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Ginzburg Entrevista PDF
Ginzburg Entrevista PDF
DEZEMBRO 2010
JANEIRO 2011
DISTRIBUIÇÃO
GRATUITA
Carlo Ginzburg
Ele se transformou em um clássico da historiografia do século 20
e influenciou o Vaticano na abertura dos arquivos da inquisição
SOBRESCRITOS
Dizem por aí que as fronteiras andam se diluindo e que ficou Quinze anos
fácil, muito fácil estabelecer comunicação com qualquer Sérgio Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
pessoa. Bastaria um pequeno artefato, mais uma boa conexão história
e pronto — desfez-se a distância. Isso é verdade, mas o apelo Muito além de queijos e vermes
da conversa frente a frente segue irresistível quando se trata de Rodrigo Bonaldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
uma entrevista. Testemunhar sem filtros ou mediações a fala do
história • entrevista
interlocutor eleva o diálogo a uma potência maior e singular.
Carlo Ginzburg
Sendo assim, não se pode deixar passar uma boa oportunidade.
Rodrigo Bonaldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Para esta edição da NORTE, fomos atrás não de uma boa, mas de páginas do rascunho • entrevista
Colaboraram nesta edição: Atilio Bergamini, Augusto Paim, Delfin, Flávio Ilha, páginas filosóficas
Eduardo Wolf, Fabio Silvestre Cardoso, Felipe Pimentel, Gilmar Fraga, Multiculturalismo, relativismo e coerência (2)
Leandro Pizoni, Leonardo Bomfim, Moa, Pedro Gonzaga, Raul Krebs, Eduardo Wolf e Felipe Pimentel . . . . . . . . . . . . . 40
Reges Schwaab, Ricardo Araújo, Rodrigo Bonaldo, Roberto Barberena Graña,
Rogério Pereira e Sérgio Rodrigues. escritório gráfico
Impressão: Edelbra Jean-Paul Sartre por Gilmar Fraga . . . . . . . . . . . 42
Imagem da capa: Raul Krebs/Estúdio Mutante (www.estudiomutante.com.br)
ISSN: 1982-212X
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curtas
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Blog debate criação de capas de livros
Samir Machado de Machado fica intrigado.
Desconhece como as pessoas descobrem e
se interessam pelo SobreCapas (sobrecapas.
blogspot.com), página que mantém na
internet para apresentar capas de livros
e discutir sobre os projetos gráficos. E o
interesse vem aumentando. Com pouco
mais de um ano (o primeiro post é de 13
de outubro de 2009), o blog recebe uma
média de 70 visitas por dia.
O projeto surgiu despretensioso, como criação, acredita que não é uma boa capa Embora Samir
que venda um livro. “A função é fazer com afirme que não
forma de arquivar informações. “Toda hora
é a capa que
pesquiso nos sites das editoras exemplos que o leitor se interesse pelo livro e o pegue vende um livro,
que salvo e posto no blog para ter como na mão. Se gostar, ele lê a contracapa, se a a criação de
Marcelo Martinez
referência”, revela Samir, que trabalha com contracapa for boa, passa para a orelha, e para O rei do
design de livros há cerca de 10 anos, é um se a orelha continuar interessante, fecha o inverno foi
determinante
dos editores da Não Editora e também ciclo e compra o livro”, projeta Samir. Mas para que
um dos responsáveis pela concepção dos ele mesmo é a exceção para seu postulado comprasse a obra
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sobrescritos • por sérgio rodrigues
Quinze anos
Começou a escrever porque tinha quinze anos, porque ninguém
parecia querê-lo por perto e porque o que ele mais desejava na
vida era reencenar para o mundo o velho número do patinho que
se revela cisne no final. Cinquenta e cinco anos depois, pegando
com a faca uma pasta rosada extraordinariamente suspeita, es-
GILMAR FRAGA
palhando-a numa torrada quadrada de pacote e jogando tudo na
boca de poucos dentes verdadeiros remanescentes, o escritor se
lembrou de sua juventude, do princípio daquela ciranda maluca
de ler, escrever, ser lido, ler, escrever de novo…
ros grandes. Despejou sobre a pequena multidão um discurso
Vinham chamá-lo para cantar parabéns, uma das três coisas que desinspirado, soltou dois palavrões, arrancou risadas, agradeceu
mais abominava no mundo; as outras eram dentista e — o quê mes- e foi se refugiar num canto do sofá, só ele e seu copo de uísque.
mo? Tentou não parecer um perfeito débil-mental enquanto ento- Ninguém tentou impedi-lo. Escritores, socialites, editores, canto-
avam aquelas palavras hediondas, às quais sua idade acrescentava ras, atrizes, bicões de colorações variadas, jornalistas, prostitutas,
agora o pecado do cinismo: muitos anos de vida, essa era muito boa. traficantes e parlamentares entretinham-se uns aos outros no sa-
lão repleto de vozes e música.
Aos quinze anos, não era ainda sequer um escritor: ridículo ter
saudade daquilo. E, no entanto, havia alguma coisa ali, no fundo O escritor fez girar no copo os cubos de gelo. Parecia-lhe tão
do papel em branco, na relação da palavra com a coisa ou dele distante aquele desejo inicial, a fagulha do anseio adolescente
mesmo com a coisa, sabia lá ele, mas alguma coisa havia ali, sim, até hoje insatisfeito; tão distante, e mesmo assim tão dolorido.
de belo e bom que se perdera por inteiro e que, voltando-lhe à Olhando para a multidão matraqueante o escritor pensou, ainda
lembrança sem mais nem menos, enquanto lhe cantavam para- não me querem por perto. Nunca quererão.
béns-pra-você, fez o escritor sentir um calafrio.
Deu um gole largo. Largo demais: um pouco de uísque lhe escor-
Como sempre gostara de uma metáfora, rebuscou: feito o arrepio reu pelo queixo. Nem eu tampouco as quero, pensou, e foi afun-
na alma sentido por quem, caminhando às cegas na noite fecha- dando no sofá. Suava frio. Foi quando lhe ocorreu, com nitidez
da, descobre de repente ter tangenciado um abismo. tipográfica, o seguinte pensamento:
Agora pediam discurso, dis-cur-so — aquele corinho ritmado. ESCREVER É TENTAR IMPRESSIONAR QUEM NÃO MERECE.
Ele sabia ser impossível escapar. Setenta anos era uma marca
grandiosa demais. Tinha oito romances nas costas, dos quais Depois disso, não soube de mais nada até que o calor o acordou
pelo menos cinco eram bastante dignos e dois, isso era (quase) em sua cama ao meio-dia, ressaqueado como há muito não se
consenso, autênticos clássicos contemporâneos. O que fazia dele, sentia, e até morrer, um ano e meio depois, de ataque cardíaco, o
por qualquer critério crítico que se empregasse, um dos cachor- escritor nunca mais pensou em seus quinze anos. §
Sobrescritos em livro
O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues começou a publicar
os contos a que deu o nome de “Sobrescritos” no seu blog
Todoprosa (www.todoprosa.com.br). Na NORTE, aparecem
desde a primeira edição da revista, em novembro de 2007.
Histórias do universo literário repletas de ironia, algumas SOBRESCRITOS
delas foram reunidas no livro Sobrescritos — 40 histórias Sérgio Rodrigues
de escritores, excretores e outros insensatos, publicado pela
MARIA MENDES
Arquipélago Editorial
Arquipélago Editorial, que edita a NORTE. 152 páginas
R$ 25
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A Prefeitura de Porto Alegre, por intermédio da Secretaria Municipal da Cultura, convida
para a Noite do Livro, cerimônia de premiação do Açorianos de Literatura e Açorianos de
Criação Literária 2010.
Hora: 20h
Realização
história
MUITO ALÉM DE
QUEIJOS E VERMES
O historiador italiano Carlo Ginzburg desenvolveu um estilo que
envolve o leitor em uma trama minuciosa entre evidências, contradições,
possibilidades, leituras e versões acerca de um objeto
RODRIGO BONALDO
Cúria arquidiocesana de Udine, complexo arquitetônico do Sonhava em seguir os passos maternos, mas sua trajetória, após
Palácio Patriarcal, Friuli, norte da Itália, verão de 1962. Um ingressar na faculdade, levou-o ao estudo da história. Hoje,
jovem interessado nos processos inquisitoriais caminha por pelas benesses da distância, parece-lhe um tanto óbvio ter se
entre prédios tão antigos quanto os registros que procura. Era interessado, ainda na juventude, por estudar a feitiçaria — ou,
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DIVULGAÇÃO / COSAC NAIFY
Ginzburg acredita que a dimensão contextual e microscópica deve ser o princípio organizador da narração
o mundo tinha origem na putrefação”, registrou mais tarde. amplamente não canônica à origem católica do mundo:
Anotou o número do processo e o nome do acusado: chamava- Scandella sabia ler — Ginzburg consegue inclusive mapear os
se Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, um livros que teria lido — e havia interpretado os códigos da cultura
moleiro de vida camponesa que havia aprendido a ler. Hoje erudita de maneira perigosa. Bom exemplo de “circularidade
um velho conhecido dos historiadores, ele defendia, vezes sem cultural”, termo tomado de empréstimo a Mikhail Bakhtin.
conta perante comissões inquisitoriais, que o universo havia
sido criado de um colossal queijo podre e que Deus e os anjos A publicação de O queijo e os vermes em 1976 causou alvoroço
eram originariamente vermes que habitavam seu interior. Tudo entre os historiadores. O livro é hoje considerado um dos grandes
isso enquanto os juízes registravam-lhe a fala, os trejeitos, clássicos da historiografia do século 20. Suas fontes, seus métodos,
mesmo detalhes sutis como um leve rubor — minúcias seu recorte, enfim, seu personagem eram ao mesmo tempo tão
descritivas que fariam Ginzburg estudar, em curioso texto da originais quanto bem-vindos dentro de uma atmosfera intelectual
década de 1980, o Inquisidor como antropólogo. dominada pela “história das mentalidades” à la francesa. Mas seus
objetivos já eram outros. Aquela historiografia, essencialmente
Na análise do historiador, aqueles exóticos relatos revelavam interclassista, estudava o que havia de comum entre “César e o
o conflito entre duas culturas que ainda habitavam, em dias último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava
seiscentistas, espaços similares. A cultura dos inquisidores, suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”.
erudita, de saber clerical, tendia novamente a classificar as Não, O queijo e os vermes, carro-chefe do que ficou conhecido
ideias do moleiro segundo diagramas cultos de conhecimento, como “micro-história italiana”, não buscava as estruturas mentais
com seus tratados de demonologia, seus bestiários e processos comuns a uma época. Seu método era a “redução da escala de
anteriores. A cultura de Menocchio, popular, com raízes observação” (termo cunhado por seu colaborador Giovanni Levi),
em remotas tradições camponesas, dava uma interpretação o olhar individual sobre os personagens do passado, o estudo
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história
dos pormenores, da alteridade (e não da identificação) que se entre evidências, contradições, possibilidades, leituras e
estabelecera, certo dia, entre um inquisidor e um camponês. versões acerca de um objeto. O resultado é alcançado por meio
de uma erudição atordoante que vez por outra pode se mostrar
Mas aqueles episódios individuais ocorridos na Itália do século difícil de penetrar mesmo para o historiador de ofício. Mas esse
16 não deveriam ficar isolados de seu contexto. Longe disso. A procedimento possui um motivo sensato. É a consequência
relação entre a dimensão contextual e microscópica deve ser, instigante, isso sim, da adoção de um modelo epistemológico
para Ginzburg, o princípio organizador da narração. Sendo que o historiador italiano, em ousado artigo de 1979, propunha
assim, afirmava que as condições materiais que credenciaram o ser o dominante no âmbito das ciências humanas.
resgate de um personagem como Menocchio haviam se dado,
por um lado, pela invenção da imprensa — que tornou possível O “paradigma indiciário” foi na verdade uma proposta de
as mãos de um simples moleiro encontrar incunábulos de toda método investigativo centrado nos pormenores, nos resíduos,
sorte — e por outro, pela reforma protestante — que incentivou nos rastros mais tímidos, considerados reveladores. Ginzburg
a vigilância dos tribunais de inquisição, inundando a Europa via antecedentes desse método em certos críticos de arte
com uma perspectiva cristã diversa. oitocentistas, na literatura detetivesca de Arthur Conan Doyle,
O estilo desenvolvido por Ginzburg, já evidente em seus De 1981 a 1988, anos nos quais a editora Einaudi (Turim)
primeiros livros, envolve o leitor em uma trama minuciosa publicou uma revista de Microstorie, Carlo Ginzburg destacou-
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O relativismo epistemológico, de tendência cética, mostrou-se
moralmente problemático. Os debates negacionistas sobre o
holocausto formaram um ótimo exemplo. Ginzburg, admitindo
conservar “uma lembrança muito nítida da perseguição sofrida”,
não demorou a se posicionar. Sua resposta às teses cépticas
baseadas na redução da historiografia a sua dimensão literária, foi,
outrossim, elegante e em nada emocional. Um esboço preliminar
de suas inserções podem ser encontradas em contribuição ao livro
Probing the limist of representation, publicado no ano de 1992,
agregando diversos autores que tentavam responder se era possível
estabelecer uma representação objetiva de um evento traumático,
como o holocausto, baseada em documentos e testemunhas,
ou se cada interpretação era construída a partir da perspectiva
de seu narrador. Suas falas, sempre defendendo a relação entre
signos e referentes externos, concretos, atacavam o “pirronismo
pós-moderno” (em história, nunca é demais dizê-lo, “pós-
modernidade” tornou-se quase um sinônimo de linguistic-turn).
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história • entrevista: carlo ginzburg
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nele existe veladamente um perigo de perder algo crucial sobre
esse passado, que é a sua distância de nós — apenas porque ele
se torna facilmente disponível.
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história • entrevista: carlo ginzburg
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carta...” — e finalmente suspirei. Essa história é bizarra porque distinção entre verdade e falsidade cumpre papéis diferentes na
eu havia decidido mandar uma epístola informal, pensando memória. Porque, se formos pensar, mesmo uma memória falsa
que de outra maneira nunca receberia uma resposta. Nela eu pode ser extremamente dolorosa para suas vítimas.
escrevi “sou um judeu, um ateísta, um historiador”. O elemento
crucial, hoje percebo, foi sem dúvida “sou um judeu”, pois Certa vez o senhor declarou que o fato de toda comunicação
de fato os arquivos da inquisição iriam reabrir porque um ser imperfeita, mas mesmo assim possível, é o que realmente
historiador judeu estava pedindo para abri-los, cumprindo, o interessa e está na base do prazer que sente ao viajar. Em
nesse sentido, certo papel político. setembro de 2002, quando o senhor proferiu uma conferência
em Porto Alegre, percebi que muitos de meus colegas e
RAUL KREBS / ESTÚDIO MUTANTE
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PáGINAs DO RASCUNHO • entrevista: eduardo giannetti
www.rascunho.com.br
Algo a dizer
Eduardo Giannetti fala sobre as dificuldades para escrever sua primeira obra
ficcional, de sua paixão pelo conhecimento e do seu futuro como romancista
Eduardo Giannetti tem um propósito: sacudir o leitor, tirá-lo reunir de novo, depois de longos anos, para estudar e debater
de um estado de inércia e colocá-lo em movimento. Enfim, questões de filosofia moral. Vários leitores acreditaram que
inquietar, travar um diálogo que mantenha a ressonância por aquelas pessoas existiam de fato, que eram amigos meus com
um bom tempo após a leitura. Para tanto, embrenha-se pelo os nomes trocados, e que o livro era a transcrição de diálogos
mundo das ideias em A ilusão da alma — projetado, segundo efetivamente travados. Fiquei feliz ao saber que isso tinha
o autor, para ser uma transficção. Ou seja, algo inclassificável ocorrido. Para mim foi uma prova de que a trama, embora
entre a ficção e a não ficção. Nesta empreitada (ou encrenca, fictícia, parecia real, passava no teste da verossimilhança. Aliás,
como define), Giannetti passou vários apertos, pensou em é por isso que esse livro, assim como optei por fazer em A
desistir, deprimiu-se, mas retomou a escrita para finalizar ilusão da alma, não tem prefácio. Ficção ou não-ficção? O que
o livro que, para defini-lo de alguma maneira, encaixa-se realmente me importa, ao escrever um livro, não é ensinar ou
no gênero “romance de ideias”. Nesta entrevista por e-mail, entreter. É travar uma espécie de contato pessoal com o leitor. É
Giannetti fala das dificuldades na execução do livro, de sua plantar a semente de um diálogo ou inquietação que continue
paixão pelo conhecimento, de seus autores preferidos, de como pulsando e frutificando em sua mente muito tempo após o
a literatura tornou-se protagonista em sua vida e de seu futuro término da leitura. Se isso acontecer, o livro vingou. O gênero
como ficcionista, entre outros assuntos. será o que tiver de ser. O autor semeia, a leitura insemina.
A ilusão da alma é seu primeiro romance. Por que, depois Além de Machado de Assis, autor que perpassa a narrativa
de se consolidar como autor de ensaios, o senhor decidiu (seja na voz do narrador, seja nas citações de suas obras
investir em um texto literário? Houve alguma motivação ao longo do texto), existe outro escritor de ficção a quem o
especial? senhor quis render homenagem neste livro?
As divisões me incomodam. Sempre sonhei em escrever Não sei se “render homenagem” é a expressão adequada. A
um livro que não pudesse ser classificado como ficção ou opção por Machado teve dupla motivação. A primeira é que
não-ficção. Que fosse uma espécie de transficção. Busco isso o narrador, meu alter ego, professor de letras e estudioso da
porque a vida é assim — atravessa tudo; não tem o menor sua obra, autor de As rabugens de pessimismo em Machado,
respeito pelas demarcações acadêmicas ou convenções do aprendeu a escrever com ele (ou pelo menos se esforça para
mercado livreiro. O eu-soberano, como chega a especular o tanto). Sua narrativa está apinhada de construções, fraseados,
meu personagem, talvez não passe de uma peça de ficção à volteios e ressonâncias do estilo e da sintaxe machadianos.
qual estamos habituados desde que nos pregaram um nome e Numa primeira versão do livro, exagerei feio nos maneirismos
passamos a nos tomar por gente. A realidade está permeada de e fui corretamente alertado por meus editores. Podei boa
sonho e, o sonho, de realidade. Em Felicidade, criei um diálogo parte deles, embora menos talvez do que deveria. O fato
ficcional entre quatro ex-colegas de faculdade que voltam a se é que, quando leio Machado, tenho a nítida impressão de
16
teoria da alma”, exposta pelo ex-alferes Jacobina no conto “O
espelho”, assim como eu já fizera em Auto-engano servindo-
me de Dom Casmurro. A ideia foi tentar mobilizar a bagagem
filosófica de Machado — suas agudas análises de psicologia
moral e da propensão ao auto-engano; “personagens dotados
de bom senso na sandice”, como dizia Mario Matos; a fauna
e a flora das “tergiversações especiosas da mente humana” —
para dar tempero à narrativa e, ao mesmo tempo, mostrar a
universalidade do seu pensamento, um pouco na linha do que
fazem Alfredo Bosi em O enigma do olhar ou, ainda, em outro
contexto mas com o mesmo intuito, o filósofo da mente inglês
Colin McGinn, em Shakespeare’s philosophy.
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PáGINAs DO RASCUNHO • entrevista: eduardo giannetti
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como amigos a quem posso retornar de tempos em tempos. de tratados sisudos de psicologia acadêmica. E, ao dizer isso,
Nunca me canso de revisitá-los. Enquanto me preparava e não estou só. Veja o que escreve, por exemplo, o eminente
compunha A ilusão da alma, alguns livros me fizeram especial psicólogo e linguista americano Steven Pinker em Tábula
companhia: Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer rasa: “Os cientistas e os intelectuais não são as únicas pessoas
Maria Rilke, um romance narrado em primeira pessoa pela que se dedicaram a examinar como a mente funciona. Todos
persona dinamarquesa, em oposição à solar-mediterrânea, nós somos psicólogos e algumas pessoas, sem o benefício de
do poeta; Memórias do subsolo, de Dostoiévski (li os três credenciais, são grandes psicólogos. A este grupo pertencem
primeiros volumes da biografia de Joseph Frank para tentar poetas e romancistas cujo ofício é criar representações justas
entender como ele chegou a conceber essa obra-prima); O de natureza geral. Paradoxalmente, no clima intelectual
livro do desassossego de Bernardo Soares, alter ego de Fernando de hoje os romancistas podem ter um mandato mais claro
Pessoa; O sonho de d’Alembert, romance filosófico de Diderot, do que os cientistas para dizer a verdade sobre a natureza
com personagens tirados do círculo de amigos do escritor; e humana. (...) Poetas e romancistas têm feito muitos dos
A vida dos animais, do romancista sul-africano J. M. Coetzee, pontos deste livro com mais sagacidade e penetração do que
no qual a protagonista, uma professora de ética, faz uma série qualquer escrevinhador acadêmico poderia esperar fazer”. Se
de palestras, reproduzidas in toto no desenrolar da narrativa, os cientistas se interessassem mais pela arte e, os escritores e
sobre a questão dos direitos dos animais. artistas, pela ciência, todos sairiam ganhando.
Em sua primeira experiência como romancista, houve É correto afirmar que existe certa afinidade entre suas obras
algum objetivo que o senhor gostaria de ter alcançado, mas, mais recentes — O valor do amanhã, O livro das citações e A
por algum motivo, não conseguiu? A despeito da recepção ilusão da alma? Ou seja, para além do fato de os livros terem
da crítica e dos leitores, o livro te satisfaz como autor? sido assinados pelo mesmo autor, existe um tecido literário
Ninguém é bom juiz em causa própria, como dizia Aristóteles. Sei que os aproxima ou, como a própria classificação pressupõe,
que preciso trabalhar muito para apurar a forma e a capacidade são textos diferentes e que não dialogam de forma alguma
expressiva: dizer mais com menos; deixar o dito pelo não dito; entre si?
tensionar a arte de dizer o que é mais difícil de se deixar falar. A afinidade, para mim, é clara — e não só com os livros
Acho que consegui dar um passo, ousar e arriscar-me um pouco citados na pergunta. Às vezes chego a me surpreender quando
mais dessa vez, mas desejo conquistar ainda uma liberdade constato como certas preocupações e possibilidades estavam
interna que não possuo na hora de criar. Se pudesse corrigir já despontando em livros mais antigos, mas só vieram à tona
uma falha do livro, tentaria rebalancear a desproporção entre tempos depois. O embrião de Auto-engano, por exemplo, está
narrativa e ensaio na segunda parte — e o tom também. Como no prefácio de Vícios privados, benefícios públicos?, embora na
disse um amigo, “dá para ouvir o ensaísta Giannetti ali”. época eu não estivesse ciente do que faria anos depois. No caso
de A ilusão da alma, a inquietação em torno da relação mente-
À página 49, lê-se: “Escritores e cientistas compartem uma cérebro e do fantasma do fisicalismo percorre um fio contínuo
ambição: devassar a arquitetura da alma”. Quem se sai que veio se tecendo desde pelo menos O mercado das crenças,
melhor nesta tarefa? Por quê? um livro pesadamente acadêmico publicado na Inglaterra
Cada um tem sua contribuição a dar. O que não se pode aceitar em 1991, mas que só saiu traduzido no Brasil em 2003. Em
é a redução da arte à condição de inócuo entretenimento; Felicidade, há um diálogo inteiro sobre a conjectura de uma
negar a sua vocação cognitiva. No século 18 havia ainda uma “pílula da felicidade instantânea”. E por aí vai. Imagino que todo
forte afinidade e um diálogo profícuo entre arte e ciência. autor carrega suas obsessões. Eu também tenho as minhas.
Foi a partir da ascensão do romantismo, no início do século
19, que o afastamento começou a se firmar e foi aos poucos Como romancista, o senhor enfrentou dilemas diferentes
se radicalizando, em prejuízo de ambas. O filósofo austríaco daqueles de quando escreveu ensaios? A tela em branco, por
Ludwig Wittgenstein, depois de se desembaraçar das amarras exemplo, assustava mais agora do que das outras vezes?
do positivismo lógico, faz uma observação certeira: “As pessoas Creio que subestimei o tamanho do desafio (para não dizer
atualmente pensam que os cientistas existem para instruí-las, encrenca!) que estava comprando quando embarquei no
e os poetas, músicos etc. para lhes dar prazer. A ideia de que projeto deste livro. A principal dificuldade foi encontrar o tom
estes últimos têm alguma coisa para ensinar-lhes — isto não certo e dar o acabamento literário necessário à veia narrativa
lhes ocorre”. Penso que há mais conhecimento verdadeiro da trama. Não cabe a mim, é claro, dizer se consegui — sei
acerca da psicologia profunda do animal humano num que sempre poderia ter ficado melhor (ou menos ruim) do que
romance de Dostoiévski ou de Machado do que em dezenas ficou e que poderia continuar trabalhando no texto pelo resto
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PáGINAs DO RASCUNHO • entrevista: eduardo giannetti
dos meus dias; mas certamente aprendi como em nenhum crise cambial e o déficit da previdência de manhã, e escrever
outro livro à medida que ouvia e recebia as críticas de quem ia sobre o neolítico moral e a maiêutica socrática à tarde. A saída
lendo e comentando o que eu fazia. A certa altura do trabalho foi separar de uma vez por todas, no tempo e no espaço, essas
o massacre foi de tal ordem que tive um momento de dúvida atividades. Quando estou em São Paulo, não alimento qualquer
radical, deprimi e cheguei a pensar em abandonar o projeto pretensão de escrever algo mais elaborado e reflexivo. Convivo
original e transformá-lo num simples ensaio, como nos livros com a dispersão da atenção e estou aberto e disponível para as
anteriores. Seria a saída mais fácil. Depois recuperei as forças e demandas que a minha atividade profissional regular suscita.
reemergi. Resolvi enfrentar a parada e voltar à carga. Fiz uma Vivo disso. É o que paga as contas no fim do mês e me permite
revisão completa e minuciosa do texto, joguei muita coisa escapar, por alguns meses, de tempos em tempos. Mas quando é
no lixo, e decidi separar completamente o fio narrativo, em para mergulhar em um novo projeto de livro, faço as malas e parto
primeira pessoa, das anotações que o personagem fazia em seus para um período sabático de completo isolamento. Pode ser no
cadernos de estudo à medida que avançava nas investigações e interior de Minas ou em Oxford. O crucial é que a vida prática
procurava refletir sobre o que vinha descobrindo. Mostrei aos seja a mais simples possível e nada me desvie da concentração
meus editores e para alguns outros leitores que haviam criticado na tarefa. Paro de ler jornais e revistas, não assisto tevê, não ouço
as primeiras versões e eles acharam que estava melhor agora rádio, não uso telefone nem acesso a internet. Levo alguns poucos
(ou que eu já tinha apanhado o suficiente). Nunca apanhei — e livros, escolhidos a dedo, e leio relativamente pouco. Como fico
aprendi — tanto como autor. absolutamente só, mesmo quando não estou trabalhando, ao
fazer uma refeição ou caminhar a pé, por exemplo, eu sei que,
Como é o seu método de composição/criação? O senhor na verdade, estou trabalhando. Passo a dormir muito cedo e a
possui algum tipo de estratégia para a feitura de seus textos acordar com o nascer do dia, a cabeça a mil. Uma regra de ouro
em geral? E para este livro, seu primeiro romance, em nesses períodos é jamais sucumbir à tentação da pressa. Posso
particular? passar dias e dias sem escrever uma única linha, como aliás
Falo com desenvoltura, aulas, palestras, entrevistas, mas escrevo sempre acontece no início do trabalho. Aí eu me lembro do que
com enorme dificuldade — um parto. Se as pessoas soubessem a dizia o poeta inglês Alexander Pope: “Por aquilo que publico,
quantidade de vezes que reescrevo uma frase (esta por exemplo), eu peço apenas a compreensão dos leitores; mas, por aquilo que
antes de considerá-la apta a ficar como está, talvez me julgassem descarto e atiro à cesta de lixo, mereço o aplauso imortal”. Uma
insano ou tivessem dó de mim. Daí a minha relutância em aceitar hora, contudo, o trenzinho apita e sai da estação. Quando volto
compromissos de produção de textos escritos. Falar em público de uma temporada dessas, tenho a sensação de ter mobilizado
é razoavelmente fácil e tranquilo para mim, adquiri razoável forças a que normalmente não tenho acesso. Não é que lá eu faço
fluência com a prática; mas parir um texto, por mais banal, é em meses o que teria me consumido vários anos de trabalho em
sofrimento na certa, principalmente o começo. Sempre é assim. São Paulo — a comparação relevante não é essa. É que lá, de
O computador sem dúvida alterou o meu processo criativo. algum modo, consigo fazer o que eu jamais teria feito no meu
Seria impensável reler e corrigir e tornar a reler e emendar tantas cotidiano paulista, mesmo que tivesse todo o tempo do mundo.
vezes o mesmo texto se ainda precisasse escrever à mão ou numa
máquina de escrever. Não sei por que é assim comigo, mas posso De que maneira o senhor tornou-se um leitor? Como a
garantir que é um processo extremamente laborioso, como polir literatura fez-se protagonista em sua vida?
lentes ou praticar escalas musicais. Imagino que tenha a ver com O meu ponto de inflexão é claro em retrospecto. Apaixonei-me
alguma fantasia obscura de permanência da palavra impressa. pela leitura e pelo mundo do pensamento aos 16 anos de idade.
Como se uma frase obscura ou mal-ajambrada pudesse me Cursava o segundo ano do ensino médio no Colégio Santa
cobrir de vergonha ou condenar-me às chamas do inferno por Cruz, em São Paulo, e tivemos um curso chamado “Metafísica”,
toda a eternidade. dirigido pelo padre católico canadense Charbonneau. Entre as
leituras do curso, sobre as quais tínhamos de redigir ensaios
Qual é a sua rotina como escritor? O senhor possui algum interpretativos, estavam: Kafka, Carta ao pai e O processo;
tipo de ideia fixa? Sartre, As palavras e A náusea; Camus, A peste; Dostoiévski,
Cada autor tem suas idiossincrasias. A condição essencial, para Os irmãos Karamazov; e, por fim, como ponto culminante e
mim, é a absoluta concentração na tarefa: “pureza de coração é antídoto contra o niilismo moderno, um livro do teólogo
desejar uma única coisa”. Depois de muitas tentativas frustradas Teilhard de Chardin (não me recordo o título...). Para o bem
de conciliar a minha atividade autoral com o meu dia-a-dia de ou para o mal, acho que continuo fazendo esse curso até hoje
professor universitário e economista em São Paulo, percebi que e nunca me recuperei do impacto que tais leituras tiveram no
não tinha jeito. Não consigo dar uma entrevista sobre, sei lá, a meu cérebro adolescente. Lembro como fui violentamente
20
acreditar ou deixar de acreditar em algo porque isso nos faz
mais ou menos felizes? Quanto aos autoproclamados “ateus
militantes”, que se propõem a tratar “a existência de Deus
como uma hipótese científica como qualquer outra”, Richard
Dawkins à frente, não sei o que mais me espanta: se é a falta de
tino e a superficialidade que revelam diante das necessidades
espirituais do homem ou a fé ingênua da maioria dos crentes e
devotos aos quais se opõem. Ao equívoco de buscar respostas
científicas na religião corresponde o equívoco simétrico de
buscar respostas religiosas na ciência.
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livros • RESENHAS
Diário do hospício e
porque ganha concretude. De alguma maneira, os pensamentos
ficcionais de Olga sobre a loucura reaparecem cinco anos
depois nos pensamentos autobiográficos (e ficcionais?) de
Cemitério dos vivos Lima Barreto sobre uma de suas passagens pelo hospício. Não
se trata, portanto, de uma vivência que foi aproveitada na forma
Lima Barreto de ficção, trata-se de um nó ambivalente, complexo: o escritor
vinha refletindo sobre a questão em crônicas, ao mesmo tempo
o fez no romance, anos depois, nos diários e no Cemitério. A
ficção antecedeu a autobiografia porque estava constituída por
vivências ficcionalizadas que, em seguida, se plantaram no eito
ficcional, mas não mais como mera ficção.
atilio bergamini Para lá da comparação com Triste fim, o trecho merece reflexão,
releitura, respeito pelo que é. Trata-se de uma descrição do
No final da primeira parte de Triste fim de Policarpo Quaresma ambiente que compõe com a interioridade autobiográfica um
(1915), Olga, afilhada do protagonista do romance, o visita em todo moral e cósmico de insinuante força estética, força que se
um hospício. O narrador, terceira pessoa, se amalgama aos coloca como crítica ao racionalismo estéril de muitos cientistas
pensamentos e percepções dela. Acomodado nesse ponto de vista, do período. Os médicos do tempo, sugere Lima Barreto,
o leitor perambula pelo hospício enquanto acompanha reflexões estavam equivocados. Explicavam o complexo e duvidoso
sobre a loucura, falas de Quaresma, descrições da enseada de evento da loucura com certezas acadêmicas mal formuladas,
Botafogo em um dia “particularmente lindo”. Retenhamos essa catadas na prestigiada Europa. Nunca prestavam atenção na
imagem: um dia lindo, uma enseada, um hospício. variedade da existência de cada sujeito, que dirá no chão social
do problema. Partiam do abstrato e permaneciam cegos ao
As duas vozes, a do narrador e a de Olga, se entrelaçam singular e concreto.
sutilmente e ponderam, sob o sol que faísca pelas calçadas, a
respeito da loucura e da razão, da força das ideias e do modo Os termos dessa crítica não são gratuitos. O modo como Triste
como elas se tornam ações ou não se tornam nada. Descrições fim e estes trechos publicados pela CosacNaif são organizados,
iluminadas e frouxas do céu, do mar e da atmosfera fazem sempre partindo de sonhos e desejos que formam homens que,
par com descrições do ambiente do hospício como um lugar por sua vez, não podem ou não conseguem concretizá-los,
ordenado, austero. Certo tédio envergonhado governa o tom, deixa ver a importância dada por Barreto para a dialética do,
que acaba convidando à releitura. O leitor é avisado, e fica feliz digamos assim, lógico e sociológico. Há algo, em vários escritos
por saber, de que Quaresma parecia melhorar, tanto que em de Barreto, que sugere imensa luta contra aquilo que parecia
sua voz havia “mansuetude”. Cada frase mimetiza um conteúdo obviamente dado, evidente. Muitas vezes, o autor parece fazer
(algo como amizade e calma em contraposição a violência e literatura como quem não aceita o reino dos possíveis. A
irracionalidade) e uma consciência (trata-se de um “inferno imaginação e o contraditório em relação a universais abstratos
social” que amplia ao invés de redimir o inferno pessoal) — imaginação e contraditório buscados na concretude da vida
pulsantes, vivos. Não sabemos bem por qual razão, mas parece objetiva ou subjetiva do próprio Lima Barreto — apontam para
haver muito mais do que a narração disposta por técnicas a qualidade rebelde de seus escritos.
simples apresenta.
Ao aceitar o alcoolismo como fonte principal de seus delírios, ou
Depois de ler Diário do hospício e Cemitério dos vivos — seja, ao aceitar o diagnóstico médico para sua loucura, Barreto
escritos que Lima Barreto produziu concomitantemente e, em não deixa de perguntar se o amor, a riqueza, as posições, títulos,
entrevistas da época (1920), sugeriu serem o mesmo manuscrito “coisa[s] que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida”,
—, a emoção que o trecho acima evoca fica mais impactante não são também causa de loucura? Seu eixo crítico parte sempre
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FOTOS: ACERVO DO IPHAN, INVENTÁRIO
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livros • RESENHAs
Jornalista militante e combativo, integrante primeiro das Fuerzas Parece mesmo uma tarefa difícil, além de inútil. O volume
Armadas Peronistas e, depois, do grupo Montoneros, com editado agora reúne os três livros de “ficção séria” publicados
passagens também pela Alianza Libertadora Nacionalista (ALN), pelo escritor: Los oficios terrestres (1965), Un kilo de oro
Walsh é conhecido como autor de três livros-reportagem de (1967) e Un oscuro día de justicia (1973). Os contos da “fase
grande impacto — entre eles o extraordinário Operação Massacre policial”, escritos entre 1953 e 1956, não aparecem. Em
(1957), publicado em setembro no Brasil pela Companhia das todos, porém, transparece uma prosa marcada pelo rigor do
Letras e que é uma espécie de precursor do new journalism estilo, pela experimentação (que não deve ser confundida
elegantemente atribuído a Truman Capote. Mas Walsh é muito com experimentalismo) e pela temática — nem sempre, mas
mais do que isso, embora nada indicasse ao leitor brasileiro, frequentemente — relacionada à própria biografia do autor e
nessa edição, que também pudesse estar diante de um dos mais de suas circunstâncias humanas e, também, da sua Argentina
brilhantes prosadores modernos da Argentina. E, de fato, está. pastoril e urbana, crivada de golpes de Estado, repleta de tipos
atraentes e sempre com uma frase espirituosa para proferir.
É, portanto, difícil omitir esse preâmbulo ao escrever sobre
Walsh — um autor capaz, sim, de ombrear com Roberto Arlt A série de três “contos irlandeses” presente nos três livros
(embora as diferenças de estilo) e Ernesto Sábato e provocar de Walsh, por exemplo, são explicitamente baseadas em sua
entusiasmo num estudioso de absoluto rigor como Ricardo história pessoal, passada dos dez aos 14 anos em um orfanato no
Piglia e, ao mesmo tempo, morrer por uma causa que a muitos sul da Argentina — Walsh, é bom lembrar, nasceu na Patagônia.
24
hipóteses, uma novela histórica — muito comum aqui entre
nós — entupida de personagens discursando mecanicamente.
mais brilhantes
prosadores modernos sempre o cuidado de não deixar lacunas para o leitor. A partir
da Argentina de fatos aparentemente banais, Walsh elabora um cenário
extremamente complexo.
Sem nunca ceder à tentação confessional e, portanto, livres de
melodramas, os contos refletem toda a violência latente em Em Cartas, o olhar narrativo se centra na figura de Estela.
experiências humanas coletivas, temperada por sentimentos Filha de Tolosa, a menina observa com ternura, humor e uma
como inveja, solidão, medo, perversidade, preconceito. O certa nostalgia aquele mundo campesino que se fragmenta
primeiro deles, Irlandeses atrás de um gato, é um primor de rapidamente. Num trecho em que recorda uma viagem de
tensão e clima: recém chegado ao orfanato, um garoto tenta trem, o fino trabalho de Walsh fica explícito: “Torneira, bronze,
escapar com astúcia do batismo reservado aos calouros e, tremor, seu corpo estremecia de susto na passagem do vagão-
na fuga, propicia alguns momentos — por assim dizer — dormitório ao restaurante sobre o ar rápido cortado de capim.
cinematográficos na trama. A perseguição final e o desfecho Mamãe verde, Jacinto puro beicinho, o mundo brilhava no bule
são dignos de um grande thriller, embora Walsh nunca, e na toalha, nos trilhos ao lado que o trem de repente engolia
em momento algum, abdique da condição literária de suas e vomitava, e longe irrompiam da neblina pontes, sinaleiras,
histórias. O estilo, por isso mesmo, é sempre mantido como chaminés, o estrondo compacto da estação, e milhões de
a condição imprescindível para a concretização do seu objeto pessoas”. O humor é sutil e irônico, como no relacionamento
narrativo. Não por acaso, Piglia remete os contos da série a do jornalista da localidade com os algozes que empastelam seu
Faulkner e, mais apropriadamente, ao Joyce dos Dublinenses. jornal em mais um golpe de Estado ou no relacionamento de
Don Alberto com a Morta, que lhe aparecia em sonhos.
Joyceanos são também Fotos e Cartas, a meu ver o ponto mais
alto das narrativas de Walsh. Pequenas novelas estruturadas Como em Fotos, embora organizada de forma diversa, não há
de modo fragmentado, com idas e vindas recorrentes, os em Cartas uma linha narrativa central. Mas, diferentemente
contos também têm o dom de expor o dramático processo de do primeiro conto, a experiência de Walsh é mais radical
transformação da sociedade argentina nas primeiras décadas porque a polifonia não está explicitada em capítulos,
do século 20. Os dois contos, que se passam numa cidadezinha indicações de leitura ou mesmo em artifícios narrativos que
no sul da Argentina, são centrados na figura de Jacinto Tolosa facilitem a vida do leitor. O turbilhão vem de parágrafo em
— no primeiro sua infância e juventude, no segundo sua parágrafo, às vezes de frase em frase, de linha em linha. O
concentração de riqueza e poder. Dito assim, pode parecer resultado, que em mãos menos habilidosas poderia resultar
que o leitor encontrará diante de si um épico de aventuras, numa tragédia, na escrita de Rodolfo Walsh se revela
um painel sociológico da moderna Argentina ou, na pior das simplesmente fascinante. §
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livros • RESENHAs
26
Depois de 1957, nas três edições subsequentes, todas
organizadas ainda em vida por Walsh, ele sempre fez questão Os beats
de acrescentar notas e atualizações sobre o trabalho. Os
adendos estão reproduzidas na edição brasileira. Na versão em
Harvey Parker, Ed Piskor e Paul Buhle
português da Companhia das Letras para a Coleção Jornalismo
Literário, passados 53 anos da publicação original (e cerca de
40 reedições depois), o texto de Walsh tem posfácio de Natalia
Brizuela, bem como uma nota biográfica, assinada por Ruy
Castro. Nela aparecem a referida paixão de Walsh, também
dando o devido valor ao feito de ter descoberto não apenas
dois sobreviventes do fuzilamento. Nomeou todos, revisitou Benvirá
cada ponto e documento, relatou os pormenores de um caso 208 páginas
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que poderia (deveria) ter sido comido pela terra.
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livros • RESENHAs
o lado B como lado A. Os beats — graphic novel traz várias Algumas passagens de Os beats são bem-sucedidas na árdua
histórias dessa época: tanto as boas, quanto as miseráveis. E tarefa — um desafio do quadrinho não ficcional — de usar
todas valem a pena ser contadas. o desenho de maneira informativa. Esse equilíbrio entre
*** texto e imagem, entre mostrar e dizer, em se tratando de não
ficção, é difícil de alcançar. Trata-se, em verdade, de uma
Dia 7 inesquecível noite Jack Kerouac grita vai vai vai outubro obra que não arrisca muito, como já está dito no prefácio:
Allen Ginsberg O Uivo galeria Six San Francisco 1955 Kerouac e “o livro à sua frente é uma produção em quadrinhos sem a
sua prosa espontânea Ginsberg e sua autopoesia Jackson Pollock pretensão de profundidade e interpretação literária [...]”. E
e sua pintura automática o jazz! ah, o jazz! sempre o ritmo do quando posto em comparação com a diversidade de estilos
jazz o poeta é iluminado o beatnik morre a cultura beat fica até possíveis nessa linguagem, pode-se dizer que Os beats é
hoje quem não é beat? você eles eu somos todos um pouco beats bastante convencional. São poucos os recursos ousados — e
*** nesse sentido a história de Pekar e Peter Kuper sobre o beat
Gary Snyder diferencia-se por usar galhos de árvores como
Apesar de a edição brasileira ostentar o subtítulo graphic novel divisores dos quadros.
(romance gráfico, em inglês), Os beats é uma antologia de
quadrinhos de não ficção. São 25 histórias sobre os beats, feitas Em antologias de quadrinhos, a variedade de estilos pode ser
por 17 artistas. A maioria dos roteiros foi escrito por Harvey Pekar, prejudicial, se a obra carecer de uma unidade. Por mérito do
aqui no Brasil conhecido por ter sua vida retratada no filme O editor Paul Buhle, isso pouco acontece em Os beats. Em linhas
anti-herói americano, e a maior parte dos desenhos é de Ed Piskor. gerais, o livro compõe um mosaico diversificado e coerente
sobre a cultura beat. A primeira metade do livro são histórias
Nos últimos anos, houve uma nítida expansão e consolidação do mais longas sobre Kerouac, Ginsberg e Burroughs. Do meio
mercado de quadrinhos, particularmente na área da não ficção. para o fim, seguem-se outras menores — muitas de apenas duas
A própria Hill and Wang, editora que publicou Os beats nos páginas — sobre artistas não tão conhecidos. Esse é um acerto
Estados Unidos, criou um selo com obras baseadas na realidade do livro: mostrar as histórias dos pouco notáveis, de figuras
— vale lembrar que o título original do livro é The beats — a importantes para a cultura beatnik, que chegaram mesmo
graphic history (história gráfica). Mas como pode o desenho a torná-la possível, mas que ficaram escondidos na sombra
servir para contar objetivamente um fato real? Por trás da da fama de Kerouac & Cia. A cena poética de San Francisco,
biografia de qualquer pessoa, há sempre cenas e contextos que a anterior e independente à chegada dos beatniks, e os centros
informação objetiva não abarca; há sempre climas, ambientes e culturais da época, como a livraria e editora City Lights, em San
emoções que não aparecem nas fotos. E é aí que os quadrinhos, Francisco, e o College of Complexes, bar de Chicago, aparecem
ao lidarem com memórias e reconstituições, podem se tornar merecidamente no livro. Mas a melhor história, com certeza, é
incrivelmente mais objetivos do que qualquer documento. Garotas beatniks.
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*** Demônios em
o filho de Burroughs usa um pote como latrina Burroughs
acerta um tiro na cabeça da mulher Allen fingindo ser hétero
quadrinhos
faz Elise Cowan desiludida se matar Kerouac transa com a
Aluísio Azevedo por Guazzelli
mulher do amigo Neal Kerouac transa também com o próprio
Neal e Neal transa com todo mundo
***
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livros • RESENHAS
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Narrar, ser mãe, da criança de uma resposta empática para suas necessidades
e desejos. Constrangido a cada tanto pela conduta violenta e
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livros • RESENHAS
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cinema • artigo
FOTOS: DIVULGAÇÃO
À prova de morte (2007)
Um encontro
Ao contrário do que poderia parecer, é possível se pensar em uma aproximação entre
os filmes À prova de morte, de Tarantino, e Sempre bela, de Manoel de Oliveira
leonardo bomfim
Talvez seja um atrevimento colocar Quentin Tarantino e Manoel tendo assistido à obra de outras formas, prestigiou as sessões.
de Oliveira no mesmo espaço. Não por suas obras, mas pelo À prova de morte (2007) circulou, rendeu debates e os urros
que cada um passou a representar no cenário cinematográfico. tradicionais. Sempre bela (2006), de Oliveira, entrou e saiu
Enquanto o português tornou-se figura carimbada das cinco correndo. Quase ninguém viu.
estrelas da crítica, o norte-americano conseguiu reunir sorrisos
— algo raro — tanto de especialistas quanto de cinéfilos de fim Tratam-se de filmes que, vistos na mesma semana, acabam
de semana. As etiquetas, então, foram coladas: o cinema de revelando uma proximidade maior do que as etiquetas
Oliveira é hermético, intelectual, para poucos, e o de Tarantino pressupõem. Em primeiro lugar, dedicam um olhar ao
é acessível, divertido, para todos. próprio cinema. Ocupam, assim, um importante espaço na
produção contemporânea. O termo se tornou fuga fácil, mas
Em 2010, por uma dessas coincidências do destino, filmes é importante pensá-lo além do “qualquer coisa produzida nos
atrasados dos dois cineastas acabaram entrando juntos nas dias de hoje”. Giorgio Agamben oferece caminhos, ao dizer
salas de Porto Alegre. O espectador de Tarantino, mesmo já que “a contemporaneidade é uma singular relação com o
34
próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma
distâncias”. Para o italiano, o artista contemporâneo respira
nesta relação: não pode ignorar o que já foi feito, mas não
repete um gesto anterior.
35
cinema • artigo
Na segunda parte
de À prova de
morte, Tarantino
apresenta meninas
DIVULGAÇÃO
viciadas em
cinema e um
racha na estrada
cenas de diálogo através da montagem. É um herdeiro de Eric que com clássicos não se mexe, mas Oliveira é esperto, mostra
Rohmer, figura chave da Nouvelle Vague, que realizava filmes que a única forma de retomar uma obra-prima é puxando-a
inteiros baseados em conversas e considerava a decupagem pra dançar.
o elemento principal da mise-en-scène. Invariavelmente,
Tarantino apresenta uma quantidade incrível de planos, de Buscando a referência da narrativa de Buñuel e Carrière,
um enorme repertório (por vezes até excessivo). Oliveira Oliveira realiza uma obra essencialmente autoral. Não é uma
prefere o plano-sequência e a câmera fixa, justifica que “nos continuação de A bela da tarde, passa longe da claridade
filmes falados, quando o diálogo é rico, a atenção é necessária desconcertante em que as fantasias de Séverine eram
e não se deve distrair o espectador do que diz o ator, porque o mostradas no filme de 1967. O português coloca sua obra na
movimento o distrai”. Até mesmo quando opta pela decupagem, penumbra. Ao mesmo tempo, introduz seu humor peculiar,
em conversas no carro de Viagem ao princípio do mundo (1997), principalmente nas cenas em que o protagonista relembra,
por exemplo, há repetições de poucos planos, busca-se uma entre generosas doses de uísque, o passado picante para um
imobilidade. Aproxima-se de Rohmer, mas num outro sentido, barman estrangeiro.
principalmente quando diz que o cineasta deve ser invisível.
O centenário cineasta acaba assumindo, no fim, o papel de
Em Sempre bela, filme que também abraça as palavras, há a supra-sumo da contemporaneidade apontada por Agamben.
retomada de uma história já clássica: A bela da tarde (1967), Oliveira está aqui, lá e em todo o lugar. Em épocas de euforias
de Luis Buñuel. Nas palavras do próprio Oliveira, é um tributo digitais, consegue com seu mais novo filme, O estranho caso
ao cineasta espanhol e ao seu roteirista Jean-Claude Carrière. de Angélica (2010), retornar a Méliès para abordar a força da
Se na obra original o personagem de Michel Piccoli era imagem. E por que sua obra não é degustada pela maioria dos
coadjuvante — o amigo que acaba inflamando os desejos de fãs de Tarantino? Talvez sua simplicidade espantosa seja um
Séverine —, aqui ele é o protagonista. Um senhor solitário que tabu para olhares viciados. A única conclusão plausível é que a
reencontra, por acaso, a belle de jour. Catherine Deneuve não rejeição ocorre porque a obra de Oliveira abre poucas brechas
quis interpretar novamente a personagem, tarefa que caiu nas para cair no universo restrito que se convencionou chamar de
mãos da preciosa Bulle Ogier. Detalhe que, embora incomode cultura pop.
alguns, não deixa de provocar um estranhamento interessante.
A armadilha do cinema de Tarantino é que ele se deixa ser
Um filme inexplicável, deliciosamente linear, com apenas 68 encarado de forma rasteira. O verniz é delicioso: muito fácil
minutos e pouquíssimas variações de cena. Qual o mistério de ficar na superfície, nos diálogos de efeito, nos personagens
Sempre bela? A impressão é que só Oliveira, com quase 100 anos bacanas — ou seja, na cultura pop. São limites que enfraquecem
na época das filmagens, poderia fazer algo tão simples a partir sua obra. Ao assistir À prova de morte e Sempre bela num curto
de uma trama tão incensada. Pois há uma diferença importante espaço de tempo, percebe-se que as etiquetas perdem a força.
das homenagens de Tarantino, que costumeiramente recorre Podem ser tranquilamente apreciados pelos mesmos olhos. §
ao cinema considerado B, de segundo escalão. Aqui temos o
diálogo com um cânone, algo difícil de fazer. Há quem diga Leonardo Bomfim é jornalista e pesquisador de cinema.
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cartum • moa
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HUMOR • POR PEDRO GONZAGA
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o jornal de literatura do Brasil
PÁGINAS FILOSÓFICAS
Multiculturalismo, relativismo
e coerência (Parte 2)
eduardo wolf
felipe pimentel
O leitor que nos fez a gentileza de ler a coluna na NORTE própria, uma generalização). E assim armamos um paradoxo.
anterior viu que além de uma diatribe provocadora contra o Aliás, o mesmo que ocorre com qualquer proposição relativista:
multiculturalismo, fazíamos uma promessa: explicar, ao menos “tudo é relativo”, por exemplo. Ocorre que quem enuncia teses
em linhas gerais, qual é a origem dessa postura e dessa ideologia como essas — “toda generalização é um erro”, “tudo é relativo”
tão arraigada em nossa experiência cultural contemporânea. É — pretende que ao menos uma generalização não seja um erro,
o que pretendemos fazer neste artigo. Para isso, em primeiro que ao menos algo não seja relativo: a sua própria crença. Afinal,
lugar, vamos tentar mostrar o que aproxima e o que diferencia as se não for assim, então suas crenças podem não passar disso —
expressões que vão no título, “relativismo” e “multiculturalismo”, suas crenças, não sendo nem mais, nem menos verdadeiras do
estabelecendo, assim, um pouco das diferenças entre as que outras, abrindo a possibilidade para que, talvez, a crença de
variedades de relativismo; com isso será possível vislumbrar, que “nem toda generalização é um erro” ou de que “nem tudo é
talvez, o que há de mais filosófico no problema que acreditamos relativo” sejam, elas sim, verdadeiras.
ter levantado na última edição. A seguir, nos concentraremos
no problema do multiculturalismo como fenômeno ideológico É claro que uma contradição como essa, que salta aos olhos,
propriamente. Assim, deixamos um pouco o terreno da não escapou ao Sócrates-personagem dos diálogos de Platão,
polêmica e da perplexidade e passamos à filosofia e à história, em particular ao comentar a referida tese de Protágoras. De
nessa ordem, por trás das teorias antes mencionadas. fato, quem se aventurar no Teeteto verá que Sócrates a utiliza:
se toda verdade e, portanto, toda sabedoria é relativa ao sujeito,
Em um dos mais importantes diálogos de Platão, o Teeteto, há então quem o próprio Protágoras pensa que é para ser julgado
uma análise da famosa tese do filósofo pré-socrático Protágoras como sábio e fazer valer sua doutrina? Quer dizer, a nossa
segundo a qual “o homem é a medida de todas as coisas” resposta intuitiva do parágrafo acima, obviamente, já tinha
(uma espécie de primeira grande doutrina relativista: se cada sido pensada por Sócrates/Platão.
homem é a medida da verdade de todas as coisas, então tudo
é relativo, tudo é subjetivo). Como se vê, não há nada de novo É possível que ao ler isso você pense: “Nossa, Sócrates (ou
nas afirmações relativistas dos pós-modernos de que a verdade Platão, no caso) já tinha pensado o mesmo que eu!”. Bem,
é uma ficção dos sujeitos, de que cada indivíduo “constrói” a é melhor ler o diálogo inteiro, porque uma das coisas que
realidade, ou, para ficarmos no credo multiculturalista, de que Sócrates dirá, supondo uma resposta de Protágoras a esse
“toda verdade é relativa à cultura ou à sociedade em questão”. tipo de objeção que acabamos de mostrar, é mais ou menos
o seguinte: achar que isso é suficiente para dar o caso por
Não é preciso ser muito treinado em filosofia ou em lógica para encerrado, nem pensar! (Na verdade, há uma expressão
perceber as falhas evidentes de uma doutrina que defenda tais interessante: segundo o Protágoras imaginado por Sócrates,
posições. Certamente você, caro leitor, já passou por isso: ou ele diria algo como: “vocês estão aceitando argumentos
bem você disse, ou bem já disseram para você algo do tipo “Toda retóricos! se aceitarem argumentos assim em geometria,
generalização é um erro”. Repare o amigo que a frase tem a então não valem a pena...”). Quer dizer, a boa atitude filosófica
mesma estrutura não apenas gramatical como lógica da anterior: não é esgotar o problema em algo aparentemente tão simples,
a palavrinha “todo” tem o mágico poder de abranger... tudo! É mas sim, tal como faz Sócrates no diálogo de Platão, seguir
o que os lógicos chamam de um quantificador universal — em investigando. Quer dizer, o relativismo de Protágoras deve ser
outras palavras, generaliza. Daí que, bem, se “toda generalização — e de fato o foi — examinado com profundidade, deve ser
é falsa”, então essa sentença é, ela mesma, falsa (pois é, ela levado a sério.
40
(Aliás, há um episódio curioso em que o maestro Leonard
Bernstein, ao anunciar o pianista Glenn Gould em um concerto,
afirma que não concordava em absoluto com a interpretação
Veja onde pegar o seu exemplar:
que este dera ao concerto de Brahms que iriam executar dali
a minutos. Contudo, como Gould era um músico notável e
verdadeiramente dedicado, levando sua arte a sério, Bernstein PORTO ALEGRE (RS):
sentia-se obrigado a fazer o mesmo e respeitar sua interpretação, Aragäna Store
ainda que discordando dela. Essa, parece-nos, é uma excelente Rua Félix da Cunha, 1143
atitude filosófica para com doutrinas das quais divergimos ou a Barbarella Bakery
respeito das quais acreditamos serem falsas, mas que merecem, Rua Dinarte Ribeiro, 56
por um motivo ou outro, serem levadas a sério).
Café da Oca
Rua João Telles, 512
De fato, ao longo da história da filosofia não foram poucas as
vezes que filósofos e pensadores os mais variados combateram Dometila Café
Praça Maurício Cardoso, 49
a nossa tarefa maior, talvez: a busca pela verdade. De Heráclito
e Protágoras a Hume e Nietzsche, vários foram os filósofos que, Famecos/PUCRS
seja por um ângulo relativista ou “perspectivista”, seja por uma Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 7
abordagem cética, lançaram desafios à objetividade da verdade — Livraria Bamboletras
ou à sua existência — e, consequentemente, à noção de critérios Rua General Lima e Silva, 776 – Loja 3
objetivos para julgarmos as coisas. Ainda assim (e por isso mesmo), Livraria Cultura
constituem grandes momentos da nossa história intelectual. Av. Túlio de Rose, 80 – Bourbon Shopping Country
Livraria Nobel
Será esse o caso do multiculturalismo? Não nos parece. Ao contrário Av. Cristóvão Colombo, 545 – Shopping Total
do que ocorre com os filósofos que citamos acima — entre muitos
Livraria Sapere Aude
outros, é claro —, o multiculturalismo não merece esse mesmo
Rua Lopo Gonçalves, 33 – F: (51) 3221-0203
tratamento intelectualmente respeitoso, e o motivo é simples: todos
esses pensadores estavam comprometidos com uma investigação Livraria Zouk
Rua Garibaldi, 1333
séria acerca da realidade, da natureza humana ou, ao menos, das
Av. Paulo Gama, 110 – Anexo 1 da Reitoria da UFRGS
nossas capacidades para realizar tal investigação. Independente da Av. Bento Gonçalves, 9500 – Campus do Vale – UFRGS
força ou da verdade das teorias por eles elaboradas, elas merecem
— e mais, requerem — a séria consideração e a reflexão até mesmo Palavraria
Rua Vasco da Gama, 165 – F: (51) 3268-4260
do mais empedernido dogmático. Não é isso o que ocorre com
a doutrina multiculturalista. Pelo contrário, nesse caso, estamos Restaurante Zero de conduta
diante de uma ideologia, de uma doutrina política no pior sentido Rua Fernandes Vieira, 427 (esquina com Henrique Dias)
que essa expressão pode ter. Saborale Bistrô
Rua João Telles, 294
Mas para entender um pouco disso talvez seja melhor um UniRitter
pequeno passeio não mais pelos aspectos filosóficos do Rua Orfanotrófio, 555
problema, mas sim históricos: o que é e como surgiu essa
variedade pós-moderna de relativismo que, em última análise, CAXIAS DO SUL (RS):
cabe bem no rótulo “multiculturalismo”? Isso é assunto para a Do Arco da Velha Livraria e Café
próxima coluna. § Rua Os 18 do Forte, 1690
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