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Auto-retrato

Magro, de olhos azuis, carão moreno,


Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,


Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades


(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;


Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Bocage
Poesias de Bocage
Lisboa, Comunicação, 1992 (4ª ed.)

SONETO AO PECCADOR MORTO] [B. M. Curvo Semmedo]

Morreu Bocage, sepultou-se em Goa!


Chorae, moças venaes, chorae, pedantes,
O insulso estragador das consoantes,
Que tantos tempos aturdiu Lisboa!

Por aventuras mil obteve a c'roa


Que a fronte cinge dos heroes andantes;
Inda veiu de climas tão distantes
À toa vegetar, versar à toa:

Este que vês, com olhos macerados,


Não é Bocage, não, rei dos brejeiros,
São apenas seus olhos descarnados:

Fugiu do cemiterio aos companheiros:


Anda agora purgando seus peccados
Glosando aos cagaçaes pelos outeiros.
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?


Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,


Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,


Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!

Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;


É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.

Bocage

A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

Camões, grande Camões, quão semelhante


Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante


Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Lubíbrio, como tu, da sorte dura,


Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...


Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.

Bocage
IMPORTUNA RAZÃO, NÃO ME PERSIGAS

Importuna Razão, não me persigas;

Cesse a ríspida voz que em vão murmura;

Se a lei de Amor, se a força da ternura

Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;

Se acusas os mortais, e os não abrigas,

Se (conhecendo o mal) não dás a cura,

Deixa-me apreciar minha loucura,

Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projecto encher de pejo

Esta alma, frágil vítima daquela

Que, injusta e vária, noutros laços vejo.

Queres que fuja de Marília bela,

Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo

É carpir, delirar, morrer por ela.


SONETO DO PRAZER MAIOR

Amar dentro do peito uma donzella;

Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;

Fallar-lhe, conseguindo alta ventura,

Depois da meia-noite na janella:

Fazel-a vir abaixo, e com cautela

Sentir abrir a porta, que murmura;

Entrar pé ante pé, e com ternura

Apertal-a nos braços casta e bella:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,

E a bocca, com prazer o mais jucundo,

Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vel-a rendida emfim a Amor fecundo;

Dictoso levantar-lhe os brancos folhos;

É este o maior gosto que ha no mundo.


SONETO DO PREGADOR PECCADOR

Bojudo fradalhão de larga venta,

Abysmo immundo de tabaco esturro,

Doutor na asneira, na sciencia burro,

Com barba hirsuta, que no peito assenta:

No pulpito um domingo se apresenta;

Prega nas grades espantoso murro;

E acalmado do povo o grão sussurro

O dique das asneiras arrebenta.

Quattro putas mofavam de seus brados,

Não querendo que gritasse contra as modas [

Um peccador dos mais desaforados:

"Não (diz uma) tu, padre, não me engodas:

Sempre me ha de lembrar por meus peccados

A noite, em que me deste nove fodas!"

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