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AZEVEDO, Luciene. Autoficção e Literatura Contemporânea PDF
AZEVEDO, Luciene. Autoficção e Literatura Contemporânea PDF
12, 2008 31
vou Platão a expulsar os poetas da Cidade Ideal, mas como resposta à análise de Philippe Lejeune (1996, p.31)
mesmo um procedimento tão antigo pode ter renovado sobre a autobiografia que, em seu conhecido livro sobre o
seu estatuto uma vez consideradas as circunstâncias de seu pacto autobiográfico, assim se manifestava:
(re)aparecimento. Assim, entendemos que a incorporação
do autobiográfico é uma estratégia para eludir a própria Le héros d’un roman déclaré comme tal, peut-il avoir le
autobiografia e tornar híbridas as fronteiras entre o real e même nom que l’auteur? Rien n’empêcherait la chose d’exister,
o ficcional, colocando no centro das discussões novamen- et c’est peut-être une contradiction interne dont on pourrait tirer
quelques effets. Mais, dans la pratique, aucun exemple ne se
te a possibilidade do retorno do autor, não mais como ins- 2
“O herói do romance, uma présent à l’esprit d’une telle recherche.2
tância capaz de controlar o dito, mas como referência fun- vez declarado como tal, pode
damental para performar a própria imagem de si. ter o mesmo nome do autor
Sentindo-se desafiado, Doubrovski escreve Fils (1977),
Nesse sentido, a problemática principal que ronda os do romance? Nada impediria
tal fato, e talvez fosse uma romance em que faz coincidir herói e autor do romance
posts diários dos blogs e as narrativas dos autores que ga- contradição interna da qual (“La personnalité et l’existence en question ici sont les miennes,
rantiram publicação em papel depois que se lançaram na se poderia tirar alguns efeitos.
et celles des personnes qui partagent ma vie”,3 citado por
rede dramatizando suas experiências cotidianas não está Mas, na prática, nenhum
exemplo se apresenta a essa Laouyen, s. d.), lançando mão da estratégia autoficcional
calcada na garantia de veracidade, mas em um protocolo pesquisa.” Todas as traduções baseada na construção polifônica de vozes e nas diferen-
de desaparecimento (“Como faremos para desaparecer?”, deste ensaio são minhas, salvo
tes perspectivas narrativas.
indicação contrária.
perguntava Blanchot). Um jogo de esconde-esconde que O conceito de autoficção, tal como entendido por
alude a uma visibilidade enganadora investindo na impos- 3 Doubrovski (apud Laouyen, s. d.), inscreve-se na fenda aber-
“A personalidade e a
sibilidade de confirmar se tudo (ou quase nada?), afinal, é existência em questão são as ta pela constatação de que todo contar de si, reminiscência
verdade ou não. A figura do autor (eu que escreve ou ego minhas, e a de pessoas que
ou não, é ficcionalizante, e que todo desejo de ser sincero é
compartilham minha vida.”
scriptor?) é ao mesmo tempo evocada como referente do um trompe-oeil: “Je me manque tout au long... de moi”.4
texto e ao mesmo tempo borrada pela indecidibilidade que 4
“eu me falto ao longo... de Bem próximo da estratégia adotada por Silviano San-
inquieta o leitor chamado a participar de um pacto em mim”. tiago (2004; 2005) em O falso mentiroso e Histórias mal
que as regras não estão dadas de antemão.
contadas que, empregando o procedimento de embaralhar
as fronteiras entre vida e ficção, faz o narrador jogar com
Autoficção: um conceito esquizofrênico? as margens do gênero e encenar um balanço de vida, mal-
Partindo do pressuposto de que é possível ler também contando histórias cultivadas pela memória inquietante
nos blogs um investimento na figuração de si que se apro- de uma intrincada rede de leituras, especialmente de nos-
pria antropofagicamente da exacerbada auto-exposição da sos escritores modernistas, desaparecendo como referente
intimidade que está no “espírito do tempo”, de ambiente autoral do texto, para converter-se em “parasita literário
virtuais ou não, como uma forma de driblar a espetacu- de si mesmo” (para falarmos como outro autoficcionista, o
larização do eu e a visibilidade transparente, acreditamos espanhol Enrique Vila-Matas).
que é possível pensar a autoficção como uma estratégia A autoficção é entendida, então, como um apagamen-
representacional possível exercitada pelos blogueiros em to do eu biográfico, capaz de constituir-se apenas nos des-
seus posts e nos livros publicados, como um dispositivo que lizamentos de seu próprio esforço por contar-se como um
responde ao contexto contemporâneo. eu, por meio da experiência de produzir-se textualmente.
O termo autoficção foi empregado pelo francês Serge Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios do
Doubrovski para nomear um exercício ficcional criado semi-oculto com as sinceridades forjadas que escreve.
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Contestando, no entanto, o procedimento de utiliza- vez que o conceito parece se aproveitar da desestabilização
ção do termo por Doubrovski, Vincent Colonna (apud empreendida pela própria autobiografia ao forçar as fron-
Laouyen, s. d.) investe no conceito, entendendo-o como teiras do literário para dar uma volta a mais no parafuso,
uma estratégia representacional da literatura contem- embaralhando ainda mais a questão: “o que interessa na
porânea: “Une autofiction est une ouvre littéraire par laquelle autoficção, não é a relação do texto com a vida do autor, e
un écrivain s’invente une personnalité et une existence, tout sim a do texto como forma de criação de um ‘mito do es-
en conservant son identité réelle (son véritable nom)”5 5
“Uma autoficção é uma obra critor’. A autoficção é uma máquina produtora de mitos
(grifos meus). literária na qual um escritor
se inventa uma personalidade
do escritor” (Klinger, 2006).
A sutil diferença em relação ao entendimento do ter- e uma existência, conservando Insistindo-se, contudo, na tentativa de caracteriza-
mo por Doubrovski vem da permanência defendida por sua identidade real (seu ção do termo, que diferença fundamental haveria, então,
verdadeiro nome).”
Colonna da figura do escritor-autor como elemento de re- entre a estratégia da autoficção e a autobiografia como
ferência fundamental ao jogo autoficcional. O que cla- desmascaramento?
ramente contraria a posição do autor de Fils uma vez que
esse parece defender o esvaziamento ou a impossibilidade Nous présupposons que la vie produit l’autobiographie
do lugar autoral que é preenchido pelo trabalho com o comme un acte produit des conséquences, mais ne pouvons-nous
significante. Em síntese, todo valor à écriture, lema que pás suggérer, avec la même justice, que le projet autobiographique
poderia ser adotado por boa parte das tendências teóricas puisse lui-même produire et déterminer la vie et que, quoique
do século XX. fasse l’écrivain, il soit en fait gouverné par les exigences techniques
A reapropriação que Colonna faz do conceito tal como de l’autoportrait, et déterminé ainsi, de part en part, par les
é entendido por Doubrovski parece ir ao encontro do que
7
“Nós pressupomos que a ressources de son medium?7 (De Man, 1979, p.98)
vida produz a autobiografia
afirma Puertas Moya (2003, p.586): como um ato produz
conseqüências, mas não Aqui, arriscaríamos a dizer que a instabilidade mesma
Derrida e De Man han llegado a poner en duda [...] la poderíamos sugerir com a do desmascaramento já provado pela autobiografia é des-
existencia de una referencialidad concreta del texto autobiogra- mesma justiça, que o projeto
dobrada na reconciliação com a figura do autor que supe-
autobiográfico possa ele
fico con respecto al yo, pero admiten que esta ilusión es un efecto mesmo produzir e determinar a rou o paradigma da morte: do sujeito, do autor. Nesse sen-
estético que no invalida [...] una literatura referencial del yo vida e, o que quer que o tido, se a desconstrução da ilusão referencial foi necessária,
existencial, asumido com mayor o menor nitidez, por el autor escritor faça, ele é governado
agora podemos fazer as pazes não para restabelecer qual-
pelas exigências técnicas do
de la escritura; frente a la literatura fictícia, en la que el yo, sin 6
“Derrida e De Man colocam auto-retrato e determinado quer centro orientador, mas para investir no jogo de con-
referente específico no es asumido existencialmente por nadie em dúvida [...] a existência de dessa forma pelos recursos de
tinuar representando.
en concreto.6 uma referencialidade concreta seu medium?”
do texto autobiográfico com Para rebater a negatividade de Genette, diríamos que
Apesar, porém, da popularidade que parece ganhar respeito ao eu, mas suas o que é realmente novidade na autoficção é a vontade cons-
posições não parecem
em muitas ficções contemporâneas, o conceito enfrenta suficientes para invalidar [...]
ciente, estrategicamente teatralizada nos textos, de jogar
resistências. Para Gerard Genette, ele não é nem mesmo uma literatura referencial do com a multiplicidade das identidades autorais, os mitos do
eu existencial, assumido, com
inovador, já que é um dos mais básicos procedimentos autor, e ainda que essa estratégia esteja referendada pela
maior ou menor nitidez, pelo
ficcionais o fato de o autor fingir sua entrada na ficção. autor da escritura frente à instabilidade de constituição de um “eu”, é preciso que ela
Assim, a postura de negação radical de Genette em literatura fictícia na qual o eu esteja calcada em uma referencialidade pragmática, exte-
sem referente específico, não é
relação ao termo é sintomática de uma dificuldade de ca- assumido existencialmente por
rior ao texto, uma figura do autor, claro, ele mesmo tam-
racterizar teoricamente a autoficção como um gênero, uma ninguém concretamente.” bém conscientemente construído.
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Assim, a estratégia básica da autoficção é o equilíbrio uma figuração entre outras. A ilusão referencial é, e ao
precário de um hibridismo entre o ficcional e o auto- mesmo tempo não é, correlata à construção da figura que
referencial, um entre-lugar indecidível que bagunça o ho- ganha estatuto ficcional paradoxalmente por meio da pro-
rizonte de expectativa do leitor: dutiva onipresença impotente da referência: “Quando
conto alguma coisa do meu dia-a-dia pode desconfiar que
Le lecteur se trouve face à une assertion dont la véracité 10
Cecília Gianetti nasceu é invenção” (Cecília Gianetti, 2007-04-29, blog).10
reste indécidable. Devant cette categorie textuelle, on doit prendre no Rio de Janeiro, em 1976. Assim, o autor assume um duplo estatuto contraditó-
en compte deux injonctions antinomiques: lire le texte comme É jornalista. Tem contos
rio: um lugar vazio impossível de garantir a veracidade
publicados em antologias e
une fiction et comme une autobiographie. Pourtant la synthèse referencial e simultaneamente um intruso que se assume
participa do projeto amores
entre ses deux registres peut paraître impossible, car comment expressos. interlocutor de si, colocando-se abertamente na posição
distinguer le référentiel de l’imaginaire, le littéral du métapho-
de autor, fingindo-se outros: “Aos poucos vou me largan-
rique?8 (Kouroupakis & Werli, s. d.) 8
“O leitor encontra-se
diante de uma asserção cuja do por aí. Os pedaços soltos pelos lugares mais imprová-
Se concordamos, então, que autobiografia e ficção veracidade é indecidível. veis. Alguns servem para encher papel, viram palavras”
Diante dessa categoria 11
(João Paulo Cuenca, 2003-10, blog).11
João Paulo Cuenca nasceu
compartilham fronteiras discursivas e que o elemento de textual, devem-se levar em
no Rio de Janeiro, em 1978.
interseção é o “eu”, diríamos que a autoficção atua com conta duas injunções
Começou a publicar ficção
base na expectativa de representação de um “eu” sempre antinômicas: ler o texto como
no blog. Co-autor de Parati O si mesmo de uma invenção de outros
uma ficção e como uma
para mim (Planeta, 2003)
cambiante em que as próprias fronteiras parecem rasuradas. autobiografia. No entanto,
e autor de Corpo presente “Então agarra o que você tem mais próximo: fale
Ao invés da relativa estabilidade “imagens ficcionais se a síntese entre esses dois
(2003). Também participa
registros pode parecer de si mesmo. E ao escrever sobre si mesmo comece
naturalizam em nossa vivência do cotidiano e, em troca, impossível, pois como se
do projeto amores expressos,
viajando para Tóquio. a se ver como se fosse outro, trate-se como se fosse
experiências cotidianas se metamorfoseiam em manifes- haveria de distinguir o
outro: afaste-se de si mesmo conforme se aproxima
tações ficcionais” (Costa Lima, 1986, p.300), a autoficção referencial do imaginário,
o literal do metafórico?” de si mesmo.”
desestabiliza ainda mais a já precária condição desse “eu”,
(Vila-Matas, 2005, p.145)
apresentando-se como uma escrita de si na qual o pacto
mimético se metamorfoseia ficcionalmente e a invenção No ensaio “O paradoxo e a mimese”, o comentário
de si se naturaliza como vivência cotidiana. O verdadeiro que Lacoue-Labarthe (2000, p.162) faz do texto de Diderot,
eu é duplamente considerado uma ficção, não há um có- Paradoxo sobre o comediante, coaduna-se ao dispositivo
digo hermenêutico que oriente a leitura, o sentido vacila esquizofrênico que a autoficção faz disparar: “A apocrifia
justamente pela anfibologia do entre-lugar (Kouroupakis 9 do autor é aqui mais temível ainda do que aquela que Platão
Algumas das auto-
& Werli, s. d.): “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer apresentações de Clarah temia”. A impessoalização do poeta é um dos motivos apre-
semelhança com a realidade não terá sido mera coinci- Averbuck: “Nariz de pugilista, sentados pelo filósofo grego para condenar a mimese por
coração de moça e cabeça
dência” (Averbuck, 2002, p.79).9 provocar uma decepção no espectador, que seria, dessa for-
dura” (no blog adiós lounge).
A diferença é uma sutileza em relação à famosa afir- “Decidiu nunca mais trabalhar ma, enganado pela performance: “Quando profere um dis-
mação de Barthes (2003) em seu exercício autobiográfico: para passar o resto de sua vida curso como se fosse outra pessoa, acaso não diremos que
em casa, escrevendo como
“tudo isto deve ser considerado como dito por um perso- uma maluca e tentando
ele se assemelha o mais possível o seu estilo ao da pessoa
nagem de romance”. Aqui, tudo é ficção. Mas a encena- aprender a tocar direito... cuja fala enunciou?” (Platão, 1996, p.117).
ção do eu levada a cabo na autoficção necessita do subs- contenta-se em morar com Sendo o poeta um verdadeiro hypocrités, um ator da
seus três gatos na rua mais
trato referencial, ainda que ele próprio seja um ato glam de São Paulo” (na orelha
mimese, sua impropriedade residiria em “não ser nada por
performático configurado no texto. Assim, o eu de papel é de Máquina de pinball). si mesmo, nada ter de próprio, a não ser uma ‘igual apti-
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dão para todo tipo de papéis’” (Lacoue-Labarthe, 2000, Delacroix (claro, tratava-se de anônimos aos quais o (fal-
p.170). O dispositivo autoficcional se configuraria, então, so) biógrafo batizou com o nome de seus personagens),
como uma dobra a mais dessa decepção, uma vez que a além de trechos da correspondência de Goethe com
intrusão do eu referencial (O autor? Quem fala?) coloca a Eckermann, do diário íntimo do próprio Delacroix aos quais
autenticidade na clave da ficção: eu sou outros, mas os foram acrescidas devidamente, aproveitando-se as passa-
outros são um eu que, em vez de exigir a suspensão da gens reais, menções à existência de Marbot.
descrença, aponta sempre para um incompatível pacto com Embora, meses depois, o próprio Hildesheimer tenha
um impossível verossímil. se encarregado de lamentar a leitura equivocada, fez ques-
Todo o esforço pela caracterização de um conceito tão de eximir-se da culpa por qualquer decepção e enga-
fugidio não seria, porém, vão, uma vez que sua definição no proporcionados aos leitores, ainda que admitisse o ca-
parece se tornar indistinguível da própria definição de au- ráter escondido e frágil das marcas ficcionais (o “falso
tobiografia (“o mesmo em sua mesmidade, é ele mesmo biógrafo” alega que bastaria uma consulta a quaisquer das
um outro e, por sua vez, não se pode dizer ‘ele mesmo’, e referências do index que acompanhava o livro para que o
assim por diante até o infinito” (ibidem, p.172)) e em últi- leitor pudesse se certificar da construção de Marbot como
ma instância do estatuto da ficção como um todo? persona fictícia).
Jean-Marie Schaeffer (1999), em seu livro Pourquoi la No entendimento de Schaeffer (1999, p.135), no en-
fiction?, comenta o engano a que foram conduzidos os lei- tanto, o argumento é frágil, uma vez que os índices maci-
tores de Marbot. Uma biografia, publicado por Wolfgang ços do texto apontam para a “maximização do componen-
Hildesheimer. Apesar de o livro insistir na informação para- te mimético”, o que induziria o leitor ao erro e faria fracassar
textual, agregando-a ao título, de que se tratava de um a ficção: “Alors, Marbot est-il une fiction ou un leurre? Ou
estudo biográfico de Marbot, o personagem nunca existiu, bien s’agit-il d’une fiction et d’un leurre? [...] Ou d’un leurre
tratava-se de uma biografia imaginária, um texto ficcional. 12
“Então, Marbot é uma quoique l’intention de l’auteur ait été de composer une fiction?”12
A confusão parece estimulada pela publicação, alguns ficção ou um engodo? Ou (ibidem, p.136).
então, trata-se de uma ficção
anos antes, de outra biografia publicada por Hildesheimer, e de um engodo? Ou de um O interesse de Schaeffer no “caso Marbot” está fun-
dessa vez verdadeira, sobre Mozart. Além disso, o interes- engodo ainda que a intenção damentado em seu esforço por caracterizar a própria con-
do autor tenha sido compor
se pela vida de Marbot justificava-se, pois significava o dição de existência do ficcional. Seu pressuposto é o de
uma ficção?”
resgate de uma figura histórica que havia compartilhado o que a ficção precisa ser “uma fantasia lúdica compartilha-
universo intelectual efervescente e as companhias de da” (“feintise ludique partagée”) completando-se, portanto,
Goethe, Byron, Shelley e muitos outros artistas do início na relação intersubjetiva que estabelece com seu leitor.
do século XIX, apimentada pela suposição de que o ilustre Por isso, o crítico francês aposta na falha de Hildesheimer,
desconhecido teria mantido uma relação incestuosa com já que o leitor não é suficientemente orientado a compar-
a mãe, o que poderia ter motivado seu desaparecimento tilhar da fantasia porque é bombardeado por informações
súbito. A suspeita do suicídio e a propensão ao pessimis- que, alocadas verossimilmente ao longo do texto, o desviam
mo são atribuídas à sua amizade com Schopenhauer. da ficção, induzindo-o ao erro.
A construção do personagem é cuidadosamente cons- Dessa forma, Schaeffer (1999, p.138) defende que
truída com dados referenciais: algumas reproduções de é necessária a “estipulação explícita da ficcionalidade”, e
quadros acompanham o texto e indiciam o retrato não Hildesheimer teria violado todas as condições capazes de
apenas de Marbot, mas também de seus pais pintados por garantir um pacto: o contexto autorial (o fato de já ter se
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nos perguntar como determinado discurso é reconhecido Sem dúvida, a autoficção é um conceito controverso
como literário, chegaremos mais perto de compreender e ambíguo, mas para quem apostava no declínio das escri-
porque a autoficcção parece criar para si própria uma in- tas de si a virtualidade dos blogs vem lançar o desafio de
definição: as fronteiras entre o biográfico e o ficcional apa- novos dilemas capazes de falar de outros processos de cons-
recem aqui mescladas no seu limite, a desarticulação da trução narrativa encenando o texto e as próprias subjeti-
mimese formal (um diário? Então, é tudo verdade? Ou fic- vidades: “Ainda não tenho coragem para falar de mim – e
ção, e tudo passa a ser inventado?) força os limites do ficcio- quem tem?... Preciso de alguém que faça isso por mim”
nal, pondo-o em xeque (isso é literatura?) e violentando o (Campos, 2000, p.70).
horizonte de expectativas do leitor a fim de proposital-
mente provocar o engodo que instaura a ficção.
Referências
A autoficção trabalharia assim para aprofundar a des-
confiança platônica sobre a ficção e para desestabilizar o AVERBUCK, Clarah. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad Edi-
argumento aristotélico da impossibilidade de contamina- tora do Brasil, 2002.
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mesmo a de parasitar, contaminar, conspurcar a ficção com ENCONTRO REGIONAL DA ABRALIC, “Sentidos dos luga-
a hibridização de seus procedimentos de atuação: res”, 2005. Rio de Janeiro, 2005. p.88-91.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla
Uma pessoa está desde semana passada tentando es-
Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
crever algo e nada sai. Nem burilar, essa arte esquecida,
essa pessoa consegue. Essa pessoa queria ir para outra pes- CAMPOS, Simone. No shopping. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
soa, como quem compra um bilhete para a Espanha, entrar COSTA LIMA, Luiz. Júbilos e misérias do pequeno eu. In: .
em outra pessoa, ficar uns dias lá vendo tudo que vê e sen- Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
te essa outra pessoa, de fora e de dentro ao mesmo tempo. 1986.
Nesse dia essa pessoa escreveria como ninguém. Porque . A questão dos gêneros. In: . (Org.) Teoria da literatura
essa pessoa está cheia de seus assuntinhos de sempre, seus em suas fontes. Sel. Introd. e rev. técnica Luiz Costa Lima. Rio de
temas recorrentes e tem saudades de se impessoalizar. Se Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v.1
ver num papel, principalmente se ver em outra pessoa.
DE MAN, Paul. Autobiography as de-facement. In: . The
(Mara Coradello, no blog)
rhetoric of romanticism. New York: Columbia University, 1979.
Assim, embora para a argumentação de Schaeffer seja DOUBROVSKI, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.
imprescindível que a ficção não se constitua como mero FATORELLI, Antonio. Entre o analógico e o digital. In: FATO-
engodo, uma vez que isso arriscaria a ficção ao limite da RELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. (Org.) Limiares da imagem:
fantasia, arriscaríamo-nos a dizer que a autoficção inscre- tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro:
ve-se no território do próprio engano (leurre), indiciado Mauad X, 2006.
não apenas no próprio hibridismo formal da uma intimi- JAGUARIBE, Beatriz. Realismo sujo e experiência autobiográfica.
dade evadida, mas também na postura desnorteada do lei- In: FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda. (Org.) Limiares da
tor que não sabe a quem ou a que confiar sua competência imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de
de leitura, sendo justamente esse precário equilíbrio que a Janeiro: Mauad X, 2006.
legitima como ficção, cujo “estatuto pragmático é radical- KLINGER, Diana. Escritas de si e escritas do outro. Autoficcção e
mente instável” (Schaeffer, 1999, p.144). etnografia na literatura latino-americana contemporânea. Rio de
48 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008 Autoficção e literatura contemporânea 49
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