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Sobre a "janela quebrada" e alguns outros contos sobre Segurança vindos da

américa
Autor: Loic Wacquant

Revista Brasileira de Ciências Criminais

Vol. 46/2004 - p. 228 – 252

Primeira prova disso é que a baixa da violência criminal em Nova York foi declarada três
anos antes de Giuliani aceder ao poder, no fim de 1993, e ela seguiu a mesma tendência
depois que ele se instalou na Gracie Mansion. E mais: a taxa de homicídios cometidos
sem arma de fogo nessa cidade diminui lentamente, mas com regularidade, desde 1979;
apenas os homicídios por meio de balas diminuíram fortemente desde 1990, após terem
alçado vôo entre 1985 e 1990, em razão da difusão do comércio de crack; e nenhuma
dessas duas curvas apresenta particular inflexão sob o governo de Giuliani. Segunda
prova: o refluxo da criminalidade violenta é igualmente nítido nas cidades que não
aplicam a política nova-iorquina de "tolerância zero", incluindo aquelas que optaram por
uma aproximação diametralmente oposta, como Boston, San Francisco ou San Diego -
em que a polícia, dita "de resolução de problemas", se ocupa em estabelecer relações
contínuas com os moradores, preferindo-se prevenir os atentados a tratá-los ex post pela
excessiva repressão penal. (p. 4)

Terceira prova: Nova York já havia colocado em funcionamento, entre 1984-87, uma
política de conservação da ordem exigente e agressiva, similar à praticada após 1993, sob
o nome de Operation Pressure Point, que se fez seguir por um aumento pronunciado de
violências criminais e notavelmente de homicídios. Daí resulta que, contrariamente às
afirmações dos promotores e importadores do "modelo Bratton", a estratégia policial
adotada por Nova York durante a década de 90 não é nem necessária nem suficiente para
explicar a queda da criminalidade nessa cidade. (p. 5)

Seis fatores, todos independentes da atividade da polícia e da justiça, combinaram-se para


reduzir fortemente a incidência dos ataques violentos nas metrópoles dos Estados Unidos.
Inicialmente, o florescente crescimento econômico, sem precedentes na história nacional
por sua amplitude e duração, deu trabalho e trouxe renda a milhões de jovens até então
condenados à inatividade ou ao business ilegal, inclusive nos guetos e barrios onde o
desemprego recuou nitidamente - e nem por isso ceifou a miséria pandêmica, pois a
maioria desses empregos permanecem precários e subpagos: a taxa oficial de pobreza em
Nova York permaneceu inalterada, em 20%, durante toda a década de 90. Em seguida, os
efetivos de classes jovens (de 18 a 24 anos, principalmente) foram diminuídos, o que se
traduziu quase mecanicamente em uma baixa da criminalidade de rua, pois são essas
faixas etárias, sempre e por toda parte, as mais propensas às infrações violentas; esse fator
demográfico dá conta, por si só, da décima parte, pelo menos, da baixa dos atentados
contra pessoas no período considerado. O terceiro fator é a dupla transformação da
economia da droga: de início, o comércio maciço do crack nos bairros deserdados se
estruturou e se estabilizou, ainda que o recurso à violência como instrumento de regulação
da competição entre gangues rivais tenha recuado bruscamente; em seguida, o crack
perdeu os favores dos consumidores, que se voltaram para outros estupefacientes, como
a marijuana (consumida sob a forma de cigarro chamado blunt), a heroína e as
metanfetaminas, cujo tráfico gera menos extorsões, por ser produto de revendedores no
varejo, operando antes no seio de redes de interconhecimento do que pelo viés de trocas
anônimas em lugares públicos. (p. 5)

Assim, desde 1993, toda pessoa surpreendida a mendigar ou divagar na cidade, a colocar
seu auto-rádio em volume demasiado alto, a sujar ou pichar a via pública, ou ainda a
transgredir uma simples regra municipal, deve ser presa e imediatamente levada, mais
uma vez, para trás das grades: "Acabaram os simples boletins de ocorrência nas
delegacias. Se você urinar na rua, será levado à prisão. Estamos decididos a reparar as
'janelas quebradas' [i.e., as mínimas marcas exteriores de desordem] e a impedir quem
quer que seja de quebrá-las novamente". Tal estratégia, afirma seu chefe William Bratton,
"funciona na América" e funcionaria do mesmo modo "em qualquer cidade do mundo".
(p. 6)

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