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Mattéi - Civilizacao-E-Barbarie PDF
Mattéi - Civilizacao-E-Barbarie PDF
Jean-François Mattéi
Universidade de Nice
1
Nietzsche, Considerações intempestivas, II, prefácio.
2
Ibid. I,1.
3
Nietzsche, Fragmentos póstumos, 1877-1888. Paris, Gallimard, 1976, p. 122.
4
Schiller, Cartas sobre a educação estética do homem, carta VII.
dissociação do entendimento que, de tanto raciocinar, rompe a unidade ideal
da humanidade. Há, de fato, duas maneiras para o homem destruir o homem:
seja como o selvagem, impondo seus sentimentos a seus princípios, ou, dito de
outro modo, submetendo a razão universal aos desejos particulares; seja como
o Bárbaro, aniquilando os sentimentos pelos princípios, isto é destruindo a
natureza substancial do homem.
Para nossos dois autores não é apenas a História, como história da luta
de classes, que é marcada pelo ferro vermelho da barbárie; é a Razão mesma
que revela sua natureza bárbara desde o alvorecer da humanidade. A Razão é
posta, de imediato, como totalitária porque jamais conhece, em sua furiosa
necessidade de universalidade, que a unidade, segundo eles, volta para levar à
“destruição dos deuses e das qualidades”8. O pensamento racional, como a
civilização que dele se reivindica, não passaria de um mecanismo coercitivo de
dominação de seres singulares que se encontram esmagados, destruídos,
assimilados nessa imensa empreitada de liquidação da humanidade. Walter
Benjamin já sustentava, em 1942, na mesma preocupação de libertação
revolucionária, que “todo documento de civilização” é, ao mesmo tempo, “um
documento de barbárie”9.
7
M. Horkheimer e Th. Adorno, Dialética da razão, Paris, Galllimard, 1974, p. 19.
8
Ibid., p. 25.
9
W. Benjamin, Teses sobre a filosofia da história, o homem, a linguagem e a cultura. Paris,
Denöel-Gonthier, 1971, p. 87.
10
Lenin, Obras, tomo XXVII, citado por A. Glucksman, A cozinheira e o comedor de homens,
Paris, Seuil, 1975, p. 104-5.
11
W. Benjamin, Gesammelte Schriften, II, 1, p. 214-9, citado em G. Raulet, O caráter
destruidor, Paris, Aubier, 1997, p. 31.
Charakter, é, a esse respeito, sem ambiguidade. Ele resume em poucas
palavras: “dar lugar”.
Meu propósito não segue essa visão dialética da História, seja ela
hegeliana ou marxista, mas a crítica que Leopold Von Ranke fazia de Hegel. O
historiador alemão sustentava que o Absoluto não se encontrava no fim da
História, o que significaria sacrificar as épocas passadas em prol de um futuro
lançado ao infinito, porém que cada época era “imediata em relação a Deus”.
Em termos éticos, sustentar que cada época é imediata em relação ao Bem é
sustentar que ela pode julgar o mal sem cair no relativismo, e que o bem e o
mal – em termos antropológicos Civilização e Barbárie – são articulados em um
único ser. A Barbárie não remete a um assalto da violência que viria do exterior
transtornar nossa intimidade, mas a essa própria intimidade, visto que ela se
apresenta como autônoma e suficiente.
12
M. Horkheimer e Th. Adorno, op. cit. p. 18.
13
S. Weil, Cadernos, III, Paris, Plon, 1974, p. 163.
Castoriadis – essa derrocada do humano incapaz de se elevar à altura do
homem e, mais ainda, de ultrapassá-la, ocorre no interior do humano, quer
dizer, é em cada homem que é preciso detectar as tendências acusadas de,
em maior ou menor medida, desembocarem na barbárie ou de lhe deixarem o
campo livre. Que essa degradação esteja ligada a um fracasso interior, disso
encontraremos o indício no primeiro texto onde a palavra aparece. É no poema
fundador de nossa civilização, a Ilíada, que a barbárie faz sua aparição sob o
vocábulo barbarophônon, em uma única ocorrência, no verso 867 do canto II.
Não parece que o termo tenha tido em sua origem um valor etnocêntrico
implicando a superioridade da língua grega sobre a dos falantes estrangeiros.
Todos os outros povos troianos falam de maneira correta no poema homérico,
e só os carianos, com seus sons ásperos, têm dificuldade de se fazer
compreender. É apenas mais tardiamente que o termo “Bárbaro” designará os
povos estrangeiros no logos grego, mesmo quando eles possuem uma
civilização mais antiga e mais rica, como os egípcios, que tanto fascinarão
Platão. Os gregos verão nos bárbaros homens que faltam à sua própria língua,
e através desta, à humanidade, sendo sua pronúncia grosseira a manifestação
imediata da brutalidade de seus costumes. No fundo, o Bárbaro, no seu falar
inarticulado, é aquele incapaz de ligar sua própria humanidade ao mundo e aos
outros homens: ao invés de se elevar ao seio da humanidade, ele retorna a um
balbucio rugoso e indistinto.
14
Platão, República, VII, 533, d.
justiça, perturbam-se, atrapalham-se e “falam em bárbaro” ou “em balbucios”
(175 d).
15
Nietzsche, Considerações inatuais I e II, Fragmentos póstumos (1872-1874), Paris,
Gallimard, 1990, p. 264.
... este povo bárbaro,
19
M. Horkheimer, Eclipse da razão, Paris, Payot, 1974, p. 26.
20
H. Arendt, A condição humana, trad. fr., Paris, Calman-Lévy, 1961, p. 286.
21
G. Lipovetsky, A era do Vazio, Paris, Gallimard, 1983; reed. Folio, 1993.
Se o selvagem ainda não teve tempo de criar obras duráveis de civilização por
seu trabalho sobre si mesmo, o bárbaro procura destruir esse mundo
estrangeiro que o provoca e fascina mas que, ao mesmo tempo, lhe devolve o
reflexo de sua impotência para encontrar o sentido. Em seu caráter segundo, a
barbárie está estreitamente ligada à civilização, da qual é a face negativa, da
mesma forma que a queda está intimamente ligada à ascensão: somente
aquele que pode subir está em condição de cair.
23
H. Arendt, A crise da cultura, Paris, Gallimard, 1972, p. 230.
forma, Phillipe Mérieu, em Escola, modo de usar, dirá que os alunos
“funcionam”, na falta de pensar e refletir, decodificando a estratégia do
professor graças a sua capacidade de “estabilizar os processos nos
desenvolvimentos”. Essa expressão afetada, é verdade, levará o autor a se
preocupar com o estatuto de seu próprio discurso: “Não é um pouco
bárbaro?”24 E tal barbárie pedagógica não prepara a cama para uma barbárie
ainda mais brutal quando se sabe, a partir do relatório do senador Lorrain sobre
a violência escolar na França, em maio de 1998, que os colégios vivenciaram
em 1997 57% de atos de violência física contra professores e alunos, as
escolas profissionalizantes, 54% e as escolas públicas, somente 34%,
enquanto os roubos se elevavam, respectivamente, a 38%, 46% e 37% nos
estabelecimentos que se desobrigam da educação nacional?
Como supor que a arte ainda possua uma significação tanto para os
criadores como para os espectadores quando um número crescente de artistas
e de críticos, recusando o recurso à beleza, à técnica e a própria obra, buscam
aniquilar toda forma apostando na não-arte? George Steiner, em O castelo de
Barba Azul, referia-se a isso como “barbárie presente”, e usava “pós-cultura”
para designar este mundo absolutamente plano onde, no consumo
generalizado de objetos de lazer e, portanto de sua destruição, tudo se
equivale, já que a transcendência da obra e do sentido foi abolida. Assim
Robert Rauschenberg executava, em 1953, a desocupação de uma tela de De
Kooning, Erased De Kooning Drawing, que consistia em apagá-la totalmente
após um mês de trabalho e com o uso de quarenta borrachas. Harold
Rosenberg, um dos críticos mais célebres da arte contemporânea, justificou
teoricamente essa prática reconhecendo que, para ser arte moderna, uma obra
não precisava nem ser moderna, nem ser arte e nem mesmo ser uma obra.25
Foi isso que, sem dúvida, Yves Klein compreendeu, em abril de 1958, em sua
exposição parisiense sobre A especialização da sensibilidade ao estado
matéria em sensibilidade pictórica estabilizada: os visitantes encontraram a
porta fechada, a galeria trancada e os pedestais vazios.
24
Ph. Meriéu, Escola, modo de usar, Paris, ESF, 1990, p. 24.
25
H. Rosenberg, A tradição do novo, Paris, Minuit, 1959, p. 35.
moderna ameaçava encerrar o indivíduo, atomizado na massa solitária, “na
solidão de seu coração”.26 Compreendemos por que Blandine Kriegel, em sua
Filosofia da república, sustentou que “a filosofia do Sujeito é a filosofia dos
Bárbaros”27, uma vez que tende a reduzir o cidadão a um sujeito formal
desprovido de substância e definido unicamente, no nosso universo
administrativo e jurídico, por um conjunto de técnicas processuais cuja
humanidade está ausente.
Foi isso que Rainer Maria Rilke revelou a Franz Xavier Kappus, que
procurava compreender, junto ao poeta, o que poderia ser, afinal, a criação
poética – e, portanto, a elevação do homem: “Tudo o que acontece é sempre
um começo”.28
26
A. Tocqueville, Da democracia na América, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1992, Tomo II, 2ª
parte, cap. 2, p. 614.
27
B. Kriegel, A filosofia da república, Paris, Plon, 1998, p. 329.
28
R.-M. Rilke, Cartas a um jovem poeta, Paris, Grasset, 1984, p. 69.