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Construção – Chico Buarque Análise da letra da música

CONSTRUÇÃO
Amou daquela vez como se fosse a última
Amou daquela vez como se fosse o último
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a única
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Sentou pra descansar como se fosse príncipe
Sentou pra descansar como se fosse pássaro
E flutuou no ar como se fosse pássaro
E flutuou no ar como se fosse sábado
E flutuou no ar como se fosse príncipe
E acabou no chão feito um pacote flácido
E acabou no chão feito um pacote tímido
E acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Morreu na contramão atrapalhando o público
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Este poema, além de sua extraordinária construção artística, reflete uma face trágica do homem, visualizado num
momento de vida (em “construção”). Mas, ao construir, o homem é destruído por todo um sistema desumano, por
toda uma concepção egoísta. Passa por um processo de coisificação, desde a primeira estrofe:

Amou daquela vez como se fosse máquina


O que se confirma pelo resultado desse processo:
E acabou no chão feito um pacote flácido
E acabou no chão feito um pacote tímido
E acabou no chão feito um pacote bêbado

E é reafirmado na última estrofe, em que o ser humano é visto, diante da coletividade, de forma irônica, já que o
sábado é um dia convencionalmente feito para o lazer. E esse homem, que nem nome tem, tão coisa que é, tão
nada, não poderia ficar impune. Sua desgraça foi morrer num sábado, na contramão, atrapalhando a vida, os
divertimentos. Contudo, esse anônimo atrapalhou a sociedade, perturbou o sistema, destruiu o instituído,
desestabeleceu o estabelecido, desfez o que estava feito, desarmou o armado. Por isso mesmo, Construção
“desencanta o encantado, desmitifica o mito, ordena o caótico”.

O poeta questiona insensatez da sociedade, seu desdém pelo próximo, seu desinteresse comunitário. E, ratificando a
castração dos valores essenciais do homem, durante essa triste vida (“construção”), o amor é praticamente anulado,
enquanto impossibilidade de concretização:

Amou daquela vez como se fosse a última


Amou daquela vez como se fosse o último

Chico atesta a desumanização do homem: Amou daquela vez como se fosse máquina
O fim demonstra a anulação total. O resultado de tudo é a inutilidade:
Morreu/Morreu/Morreu

Chico Buarque mostra a indiferença, a opressão exercida sobre os mais humildes, redução, cada vez maior, da
individualidade humana. Registra o homem esquecido, perdido em seu anonimato.
Por meio de grande intensidade rítmica, com o final dos versos em proparoxítonas e trissílabas (recurso raro em
língua portuguesa), numa cadência coerente ao tema (a repetição de palavras e frases reflete a própria repetição
rotineira da vida do anônimo), o texto articula os contrários, sem suprimi-los, dado característico da imagem poética.
A tensão entre humano (flácidas, flácido, tímido e bêbado) e não-humano (paredes, pacote) retrata a densidade
poética e a visão social do autor.
O uso do pra não é só marca de oralidade mas faz-se necessário o uso do pra no sentido de manter a musicalidade, a
rima.

O homem (“bêbado, “tímido” etc.) é coisificado (“paredes”, “pacote” etc.), ratificando a crítica política e social do
texto.

A consciência social de Chico Buarque de Holanda em Construção, como em toda a sua obra, é evidente. Sabe o
poeta que a poesia é o seu instrumento, o seu veículo de denúncia, de crítica, de representação de uma realidade
desumana e injusta, pois é preciso que o homem não seja “máquina” nem “pacote”. Mas que signifique. Que
também possa exercer sua liberdade. Assim deve ser visto pela sociedade. Chico aponta para uma estrutura social
que não gostaria que existisse para uma coisificação do homem que não deve persistir. Em Construção, o sujeito é
generalizado. O homem é visto, em relação à sociedade, de maneira trágica, oprimido, marcado pela inutilidade. Ele
constrói, mas é destruído.

http://www.filologia.org.br/ixcnlf/4/05.…
ANÁLISE ESTILÍSTICAS DE CANÇÕES DA MPB

Prof. Jerônimo-Fevereiro 2013

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