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30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.

12, 2008 31

VALLEJO, Fernando. El fuego secreto. Buenos Aires: Alfaguara,


1985b.
Autoficção e literatura contemporânea
. Los caminos a Roma. Buenos Aires: Alfaguara, 1988.
Luciene Almeida de Azevedo*
. Años de indulgencia. Buenos Aires: Alfaguara, 1989.
. Entre fantasmas. Buenos Aires: Alfaguara, 1993.
. La virgen de los sicarios. Madrid: Alfaguara, 1998.
. El desbarrancadero. Buenos Aires: Alfaguara, 2001.
. La rambla paralela. Buenos Aires: Alfaguara, 2002. RESUMO: Sob a hipótese de que o conceito de literário está sen-
. Mi hermano el alcalde. Buenos Aires: Alfaguara, 2004. do reconfigurado, o objetivo principal do trabalho é o comentá-
rio teórico sobre o conceito de autoficção, entendido como uma
estratégia da literatura contemporânea capaz de eludir a pró-
pria incidência do autobiográfico na ficção e tornar híbridas as
fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das
discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não
mais como instância capaz de controlar o dito, mas como refe-
rência fundamental para performar a própria imagem de si au-
toral que surge nos textos. O foco investigativo se concentrará
na produção de alguns autores que se lançaram na rede, como
Clarah Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian.
PALAVRAS-CHAVE: Autoria, autoficção, blog, literatura contem-
porânea.
ABSTRACT: Under the hypothesis of that the concept of liter-
ary is being reconfigured, the main objective of the essay is the
theoretical commentary about the concept of autoficção as a
strategy of contemporary literature, by setting in the center of
the arguments afresh the possibility from the recurrence author’s.
The focus will be concentrated in the production of some au-
thors whom if they had launched in the net, some names: Clarah
Averbuck, João Paulo Cuenca, Santiago Nazarian,
KEYWORDS : Authorship, autoficção, blog, contemporary
literature.

“A necessidade canônica, quando se vai trabalhar


* Professora doutora de
Teoria Literária da com o contemporâneo, de saída nos coloca diante
Universidade Federal de dessa questão: O que é literatura?”
Uberlândia (UFU) –
Uberlândia (MG).
(Beatriz Resende)
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Na cena-Matrix da contemporaneidade, há quem ain- mergulhado na mediocridade e em subjetividades incapa-


da se incomode com a labilidade das fronteiras virtuais zes de singularidades diferenciadoras, pois, apesar da exa-
fagocitando um já precário real, seja para reavivar a retó- cerbada presença do biográfico nos textos postados, con-
rica-Baudrillard do “ai como era gostoso o meu Real”, seja vivemos com um paradoxal declínio da interioridade
para demonizar a espetacularização à la Debord. psicológica (Sibilia, 2006), com subjetividades construídas
Para os que apostam nesse panorama desolador, a li- para serem apenas vitrines de exposição de um eu produ-
teratura estaria perdendo sua capacidade adorniana de zido artificialmente, uma identidade fake.
resistência e se entregando facilmente aos prazeres da su- E se, porém, a contrapelo das análises apocalípticas,
perficialidade, regozijando-se com o banal, chafurdando sem que tampouco tomemos a via da Poliana integrada,
no ordinário e investindo em conteúdos ridículos. Assim, pudéssemos ler a produção dos blogs literários apostando
tendo invadido a cena literária contemporânea, o blog é em uma relação com as marcas do nosso presente que
entendido como o mais novo dispositivo propulsor de não se nega ao diálogo com a espetacularização? Se acei-
artificialismos que investe na espetacularização do sujeito tamos a hipótese, a aposta na exposição do eu, o exercí-
e se constitui como uma ferramenta a mais, prestes a cola- cio da textualização de si podem ser lidos “em sintonia
borar com a “tagarelice do personalismo e a banalidade da com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea,
auto-expressão narcisista” (Jaguaribe, 2006, p.115). Na mas, ao mesmo tempo, produz[irem] uma reflexão sobre
esteira do sucesso dos reality shows e das fórmulas de vida ele” (Klinger, 2006).
na lição auto-ajuda, a demanda pela autenticidade das ima- Na falta das grandes narrativas, dos grandes roman-
gens e narrativas da “vida real” contaminaria a escrita de ces formativos do eu, das certezas de um cânone estável
si cultivada pelos escritores de blogs que, por sua vez, reafir- no qual se apoiar, talvez valha a pena apostar que a cena
mariam o narcisismo de uma sociedade midiática. literária do século XXI, precária e instável, já apresenta
Para aquele que aceite enfrentar o desafio de pensar o novas estratégias de representação, “elementos singulares
contemporâneo é quase impossível escapar do fato de que que estão em trânsito, propensos a circunscreverem mo-
os salões virtuais da web invadiram a cena literária con- dalidades inéditas de experiências” (Fatorelli, 2006, p.19).
temporânea e muitos dos novos autores escolhem os blogs1 1
Blogs são páginas pessoais Nesse sentido, talvez seja possível pensar a auto-ex-
nas quais os autores podem
para divulgar sua ficção. posição da intimidade também como estratégia para driblar,
expor desde experimentações
O novo suporte coloca em questão não apenas a dú- literárias até os mais banais e brincar com, a superficialidade contemporânea.
vida pelo próprio estatuto da ficção (Isso é, ainda, litera- comentários sobre o seu Em vez do pacto pelo efeito de real que a narrativa das
cotidiano. À maneira de um
tura?), mas também a legitimação do jovem autor e as pró- diário íntimo, o blog é
experiências pessoais persegue e da legitimação da autentici-
prias estratégias de representação do que tem a dizer. Isso construído cronologicamente dade do que é contado por quem, de fato, viveu o que con-
fica claro quando os autores são cobrados por sua falta de mediante a possibilidade diária ta, podemos considerar que a presença avassaladora do
de atualização (cf. Azevedo,
expertise literária (“os escritores de blog... não são artistas, 2005).
autobiográfico na ficção blogueira é uma estratégia auto-
leitores ou peritos [...] [são] autores que quase não leram” ficcional que investe na criação de “eus” de/no papel.
(ibidem, p.110)) ou pela falta de lastro biográfico No universo da visibilidade total (“Sorria, você está
significante que os desautorizaria a contar uma vida tão sendo filmado”), estimulado aliás pela internet (Orkut,
ordinária. Lidos nessa clave, a ausência de uma aprendi- webcams e fotologs não nos deixam mentir), os blogs são
zagem artística e a idolatria da “pessoa comum” cultivadas dispositivos que permitem a invenção de si. (Re)Inventar-
pela imensa seara blogueira é um correlato do cotidiano se em outros é uma estratégia ficcional tão antiga que le-
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vou Platão a expulsar os poetas da Cidade Ideal, mas como resposta à análise de Philippe Lejeune (1996, p.31)
mesmo um procedimento tão antigo pode ter renovado sobre a autobiografia que, em seu conhecido livro sobre o
seu estatuto uma vez consideradas as circunstâncias de seu pacto autobiográfico, assim se manifestava:
(re)aparecimento. Assim, entendemos que a incorporação
do autobiográfico é uma estratégia para eludir a própria Le héros d’un roman déclaré comme tal, peut-il avoir le
autobiografia e tornar híbridas as fronteiras entre o real e même nom que l’auteur? Rien n’empêcherait la chose d’exister,
o ficcional, colocando no centro das discussões novamen- et c’est peut-être une contradiction interne dont on pourrait tirer
quelques effets. Mais, dans la pratique, aucun exemple ne se
te a possibilidade do retorno do autor, não mais como ins- 2
“O herói do romance, uma présent à l’esprit d’une telle recherche.2
tância capaz de controlar o dito, mas como referência fun- vez declarado como tal, pode
damental para performar a própria imagem de si. ter o mesmo nome do autor
Sentindo-se desafiado, Doubrovski escreve Fils (1977),
Nesse sentido, a problemática principal que ronda os do romance? Nada impediria
tal fato, e talvez fosse uma romance em que faz coincidir herói e autor do romance
posts diários dos blogs e as narrativas dos autores que ga- contradição interna da qual (“La personnalité et l’existence en question ici sont les miennes,
rantiram publicação em papel depois que se lançaram na se poderia tirar alguns efeitos.
et celles des personnes qui partagent ma vie”,3 citado por
rede dramatizando suas experiências cotidianas não está Mas, na prática, nenhum
exemplo se apresenta a essa Laouyen, s. d.), lançando mão da estratégia autoficcional
calcada na garantia de veracidade, mas em um protocolo pesquisa.” Todas as traduções baseada na construção polifônica de vozes e nas diferen-
de desaparecimento (“Como faremos para desaparecer?”, deste ensaio são minhas, salvo
tes perspectivas narrativas.
indicação contrária.
perguntava Blanchot). Um jogo de esconde-esconde que O conceito de autoficção, tal como entendido por
alude a uma visibilidade enganadora investindo na impos- 3 Doubrovski (apud Laouyen, s. d.), inscreve-se na fenda aber-
“A personalidade e a
sibilidade de confirmar se tudo (ou quase nada?), afinal, é existência em questão são as ta pela constatação de que todo contar de si, reminiscência
verdade ou não. A figura do autor (eu que escreve ou ego minhas, e a de pessoas que
ou não, é ficcionalizante, e que todo desejo de ser sincero é
compartilham minha vida.”
scriptor?) é ao mesmo tempo evocada como referente do um trompe-oeil: “Je me manque tout au long... de moi”.4
texto e ao mesmo tempo borrada pela indecidibilidade que 4
“eu me falto ao longo... de Bem próximo da estratégia adotada por Silviano San-
inquieta o leitor chamado a participar de um pacto em mim”. tiago (2004; 2005) em O falso mentiroso e Histórias mal
que as regras não estão dadas de antemão.
contadas que, empregando o procedimento de embaralhar
as fronteiras entre vida e ficção, faz o narrador jogar com
Autoficção: um conceito esquizofrênico? as margens do gênero e encenar um balanço de vida, mal-
Partindo do pressuposto de que é possível ler também contando histórias cultivadas pela memória inquietante
nos blogs um investimento na figuração de si que se apro- de uma intrincada rede de leituras, especialmente de nos-
pria antropofagicamente da exacerbada auto-exposição da sos escritores modernistas, desaparecendo como referente
intimidade que está no “espírito do tempo”, de ambiente autoral do texto, para converter-se em “parasita literário
virtuais ou não, como uma forma de driblar a espetacu- de si mesmo” (para falarmos como outro autoficcionista, o
larização do eu e a visibilidade transparente, acreditamos espanhol Enrique Vila-Matas).
que é possível pensar a autoficção como uma estratégia A autoficção é entendida, então, como um apagamen-
representacional possível exercitada pelos blogueiros em to do eu biográfico, capaz de constituir-se apenas nos des-
seus posts e nos livros publicados, como um dispositivo que lizamentos de seu próprio esforço por contar-se como um
responde ao contexto contemporâneo. eu, por meio da experiência de produzir-se textualmente.
O termo autoficção foi empregado pelo francês Serge Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios do
Doubrovski para nomear um exercício ficcional criado semi-oculto com as sinceridades forjadas que escreve.
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Contestando, no entanto, o procedimento de utiliza- vez que o conceito parece se aproveitar da desestabilização
ção do termo por Doubrovski, Vincent Colonna (apud empreendida pela própria autobiografia ao forçar as fron-
Laouyen, s. d.) investe no conceito, entendendo-o como teiras do literário para dar uma volta a mais no parafuso,
uma estratégia representacional da literatura contem- embaralhando ainda mais a questão: “o que interessa na
porânea: “Une autofiction est une ouvre littéraire par laquelle autoficção, não é a relação do texto com a vida do autor, e
un écrivain s’invente une personnalité et une existence, tout sim a do texto como forma de criação de um ‘mito do es-
en conservant son identité réelle (son véritable nom)”5 5
“Uma autoficção é uma obra critor’. A autoficção é uma máquina produtora de mitos
(grifos meus). literária na qual um escritor
se inventa uma personalidade
do escritor” (Klinger, 2006).
A sutil diferença em relação ao entendimento do ter- e uma existência, conservando Insistindo-se, contudo, na tentativa de caracteriza-
mo por Doubrovski vem da permanência defendida por sua identidade real (seu ção do termo, que diferença fundamental haveria, então,
verdadeiro nome).”
Colonna da figura do escritor-autor como elemento de re- entre a estratégia da autoficção e a autobiografia como
ferência fundamental ao jogo autoficcional. O que cla- desmascaramento?
ramente contraria a posição do autor de Fils uma vez que
esse parece defender o esvaziamento ou a impossibilidade Nous présupposons que la vie produit l’autobiographie
do lugar autoral que é preenchido pelo trabalho com o comme un acte produit des conséquences, mais ne pouvons-nous
significante. Em síntese, todo valor à écriture, lema que pás suggérer, avec la même justice, que le projet autobiographique
poderia ser adotado por boa parte das tendências teóricas puisse lui-même produire et déterminer la vie et que, quoique
do século XX. fasse l’écrivain, il soit en fait gouverné par les exigences techniques
A reapropriação que Colonna faz do conceito tal como de l’autoportrait, et déterminé ainsi, de part en part, par les
é entendido por Doubrovski parece ir ao encontro do que
7
“Nós pressupomos que a ressources de son medium?7 (De Man, 1979, p.98)
vida produz a autobiografia
afirma Puertas Moya (2003, p.586): como um ato produz
conseqüências, mas não Aqui, arriscaríamos a dizer que a instabilidade mesma
Derrida e De Man han llegado a poner en duda [...] la poderíamos sugerir com a do desmascaramento já provado pela autobiografia é des-
existencia de una referencialidad concreta del texto autobiogra- mesma justiça, que o projeto
dobrada na reconciliação com a figura do autor que supe-
autobiográfico possa ele
fico con respecto al yo, pero admiten que esta ilusión es un efecto mesmo produzir e determinar a rou o paradigma da morte: do sujeito, do autor. Nesse sen-
estético que no invalida [...] una literatura referencial del yo vida e, o que quer que o tido, se a desconstrução da ilusão referencial foi necessária,
existencial, asumido com mayor o menor nitidez, por el autor escritor faça, ele é governado
agora podemos fazer as pazes não para restabelecer qual-
pelas exigências técnicas do
de la escritura; frente a la literatura fictícia, en la que el yo, sin 6
“Derrida e De Man colocam auto-retrato e determinado quer centro orientador, mas para investir no jogo de con-
referente específico no es asumido existencialmente por nadie em dúvida [...] a existência de dessa forma pelos recursos de
tinuar representando.
en concreto.6 uma referencialidade concreta seu medium?”
do texto autobiográfico com Para rebater a negatividade de Genette, diríamos que
Apesar, porém, da popularidade que parece ganhar respeito ao eu, mas suas o que é realmente novidade na autoficção é a vontade cons-
posições não parecem
em muitas ficções contemporâneas, o conceito enfrenta suficientes para invalidar [...]
ciente, estrategicamente teatralizada nos textos, de jogar
resistências. Para Gerard Genette, ele não é nem mesmo uma literatura referencial do com a multiplicidade das identidades autorais, os mitos do
eu existencial, assumido, com
inovador, já que é um dos mais básicos procedimentos autor, e ainda que essa estratégia esteja referendada pela
maior ou menor nitidez, pelo
ficcionais o fato de o autor fingir sua entrada na ficção. autor da escritura frente à instabilidade de constituição de um “eu”, é preciso que ela
Assim, a postura de negação radical de Genette em literatura fictícia na qual o eu esteja calcada em uma referencialidade pragmática, exte-
sem referente específico, não é
relação ao termo é sintomática de uma dificuldade de ca- assumido existencialmente por
rior ao texto, uma figura do autor, claro, ele mesmo tam-
racterizar teoricamente a autoficção como um gênero, uma ninguém concretamente.” bém conscientemente construído.
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Assim, a estratégia básica da autoficção é o equilíbrio uma figuração entre outras. A ilusão referencial é, e ao
precário de um hibridismo entre o ficcional e o auto- mesmo tempo não é, correlata à construção da figura que
referencial, um entre-lugar indecidível que bagunça o ho- ganha estatuto ficcional paradoxalmente por meio da pro-
rizonte de expectativa do leitor: dutiva onipresença impotente da referência: “Quando
conto alguma coisa do meu dia-a-dia pode desconfiar que
Le lecteur se trouve face à une assertion dont la véracité 10
Cecília Gianetti nasceu é invenção” (Cecília Gianetti, 2007-04-29, blog).10
reste indécidable. Devant cette categorie textuelle, on doit prendre no Rio de Janeiro, em 1976. Assim, o autor assume um duplo estatuto contraditó-
en compte deux injonctions antinomiques: lire le texte comme É jornalista. Tem contos
rio: um lugar vazio impossível de garantir a veracidade
publicados em antologias e
une fiction et comme une autobiographie. Pourtant la synthèse referencial e simultaneamente um intruso que se assume
participa do projeto amores
entre ses deux registres peut paraître impossible, car comment expressos. interlocutor de si, colocando-se abertamente na posição
distinguer le référentiel de l’imaginaire, le littéral du métapho-
de autor, fingindo-se outros: “Aos poucos vou me largan-
rique?8 (Kouroupakis & Werli, s. d.) 8
“O leitor encontra-se
diante de uma asserção cuja do por aí. Os pedaços soltos pelos lugares mais imprová-
Se concordamos, então, que autobiografia e ficção veracidade é indecidível. veis. Alguns servem para encher papel, viram palavras”
Diante dessa categoria 11
(João Paulo Cuenca, 2003-10, blog).11
João Paulo Cuenca nasceu
compartilham fronteiras discursivas e que o elemento de textual, devem-se levar em
no Rio de Janeiro, em 1978.
interseção é o “eu”, diríamos que a autoficção atua com conta duas injunções
Começou a publicar ficção
base na expectativa de representação de um “eu” sempre antinômicas: ler o texto como
no blog. Co-autor de Parati O si mesmo de uma invenção de outros
uma ficção e como uma
para mim (Planeta, 2003)
cambiante em que as próprias fronteiras parecem rasuradas. autobiografia. No entanto,
e autor de Corpo presente “Então agarra o que você tem mais próximo: fale
Ao invés da relativa estabilidade “imagens ficcionais se a síntese entre esses dois
(2003). Também participa
registros pode parecer de si mesmo. E ao escrever sobre si mesmo comece
naturalizam em nossa vivência do cotidiano e, em troca, impossível, pois como se
do projeto amores expressos,
viajando para Tóquio. a se ver como se fosse outro, trate-se como se fosse
experiências cotidianas se metamorfoseiam em manifes- haveria de distinguir o
outro: afaste-se de si mesmo conforme se aproxima
tações ficcionais” (Costa Lima, 1986, p.300), a autoficção referencial do imaginário,
o literal do metafórico?” de si mesmo.”
desestabiliza ainda mais a já precária condição desse “eu”,
(Vila-Matas, 2005, p.145)
apresentando-se como uma escrita de si na qual o pacto
mimético se metamorfoseia ficcionalmente e a invenção No ensaio “O paradoxo e a mimese”, o comentário
de si se naturaliza como vivência cotidiana. O verdadeiro que Lacoue-Labarthe (2000, p.162) faz do texto de Diderot,
eu é duplamente considerado uma ficção, não há um có- Paradoxo sobre o comediante, coaduna-se ao dispositivo
digo hermenêutico que oriente a leitura, o sentido vacila esquizofrênico que a autoficção faz disparar: “A apocrifia
justamente pela anfibologia do entre-lugar (Kouroupakis 9 do autor é aqui mais temível ainda do que aquela que Platão
Algumas das auto-
& Werli, s. d.): “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer apresentações de Clarah temia”. A impessoalização do poeta é um dos motivos apre-
semelhança com a realidade não terá sido mera coinci- Averbuck: “Nariz de pugilista, sentados pelo filósofo grego para condenar a mimese por
coração de moça e cabeça
dência” (Averbuck, 2002, p.79).9 provocar uma decepção no espectador, que seria, dessa for-
dura” (no blog adiós lounge).
A diferença é uma sutileza em relação à famosa afir- “Decidiu nunca mais trabalhar ma, enganado pela performance: “Quando profere um dis-
mação de Barthes (2003) em seu exercício autobiográfico: para passar o resto de sua vida curso como se fosse outra pessoa, acaso não diremos que
em casa, escrevendo como
“tudo isto deve ser considerado como dito por um perso- uma maluca e tentando
ele se assemelha o mais possível o seu estilo ao da pessoa
nagem de romance”. Aqui, tudo é ficção. Mas a encena- aprender a tocar direito... cuja fala enunciou?” (Platão, 1996, p.117).
ção do eu levada a cabo na autoficção necessita do subs- contenta-se em morar com Sendo o poeta um verdadeiro hypocrités, um ator da
seus três gatos na rua mais
trato referencial, ainda que ele próprio seja um ato glam de São Paulo” (na orelha
mimese, sua impropriedade residiria em “não ser nada por
performático configurado no texto. Assim, o eu de papel é de Máquina de pinball). si mesmo, nada ter de próprio, a não ser uma ‘igual apti-
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dão para todo tipo de papéis’” (Lacoue-Labarthe, 2000, Delacroix (claro, tratava-se de anônimos aos quais o (fal-
p.170). O dispositivo autoficcional se configuraria, então, so) biógrafo batizou com o nome de seus personagens),
como uma dobra a mais dessa decepção, uma vez que a além de trechos da correspondência de Goethe com
intrusão do eu referencial (O autor? Quem fala?) coloca a Eckermann, do diário íntimo do próprio Delacroix aos quais
autenticidade na clave da ficção: eu sou outros, mas os foram acrescidas devidamente, aproveitando-se as passa-
outros são um eu que, em vez de exigir a suspensão da gens reais, menções à existência de Marbot.
descrença, aponta sempre para um incompatível pacto com Embora, meses depois, o próprio Hildesheimer tenha
um impossível verossímil. se encarregado de lamentar a leitura equivocada, fez ques-
Todo o esforço pela caracterização de um conceito tão de eximir-se da culpa por qualquer decepção e enga-
fugidio não seria, porém, vão, uma vez que sua definição no proporcionados aos leitores, ainda que admitisse o ca-
parece se tornar indistinguível da própria definição de au- ráter escondido e frágil das marcas ficcionais (o “falso
tobiografia (“o mesmo em sua mesmidade, é ele mesmo biógrafo” alega que bastaria uma consulta a quaisquer das
um outro e, por sua vez, não se pode dizer ‘ele mesmo’, e referências do index que acompanhava o livro para que o
assim por diante até o infinito” (ibidem, p.172)) e em últi- leitor pudesse se certificar da construção de Marbot como
ma instância do estatuto da ficção como um todo? persona fictícia).
Jean-Marie Schaeffer (1999), em seu livro Pourquoi la No entendimento de Schaeffer (1999, p.135), no en-
fiction?, comenta o engano a que foram conduzidos os lei- tanto, o argumento é frágil, uma vez que os índices maci-
tores de Marbot. Uma biografia, publicado por Wolfgang ços do texto apontam para a “maximização do componen-
Hildesheimer. Apesar de o livro insistir na informação para- te mimético”, o que induziria o leitor ao erro e faria fracassar
textual, agregando-a ao título, de que se tratava de um a ficção: “Alors, Marbot est-il une fiction ou un leurre? Ou
estudo biográfico de Marbot, o personagem nunca existiu, bien s’agit-il d’une fiction et d’un leurre? [...] Ou d’un leurre
tratava-se de uma biografia imaginária, um texto ficcional. 12
“Então, Marbot é uma quoique l’intention de l’auteur ait été de composer une fiction?”12
A confusão parece estimulada pela publicação, alguns ficção ou um engodo? Ou (ibidem, p.136).
então, trata-se de uma ficção
anos antes, de outra biografia publicada por Hildesheimer, e de um engodo? Ou de um O interesse de Schaeffer no “caso Marbot” está fun-
dessa vez verdadeira, sobre Mozart. Além disso, o interes- engodo ainda que a intenção damentado em seu esforço por caracterizar a própria con-
do autor tenha sido compor
se pela vida de Marbot justificava-se, pois significava o dição de existência do ficcional. Seu pressuposto é o de
uma ficção?”
resgate de uma figura histórica que havia compartilhado o que a ficção precisa ser “uma fantasia lúdica compartilha-
universo intelectual efervescente e as companhias de da” (“feintise ludique partagée”) completando-se, portanto,
Goethe, Byron, Shelley e muitos outros artistas do início na relação intersubjetiva que estabelece com seu leitor.
do século XIX, apimentada pela suposição de que o ilustre Por isso, o crítico francês aposta na falha de Hildesheimer,
desconhecido teria mantido uma relação incestuosa com já que o leitor não é suficientemente orientado a compar-
a mãe, o que poderia ter motivado seu desaparecimento tilhar da fantasia porque é bombardeado por informações
súbito. A suspeita do suicídio e a propensão ao pessimis- que, alocadas verossimilmente ao longo do texto, o desviam
mo são atribuídas à sua amizade com Schopenhauer. da ficção, induzindo-o ao erro.
A construção do personagem é cuidadosamente cons- Dessa forma, Schaeffer (1999, p.138) defende que
truída com dados referenciais: algumas reproduções de é necessária a “estipulação explícita da ficcionalidade”, e
quadros acompanham o texto e indiciam o retrato não Hildesheimer teria violado todas as condições capazes de
apenas de Marbot, mas também de seus pais pintados por garantir um pacto: o contexto autorial (o fato de já ter se
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aventurado ao território da biografia, escrevendo a vida 14


Jeremiah “Terminator” LeRoy temunhos). Mas em tempos de JT Leroy,14 como acreditar
de Mozart não muito tempo antes), o paratexto (insistir é o pseudônimo usado pela que a verdade está lá fora?
autora americana Laura
na incorporação do gênero ao título), a mimese formal Albert. “LeRoy” teria Se consideramos a estratégia do dispositivo auto-
(imitando procedimentos enunciativos do gênero biográ- supostamente nascido em ficcional, diríamos, então, que a sua condição de possibili-
fico: fotos, documentos, cartas, a fim de garantir o estatu- 31 de outubro de 1980, na
dade, sua inscrição no terreno ficcional, é mesmo o des-
Virginia, e sofrido vários
to ontológico do personagem). abusos durante a infância respeito que empreende às tais condições evocadas. Se não,
Assim, o grande imbroglio criado por Hildesheimer e adolescência. Baseado vejamos. O contexto autorial não é requisito confiável,
nisso, seus livros seriam
para seu próprio texto é o fato de ter atravessado o limite uma vez que a figura autoral é tão cuidadosamente cons-
autobiográficos, mas uma
entre o universo histórico (referencial) e o universo fic- notícia divulgada em outubro truída quanto cada um dos “eus” criados no papel. As fo-
cional, expondo o último a uma excessiva contaminação de 2005 plantou o boato de tos de divulgação que acompanham as publicações impres-
que J.T. LeRoy era uma farsa
pelo primeiro: “Le plus difficile n’est pas de faire prendre pour criada pela frustrada escritora sas estimulam um verdadeiro procedimento de mise-en-abyme:
réelle des entités fictives, mais de réduire au statut fictionnel Laura Albert com o objetivo nas orelhas dos livros de Santiago Nazarian, flagramos o
des entités qui ont été introduites comme réelles”13 (Schaeffer, 13
“O mais difícil não é tomar de alcançar o sucesso. Em
autor em performances de bodyart salpicado de sangue ou
por reais entidades fictícias, janeiro de 2006, o jornal The
1999, p.137). New York Times revelou que apenas, mais pueril, com um fiapo de baba de iogurte escor-
mas reduzir ao estatuto
É a esse mesmo impasse que o leitor da escrita de si ficcional entidades que foram a pessoa que se apresentava rendo pelo queixo, no romance cujo título sugestivo é Mas-
umbiguista dos blogs e da ficção publicada em papel por introduzidas como reais.” como LeRoy é, na verdade,
uma atriz e modelo, e se
tigando humanos. Um romance psicodélico (!!). Ato per-
esses autores está exposto. O narrador toma a consistên- chama Savannah Knoop. formático confirmado pelo autor: “eu achei que o molde
cia espessa de um eu narrador-personagem que atua para Savananh é meio-irmã de
ideal do personagem seria eu mesmo... Eu procuro forta-
Geoffrey Knoop, marido de
embaralhar uma suposta busca por autenticidade cujo lecer esse conceito de universo nazariano não só no conteú-
Laura Albert, que a criaram
parâmetro seria a figura do autor real. em São Francisco. Geoffrey do do livro, mas também nas capas, nas fotos de divulga-
A autoficção, se nos aproveitamos da reflexão de Knoop confirmou em
ção” (Santiago Nazarian em entrevista).
entrevista recente que LeRoy
Schaeffer, investe mesmo no engodo para inscrever-se é mesmo um personagem, e E que dizer então da provocante foto que toma toda a
ficcionalmente, uma vez que desrespeita as condições para Laura Albert é a verdadeira contracapa de Máquina de pinball de Clarah Averbuck?
o estabelecimento da ficção. Condições essas exploradas autora dos livros. Consultado
em: <http://pt.wikipedia.org/ Como descobrir quem é a Clarah e quem é Lady Averbuck
também por Puertas Moya (2003) na tentativa de relacio- wiki/JT_LeRoy>. ou Camila Chirivino? As personas, que vão se substituin-
nar alguns traços que tornassem pertinente a distinção do umas às outras com a velocidade da bolinha do jogo,
entre romance autobiográfico e autoficção. Segundo o crí- como sugere o título do livro, não encontram nenhum re-
tico espanhol, o romance autobiográfico garante um fator pertório de referência. A espetacularização elude a possi-
textual de identificação entre o personagem (o nome ou bilidade de qualquer autenticidade:
uma auto-alusão referencial) e o autor, indício que é re-
forçado por fatores de identificação paratextual que ofe- Aqui você poderá me ver usando “eu” quantas vezes
recem ao leitor elementos de relação com o personagem por parágrafo bem entender, sendo macho pra caralho, sen-
(prólogos, resenhas, dedicatórias), o que corresponderia, do “guei” pra caralho, abusando de piadas internas, não
na argumentação de Schaeffer, à importância atribuída ao dormindo, utilizando caps indiscriminadamente, prague-
contexto autorial e ao paratexto para garantia da ficção. jando, me referindo a mim mesma na terceira pessoa, mor-
Além de tudo, para Puertas Moya (2003), o leitor poderia rendo de dor, afogando o Sôo, rindo da minha própria des-
encontrar forte apoio no fator extratextual que revelaria graça e achando tudo ótimo. Três vivas para o umbiguismo.
informações sobre o autor (entrevistas, declarações, tes- (Clarah Averbuck, 2007-01-23, no blog)
44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 45

Se considerarmos as informações paratextuais, tam- virtuais, construídos cronologicamente mediante a possi-


bém não teremos melhor resultado. Depois da leitura da bilidade diária de atualização, e sugerem uma auto-expo-
(im)provável história costurada por alguns ganchos, qua- sição íntima, um escancaramento da subjetividade: “Mas
se sempre viagens entre Rio, São Paulo, Porto Alegre e você só fala de si mesma! – Bom, queria que eu falasse do
Londres, e descabelados envolvimentos românticos, lemos quê? De você?” (Clarah Averbuck, 2003-08-26, no blog).
num texto à maneira de nota ao final do livro: É essa condição de burla à mimese formal que leva Luiza
Lobo (2007, p.29) a falar em “autofalsasbiografias”, uma
a autora vendeu o corpo para comprar um laptop carinho- vez que não é possível nenhum estatuto ontológico, nem
samente apelidado notebuck. É mentira, mas é tudo ver-
das personas, tampouco do autor.
dade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sido
Nesse sentido, a “evasão de privacidade” ocupa ao
mera coincidência. Dúvidas, consulte um advogado. 16
Simone Campos, carioca,
mesmo tempo dois lugares incompatíveis: os posts falam o
(Averbuck, 2002, p.79) publicou seu primeiro romance
aos dezessete anos, com tempo todo em primeira pessoa, são verdadeiras válvulas
É mesmo pelo fato de serem autores jovens, que não sucesso de crítica e público. de escape do umbiguismo, mas não garantem a transparên-
A partir daí, foi convidada a
podem contar ainda com cacife biobibliográfico, que as even- escrever contos para diversas
cia do eu que desaparece por trás de suas performances, con-
tuais informações extratextuais com as quais o leitor possa coletâneas. O segundo figurando o movimento simultâneo de evocação e evasão
romance saiu em 2006, após de uma intimidade que faz vacilar o horizonte de expecta-
contar (o próprio blog em que escrevem, como suporte de
cinco anos de trabalho,
autopromoção, e as entrevistas de divulgação de seus li- quando Simone estava com
tiva de seu leitor. A extensão dessa superfície de interseção
vros) se transformam em um jogo de espelhos indecidível; 23 anos (conforme o blog). é proporcional ao seu grau de ficcionalidade: “se um dia
afinal, como acreditar na sinceridade da performance? encontrasse meu anti-eu e morresse mas nada de morte
17
“Mara Coradello não teria senão a do meu eu que só pensa em si enquanto ajudo este
a menor paciência para
Ele é bastante autobiográfico. Aquele apartamento é aqui a matar o dele próprio” (Campos, 2000, p.31).16
tentar seduzir leitores em sua
exatamente o apartamento em que eu morei em Porto Ale- minibiografia. Publicou, em O que garante o dispositivo da autoficção e sua legiti-
gre. Inclusive, minha janela dava para o pátio do Inmetro. 2003, O colecionador de
midade é a própria desconsideração pelas condições apon-
A rotina do personagem é a rotina que tive em alguns perío- segundos. Em 2004, participou
de algumas coletâneas, entre tadas por Schaeffer para caracterizar o estatuto da ficcio-
dos da minha vida. Ele come o que eu como, veste-se como elas, Prosas cariocas, Paralelos: nalidade, burlando as obrigações, os códigos que a regem.
eu me visto, pensa como eu pensaria. (Santiago Nazarian)15 15
Santiago Nazarian, a 17 contos da nova literatura e
respeito do personagem de 25 mulheres que estão fazendo a
Nesse sentido, a autoficção propõe um novo pacto a fim
Talvez, porém, a consideração mais interessante para seu livro, Feriado de mim nova literatura brasileira. Pode de que possa ser ludicamente compartilhada, inscreve-se
mesmo, em entrevista. Na ser lida no blog Caderno no paradoxo de uma representação que investe em uma
nossa argumentação resida no fato de que a condição mais orelha de se livro Mastigando Branco, e fazer dessa página
importante para garantir o pacto ficcional, a “fantasia lúdica humanos, lê-se: “Santiago seu diário não é intenção dela.
história factual (afinal, como é possível saber?) em pri-
compartilhada”, na opinião de Schaeffer, seja a mimese for- Nazarian é o jovem autor Mara Coradello não se meira pessoa, revelando-se um engano, um fingimento de
dos romances Feriado de mim considera uma escritora de
mal, a ponto de o crítico asseverar que para evitar o enga- enunciados de realidade: “o mistério de me abandonar.
mesmo, A morte sem nome e internet, simplesmente porque
no da má-leitura e o fracasso da ficção em Marbot bastaria Olívio, além de ter contos escrevia nos caderninhos Posso dedilhar novas lorotas para parecer uma escrita, uma
que Hildesheimer não insistisse em estampar na capa do publicados em diversas desde que se entende por prosa, um qualquer subtítulo novo de literatura” (Mara
antologias. Mora em São gente, nessa afirmação não há
livro, à maneira de um subtítulo, a palavra biografia sem Paulo, é tradutor, roteirista,
Coradello, no blog).17
nenhum juízo de valor. No
que fosse necessário mudar uma vírgula do próprio texto. carnívoro moderado e momento escreve um romance Se entendermos o gênero como a “camada de redun-
Na autoficção, é a burla à forma da mimese que se herpetólogo amador”. que considera na verdade uma dância necessária para que o receptor tenha condições de
história comprida. Está sem
constitui na condição mesma de existência da ficciona- editora. E procura” (conforme
receber e dar lugar a uma certa obra” (Costa Lima, 2002,
lidade, uma vez que os blogs em sua definição são diários o blog escritorassuicidas). p.268), como um dos filtros possíveis pelos quais podemos
46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 47

nos perguntar como determinado discurso é reconhecido Sem dúvida, a autoficção é um conceito controverso
como literário, chegaremos mais perto de compreender e ambíguo, mas para quem apostava no declínio das escri-
porque a autoficcção parece criar para si própria uma in- tas de si a virtualidade dos blogs vem lançar o desafio de
definição: as fronteiras entre o biográfico e o ficcional apa- novos dilemas capazes de falar de outros processos de cons-
recem aqui mescladas no seu limite, a desarticulação da trução narrativa encenando o texto e as próprias subjeti-
mimese formal (um diário? Então, é tudo verdade? Ou fic- vidades: “Ainda não tenho coragem para falar de mim – e
ção, e tudo passa a ser inventado?) força os limites do ficcio- quem tem?... Preciso de alguém que faça isso por mim”
nal, pondo-o em xeque (isso é literatura?) e violentando o (Campos, 2000, p.70).
horizonte de expectativas do leitor a fim de proposital-
mente provocar o engodo que instaura a ficção.
Referências
A autoficção trabalharia assim para aprofundar a des-
confiança platônica sobre a ficção e para desestabilizar o AVERBUCK, Clarah. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad Edi-
argumento aristotélico da impossibilidade de contamina- tora do Brasil, 2002.
ção entre mimese e realidade. A estratégia da autoficção é AZEVEDO, L. A. de. Blogs: escrita de si na rede dos textos. In: X
mesmo a de parasitar, contaminar, conspurcar a ficção com ENCONTRO REGIONAL DA ABRALIC, “Sentidos dos luga-
a hibridização de seus procedimentos de atuação: res”, 2005. Rio de Janeiro, 2005. p.88-91.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla
Uma pessoa está desde semana passada tentando es-
Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
crever algo e nada sai. Nem burilar, essa arte esquecida,
essa pessoa consegue. Essa pessoa queria ir para outra pes- CAMPOS, Simone. No shopping. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
soa, como quem compra um bilhete para a Espanha, entrar COSTA LIMA, Luiz. Júbilos e misérias do pequeno eu. In: .
em outra pessoa, ficar uns dias lá vendo tudo que vê e sen- Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
te essa outra pessoa, de fora e de dentro ao mesmo tempo. 1986.
Nesse dia essa pessoa escreveria como ninguém. Porque . A questão dos gêneros. In: . (Org.) Teoria da literatura
essa pessoa está cheia de seus assuntinhos de sempre, seus em suas fontes. Sel. Introd. e rev. técnica Luiz Costa Lima. Rio de
temas recorrentes e tem saudades de se impessoalizar. Se Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v.1
ver num papel, principalmente se ver em outra pessoa.
DE MAN, Paul. Autobiography as de-facement. In: . The
(Mara Coradello, no blog)
rhetoric of romanticism. New York: Columbia University, 1979.
Assim, embora para a argumentação de Schaeffer seja DOUBROVSKI, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.
imprescindível que a ficção não se constitua como mero FATORELLI, Antonio. Entre o analógico e o digital. In: FATO-
engodo, uma vez que isso arriscaria a ficção ao limite da RELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. (Org.) Limiares da imagem:
fantasia, arriscaríamo-nos a dizer que a autoficção inscre- tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro:
ve-se no território do próprio engano (leurre), indiciado Mauad X, 2006.
não apenas no próprio hibridismo formal da uma intimi- JAGUARIBE, Beatriz. Realismo sujo e experiência autobiográfica.
dade evadida, mas também na postura desnorteada do lei- In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. (Org.) Limiares da
tor que não sabe a quem ou a que confiar sua competência imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de
de leitura, sendo justamente esse precário equilíbrio que a Janeiro: Mauad X, 2006.
legitima como ficção, cujo “estatuto pragmático é radical- KLINGER, Diana. Escritas de si e escritas do outro. Autoficcção e
mente instável” (Schaeffer, 1999, p.144). etnografia na literatura latino-americana contemporânea. Rio de
48 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 49

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