesco no âmbito nacional.
Sua produção literária, desde o começo de sua carreira,
não foi tarefa fácil. Não havia uma tradição fantástica no Brasil.
Murilo Rubião e a Renovação Artística na Literatura Brasileira 117

Seu mestre, Mário de Andrade, também não sentiu total certeza


em afirmar o que o iniciante produzia. Isto é compreensível uma
vez que, do ponto de vista geográfico temporal, a obra de Murilo
apareceu de maneira incomum. A temática dos contos, assim
como sua narrativa, era desengajada de qualquer movimento
literário no Brasil.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Vera Lúcia. Marbre: une lecture du fantastique chez Pieyre


de Mandiargues. Tese de doutorado. Defendida na université de Paris III –
Sorbonne-Nouvelle, em dezembro de 1985. p. 9-28.
ARRIGUCCI JR., Davi. Minas, assombros e anedotas: os contos fantásticos
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CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A.
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Janeiro: Imago Editora, 1977, p. 25- 42.
DUPIN, Gisele, MENDES, Francisco Moraes. Rubião, pirotécnico da
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RESUMÉ: Ce travail a pour but rassembler des discussions de


la critique littéraire en ce qui concerne le début de la carrière du
conteur « mineiro » Murilo Rubião (1916-1991) étant donné que
sa production littéraire, par rapport à un point de vue
géographique temporel, a apparu d’une façon particulière. C’est
grâce à une synthèse du mouvement littéraire et de la période
antérieure aux années 40, époque où Murilo Rubião commence
sa carrière littéraire, que nous pouvons établir un rapport entre
les études de Todorov, Schwartz, Candido et Arrigucci et ce
travail.

MOTS-CLÉ: Tradition littéraire; innovation littéraire; Murilo


Rubião; précurseur; littérature fantastique.

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