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CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

Jean-François Mattéi
Universidade de Nice

“É com o melhor que o homem se forma”

Hölderlin, A primavera, 24 de maio de 1748

Nietzsche definia o filósofo como o médico da civilização. Ele entendia


por “médico”, como estabeleceu em sua obra, o homem capaz de fornecer um
diagnóstico sobre o estado presente do paciente a fim de remontar à etiologia
de sua doença. Pensar, para um filósofo, era, por conseguinte, sustentar um
discurso intempestivo sobre seu tempo, agindo “contra o tempo, logo sobre o
tempo, e esperando também, em benefício do porvir” 1. E quando Nietzsche
dirigia um olhar distante sobre sua época, desde as Considerações
intempestivas de 1873 e 1874, ele não reconhecia mais a verdadeira marca de
uma civilização, que implica “a unidade de estilo artístico através de todas as
manifestações da vida de um povo”. Muito pelo contrário, ele foi forçado a
constatar na vida corrente a “ausência de estilo ou a mistura caótica de todos
os estilos”, que ele identificava expressamente com a “barbárie”2. Quinze anos
mais tarde, Nietzsche denunciaria a febre da civilização que a impulsiona a
procurar “o favor de temas excitantes – erotica, socialistica e pathologica”3. Sob
esse vocabulário médico que realça os sinais de enfraquecimento do homem
moderno, podemos detectar os três momentos de uma mesma tendência,
barbarica, que não seria outra coisa que a excitação interior do Sujeito levado à
sua incandescência.

O autor de Zaratustra não foi o único moderno a denunciar a barbárie de


nosso tempo. Uma vasta geração de pensadores se questionou, pelo menos
desde Montaigne e Charron, sobre os múltiplos ressurgimentos da barbárie que
se poderia crer erradicada com o aparecimento do cristianismo e, mais tarde,
com o advento da racionalidade. No final do século das Luzes, Schiller podia
assim se perguntar: “Então de onde vem que ainda continuemos sendo
bárbaros?”4. Ele interpretava essa barbárie moderna como o processo de

1
Nietzsche, Considerações intempestivas, II, prefácio.
2
Ibid. I,1.
3
Nietzsche, Fragmentos póstumos, 1877-1888. Paris, Gallimard, 1976, p. 122.
4
Schiller, Cartas sobre a educação estética do homem, carta VII.
dissociação do entendimento que, de tanto raciocinar, rompe a unidade ideal
da humanidade. Há, de fato, duas maneiras para o homem destruir o homem:
seja como o selvagem, impondo seus sentimentos a seus princípios, ou, dito de
outro modo, submetendo a razão universal aos desejos particulares; seja como
o Bárbaro, aniquilando os sentimentos pelos princípios, isto é destruindo a
natureza substancial do homem.

Na linha de Vico, que havia pressentido, no mesmo século, a escalada


de uma “segunda barbárie” – a “barbárie da reflexão”, muito mais perigosa que
a “barbárie dos sentidos” –, Schiller opusera essas duas formas contrárias da
depravação humana: a da selvageria, que desencadeia a violência anárquica
dos sentimentos, e a da barbárie, que desfaz todas as energias criadoras
fechando-se sobre o Eu. Se ainda somos e continuamos sendo bárbaros, é
porque transpusemos a antiga violência das hordas destrutivas na depravação
moral, separando-nos de toda relação substancial com nossa própria natureza.
Schiller determinava em uma fórmula surpreendente o modus operandi da
barbárie das Luzes, que destruiu a unidade essencial do homem e da natureza:
“A Natureza reuniu por toda parte, o entendimento dissocia por toda parte” 5.

Apesar do triunfo do positivismo, no século XIX, um grande número de


autores – Goethe, Hugo, Flaubert, Baudelaire e Poe em primeiro lugar –
acusaram o progresso das Luzes ao denunciar o reino da indústria, da
imbecilidade burguesa, da cidade tentacular e da miséria social, que deram
ensejo àquilo que Anatole France denunciara como uma “barbárie culta” 6. O
século XX, de sua parte, apenas terá dificuldade em escolher. O mundo novo
acreditava ter ocultado a ignorância, a guerra e a violência à proporção das
luzes da ciência e do triunfo da democracia; mas este descobriu em seu seio
as guerras mundiais, as deportações, os extermínios, os genocídios a um grau
jamais igualável na História. Do buraco negro de Auschwitz ao ofuscante sol de
Hiroshima.

Nunca a figura do homem foi tão humilhada ou reduzida ao nada como


testemunham essas grandes cabeças trágicas de Fautrier, onde o rosto
esculpido do homem afunda-se na massa em fusão do bronze. É suficiente ter
em mãos Kafka, Céline ou Bernanos, Ortega y Gasset, Simone Weil e Camus
e, mais próximo de nós, Emmanuel Levinas, Michel Henry e George Steiner,
mas também, se quisermos compreender os dois monstros totalitários, David
Rousset, Primo Levi, Alexandre Wat ou Alexandre Soljenitsin, para nos
convencermos de que a Barbárie não poupou nossa época. O mais estranho,
sem dúvida, é que essa mesma época redime-se ideologicamente dos crimes
que cometeu vivendo na ilusão de que a exaltação dos Direitos do Homem
basta para conjurar, como uma fórmula mágica, as ameaças de uma recaída
na Barbárie.
5
Ibid., carta XVIII, nota 1.
6
A. France, O jardim de Epicuro, Paris, 1921, reed. 1949, p. 229.
Alguns pensadores mostraram-se ainda mais radicais em sua denúncia
de uma razão bárbara cegando-se totalmente, no mesmo momento, sobre a
revolução comunista que enfim permitiria liquidá-la. De fato, não foi a razão
totalitária, essa abstração de que vivem os filósofos, porém pessoas reais,
singulares, de carne e sangue, que foram liquidadas às dezenas de milhões
para permitir o nascimento de um novo homem na sombra obscura dos
campos. Penso em Max Horkheimer e Theodor Adorno que, em sua Dialética
da razão, publicada em 1947, procuravam entender por que a humanidade, “ao
invés de se engajar em condições verdadeiramente humanas, perde-se um
uma nova forma de barbárie”7.

Para nossos dois autores não é apenas a História, como história da luta
de classes, que é marcada pelo ferro vermelho da barbárie; é a Razão mesma
que revela sua natureza bárbara desde o alvorecer da humanidade. A Razão é
posta, de imediato, como totalitária porque jamais conhece, em sua furiosa
necessidade de universalidade, que a unidade, segundo eles, volta para levar à
“destruição dos deuses e das qualidades”8. O pensamento racional, como a
civilização que dele se reivindica, não passaria de um mecanismo coercitivo de
dominação de seres singulares que se encontram esmagados, destruídos,
assimilados nessa imensa empreitada de liquidação da humanidade. Walter
Benjamin já sustentava, em 1942, na mesma preocupação de libertação
revolucionária, que “todo documento de civilização” é, ao mesmo tempo, “um
documento de barbárie”9.

A tese que sustento sobre a “barbárie interior” não se inscreve nessa


linha dialética de uma razão totalitária que chega a romper seus limites nas
convulsões revolucionárias forjadas, não se sabe bem como, em seu seio.
Assim, Lênin poderia justificar, em janeiro de 1918, seu projeto de “profilaxia
social” destinado a limpar a Rússia de “todos os insetos nocivos”, não
hesitando em utilizar “métodos bárbaros contra a barbárie” 10. E o próprio
Benjamin, em seu ensaio de 1933, Experiência e miséria, não hesitará em
forjar o conceito insensato de “barbárie positiva” cuja ênfase era ainda por cima
posta na barbárie antes que na positividade, e a esperar que um dia “o rir” da
humanidade “emita um som bárbaro”11. Em nome da ruptura revolucionária, o
pensador marxista apostava no caráter destrutivo de uma cultura de massas
populares que somente tornaria a cavar, ainda mais fundo, as espirais da
barbárie. Um preceito de Benjamin, em sua obra de 1931, Der destruktive

7
M. Horkheimer e Th. Adorno, Dialética da razão, Paris, Galllimard, 1974, p. 19.
8
Ibid., p. 25.
9
W. Benjamin, Teses sobre a filosofia da história, o homem, a linguagem e a cultura. Paris,
Denöel-Gonthier, 1971, p. 87.
10
Lenin, Obras, tomo XXVII, citado por A. Glucksman, A cozinheira e o comedor de homens,
Paris, Seuil, 1975, p. 104-5.
11
W. Benjamin, Gesammelte Schriften, II, 1, p. 214-9, citado em G. Raulet, O caráter
destruidor, Paris, Aubier, 1997, p. 31.
Charakter, é, a esse respeito, sem ambiguidade. Ele resume em poucas
palavras: “dar lugar”.

Meu propósito não segue essa visão dialética da História, seja ela
hegeliana ou marxista, mas a crítica que Leopold Von Ranke fazia de Hegel. O
historiador alemão sustentava que o Absoluto não se encontrava no fim da
História, o que significaria sacrificar as épocas passadas em prol de um futuro
lançado ao infinito, porém que cada época era “imediata em relação a Deus”.
Em termos éticos, sustentar que cada época é imediata em relação ao Bem é
sustentar que ela pode julgar o mal sem cair no relativismo, e que o bem e o
mal – em termos antropológicos Civilização e Barbárie – são articulados em um
único ser. A Barbárie não remete a um assalto da violência que viria do exterior
transtornar nossa intimidade, mas a essa própria intimidade, visto que ela se
apresenta como autônoma e suficiente.

Quando Horkheimer e Adorno acusam o “sujeito despótico” do mundo


moderno12, não apelam mais às teses marxistas tradicionais do enfrentamento
das classes sociais, exteriores umas às outras e incapazes de formar uma
comunidade; eles tornam clara a condição maior da barbárie de nosso tempo,
que consiste no fechamento do sujeito sobre sua interioridade. É a interioridade
(quando esta se priva de toda luz exterior, a de Deus, do mundo ou dos outros
homens) que se submete aos reflexos invertidos do humano e do bárbaro, e
nenhuma pode escapar do inferno de seu enclausuramento. O inferno nunca
são os outros, como afirmava Sartre num sofisma célebre; o inferno é sempre
si-mesmo, uma vez que o sujeito interior se feche a qualquer abertura para se
comprazer em si. A barbárie interior é a regressão do Eu na deserção do Outro,
pois o eu do sujeito que reflete sua própria luz sem iluminar nada além dele
mesmo não esgota a humanidade do pensamento. Simone Weil dá um
magnífico testemunho sobre a necessidade, para o pensamento, de se
entregar a uma luz exterior:

Em todas as coisas, somente o que vem de fora, gratuitamente, de surpresa,


como um dom da sorte, sem que tenhamos procurado, é alegria pura.
Paralelamente, o bem real só pode vir de fora, jamais de nosso próprio
esforço.13

Não encontraremos, portanto a causa das regressões da civilização no


exterior da mesma, tampouco encontraremos a causa do fechamento do sujeito
no exterior do sujeito. Se entendemos por “barbárie” – como fazem a maioria
dos autores que trataram dessa questão, de Goethe e Schiller a Adorno e

12
M. Horkheimer e Th. Adorno, op. cit. p. 18.
13
S. Weil, Cadernos, III, Paris, Plon, 1974, p. 163.
Castoriadis – essa derrocada do humano incapaz de se elevar à altura do
homem e, mais ainda, de ultrapassá-la, ocorre no interior do humano, quer
dizer, é em cada homem que é preciso detectar as tendências acusadas de,
em maior ou menor medida, desembocarem na barbárie ou de lhe deixarem o
campo livre. Que essa degradação esteja ligada a um fracasso interior, disso
encontraremos o indício no primeiro texto onde a palavra aparece. É no poema
fundador de nossa civilização, a Ilíada, que a barbárie faz sua aparição sob o
vocábulo barbarophônon, em uma única ocorrência, no verso 867 do canto II.

Homero passa em revista as forças gregas e troianas que vão se


enfrentar em um combate decisivo na planície de Tróia. Ao descrever o
exército dos troianos conduzidos por Heitor e composto de diferentes povos
asiáticos, o poeta chega aos carianos. Esses habitantes da região de Caria, na
Ásia Menor, são “barbarofones”, isto é, gaguejam de maneira indistinta: a
barbárie de sua língua não advém de sua inferioridade em relação à língua
grega, mas do mau uso que essas populações dela fazem. O termo é uma
onomatopeia, bar-bar, cuja duplicação da sílaba ba e da rugosidade da
consoante r dão a entender que “falar bárbaro” é falar por borborismos e
grunhidos indistintos.

Não parece que o termo tenha tido em sua origem um valor etnocêntrico
implicando a superioridade da língua grega sobre a dos falantes estrangeiros.
Todos os outros povos troianos falam de maneira correta no poema homérico,
e só os carianos, com seus sons ásperos, têm dificuldade de se fazer
compreender. É apenas mais tardiamente que o termo “Bárbaro” designará os
povos estrangeiros no logos grego, mesmo quando eles possuem uma
civilização mais antiga e mais rica, como os egípcios, que tanto fascinarão
Platão. Os gregos verão nos bárbaros homens que faltam à sua própria língua,
e através desta, à humanidade, sendo sua pronúncia grosseira a manifestação
imediata da brutalidade de seus costumes. No fundo, o Bárbaro, no seu falar
inarticulado, é aquele incapaz de ligar sua própria humanidade ao mundo e aos
outros homens: ao invés de se elevar ao seio da humanidade, ele retorna a um
balbucio rugoso e indistinto.

Esse mau tratamento da palavra será transposto em mau tratamento da


alma bem mais tarde, com o surgimento da filosofia. Platão, vendo na dialética
a salvação da alma, dirá que esta a retira desse “bárbaro lamaçal” onde caiu –
em grego: borboro barbaricô – para fazê-la aceder ao que há de mais alto14.
Nessa passagem, a brutal duplicação dos carianos, bar-bar, se encontra
reforçada por uma duplicação ainda mais rude, bor-bor. Platão nos mostra aqui
que, na ausência da educação (paidéia), a barbárie é a língua interior e
inarticulada da alma. Essa imagem é retomada no Teeteto, quando Sócrates
assinala que as almas grosseiras, desde que se deparam com o problema da

14
Platão, República, VII, 533, d.
justiça, perturbam-se, atrapalham-se e “falam em bárbaro” ou “em balbucios”
(175 d).

A constatação não mudou nos últimos vinte e cinco séculos. Quando


Nietzsche coloca em causa aqueles que chama de “bárbaros alemães”, ele os
define nesses termos:

Se é verdade que os gregos identificavam o falar dos outros povos com um


grasnar e lhes davam, por conseguinte, o mesmo nome que às rãs, é que os
bárbaros são grasnadores: balbuciam sem beleza nem significação. Falta de
“educação estética”.15

Antes de voltar ao mundo contemporâneo, eu gostaria de lembrar que a


clivagem tradicional da civilização e da barbárie, sob a forma de uma exclusão
do Bárbaro, vem mais dos romanos do que dos gregos, numa perspectiva
política e jurídica, e não antropológica. Os povos estrangeiros a Roma,
empurrados do outro lado do limes – uma fronteira de mais de 9.000 km
guarnecida por fortificações que marcavam o limite da pax Romana – eram
qualificados de exteri, externi ou exterae gentes, “povos de fora”. O termo
“bárbaro” vai, portanto, remeter ao inimigo externo e, mais adiante, o termo
civilizado concernirá somente ao cidadão da cidade universal, urbi et orbi:
Roma. É dessa clivagem política que provém a polaridade Romania/Barbaria,
depois, em consequência, Civilização/Barbárie. Mas Roma enriqueceu nosso
conhecimento da barbárie distinguindo dois tipos de barbárie, por seu turno
separado em dois.

De um lado, a feritas ou ferocitas, a “crueldade” ou “violência furiosa”


que caracteriza os povos germânicos e eslavos, os povos do norte; de outro, a
vanitas, a “vacuidade” e a “fraqueza” dos povos orientais, amolecidos por uma
vida de sensualidade e corrupção. Uma barbárie nórdica, masculina, marcada
pelo instinto de destruição, e uma barbárie oriental, feminina, ligada à riqueza
desmedida e ao vazio interior. Mas de outro lado, e dessa vez sobre o plano
moral, os filósofos romanos, Cícero em primeiro lugar, irão opor a barbárie
interior dos romanos, os mesmos que perdem o sentido da virtus moral e
política, à barbárie exterior dos povos que ainda não foram educados na
civilização. Corneille retomará essa ideia no Sertório, a respeito dos lusitanos:

15
Nietzsche, Considerações inatuais I e II, Fragmentos póstumos (1872-1874), Paris,
Gallimard, 1990, p. 264.
... este povo bárbaro,

Que, formado por nossos cuidados, instruído por nossa mão,

Sob nossa disciplina, se tornou romano.16

Cícero, o primeiro humanista a identificar em uma mesma alma a


“cultura” e a “filosofia” – cultura animi philosophia est17 – pensa a civilização
romana não apenas sob o ângulo político da cidadania, mas sob o ângulo
alargado da universalidade do gênero humano. Civilizar é unir todos os povos
num mesmo cadinho, e unir é edificar todos os homens em sua comum
humanidade. “Como dar com justa razão o nome de ‘homem’ àquele que
recusa ter com seus concidadãos, enfim, com o conjunto do gênero humano,
toda comunidade jurídica, toda comunidade humana?” diz um de seus
personagens no diálogo A república18.

O humanismo nasceu assim em Roma, na linha da tradição grega, no


cruzamento do cristianismo, nascido em Jerusalém, na linha da tradição
judaica, recusando as oposições exteriores entre os homens para libertar
aquele que Platão, o primeiro, chamava “O homem interior” (República, IX, 589
b), uma expressão que reencontraremos em São Paulo (II Coríntios, 4, 16), em
Plotino (Enéadas, V, 1, 10) e, mais tarde, em toda a tradição ocidental a partir
de santo Agostinho. A meta da civilização, seja Greco-romana ou cristã,
sempre foi a conversão do bárbaro, ou do homem pecador, em homem
verdadeiramente homem.

O paradoxo de nosso tempo é que essa interioridade da alma humana,


conquistada sobre a exterioridade da barbárie, por seu turno degenerou e
permitiu que surgisse uma nova barbárie, uma “barbárie interior” que se
desenvolveu com o advento do Sujeito dos Modernos. O paradoxo é colocado
às claras a partir do que eu chamei a ilusão de Münchausen: o barão
prussiano, derrubado de seu cavalo em um pântano profundo, se levanta pela
força de seus próprios braços e se puxa pelos cabelos mantendo seu cavalo
preso entre as coxas. É isto a barbárie interior: acreditar que a autoprodução
do Sujeito que se separa de Deus, do mundo e dos outros homens para se
voltar à egoidade do Eu pode ser suficiente para elevá-lo acima de si mesmo.
Toda tradição religiosa, metafísica ou moral, por exemplo, Agostinho,
Montaigne, Pascal ou Rousseau, ensinava que o homem, voltando-se sobre si
mesmo, na sua interioridade – “um santuário de uma amplidão infinita” cujo
fundo ninguém tocou, escrevia Agostinho (Confissões, X, 8) – encontrava outra
coisa que ele mesmo, quer chamemos Deus, Razão ou Substância, e derivava
sua grandeza ética da imitação que fazia dessa alteridade primitiva.
16
Corneille, Sertório, ato I, cena 1.
17
Cícero, Toscolane, II, 5. 13…
18
Cícero, A república, II, 26, 48.
A reviravolta em direção ao Sujeito dos Modernos entre os séculos XVI e
XVIII (que se deveria chamar o subjectivist turn no sentido linguistic turn da
filosofia contemporânea) engendrou efeitos de barbárie tão numerosos quanto
imprevistos. Esses só se fizeram sentir em nosso tempo após um processo de
democratização que generalizou a todos os homens essa concepção de uma
humanidade fixada ao Sujeito, como dizia Levinas. Com essa “subjetivização
que exalta o sujeito”, para retomar a expressão de Horkheimer19, assina-se o
decreto de morte do homem e, com ele, da civilização. A grande tradição de
nossa cultura nunca colocou o Sujeito – ou o Eu – em posição central devido à
sua vacuidade; o pensador marxista Ernst Bloch testemunha ainda em Traços,
em 1930: “Deixados a nós mesmos, nós ainda somos vazios”. Encontraremos
hoje mil ilustrações dessa vacuidade triunfante que Hannah Arendt, em A
Condição Humana, interpretava como um efeito do “subjetivismo extremo da
época moderna”20, o qual resultou em “uma consciência de si totalmente vazia”.
Eu tomarei emprestados os diversos signos da vanitas bárbara das teses de
Gilles Lipovetsky que, em a Era do vazio, definia a esterilidade do Sujeito com
essas expressões sugestivas:

“A estratégia do vazio”, “a atomização”, “a apatia frívola”, “a


desubstancialização”, “a liquefação”, “a dissolução”, “a subjetividade total sem
meta nem sentido”, o “grau zero do social”, “o refúgio aconchegante em nosso
gueto íntimo”, “o narcisismo indo de par com as relações humanas cada vez
mais bárbaras e conflitivas”, “o declínio da intersubjetividade”, o “sentimento de
vazio interior”, “a cultura radicalmente individualista indo até as últimas
consequências, no fundo suicidas”, “o dilaceramento da personalidade”, “a
fragmentação desarmônica do eu”; sem esquecer, em desordem, as “palavras
bárbaras” dos comics americanos (“Chnaf! Plomp! Ghuouhougrptch! Rrhawk!
etc.”), “o processo de erradicação dos modelos transcendentes”, as “violências
selvagens”, “o efeito hard” que é o correlativo de “ordem cool”, por exemplo “a
prostituição de crianças cada vez mais jovens”, “tendências à autodestruição”
de uma “era narcísica” mais suicidógena ainda que a “era autoritária”, a
“liquefação do desejo de aniquilamento”, “a violência hard, desencantada” etc.21

É possível distinguir facilmente o que eu chamaria de efeitos de barbárie


dos efeitos de civilização. O efeito de barbárie caracteriza toda forma de
esterilidade humana e de perda do sentido no domínio da civilização, quer se
trate de ética, de política, de educação ou de cultura. Para que exista barbárie
é necessário que tenha existido uma civilização anterior à bárbara, como
Alarico e seus visigodos quando do saque de Roma, essa que irá derrotar,
pilhar e destruir. O selvagem que vive nas florestas e que ainda não foi
impregnado de cultura não era considerado pelos romanos como um bárbaro.

19
M. Horkheimer, Eclipse da razão, Paris, Payot, 1974, p. 26.
20
H. Arendt, A condição humana, trad. fr., Paris, Calman-Lévy, 1961, p. 286.
21
G. Lipovetsky, A era do Vazio, Paris, Gallimard, 1983; reed. Folio, 1993.
Se o selvagem ainda não teve tempo de criar obras duráveis de civilização por
seu trabalho sobre si mesmo, o bárbaro procura destruir esse mundo
estrangeiro que o provoca e fascina mas que, ao mesmo tempo, lhe devolve o
reflexo de sua impotência para encontrar o sentido. Em seu caráter segundo, a
barbárie está estreitamente ligada à civilização, da qual é a face negativa, da
mesma forma que a queda está intimamente ligada à ascensão: somente
aquele que pode subir está em condição de cair.

O mesmo vale, igualmente, fora de toda referência histórica, para o


homem. Ele pode se elevar ou cair, edificar uma obra ou entregá-la à
esterilidade, como Eróstrato destruindo o templo de Ártemis em Éfeso. Ele
pode, sobretudo, recusar dar um sentido ao mundo ou às obras criadas por
outros homens, e se entregar assim ao ignóbil. Uma consideração incidente de
Goethe a Eckermann permitirá compreender a barbárie interior que, em muitos
aspectos, caracteriza nossa época. Goethe era um espírito cosmopolita no
sentido forte do termo cosmo, o que fazia do poeta alemão um cidadão do
mundo, um mundo no qual nenhum elemento, fosse ele mineral, vegetal,
animal ou humano, era estrangeiro. Em uma ocasião, Goethe declarou a
Eckermenn, seu protegido, a respeito de alguns artistas alemães que, em visita
a Roma, demonstravam ares de desprezo diante de velhos mestres como
Rafael e Ticiano:

Niebuhr tinha razão quando previa um retorno à barbárie. Ei-la: estamos


inteiramente nela. Pois em que consiste a barbárie senão precisamente em que
ela desconhece o que se distingue?22

A definição de Goethe – a barbárie não se reduz à pilhagem brutal – me


parece muito importante e define: a barbárie é a denegação da excelência, a
recusa de reconhecer a verdadeira grandeza e de admitir essa alteridade
verdadeira que, do exterior de nós mesmos, nos impulsiona a criar e, assim,
enriquecer nossa própria interioridade. Tudo que aprendemos, mesmo como
autodidatas, nos vem sempre de outrem: a língua de nosso país, a afeição de
nossos parentes, a cultura de nossa sociedade, como uma luz que vem
iluminar nossas trevas interiores. Como compreender essa doce barbárie que
se dá como recusa não somente da excelência, mas dessa alteridade – ou
dessa altessidade – visto que ela é o elemento criador da humanidade do
homem? Devemos relacioná-la ao desenvolvimento anárquico e hipertrofiado
do que os filósofos chamaram o Sujeito dos Modernos e os sociólogos, desde
Durkheim, o indivíduo. Essas são as múltiplas manifestações desse Sujeito
despótico, fechado em sua identidade estéril mesmo quando pretende defender
o direito à diferença, que constitui o testemunho da barbárie interior de uma
22
Conversações de Goethe com Eckermann, 22.3.1831, Paris, Gallimard, 1988, p. 408.
civilização que, na prática da vida cotidiana, tende a abdicar dos princípios
universais sobre os quais está fundada.

O que faz de nós homens não é a sexualidade ou a sociabilidade que


compartilhamos com os animais (as quais permanecem presas nos ciclos da
vida), é a civilização enquanto edificação de obras duráveis que abrem um
mundo e assim produzem um sentido. Ser cultivado não é acumular
conhecimentos, falar várias línguas estrangeiras, desfilar na exposição mais
recente do Grand Palais, contar sua primeira visita ao Met ou sua descoberta
da Frick Collection; é ser capaz de dar um sentido ao que não vem de nós.
Pois a pintura de Klimt não vem de mim, a grandeza de Cidadão Kane ou de
Um corpo que cai pertencem a Welles e a Hitchcock, as improvisações
estupendas de John Coltrane sobre My favorite things são de Coltrane e não
minhas, e é exatamente por isso que formam minha sensibilidade e, talvez, me
concedam o gosto de, por minha vez, criar. Parece-me, caso eu não seja
estéril, portanto que eu não seja um bárbaro que frui de seus barbarismos ou
de sua vacuidade nativa, encontrar uma significação a todas essas obras, e
não as destruir ou negligenciar, e depois criar por meu turno novas obras e
produzir efeitos de sentido que não são de forma alguma efeitos de
esterilidade.

Podemos mostrar – foi isso que eu tentei fazer em A barbárie interior –


que esses efeitos de barbárie, resultantes da hipertrofia do Sujeito moderno,
concernem aos três domínios essenciais que, desde a Grécia e Roma,
constituem os pilares essenciais da civilização: a educação, que eleva o
homem acima de si mesmo e lhe permite aceder ao pensamento; a arte, que o
faz entrar na esfera das obras para deixar a marca de sua presença no mundo;
e enfim a política, que o conduz a participar no espaço público onde ele
suspende os ciclos da vida para começar livremente uma ação. Ora, a
experiência de todo o século XX, a despeito das soberbas realizações
humanas que ninguém sonharia negar, testemunha sobre a persistência e o
agravamento das crises que atingem o próprio coração da educação, da arte e
da política. Essas conduziram, tal é a realidade dessa barbárie da reflexão, a
efeitos de esterilidade refinados por vezes saudados por seus autores, ao
ponto de levar a uma perda generalizada de sentido que se confunde com o
que Nietzsche chamava de niilismo.

Como ter alguma esperança no ensino quando se sabe, não obstante a


“falência dos métodos modernos de educação” denunciadas por Hannah
Arendt23, que os responsáveis, em qualquer nível que seja, suprimem o recurso
a uma pedagogia substancial para substituí-lo por uma pedagogia procedural
que faz da escola um lugar de socialização de onde tudo que depende do
pensamento, da finalidade e do sentido é implacavelmente banido? Dessa

23
H. Arendt, A crise da cultura, Paris, Gallimard, 1972, p. 230.
forma, Phillipe Mérieu, em Escola, modo de usar, dirá que os alunos
“funcionam”, na falta de pensar e refletir, decodificando a estratégia do
professor graças a sua capacidade de “estabilizar os processos nos
desenvolvimentos”. Essa expressão afetada, é verdade, levará o autor a se
preocupar com o estatuto de seu próprio discurso: “Não é um pouco
bárbaro?”24 E tal barbárie pedagógica não prepara a cama para uma barbárie
ainda mais brutal quando se sabe, a partir do relatório do senador Lorrain sobre
a violência escolar na França, em maio de 1998, que os colégios vivenciaram
em 1997 57% de atos de violência física contra professores e alunos, as
escolas profissionalizantes, 54% e as escolas públicas, somente 34%,
enquanto os roubos se elevavam, respectivamente, a 38%, 46% e 37% nos
estabelecimentos que se desobrigam da educação nacional?

Como supor que a arte ainda possua uma significação tanto para os
criadores como para os espectadores quando um número crescente de artistas
e de críticos, recusando o recurso à beleza, à técnica e a própria obra, buscam
aniquilar toda forma apostando na não-arte? George Steiner, em O castelo de
Barba Azul, referia-se a isso como “barbárie presente”, e usava “pós-cultura”
para designar este mundo absolutamente plano onde, no consumo
generalizado de objetos de lazer e, portanto de sua destruição, tudo se
equivale, já que a transcendência da obra e do sentido foi abolida. Assim
Robert Rauschenberg executava, em 1953, a desocupação de uma tela de De
Kooning, Erased De Kooning Drawing, que consistia em apagá-la totalmente
após um mês de trabalho e com o uso de quarenta borrachas. Harold
Rosenberg, um dos críticos mais célebres da arte contemporânea, justificou
teoricamente essa prática reconhecendo que, para ser arte moderna, uma obra
não precisava nem ser moderna, nem ser arte e nem mesmo ser uma obra.25
Foi isso que, sem dúvida, Yves Klein compreendeu, em abril de 1958, em sua
exposição parisiense sobre A especialização da sensibilidade ao estado
matéria em sensibilidade pictórica estabilizada: os visitantes encontraram a
porta fechada, a galeria trancada e os pedestais vazios.

Como acreditar que a política hoje tenha um sentido, e um sentido


comum a todos os homens, quando se assistiu à barbárie em massa revestida
de traços de uma razão social ou racial matar parte da humanidade,
deportando-a para Buchenwald, esmagando-a em Dresden, vitrificando-a em
Hiroshima e exterminando-a em Pnom Pen? Os totalitarismos modernos,
contando com a barbárie interior de um sujeito fixado à sua raça ou à sua
classe, isto é, às suas determinações materiais mais grosseiras, tentaram
dissolver toda forma de comunidade política com o intuito de fazer reinar o
terror. À barbárie violenta desses regimes respondeu a doce barbárie das
democracias, que Tocqueville já denunciara ao mostrar que a sociedade

24
Ph. Meriéu, Escola, modo de usar, Paris, ESF, 1990, p. 24.
25
H. Rosenberg, A tradição do novo, Paris, Minuit, 1959, p. 35.
moderna ameaçava encerrar o indivíduo, atomizado na massa solitária, “na
solidão de seu coração”.26 Compreendemos por que Blandine Kriegel, em sua
Filosofia da república, sustentou que “a filosofia do Sujeito é a filosofia dos
Bárbaros”27, uma vez que tende a reduzir o cidadão a um sujeito formal
desprovido de substância e definido unicamente, no nosso universo
administrativo e jurídico, por um conjunto de técnicas processuais cuja
humanidade está ausente.

O filósofo, seja ou não ele o médico da civilização, não tem competência


para impor aos outros homens os remédios que permitiriam tratar, na falta de
curar, o mal. Mas ele pode ao menos lembrar que a civilização como a
recebemos dos gregos e dos romanos (e que a Europa, depois o mundo,
fizeram frutificar em vinte e cinco séculos através da ciência, da arte, da
filosofia e da política) sempre foi pensada como uma abertura em direção a
uma alteridade absoluta. Ela proíbe o homem de reduzir as obras de cultura a
seu “gueto íntimo”, como diria Lipovetsky, a um simples objeto de gozo interior.
O homem encontra seu ponto de apoio – Descartes já o havia estabelecido em
suas meditações – no exterior de si mesmo, quer se nomeie essa abertura
libertadora obra, mundo ou Deus. O homem não é, e nunca será, seu próprio
ponto de apoio, nem, a fortiori, sua própria alavanca. Mas sempre pode
acontecer que, diante de um ser ou de uma obra que irrompe nele e o
deslumbra, compreenda que é livre para dar um sentido e que, suspendendo o
tempo dos ciclos biológicos e sociais, é um ser apto a começar e criar uma
nova obra.

Foi isso que Rainer Maria Rilke revelou a Franz Xavier Kappus, que
procurava compreender, junto ao poeta, o que poderia ser, afinal, a criação
poética – e, portanto, a elevação do homem: “Tudo o que acontece é sempre
um começo”.28

MATTÉI, Jean-François. Civilização e Barbárie. In:


ROSENFIELD, Denis L. (org.). Ética e Estética. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.

26
A. Tocqueville, Da democracia na América, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1992, Tomo II, 2ª
parte, cap. 2, p. 614.
27
B. Kriegel, A filosofia da república, Paris, Plon, 1998, p. 329.
28
R.-M. Rilke, Cartas a um jovem poeta, Paris, Grasset, 1984, p. 69.

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