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PESSOA ORTÓNIMO UMA APURADA SENSIBILIDADE E UMA SINGULAR MANEIRA DE SER

 Dotado de personalidade controversa, tímida, reservada, Fernando Pessoa sempre foi dado à
introspeção. Toda a vida foi um incompreendido, sem amigos verdadeiramente íntimos, um solitário –
“Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha
íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições…” E confessa que a crise de que sofre “é a
de se encontrar só quem se adiantou de mais aos companheiros de viagem”(Páginas da Doutrina
Estética: 19). Assim, adensa-se nele um fechamento que impede um verdadeiro relacionamento social e
afetivo com os outros

 Pessoa sofria de frequentes estados de depressão e de desequilíbrio , “…a onda negra que me está
caindo sobre o espírito” (Carta a Ofélia, 1920), temia a loucura (doença que provocara a morte à sua avó
paterna) e era de índole supersticiosa, com fobia de trovoadas e de lugares desconhecidos, abraçando
fervorosamente a astrologia.

Foi um homem de uma inteligência muito aguda, colocando constantemente interrogações a ele
próprio sobre tudo, num esforço PERMANENTE e ATORMENTADO de PROCURA de um sentido, de
respostas – a busca constante de soluções( significativo o nome de um dos seus heterónimos, Alexander
Search). Aspirava, pois, ao absoluto, à realização, à autenticidade ideais.

Como nunca encontrava as respostas desejadas para a sua realização pessoal, sentia-se sempre
insatisfeito, frustrado, mergulhando em hesitações, ansiedade, angústia… e cada vez se fechou mais ao
longo da vida, transferindo para a escrita todos esses impulsos negativos da alma.

“Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer (…) Sou a criança triste em que a vida
bateu. Puseram-me a um canto onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me
deram por uma ironia de lata (…). Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios” (Carta a Mário de
Sá-Carneiro)

MELANCOLIA NOSTALGIA DESILUSÃO INTRANQUILIDADE


FRAGMENTAÇÃO INTERIOR e DISSIMULAÇÃO

INFELICIDADE
A nível formal, há uma enorme preocupação com a expressividade, a musicalidade, o ritmo e a rima,
coexistindo a EUFONIA (efeito sonoro agradável, harmonioso pela combinação de certos fonemas) com
inesperadas alianças de palavras, sentidos. Recorre aos versos de gosto popular, curtos, aparentando
simplicidade e até ingenuidade - mas que devem ser interpretados com cuidado, pois abundam as
antíteses, paradoxos, trocadilhos, metáforas desconcertantes…

I. A DOR DE PENSAR, DE SER LÚCIDO

Fernando Pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a TER DE PENSAR.


Devido à sua inteligência analítica e imaginativa, fator que interfere na sua relação com o mundo e a
vida, o sujeito poético tanto aceita a consciência como sente uma VERDADEIRA DOR DE PENSAR ,
revelando insatisfação e dúvida sobre a utilidade do pensamento. É, pois, demasiado lúcido, e essa
lucidez não lhe traz felicidade.
Logo Deseja ter a inconsciência das coisas ou dos seres comuns.
INFELICIDADE: Não consegue fruir a vida apenas instintivamente (inconscientemente) por ser
consciente, pensar, analisar, refletir

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA


Sobre este poema, escreveu F.P “ Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira, onde consegui dar
a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito: Ah, poder ser tu, sendo eu!/ Ter a tua alegre
inconsciência / E a consciência disso!... e enfim essa poesia toda” (Carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 1915).
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O poema pode dividir-se em 2 partes lógicas.
Parte 1 – 3 primeiras estrofes
 Focalização na ceifeira e, sobretudo no seu canto, instintivamente alegre - ELA (VISÃO PARCIAL)
 Parece ser uma descrição objetiva, mas logo se intromete a perspetiva subjetiva e valorativa do
sujeito poético (SP) para afirmar – “julgando-se feliz” (notar a modalização do verbo no gerúndio para
marcar essa perspetiva).
Ou seja, a ceifeira canta, o seu canto é alegre, mas apenas se julga feliz, quando, realmente, ela é
“pobre” e o seu canto de “anónima viuvez” (VISÃO TOTAL)
 Logo, ouvi-la “alegra e entristece”: - alegra, se atendermos aos instintos da ceifeira (canta por cantar,
por rotina num trabalho árduo “ceifa” e “Na sua voz há o campo e a lida”);
- entristece, se a virmos na perspetiva do SP
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 Nesta parte, essencialmente descritiva, predominam frases declarativas, os adjetivos e o presente nos
verbos, projetando a voz da ceifeira na imaginação do SP que nela medita, como se dela se
apercebesse a pouco e pouco. Para esse efeito, registam-se as repetições do verbo cantar- 5X-
(gerando como que uma sensação auditiva), a expressividade do v. ondular e o recurso ao gerúndio.
 A beleza do canto concentra-se na imagem da 2ª estrofe, associada a uma grande beleza fónica –
EUFONIA (ritmo ondulatório, aliterações e assonâncias nasais on/an/im/…, vogais abertas a/ ar…).
 O vocabulário, simples, aparece carregado de sentidos sugestivos, subtis, transparecendo situações
paradoxais: “pobre ceifeira”, “feliz talvez”, “voz cheia de alegre e anónima viuvez” (de notar os pares
antitéticos) – um dos lados é o da visão parcial (por ex. “alegre”) e outro é o da visão total do SP (por
ex. “anónima viuvez”).
A expressividade dos adjetivos pode ainda encontrar-se no emprego de “ar limpo” e “enredo suave”,
que lembram a voz cristalina dela a ouvir-se num céu sem ameaças de dor de pensar. A imaterialidade
desta visão da ceifeira aparece na expressividade de “a vossa sombra leve”.
 A comparação a uma ave lembra a inocência de quem é inconsciente. “ a sua voz … ondula como um
canto de ave” lembra a suavidade da voz, mas também para o que de instinto e inconsciente há na sua
alegria.

A CEIFEIRA ERA FELIZ COMO UMA AVE O PODE SER, INCONSCIENTE DO SEU MAL
QUE MAL?
(O que o SP percebe)  a sua pobreza, o trabalho árduo, a sua condição humilde “anónima” e o seu
desamparo, triste condição. A ceifeira terá, pois, um conhecimento parcial da sua vida, mas parece
feliz, pelo que o SP vai desejar ser como ela na 2ª parte.
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Parte 2 – 3 últimas estrofes – parte onde a carga subjetiva/ emotiva do SP se adensa perante a canção
inconsciente da ceifeira
1º momento (versos 13 – 19)– o SP dirige apelos insistentes a um TU (a ceifeira), para que não pare de
cantar, pois assim leva-o a desejar ser como ela (DESEJO 1) “Derrama sobre o meu coração”
sem deixar de ser ele (DESEJO 2) “Ah, poder ser tu, sendo eu!”. - o que é impossível!
2º momento (versos 19 – 24) – Como é impossível ter a consciência da inconsciência (porque deixamos
de ser inconscientes, o nosso pensamento racional impede-nos de sentirmos apenas, por
instinto, como se acabássemos de descobrir o mundo sem nada sabermos dele) – “ a
ciência pesa tanto”, o SP lança apelos (gradação decrescente) ao céu, ao campo e à canção
para que entrem nele e o levem – desejo de dispersão, de aniquilamento porque lhe dói
pensar. (DESEJO 3)
Ou seja, depois da referência ao peso da ciência (pensamento) e à brevidade da vida, o SP
sugere o desejo de se esvair na sombra leve da ceifeira que também desaparece.
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 Nesta parte, predomina o tom implorativo, servido pelo imperativo, pelas interjeições e apóstrofes
que marcam um discurso dorido e plangente.
 As personificações (vv. 19 e 20) reforçam essa condição, tal como na 1ª parte a “alegre a anónima
viuvez”. Da mesma forma encontramos o pleonasmo em “entrai por mim dentro”.
 É de realçar o valor plurissignificativo de adjetivos como em “incerta voz”, apesar de nesta parte
predominarem os nomes.
 FORMA: 6 quadras rimadas, com verso regulares predominando os octossílabos; rima cruzada
(ABAB), sempre consoante, excepto nos vv. 1 e 3 (toante

Ela apenas sente


Ele pensa – é infeliz
(julga que é feliz)
(Racionaliza em excesso)
Ceifeira: metáfora da
felicidade inatingível

(porque impossível)

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