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DEZEMBRO 2010
JANEIRO 2011
DISTRIBUIÇÃO
GRATUITA

Carlo Ginzburg
Ele se transformou em um clássico da historiografia do século 20
e influenciou o Vaticano na abertura dos arquivos da inquisição

RODOLFO WALSH EDUARDO GIANNETTI QUENTIN TARANTINO


Escritor argentino Uma obra entre a O que ele tem a ver
estreia no Brasil ficção e a não ficção com o português
com dois livros para sacudir o leitor Manoel de Oliveira?
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ocorrem eventos nacionais e internacionais Cursos de mestrado e doutorado de
excelência (CAPES/MEC) que possibilitam a
continuidade nos estudos
editorial sumário

O vigor da entrevista curtas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

SOBRESCRITOS

Dizem por aí que as fronteiras andam se diluindo e que ficou Quinze anos
fácil, muito fácil estabelecer comunicação com qualquer Sérgio Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
pessoa. Bastaria um pequeno artefato, mais uma boa conexão história
e pronto — desfez-se a distância. Isso é verdade, mas o apelo Muito além de queijos e vermes
da conversa frente a frente segue irresistível quando se trata de Rodrigo Bonaldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
uma entrevista. Testemunhar sem filtros ou mediações a fala do
história • entrevista
interlocutor eleva o diálogo a uma potência maior e singular.
Carlo Ginzburg
Sendo assim, não se pode deixar passar uma boa oportunidade.
Rodrigo Bonaldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

Para esta edição da NORTE, fomos atrás não de uma boa, mas de páginas do rascunho • entrevista

uma imperdível entrevista com um intelectual que já inscreveu Eduardo Giannetti


seu nome entre os historiadores mais celebrados do século 20. Fabio Silvestre Cardoso e Rogério Pereira . . . . . 16
Trata-se do italiano Carlo Ginzburg, que esteve em Porto Alegre livros • resenhas
participando do projeto Fronteiras do Pensamento. Diário do hospício e
O cemitério dos vivos, Lima Barreto
O texto no formato pergunta-resposta é precioso porque revela Atilio Bergamini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
a fala original do entrevistado, por isso deve ser adotado com
Essa mulher e outros contos, Rodolfo Walsh
parcimônia, principalmente nestes tempos em que muitos falam Flávio Ilha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
de tudo. Perseguindo esse padrão de qualidade, o doutorando
em história Rodrigo Bonaldo perguntou, provocou e debateu Operação massacre, Rodolfo Walsh
com Ginzburg, enquanto o semblante expressivo do animado Reges Schwaab . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
intelectual era fotografado por Raul Krebs. O resultado se Os beats, Harvey Parker, Ed Piskor e Paul Buhle
encontra estampado nas páginas desta NORTE. Augusto Paim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Demônios em quadrinhos,
Vitor Necchi
Aluísio de Azevedo por Guazzelli
vitor@arquipelagoeditorial.com.br Delfin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Narrar, ser mãe, ser pai, Celso Gutfreind
Roberto Barberena Graña . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
é uma publicação da cinema • artigo
Um encontro
ARQUIPÉLAGO EDITORIAL
Avenida Getúlio Vargas, 901/506 Leonardo Bomfim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
90150-003 — Porto Alegre — RS
cartum
Telefone: (51) 3012-6975
www.arquipelagoeditorial.com.br Fundamentalismo
www.revistanorte.com.br Moa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Conselho editorial
humor
Cristiano Ferrazzo, Fernanda Nunes Barbosa e Tito Montenegro
Sorria, você está no mundo low-cost
Editor
Pedro Gonzaga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
Vitor Necchi

Colaboraram nesta edição: Atilio Bergamini, Augusto Paim, Delfin, Flávio Ilha, páginas filosóficas
Eduardo Wolf, Fabio Silvestre Cardoso, Felipe Pimentel, Gilmar Fraga, Multiculturalismo, relativismo e coerência (2)
Leandro Pizoni, Leonardo Bomfim, Moa, Pedro Gonzaga, Raul Krebs, Eduardo Wolf e Felipe Pimentel . . . . . . . . . . . . . 40
Reges Schwaab, Ricardo Araújo, Rodrigo Bonaldo, Roberto Barberena Graña,
Rogério Pereira e Sérgio Rodrigues. escritório gráfico
Impressão: Edelbra Jean-Paul Sartre por Gilmar Fraga . . . . . . . . . . . 42
Imagem da capa: Raul Krebs/Estúdio Mutante (www.estudiomutante.com.br)

ISSN: 1982-212X

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curtas

Schlee, Cirandar e FestiPoa vencem Fato Literário


personalidade. Ele é autor de duas dezenas
de livros, entre eles o recém-lançado
romance Dom Frutos. Também eram
finalistas as escritoras Lya Luft e Verônica
Stigger e a professora de filosofia e literatura
da UFRGS Kathrin Rosenfield.
Na categoria projeto literário, o
júri oficial premiou a organização não-
governamental Centro de Integração de
Redes Sociais e Culturas Locais, conhecido
como Cirandar, que incentiva a leitura em
comunidades carentes e busca fortalecer
as bibliotecas comunitárias. Na votação
popular, que contabilizou 29.204 votos, o
vencedor foi a FestiPoa Literária, evento
anual que promove conferências, leituras,
palestras e saraus gratuitos em diversos
locais da cidade. Entre os finalistas da
categoria projeto estavam ainda o Gaúchão
O escritor e tradutor Aldyr Garcia Schlee, Federal. O resultado foi anunciado em 15 de Literatura, torneio literário que promove
a ONG Cirandar e a FestiPoa Literária de novembro, último dia da Feira do Livro disputas entre livros pela internet, e a
foram os vencedores do Prêmio Fato de Porto Alegre, em cerimônia no Clube Revista NORTE. Os premiados pelo júri
Literário 2010, promovido pelo Grupo do Comércio. O júri oficial, composto por oficial receberam R$ 20 mil, enquanto o
RBS com o apoio da Caixa Econômica 123 votantes, elegeu Schlee na categoria escolhido pelo público ganhou R$ 10 mil.

Livraria Bamboletras completa 15 anos


Foi em uma viagem pela Europa que para se instalar na Rua General Lima e além de muitas afinidades, têm em mente
a jornalista Lu Vilella teve a ideia de Silva, no Shopping Nova Olaria. contribuir para melhorar o mundo
abrir uma livraria. Visitando lojas de Aos poucos, com sua “simplicidade através da cultura”, aposta Lu. Conhecer
bairro pelo continente, ela achou viável involuntária”, como define Lu, a o gosto de seus clientes também é um
fazer o mesmo em Porto Alegre. Sua Bamboletras vem conquistando seu diferencial da Bamboletras. “Saber quais
especialização em literatura infantil e a público. A localização, em um bairro livros o cliente leu, recomendar certas
paixão pelo tema também contribuíram boêmio e que respira a cultura porto- obras e acertar na dica também é uma
para que o projeto se concretizasse. Foi alegrense, foi fundamental para que a ótima maneira de fidelizar o leitor.”
então que em 1995 nasceu na Rua da livraria ganhasse adeptos. “O cliente entra Nem mesmo a competição com
República a Livraria Bamboletras. na loja e se sente em casa. De cara já escuta megastores e com a internet fez com que
No primeiro ano, o acervo era algo familiar no som ambiente, uma trilha a Bamboletras perdesse clientes. E agora,
voltado exclusivamente para crianças. A que certamente escuta em casa, depois em novembro, completa 15 anos pautados
crescente procura por obras de outros disso, o acervo variado faz com que se pelo slogan “Livraria para todos os
gêneros literários pelos pais dos leitores identifique com a Bamboletras”, explica Lu. gêneros”. O significado é duplo. “Além de
infantis fez com que a livraria abrisse Reduto de músicos, poetas, escritores compreender todos os gêneros literários,
seu leque e passasse a atingir todos os e jornalistas, a Bamboletras se consolidou a Bamboletras também compreende
públicos. Junto com a mudança de acervo como um dos símbolos culturais de Porto todos os gêneros humanos. Aqui, todos
veio a transferência para outro local. A Alegre. “A livraria tem a cara da tribo têm seu espaço, não existe preconceito”,
Bamboletras deixava a Rua da República cultural da cidade, e seus componentes, proclama Lu. — Leandro Pizoni

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Blog debate criação de capas de livros
Samir Machado de Machado fica intrigado.
Desconhece como as pessoas descobrem e
se interessam pelo SobreCapas (sobrecapas.
blogspot.com), página que mantém na
internet para apresentar capas de livros
e discutir sobre os projetos gráficos. E o
interesse vem aumentando. Com pouco
mais de um ano (o primeiro post é de 13
de outubro de 2009), o blog recebe uma
média de 70 visitas por dia.
O projeto surgiu despretensioso, como criação, acredita que não é uma boa capa Embora Samir
que venda um livro. “A função é fazer com afirme que não
forma de arquivar informações. “Toda hora
é a capa que
pesquiso nos sites das editoras exemplos que o leitor se interesse pelo livro e o pegue vende um livro,
que salvo e posto no blog para ter como na mão. Se gostar, ele lê a contracapa, se a a criação de
Marcelo Martinez
referência”, revela Samir, que trabalha com contracapa for boa, passa para a orelha, e para O rei do
design de livros há cerca de 10 anos, é um se a orelha continuar interessante, fecha o inverno foi
determinante
dos editores da Não Editora e também ciclo e compra o livro”, projeta Samir. Mas para que
um dos responsáveis pela concepção dos ele mesmo é a exceção para seu postulado comprasse a obra

projetos gráficos da empresa. e já acabou enfeitiçado pelo projeto gráfico.


O SobreCapas supre uma ausência “A única vez em que comprei um livro pela
de publicações no Brasil centradas no capa foi uma que o Marcelo Martinez criou
design de livros. Ao trazer a discussão para O rei do inverno [de Bernard Cornwell,
para o português, também abriu espaço editora Record], um livro de aventura quem compra um caderno de papéis
para a criação nacional, pois a maioria dos histórica sobre o Rei Arthur”, admite. Era também está valorizando o trabalho gráfico
que havia eram americanos e, portanto, uma sobrecapa impressa em papel metálico desenvolvido com cuidado. O mercado
falavam sobre capas americanas. O fato de que causava impacto na estante. “O verniz brasileiro, aponta o editor, dividide-se
mostrar o criador dos projetos é o grande é carne de vaca, todo mundo usa e às vezes entre antes e depois do surgimento da
trunfo do blog, que mescla apresentação, acaba ficando brega, mas um trabalho editora Cosac Naify, a quem atribui um
entrevistas e reflexões sobre os trabalhos. como esse é outra coisa. Por sorte o livro significativo crescimento do nível dos
Samir entende que uma boa capa ainda era bom”, minimiza Samir. projetos editoriais. “Se tu podes fazer com
precisa ser sincera na relação com o O blog pode ser considerado reflexo de que o livro fique mais bonito, por que não
conteúdo da obra e sintetizar o clima criado uma nova mentalidade quanto à aquisição fazer? Afinal, literatura é arte, e por que
no livro. Porém, mesmo trabalhando com de uma obra. Samir acredita que hoje em não tentar espelhar o conteúdo também na
elas e se confessando um apaixonado pela dia, mesmo com a digitalização de livros, capa?”, provoca Samir. — Ricardo Araújo

Prêmio Açorianos tem nova categoria


Os vencedores da 16ª edição do Prêmio manidades e especial), serão anunciados com o apoio da Coordenação do Livro e
Açorianos de Literatura serão conheci- os destaques e ainda o Livro do Ano, cujo da Literatura da Secretaria Municipal da
dos no dia 13 de dezembro, em cerimônia autor receberá R$ 10 mil. Cultura de Porto Alegre. A apresentação
no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Uma novidade neste ano é o Prêmio do Açorianos 2010 ficará a cargo da dupla
Além dos livros ganhadores nas dez ca- Açorianos de Criação Literária/Conto. Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky, que
tegorias (capa, projeto gráfico, infantil, Nessa categoria concorrem apenas coletâ- interpretam, respectivamente, os perso-
infanto-juvenil, conto, crônica, poesia, neas de contos inéditas. O vencedor rece- nagens Kraunus Sang e Maestro Pletskaya
narrativa longa, ensaio de literatura e hu- berá R$ 10 mil e terá seu livro publicado do espetáculo Tangos e Tragédias.

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sobrescritos • por sérgio rodrigues

Quinze anos
Começou a escrever porque tinha quinze anos, porque ninguém
parecia querê-lo por perto e porque o que ele mais desejava na
vida era reencenar para o mundo o velho número do patinho que
se revela cisne no final. Cinquenta e cinco anos depois, pegando
com a faca uma pasta rosada extraordinariamente suspeita, es-

GILMAR FRAGA
palhando-a numa torrada quadrada de pacote e jogando tudo na
boca de poucos dentes verdadeiros remanescentes, o escritor se
lembrou de sua juventude, do princípio daquela ciranda maluca
de ler, escrever, ser lido, ler, escrever de novo…
ros grandes. Despejou sobre a pequena multidão um discurso
Vinham chamá-lo para cantar parabéns, uma das três coisas que desinspirado, soltou dois palavrões, arrancou risadas, agradeceu
mais abominava no mundo; as outras eram dentista e — o quê mes- e foi se refugiar num canto do sofá, só ele e seu copo de uísque.
mo? Tentou não parecer um perfeito débil-mental enquanto ento- Ninguém tentou impedi-lo. Escritores, socialites, editores, canto-
avam aquelas palavras hediondas, às quais sua idade acrescentava ras, atrizes, bicões de colorações variadas, jornalistas, prostitutas,
agora o pecado do cinismo: muitos anos de vida, essa era muito boa. traficantes e parlamentares entretinham-se uns aos outros no sa-
lão repleto de vozes e música.
Aos quinze anos, não era ainda sequer um escritor: ridículo ter
saudade daquilo. E, no entanto, havia alguma coisa ali, no fundo O escritor fez girar no copo os cubos de gelo. Parecia-lhe tão
do papel em branco, na relação da palavra com a coisa ou dele distante aquele desejo inicial, a fagulha do anseio adolescente
mesmo com a coisa, sabia lá ele, mas alguma coisa havia ali, sim, até hoje insatisfeito; tão distante, e mesmo assim tão dolorido.
de belo e bom que se perdera por inteiro e que, voltando-lhe à Olhando para a multidão matraqueante o escritor pensou, ainda
lembrança sem mais nem menos, enquanto lhe cantavam para- não me querem por perto. Nunca quererão.
béns-pra-você, fez o escritor sentir um calafrio.
Deu um gole largo. Largo demais: um pouco de uísque lhe escor-
Como sempre gostara de uma metáfora, rebuscou: feito o arrepio reu pelo queixo. Nem eu tampouco as quero, pensou, e foi afun-
na alma sentido por quem, caminhando às cegas na noite fecha- dando no sofá. Suava frio. Foi quando lhe ocorreu, com nitidez
da, descobre de repente ter tangenciado um abismo. tipográfica, o seguinte pensamento:

Agora pediam discurso, dis-cur-so — aquele corinho ritmado. ESCREVER É TENTAR IMPRESSIONAR QUEM NÃO MERECE.
Ele sabia ser impossível escapar. Setenta anos era uma marca
grandiosa demais. Tinha oito romances nas costas, dos quais Depois disso, não soube de mais nada até que o calor o acordou
pelo menos cinco eram bastante dignos e dois, isso era (quase) em sua cama ao meio-dia, ressaqueado como há muito não se
consenso, autênticos clássicos contemporâneos. O que fazia dele, sentia, e até morrer, um ano e meio depois, de ataque cardíaco, o
por qualquer critério crítico que se empregasse, um dos cachor- escritor nunca mais pensou em seus quinze anos. §

Sobrescritos em livro
O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues começou a publicar
os contos a que deu o nome de “Sobrescritos” no seu blog
Todoprosa (www.todoprosa.com.br). Na NORTE, aparecem
desde a primeira edição da revista, em novembro de 2007.
Histórias do universo literário repletas de ironia, algumas SOBRESCRITOS
delas foram reunidas no livro Sobrescritos — 40 histórias Sérgio Rodrigues
de escritores, excretores e outros insensatos, publicado pela
MARIA MENDES

Arquipélago Editorial
Arquipélago Editorial, que edita a NORTE. 152 páginas
R$ 25

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A Prefeitura de Porto Alegre, por intermédio da Secretaria Municipal da Cultura, convida
para a Noite do Livro, cerimônia de premiação do Açorianos de Literatura e Açorianos de
Criação Literária 2010.

Data: 13 de dezembro de 2010

Hora: 20h

Local: Teatro Renascença


Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues
Av. Erico Verissimo, 307

Realização
história

MUITO ALÉM DE
QUEIJOS E VERMES
O historiador italiano Carlo Ginzburg desenvolveu um estilo que
envolve o leitor em uma trama minuciosa entre evidências, contradições,
possibilidades, leituras e versões acerca de um objeto

RODRIGO BONALDO

Cúria arquidiocesana de Udine, complexo arquitetônico do Sonhava em seguir os passos maternos, mas sua trajetória, após
Palácio Patriarcal, Friuli, norte da Itália, verão de 1962. Um ingressar na faculdade, levou-o ao estudo da história. Hoje,
jovem interessado nos processos inquisitoriais caminha por pelas benesses da distância, parece-lhe um tanto óbvio ter se
entre prédios tão antigos quanto os registros que procura. Era interessado, ainda na juventude, por estudar a feitiçaria — ou,

RAUL KREBS / ESTÚDIO MUTANTE


um dia especial. Um “douto sacerdote”, de nome Pio Paschini, ia melhor dizendo, pela maneira como os bruxos se enxergavam.
acompanhá-lo pelos corredores com a promessa de abrir, pela Sendo judeu, identificava-se com minorias perseguidas; quando
primeira vez, a porta de uma “grande sala cheia de armários em criança, não via a hora de escutar as estórias da mamãe. Mais
volta”. Aquele arquivo, até então inacessível aos pesquisadores, tarde, a própria ligação entre a bruxaria, o sabá e os contos de
envolto numa aura de mistério e sigilo, guardava “em perfeita fadas seria explorada por ele no livro História noturna.
ordem” quase 2 mil documentos referentes ao Tribunal do
Santo Ofício. “Senti a emoção de um garimpeiro que dá com Estudar essas minorias, mesmo que por acaso, acabaria levando
uma rocha inexplorada”, escreveria, anos mais tarde, um já Ginzburg a ocupar espaço na história eclesiástica. Era 1979, e
renomado historiador Carlo Ginzburg. o pesquisador italiano procurava um processo inquisitorial. O
original encontrava-se num arquivo em Veneza. O texto era
Anos passados debruçando-se sobre as tais fontes, sem interromper enorme, de modo que o encarregado por copiá-lo pediu “um
sua deambulação erudita pelas alas dos arquivos, e Ginzburg dinheiro a mais” para realizar a transcrição. O historiador
daria forma ao que veio ser um primeiro livro, considerado chateou-se e resolveu buscar outra cópia. Acreditava que deveria
ainda hoje por ele seu estudo mais inovador. Os andarilhos do existir uma em Roma. Mandou uma carta pessoal para o papa
bem (1966), título brasileiro, contava a história dos benandanti, João Paulo II, pois os fundos romanos da inquisição estavam
grupo de friulanos que acreditava defender as colheitas do mau interditos. Apelou para questões gerais, declarando-se “judeu,
olhado feiticeiro. Suas práticas e rituais de fertilidade, prováveis ateu e historiador”, alegando que a Igreja deveria submeter-se ao
reminiscências pagãs, foram, no entanto, vistas pelos inquisidores julgo da história. Não houve resposta. Escreveu outra carta, dessa
dentro de esquemas de origem culta a respeito da bruxaria. Com vez mais burocrática, e recebeu uma resposta do responsável
o tempo, os “antifeiticeiros” seriam pintados como bruxos. Como pela seção, o então cardeal Ratzinger. O homem que viria se
o autor sintetizaria mais tarde, as batalhas semânticas na história tornar o papa Bento XVI dizia que tinha mandado checar e que
parecem ser vencidas por quem detém mais poder. o documento não mais existia. Em 1998, João Paulo II resolveu
abrir os arquivos. Na ocasião, Ratzinger declarou que uma carta
Ginzburg nasceu em Turim no ano de 1939, em uma família de 1979, de um historiador chamado Carlo Ginzburg, havia sido
de intelectuais judeus. Com cinco anos de idade perderia o muito importante para aquela decisão.
pai, Leone, assassinado pelos fascistas. Passou a infância na
reclusão do campo, escutando os contos de fadas que a mãe, Anos antes, ao procurar evidências sobre os benandanti,
a escritora Natália Ginzburg, contava-lhe ao pé da cama, para Ginzburg deparou com uma sentença bastante longa. “Uma
que a fantasia e o sono afugentassem os temores da perseguição. das acusações feitas a um réu era a de que ele sustentava que

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DIVULGAÇÃO / COSAC NAIFY
Ginzburg acredita que a dimensão contextual e microscópica deve ser o princípio organizador da narração

o mundo tinha origem na putrefação”, registrou mais tarde. amplamente não canônica à origem católica do mundo:
Anotou o número do processo e o nome do acusado: chamava- Scandella sabia ler — Ginzburg consegue inclusive mapear os
se Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, um livros que teria lido — e havia interpretado os códigos da cultura
moleiro de vida camponesa que havia aprendido a ler. Hoje erudita de maneira perigosa. Bom exemplo de “circularidade
um velho conhecido dos historiadores, ele defendia, vezes sem cultural”, termo tomado de empréstimo a Mikhail Bakhtin.
conta perante comissões inquisitoriais, que o universo havia
sido criado de um colossal queijo podre e que Deus e os anjos A publicação de O queijo e os vermes em 1976 causou alvoroço
eram originariamente vermes que habitavam seu interior. Tudo entre os historiadores. O livro é hoje considerado um dos grandes
isso enquanto os juízes registravam-lhe a fala, os trejeitos, clássicos da historiografia do século 20. Suas fontes, seus métodos,
mesmo detalhes sutis como um leve rubor — minúcias seu recorte, enfim, seu personagem eram ao mesmo tempo tão
descritivas que fariam Ginzburg estudar, em curioso texto da originais quanto bem-vindos dentro de uma atmosfera intelectual
década de 1980, o Inquisidor como antropólogo. dominada pela “história das mentalidades” à la francesa. Mas seus
objetivos já eram outros. Aquela historiografia, essencialmente
Na análise do historiador, aqueles exóticos relatos revelavam interclassista, estudava o que havia de comum entre “César e o
o conflito entre duas culturas que ainda habitavam, em dias último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava
seiscentistas, espaços similares. A cultura dos inquisidores, suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”.
erudita, de saber clerical, tendia novamente a classificar as Não, O queijo e os vermes, carro-chefe do que ficou conhecido
ideias do moleiro segundo diagramas cultos de conhecimento, como “micro-história italiana”, não buscava as estruturas mentais
com seus tratados de demonologia, seus bestiários e processos comuns a uma época. Seu método era a “redução da escala de
anteriores. A cultura de Menocchio, popular, com raízes observação” (termo cunhado por seu colaborador Giovanni Levi),
em remotas tradições camponesas, dava uma interpretação o olhar individual sobre os personagens do passado, o estudo

9
história

dos pormenores, da alteridade (e não da identificação) que se entre evidências, contradições, possibilidades, leituras e
estabelecera, certo dia, entre um inquisidor e um camponês. versões acerca de um objeto. O resultado é alcançado por meio
de uma erudição atordoante que vez por outra pode se mostrar
Mas aqueles episódios individuais ocorridos na Itália do século difícil de penetrar mesmo para o historiador de ofício. Mas esse
16 não deveriam ficar isolados de seu contexto. Longe disso. A procedimento possui um motivo sensato. É a consequência
relação entre a dimensão contextual e microscópica deve ser, instigante, isso sim, da adoção de um modelo epistemológico
para Ginzburg, o princípio organizador da narração. Sendo que o historiador italiano, em ousado artigo de 1979, propunha
assim, afirmava que as condições materiais que credenciaram o ser o dominante no âmbito das ciências humanas.
resgate de um personagem como Menocchio haviam se dado,
por um lado, pela invenção da imprensa — que tornou possível O “paradigma indiciário” foi na verdade uma proposta de
as mãos de um simples moleiro encontrar incunábulos de toda método investigativo centrado nos pormenores, nos resíduos,
sorte — e por outro, pela reforma protestante — que incentivou nos rastros mais tímidos, considerados reveladores. Ginzburg
a vigilância dos tribunais de inquisição, inundando a Europa via antecedentes desse método em certos críticos de arte
com uma perspectiva cristã diversa. oitocentistas, na literatura detetivesca de Arthur Conan Doyle,

ANUNCIAÇÃO. SAN FRANCESCO, AREZZO - FOTO SCALA, FLORENÇA


na psicanálise moderna e na semiótica médica. Todos esses
O trunfo intelectual de um trabalho como aquele desenvolvido fenômenos intelectuais, por mais diversos que fossem, possuíam
pelo primeiro Ginzburg dava-se pela não submissão de suas em comum a característica de se aterem a sinais considerados
páginas a esquemas deterministas de explicação. A história irrelevantes ao olhar leigo — fossem esses detalhes o formato
econômica e social dos anos 1960, influenciada ou não das mãos pintadas a óleo por um artista do Quattrocento, as
pelo marxismo, tendia a compor narrativas assépticas, que minúcias lógicas em uma investigação de Sherlock Holmes,
sufocavam o papel dos agentes históricos, movidos por entidades manifestações do inconsciente em Freud ou ainda o diagnóstico
macroestruturais habitadas por “personagens” abstratos como médico com base na análise de sintomas superficiais.
nação, classe, Estado ou ideologia. Seus métodos flertavam com
a análise de amplas documentações, organizadas em séries. Era Como dinâmica narrativa, o modelo indiciário seguia a linha
a época de ouro da chamada “história serial”, uma época na qual não do realismo ingênuo, da victorian naïveté, do narrador
avançadíssimos computadores a base de cartões perfurados onisciente que caracterizou a escrita da história durante
organizavam o emblemático e relevante e dispensavam o estranho tantos anos. No texto de Ginzburg, não se ouve a voz daquele
e irrelevante. Parecia impossível, para esse tipo de historiografia, sujeitinho insuportável, petulante e enfadonho que narra a
“estender às classes mais baixas o conceito histórico de indivíduo”. História Universal como Deus narrou o gênese. Pelo contrário,
Os de baixo, caso figurassem na história, só o podiam fazer sem as vozes de sua narrativa admitem a dúvida, problematizam
voz, amordaçados pelo pano frio da estatística. os temas, informam os caminhos abandonados, explicitam a
incerteza pela exposição de hipóteses, conferindo ao relato um
Ginzburg conseguiu mostrar, no entanto, que Menocchio não tom de enigma. Afinal, mesmo “obstáculos da pesquisa sob a
era inaudível e, menos ainda, irrelevante. Era, com toda certeza forma de lacunas e distorções de documentos devem se tornar
que podemos ter, um personagem estranho, excepcional, parte do relato do historiador” — defenderia mais tarde. Assim,
mesmo para os seus contemporâneos. Mas era também reconhecia a precariedade de nosso relacionamento com o
paradoxalmente um porta-voz do normal, no sentido de que passado ao mesmo tempo em que reafirmava a capacidade de
conseguiria, mesmo ao custo das chamas inquisitoriais que conhecê-lo. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas
consumiram seu corpo no distante ano de 1599, relegar à — sinais, indícios — que permitem decifrá-la”, pensava.
posteridade — com suas palavras grafadas nos autos do Santo
Ofício — aspectos preciosos a respeito da cultura camponesa. O paradigma indiciário no fundo parecia querer reproduzir
Foi justamente pelo estudo não preconceituoso acerca do o gesto (ou seria o arquétipo?) “talvez mais antigo da história
aparente bizarro que se tornou viável captar, no passado, intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama,
um “outro” em sua dimensão humana. Por trás do estranho, que escruta as pistas da presa”. Se os pré-históricos perseguiam
encontrou-se algo como uma poética da verdade. “Menocchio sua comida, o alimento do historiador moderno seria a verdade
é um de nós”, dizia o historiador italiano, mesmo que seja — ou, ao menos, a “verdade possível”, aquela demonstrável
alguém também “muito diferente de nós”. através de documentos.

O estilo desenvolvido por Ginzburg, já evidente em seus De 1981 a 1988, anos nos quais a editora Einaudi (Turim)
primeiros livros, envolve o leitor em uma trama minuciosa publicou uma revista de Microstorie, Carlo Ginzburg destacou-

10
O relativismo epistemológico, de tendência cética, mostrou-se
moralmente problemático. Os debates negacionistas sobre o
holocausto formaram um ótimo exemplo. Ginzburg, admitindo
conservar “uma lembrança muito nítida da perseguição sofrida”,
não demorou a se posicionar. Sua resposta às teses cépticas
baseadas na redução da historiografia a sua dimensão literária, foi,
outrossim, elegante e em nada emocional. Um esboço preliminar
de suas inserções podem ser encontradas em contribuição ao livro
Probing the limist of representation, publicado no ano de 1992,
agregando diversos autores que tentavam responder se era possível
estabelecer uma representação objetiva de um evento traumático,
como o holocausto, baseada em documentos e testemunhas,
ou se cada interpretação era construída a partir da perspectiva
de seu narrador. Suas falas, sempre defendendo a relação entre
signos e referentes externos, concretos, atacavam o “pirronismo
pós-moderno” (em história, nunca é demais dizê-lo, “pós-
modernidade” tornou-se quase um sinônimo de linguistic-turn).

Já no final dos anos 1990 seus aportes teóricos foram


compilados em livro que no Brasil sairia alguns anos mais
tarde com o nome de Relações de força. Nele, investigam-se os
argumentos pós-modernos, logo associados a uma matriz em
Nietzsche que dispunha retórica e prova em cantos opostos
do conhecimento. Ginzburg volta-se então a Aristóteles.
Em uma famosa asserção que durante anos causou imenso
imbróglio entre os estudiosos da teoria da história, o filósofo
Ginzburg analisa a obra de Piero della Francesca no livro lançado no Brasil havia declarado, em sua Poética, a inferioridade da história em
relação à poesia. Ora, como demonstra o historiador italiano,
a obra aristotélica mais importante para a historiografia — no
se como polemista. Desde cedo já havia protagonizado sentido em que ela hoje nos é familiar — não é a Poética, mas
discussões com Michel Foucault, filósofo que lhe parecia mais sim a Retórica. E a retórica de Aristóteles está intimamente
interessado nos sistemas discursivos de exclusão do que nos ligada à noção de prova.
próprios excluídos, com os seguidores de Roland Barthes
e, sobretudo, com os desconstrucionistas mais radicais que É munido dessa ideia de provar que o historiador, seguindo os
tendiam a reduzir a história ao suporte linguístico que a fios e os rastros que o ligam ao passado — através, por que não,
contava, espécie de discurso sobre si mesmo condenado à do paradigma indiciário, fruto do conhecimento erudito das
análise intertextual e à fruição estética. fontes primárias —, torna-se capaz de construir representações
aproximadas da verdade. E, se a história parece mesmo possuir
O chiste mais conhecido talvez ainda seja aquele com o uma dimensão literária inescapável, deve-se não ignorá-la, mas
primeiro Hayden White, que para ele observava a historiografia levá-la a sério e trabalhá-la, jogando para o íntimo da pesquisa
como pouco mais que um sonho do historiador, uma estrutura (e de sua exposição) as tensões entre narração e documentação.
verbal na forma de um discurso narrativo em prosa, incapaz de Como um caçador a farejar uma presa, como os moleques
decidir, em nome de uma postura relativista, se determinada de Hänsel und Gretel seguindo rastros de migalhas, da casa à
representação é mais ou menos adequada à realidade. Suas floresta, do lar ao mistério, do senso comum ao conhecimento,
querelas se arrastaram por anos, e de certa forma intensificaram- do eu ao outro, do micro ao macro, por fim, a obra de Ginzburg
se a partir de 1988, quando Ginzburg começa a lecionar na demonstra-se o produto de uma reflexão que busca ir muito
Universidade da Califórnia (UCLA) e encontra, nos Estados além de queijos e vermes. §
Unidos, um clima intelectual marcado pelos desdobramentos
relativistas do multiculturalismo. Rodrigo Bonaldo é mestre e doutorando em história pela UFRGS.

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história • entrevista: carlo ginzburg

“Somos todos cercados


pela ficção, pela mentira”
Sentado em uma poltrona do saguão do hotel, mãos erguidas ardendo em chamas. Na verdade, eu queria corrigir certo erro
dançando ao compasso da fala, o historiador italiano Carlo que cometi, mas também penso que podemos tirar uma lição
Ginzburg (1939) explicava a complicada relação entre verdade, desse tipo de experiência. Sou muito preocupado com provas. E,
ficção e mentira. O homem de cabelos desbastados, longas por consequência, também me preocupo com as contraprovas.
sobrancelhas formando espinhos que pareciam nascer de seu Quando percebo que estou enganado, gosto de compartilhar
olhar, já passou dos 70, mas ainda conserva a energia intelectual a contra-demonstração com meus leitores. Penso que esse
dos vinte e poucos — por mais que as marcas do tempo, como procedimento seja instrutivo e excitante. Afinal, convenhamos,
fios e rastros, testemunhassem uma vida dedicada à erudição dos se a contraprova não for parte do jogo, seria como numa cena
arquivos e bibliotecas do Velho Mundo. A partir dessas pesquisas, de Antonioni, no filme Blow-up, com pessoas jogando tênis com
em 1976 publicou O queijo e os vermes, livro que causou alvoroço a rede baixa: não haveria sentido. As contraprovas são parte
entre historiadores e é hoje considerado um dos grandes clássicos integrante do espetáculo. Elas devem ser mostradas, explicitadas,
da historiografia do século 20. Com vários títulos lançados no debatidas, creditadas. E se isso nos leva a ter nossa autoridade
país, Ginzburg se diz emocionado com o fato de universitários desacreditada, bem, teria a dizer apenas que, para o escritor, esse
brasileiros aprenderem história a partir de seu legado intelectual. é um dos lados mais charmosos da boa crítica.
A maturidade do pesquisador — personagem que influenciou o
Vaticano na decisão de tornar público os arquivos da inquisição Seu lançamento analisa o trabalho de Piero della Franscesca
— se revelou durante a entrevista concedida com exclusividade a partir de dois eixos: em primeiro lugar, a iconografia; em
para a revista NORTE em 28 de novembro. Na manhã desse segundo, o comissionamento (o mecenato, o patrocínio) de
mesmo dia, Ginzburg havia chegado a Porto Alegre para proferir suas obras, ambos caminhos convergindo na direção de uma
uma conferência no projeto Fronteiras do Pensamento. “história social da expressão artística”. Certa vez o senhor
disse que um dos motivos da popularidade de seus livros no
O seu trabalho é muito conhecido no Brasil. Como se sente Brasil devia-se ao fato de que possuía uma ótima editora por
ao saber que os cursos de graduação brasileiros ensinam aqui. Se alguém quisesse analisar o trabalho e a divulgação
história com os seus textos? do pensamento de um historiador moderno — sem cair em
Fico emocionado. Penso também que seja um resultado da idealismo — deveria, em última instância, prestar atenção
mente aberta e do grande trabalho de meu editor Luiz Schwarcz, ao papel que a lógica editorial cumpre? De que maneira o
da Companhia das Letras. Ele é um dos dois melhores editores mercado intervém no ofício do historiador?
com quem já trabalhei na vida, o outro é o italiano Giulio Essa é uma ótima questão. Meus livros foram traduzidos para
Einauldi. Na verdade, estou muito impressionado com o alto muitas línguas. Nenhum deles é um verdadeiro best-seller —
padrão do mercado editorial brasileiro, o que se confirmou eu nunca escreveria um. Entretanto, O queijo e os vermes foi um
com meu lançamento recente pela Cosac Naify. sucesso e, de repente, outros de meus livros foram traduzidos.
Esse fato me deixou muito interessado, digamos assim, na
Analisando Piero é originalmente um trabalho de 1981. capacidade que essas publicações tiveram de “viajar”, como se
O senhor publicou-o no Brasil em 1989 pela editora Paz e diz no vocabulário editorial (ou seja, sua “tradutibilidade” para
Terra. O que há de novo nessa versão que agora é relançada diversas línguas), o que também implicava, em última análise,
pela Cosac Naify? em se perguntar de que maneira esses livros foram recebidos.
Essa versão inclui quatro apêndices. Um deles é uma revisão Eu posso apenas imaginar como leitores com diferentes
de um aspecto de meu argumento. Eu lembro que tratei da bagagens puderam reagir a esses livros, pois, afinal, são textos
questão em uma palestra em Frankfurt. Alguém chegou a dizer que não foram escritos para eles. E então teve uma espécie de
que me ver desmontar minha argumentação original era como “valor desconhecido” dentro dessa equação. Considero muito
presenciar a construção de um castelo e, depois, assistir à fortaleza instigante as pessoas poderem reagir a esse tipo de pesquisa

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nele existe veladamente um perigo de perder algo crucial sobre
esse passado, que é a sua distância de nós — apenas porque ele
se torna facilmente disponível.

No Brasil, história vende mais do que qualquer outro


tema — mesmo mais do que auto-ajuda. Por outro lado,
esses Best-sellers não são escritos por historiadores, mas
por jornalistas. O senhor declarou sempre ter considerado
importante escrever pensando em audiências amplas.
Como conciliar o rigor de um trabalho acadêmico com uma
narrativa atrativa ao público geral?
Acredito que essa questão aparece dentro de minha entrada
original dentro da escrita da história. De início, pensei que estava
interessado em escrever para uma audiência profissional (não
diria “acadêmica”). Também acreditava ter interesse em alcançar
um público maior — não muito grande, verdade, porque nunca
me ocorreu fazer nenhuma concessão à vulgarização histórica
(que pode ser legítima, se feita de maneira correta, embora não
estivesse interessado nela). Mirar esses dois alvos — a audiência
RAUL KREBS / ESTÚDIO MUTANTE

profissional e o grande público — mostra que eu não estava


disposto a fazer nenhum sacrifício em termos de rigor. Não sei se
fui bem sucedido nisso, nessa tentativa de, por um lado, alcançar
um público não limitado aos cursos de história e, por outro, não
fazer nenhuma concessão às suas regras mais importantes. Por
vezes penso que fiz bem, por outras, não tanto, especialmente
quando olho para meus textos e percebo tópicos um tanto
áridos. Mas acredito, sim, que ainda existam leitores que não
inscrevendo-as em diferentes pensamentos e formas de são historiadores profissionais, mas que se sentiram atraídos
educação. É claro que o mercado cumpre um papel. Por outro pelo tipo de pesquisa que realizo. E, novamente, acredito que
lado, parece existir algo de imprevisível a respeito da recepção a abrangência das traduções em diferentes línguas implica que,
desses livros, e penso que o mercado não pode explicar tudo em alguma medida, meus projetos foram vitoriosos — mas
nesse caso, porque, como disse antes, meus livros não são best- talvez seja um pouco de otimismo da minha parte.
sellers no sentido mais tradicional do termo.
Após mais de 30 anos, o senhor ainda acredita que o assim
A história e, num sentido amplo, todas as formas de chamado “paradigma indiciário” é o modelo de facto para as
relacionamento com o passado — memórias, biografias, ciências humanas?
patrimônio, comemorações —, parecem se tornar mais Por 25 anos eu não usei esse rótulo, temia me sentir preso em uma
populares nos dias de hoje. O que o senhor pensa a respeito? espécie de logo. Por outro lado, esse conceito poderia funcionar
Quais são as raízes daquilo que já chegou a ser chamado, por como uma espécie de atalho,um atalho que comportasse a ideia
Margaret Macmillan, de “fascínio pelo passado”? de sempre começar novamente, trabalhando nos resultados,
Não tenho certeza de que exista uma “fascinação pela história”. em hipóteses, e então tentar complicá-las, deixando o processo
Alguém poderia argumentar, por exemplo, que o passado está evidente para o leitor, e assim por diante. Defendo que devemos
se tornando mais frágil, e não falaria apenas no sentido físico. tentar trabalhar nesse sentido. Aquele texto de 1979 foi uma
Penso que a fragilidade do meio ambiente afeta, igualmente, o espécie de ensaio em três camadas. Em primeiro plano, havia um
tempo pretérito; por outro lado, a própria disponibilidade de argumento histórico — com o termo “história” entendido num
imagens do passado pode implicar em um tipo de destruição sentido amplo. Nessa parte, falava de história conjetural no sentido
do contexto. Essas constatações me forçariam no mínimo a oitocentista,de caçadores neolíticos e esse tipo de hipóteses gerais.
afirmar que essa “fascinação pela história”, se é que ela existe, Em segundo plano, aparecia uma espécie de argumento teórico
apresenta-se como um fenômeno ambivalente. Talvez a “oferta” implícito. No fundo disso tudo, havia uma ainda mais implícita
do passado seja maior, mas é um tipo diferente de passado, e autobiografia intelectual. Ora, essa autobiografia intelectual

13
história • entrevista: carlo ginzburg

estava um tanto oculta. Era eu tentando compreender meu


próprio trabalho de historiador — e isso estava por trás das pistas
daquele ensaio. Ainda acredito que aquele ensaio possua um
potencial interessante. Ele acabou mesmo sendo lido de diversas
maneiras. Afinal de contas, quando alguém escreve um livro ou
ensaio é como se mandasse uma mensagem que — sabe bem
o escritor experiente — em geral retorna de maneira bastante
imprevisível. Claro que é preciso uma audiência para isso, mas
acredito que Sinais: raízes de um paradigma indiciário possuiu
uma boa audiência. Ou, melhor ainda, várias delas.

O senhor ocupou uma cadeira na Universidade da Califórnia


(UCLA) até 2008. Hoje em dia, como se apresenta o “clima
intelectual” dentro da comunidade acadêmica norte-
americana? O linguistic-turn e o pirronismo pós-moderno
ainda estão fortes entre os estudantes e professores americanos?
Faz alguns anos que não dou aulas nos Estados Unidos. Fiz há anos, especialmente no que se refere à esquerda — a qual
visitas breves ao país para conferências, palestras e coisas e tal, e pertenço —, existe uma tendência a descartar questões caso
irei novamente para a UCLA em janeiro por algumas semanas. suas respostas não sejam satisfatórias, o que é lamentável e, no
Minha impressão, posso estar errado, é de que existe algo como fundo, cede argumentos aos nossos opositores. É por isso que
um fenômeno “pós-pós-moderno”, o que não deixa de ser tanto distinguir problemas de soluções torna-se muito importante.
engraçado. Todos sabemos, existem fãs e pós-fãs. Nos Estados
Unidos, alguém chegou a dizer que existia uma nova geração de Poderia nos contar a estória de sua carta ao Papa João Paulo II?
acadêmicos prontos para desmontar ou atacar velhas posições, Ah, acredito que minha carta tenha sido bem sucedida, em
mas isso é superficial, no final das contas. Não é algo que lida com última instância, já que os arquivos da inquisição foram abertos.
o que realmente me intriga. O que me interessa são questões e Obviamente eu não sou o único responsável por essa conquista.
perguntas. E acredito que uma distinção entre essas duas etapas Chega a ser engraçado porque eu havia até esquecido a tal carta.
da investigação é muito importante. Eu nunca fiquei muito Vinte anos depois, como se sabe, houve todo aquele rumor sobre
impressionado pelas respostas dadas pelos pós-modernistas. o Papa finalmente liberar os documentos do Santo Ofício. E não
Acredito que suas respostas foram, em geral, enfadonhas, é que eles organizaram uma enorme conferência na Accademia
limitantes, desestimulantes. Mas as perguntas lançadas por eles dei Lincei? Eu fui convidado, recebi uma chamada pelo correio,
permanecem. São questões que ainda estão entre nós, sobretudo mas respondi dizendo que infelizmente não poderia ir, pois tinha
o desafio de problematizar a referencialidade da história, de compromissos em Cambridge nos mesmíssimos dias — aliás,
qualquer documento que nos ligue ao passado. Isso é algo que essas palestras que dei em solo britânico sobre a relação entre
deve ser lidado de maneira muito séria. Somos todos cercados a literatura insular e a continental na Europa seriam publicadas
pela ficção, pela mentira. Afinal, não deixa de ser por esse motivo no Brasil com o título de Nenhuma ilha é uma ilha. Depois
que a verdade torna-se ainda mais importante. de alguns dias, recebi um telefonema. Uma voz dizia ligar do
Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede. Era o
Uma crítica estética da historiografia é válida em algum arquivista perguntando se eu havia recebido um convite. Disse
sentido? É possível utilizar instrumentalmente o trabalho que o envelope do Vaticano havia, sim, chegado às minhas mãos,
de, digamos, Hayden White ou F. R. Ankersmit sem levar mas que infelizmente não poderia ir. “Peccato!”, exclamou a voz
seus argumentos até as últimas consequências? Ou, pelo do outro lado da linha.
contrário, essas formas de relativismo são sempre perigosas,
levando a sabores irracionalistas capazes de permitir que Fiquei surpreso por aquele tom pessoal. “Senhor Ginzburg,
uma moralidade fascista seja reproduzida? entenda que sua carta foi muito importante para a decisão de
Moral fascista seria um pouco demais. Não diria isso. O que abertura dos arquivos”, replicou meu interlocutor telefônico.
eu diria é que certamente existem perigos nessas atitudes, “Minha carta?”, perguntei, respondendo a seguir que aquilo
mas, insisto: devemos fazer uma distinção entre perguntas e tinha sido há tanto tempo que tinha até esquecido. A voz,
respostas. Esse é o melhor caminho para uma atitude anti- confusa, deve ter pensado que eu tecia ironias, pois, afinal,
dogmática, ou anti-ideológica. Porque, como venho dizendo para a Igreja Católica 20 anos não são nada. “Sim, sim, aquela

14
carta...” — e finalmente suspirei. Essa história é bizarra porque distinção entre verdade e falsidade cumpre papéis diferentes na
eu havia decidido mandar uma epístola informal, pensando memória. Porque, se formos pensar, mesmo uma memória falsa
que de outra maneira nunca receberia uma resposta. Nela eu pode ser extremamente dolorosa para suas vítimas.
escrevi “sou um judeu, um ateísta, um historiador”. O elemento
crucial, hoje percebo, foi sem dúvida “sou um judeu”, pois Certa vez o senhor declarou que o fato de toda comunicação
de fato os arquivos da inquisição iriam reabrir porque um ser imperfeita, mas mesmo assim possível, é o que realmente
historiador judeu estava pedindo para abri-los, cumprindo, o interessa e está na base do prazer que sente ao viajar. Em
nesse sentido, certo papel político. setembro de 2002, quando o senhor proferiu uma conferência
em Porto Alegre, percebi que muitos de meus colegas e
RAUL KREBS / ESTÚDIO MUTANTE

Qual a importância da decisão? professores sentiram-se frustrados pelo tema escolhido.


A abertura dos arquivos foi um gesto muito importante. Eu Qual a sua impressão sobre a conferência de 2002?
estava pesquisando um processo — um processo do século Eu não lembro do assunto. Era algo muito difícil?
17 contra um judeu convertido, morto em Bologna naquela
época. Eu precisava de uma cópia, e o rapaz que fazia as O senhor apresentou uma discussão um tanto erudita a
transcrições, lá no arquivo Estatal de Veneza, alegava precisar respeito de um vaso renascentista grafado com imagens
de um pagamento extra, porque, afinal, o documento era míticas de cinocéfalos, onocentauros, sátiros e outros
muito extenso. Mas por que tão longo? — pensei. Achei uma motivos pitorescos...
nota em Veneza dizendo que havia sido mandada uma cópia Ah, sim! Então o público ficou desapontado porque o tema
desse processo para Roma. Os arquivos romanos, eu bem da palestra não era o que eles esperavam? Talvez tenha sido
sabia, foram sucateados ao longo dos séculos, sofreram muitas uma má escolha. O objeto em si é magnífico, posso garantir,
perdas nos seus acervos. Mesmo assim, decidi tentar. Mandei mas quem sabe minha análise fora inadequada. Devo dizer
uma carta, uma carta pessoal para o Papa, porém uma carta que, mesmo sabendo que não foi bem recebido, ainda gosto
que levantava questões gerais. Aleguei que os historiadores daquele artigo. Comunicar é algo complexo. A comunicação
mereciam conhecer o passado, e que a Igreja Católica deveria oral, especificamente, enfrenta duas possibilidades: ou você
submeter-se ao jugo da história. Karol Wojtyła era menos manda uma mensagem muito clara, facilmente assimilável,
provinciano do que a maioria dos papas que já tivemos, com mas que então é diluída naquele ato comunicativo, ou você
uma bagagem filosófica interessante. Quem sabe ele pudesse decide compor uma mensagem que é muito mais complicada,
ouvir meu apelo, quisera possuísse uma mente mais aberta — mas que pode apenas ser compreendida de maneira imperfeita.
tal não foi o que realmente acabou por acontecer. Geralmente prefiro trilhar o segundo caminho. Em outras
palavras, acredito que seja melhor tentar transmitir a
Alguns meses atrás, o professor Carlos Fico, após ter negado complexidade da pesquisa e, quando for o caso, na hora de
seus pedidos de acesso a documentos referentes ao período publicar um artigo, talvez os espectadores poderão ler e reler o
da ditadura militar brasileira (1964-1985), pediu demissão que eu disse. No meu ponto de vista, é importante comunicar a
do projeto Memórias Reveladas. Pela sua experiência com os sensação do que uma pesquisa pode ser, mesmo que em alguma
arquivos eclesiásticos, qual deveria ser o papel do historiador medida certo desapontamento possa aflorar. Espero que nesta
a respeito das fontes do “passado proibido” brasileiro? minha visita a Porto Alegre não haja esse tipo de frustração,
Alguém poderia dizer que o exemplo dado pela Igreja Católica é mas essa possibilidade existe e é um risco que preciso correr.
reconfortante e, ao mesmo tempo, frustrante, pois eles abriram Em síntese, odeio repetir a mim mesmo. O que significa que
os arquivos, mas apenas depois de séculos... Essa mesma pessoa eu tenho de correr riscos. Obviamente, esses riscos devem ser
poderia dizer que seria desastroso caso tivessem liberado igualmente corridos pelos meus espectadores e leitores. Então,
esses documentos alguns séculos atrás. Por outro lado, existe quem sabe, eles se sentirão desapontados. Isso é parte do jogo.
essa memória que a tudo assimila, usada como uma espécie
de enorme guarda-sol, cobrindo e fazendo sombra a todos os O tema de sua palestra no Fronteiras do Pensamento — a
tipos de relação com o passado. Eu fico realmente perplexo com história na era do Google — lembra os trabalhos mais
isso. Acredito que a distância entre história e memória deveria recentes do Robert Darnton...
ser protegida. Trata-se de duas coisas distintas. A memória é, Sim, estou familiarizado com eles, mas minha entrada é
digamos, alimentada, incentivada pela história, e vice-versa. diferente. Darnton trabalha com as implicações legais e políticas
História é algo específico, que implica técnicas específicas — do Projeto Google. Penso que minha abordagem é outra. Meu
memória pode ser extremamente emocional, mas também diálogo é maior com Roger Chartier, embora discorde dele, que
baseada em fatos errados, eventos distorcidos. Acredito que essa é alguém cujo trabalho admiro muito. § — Rodrigo Bonaldo

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PáGINAs DO RASCUNHO • entrevista: eduardo giannetti

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Algo a dizer
Eduardo Giannetti fala sobre as dificuldades para escrever sua primeira obra
ficcional, de sua paixão pelo conhecimento e do seu futuro como romancista

fabio silvestre cardoso e rogério pereira


ilustrações de ramon muniz

Eduardo Giannetti tem um propósito: sacudir o leitor, tirá-lo reunir de novo, depois de longos anos, para estudar e debater
de um estado de inércia e colocá-lo em movimento. Enfim, questões de filosofia moral. Vários leitores acreditaram que
inquietar, travar um diálogo que mantenha a ressonância por aquelas pessoas existiam de fato, que eram amigos meus com
um bom tempo após a leitura. Para tanto, embrenha-se pelo os nomes trocados, e que o livro era a transcrição de diálogos
mundo das ideias em A ilusão da alma — projetado, segundo efetivamente travados. Fiquei feliz ao saber que isso tinha
o autor, para ser uma transficção. Ou seja, algo inclassificável ocorrido. Para mim foi uma prova de que a trama, embora
entre a ficção e a não ficção. Nesta empreitada (ou encrenca, fictícia, parecia real, passava no teste da verossimilhança. Aliás,
como define), Giannetti passou vários apertos, pensou em é por isso que esse livro, assim como optei por fazer em A
desistir, deprimiu-se, mas retomou a escrita para finalizar ilusão da alma, não tem prefácio. Ficção ou não-ficção? O que
o livro que, para defini-lo de alguma maneira, encaixa-se realmente me importa, ao escrever um livro, não é ensinar ou
no gênero “romance de ideias”. Nesta entrevista por e-mail, entreter. É travar uma espécie de contato pessoal com o leitor. É
Giannetti fala das dificuldades na execução do livro, de sua plantar a semente de um diálogo ou inquietação que continue
paixão pelo conhecimento, de seus autores preferidos, de como pulsando e frutificando em sua mente muito tempo após o
a literatura tornou-se protagonista em sua vida e de seu futuro término da leitura. Se isso acontecer, o livro vingou. O gênero
como ficcionista, entre outros assuntos. será o que tiver de ser. O autor semeia, a leitura insemina.

A ilusão da alma é seu primeiro romance. Por que, depois Além de Machado de Assis, autor que perpassa a narrativa
de se consolidar como autor de ensaios, o senhor decidiu (seja na voz do narrador, seja nas citações de suas obras
investir em um texto literário? Houve alguma motivação ao longo do texto), existe outro escritor de ficção a quem o
especial? senhor quis render homenagem neste livro?
As divisões me incomodam. Sempre sonhei em escrever Não sei se “render homenagem” é a expressão adequada. A
um livro que não pudesse ser classificado como ficção ou opção por Machado teve dupla motivação. A primeira é que
não-ficção. Que fosse uma espécie de transficção. Busco isso o narrador, meu alter ego, professor de letras e estudioso da
porque a vida é assim — atravessa tudo; não tem o menor sua obra, autor de As rabugens de pessimismo em Machado,
respeito pelas demarcações acadêmicas ou convenções do aprendeu a escrever com ele (ou pelo menos se esforça para
mercado livreiro. O eu-soberano, como chega a especular o tanto). Sua narrativa está apinhada de construções, fraseados,
meu personagem, talvez não passe de uma peça de ficção à volteios e ressonâncias do estilo e da sintaxe machadianos.
qual estamos habituados desde que nos pregaram um nome e Numa primeira versão do livro, exagerei feio nos maneirismos
passamos a nos tomar por gente. A realidade está permeada de e fui corretamente alertado por meus editores. Podei boa
sonho e, o sonho, de realidade. Em Felicidade, criei um diálogo parte deles, embora menos talvez do que deveria. O fato
ficcional entre quatro ex-colegas de faculdade que voltam a se é que, quando leio Machado, tenho a nítida impressão de

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teoria da alma”, exposta pelo ex-alferes Jacobina no conto “O
espelho”, assim como eu já fizera em Auto-engano servindo-
me de Dom Casmurro. A ideia foi tentar mobilizar a bagagem
filosófica de Machado — suas agudas análises de psicologia
moral e da propensão ao auto-engano; “personagens dotados
de bom senso na sandice”, como dizia Mario Matos; a fauna
e a flora das “tergiversações especiosas da mente humana” —
para dar tempero à narrativa e, ao mesmo tempo, mostrar a
universalidade do seu pensamento, um pouco na linha do que
fazem Alfredo Bosi em O enigma do olhar ou, ainda, em outro
contexto mas com o mesmo intuito, o filósofo da mente inglês
Colin McGinn, em Shakespeare’s philosophy.

Qual a importância da pesquisa sobre a relação mente-


cérebro para a composição do livro? É certo que o senhor
possui formação acadêmica e intelectual para dissertar
sobre filosofia, mas, no livro, o protagonista atravessa um
caso clínico de alta especificidade.
Sem a pesquisa não existiria o livro. Há mais de 30 anos estou
com o meu radar de pesquisador ligado nesse assunto. Em
minha tese de doutorado, escrita em Cambridge em meados dos
anos 80, dediquei dois capítulos à tese do “homem-máquina” e
ao trabalho do médico e filósofo iluminista francês La Mettrie,
o que quase me custou a reprovação pela banca, pois acharam
tudo aquilo um tanto excêntrico num trabalho acadêmico de
economia! Só consegui passar porque fui capaz de me defender
razoavelmente no exame oral. Perceberam que eu não era
tão pateta ou maluco como poderia parecer à primeira vista.
De lá para cá, muita coisa aconteceu: as novas técnicas de
visualização do cérebro em tempo real; os achados e espantos
da neurociência; a psicologia evolucionária; a inteligência
artificial; a neuroeconomia. Um dia me ocorreu que valeria
a pena investir numa espécie de balanço crítico retrospectivo
dos debates travados há 2,5 mil anos por filósofos, teólogos e
psicólogos: reavaliar o embate entre mentalistas e fisicalistas,
Sócrates x Demócrito, à luz do que sabemos hoje, ou seja, à
luz das descobertas empíricas e dos resultados experimentais
alcançados nos últimos 20 ou 30 anos. Desde a tese eu tinha
comigo a certeza de que um dia voltaria ao assunto, mas foi
estar diante de um texto que não foi propriamente escrito, só a partir daí que nasceu o primeiro vislumbre do livro. O
mas esculpido. Tudo é exato, compacto, apertado; como algo caso clínico do meu personagem — diagnóstico, alucinações,
talhado em pedra. Claro e belo. Dá vontade de anotar cada cirurgia — de fato cobrou um esforço e um cuidado adicionais.
solução de linguagem para uso futuro. E o meu personagem, Além de estudar alguns autores e textos específicos sobre o
não menos que eu, é vítima do mesmo fascínio. A outra razão assunto, como o Oxford companion to the mind e trabalhos de
é de ordem substantiva. Creio que há mais riqueza, sagacidade Oliver Sacks, contei com a ajuda de dois amigos, um médico
e sutileza filosófica na produção madura de Machado, oncologista e uma neurocientista brasileira radicada nos
romances, contos e crônicas, do que muitas vezes nos levam Estados Unidos. Graças a eles, escapei de alguns equívocos
a crer alguns dos intérpretes sociológicos de sua obra. O meu embaraçosos e pude ser mais específico e verossímil na
personagem tenta evidenciar isso em diversas passagens do narrativa, inclusive nas falas de consultório, quando médico e
livro, como, por exemplo, ao evocar o “esboço de uma nova paciente dialogam.

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PáGINAs DO RASCUNHO • entrevista: eduardo giannetti

causas do relâmpago, do arco-íris e do trovão. Os antropólogos


dos séculos vindouros terão com o que se divertir com os
nossos jornais e livros de história, assim como se divertem,
desde o século 19, com as fábulas, lendas e mitos das culturas
arcaicas pré-científicas sobre o mundo natural.

A ilusão da alma se inscreve dentro do que os críticos


classificariam como “romance de ideias”, exatamente por
articular ficção e ensaio. Até que ponto essa foi a “única
saída” para o livro? Em outras palavras, o senhor imaginou
conceber um romance que não tivesse essa levada filosófica?
A opção pela narrativa em primeira pessoa não foi gratuita.
O que me interessava, desde o início, não era discutir ou
argumentar se o fisicalismo é verdadeiro ou falso. Isso é algo
que está além da minha competência, nunca alimentei tal
pretensão. A ideia foi mostrar o que acontece com alguém que
se converte a esse credo e passa a acreditar seriamente nessa
possibilidade. Daí a opção pela primeira pessoa. Eu precisava
mostrar como alguém vai paulatinamente se convertendo ao
fisicalismo à medida que estuda a relação mente-cérebro, como
isso foi se dando à revelia do que ele preferiria acreditar, e como
uma pessoa vai perdendo o chão e o pé de si mesma quando
começa a trazer tudo isso para a sua experiência pessoal de
vida — sua compreensão íntima de si mesma, dos outros e do
mundo em que acredita viver. Fiz do meu personagem uma
A pergunta “O que nos faz ser quem somos?” desafia o espécie de laboratório de metafísica aplicada, como o médico
narrador e o leitor o tempo todo durante a leitura de A ilusão australiano que ingeriu bactérias para testar uma hipótese
da alma. O senhor arriscaria um palpite ou teria alguma sobre a úlcera estomacal (o Nobel de Medicina Barry Marshall).
certeza sobre a resposta? E o que ele acaba descobrindo é que, por mais que tente, não
Se o fisicalismo é verdadeiro, como sustenta o meu alter ego, há como metabolizar a enormidade do fisicalismo em nossa
o La Mettrie das Alterosas, então a noção que nos é tão cara experiência comum da vida, assim como não há como assimilar
de um eu-unificado e soberano não passa de uma peça de a insignificância cósmica da Terra na ordem das coisas — para
ficção (título que cheguei a propor para o livro, mas que foi todos os efeitos ela permanece, em nossa psicologia e crença
prontamente vetado pelos meus editores). O que faz cada um espontâneas, como o centro inabalável do universo. O credo
ser quem é o seu cérebro, fruto de um mix de fatores genéticos/ fisicalista agride de tal modo tudo aquilo que sentimos e
nature e formativos/nurture. Eu sou a experiência que o meu estamos habituados a crer espontânea e intuitivamente sobre
cérebro tem de si mesmo. Acontece, porém, que o cérebro de nós mesmos que não há como internalizá-lo e enraizá-lo em
cada indivíduo é um agregado de peças e órgãos funcionando nossa autocompreensão. Seria como pedir a um neandertal que
de modo assincrônico, e não há nenhum eu-soberano em seu acredite na chegada do homem a Lua ou na tabela periódica.
trono, no palácio da mente, supervisionando e ditando decretos, Quando a atenção relaxa após o esforço reflexivo, voltamos
alvarás e ordens régias para cá e para lá. A noção de um eu- a nos sentir, a falar e a nos relacionarmos uns com os outros
unificado fica, assim, seriamente abalada pelo fisicalismo. A como bons e calejados mentalistas.
própria expressão “meu cérebro”, por exemplo, não se sustenta:
“meu” de quem? Que “eu” é esse a quem o cérebro pertence? Eu Que autor contemporâneo, da literatura brasileira ou
sou a experiência que um cérebro particular exala e fabula de estrangeira, o senhor observa realizar esse tipo de narrativa
si mesmo. Podemos, em suma, estar tão equivocados sobre nós e que, de alguma maneira, lhe serviu de estímulo/desafio?
mesmos — imersos na mais espessa névoa de enganos, ilusões Não faço muita distinção entre contemporâneos, modernos ou
e fábulas sobre o que nos faz quem somos e o que nos leva a antigos. Gosto de ler como se o autor estivesse se dirigindo a mim
agir como agimos — como, digamos, o ianomâmi amazônico naquele exato momento, independentemente do tempo que nos
ou o aborígine australiano nos parecem equivocados acerca das separa. Alguns livros têm me acompanhado há décadas, quase

18
como amigos a quem posso retornar de tempos em tempos. de tratados sisudos de psicologia acadêmica. E, ao dizer isso,
Nunca me canso de revisitá-los. Enquanto me preparava e não estou só. Veja o que escreve, por exemplo, o eminente
compunha A ilusão da alma, alguns livros me fizeram especial psicólogo e linguista americano Steven Pinker em Tábula
companhia: Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer rasa: “Os cientistas e os intelectuais não são as únicas pessoas
Maria Rilke, um romance narrado em primeira pessoa pela que se dedicaram a examinar como a mente funciona. Todos
persona dinamarquesa, em oposição à solar-mediterrânea, nós somos psicólogos e algumas pessoas, sem o benefício de
do poeta; Memórias do subsolo, de Dostoiévski (li os três credenciais, são grandes psicólogos. A este grupo pertencem
primeiros volumes da biografia de Joseph Frank para tentar poetas e romancistas cujo ofício é criar representações justas
entender como ele chegou a conceber essa obra-prima); O de natureza geral. Paradoxalmente, no clima intelectual
livro do desassossego de Bernardo Soares, alter ego de Fernando de hoje os romancistas podem ter um mandato mais claro
Pessoa; O sonho de d’Alembert, romance filosófico de Diderot, do que os cientistas para dizer a verdade sobre a natureza
com personagens tirados do círculo de amigos do escritor; e humana. (...) Poetas e romancistas têm feito muitos dos
A vida dos animais, do romancista sul-africano J. M. Coetzee, pontos deste livro com mais sagacidade e penetração do que
no qual a protagonista, uma professora de ética, faz uma série qualquer escrevinhador acadêmico poderia esperar fazer”. Se
de palestras, reproduzidas in toto no desenrolar da narrativa, os cientistas se interessassem mais pela arte e, os escritores e
sobre a questão dos direitos dos animais. artistas, pela ciência, todos sairiam ganhando.

Em sua primeira experiência como romancista, houve É correto afirmar que existe certa afinidade entre suas obras
algum objetivo que o senhor gostaria de ter alcançado, mas, mais recentes — O valor do amanhã, O livro das citações e A
por algum motivo, não conseguiu? A despeito da recepção ilusão da alma? Ou seja, para além do fato de os livros terem
da crítica e dos leitores, o livro te satisfaz como autor? sido assinados pelo mesmo autor, existe um tecido literário
Ninguém é bom juiz em causa própria, como dizia Aristóteles. Sei que os aproxima ou, como a própria classificação pressupõe,
que preciso trabalhar muito para apurar a forma e a capacidade são textos diferentes e que não dialogam de forma alguma
expressiva: dizer mais com menos; deixar o dito pelo não dito; entre si?
tensionar a arte de dizer o que é mais difícil de se deixar falar. A afinidade, para mim, é clara — e não só com os livros
Acho que consegui dar um passo, ousar e arriscar-me um pouco citados na pergunta. Às vezes chego a me surpreender quando
mais dessa vez, mas desejo conquistar ainda uma liberdade constato como certas preocupações e possibilidades estavam
interna que não possuo na hora de criar. Se pudesse corrigir já despontando em livros mais antigos, mas só vieram à tona
uma falha do livro, tentaria rebalancear a desproporção entre tempos depois. O embrião de Auto-engano, por exemplo, está
narrativa e ensaio na segunda parte — e o tom também. Como no prefácio de Vícios privados, benefícios públicos?, embora na
disse um amigo, “dá para ouvir o ensaísta Giannetti ali”. época eu não estivesse ciente do que faria anos depois. No caso
de A ilusão da alma, a inquietação em torno da relação mente-
À página 49, lê-se: “Escritores e cientistas compartem uma cérebro e do fantasma do fisicalismo percorre um fio contínuo
ambição: devassar a arquitetura da alma”. Quem se sai que veio se tecendo desde pelo menos O mercado das crenças,
melhor nesta tarefa? Por quê? um livro pesadamente acadêmico publicado na Inglaterra
Cada um tem sua contribuição a dar. O que não se pode aceitar em 1991, mas que só saiu traduzido no Brasil em 2003. Em
é a redução da arte à condição de inócuo entretenimento; Felicidade, há um diálogo inteiro sobre a conjectura de uma
negar a sua vocação cognitiva. No século 18 havia ainda uma “pílula da felicidade instantânea”. E por aí vai. Imagino que todo
forte afinidade e um diálogo profícuo entre arte e ciência. autor carrega suas obsessões. Eu também tenho as minhas.
Foi a partir da ascensão do romantismo, no início do século
19, que o afastamento começou a se firmar e foi aos poucos Como romancista, o senhor enfrentou dilemas diferentes
se radicalizando, em prejuízo de ambas. O filósofo austríaco daqueles de quando escreveu ensaios? A tela em branco, por
Ludwig Wittgenstein, depois de se desembaraçar das amarras exemplo, assustava mais agora do que das outras vezes?
do positivismo lógico, faz uma observação certeira: “As pessoas Creio que subestimei o tamanho do desafio (para não dizer
atualmente pensam que os cientistas existem para instruí-las, encrenca!) que estava comprando quando embarquei no
e os poetas, músicos etc. para lhes dar prazer. A ideia de que projeto deste livro. A principal dificuldade foi encontrar o tom
estes últimos têm alguma coisa para ensinar-lhes — isto não certo e dar o acabamento literário necessário à veia narrativa
lhes ocorre”. Penso que há mais conhecimento verdadeiro da trama. Não cabe a mim, é claro, dizer se consegui — sei
acerca da psicologia profunda do animal humano num que sempre poderia ter ficado melhor (ou menos ruim) do que
romance de Dostoiévski ou de Machado do que em dezenas ficou e que poderia continuar trabalhando no texto pelo resto

19
PáGINAs DO RASCUNHO • entrevista: eduardo giannetti

dos meus dias; mas certamente aprendi como em nenhum crise cambial e o déficit da previdência de manhã, e escrever
outro livro à medida que ouvia e recebia as críticas de quem ia sobre o neolítico moral e a maiêutica socrática à tarde. A saída
lendo e comentando o que eu fazia. A certa altura do trabalho foi separar de uma vez por todas, no tempo e no espaço, essas
o massacre foi de tal ordem que tive um momento de dúvida atividades. Quando estou em São Paulo, não alimento qualquer
radical, deprimi e cheguei a pensar em abandonar o projeto pretensão de escrever algo mais elaborado e reflexivo. Convivo
original e transformá-lo num simples ensaio, como nos livros com a dispersão da atenção e estou aberto e disponível para as
anteriores. Seria a saída mais fácil. Depois recuperei as forças e demandas que a minha atividade profissional regular suscita.
reemergi. Resolvi enfrentar a parada e voltar à carga. Fiz uma Vivo disso. É o que paga as contas no fim do mês e me permite
revisão completa e minuciosa do texto, joguei muita coisa escapar, por alguns meses, de tempos em tempos. Mas quando é
no lixo, e decidi separar completamente o fio narrativo, em para mergulhar em um novo projeto de livro, faço as malas e parto
primeira pessoa, das anotações que o personagem fazia em seus para um período sabático de completo isolamento. Pode ser no
cadernos de estudo à medida que avançava nas investigações e interior de Minas ou em Oxford. O crucial é que a vida prática
procurava refletir sobre o que vinha descobrindo. Mostrei aos seja a mais simples possível e nada me desvie da concentração
meus editores e para alguns outros leitores que haviam criticado na tarefa. Paro de ler jornais e revistas, não assisto tevê, não ouço
as primeiras versões e eles acharam que estava melhor agora rádio, não uso telefone nem acesso a internet. Levo alguns poucos
(ou que eu já tinha apanhado o suficiente). Nunca apanhei — e livros, escolhidos a dedo, e leio relativamente pouco. Como fico
aprendi — tanto como autor. absolutamente só, mesmo quando não estou trabalhando, ao
fazer uma refeição ou caminhar a pé, por exemplo, eu sei que,
Como é o seu método de composição/criação? O senhor na verdade, estou trabalhando. Passo a dormir muito cedo e a
possui algum tipo de estratégia para a feitura de seus textos acordar com o nascer do dia, a cabeça a mil. Uma regra de ouro
em geral? E para este livro, seu primeiro romance, em nesses períodos é jamais sucumbir à tentação da pressa. Posso
particular? passar dias e dias sem escrever uma única linha, como aliás
Falo com desenvoltura, aulas, palestras, entrevistas, mas escrevo sempre acontece no início do trabalho. Aí eu me lembro do que
com enorme dificuldade — um parto. Se as pessoas soubessem a dizia o poeta inglês Alexander Pope: “Por aquilo que publico,
quantidade de vezes que reescrevo uma frase (esta por exemplo), eu peço apenas a compreensão dos leitores; mas, por aquilo que
antes de considerá-la apta a ficar como está, talvez me julgassem descarto e atiro à cesta de lixo, mereço o aplauso imortal”. Uma
insano ou tivessem dó de mim. Daí a minha relutância em aceitar hora, contudo, o trenzinho apita e sai da estação. Quando volto
compromissos de produção de textos escritos. Falar em público de uma temporada dessas, tenho a sensação de ter mobilizado
é razoavelmente fácil e tranquilo para mim, adquiri razoável forças a que normalmente não tenho acesso. Não é que lá eu faço
fluência com a prática; mas parir um texto, por mais banal, é em meses o que teria me consumido vários anos de trabalho em
sofrimento na certa, principalmente o começo. Sempre é assim. São Paulo — a comparação relevante não é essa. É que lá, de
O computador sem dúvida alterou o meu processo criativo. algum modo, consigo fazer o que eu jamais teria feito no meu
Seria impensável reler e corrigir e tornar a reler e emendar tantas cotidiano paulista, mesmo que tivesse todo o tempo do mundo.
vezes o mesmo texto se ainda precisasse escrever à mão ou numa
máquina de escrever. Não sei por que é assim comigo, mas posso De que maneira o senhor tornou-se um leitor? Como a
garantir que é um processo extremamente laborioso, como polir literatura fez-se protagonista em sua vida?
lentes ou praticar escalas musicais. Imagino que tenha a ver com O meu ponto de inflexão é claro em retrospecto. Apaixonei-me
alguma fantasia obscura de permanência da palavra impressa. pela leitura e pelo mundo do pensamento aos 16 anos de idade.
Como se uma frase obscura ou mal-ajambrada pudesse me Cursava o segundo ano do ensino médio no Colégio Santa
cobrir de vergonha ou condenar-me às chamas do inferno por Cruz, em São Paulo, e tivemos um curso chamado “Metafísica”,
toda a eternidade. dirigido pelo padre católico canadense Charbonneau. Entre as
leituras do curso, sobre as quais tínhamos de redigir ensaios
Qual é a sua rotina como escritor? O senhor possui algum interpretativos, estavam: Kafka, Carta ao pai e O processo;
tipo de ideia fixa? Sartre, As palavras e A náusea; Camus, A peste; Dostoiévski,
Cada autor tem suas idiossincrasias. A condição essencial, para Os irmãos Karamazov; e, por fim, como ponto culminante e
mim, é a absoluta concentração na tarefa: “pureza de coração é antídoto contra o niilismo moderno, um livro do teólogo
desejar uma única coisa”. Depois de muitas tentativas frustradas Teilhard de Chardin (não me recordo o título...). Para o bem
de conciliar a minha atividade autoral com o meu dia-a-dia de ou para o mal, acho que continuo fazendo esse curso até hoje
professor universitário e economista em São Paulo, percebi que e nunca me recuperei do impacto que tais leituras tiveram no
não tinha jeito. Não consigo dar uma entrevista sobre, sei lá, a meu cérebro adolescente. Lembro como fui violentamente

20
acreditar ou deixar de acreditar em algo porque isso nos faz
mais ou menos felizes? Quanto aos autoproclamados “ateus
militantes”, que se propõem a tratar “a existência de Deus
como uma hipótese científica como qualquer outra”, Richard
Dawkins à frente, não sei o que mais me espanta: se é a falta de
tino e a superficialidade que revelam diante das necessidades
espirituais do homem ou a fé ingênua da maioria dos crentes e
devotos aos quais se opõem. Ao equívoco de buscar respostas
científicas na religião corresponde o equívoco simétrico de
buscar respostas religiosas na ciência.

O narrador encerra A ilusão da alma com um desafio —


“Refute-me se for capaz!”. O senhor gostaria que outro autor
aceitasse o desafio e voltasse a atenção (de maneira ficcional)
ao tema abordado no seu romance?
A frase que encerra o livro é a frase que encerra o livro do herói
do meu personagem, o L’homme machine de La Mettrie. Tenho
recebido mensagens de leitores que aceitam o desafio proposto e
tentam me convencer de que refutaram o fisicalismo. Acontece
que eu não sou o meu personagem. É curioso. Desde que comecei
tragado por aquele mundo de ideias, como conversava horas a mostrar as primeiras versões do livro a alguns amigos cientistas
a fio com amigos de escola sobre tudo aquilo, as tentativas e escritores, notei que a minha relação com o narrador era
de colocar as minhas ideias e inquietações nas redações, e o curiosamente ambígua: quando alguém o defende, como tendem
patético anticlímax do desfecho católico-teológico, quase a fazer os cientistas (uma jovem neurocientista chegou a declarar
uma piada insípida perto do que tínhamos lido antes. De um — “Então você é um dos nossos!”), o meu impulso é atacá-lo;
modo obscuro a princípio, mas bastante claro em retrospecto, mas, quando alguém o ataca, como fizeram alguns amigos mais
percebo como foi precisamente a partir dali que se fixou em ligados à área de humanas e literatura, houve quem se sentisse
mim o desejo de passar o resto da vida habitando e respirando quase pessoalmente ofendido pelas ideias apresentadas no livro,
de algum modo a atmosfera daquelas leituras. o meu impulso é defendê-lo. De uma coisa, porém, estou certo:
se alguém conseguir refutar conclusivamente o fisicalismo, com
O senhor concorda com filósofos como Luc Ferry que alguma teoria ou descoberta empírica passível de aferição pública,
defendem que as pessoas seriam mais felizes se se receberá com certeza um prêmio Nobel pelo extraordinário feito.
aproximassem mais da filosofia e menos de Deus? Torço para que isso aconteça!
A ideia me faz lembrar um epigrama de Goethe: “Aquele
que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem O senhor pretende seguir produzindo ficção? Há outro livro
nenhuma delas, que tenha religião!” Tudo vai depender, é a caminho?
claro, do que se entende aqui por “filosofia” e por “Deus”. Não Sim, pretendo dedicar-me cada vez mais à literatura. Mas,
acredito nem desacredito em “Deus” — considero-me um como disse no início, não aceito as divisões convencionais
agnóstico, ou seja, não sei. Na verdade, nem sei direito o que entre gêneros, disciplinas ou escolas. Por que se resignar a essas
uma pessoa tem em mente quando declara que “acredita (ou amarras — ficção ou não-ficção, popular ou erudito, prosa ou
não) em Deus”. A fivela do cinturão dos soldados da Wehrmacht poesia? O importante é ter algo a dizer — algo que se torna
nazista trazia a inscrição: Gott mit uns (“Deus está conosco”). imperioso compartilhar —, e não poupar esforços para dizê-
Os americanos, mais pragmáticos, elegeram as suas moedas e lo tão bem e tão belo quanto se é capaz. É pensar por conta
notas de dólares para louvar o ser divino: In God we trust (“Em própria e ter a coragem de correr riscos. Quero conquistar uma
Deus confiamos”). O líder e general puritano, Oliver Cromwell, liberdade que me escapa — na vida e na obra. É isso que me faz
dizia: “O soldado que reza melhor combate melhor”. Será que sentir vivo. §
as pessoas estão falando da mesma coisa quando declaram ou
se matam umas às outras porque acreditam ou não em Deus? Fabio Silvestre Cardoso é jornalista.
Tanto “Deus” como “a filosofia” podem ser fontes da mais
completa felicidade ou infelicidade. Mas será que devemos Rogério Pereira é editor do jornal literário Rascunho.

21
livros • RESENHAS

Diário do hospício e
porque ganha concretude. De alguma maneira, os pensamentos
ficcionais de Olga sobre a loucura reaparecem cinco anos
depois nos pensamentos autobiográficos (e ficcionais?) de
Cemitério dos vivos Lima Barreto sobre uma de suas passagens pelo hospício. Não
se trata, portanto, de uma vivência que foi aproveitada na forma
Lima Barreto de ficção, trata-se de um nó ambivalente, complexo: o escritor
vinha refletindo sobre a questão em crônicas, ao mesmo tempo
o fez no romance, anos depois, nos diários e no Cemitério. A
ficção antecedeu a autobiografia porque estava constituída por
vivências ficcionalizadas que, em seguida, se plantaram no eito
ficcional, mas não mais como mera ficção.

Veja-se a parte VII de Diário do hospício — de resto, uma das


CosacNaify mais deliberadamente ficcionais —, na qual Barreto escreve
352 páginas sobre um dia triste, nublado, durante o qual tenta se analisar
R$ 55 sem conseguir. Essa impossibilidade o faz lembrar de quanto
sonhou e quão pouco, na opinião dele, tinha realizado.

atilio bergamini Para lá da comparação com Triste fim, o trecho merece reflexão,
releitura, respeito pelo que é. Trata-se de uma descrição do
No final da primeira parte de Triste fim de Policarpo Quaresma ambiente que compõe com a interioridade autobiográfica um
(1915), Olga, afilhada do protagonista do romance, o visita em todo moral e cósmico de insinuante força estética, força que se
um hospício. O narrador, terceira pessoa, se amalgama aos coloca como crítica ao racionalismo estéril de muitos cientistas
pensamentos e percepções dela. Acomodado nesse ponto de vista, do período. Os médicos do tempo, sugere Lima Barreto,
o leitor perambula pelo hospício enquanto acompanha reflexões estavam equivocados. Explicavam o complexo e duvidoso
sobre a loucura, falas de Quaresma, descrições da enseada de evento da loucura com certezas acadêmicas mal formuladas,
Botafogo em um dia “particularmente lindo”. Retenhamos essa catadas na prestigiada Europa. Nunca prestavam atenção na
imagem: um dia lindo, uma enseada, um hospício. variedade da existência de cada sujeito, que dirá no chão social
do problema. Partiam do abstrato e permaneciam cegos ao
As duas vozes, a do narrador e a de Olga, se entrelaçam singular e concreto.
sutilmente e ponderam, sob o sol que faísca pelas calçadas, a
respeito da loucura e da razão, da força das ideias e do modo Os termos dessa crítica não são gratuitos. O modo como Triste
como elas se tornam ações ou não se tornam nada. Descrições fim e estes trechos publicados pela CosacNaif são organizados,
iluminadas e frouxas do céu, do mar e da atmosfera fazem sempre partindo de sonhos e desejos que formam homens que,
par com descrições do ambiente do hospício como um lugar por sua vez, não podem ou não conseguem concretizá-los,
ordenado, austero. Certo tédio envergonhado governa o tom, deixa ver a importância dada por Barreto para a dialética do,
que acaba convidando à releitura. O leitor é avisado, e fica feliz digamos assim, lógico e sociológico. Há algo, em vários escritos
por saber, de que Quaresma parecia melhorar, tanto que em de Barreto, que sugere imensa luta contra aquilo que parecia
sua voz havia “mansuetude”. Cada frase mimetiza um conteúdo obviamente dado, evidente. Muitas vezes, o autor parece fazer
(algo como amizade e calma em contraposição a violência e literatura como quem não aceita o reino dos possíveis. A
irracionalidade) e uma consciência (trata-se de um “inferno imaginação e o contraditório em relação a universais abstratos
social” que amplia ao invés de redimir o inferno pessoal) — imaginação e contraditório buscados na concretude da vida
pulsantes, vivos. Não sabemos bem por qual razão, mas parece objetiva ou subjetiva do próprio Lima Barreto — apontam para
haver muito mais do que a narração disposta por técnicas a qualidade rebelde de seus escritos.
simples apresenta.
Ao aceitar o alcoolismo como fonte principal de seus delírios, ou
Depois de ler Diário do hospício e Cemitério dos vivos — seja, ao aceitar o diagnóstico médico para sua loucura, Barreto
escritos que Lima Barreto produziu concomitantemente e, em não deixa de perguntar se o amor, a riqueza, as posições, títulos,
entrevistas da época (1920), sugeriu serem o mesmo manuscrito “coisa[s] que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida”,
—, a emoção que o trecho acima evoca fica mais impactante não são também causa de loucura? Seu eixo crítico parte sempre

22
FOTOS: ACERVO DO IPHAN, INVENTÁRIO

Hospício Nacional de Alienados, onde Lima Barreto esteve internado

de uma análise das relações sociais concretas, atitude que para


nós, leitores do século 21, ensina certa paciência insubmissa de
apreender a realidade como um todo, mas não mais como um
todo orgânico, antes sim, como a atitude que leva o escritor a se
distanciar criticamente dele, na busca de um lugar social no qual
é possível escrever e pensar. Como se, para Lima, a ficção fosse
um jeito de manter vivo o discernimento no umbigo dos delírios
do Brasil racista e excludente da República Velha. Pobre, mulato,
alcoolista e escritor, Lima conseguiu formular uma tarefa a ser
sempre recolocada para os assim chamados setores subalternos
da sociedade, qual seja, a de transformar sua experiência de
miséria, opressão e claustrofobia em uma linguagem crítica.

No final de Triste fim, Olga procura Quaresma na prisão, prestes


a ser fuzilado. A imagem do dia particularmente lindo, que
retivemos no início desta resenha, ganha, depois de ter passado
pelo dia nublado do Diário, uma contraposição esteticamente
arrepiante. É que um pouco antes da visita de Olga, o narrador
escreve desde a consciência do próprio Quaresma: “Vinha
a noite inteiramente, e o silêncio e a treva envolviam tudo”.
Uma frase trabalhada durante todo o romance e durante uma
vida de reflexão sobre a loucura e o destino do escritor numa
organização social que o abandona sem recursos ou lugar. A
noite, nesse caso, não é uma noite moral, procedimento comum
na literatura, é, bem diferente disso, uma noite social. Imagem
cheia de concretude que, como vimos, ecoou um sereno pavor
na atmosfera dos escritos posteriores do grande Lima Barreto.
E na sua vida. § Ficha de internação de Lima Barreto

23
livros • RESENHAs

causaria espanto e horror. Mas a militância, o assassinato trágico


Essa mulher (seu corpo nunca foi devolvido pelos militares argentinos)
e o contato quase obsceno de sua literatura com a realidade
e outros contos crua e violenta da natureza humana o afastaram dos editores
nacionais, que não escondem sua preferência por autores
Rodolfo Walsh menos problemáticos. Dissociar Walsh de sua explícita ação
militante seria como imaginar, ingenuamente, que a literatura
pode vicejar sem se ater à constante construção política a que
todos estamos sujeitos, queiramos ou não.

Não pode, como o próprio autor afirma numa entrevista


publicada como um anexo de Essa mulher e outros contos —
título da primeira coletânea de Rodolfo Walsh publicada no
Editora 34 Brasil. Falando a Piglia sobre escritores de modo geral, inclusive
256 páginas
ele próprio, Walsh critica textualmente a produção literária
R$ 39
burguesa, “que reflete os conflitos da pequena classe média, e
nem sequer os conflitos reais de fundo econômico, sua luta pelo
poder, mas os genericamente chamados conflitos espirituais,
FLÁVIO ILHA íntimos, eróticos, amorosos, alguma parcela disso”. Eis o ponto:
ler Walsh é suficiente para perceber que não há como fugir da
Até bem pouco tempo, Rodolfo Walsh era conhecido no Brasil política. Quando não vamos ao seu encontro, ela nos atropela.
apenas como o autor da carta histórica que denunciou as
atrocidades da ditadura argentina quando o golpe de Estado Caso, por exemplo, da narrativa que dá nome ao volume
contra Isabel Perón completava um ano, em 1977. recém lançado pela Editora 34. Clássica no universo
literário argentino e latino-americano, em Essa mulher
A carta, que revelou ao mundo quem eram de fato os generais Walsh aborda a história real do sequestro do corpo de Evita
que estavam no poder, foi colocada no correio com cópias para Perón em 1955 a partir de uma entrevista que realizou com
poucos destinatários, não mais que meia dúzia espalhados ao o coronel Carlos Eugenio de Moori Koenig, responsável pela
redor do mundo. Foi, talvez, a primeira comunicação em rede operação. A reportagem, que nunca chegou aos jornais, foi
da idade contemporânea, antes da internet, do telefone móvel e transformada num conto conciso e certeiro em 1965, quatro
do Twitter. Um dia depois, uma patrulha da famigerada Escuela anos depois de ser recusada. Como dissociar o jornalista
de Mecânica de La Armada metralhou o remetente. militante do escritor?

Jornalista militante e combativo, integrante primeiro das Fuerzas Parece mesmo uma tarefa difícil, além de inútil. O volume
Armadas Peronistas e, depois, do grupo Montoneros, com editado agora reúne os três livros de “ficção séria” publicados
passagens também pela Alianza Libertadora Nacionalista (ALN), pelo escritor: Los oficios terrestres (1965), Un kilo de oro
Walsh é conhecido como autor de três livros-reportagem de (1967) e Un oscuro día de justicia (1973). Os contos da “fase
grande impacto — entre eles o extraordinário Operação Massacre policial”, escritos entre 1953 e 1956, não aparecem. Em
(1957), publicado em setembro no Brasil pela Companhia das todos, porém, transparece uma prosa marcada pelo rigor do
Letras e que é uma espécie de precursor do new journalism estilo, pela experimentação (que não deve ser confundida
elegantemente atribuído a Truman Capote. Mas Walsh é muito com experimentalismo) e pela temática — nem sempre, mas
mais do que isso, embora nada indicasse ao leitor brasileiro, frequentemente — relacionada à própria biografia do autor e
nessa edição, que também pudesse estar diante de um dos mais de suas circunstâncias humanas e, também, da sua Argentina
brilhantes prosadores modernos da Argentina. E, de fato, está. pastoril e urbana, crivada de golpes de Estado, repleta de tipos
atraentes e sempre com uma frase espirituosa para proferir.
É, portanto, difícil omitir esse preâmbulo ao escrever sobre
Walsh — um autor capaz, sim, de ombrear com Roberto Arlt A série de três “contos irlandeses” presente nos três livros
(embora as diferenças de estilo) e Ernesto Sábato e provocar de Walsh, por exemplo, são explicitamente baseadas em sua
entusiasmo num estudioso de absoluto rigor como Ricardo história pessoal, passada dos dez aos 14 anos em um orfanato no
Piglia e, ao mesmo tempo, morrer por uma causa que a muitos sul da Argentina — Walsh, é bom lembrar, nasceu na Patagônia.

24
hipóteses, uma novela histórica — muito comum aqui entre
nós — entupida de personagens discursando mecanicamente.

O talento de Walsh, felizmente, é bem mais sutil que isso.


Em Fotos, a narrativa dividida em mini capítulos numerados
de 1 a 41 é direta, quase jornalística — o que não quer dizer
simplória. As cenas e as vozes são independentes. O sentido se
constrói aos poucos, ao sabor de um acaso, embora paradoxal,
meticulosamente planejado, pacientemente construído.
Percebe-se de cara o rigor de Walsh nessa construção: o
Walsh é um dos personagem de Jacinto Tolosa evolui aos saltos, mas tendo
DIVULGAÇÃO

mais brilhantes
prosadores modernos sempre o cuidado de não deixar lacunas para o leitor. A partir
da Argentina de fatos aparentemente banais, Walsh elabora um cenário
extremamente complexo.
Sem nunca ceder à tentação confessional e, portanto, livres de
melodramas, os contos refletem toda a violência latente em Em Cartas, o olhar narrativo se centra na figura de Estela.
experiências humanas coletivas, temperada por sentimentos Filha de Tolosa, a menina observa com ternura, humor e uma
como inveja, solidão, medo, perversidade, preconceito. O certa nostalgia aquele mundo campesino que se fragmenta
primeiro deles, Irlandeses atrás de um gato, é um primor de rapidamente. Num trecho em que recorda uma viagem de
tensão e clima: recém chegado ao orfanato, um garoto tenta trem, o fino trabalho de Walsh fica explícito: “Torneira, bronze,
escapar com astúcia do batismo reservado aos calouros e, tremor, seu corpo estremecia de susto na passagem do vagão-
na fuga, propicia alguns momentos — por assim dizer — dormitório ao restaurante sobre o ar rápido cortado de capim.
cinematográficos na trama. A perseguição final e o desfecho Mamãe verde, Jacinto puro beicinho, o mundo brilhava no bule
são dignos de um grande thriller, embora Walsh nunca, e na toalha, nos trilhos ao lado que o trem de repente engolia
em momento algum, abdique da condição literária de suas e vomitava, e longe irrompiam da neblina pontes, sinaleiras,
histórias. O estilo, por isso mesmo, é sempre mantido como chaminés, o estrondo compacto da estação, e milhões de
a condição imprescindível para a concretização do seu objeto pessoas”. O humor é sutil e irônico, como no relacionamento
narrativo. Não por acaso, Piglia remete os contos da série a do jornalista da localidade com os algozes que empastelam seu
Faulkner e, mais apropriadamente, ao Joyce dos Dublinenses. jornal em mais um golpe de Estado ou no relacionamento de
Don Alberto com a Morta, que lhe aparecia em sonhos.
Joyceanos são também Fotos e Cartas, a meu ver o ponto mais
alto das narrativas de Walsh. Pequenas novelas estruturadas Como em Fotos, embora organizada de forma diversa, não há
de modo fragmentado, com idas e vindas recorrentes, os em Cartas uma linha narrativa central. Mas, diferentemente
contos também têm o dom de expor o dramático processo de do primeiro conto, a experiência de Walsh é mais radical
transformação da sociedade argentina nas primeiras décadas porque a polifonia não está explicitada em capítulos,
do século 20. Os dois contos, que se passam numa cidadezinha indicações de leitura ou mesmo em artifícios narrativos que
no sul da Argentina, são centrados na figura de Jacinto Tolosa facilitem a vida do leitor. O turbilhão vem de parágrafo em
— no primeiro sua infância e juventude, no segundo sua parágrafo, às vezes de frase em frase, de linha em linha. O
concentração de riqueza e poder. Dito assim, pode parecer resultado, que em mãos menos habilidosas poderia resultar
que o leitor encontrará diante de si um épico de aventuras, numa tragédia, na escrita de Rodolfo Walsh se revela
um painel sociológico da moderna Argentina ou, na pior das simplesmente fascinante. §

25
livros • RESENHAs

detonados pelo que se costuma chamar de acaso. Foi no fim


Operação massacre de 1956, em pleno calor de dezembro, um bar, um copo de
cerveja em cena. E um homem a dizer ao jornalista que um
Rodolfo Walsh fuzilado no evento de junho estava vivo. Logo descobriu não
ser apenas um.

Rodolfo Walsh tinha 30 anos quando escreveu sobre o caso


e seus sobreviventes. Vinha de uma trajetória na literatura,
especialmente como contista, e estava na imprensa há uma
década. Operação Massacre virou livro ainda em 1957,
Companhia das Letras após quatro meses de investigação. Mesmo antes de ler os
288 páginas apêndices, nos quais Walsh conta detalhes do trabalho, a
R$ 46 intensa busca que realizou se desenha na mente do leitor.
Dezenas de entrevistas, parece evidente, mas era essencial
cruzar todas as afirmações recebidas, reeditar os depoimentos
reges schwaab diversas vezes.

A teia que traz claro o massacre, sem acusação formal ou


Há diversas imagens possíveis para a leitura de Operação julgamento, dependia de informações mediadas, inevitável.
Massacre, do argentino Rodolfo Walsh (1927-1977), vertido E a linguagem era a arma e o elemento contra. Um caso
agora para o português. Elas podem receber alguns feixes de como o de San Martín não era puramente o que se viu, era
um holofote mais policialesco; podem ter tons de uma literatura muito do que não se sabia ao certo, temperado por algumas
política. Fortes luzes, entretanto, vêm do espectro jornalístico verdades que oficialmente seriam consideradas absurdas.
da obra: o singular. E havia os fantasmas vivos dos mortos que não pereceram.
Walsh sentava-se com eles, ouvia os relatos, estava diante das
As denúncias de um assombroso fuzilamento de civis, diferentes marcas impostas pelo brutal ato, todas visíveis, as
perpretado na madrugada de 10 de junho de 1956, começaram a não superficiais inclusive.
ser levadas a público por Rodolfo Walsh em jornais de pequena
circulação. Na época, a Argentina estava sob o comando do Entre as diversas imagens possíveis para a leitura de Operação
general Pedro Eugenio Aramburu, que tomara o posto de Juan Massacre, está a de um jornalista de qualidades essenciais. O
Domingos Perón no ano anterior. No seio de uma mobilização que se apresenta, desde o primeiro capítulo, é a possibilidade
da Polícia e do Exército contra apoiadores do deposto Perón, de passear por um cenário meticulosamente levantado. Walsh
um lixão em San Martín serviria de palco para o massacre de coloca-se ao nosso lado no desenrolar daquela noite. No eco
que trata o livro. dos tiros, lanternas são apontadas em nossa direção. Acabamos
prendendo a respiração também, esperança partilhada de
Um grupo de homens, todos detidos em uma casa. Lá, reunidos, evitar ser percebido ainda vivo. Depois, ao virar o rosto, o sol
eram pessoas que acompanhavam pelo rádio uma luta de já ilumina os primeiros fantasmas que se levantam em busca
boxe. Presos, foram todos convertidos em organizadores de de uma sobrevida; trem, ônibus, ruas, mais prisões, juízes,
um levante contra o general Aramburu. Naquela madrugada generais. Mais assombro. Mais decepções pelos rumos do caso.
negativa de junho, uma noite qualquer e que poderia acabar Toda vez que as palavras do autor tocam cada cena, ela ganha
bem, vidas acabaram estraçalhadas quando policiais levaram a movimento diante de nós.
mão ao ferrolho dos fuzis Mauser. Davam curso ao fato síntese
da união entre violência e paranoia. Sim, é o texto de alguém cujo coração traz uma gaveta para a
paixão pelo gênero policial. Em Walsh, foi um amor que teve
Seriam 12 os mortos na dita ação. Meses depois, já com sua papel motivador para uma prática jornalística intensa; de outra
investigação em curso, bastou a simples leitura da lista dos forma talvez não fosse possível dar cabo da laboriosa operação
“cinco” executados em San Martin para Walsh compreender de remontagem. A sua paixão, portanto, deve ser lembrada
uma primeira questão: o governo não tinha “a menor ideia de diante da reprodução eficaz de toda a geografia daquelas
quem eram as vítimas”. A frase, na obra, já aparece no contexto mortes, do relevo dos seus desdobramentos, mesmo os mais
formado pelo conjunto dos seus primeiros levantamentos, particulares.

26
Depois de 1957, nas três edições subsequentes, todas
organizadas ainda em vida por Walsh, ele sempre fez questão Os beats
de acrescentar notas e atualizações sobre o trabalho. Os
adendos estão reproduzidas na edição brasileira. Na versão em
Harvey Parker, Ed Piskor e Paul Buhle
português da Companhia das Letras para a Coleção Jornalismo
Literário, passados 53 anos da publicação original (e cerca de
40 reedições depois), o texto de Walsh tem posfácio de Natalia
Brizuela, bem como uma nota biográfica, assinada por Ruy
Castro. Nela aparecem a referida paixão de Walsh, também
dando o devido valor ao feito de ter descoberto não apenas
dois sobreviventes do fuzilamento. Nomeou todos, revisitou Benvirá
cada ponto e documento, relatou os pormenores de um caso 208 páginas
R$ 39,90
que poderia (deveria) ter sido comido pela terra.

Com fios de pequenas e importantes sombras nas falas


augusto paim
e atitudes dos próprios mandantes amarrou a extensa
investigação que empreendeu. Os mortos, mortos; os
assassinos (que identificou) permaneceram livres. Walsh foi Instruções de uso da resenha: ligue o som, deixe a criança
atrás da essência de um acontecimento ilegal e desumano que chorando com jazz ao fundo. Use drogas, o corpo jovem foi
a verdade oficial, copiada por alguns pares de jornalistas fiéis, feito para isso. Agora comece a leitura, em qualquer lugar, e
pensava poder dissipar. termine onde quiser. Ou não termine. O importante é não
seguir um padrão. O importante é não dizer “interessante” ou
Em texto para a segunda edição do livro, disse que ganhou “legal” ao fim da leitura. Melhor rasgar o texto. Socar a parede.
por ter esclarecido um complicado enredo. Já aí está um Se você não for adepto do budismo, pode até matar um inseto
grande mérito porque, de fato, é fascinante encontrar o peso com a revista. Queimar a revista. Fumar a revista. E então sair
certo de cada elemento da apurada narrativa. Confessou, para a rua, erguer o braço e pegar carona. Para onde? Qualquer
entretanto, a frustrada pretensão de que o governo pudesse lugar. Lugar nenhum. A vida é uma aventura e você só está
admitir a atrocidade cometida. Diante disso, a leitura de preso em você mesmo.
Operação Massacre adquire inclusive mais apelo. Há sempre ***
uma tocante e boa utopia na busca pelo esclarecimento e pela
justiça. Ela é vital, ininterrupta, necessária. Aos poucos isso Como faz uma geração de classe média que se recusava a viver
ficou ainda mais forte para ele. O traço final da trajetória a vida de rótulos — “formado em Columbia ou em Harvard”,
veio 20 anos depois da primeira edição do livro, em março de “filho do advogado Fulano de Tal”, “sócio da empresa XYZ” —
1977. Em “Carta aberta de um escritor à Junta Militar”, Walsh reservada a eles? Como ser contracultural numa geração com
denunciava as verdades impronunciáveis para o governo papeis sociais tão estanques?
da época. A Carta foi enviada para a imprensa do país e do
Exterior. Ele “desapareceu” no dia seguinte, virou um dos Para se livrar dos rótulos, a geração beatnik — que em fins da
mais de 30 mil casos desse tipo na Argentina. década de 1940 e nos anos 1950 foi precursora dos hippies e
da contracultura estadunidense — acrescentou outros rótulos
Operação Massacre traz um traço jornalístico primordial, ao seu currículo. Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S.
desenvolvido de modo paradigmático. Ele está no ponto Burroughs eram intelectuais, escritores, agitadores culturais e,
fundamental para o caso desvendado por Rodolfo Walsh: ao mesmo tempo, bêbados, viciados, pervertidos, vagabundos,
o descompasso temporal entre a prisão e a “autorização”, criminosos. Burroughs, o pior de todos, foi também um duplo
com a posterior lei marcial, para o fuzilamento dos detidos. homicida. Neal Cassady, inspirador do personagem Dean
Com sua narrativa, Walsh nos faz ver, nítido, o singular que Moriarty de On the road, seria hoje enquadrado como sociopata.
torna peculiares, e simultaneamente universais, os detalhes
gigantescos que movem nossa história. Em especial os detalhes Em todas as histórias, há sempre um outro lado, quando não
mais cruéis. Uma reportagem plena, um livro de muitos vários. A geração beatnik, louvada pelo seu papel contracultural
adjetivos, tecido por um legítimo amante das palavras, como e pela herança que deixou nas artes e na sociedade, tem seu lado
classificou certa vez Alan Pauls. § B. Isso, você pode imaginar, em uma geração que já encarava

27
livros • RESENHAs

o lado B como lado A. Os beats — graphic novel traz várias Algumas passagens de Os beats são bem-sucedidas na árdua
histórias dessa época: tanto as boas, quanto as miseráveis. E tarefa — um desafio do quadrinho não ficcional — de usar
todas valem a pena ser contadas. o desenho de maneira informativa. Esse equilíbrio entre
*** texto e imagem, entre mostrar e dizer, em se tratando de não
ficção, é difícil de alcançar. Trata-se, em verdade, de uma
Dia 7 inesquecível noite Jack Kerouac grita vai vai vai outubro obra que não arrisca muito, como já está dito no prefácio:
Allen Ginsberg O Uivo galeria Six San Francisco 1955 Kerouac e “o livro à sua frente é uma produção em quadrinhos sem a
sua prosa espontânea Ginsberg e sua autopoesia Jackson Pollock pretensão de profundidade e interpretação literária [...]”. E
e sua pintura automática o jazz! ah, o jazz! sempre o ritmo do quando posto em comparação com a diversidade de estilos
jazz o poeta é iluminado o beatnik morre a cultura beat fica até possíveis nessa linguagem, pode-se dizer que Os beats é
hoje quem não é beat? você eles eu somos todos um pouco beats bastante convencional. São poucos os recursos ousados — e
*** nesse sentido a história de Pekar e Peter Kuper sobre o beat
Gary Snyder diferencia-se por usar galhos de árvores como
Apesar de a edição brasileira ostentar o subtítulo graphic novel divisores dos quadros.
(romance gráfico, em inglês), Os beats é uma antologia de
quadrinhos de não ficção. São 25 histórias sobre os beats, feitas Em antologias de quadrinhos, a variedade de estilos pode ser
por 17 artistas. A maioria dos roteiros foi escrito por Harvey Pekar, prejudicial, se a obra carecer de uma unidade. Por mérito do
aqui no Brasil conhecido por ter sua vida retratada no filme O editor Paul Buhle, isso pouco acontece em Os beats. Em linhas
anti-herói americano, e a maior parte dos desenhos é de Ed Piskor. gerais, o livro compõe um mosaico diversificado e coerente
sobre a cultura beat. A primeira metade do livro são histórias
Nos últimos anos, houve uma nítida expansão e consolidação do mais longas sobre Kerouac, Ginsberg e Burroughs. Do meio
mercado de quadrinhos, particularmente na área da não ficção. para o fim, seguem-se outras menores — muitas de apenas duas
A própria Hill and Wang, editora que publicou Os beats nos páginas — sobre artistas não tão conhecidos. Esse é um acerto
Estados Unidos, criou um selo com obras baseadas na realidade do livro: mostrar as histórias dos pouco notáveis, de figuras
— vale lembrar que o título original do livro é The beats — a importantes para a cultura beatnik, que chegaram mesmo
graphic history (história gráfica). Mas como pode o desenho a torná-la possível, mas que ficaram escondidos na sombra
servir para contar objetivamente um fato real? Por trás da da fama de Kerouac & Cia. A cena poética de San Francisco,
biografia de qualquer pessoa, há sempre cenas e contextos que a anterior e independente à chegada dos beatniks, e os centros
informação objetiva não abarca; há sempre climas, ambientes e culturais da época, como a livraria e editora City Lights, em San
emoções que não aparecem nas fotos. E é aí que os quadrinhos, Francisco, e o College of Complexes, bar de Chicago, aparecem
ao lidarem com memórias e reconstituições, podem se tornar merecidamente no livro. Mas a melhor história, com certeza, é
incrivelmente mais objetivos do que qualquer documento. Garotas beatniks.

28
*** Demônios em
o filho de Burroughs usa um pote como latrina Burroughs
acerta um tiro na cabeça da mulher Allen fingindo ser hétero
quadrinhos
faz Elise Cowan desiludida se matar Kerouac transa com a
Aluísio Azevedo por Guazzelli
mulher do amigo Neal Kerouac transa também com o próprio
Neal e Neal transa com todo mundo
***

Tuli Kupferberg, roteirista da última história de Os Beats e autor


do livro 1001 maneiras de fugir do alistamento, deveria também
ter escrito 1001 maneiras de sobreviver a um beat. Ou ele, ou
Peirópolis
Diane Di Prima, ou Hettie Jones, ou Joan Kerouac, ou Joyce 56 páginas
Johnson, ou Carolyn Cassady. Todas mulheres que viveram na R$ 35
órbita dos beats, consertando os estragos. Afinal, alguém tinha
que tomar conta das crianças.
DELFIN
Escrito por Joyce Brabner, viúva de Pekar, Garotas Beatniks
mostra esse lado das mulheres que sobreviveram aos beats Na manhã de domingo em que estas palavras são escritas, o Rio
e que foram precursoras do feminismo. Isso lidando com de Janeiro vive o momento tenso de uma operação de guerra: a
homens que as viam como objetos. Como escreveu Hettie invasão do centro nevrálgico da operação de tráfico de drogas
Jones: “havíamos sido mais do que meias-calças pretas em e armas pelas forças constituídas. Antes, foi uma madrugada
pernas abertas... dançáramos, pintáramos, atuáramos e, sim, opressiva, de espera e de terror, em que criminosos e policiais
haviam escritoras entre nós”. Kerouac & Cia., nesse aspecto, viram os minutos passar cada vez mais lentos, como se o dia
não eram melhores do que os homens do seu tempo. relutasse em raiar no céu carioca.
***
No entanto, o Rio já presenciou uma noite de trevas sem fim.
1001 maneiras de usar a palavra beatnik como marca Foi há pouco mais de um século e teve, por testemunha, um dos
publicitária: maiores escritores brasileiros do período, o naturalista Aluísio
67 — na embalagem de uma carteira de cigarro. Azevedo, famoso por romances como O mulato e O cortiço. O
68 — na embalagem de uma carteira de cigarro, mais autor nos apresentou aos mistérios da escuridão e dos terrores
exatamente na propaganda contra o câncer, do Ministério da noturnos no ano de 1891, num conto hoje considerado um dos
Saúde. precursores do fantástico na literatura nacional: Demônios.
69 — como marca de roupa íntima: “cuecas Cassady: você não
vai querer tirar”. Em sua carreira, o escritor maranhense tem em sua prosa
*** uma visão pessimista da sociedade, ainda que isso possa ser
considerado uma característica da escola literária que representa.
Que se dê o devido reconhecimento a Kerouac & Cia.: eles Isso se deve ao fato de Azevedo, um abolicionista, apresentar
realmente mudaram comportamentos. Muito da contracultura radicalmente os contrastes sociais e raciais, o que fez com que
beatnik está aí até hoje, na liberdade de cada um, em poder se fosse um dos autores brasileiros mais lidos de sua época. Porém,
expressar o que se pensa. Mas o beatnik está também nas roupas, em Demônios, não há cor, credo ou camada social que sobrepujem
nas conversas levianas, na moda. Os beats são, de fato, uma marca a penumbra e a distorção dos sentidos ali apresentadas.
que ficou, com suas contradições e — hoje — clichês. Aconteceu
com eles o que acontece com todas as contraculturas: seu poder No conto, o protagonista é um escritor romântico, apaixonado
de revolta diminui ao ser incorporada ao establishment. por Laura, sua noiva prometida, vivendo num quarto
propositalmente simples na rua do Riachuelo, imerso em seu
Hoje, os beats são um jingle que não sai da cabeça. Mas eles ofício solitário. Até que, numa noite fatídica, tudo parece estar
também foram corajosos ao viverem vidas desapegadas errado: não há sons, não há luminosidade, não há movimento
de qualquer valor. E criaram, assim, novos valores, que nas ruas, apenas uma sensação de torpor que se espalha à
permaneceram após as suas mortes. medida em que o amanhecer não chega.

29
livros • RESENHAS

Dividido em uma introdução e 12 capítulos, o conto é uma imersão


única na carreira de Aluísio Azevedo no campo do fantástico, sendo
considerado por muitos um dos precursores da ficção científica no
Brasil, ao lado de seu contemporâneo Machado de Assis. É mais
correto afirmar, no entanto, que Demônios aproxima o leitor da
literatura de horror psicológico, que viria a ser celebrizada anos
mais tarde pelo norte-americano H. P. Lovecraft.

Esse horror se torna ainda mais perceptível quando temos


contato com a versão da obra em quadrinhos, adaptada por
Eloar Guazzelli para a editora Peirópolis. Nesta edição, basta
avançar pelas primeiras páginas para que vejamos o anoitecer se
impor na narrativa sequencial. A partir daí, é preciso acostumar
os olhos, como quando todas as luzes estão apagadas, e seguir
o protagonista em sua busca pela verdade, pela amada Laura e
pela saída para tal pesadelo.

Guazzelli deixa-se levar pelo clima do conto, criando uma


palheta de cores que navega com harmonia e minimalismo
entre o roxo e o negro, exibindo a cada sequência os monstros
que não podem ser vistos sob as luzes. O leitor, assim como os
personagens da história, vai se acostumando com essa nova
percepção, a ponto de o verdadeiro terror se mostrar, muitas
vezes, justamente no que se faz iluminado. para a Agir. Em comum às duas obras, a maestria em compor
ambientes visuais com um número limitado de cores, o poder
Como se imagina, a versão para quadrinhos está condensada de síntese narrativa e a simplicidade dos traços, sempre a
em relação ao conto original. Isso, porém, fez muito bem para a favor da história. Não por acaso, Guazelli é considerado um
narrativa, pois tirou excessos estéticos e concentrou a trama nos dos mais completos quadrinistas em atividade no Brasil.
seus pontos-chave. Afirmar isso pode ser um acinte para puristas
e acadêmicos, mas é uma verdade: a história de Aluísio Azevedo, É por isso mesmo que Demônios, adaptação mais recente do
como publicada e concebida, é irregular e, em determinados autor, é recomendado não apenas para os fãs de quadrinhos,
pontos, maçante. Ao editar e filtrar o texto original, pela própria mas também para os apreciadores de arte em geral, que saberão
necessidade da adaptação para outra linguagem, Eloar Guazzelli reconhecer o valor estético do conjunto de páginas apresentado
torna a história não apenas mais fluida, mas também aumenta no álbum, e também, claro, para aqueles que se interessam por
o impacto dos fatos narrativos e contribui para que se atinja de nossa literatura e por sua história.
modo mais efetivo o efeito proposto.
Talvez este seja, inclusive, um dos méritos reais das adaptações
Também contribui para a construção do clima do álbum o atuais de obras literárias para os quadrinhos: introduzir um
traço de Guazzelli. Cheio de detalhes e, ao mesmo tempo, novo leitor a universos imaginados há muito tempo, numa
simples em sua concepção, ajuda o leitor a imergir junto com linguagem contemporânea e acessível, rompendo a barreira do
o protagonista em um novo universo, no qual o inesperado tempo e revelando obras que, de outro modo, poderiam estar
acaba se tornando a única coisa que se pode esperar. Tal fadadas ao pó das velhas estantes.
simplicidade faz com que cada um possa imaginar, no fundo,
o seu Rio de Janeiro, a sua Riachuelo, os seus caminhos O curioso é que o mais importante em Demônios talvez esteja além
tortuosos até uma saída que parece, à medida em que se segue da obra, em verdade na percepção do leitor após a leitura. Pois, no
ao final, cada vez mais improvável. fim, ao se olhar para a janela, durante o próximo dia, e se perceber
que há um dia brilhante pela frente, tem-se a noção de que, por
Vale lembrar que esta não é a primeira incursão de Guazzelli vezes, é preciso colidir com as trevas para se sair fortalecido. Pois
ao mundo da literatura em quadrinhos. Antes, ele adaptou, enfrentar o terror e sair dele para contar a história só pode ser um
também com sucesso, O pagador de promessas, de Dias Gomes, sinal de que há esperança nos dias que virão. §

30
Narrar, ser mãe, da criança de uma resposta empática para suas necessidades
e desejos. Constrangido a cada tanto pela conduta violenta e

ser pai caótica do pai, que se encontra invariavelmente sob efeito do


álcool, e da mãe deprimida, que faz pouco mais do que chorar,
ele utiliza-se de um recurso defensivo, que conhecemos como
Celso Gutfreind o devanear compulsivo (o fantasying de Winnicott), para
anular a realidade externa, substituindo-a por uma outra,
pontualmente produzida pela fantasia, na qual seus desejos se
realizam imediata e plenamente. O pequeno personagem de
Gutfreind refere-se a este artifício (maníaco) como “clique”.
Ele explica ao leitor do que se trata:
Difel
256 páginas Não é difícil ficar com o meu pai. Sabe por quê? Porque
R$ 39 eu tenho clique. Eu vou explicar o que é. Agora sim
vocês vão entender; se é de clique, eu sei de tudo e
ROBERTO BARBERENA GRAÑA explico melhor ainda. Por exemplo, se tá chovendo.
Chovendo muito, aquele dia todo cinza, que faz barro
na cancha. Eu faço clique e pronto. Boto calor no dia,
Arbitrariamente, começarei a resenha de Narrar, ser mãe, fica um diazão cheio de sol, amarelo, azul, a cancha
ser pai, do psicanalista Celso Gutfreind, pelo penúltimo seca. Na minha cabeça, é claro, mas aí é só ficar olhando
capítulo. Isso porque nos dez outros que o antecedem, a minha cabeça.
acrescidos de um prefácio, algo nos move incessantemente
a chercher l’écrivain; ele se anuncia, entremostra-se, agita-se Com meu pai tem que fazer clique toda hora. Não é
e, enfim, no capitulo 11 nós o encontramos. É neste capitulo difícil pra mim. Tem outras coisas que eu faço toda
que a arte do Gutfreind narrador nos é mostrada — no hora e não me canso: vejo desenho, como pipoca,
sentido wittgensteiniano — enquanto que nos antecedentes coração de galinha. O meu pai faz coração de galinha
o autor pretendera de diferentes maneiras dizê-la, teorizá-la, superbem. Domingo, no churrasco. Eu vou comendo,
exemplificá-la. Diversas descrições e redescrições da arte de ele vai bebendo, os dois sem parar. Aí chega uma hora
narrar se encadeiam, capítulo após capítulo, evidenciando que ele para. Quer dizer, para de ficar de pé, não de
a incansável dedicação do autor para tornar-nos cientes beber. Bebe sentado, cai da cadeira, e é ruim, porque
da matéria de que se ocupará no seu livro, e nesse sentido acabou o coração de galinha.
ele é pródigo na oferta de poemas e de trechos de prosa de
narradores diversos — o próprio autor é um deles. No 11º Ruim em termos. É hora do clique. Eu clico o meu
capítulo, porém, Celso Gutfreind permite-nos conhecer pai e faço ele ficar de pé. Ele volta a fazer coração de
o narrador habilidoso que ele é, e para tanto exercerá com galinha. Na minha cabeça, é claro. Coração de galinha
fineza a arte do conto. Narra-nos, então, uma historia, breve na cabeça é bom também.
e pungente: É fogo.
Por certo não sintetizarei o conto, nem também revelarei o seu
Este conto tem como protagonista um menino duramente desfecho; isso é parte do propósito de despertar a curiosidade
submetido à violência parental, especificamente aos efeitos do leitor que uma resenha deve ter como princípio (e isso
subjetivamente devastadores do tipo de provisão ambiental independentemente de recomendar ou não o livro de que se
patógena a que Winnicott se refere como tantalizing ocupa). É fogo pode ser uma porta de entrada para o livro
environment. Essa designação é alusiva ao suplício de Tântalo, de Celso Gutfreind, ao menos para os menos submetidos à
impedido por Zeus de saciar sua sede e fome, e indica o efeito cronologia. O romance contemporâneo tem recorrido com
cumulativo da repetição de desapontamentos decorrentes frequência a esta estratégia, o cinema também: comece por
de falhas empáticas grosseiras no exercício das funções onde quiser, leia o livro aleatoriamente, numa ordem que,
parentais, a extrema imprevisibilidade do comportamento do instituída por você, melhor o promove à pretendida condição
outro primordial, o exato oposto, portanto, do que se costuma de co-autor. Não há melhor maneira de usar o livro, no sentido
denominar ambiente médio esperado, o qual corresponde mais winnicottiano, ou de se apropriar dele, no sentido barthesiano
ou menos sintônica, pontual e coerentemente à expectativa (cf. os livros escrevíveis, em A/Z).

31
livros • RESENHAS

Gutfreind utiliza proveitosamente a sua experiência de


observação e trabalho clínico com mães e bebês, no Brasil
e no Exterior, para, alinhavando-a com as contribuições
de autores diversos e ajustando-a a nossa realidade
terceiromundista, enfeixar sugestões de trabalho profilático
em creches, escolas e centros comunitários. Sua receita para
o desenvolvimento pleno e sadio das potencialidades das
crianças é simples: a poetização da vida, mais além da comida
e do calor imprescindíveis. “Para sobreviver efetivamente
(entendo que Celso alude ao viver, na mais nobre e plena
acepção da palavra), é preciso harmonia, poesia na ação
entre dois. É preciso arte, ritmo, tanto quanto o ritmo define
criação poética e humana. Já observamos o suficiente para
sentir que os bebês também vivem da prosódia. Nascem nela
GUILHERME SANTOS

e a ela vão recorrer pelo resto de suas vidas”, afirma o autor


no capitulo nove, insistindo no ritornelo: “A gente não quer
Celso
Gutfreind só comida. A gente quer comida, diversão e arte”. É a esse
plus de gozo da experiência estética oportunizada desde cedo
pela provisão ambiental, e que difere do prazer auto-erótico
Desde o primeiro capítulo Celso nos adverte que o seu decorrente da ativação precoce das zonas erógenas por efeito
livro não é de auto-ajuda. E sabemos nós que os livros de étayage, que Gutfreind se refere. Algo que mais se aproxima
que efetivamente ajudam nunca se propõem de antemão a da ideia de ego orgasm de Winnicott e que não é produto do
isso. A potencialidade terapêutica, entretanto, da aventura exercício instintivo, mas da fruição de uma modalidade de
literária, seja na condição de autor ou de leitor, é conhecida prazer que poderá ser oportunizado apenas pela transmissão
dos amantes da boa literatura nos seus diferentes gêneros viva da cultura e pela experiência dos objetos que ela põe
e estilos. Quando convivemos com aqueles que fazem dela em circulação. Algo da ordem do ser, mais que do sexo. A
profissão (escritores, professores, críticos etc.) escutamos com narrativa oral, e logo escrita, é a via régia, freudianamente
frequência depoimentos do tipo: a leitura de Dostoievski me falando, para o acesso a esta forma de prazer refinado que
possibilitou penetrar fundo em mim mesmo, ou em Fernando permite a integração ao socius e coloca a agressividade a
Pessoa aventurei-me a experimentar os meus diferentes eus, serviço da vida e do convívio humano, como bem atestam as
ou com Proust pude chorar alguns dos meus mortos e por fim experiências de musicalização com crianças e adolescentes
deixá-los ir, ou os contos de Machado de Assis ensinaram- moradores de favelas, especialmente no Rio de Janeiro e
me muito sobre o humano e a vida etc. Refiro-me a frases em Salvador. As pesquisas de C. Trevarthen sobre o efeito
efetivamente escutadas que, somadas à experiência pessoal integrador da música no desenvolvimento inicial dos bebês
de leitor e autor que deve parte da sua cura da doença do e sobre a importância da prosódia da mãe na facilitação e
viver aos romancistas e aos poetas, permitem-me corroborar harmonização dos primeiros contatos com o bebê, logo após
os depoimentos de Celso sobre o efeito subjetivante/ o nascimento, constituem também uma base empírica que dá
terapêutico da narração/narratividade nas diferentes épocas suporte sólido às ideias defendidas por Gutfreind, que entoa,
do existir. “Vida é transmissão e conflito; saúde é poder usando Quintana: Fora do ritmo só há danação.
narrá-los”, afirma Gutfreind no quarto capítulo do seu livro.
Se, como propõe o autor em consonância com Winnicott, a Narrar, ser mãe, ser pai espetaculiza uma bela síntese, precária
formação das metáforas favorece a constituição do sujeito e fugaz como o produto humano está condenado a ser, do
e a apropriação criativa do mundo em que vive, a literatura exercício da subjetividade do autor em diferentes posições, a de
oralizada, o contar histórias e o ouvir histórias possibilitam escritor, leitor, psicanalista, filho e pai, enfatizando e enaltecendo
a inserção do sujeito na cultura e a familiarização crescente poeticamente a interdependência de todas estas funções, a arte
com os mitos e símbolos nos quais esta se sustenta, ao mesmo de operar diferentes metáforas em campos narrativos diversos,
tempo em que lhe possibilita tornar-se consistente (existir o que atesta — narrativamente e mostrativamente — que a
sobre si mesmo), efetivar-se, já que, como propunha Lacan, o vida vive de complexidade e diferença e que o ser do homem
sujeito se constrói numa linha de ficção, a ficção de si, e isto se expressa em refração, na multiplicidade das efetuações
lhe é tudo. simbólicas de seu movimento. §

32
cinema • artigo

FOTOS: DIVULGAÇÃO
À prova de morte (2007)

Um encontro
Ao contrário do que poderia parecer, é possível se pensar em uma aproximação entre
os filmes À prova de morte, de Tarantino, e Sempre bela, de Manoel de Oliveira

leonardo bomfim

Talvez seja um atrevimento colocar Quentin Tarantino e Manoel tendo assistido à obra de outras formas, prestigiou as sessões.
de Oliveira no mesmo espaço. Não por suas obras, mas pelo À prova de morte (2007) circulou, rendeu debates e os urros
que cada um passou a representar no cenário cinematográfico. tradicionais. Sempre bela (2006), de Oliveira, entrou e saiu
Enquanto o português tornou-se figura carimbada das cinco correndo. Quase ninguém viu.
estrelas da crítica, o norte-americano conseguiu reunir sorrisos
— algo raro — tanto de especialistas quanto de cinéfilos de fim Tratam-se de filmes que, vistos na mesma semana, acabam
de semana. As etiquetas, então, foram coladas: o cinema de revelando uma proximidade maior do que as etiquetas
Oliveira é hermético, intelectual, para poucos, e o de Tarantino pressupõem. Em primeiro lugar, dedicam um olhar ao
é acessível, divertido, para todos. próprio cinema. Ocupam, assim, um importante espaço na
produção contemporânea. O termo se tornou fuga fácil, mas
Em 2010, por uma dessas coincidências do destino, filmes é importante pensá-lo além do “qualquer coisa produzida nos
atrasados dos dois cineastas acabaram entrando juntos nas dias de hoje”. Giorgio Agamben oferece caminhos, ao dizer
salas de Porto Alegre. O espectador de Tarantino, mesmo já que “a contemporaneidade é uma singular relação com o

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próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma
distâncias”. Para o italiano, o artista contemporâneo respira
nesta relação: não pode ignorar o que já foi feito, mas não
repete um gesto anterior.

Essa ideia está presente num Abbas Kiarostami, que através do


abraço em Yasujiro Ozu alcança o abstrato em Cinco (2003).
Também em Hou Hsiao-hsien e seu voo livre de A viagem do
balão vermelho (2007), que retoma o clássico media-metragem
de Albert Lamorisse dos anos 1950 em que um garoto interage
com um balão. Retomar sem pastiche, revisitar sem remake.
E ao contrário do período moderno, as rupturas atuais estão
mais pela construção de algo diferente — a partir de referências Cenas de Sempre bela, de Manoel de Oliveira
fortes — do que pela destruição de uma linguagem antecedente.
É exatamente onde se situam À prova de morte e Sempre bela.

O cineasta norte-americano, como de praxe, se debruça sobre


a filmografia exploitation dos anos 1970. Há aqueles que o
rechaçam alegando que se trata de uma cópia barata de tudo
que já foi feito. Um exagero. Por mais que ele faça questão de
homenagear seus heróis (roubando, sim, sequências inteiras de
outros filmes), o resultado das obras revela algo completamente
diferente. Tarantino sempre parte de um universo firme para
aterrissar em um novo lugar. Não dá pra dizer, por exemplo,
que Jackie Brown (1997), apesar da presença de Pam Grier, da
trilha sonora soul e da melancolia típica dos anos 1970, é um
exemplar do blaxploitation.
Tarantino age como aquele garçom nas festas cuja bandeja tem
À prova de morte radicaliza essa relação com a fonte. A suposta os melhores drinques e quitutes. Ele parece que se aproxima,
homenagem ao exploitation está apenas nos detalhes, a obra mas desvia, atendendo um chamado, e some. Depois retorna,
passa longe de qualquer produção do estilo. Aqueles eram filmes dá um gostinho e desaparece mais uma vez. Você fica ansioso,
extremamente acessíveis, que em muitos casos precisavam não tem a mínima ideia de quando as delícias voltarão. Em
ser encarados como mera diversão. Procuravam acariciar os À prova de morte isso é intenso. Há carros, garotas atraentes,
desejos, na maioria das vezes proibidos, do espectador. Em mortes, músicas bem sacadas: tudo que um cinema pode
À prova de morte, pelo contrário, o espectador é desafiado. A oferecer de diversão numa estrutura narrativa que tripudia o
ingenuidade característica dos exploitation (com uma ou outra tempo todo das expectativas do espectador.
exceção e um viva a Russ Meyer) não existe em Tarantino.
Nesse sentido, a sequência em que as quatro meninas tagarelam
O ponto crucial do filme é a audácia narrativa. Se nos dois volumes sobre filmes antigos, interrompendo toda a empolgante
de Kill Bill (2003/2004) há a saturação do característico vai-e-vem primeira parte, se torna emblemática. A impressão é que ela
temporal de Tarantino, À prova de morte apresenta uma linearidade esgota uma fase de Tarantino. Tanto que em Bastardos inglórios
esquisita. É dividido em duas partes: a primeira, com uma longa (2009), seu rebento seguinte, o cinema já não mais está como
cena no bar e um acidente fatal. A segunda, com quatro meninas mote para diálogos bem bolados, mas como o real protagonista.
viciadas em cinema e um racha na estrada. Ao fim do primeiro O filme gira em torno dele. Não por acaso, é sua grande obra-
momento, o crescendo da trama é interrompido, começa outra prima — mais que um filme de cinéfilo, um filme de crítico, de
história com novos protagonistas, novos cenários. Um filme torto, quem está pensando o cinema.
feito para incomodar. Porque nas obras precedentes de Tarantino
sempre há um momento em que tudo se harmoniza. Aqui não, Aqui surge outro encontro interessante entre os dois: são
mesmo com um encontro entre os personagens no desfecho, o cineastas que dominam a palavra filmada, cada um a sua maneira,
filme não retoma o chão, parece incompleto. de certa forma opostas. Tarantino cria suas intermináveis

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cinema • artigo

Na segunda parte
de À prova de
morte, Tarantino
apresenta meninas
DIVULGAÇÃO

viciadas em
cinema e um
racha na estrada

cenas de diálogo através da montagem. É um herdeiro de Eric que com clássicos não se mexe, mas Oliveira é esperto, mostra
Rohmer, figura chave da Nouvelle Vague, que realizava filmes que a única forma de retomar uma obra-prima é puxando-a
inteiros baseados em conversas e considerava a decupagem pra dançar.
o elemento principal da mise-en-scène. Invariavelmente,
Tarantino apresenta uma quantidade incrível de planos, de Buscando a referência da narrativa de Buñuel e Carrière,
um enorme repertório (por vezes até excessivo). Oliveira Oliveira realiza uma obra essencialmente autoral. Não é uma
prefere o plano-sequência e a câmera fixa, justifica que “nos continuação de A bela da tarde, passa longe da claridade
filmes falados, quando o diálogo é rico, a atenção é necessária desconcertante em que as fantasias de Séverine eram
e não se deve distrair o espectador do que diz o ator, porque o mostradas no filme de 1967. O português coloca sua obra na
movimento o distrai”. Até mesmo quando opta pela decupagem, penumbra. Ao mesmo tempo, introduz seu humor peculiar,
em conversas no carro de Viagem ao princípio do mundo (1997), principalmente nas cenas em que o protagonista relembra,
por exemplo, há repetições de poucos planos, busca-se uma entre generosas doses de uísque, o passado picante para um
imobilidade. Aproxima-se de Rohmer, mas num outro sentido, barman estrangeiro.
principalmente quando diz que o cineasta deve ser invisível.
O centenário cineasta acaba assumindo, no fim, o papel de
Em Sempre bela, filme que também abraça as palavras, há a supra-sumo da contemporaneidade apontada por Agamben.
retomada de uma história já clássica: A bela da tarde (1967), Oliveira está aqui, lá e em todo o lugar. Em épocas de euforias
de Luis Buñuel. Nas palavras do próprio Oliveira, é um tributo digitais, consegue com seu mais novo filme, O estranho caso
ao cineasta espanhol e ao seu roteirista Jean-Claude Carrière. de Angélica (2010), retornar a Méliès para abordar a força da
Se na obra original o personagem de Michel Piccoli era imagem. E por que sua obra não é degustada pela maioria dos
coadjuvante — o amigo que acaba inflamando os desejos de fãs de Tarantino? Talvez sua simplicidade espantosa seja um
Séverine —, aqui ele é o protagonista. Um senhor solitário que tabu para olhares viciados. A única conclusão plausível é que a
reencontra, por acaso, a belle de jour. Catherine Deneuve não rejeição ocorre porque a obra de Oliveira abre poucas brechas
quis interpretar novamente a personagem, tarefa que caiu nas para cair no universo restrito que se convencionou chamar de
mãos da preciosa Bulle Ogier. Detalhe que, embora incomode cultura pop.
alguns, não deixa de provocar um estranhamento interessante.
A armadilha do cinema de Tarantino é que ele se deixa ser
Um filme inexplicável, deliciosamente linear, com apenas 68 encarado de forma rasteira. O verniz é delicioso: muito fácil
minutos e pouquíssimas variações de cena. Qual o mistério de ficar na superfície, nos diálogos de efeito, nos personagens
Sempre bela? A impressão é que só Oliveira, com quase 100 anos bacanas — ou seja, na cultura pop. São limites que enfraquecem
na época das filmagens, poderia fazer algo tão simples a partir sua obra. Ao assistir À prova de morte e Sempre bela num curto
de uma trama tão incensada. Pois há uma diferença importante espaço de tempo, percebe-se que as etiquetas perdem a força.
das homenagens de Tarantino, que costumeiramente recorre Podem ser tranquilamente apreciados pelos mesmos olhos. §
ao cinema considerado B, de segundo escalão. Aqui temos o
diálogo com um cânone, algo difícil de fazer. Há quem diga Leonardo Bomfim é jornalista e pesquisador de cinema.

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cartum • moa

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HUMOR • POR PEDRO GONZAGA

Sorria, você está


no mundo low-cost,
mas não espere afagos nem apertos de mão, estamos can- torcicolos ou cãibras. Dez quilos a menos e você veria que o
sados. Graças ao nosso engenho, gerência diferenciada e, problema não são as nossas poltronas. E já que estamos num
por que não dizer, magnanimidade, gente como você pôde clima de sinceridade, essa barbicha aí o denuncia. Você deve
finalmente experimentar os prazeres do mundo dos ricos: ser um desses arcaicos militantes de esquerda, da mesma laia
voar. Sanduíche? Tem graça. A barra de cereal que agora daqueles pelintras do PROCON, já o vemos vibrando com
lhe oferecemos é o que permite o corte significativo no pre- eles quando nos proibiram de cobrar uma taxa pelo uso do
ço de nossas passagens. Sabemos muito bem quem você é. banheiro durante as viagens. Sabe o que a cambada — a sua
Conhecemos o seu tipo, esse ar arrogante de consumidor cambada — alegou? Que não haveria alternativa de alívio
do passado. Ainda no check-in, não vai deixar um instante aos usuários em pleno ar. Com todo respeito, mas de que,
de evocar (com que finalidade além do tumulto?) o tempo diabos, vocês estão falando? Uma criatura humana que não
dos seus pais, talheres de prata e poltronas amplas, comis- consegue conter seus instintos em nada se diferencia de um
sárias simpáticas e lencinhos perfumados. Lugar marcado? animal, que, como você bem sabe, não pode viajar em nossa
Vamos, deixe de preguiça, uma pequena fila nunca matou cabine sem o pagamento da taxa-pet (bem mais cara do que
ninguém. E não se esqueça das medidas da mala de mão, uma ou duas idas ao banheiro). Sabe, isso é o que mais nos
isso é muito importante. Não gostamos de mandriões em dói: a ingratidão, a insídia, a ignorância. Todos queriam um
nossa companhia, que quase explodem suas bagagens para mundo onde viajar fosse mais barato, e nós o fizemos. Todos
não pagar o excesso de peso. Isso mesmo, comece a escolher queriam um mundo com menos formalidades, em que via-
o que vai deixar no saguão do aeroporto. Mania de pobre jar de bermuda e camiseta regata fosse aceito, e lá estávamos
de viajar com a casa inteira, presentes até para os primos do nós. Quando pediram por eficiência e tratamento igualitário,
interior. Já vemos que você confunde as coisas. Não foi por- a quem, desesperados, recorreram? E agora querem ouvir
que propusemos um melhor aproveitamento de nossos cor- música e ver filmes de graça, reclamam do contato caloro-
redores com a venda de lugares em pé que está permitida so dos ombros de seus semelhantes, praticam, sem pejos, os
a mais desbragada das farofagens. Transporte? Túnel para mais estapafúrdios exercícios de redistribuição das poltronas
a cabine? Ninguém reclama de caminhar ou correr na aca- (sim, não esquecemos do seu gesticular solerte (menos uma
demia. Não vai me dizer que vai derreter por causa dessa fileira aqui, menos um assento ali e teríamos espaço decen-
chuvinha... Apresse o passo, meu toupeira. Ah, não há lugar te). Sua audácia é tão desenfreada que o vimos reclamar até
para sentar junto com sua acompanhante? Ora, vocês terão da miséria do sachê com sete amendoins que oferecemos,
a vida toda para desfrutar do amor. Um par de horas sepa- benevolentes, para amenizar as agruras das turbulências.
rados pode até reacender o fogo da relação. Está com calor? Basta, ouviu? Basta! Comece a sorrir. Moldaremos os céus à
Saiba que nossa empresa se preocupa com a emissão dos ga- nossa imagem e semelhança. Sua voz será esquecida. Cale-se
ses que provocam o aquecimento global. Baixo custo é, an- e sorria, durma, meu filho, durma como os outros, olhe ao
tes de mais nada, a postura ecologicamente correta. Perdeu seu redor, tantos usuários satisfeitos, durma, pois mesmo em
a sensibilidade nos pés? Devagar, nada de se esticar de ma- sonhos você estará, alma de cinquenta centavos, nos braços
neira acintosa, obstruindo o trânsito de nossos comissários. do mundo low-cost.
Tome, aqui está nossa cartilha de alongamentos e exercícios
aos passageiros da classe econômica para evitar trombose, Pedro Gonzaga é poeta e só viaja de classe executiva.

38
imprescindível

tanto quanto
R$ 60,00
(assinatura anual)
(41) 3019-0498
rascunho@gmail.com
www.rascunho.com.br

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o jornal de literatura do Brasil
PÁGINAS FILOSÓFICAS

Multiculturalismo, relativismo
e coerência (Parte 2)
eduardo wolf
felipe pimentel

O leitor que nos fez a gentileza de ler a coluna na NORTE própria, uma generalização). E assim armamos um paradoxo.
anterior viu que além de uma diatribe provocadora contra o Aliás, o mesmo que ocorre com qualquer proposição relativista:
multiculturalismo, fazíamos uma promessa: explicar, ao menos “tudo é relativo”, por exemplo. Ocorre que quem enuncia teses
em linhas gerais, qual é a origem dessa postura e dessa ideologia como essas — “toda generalização é um erro”, “tudo é relativo”
tão arraigada em nossa experiência cultural contemporânea. É — pretende que ao menos uma generalização não seja um erro,
o que pretendemos fazer neste artigo. Para isso, em primeiro que ao menos algo não seja relativo: a sua própria crença. Afinal,
lugar, vamos tentar mostrar o que aproxima e o que diferencia as se não for assim, então suas crenças podem não passar disso —
expressões que vão no título, “relativismo” e “multiculturalismo”, suas crenças, não sendo nem mais, nem menos verdadeiras do
estabelecendo, assim, um pouco das diferenças entre as que outras, abrindo a possibilidade para que, talvez, a crença de
variedades de relativismo; com isso será possível vislumbrar, que “nem toda generalização é um erro” ou de que “nem tudo é
talvez, o que há de mais filosófico no problema que acreditamos relativo” sejam, elas sim, verdadeiras.
ter levantado na última edição. A seguir, nos concentraremos
no problema do multiculturalismo como fenômeno ideológico É claro que uma contradição como essa, que salta aos olhos,
propriamente. Assim, deixamos um pouco o terreno da não escapou ao Sócrates-personagem dos diálogos de Platão,
polêmica e da perplexidade e passamos à filosofia e à história, em particular ao comentar a referida tese de Protágoras. De
nessa ordem, por trás das teorias antes mencionadas. fato, quem se aventurar no Teeteto verá que Sócrates a utiliza:
se toda verdade e, portanto, toda sabedoria é relativa ao sujeito,
Em um dos mais importantes diálogos de Platão, o Teeteto, há então quem o próprio Protágoras pensa que é para ser julgado
uma análise da famosa tese do filósofo pré-socrático Protágoras como sábio e fazer valer sua doutrina? Quer dizer, a nossa
segundo a qual “o homem é a medida de todas as coisas” resposta intuitiva do parágrafo acima, obviamente, já tinha
(uma espécie de primeira grande doutrina relativista: se cada sido pensada por Sócrates/Platão.
homem é a medida da verdade de todas as coisas, então tudo
é relativo, tudo é subjetivo). Como se vê, não há nada de novo É possível que ao ler isso você pense: “Nossa, Sócrates (ou
nas afirmações relativistas dos pós-modernos de que a verdade Platão, no caso) já tinha pensado o mesmo que eu!”. Bem,
é uma ficção dos sujeitos, de que cada indivíduo “constrói” a é melhor ler o diálogo inteiro, porque uma das coisas que
realidade, ou, para ficarmos no credo multiculturalista, de que Sócrates dirá, supondo uma resposta de Protágoras a esse
“toda verdade é relativa à cultura ou à sociedade em questão”. tipo de objeção que acabamos de mostrar, é mais ou menos
o seguinte: achar que isso é suficiente para dar o caso por
Não é preciso ser muito treinado em filosofia ou em lógica para encerrado, nem pensar! (Na verdade, há uma expressão
perceber as falhas evidentes de uma doutrina que defenda tais interessante: segundo o Protágoras imaginado por Sócrates,
posições. Certamente você, caro leitor, já passou por isso: ou ele diria algo como: “vocês estão aceitando argumentos
bem você disse, ou bem já disseram para você algo do tipo “Toda retóricos! se aceitarem argumentos assim em geometria,
generalização é um erro”. Repare o amigo que a frase tem a então não valem a pena...”). Quer dizer, a boa atitude filosófica
mesma estrutura não apenas gramatical como lógica da anterior: não é esgotar o problema em algo aparentemente tão simples,
a palavrinha “todo” tem o mágico poder de abranger... tudo! É mas sim, tal como faz Sócrates no diálogo de Platão, seguir
o que os lógicos chamam de um quantificador universal — em investigando. Quer dizer, o relativismo de Protágoras deve ser
outras palavras, generaliza. Daí que, bem, se “toda generalização — e de fato o foi — examinado com profundidade, deve ser
é falsa”, então essa sentença é, ela mesma, falsa (pois é, ela levado a sério.

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(Aliás, há um episódio curioso em que o maestro Leonard
Bernstein, ao anunciar o pianista Glenn Gould em um concerto,
afirma que não concordava em absoluto com a interpretação
Veja onde pegar o seu exemplar:
que este dera ao concerto de Brahms que iriam executar dali
a minutos. Contudo, como Gould era um músico notável e
verdadeiramente dedicado, levando sua arte a sério, Bernstein PORTO ALEGRE (RS):
sentia-se obrigado a fazer o mesmo e respeitar sua interpretação, Aragäna Store
ainda que discordando dela. Essa, parece-nos, é uma excelente Rua Félix da Cunha, 1143
atitude filosófica para com doutrinas das quais divergimos ou a Barbarella Bakery
respeito das quais acreditamos serem falsas, mas que merecem, Rua Dinarte Ribeiro, 56
por um motivo ou outro, serem levadas a sério).
Café da Oca
Rua João Telles, 512
De fato, ao longo da história da filosofia não foram poucas as
vezes que filósofos e pensadores os mais variados combateram Dometila Café
Praça Maurício Cardoso, 49
a nossa tarefa maior, talvez: a busca pela verdade. De Heráclito
e Protágoras a Hume e Nietzsche, vários foram os filósofos que, Famecos/PUCRS
seja por um ângulo relativista ou “perspectivista”, seja por uma Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 7
abordagem cética, lançaram desafios à objetividade da verdade — Livraria Bamboletras
ou à sua existência — e, consequentemente, à noção de critérios Rua General Lima e Silva, 776 – Loja 3
objetivos para julgarmos as coisas. Ainda assim (e por isso mesmo), Livraria Cultura
constituem grandes momentos da nossa história intelectual. Av. Túlio de Rose, 80 – Bourbon Shopping Country
Livraria Nobel
Será esse o caso do multiculturalismo? Não nos parece. Ao contrário Av. Cristóvão Colombo, 545 – Shopping Total
do que ocorre com os filósofos que citamos acima — entre muitos
Livraria Sapere Aude
outros, é claro —, o multiculturalismo não merece esse mesmo
Rua Lopo Gonçalves, 33 – F: (51) 3221-0203
tratamento intelectualmente respeitoso, e o motivo é simples: todos
esses pensadores estavam comprometidos com uma investigação Livraria Zouk
Rua Garibaldi, 1333
séria acerca da realidade, da natureza humana ou, ao menos, das
Av. Paulo Gama, 110 – Anexo 1 da Reitoria da UFRGS
nossas capacidades para realizar tal investigação. Independente da Av. Bento Gonçalves, 9500 – Campus do Vale – UFRGS
força ou da verdade das teorias por eles elaboradas, elas merecem
— e mais, requerem — a séria consideração e a reflexão até mesmo Palavraria
Rua Vasco da Gama, 165 – F: (51) 3268-4260
do mais empedernido dogmático. Não é isso o que ocorre com
a doutrina multiculturalista. Pelo contrário, nesse caso, estamos Restaurante Zero de conduta
diante de uma ideologia, de uma doutrina política no pior sentido Rua Fernandes Vieira, 427 (esquina com Henrique Dias)
que essa expressão pode ter. Saborale Bistrô
Rua João Telles, 294
Mas para entender um pouco disso talvez seja melhor um UniRitter
pequeno passeio não mais pelos aspectos filosóficos do Rua Orfanotrófio, 555
problema, mas sim históricos: o que é e como surgiu essa
variedade pós-moderna de relativismo que, em última análise, CAXIAS DO SUL (RS):
cabe bem no rótulo “multiculturalismo”? Isso é assunto para a Do Arco da Velha Livraria e Café
próxima coluna. § Rua Os 18 do Forte, 1690

Eduardo Wolf é bacharel em filosofia pela UFRGS, mestrando na área


pela mesma universidade e editor do site www.ocidentalismo.org. Relação completa dos
pontos de distribuição em
Felipe Pimentel é licenciado em história pela UFRGS
e mestrando em filosofia pela mesma universidade. www.revistanorte.com.br
escritório gráfico • jean-paul sartre por gilmar fraga

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