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Fortaleza – CE
Junho, 2011
SAULO AUGUSTO DE BARROS COELHO
Fortaleza - Ceará
2011
SAULO AUGUSTO DE BARROS COELHO
Ao professor Lisboa, por aceitar a tarefa de orientar esse trabalho, cujo objeto é bastante
complexo.
Aos demais professores da casa, por contribuírem para a formação permanente do meu
conhecimento.
No dia 23 de agosto de 1968 fraturei o
pescoço ao mergulhar em um praia e bater
com a cabeça na areia. Desde esse dia sou
uma cabeça viva em um corpo morto. Poderia
dizer que sou o espírito falante de um morto.
Se eu fosse um animal, teria recebido um
tratamento de acordo com os sentimentos
humanos mais nobres. Teriam posto fim à
minha vida porque lhes pareceria desumano
deixar-me nesse estado pelo resto da vida. Às
vezes é um azar ser um macaco degenerado!
[...] Considero o tetraplégico como um morto
crônico que reside no inferno. [...] No início,
você só pensa em se libertar. Há somente duas
alternativas: transformar-se em um ser
absurdo, ser o que não quer ser, um habitante
do inferno; ou ser coerente com a utopia da
vida. Libertar-se da dor, buscar o prazer
através da morte. Decidi-me pela libertação,
não como algo negativo, mas positivo:
procurar algo melhor. A primeira coisa que
meus pais disseram quando lhes falei que
queria morrer foi que preferiam assim, não
queriam perder-me para sempre. [...] Essa foi
a primeira vez que me deparei com o muro
impenetrável do paternalismo bem-
intencionado.
Ramón Sampedro
RESUMO
A eutanásia é uma prática por meio da qual se abrevia, com o menor sofrimento possível, a
vida de um enfermo acometido por uma doença incurável e insuportável. Tal prática é
polêmica, tanto que poucos países no mundo ousaram regulamentá-la ou mesmo legalizá-la.
O responsável por tal controvérsia é o princípio do respeito à vida, que, em tese, impõe ao
Poder Público o dever de promovê-la, de garanti-la, de não violá-la e de impor, inclusive aos
particulares, a sua observância. Em que pese seja um direito fundamental, o referido direito
não é absoluto, uma vez que, em face do princípio da unidade da Constituição, não há
hierarquia entre normas e bens jurídicos tutelados pela Mesma. Sendo assim, em abstrato, o
mencionado direito não prevalece sobre os demais de mesma qualidade. Nesse sentido,
percebe-se que a prática da eutanásia envolve uma colisão de direitos fundamentais: de um
lado, o princípio do respeito à vida, que veda essa conduta, e de outro, o princípio da
dignidade da pessoa humana, que ampara a mesma, considerados ambos quanto ao seu caráter
prima facie. Assim, a prevalência de uma norma sobre outra deve ser aferida em concreto,
usando-se a ponderação, que é uma técnica de decisão para hard cases, como no acima
observado. Ante o exposto, vale acrescentar que nesta monografia irá abordar-se
minuciosamente sobre a eutanásia, destacando o seu conceito, os atos que são distintos dela,
as suas modalidades, os seus aspectos históricos e como a mesma é tratada no direito
comparado e no brasileiro, principalmente, no que se refere ao último, sob a ótica dos
aludidos princípios. Ao fim, aborda-se sobre a solução desse conflito de normas.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 48
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 50
APÊNDICE .............................................................................................................................. 53
INTRODUÇÃO
O termo eutanásia, que tem origem grega e significa boa morte, morte doce, foi criado
pelo inglês Francis Bacon, no século XVII, que defendia a tese de que o médico, além de
curar, tinha o dever de amenizar as dores, ainda que tal procedimento levasse à morte do
paciente. Na realidade, a mencionada palavra é uma prática humanitária pela qual se abrevia,
com o menor sofrimento possível, a vida de uma pessoa acometida por uma enfermidade
incurável e que causa dores, físicas e/ou psicológicas, insuportáveis. Tal procedimento pode
ocorrer de forma ativa, quando há uma ação para antecipar a morte – eutanásia propriamente
dita; de forma passiva, quando se interrompe um determinado tratamento que mantinha o
paciente vivo – ortotanásia; de forma voluntária, quando o enfermo expressa sua vontade
pessoalmente ou por meio de um documento; e, por fim, de forma involuntária, quando a
declaração é feita por terceiros, tendo em vista a incapacidade física ou jurídica do enfermo
para manifestar sua vontade.
Embora a discussão sobre a eutanásia tenha sido mais destacada recentemente, em razão
de diversos casos, como os de Ramón Sampedro e do Doutor Jack Kevorkian, que, inclusive,
transformaram-se em filme, há registros de que o mencionado ato é muito antigo e que foi
praticado por diversos povos. Contudo, só a partir do século XX começaram as primeiras
discussões acerca de sua regulamentação. Nesse contexto, destacaram-se as legislações do
Uruguai e da Holanda e, no âmbito jurisprudencial, a da Colômbia e a dos Estados Unidos da
América.
No Brasil, por outro lado, a eutanásia ainda não foi regulamentada, embora já tenha
havido a apresentação de quatro projetos de lei nesse sentido. Dentre eles, ressalte-se que
apenas o PL 5.058/2005, de autoria do deputado Osmânio Pereira, dispôs contra o referido
ato. No entanto, tal projeto de lei, assim como os demais, foi arquivado. Houve, inclusive, no
Anteprojeto do Código Penal de 1999, a tentativa de minorar a pena da eutanásia ativa (Art.
121, § 3º) e de legalizar a eutanásia passiva, tornando-a uma causa de exclusão de ilicitude
(Art. 121, § 4º). Contudo, ambas as alterações não lograram êxito. Sendo assim, o agente que
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pratica o mencionado ato no Brasil incorre, segundo a maioria dos criminalistas, no crime de
homicídio privilegiado (CP, Art. 121, § 1º).
Percebe-se, assim, o quanto suscita polêmica a prática da eutanásia, tanto que poucos
países no mundo avançaram no sentido de regulamentá-la ou até mesmo de legalizá-la. O
responsável por tal controvérsia é o princípio do respeito à vida (CF, Art, 1º, caput), que,
prima facie, veda a supressão da vida de qualquer pessoa. Nesse contexto, saliente-se que o
citado direito, apesar de ser um direito fundamental, não é absoluto, uma vez que pode ser
limitado por outras normas do mesmo nível. Tal limitação, a título de ilustração, ocorre
quando o citado princípio colide com outra norma constitucional, podendo, de acordo com as
circunstâncias do caso concreto, ser afastada para aplicação da mesma.
Impende salientar que, ainda que a vida seja um valor superestimado em nossa
sociedade e protegido pela Constituição, a mesma, em abstrato, não prevalece sobre a
dignidade da pessoa humana, bem como sobre as demais normas constitucionais, pois, em
virtude do princípio da unidade da Constituição, não há hierarquia entre as referidas normas.
Assim, a prevalência de uma norma sobre outra deve ser aferida caso a caso, ponderando-se
os valores colidentes.
No segundo capítulo, por sua vez, tratar-se-á dos aspectos jurídicos da eutanásia,
demonstrando como o referido ato é tratado pelas legislações e jurisprudências mais
relevantes de outros países e como é tratada no Brasil.
No terceiro capítulo, por fim, abordar-se-á sobre a colisão de direitos fundamentais que
envolve a eutanásia, levantando e propondo soluções, de acordo com a maioria da doutrina e
da jurisprudência pátrias, para a colisão em questão.
1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A EUTANÁSIA
No século XVII, o referido termo foi empregado pela primeira vez por Francis Bacon,
em sua obra Historia vitae et mortis, na qual defendia que “[...] a missão do médico é a de
devolver a saúde e aliviar os sofrimentos e as dores, não só quando esse alívio pode levar à
cura, como também quando pode servir para proporcionar uma morte indolor e calma”
(BACON apud MENEZES, 1977, p. 39).
Para o inglês, portanto, o médico, além de curar, tinha o dever de amenizar as dores,
ainda que tal procedimento levasse à morte do paciente. Da mesma maneira, Ary Luiz
Dalazen Júnior expõe (2007, p.117): “[...] Francis Bacon [...] defendia a crença de que a
função do médico não se resumia apenas a curar, mas também amenizar as dores, não
somente quando tal serenamento levasse à cura, como também à morte”.
Conclui-se, assim, que a morte não é um fim na eutanásia, e sim um meio para findar as
dores de um enfermo.
1.1 Conceito
No que diz respeito ao sujeito ativo da eutanásia, a maioria dos autores entende que
qualquer pessoa pode praticá-la. Do lado da maioria, há autores, como Maria Moreno Antón
(apud LEITE, 2009), que entendem que a prática da eutanásia não deve ficar restrita ao
médico, pois assim se estaria restringindo um suposto direito do enfermo à morte digna. Do
outro lado, isto é, da minoria, há autores, como Hélio Gomes (apud WENDT, 2001, online),
que consideram o médico o profissional mais adequado para realizá-la, pois os mesmos
presumem que o mencionado profissional tem conhecimento teórico-prático suficiente para
abreviar de forma indolor e rápida a vida de um enfermo.
Dessa forma, infere-se que a distanásia é um ato oposto à eutanásia, pois a mesma se
destina a prolongar a vida do enfermo, ainda que não leve à cura e implique sofrimento ao
mesmo.
Logo, “a diferença entre a eutanásia ativa e o suicídio assistido é que neste último a
pessoa doente é apenas assistida para a morte, mas todos os atos que acelerarão sua morte são
por ela realizados” (DINIZ, 2009, p. 299). Vale dizer, no suicídio assistido o último
procedimento, aquele que vai dar causa à morte, é realizado pelo próprio enfermo, ao passo
que na eutanásia o derradeiro procedimento é realizado por terceiros.
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1.2.3 Eugenia
Em 1883, Francis Galton criou o termo eugenia, a qual definiu como “o estudo dos
meios que sob o controle social podem melhorar ou deteriorar física ou intelectualmente a
qualidade da raça nas gerações futuras” (GALTON apud MENEZES, 1977, p. 35).
A eugenia, diferentemente da eutanásia, “[...] busca em sua essência uma raça limpa,
perfeita, usando métodos [...] que independem da vontade humana e, consequentemente,
cerceando direitos humanos” (BIZZATO, 2000, p. 357).
Portanto, o aludido ato, por ter como finalidade única a melhoria progressiva da raça
humana a despeito de outras questões, difere da eutanásia, uma vez que esta é realizada por
um móvel piedoso.
1.3 Modalidades
Denominada também eutanásia propriamente dita, é o ato deliberado por meio do qual o
sujeito ativo, por fins altruístas, abrevia de forma instantânea e indolor a vida do sujeito
passivo. Respeitadas todas as condições para a sua prática, tal ato ocorre, por exemplo,
quando um médico ministra uma substância capaz de provocar a morte imediata e sem dor de
um enfermo. Da mesma maneira, José Ildefonso Bizzato expõe (2000, p. 35):
Conclui-se, assim, que a eutanásia ativa sempre envolve uma ação por parte de seu
agente. O oposto, por outro lado, ocorre na eutanásia passiva, como se observa abaixo.
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Conhecida ainda como ortotanásia, é o ato deliberado pelo qual o sujeito ativo, por fins
altruístas, interrompe um determinado tratamento que mantinha o sujeito passivo vivo.
Observadas todas as condições para a sua prática, tal ato ocorre, a título de ilustração, quando
um médico interrompe o tratamento quimioterápico de um paciente, que não é mais capaz de
curá-lo e só prolonga o seu sofrimento. Para corroborar o exposto, recorre-se novamente à
lição de José Ildefonso Bizzato (2000, p. 36-37):
[...] na eutanásia negativa [passiva] o quadro é bem diferente, uma vez que esta é a
omissão planificada da cura que prolongaria a vida. É a abreviação da agonia apela
cessação do tratamento.
[...]
Exemplificando, diríamos, no caso de um paciente que estivesse vivo apenas, e tão
somente, porque uma medicação o mantém vivo e se, tirando-lhe esse remédio, lhe
sobreviria a morte.
Entende-se, logo, que o fim da ortotanásia é possibilitar a morte no tempo certo, sem
abreviações nem prolongamentos.
Segundo George Salomão Leite (2009, p. 145), é aquela que ocorre “[...] quando o
paciente manifesta sua vontade, seja diretamente, seja por meio de documento legal e válido
[...]”. A eutanásia voluntária, portanto, é aquela que decorre da vontade expressa do enfermo.
Tal manifestação pode ser oral, feita pessoalmente pelo enfermo, ou verbal, reduzida a termo.
É aquela, por fim, que ocorre “[...] quando o enfermo não tem aptidão para manifestar
sua vontade, de modo que referida declaração é realizada por terceiros” (LEITE, 2009, p.
145). Ou melhor, é aquela que ocorre quando o enfermo, impossibilitado física ou
psicologicamente, não está apto para declarar a sua vontade, de sorte que a mencionada
manifestação é presumida pela vida pregressa do mesmo. Nesse sentido, deve-se provar que,
estando capaz, o enfermo não desejaria viver naquela determinada situação.
“Platão, em seus Dialógos, lembra a respeito de Sócrates de que „o que vale não é o
viver, mas o viver bem” (DINIZ, 2009, p. 377). Em outras palavras, o importante não era vida
em si, mas viver com qualidade, com dignidade. Do mesmo modo, o seu mencionado
discípulo e Epícuro pensavam sobre a eutanásia. Porém, outros filósofos, como Aristóteles,
Pitágoras e Hipócrates, eram contrários à eutanásia e, principalmente, ao suicídio. Hipócrates,
por exemplo, em seu famoso juramento, afirmou que não daria qualquer droga fatal a uma
pessoa, se solicitado, nem sugeriria o uso de qualquer uma desse tipo.
Há, também, registros de atos semelhantes à eutanásia na Roma Antiga. Cícero, por
exemplo, afirmava que era dever do pai matar o filho defeituoso. César, por sua vez, ao virar
o seu polegar para baixo, ordenava que o gladiador vencedor matasse o vencido, a fim de que
esse não continuasse a sofrer. Além disso, aos condenados à crucificação davam um vinho,
conhecido como vinho da morte ou vinho moriam, que, depois de ingerido, “produzia um
sono profundo e prolongado, durante o qual o crucificado não sentia nem os mais cruentos
castigos, e por fim caía em letargo, passando à morte insensivelmente” (DIOSCORIDES apud
MENEZES, 1977, p. 46).
No Egito, no reinado de Cleópatra VII, criou-se uma academia com o objetivo exclusivo
de estudar meios mais suaves de morte.
Na Índia, os doentes incuráveis tinham suas bocas e narinas obstruídas por uma lama,
que era considerada sagrada, e, em seguida, eram lançados à morte no rio Ganges.
Na Idade Média, aos soldados gravemente feridos, era dado um punhal, conhecido
como misericórdia, a fim de que os mesmos abreviassem os seus sofrimentos.
Por fim, vale salientar que, na literatura, há também exemplos de fatos e de quem
incentive a eutanásia, a exemplo da Bíblia, que afirma que o rei Saul, para não se tornar
prisioneiro, lançou-se sobre sua própria espada, não obtendo, contudo, êxito em morrer.
Assim, ferido, o mesmo pediu a um amalecita que o matasse. Thomas Morus, em Utopia,
defendia que os professores deveriam incentivar os inúteis a se matar como forma de ajudar a
sociedade a progredir.
Diante de todo o exposto, verifica-se, no presente capítulo, que não há ainda uma
definição precisa do que seja a eutanásia. Ademais, observa-se que o ato eutanásico é muito
antigo, tendo sido praticado por diversos povos.
2 ASPECTOS JURÍDICOS DA EUTANÁSIA
Neste capítulo, abordar-se-á, a princípio, como a eutanásia é tratada pelos países que
têm, no âmbito legislativo e no jurisprudencial, a produção mais relevante acerca do ato. A
seguir, abordar-se-á como a eutanásia é tratada no ordenamento jurídico brasileiro,
particularmente em face dos princípios do respeito à vida e da dignidade da pessoa humana.
Dentre os inúmeros países que dispuseram sobre a eutanásia, opta-se por destacar
aqueles que têm a produção mais relevante sobre o ato, como o Uruguai e a Holanda no
âmbito legislativo, e, no jurisprudencial, a Colômbia e os Estados Unidos da América.
2.1.1 Uruguai
realização da eutanásia, mas sim uma possibilidade do indivíduo que for o agente do
procedimento ficar impune, desde que cumpridas as condições básicas estabelecidas.
2.1.2 Holanda
Em 10 de abril de 2001, o parlamento holandês aprovou uma lei, que, além de outras
coisas, derrogou o Art. 293 do seu respectivo Código Penal, ficando com a seguinte redação.
Art. 293.
1.Aquele que extinguir a vida de outra pessoa, segundo o desejo expresso e sério da
mesma, será punido com a pena de prisão de até doze anos ou com uma pena de
multa da categoria quinta.
2.A hipótese a qual se refere o § 1.º não será punível no caso de que tenha sido
praticada por um médico que tenha cumprido com os requisitos de cuidados
recolhidos no art. 2.º da Lei sobre Comprovação da Extinção da Vida por Solicitação
Própria e do Auxílio ao Suicídio, e que se tenha comunicado ao cartório municipal
conforme o art. 7.º, § 2.º, da Lei Reguladora dos Funerais (LEITE, 2009, p. 147,
tradução original).
O segundo parágrafo, por sua vez, prevê uma exceção ao primeiro, posto que extingue a
punibilidade do médico que a pratica, desde que esse aja pedido da vítima e atenda a certas
condições, como a comunicação do fato ao cartório municipal e a observação dos requisitos
do Art. 2º da comentada Lei, enumerados a seguir:
“Impende salientar, no entanto, que o paciente que não consegue exprimir sua vontade
pela abreviação da vida não possui autorização legal para que o médico pratique tal ato”
(LEITE, 2009, p. 149). Ou seja, o paciente deve ter a capacidade para manifestar
pessoalmente sua vontade, não se admitindo a autorização dos responsáveis legais do mesmo.
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Ressalte-se, ainda, que o médico, além de comunicar o fato ao cartório municipal, tem a
obrigação também de fazê-la à comissão regional de comprovação da eutanásia, a qual
compete conferir se o supracitado profissional observou todos os requisitos legais para a
prática do ato.
2.1.3 Colômbia
Em 20 de maio de 1997, Jose Eurípides Parra Parra interpôs uma ação pública de
inconstitucionalidade perante a Corte Constitucional da Colômbia, impugnando o Art. 326 do
Código Penal Colombiano, que tem a seguinte redação: “El que matare a otro por piedad,
para poner fin a intensos sufrimientos provenientes de lesión corporal o enfermedad grave o
incurable, incurrirá en prisión de seis meses a tres años”.
Ademais, o impugnante defendia que o direito à igualdade era violado pela norma em
comento, eis que, segundo ele, a mesma estabelecia uma discriminação contra o seu sujeito
passivo, isto é, contra a vítima do homicídio piedoso.
Trata-se de hipótese distinta do homicídio simples, pois neste caso a morte decorre
de um sentimento egoísta daquele que pratica o ato, que não enxerga na vítima um
ser dotado de dignidade. No homicídio por piedade, a vítima é um ser digno similar
ao praticante do ato, de modo que para preservar tal dignidade o ato vem a se
concretizar. Em outras palavras, em face do sofrimento insuportável vivenciado
pelo enfermo, a morte se apresenta como a melhor solução para preservação de sua
dignidade, sendo, portanto, um ato de compaixão, misericórdia.
De resto, a aludida Corte adverte que no caso de pacientes terminais, em que concorra a
vontade livre do sujeito passivo do ato, não haverá responsabilidade para o médico-autor, pois
a conduta está justificada. E mais, exorta o Congresso para que, no tempo mais breve possível
e conforme os princípios constitucionais e as elementares considerações de humanidade,
regule o tema da morte digna.
Por ser religiosa, a maioria dos brasileiros trata a vida como um dogma, isto é, um
“ponto básico e indiscutível de uma doutrina” (SIDOU, 2006, p. 320). Em vista disso, não se
instituiu até o presente momento um debate maior e lúcido sobre a legalização da eutanásia,
seja por receio de uma eventual reação social, política, ou, até mesmo, de uma suposta
punição divina, seja por ignorância no assunto, levando muitas pessoas, inclusive juristas, a
equipará-la ao homicídio. Em suma, o mencionado ato ainda é um tabu social e político neste
país.
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Homicídio simples
Art 121. Matar alguem:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço (grifo original).
Será motivo de relevante valor moral aquele que, em si mesmo, é aprovado pela
ordem moral, pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ou piedade ante o
irremediável sofrimento da vítima. Admite-se, por exemplo, como impelido por
motivo de relevante valor moral o denominado homicídio piedoso, ou, tecnicamente
falando, a eutanásia. Aliás, por ora, é dessa forma que nosso Código Penal disciplina
a famigerada eutanásia, embora sem utilizar essa terminologia (grifo original).
Pela leitura do parágrafo terceiro, observa-se que se pretendia criar um tipo penal
autônomo para a eutanásia ativa, atenuando a pena do agente do referido ato. Ressalte-se,
também, que comparada à sanção do homicídio privilegiado, a pena da eutanásia ativa iria ser
menor.
Quanto ao elemento subjetivo, destaca-se que o agente deveria agir movido por
sentimento de compaixão para com a vítima. Já com relação aos elementos objetivos, destaca-
se que o sujeito passivo deveria ser imputável, isto é, deveria ter a capacidade de entender o
caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, e deveria ser
maior de dezoito anos, ou seja, deveria ter, além da mencionada capacidade penal, capacidade
processual plena.
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Diante do exposto, conclui-se que, embora a eutanásia ainda seja considerada um crime,
a tendência é que algumas de suas modalidades sejam descriminalizadas, tendo em vista que,
diferentemente do homicídio, que é praticado por motivos egoísticos e contra a vontade da
vítima, a eutanásia tem fins altruísticos e encontra amparo no princípio da dignidade da
pessoa humana.
Embora haja fundamentos jurídicos para se permitir a eutanásia, a mesma é vista como
algo proibido em razão do princípio do respeito à vida, como se observa no caput do Art. 5º
da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida [...]”.
E mais, há casos em que é permitido matar o nascituro, que - sem a pretensão de esgotar
a discussão sobre quando começa a vida - é uma forma de vida humana. Nesse sentido, o Art.
128 do Código Penal prescreve duas situações em que é permitido ao médico abortar: no
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inciso I, quando não há outro meio de salvar a gestante (aborto necessário), e, no inciso II,
quando a gravidez é resultante de estupro (aborto humanitário).
No último caso, vale tecer uma crítica aos legisladores, uma vez que os mesmos agiram
de maneira contraditória, ao permitir à mulher vítima de estupro, por motivos humanitários,
dispor sobre a vida de um terceiro, ainda que não permitissem a um indivíduo, por iguais
razões, dispor sobre sua própria vida, como no caso da eutanásia.
Diante disso, nota-se que a Constituição Federal, bem como o Código Penal, não
considera a vida humana um valor absoluto, isto é, um valor que deva prevalecer em todas as
situações. Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, em diversos casos, reconheceu que não
há direitos absolutos, ao sustentar que não há hierarquia entre normas constitucionais, em
virtude da unidade da Constituição..
Nesse contexto, crê-se que, em determinadas situações, a eutanásia pode ser amparada
pela Constituição Federal, particularmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
visto que, por exemplo, manter a vida de um paciente terminal contra a sua vontade viola tal
princípio.
George Salomão Leite (2009, p, 161) corrobora o que foi dito acima:
Para um paciente terminal que pretende abdicar da vida, a sua manutenção constitui-
se em uma verdadeira tortura, não só física, mas também psíquica. Trata-se de uma
violação à integridade física e moral, compreendendo estas duas facetas: o direito de
não sofrer tortura ou tratamento desumano ou degradante e o direito de não sofrer
intervenções psíquicas ou físicas sem o seu consentimento.
Diante de todo o exposto, infere-se que o Estado tem um dever negativo e positivo com
relação à vida e à dignidade da pessoa humana, vale dizer, tem o dever de não violar tais
princípios e de garantir que particulares não os violem, respectivamente. Nesse contexto, faz-
se necessário debater em que circunstâncias a eutanásia teria amparo constitucional, uma vez
que o Poder Público não deve agir contraditoriamente, de modo que tutele um e, por
consequência, viole outro bem jurídico.
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Dentre todos os valores, a vida, principalmente a humana, se não for o maior, é sem
dúvida um dos valores mais estimados pela humanidade, tanto que está consagrada na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (Art. 3º do DUDH), na Constituição Brasileira
(Art. 1º, caput, da CF), em outras constituições e, inclusive, em tratados internacionais que
dispõem sobre direitos humanos. Tal valorização decorre, sobretudo, do valor sagrado que
conferem à vida, em vista de não haver, para a maioria das pessoas, uma explicação científica
satisfatória para o surgimento e o sentido da mesma. Além disso, tal valorização decorre do
fato de a vida ser um valor intrínseco ao ser humano e ser, ainda, um pressuposto para o
exercício dos demais direitos, inclusive os fundamentais.
A eutanásia, por outro lado, é um ato que geralmente causa repulsa e polêmica, uma vez
que lida com um dos extremos da vida, que é a morte. Embora não seja sua finalidade, o
referido ato contraria a vida, notadamente a vida biológica, posto que se constitui num ato que
abrevia a mesma ou que não impede o resultado morte. Nesse contexto, vale ressaltar que a
eutanásia tem por escopo aliviar ou suprimir os sofrimentos físicos e/ou psicológicos de um
enfermo, e não matá-lo, embora, para alcançar o resultado pretendido, isto é, a supressão da
dor, tenha que produzir a morte do mesmo.
Segundo Paulo Gustavo Gonet Branco (2010, p. 441), “o direito à vida é a premissa dos
direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não
fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo”. A vida, portanto, é um
pressuposto para o exercício de todos os direitos, vale dizer, é uma condição sem a qual é
impossível exercer os demais direitos.
Por ser um direito fundamental, a vida reclama uma proteção por parte do Estado
(eficácia vertical) e por parte da sociedade (eficácia horizontal). Por parte do Estado,
podemos falar em um duplo dever fundamental: (a) dever de não violar o direito à
vida; e (b) dever de proteger o direito à vida; e (c) dever de proteger o direito à vida
em face da violação por parte de particulares (LEITE, 2009, p. 158).
Eis outro argumento jurídico que vai ao encontro dos opositores da eutanásia, vez que o
Estado tem o dever negativo de não violar a vida e o dever positivo de garantir proteção ao
referido direito, impondo, inclusive, aos particulares a observância desse valor. Porém, de
igual modo, podem retrucar os defensores da eutanásia, o Estado tem os mesmos deveres para
com a dignidade, que é um direito fundamental também, observando, assim, um conflito
quanto ao dever estatal de abstenção e proteção dos direitos fundamentais.
Portanto, ainda que tenha capacidade para manifestar o seu desejo, o titular do direito à
vida não pode dispor dela, isto é, não pode renunciá-la, posto que tal direito não é uma
liberdade.
Ronald Dworkin afirma que a diferença entre o valor intrínseco da vida e o seu valor
pessoal para o paciente justifica o motivo pelo qual tantas pessoas consideram a eutanásia
condenável em qualquer circunstância.
[O referido jurista assevera ainda que] elas pensam que uma pessoa deve tolerar o
sofrimento, ou receber a assistência devida caso se torne inconsciente, até que a vida
chegue a seu fim natural – com que se pretende dizer que tudo, menos uma decisão
humana, pode ser o agente de tal fim – porque acreditam que o fato de eliminar
deliberadamente uma vida humana nega seu valor cósmico inerente (DWORKIN,
2003, p. 275).
O jurista americano, além disso, afirma que existe uma interpretação tanto do ponto de
vista secular quanto do religioso de que a vida, sobretudo a humana, é sagrada. Nesse sentido,
até os ateus, segundo ele, podem concluir instintivamente que a eutanásia é problemática em
vista do valor intrínseco da vida.
Não obstante a vida ser considerada por muitos um valor intrínseco ao ser humano,
pode-se contra-argumentar que está consagrado na Constituição outro valor, que, igualmente
à vida, considera-se intrínseco ao ser humano, que é a dignidade, possibilitando, assim, em
certas circunstâncias, a prática da eutanásia.
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O direito à vida, muito embora um dos mais importantes direitos resguardados pela
Constituição, não é absoluto, conforme compreendem os entusiastas da eutanásia,
que comprovam suas posições com posições doutrinárias claras, principalmente por
meio da Teoria dos Princípios de Dworkin e de Alexy (DALAZEN, 2007, p. 124).
De igual modo, a dignidade da pessoa humana, ainda que seja fonte dos demais direitos
fundamentais, não é absoluta, em face do princípio da unidade da Constituição, que assevera
que entre normas constitucionais não há hierarquia. Assim, em uma eventual colisão de
direitos fundamentais, como no caso que envolve a eutanásia, deve-se sopesar, no caso
concreto, qual direito tem maior peso.
Ressalte-se, conforme Ary Luiz Dalazen Júnior (2007, p. 125-126), que um “[...] direito
abstrato, por ser extremamente vago e não decidir nada acerca do que está definitivamente
obrigado, limita-se a estabelecer uma carga de argumentação que possui um sentido; tal
sentido não prescreve, todavia, o resultado a quem está obrigado”.
Dado o exposto, infere-se que, em abstrato, não é possível determinar até que ponto a
eutanásia viola o princípio do respeito à vida, uma vez que o conteúdo e o âmbito de proteção
do mencionado princípio só são determinados no caso concreto.
32
A dignidade da pessoa humana, ainda que seja considerada pela maioria das pessoas
como um valor intrínseco ao ser humano desde tempos imemoriais, só foi elevada à condição
de sustentáculo da maioria dos ordenamentos jurídicos após o término da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), em virtude, principalmente, das atrocidades praticadas nos campos de
concentração nazistas contra um grupo de etnias, sob o argumento de que estes eram
inferiores a uma suposta raça ariana, da qual fariam parte os povos germânicos.
[...] o valor da dignidade humana não foi somente enaltecido quando da fixação dos
princípios fundamentais (art. 1º, III), mas também quando fixou que a ordem
econômica teria por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput),
quando estabeleceu que o planejamento familiar deve se fundar nos princípios da
dignidade humana e da paternidade responsável (art. 226, § 6º) e quando se
assegurou à criança e ao adolescente o direito à dignidade (art. 227, caput).
Percebe-se, portanto, que a dignidade da pessoa humana, além de ser o fundamento dos
direitos fundamentais, é um valor irradiado por toda Constituição e, por conseguinte, por todo
o ordenamento jurídico brasileiro, o que permite concluir que qualquer conduta, seja estatal
seja particular, deve-se pautar pela observância do aludido valor constitucional.
No tocante à ideia de dignidade como valor intrínseco da pessoa humana, relata Ingo
Wolfgang Sarlet (2009, p. 32) que:
Nesse contexto, o referido jurista afirma que a ideia presente no ideário cristão de que o
ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus permite deduzir que o ser humano,
inclusive aqueles que não partilham da mencionada crença, é dotado de uma dignidade que
lhe é intrínseca, não podendo, assim, ser instrumentalizado pelo Estado e pelos demais seres
humanos.
34
Por outro lado, já no pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que,
por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que
todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se
encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada
indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem
como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são
iguais em dignidade (SARLET, 2009, p.32).
Ingo Wofgang Sarlet ressalta, contudo, que, nos séculos XVII e XVIII, a noção de
dignidade da pessoa humana passou por um processo de racionalização e laicização,
preservando, porém, a ideia de igualdade de todos os homens como elemento da dignidade e
liberdade. Nesse período, destaca-se, como o maior expoente do processo de secularização da
noção de dignidade, o filósofo germânico Immanuel Kant, “[...] cuja concepção de dignidade
parte da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia) como fundamento
da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano (o indivíduo) não pode ser
tratado – nem por ele próprio – como objeto” (SARLET, 2009, 35).
Para corroborar o que foi dito, eis a noção de dignidade presente na obra
Fundamentação da metafísica dos costumes, de Immanuel Kant (1986, p. 68, grifo original):
[...] O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si
mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo
contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas
que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como fim.
Para ilustrar tal pensamento kantiano, recorre-se a Ronald Dworkin (2003, p. 337-338),
que ensina que:
Quando encarceramos alguém que foi condenado por um crime com o objetivo de
impedir que outros também o cometam, não tratamos com beneficência; ao
contrário, agimos contra os interesses de obter um benefício geral. Insistimos,
porém, em que tal pessoa seja tratada com dignidade de acordo com o nosso
entendimento do que isso requer – que não seja torturada nem humilhada, por
exemplo –, pois continuamos a vê-la como um ser humano integral, como alguém
cujo destino continuamos a tratar como objeto digno de interesse e preocupação. A
exigência de que seus guardiões respeitem sua dignidade mostra, entre outras coisas,
que temos consciência da gravidade do que estamos fazendo: que sabemos estar
35
encarcerando um ser humano cuja vida tem importância, que nossas razões para
fazê-lo são razões que, ao mesmo tempo, exigem e justificam essa terrível injúria, e
que não temos o direito de tratá-lo como um mero objeto à total disposição de nossa
conveniência, como se tudo o que importasse fosse a utilidade, para o resto de nós,
de trancafiá-lo em uma cela.
Na mesma obra, Immanuel Kant (1986, p. 77, grifo original) afirma ainda que:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem
um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando
uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem
ela dignidade.
Para esclarecer o pensamento acima exposto, recorre-se, dessa vez, a Flávia Piovesan
(2009, p. 461), que expõe que:
Os objetos têm, por sua vez, um valor condicional, enquanto irracionais, por isso,
são chamados „coisas‟, substituíveis que são, por outras equivalentes. Os seres
racionais, ao revés, são chamados „pessoas‟, porque constituem um fim em si
mesmo, têm um valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos, não devendo
ser tomados meramente como meios.
[...] uma conceituação clara do que efetivamente seja esta dignidade, inclusive para
efeitos de definição do seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental, se
revela no mínimo difícil de ser obtida, isto sem falar na questionável (e questionada)
viabilidade de se alcançar algum conceito satisfatório do que, afinal de contas, é e
significa a dignidade da pessoa humana hoje [...] tal dificuldade, consoante
exaustiva e corretamente destacado na doutrina, decorre certamente (ao menos
também) da circunstância de que se cuida de conceito de contornos vagos e
imprecisos, caracterizados por sua „ambiguidade e porosidade‟, assim como por sua
natureza necessariamente polissêmica, muito embora tais atributos não possam ser
exclusivamente atribuídos à dignidade da pessoa.
Nesse sentido, o mencionado jurista afirma que se deve evitar uma conceituação fixa da
dignidade da pessoa humana, pois tal empreendimento não se coaduna com o pluralismo e a
diversidade de valores presentes nas sociedades democráticas contemporâneas. Nessa mesma
direção, Ingo Wolfgang Sarlet arremata ainda que um eventual conceito do aludido valor deve
passar por um processo permanente de construção e desenvolvimento.
De igual forma, Edilsom Pereira Farias (1996, p. 50, grifo original) preleciona que:
Nesse contexto, George Salomão Leite (2009, p. 158) ressalta ainda que:
Diante disso, cabe a pergunta: afinal, a eutanásia é ou não é amparada pelo princípio da
dignidade da pessoa humana?
37
Ao ilustrar o seu pensamento acerca da dignidade, Immanuel Kant (1986, p. 69, grifo
original) parece oferecer uma resposta:
Segundo o conceito do dever necessário para consigo mesmo, o homem que anda
pensando em suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo
com a ideia da humanidade como fim em si mesma. Se, para escapar a uma situação
penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um simples meio
para conservar até ao fim da vida uma situação suportável. Mas ao homem não é
uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado simplesmente como um
meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas suas ações como
fim em si mesmo. Portanto não posso dispor do homem na minha pessoa para [...] o
matar.
Em que pese a eutanásia seja praticada por um terceiro e não pela própria pessoa, como
no caso do suicídio, a mesma guarda uma relação de semelhança com este, notadamente no
que se refere à finalidade do ato, que é suprimir a dor, seja física e/ou psicológica, abreviando,
inevitavelmente, a vida. De forma análoga, portanto, pode-se afirmar que a eutanásia contraria
a concepção de dignidade kantiana, visto que a pessoa que deseja praticá-la instrumentaliza a
si mesma para alcançar um fim, vale dizer, pede a um terceiro que a mate para suprimir sua
dor.
Com relação à afirmação acima aduzida, recorre-se à posição adotada pelo Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha, que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, considera existir
uma espécie de fungibilidade entre a dignidade e a vida, de modo que, se houver a violação de
um, haverá, por consequência, a violação do outro.
Diante do exposto, conclui-se que, em tese, não é possível determinar até que ponto a
eutanásia é amparada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, visto que, bem como o
princípio do respeito à vida, o seu conteúdo e o seu âmbito proteção só são determinados caso
a caso.
3 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: RESPEITO À
VIDA VERSUS DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
“De um modo geral, considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais quando o
exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide com o exercício do direito
fundamental por parte de outro titular” (CANOTILHO, 1993, p. 643). Um exemplo dessa
espécie de colisão esteve presente no caso Ellwanger, julgado pelo Supremo Tribunal Federal,
em que colidiam os princípios da liberdade de expressão e da dignidade da pessoa humana.
Da mesma maneira, ilustra Oscar Vilhena Vieira (2006, p. 64), ao asseverar que no caso
da eutanásia têm-se:
Portanto, podem colidir os direitos fundamentais de titulares diferentes, ainda que tais
direitos sejam iguais, assim como o direito fundamental de um titular e um bem jurídico
relevante protegido pela Constituição, como no caso que envolve a eutanásia.
40
Com relação aos referidos direitos fundamentais e aos demais, ressalte-se que o Poder
Público tem um duplo dever, isto é, tem o dever negativo de se abster de qualquer prática que
viole tais direitos e o dever positivo de garantir a proteção desses direitos, impondo, inclusive,
a particulares o respeito a tais normas constitucionais.
O primeiro, “chamado também de lex posterior, é aquele com base no qual, entre duas
normas incompatíveis, prevalece a norma posterior: lex posterior derogat priori” (BOBBIO,
1999, p. 92). Tal critério, porém, não poderá ser aplicado, uma vez que as normas em conflito
são contemporâneas, isto é, foram estabelecidas ao mesmo tempo pelo constituinte originário.
Por sua vez, o segundo, “chamado também de lex superior, é aquele pelo qual, entre
duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat
inferiori” (BOBBIO, 1999, p. 93). Outrossim, esse critério não poderá ser aplicado, pois, de
acordo com o princípio da unidade da Constituição, não há hierarquia entre normas
constitucionais, sendo assim, as aludidas normas estão no mesmo nível.
Por derradeiro, “o terceiro critério, dito justamente da lex specialis, é aquele pelo qual, de
duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda:
lex specialis derogat generali (BOBBIO, 1999, p. 96). Tal critério, também, não poderá ser
aplicado, visto que as normas em conflito são ambas gerais, sendo assim não há como
estabelecer uma relação de especialidade entre as mesmas.
Portanto, faz-se necessário utilizar uma técnica mais adequada para solucionar o
conflito em questão.
É necessário, antes de discorrer sobre a técnica mais adequada e adotada para resolver o
conflito em comento, distinguir as regras dos princípios jurídicos, visto que tal distinção foi
imprescindível para o desenvolvimento do mencionado método.
Conforme Paulo Bonavides (2005, p.248), “ao estudar uma teoria material dos direitos
fundamentais em bases normativas [...] Alexy instituiu a distinção entre regras e princípios,
42
O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte,
mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em
graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende
somente das possibilidades fáticas. Mas também das possibilidades jurídicas. O
âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras
colidentes (grifo original).
Por outro lado, as regras são para Robert Alexy (2008, p. 91):
[...] normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então,
deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras
contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente
possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção
qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um
princípio.
Desse modo, havendo um conflito entre regras, uma será aplicada em toda sua
totalidade e da outra nada será aplicado, pois esta será considerada inválida. Em tal conflito,
não há como fazer concessões recíprocas entre as normas. De uma regra ou se aplica tudo ou
nada. Na mesma direção, dispõe Paulo Gustavo Gonet Branco (2010, p. 362):
Logo, infere-se, a partir dos estudos de Robert Alexy, que a distinção entre princípios e
regras jurídicas é qualitativa, e não de grau, visto que tais normas são aplicadas de maneira
diversa, ou seja, os princípios podem ser aplicados de forma gradual, enquanto as regras são
aplicadas na forma de tudo-ou-nada. Segundo Edilsom Pereira de Farias, a referida conclusão
representa a teoria forte dos princípios, do qual os maiores expoentes são Ronald Dworkin,
Robert Alexy e Letizia Gianformaggio, sendo, no presente momento, a tendência para qual se
inclina a maioria da doutrina jurídica.
A diferença entre tais normas fica mais evidente diante da solução proposta para dirimir
o conflito entre regras e a colisão entre princípios fundamentais.
Esse problema pode ser solucionado por meio de regras como Lex posterior derogat
priori e Lex specialis derogat legi generali, mas é também possível proceder de
acordo com a importância de cada regra em conflito. O fundamental é: a decisão é
uma decisão sobre validade.
Para solucionar uma colisão entre princípios, por outro lado, não se recorre à introdução
de uma cláusula de exceção, tampouco à declaração de invalidade de um dos princípios, pois,
no último caso, ambos têm o mesmo âmbito de validade, mas sim a um juízo que estabeleça,
em determinadas circunstâncias, a precedência de um princípio em relação ao outro. Saliente-
se que, em outras circunstâncias, a relação de precedência entre os princípios colidentes pode
ser resolvida de outra forma. No mesmo sentido, dispõe Robert Alexy (2008, p. 92):
44
Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de
acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um terá que ceder.
Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado
inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade,
o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob
determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser
resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos
casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior
peso têm precedência.
É oportuno lembrar que a colisão desses princípios, bem como de outros, só poderá ser
solucionada à luz do caso concreto. Já o conflito de regras, por outro lado, poderá ser
solucionado em abstrato, pois, nesse caso, trata-se de realizar um juízo objetivo com relação à
validade das regras em conflito.
Paulo Gustavo Gonet Branco ressalta, porém, que é possível, por meio de um
precedente, estabelecer uma regra que solucione uma futura colisão de princípios, contanto
que tal colisão se encaixe nas mesmas condições de fato da colisão-precedente.
[Vale ressaltar que] no conflito entre princípios, deve-se buscar uma conciliação
entre eles, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, segundo a respectiva
relevância no caso concreto, sem que se tenha um dos princípios como excluído do
ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro (BRANCO, 2010, p.
363).
O caso Glória Trevi é um exemplo disso, pois, no mesmo, o Supremo Tribunal Federal
solucionou uma colisão irredutível de direitos fundamentais, decidindo pela prevalência do
direito à honra em face do direito de privacidade, de modo que esse último fosse totalmente
afastado. No acórdão do caso em comento, a referida Corte ordenou a realização do exame de
DNA no sangue contido na placenta de Trevi, logo após o nascimento do bebê dela, a fim de
excluir a paternidade de qualquer servidor da Polícia Federal que esteve em contato com a
mesma e de, assim, restaurar a honra dos mencionados servidores e da própria instituição a
45
que pertenciam.
No que tange à compatibilização ou não dos princípios colidentes, o presente caso é sui
generis, pois, no caso concreto, se o intérprete entender que o princípio da dignidade da
pessoa humana tem maior peso e, por conseguinte, permitir a eutanásia, o princípio do
respeito à vida será totalmente afastado. Por outro lado, se o último prevalecer, tendo como
efeito a proibição da eutanásia para o caso, o princípio da dignidade da pessoa humana não
cederá totalmente, uma vez que o princípio do respeito à vida, bem como os demais direitos
fundamentais, emana dele.
Ante o exposto, conclui-se que a solução para o conflito de regras e para a colisão de
princípios é diferente, eis que, nas regras, o conflito ocorre apenas na dimensão da validade,
ao passo que, nos princípios, o choque ocorre somente na dimensão do peso.
Com relação à doutrina jurídica a respeito do assunto, Ricardo Torres Lobo (2000, apud
BARCELLOS, 2003, p. 56) acrescenta que:
[...] em geral está de acordo que a solução de casos como esses não passa por uma
subsunção simples, mas por um raciocínio [...] pelo qual se atribuem pesos aos
elementos em conflito para, ao fim, decidir por um deles ou ao menos decidir pela
aplicação preponderante de um deles.
Vale ressaltar, ainda, que, diferentemente do que ocorre com as regras, o princípio
afastado em uma determinada colisão não é declarado inválido, isto é, não é abolido do
ordenamento jurídico em virtude de não ter prevalecido na colisão com outro princípio. Em
outras palavras, um princípio, ainda que em determinada colisão com outro princípio não
prevaleça, continua válido e, tão-somente no caso de não prevalecer em uma determinada
colisão, não gerará efeitos ou terá seus efeitos minimizados.
No caso em apreço, por exemplo, têm-se duas normas constitucionais colidindo, que
podem ser separadas em razão da solução contrária que propõem. De um lado, o princípio do
respeito à vida, que veda a eutanásia em virtude de esta suprimir a vida do seu titular. De
outro, o princípio da dignidade da pessoa humana, que permite o referido ato em razão da
manutenção da vida, em determinados casos, violar o aludido princípio.
“Na segunda fase cabe examinar as circunstâncias concretas e suas repercussões sobre
os elementos normativos, daí se dizer que a ponderação depende substancialmente do caso
concreto e de suas particularidades” (SARMENTO, 2000, apud BARCELOS, 2009, p. 58).
Nesse contexto, ressalte-se que “embora os princípios [...] tenham uma existência
autônoma em tese, no mundo abstrato dos enunciados normativos, é no momento em que
entram em contato com as situações concretas que seu conteúdo se preencherá de real
47
sentido” (BARROSO, 2009, p. 166). Em outros termos, o mencionado autor afirma que, em
virtude do caráter prima facie dos princípios, o conteúdo dos mesmos não é determinado em
abstrato, mas sim diante de um caso concreto.
O direito à vida, por exemplo, prima facie, veda que a vida de qualquer pessoa seja
suprimida. Contudo, em determinadas circunstâncias, tal direito pode ceder em favor de outro
valor, como o princípio da dignidade da pessoa humana, que revele, em um caso concreto, ter
maior peso do que o referido direito.
Mais uma vez, ressalte-se que o sopesamento dos princípios colidentes só é possível em
vista de tais normas serem mandamentos de otimização, isto é, de poderem ser cumpridas em
diferentes graus, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas.
Ante o exposto, infere-se que a técnica tradicional de solução de conflitos entre normas,
isto é, a subsunção, não é capaz de solucionar as colisões de direitos fundamentais, visto que
tais direitos têm o mesmo nível e validade. Assim, no caso em apreço, aplicar-se-á a
ponderação, que é a técnica mais adequada e adotada pela jurisprudência pátria para, em uma
eventual colisão de direitos fundamentais, sopesar qual direito terá maior valor no caso
concreto.
CONCLUSÃO
Em que pese a eutanásia ser objeto de estudo de várias ciências, inclusive da ciência do
Direito, não há até então uma definição pacífica do que seja o referido ato. Não obstante,
tentou-se, no presente trabalho, conceituar a eutanásia a partir dos elementos comuns em
diversos conceitos, destacando, antes disso, os pontos pacíficos e controversos dos mesmos.
À vista do exposto neste trabalho, verificou-se que a vida humana, apesar de não ser
considerada um valor absoluto pela Constituição, isto é, um valor intangível, é tratada como
se assim fosse pela maioria da sociedade, de sorte que a discussão e até mesmo uma eventual
regulamentação da eutanásia se torne uma tarefa muito difícil.
Vale lembrar que a eutanásia não tem por escopo suprimir a vida, embora tenha que
fazê-la para alcançar a sua finalidade e sim abreviar ou não prolongar o sofrimento do
enfermo, quando já não há nem haverá mais qualidade de vida para o mesmo.
Saliente-se que esse exercício atípico da função de legislar, apesar de ser previsto em
lei, é antidemocrático, uma vez que os Ministros do Pretório Excelso não foram eleitos para o
exercício dessa função. Sendo assim, qualquer acórdão prolatado por esse Tribunal, seja
favorável ou não à eutanásia, não teria tanta força coativa, pois, além de violar o princípio da
separação dos poderes, não representaria a vontade do povo.
Assim, faz-se necessário que, o mais breve possível, o Legislativo Federal regule a
eutanásia, ainda que restrinja a sua prática a poucos casos, pois, do contrário, além de deixar
uma série de enfermos à mercê de intensas dores, estaria dando azo às violações acima
assinaladas da Constituição.
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<http://www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/ley/2000/ley_0599_2000.html>. Acesso
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VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São
Paulo: Malheiros, 2006.
PROJETO DE PESQUISA
Fortaleza-CE
Novembro, 2010
55
1 DEFINIÇÃO DO PROBLEMA
A palavra eutanásia, empregada pela primeira vez por Francis Bacon, no século XVII, é
de origem grega e significa, literalmente, boa morte. Na verdade, o referido termo é uma
prática pela qual se abrevia, com o menor sofrimento possível, a vida de um enfermo
acometido por uma doença incurável e dolorosa. Tal abreviação da vida pode ocorrer de
forma ativa, quando há uma ação para antecipar a morte – eutanásia propriamente dita, ou de
forma passiva, quando há uma omissão, que, geralmente, configura-se na interrupção de um
determinado tratamento que mantinha o paciente vivo – ortotanásia.
No decorrer da história, a eutanásia foi praticada por diversos povos, contudo só a partir
do século XX começaram as primeiras discussões acerca de sua regulamentação. Nesse
período, o Uruguai foi o primeiro país do mundo a dispor sobre o tema em sua legislação,
tipificando-o como um homicídio piedoso (Art. 37 do Código Penal Uruguaio/1934), o que se
constituíra em uma causa de extinção da punibilidade, uma vez que era facultado ao juiz, por
meio do perdão judicial, deixar de aplicar a pena ao agente da infração. Em 2009, no mesmo
país, o parlamento aprovou o direito à ortotanásia, que ficou pendente de sanção ou veto do
Presidente do respectivo país. Na Europa, até o presente momento, apenas Holanda e Bélgica
legalizaram a prática.
No Brasil, por outro lado, a eutanásia ainda não foi regulamentada, embora já tenha
havido a apresentação de um projeto de lei, de autoria do senador Gilvam Borges, no sentido
de legalizá-la (PL 125/96), e de outro, de autoria do deputado Osmânio Pereira, na esteira de
proibi-la (PL 5058/05). No entanto, os referidos projetos foram arquivados. Houve, também,
uma tentativa de legalizar a eutanásia no Anteprojeto do Código Penal de 1999, tornando a
ativa uma causa especial de diminuição de pena (Art. 121, § 3º) e a passiva, uma excludente
de ilicitude (Art. 121, § 4º), o que não logrou êxito. Em vista disso, o agente que pratica a
eutanásia no Brasil pode incorrer, conforme o caso, no crime de homicídio privilegiado (Art.
121, § 1º, do CP) ou no de omissão de socorro (Art. 135 do CP).
Ante o exposto, podemos perceber o quanto é polêmica a prática da eutanásia, tanto que
poucos países no mundo ousaram regulamentá-la ou mesmo legalizá-la. O responsável por tal
56
Nesse sentido, percebemos que a prática da eutanásia envolve uma colisão de direitos
fundamentais. De um lado, o princípio da inviolabilidade da vida (Art. 5º, caput, da CF), que,
por óbvio, veda essa conduta, e de outro, o princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º,
III, da CF), que dá respaldo a mesma, visto que é impossível uma pessoa natural ter dignidade
convivendo com uma doença incurável e insuportável.
Vale salientar que, embora a vida seja um direito fundamental e um valor superestimado
em nossa sociedade, a mesma, em tese, não prevalece sobre as demais normas de mesma
qualidade, pois, em virtude do princípio da unidade da Constituição, não há hierarquia entre
normas constitucionais. Portanto, a prevalência de uma norma sobre outra deve ser aferida
caso a caso, usando-se a técnica da ponderação de valores.
1 A técnica tradicional para solução de antinomias pode ser utilizada para resolver a
colisão de direitos fundamentais em questão?
2 JUSTIFICATIVA
3 REFERENCIAL TEÓRICO
Antes de responder a pergunta acima formulada, cabe informar que antinomia é “[...]
aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a
outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo
comportamento” (BOBBIO, 1999, p.86). Ou seja, antinomia é a situação em que duas normas
incidem sobre o mesmo fato, porém de formas incompatíveis.
O referido jurista assevera que as antinomias podem ser aparentes, quando sanáveis, e
reais, quando não. Para as aparentes, ele elenca três critérios relativamente independentes para
a solução delas, quais sejam, o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.
O primeiro, “chamado também de lex posterior, é aquele com base no qual, entre duas
normas incompatíveis, prevalece a norma posterior: lex posterior derogat priori” (BOBBIO,
1999, p.92). No caso em apreço, contudo, esse critério não poderá ser utilizado, uma vez que
as normas em conflito foram estabelecidas ao mesmo tempo pelo constituinte originário.
Por sua vez, o segundo, “chamado também de lex superior, é aquele pelo qual, entre
duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat
inferiori” (BOBBIO, 1999, p.93). Tal critério, porém, também não poderá ser aplicado, pois,
de acordo com o princípio da unidade da Constituição, não há hierarquia entre normas
constitucionais.
Por derradeiro, “o terceiro critério, dito justamente da lex specialis, é aquele pelo qual,
de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a
segunda: lex specialis derogat generali (BOBBIO, 1999, p. 96). Esse critério, no entanto, não
poderá ser aplicado, visto que as normas em conflito são ambas gerais.
Logo, percebe-se que estamos diante de um conflito real de normas, eis que nenhum dos
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critérios para a solução de conflito aparente resolveu o choque em questão. Nesse caso, o
mencionado jurista reconhece que há uma insuficiência de critérios, de modo que, segundo
ele, a solução do conflito partiria do intérprete, e não da aplicação dos referidos critérios.
De fato, nessas hipóteses, mais de uma norma postula aplicação sobre os mesmos
fatos. Vale dizer: há várias premissas maiores e apenas uma premissa menor. Como
intuitivo, a subsunção, na sua lógica unidirecional [...], somente poderia trabalhar
com uma das normas, o que importaria na eleição de uma única premissa maior,
descartando-se as demais. Tal fórmula, todavia, não seria constitucionalmente
adequada, em razão do princípio da unidade da Constituição, que nega a existência
de hierarquia jurídica entre normas constitucionais.
Antes de responder a tal pergunta, cabe estabelecer a distinção entre regras e princípios,
que será importante para o entendimento da resposta mais adiante.
Segundo Bonavides (2005, p.248), “ao estudar uma teoria material dos direitos
fundamentais em bases normativas [...] Alexy instituiu a distinção entre regras e princípios,
que, na essência, é a mesma de Dworkin. Conjugou as duas modalidades debaixo do conceito
de normas”.
O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte,
mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em
graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende
somente das possibilidades fáticas. Mas também das possibilidades jurídicas. O
âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras
colidentes.
Vale dizer, os princípios, quando em colisão com regras ou com outros princípios,
podem ter uma aplicação mais ampla ou mais restrita conforme o caso concreto. Contudo,
sempre que possível, considerando-se as possibilidades fáticas e jurídicas, o bem jurídico
tutelado por eles será protegido na maior medida. Nessa esteira, preleciona Mendes (2002,
p.181):
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...normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então,
deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras
contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente
possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção
qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um
princípio.
Desse modo, havendo um conflito entre regras, uma será aplicada em toda sua
totalidade e da outra nada será aplicado. Em tal conflito não há como fazer concessões
recíprocas entre as normas. De uma regra ou se aplica tudo ou nada. No mesmo sentido,
dispõe Mendes (2002, p.181):
Segundo Bonavides, Alexy julga correta a tese de que entre princípios e regras não há
apenas uma distinção de grau, mas também de qualidade.
Se dois princípios colidem [...] um terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem
que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser
introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos
princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras
condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que
se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos
diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência.
“Na segunda fase cabe examinar as circunstâncias concretas e suas repercussões sobre
os elementos normativos, daí se dizer que a ponderação depende substancialmente do caso
concreto e de suas particularidades” (SARMENTO, 2000, apud BARCELOS, 2009, p. 58).
Ante o exposto, infere-se que a técnica tradicional de solução de conflitos entre normas,
isto é, a subsunção, não é capaz de solucionar as colisões de direitos fundamentais, visto que
tais direitos têm a mesma hierarquia e validade. Assim, no caso em apreço, aplicar-se-á a
técnica da ponderação, a fim de sopesar qual direito terá maior valor no caso concreto.
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4 OBJETIVOS
Geral:
Específicos:
5 HIPÓTESES
2. Para a maior parte da doutrina e para o Supremo Tribunal Federal, a presente colisão
de direitos fundamentais, bem como as demais, só poderá ser resolvida no caso concreto, a
partir da técnica da ponderação, que consiste em sopesar, caso a caso, qual interesse terá
maior peso.
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6 ASPECTOS METODOLÓGICOS
I. Quanto ao tipo:
Descritiva, uma vez que buscará descrever, explicar, classificar, esclarecer o problema
apresentado.
Exploratória, eis que objetiva aprimorar ideias através de informações sobre o tema em
apreço.
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REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.
São Paulo: Malheiros, 2008.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
São Paulo: Malheiros, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In:
MENDES, Gilmar Ferreira (Org.) Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais.
Brasília; Brasília jurídica, 2002, p.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 82.424, voto do Ministro Celso de
Mello, Brasília, DF, 19 de março de 2004. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo393.htm. Acesso em: 15
nov. 2010.
POSSÍVEL SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 EUTANÁSIA
1.1 Conceito
1.2 Espécies
1.3 Evolução histórica
1.4 Práticas que diferem da eutanásia
1.4.1 Distanásia
1.4.2 Suicídio assistido
1.4.3 Eugênia
1.5 Eutanásia no direito brasileiro
1.5.1 No âmbito constitucional
1.5.2 No âmbito penal
1.6 Eutanásia no direito comparado
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS