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MENSAGEM E OS LUSÍADAS: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

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Europa e Portugal III/ 6-21 Extensa descrição de todos os povos da I – O dos Utilização da metáfora do corpo
Castelos
Europa. Utilização da metáfora corporal, humano para descrever o continente
desde o braço que representa a Itália à europeu. Abordagem mais mística,
península Ibérica que é a cabeça do associando Portugal aos olhos da
continente, com Portugal a situar-se no Europa, ativos, ambiciosos, a olhar
cume da cabeça. Embora de cariz mais para o mar (oceano de conquistas e
geográfico e etnológico, subentende-se a espaço vital), perante um corpo mais
preponderância de Portugal (“cume da passivo que parece servir apenas de
cabeça”) suporte.
Ulisses III/ 58 Associado ao nome de Lisboa (“Ulisseia”) I – Ulisses Fundador da cidade de Lisboa e da
VIII/ 5
na narração de Vasco da Gama, e própria portugalidade. Assumido
claramente descrito como fundador da como um mito ou uma lenda,
atual capital portuguesa por Paulo da essencial para que a realidade possa
Gama, Ulisses é “o que faz à santa Casa a ela própria existir com alma. O mito
Deus, que lhe dá língua Facunda, que, se lá pode ser mentira (é o nada), mas sem
na Ásia Tróia insigne abrasa, Cá na Europa ele a vida morre (que é tudo). O mito,
Lisboa Ingente funda”. Serve apenas para podendo não existir, é mais
valorizar Portugal, associando-o a um importante que a própria realidade,
herói, mas não há qualquer reflexão sobre pois é ele que funda a vida.
a importância ou veracidade do mito.
Viriato III/ 22 Descrito como o pastor guerreiro que I – Viriato Encarado de uma forma mística,
VIII/ 6-7
resistiu de forma corajosa aos romanos, e quase predestinada, que lançou no
como personagem importante para a mundo, ainda que involuntariamente,
fundação do sentimento luso-português. a semente de Portugal. A pátria
Descrição breve dos seus feitos heroicos, apenas existe porque o instinto
na sua dimensão humana. místico de Viriato permaneceu na
memória coletiva, tendo sido
recuperado pelos heróis que se lhe
seguiram
Conde D.Henrique III/ 25-28 Descrito como forte, famoso, ilustre e I - O Conde Movido por uma espécie de dom
VIII/ 9 de
bravo combatente, de origem “húngara” D.Henrique inconsciente oferecido por Deus,
(embora a verdadeira origem fosse segue o plano deste para erguer
francesa). Relata-se brevemente a sua epicamente a espada que, mesmo
vinda para governar o condado sem o saber, viria a abrir caminho
portucalense, uma abordagem mais para a fundação da nacionalidade
histórica e factual, sem deixar de sublinhar portuguesa. Personagem místico,
a importância de ter deixado um filho teleguiado por Deus.
valioso: D.Afonso Henriques
Dona Teresa III/ 29-33 Criticada por Vasco da Gama por ter sido I – D. Tareja Ao contrário dos Lusíadas, não há
pérfida, cruel, traidora de Portugal e da espaço na Mensagem para anti-heróis
própria família, interesseira, vendida aos ou vilões. A própria Dona Teresa é
leoneses e aos galegos. Recorde-se que vista como mãe de Portugal, pois deu
D.Afonso Henriques teve de lutar contra a à luz o primeiro Rei, o glorioso Afonso
própria mãe para garantir a independência Henriques. O poder de Dona Teresa é
de Portugal, após a morte do conde eterno, e Pessoa faz-lhe um apelo
D.Henrique. Camões, pela voz de Vasco da direto: que, onde quer que ela esteja,
Gama, encara Dona Teresa como um volte a gerar e a entregar aos
obstáculo à consolidação de Portugal, portugueses um herói da mesma
como uma inimiga da nacionalidade. Não fibra.
é nem adorada e muito menos divinizada.
É entendida na sua parte humanamente
ambiciosa e beligerante, inserindo-se no
lado errado da história.
D.Afonso I/ 13 No seu discurso ao Rei de Melinde, Vasco I – D. Afonso Duas estrofes apenas para que o
Henriques III/ 30-84 Henriques
VIII 10-16 da Gama dedica uma extensa narração poeta se dirija diretamente ao herói,
sobre a vida e os grandes feitos do encarando-o como alguém exemplar
primeiro rei de Portugal (54 estrofes). O e de força inigualável. Pessoa pede
relato é factual e detalhado (batalhas mesmo proteção ao cavaleiro para
ganhas e as perdidas também), que, de onde quer que ele esteja,
caraterizando o herói como determinado, restitua aos portugueses a energia
corajoso, inteligente, perspicaz e valente. necessária para reacender a chama,
Para lá desta vertente mais humana e abençoando o povo com a sua
histórica, destacam-se também dois coragem divina. Abordagem
aspetos quase místicos e religiosos: a claramente mística e religiosa.
extensa descrição da batalha de Ourique e
do respetivo milagre (Cristo teria
aparecido ao Rei para o para o salvar do
ataque de cinco reis Mouros - que tinham
enorme superioridade numérica) e, no
final, a descrição da morte do herói como
um dramatismo a roçar o trágico,
contaminando a própria natureza que o
chorou por dias a fio. Apesar da
proximidade com o mito, o primeiro Rei de
Portugal não é sobre-humano, e como
todos os heróis de carne e osso morre e o
povo terá de viver com essa falta
irreversível: “Que sempre no seu reino
chamarão: Afonso, Afonso, os ecos; mas
em vão”
D.Dinis III/ 96-98 Três estrofes para realçar factos I – D. Dinis Abordagem claramente mística e
importantes sobre o seu reinado lírica. D Dinis foi o rei que, ao escrever
marcante. É descrito como sábio, dedicado poesia lírica, ouvia já o som do mar
à cultura, mas também pragmático e vindo dos pinheiros que plantava…e
determinado a estruturar o país em que se agitavam como naus. É um
diversos aspetos: edificações, visionário dos gloriosos
conhecimento, leis, costumes. descobrimentos, um escritor do papel
do destino que Deus ofereceu aos
portugueses.
D.João I (Mestre I/ 13 É a segunda personagem a quem Vasco da I – D.João o Mais uma vez o herói é encarado
de Avis) IV/ 2-50 Primeiro
Gama dedica mais estrofes (48) no seu como uma projeção da vontade
relato da história de Portugal. O Mestre de divina. D.João, mesmo sem o saber,
Avis é caraterizado na sua vertente tornou-se Mestre do Império (pois a
humana, com base em factos históricos partir do seu reinado o país virou-se
(muito fiéis à crónica de Fernão Lopes). para as conquistas e para o mar).
Um rei herói, bravo e perspicaz, que não Além disso, o herói é mitificado como
só garantiu a independência de Portugal protetor da nacionalidade
contra Castela, como iniciou a senda dos portuguesa, como uma chama que
descobrimentos com conquistas repele qualquer ameaça à morte da
importantes no Norte de África, deixando portugalidade (a luz contra a sombra
valiosa continuidade como pai da famosa do nada).
“ínclita geração”
D.Filipa de IV/ 47 Referência breve, mas importante. Dona I - D.Filipa de Considerada a Madrinha de Portugal,
Lencastre Lencastre
Filipa de Lencastre é apresentada em dotada de um poder místico e divino,
conjunto com a irmã, destacando-se o cujo seio e o ventre geraram a Ínclita
facto do casamento das duas princesas Geração. O sujeito poético anseia
inglesas com D.João e o rei de Castela ter pelo seu olhar protetor, pela sua
sido fundamental para a consumação da bênção quase mágica.
paz ibérica. A mãe da ínclita geração é
descrita como gentil, formosa e ínclita.
Ínclita Geração IV/ 50 Referência honrosa à descendência de Pessoa não dedica nenhum poema
D.João Mestre de Avis, que, depois da que se refira em geral à geração de
morte, deixou aos portugueses “quem ouro. Antes preferiu escrever um
governasse e aumentasse a terra mais do poema sobre cada um dos filhos do
que dantes: Ínclita Geração, altos Mestre de Avis, destacando assim a
Infantes.” Camões foi de facto o autor importância da sua progenitura, num
desta expressão. tom elevado, às vezes dramático e
quase sempre épico, com poucas
exceções.
D.Duarte IV/ 51-52 Referência breve a um rei que governou I - D. Duarte Como o cariz místico venerador da
poucos anos. Destaca-se uma avaliação Mensagem não deixa margem para
política com altos e baixos, com anti-heróis, D.Duarte é apresentado
preponderância para os segundos. como aquele que, apesar do triste
destino (morreu jovem), nunca
deixou de cumprir a missão entregue
por Deus, com dedicação e total
entrega.
D.Pedro- Regente VIII/ 37 Breve referência, no discurso de Paulo da I – D.Pedro, Descrito como um homem íntegro e
Regente de
Gama, à fama que deixou na “Germânia” Portugal honesto, de grande caráter e com
(atual Alemanha), fruto da sua cultura e uma conduta ética exemplar,
sapiência. inteiramente dedicado ao “ser” e ao
“dever ser” e desapegado de famas e
riquezas. O seu azar na vida (morto
pelo próprio sobrinho, D.Afonso V)
não foi capaz de apagar a sua entrega
aos desígnios divinos e ao país.
Infante Fernando IV/ 52-53 Muito elogiado no discurso de Vasco da I– Mais um herói escolhido e abençoado
D.Fernando,
Gama, como sendo um caso exemplar de Infante de por Deus para fazer “a sua santa
dedicação e amor à pátria. Trocou a Portugal guerra”, ainda que condenado à
liberdade (foi feito refém após o ataque desgraça. Contudo, e de acordo com
falhado a Tânger e os Mouros pediam a um registo recorrente na Mensagem
entrega de Ceuta como resgate) pela (Deus não dá honras sem receber
defesa das posses portuguesas. Num sacrifícios, nem sequer a Cristo, seu
registo humano e factual, transpira o próprio filho, que morreu na cruz), a
elogio da capacidade de sacrifício de um sua heroicidade fica ainda mais
infante mártir. engrandecida pela sua capacidade de
sacrifício. O uso da primeira pessoa
do singular hiperboliza a carga
dramática do infante santo, que
persiste “cheio de Deus” e sem medo,
pois a sua alma, mística e divina, será
sempre maior que qualquer
dificuldade terrena.
Infante João Ausência de referências. I – D.João, Mesmo o príncipe menos conhecido
Infante de
Portugal da Ínclita Geração tem direito a um
poema na Mensagem, nem que seja
para justificar que tenha de haver
sempre um “Nada” que permita o
“Todo”. Nesta dualidade simbólica
não há lugar para o meio termo. Não
chega a ser nem anti-herói nem vilão,
simplesmente não chegou a ser, não
existiu, para que os seus irmãos
pudessem ser plenamente.
Infante V/ 4 Referências breves para assinalar a sua I – A Cabeça No primeiro poema é descrito como
D.Henrique VIII/ 37 do Grifo/ O
importância no desabrochar dos Infante um autêntico imperador, com um
descobrimentos portugueses e o facto de D.Henrique trono reservado no céu e a terra
II – O Infante
ter sido figura preponderante na redonda em sua mão, dotado de
conquista de Ceuta (“De Ceita a Maura poder divino. O segundo poema faz
túmida vaidade, primeiro entrando as descê-lo à terra como mais um
portas da cidade”) agente da vontade divina. Foi o
responsável por executar o plano de
Deus de unir a Terra (os
descobrimentos portugueses foram o
início da globalização) através do mar.
E não foi por acaso que Deus
escolheu um português para tão
importante desígnio. Este é o poema
em que mais claramente Pessoa
coloca os portugueses como agentes
de Deus, como a concretização
terrena da vontade divina.
Nuno Álvares I/ 12 Registo histórico, factual e muito humano I– O poema que Pessoa lhe dedica é
Pereira IV/ 14-21 Nunálvares
(24, das capacidades militares e psicológicas Pereira talvez o expoente máximo da
31,32,34,36, daquele que foi o comandante das forças mitificação do herói que transparece
45)
VIII/ 28-32
portuguesas na Batalha de Aljubarrota. em toda a obra (juntando mesmo o
São destacadas a sua lealdade ao Mestre mítico ao místico). A sua espada é
de Avis e a sua perspicácia e ferocidade no comparada à Excalibur da lenda do
combate. O discurso patriótico, motivador Rei Artur, e o poeta revela mesmo
e corajoso de Nuno Álvares Pereira bem espanto, pasmo, maravilhamento,
antes da batalha de Aljubarrota é recriado pelo poder sobrenatural de um herói
por Camões, elevando assim a a quem é pedido que ilumine o
personagem a um estatuto de liderança caminho da nação com esperança e
ímpar. glória.
D.João II IV/ 58-65 Descrito como “sublime, gentil, forte” e I – Uma Asa Dotado de uma serenidade e carisma
do
cheio de ânimo. Vasco da Gama relata ao Grifo/D.João divinos, contempla o “limite da terra
pormenor um importante facto histórico: o Segundo a dominar”, e o seu poder é tão
D.João II enviou mensageiros até à Índia, gigante que impõe respeito a um
por terra, para perceber como poderia ser mundo receoso de ser desvendado
feita a viagem pelo mar, dado que pelo Rei.
Bartolomeu Dias já tinha atingido o cabo
das Tormentas responsável pela Boa
Esperança. Teve a visão essencial da
necessidade de descobrir o caminho
marítimo para a Índia (algo a que não
pôde assistir em vida, pois morreu antes) e
por isso mesmo é merecedor de “fama
eterna” e de fazer algo comparável aos
deuses “Mais do que tentar pode homem
terreno”.
Afonso de X/ 41-47 Nas profecias de Tétis a Vasco da Gama, I – A Outra Encarado como um herói que olha o
Albuquerque Asa do
na Ilha dos Amores, Afonso de Grifo / mundo de cima para baixo, e criador
Albuquerque, Vice-Rei da Índia, é descrito Afonso de de três impérios (Goa, Malaca e
Albuquerqu
como um homem determinado, um e Ormuz, ou Índia, Turquia e Ásia), com
estratega eficaz, um combatente temível. uma solenidade especial que até
Num registo muito humano, os seus mereceu a inveja do Rei. Homem
defeitos não escapam à Deusa, que lhe majestático e imperial, quase como
aponta o caráter por vezes cruel e um Deus.
insensível.
Bartolomeu Dias V/ 44 Referência indireta feita pelo próprio II – Epitáfio Descrito como “capitão do fim” pois
de
Adamastor que, nas suas profecias a Vasco Bartolomeu foi ele o primeiro a descobrir o final
da Gama, revela que se vingará do Dias do continente Africano, tornando
navegador que descobriu o cabo da Boa possível chegar à Índia por mar. É
Esperança. De facto, Bartolomeu Dias viria comparado ao gigante Atlas (da
a morrer no cabo que batizara anos antes mitologia grega) que foi condenado
como o “das tormentas”. por Zeus a carregar o céu inteiro nos
seus ombros, embora nesta analogia
o castigo apareça como recompensa.
Há aqui uma clara mitificação do
Herói.
Vasco da Gama I/ 12 Vasco da Gama é, a par do povo II – Ascensão A seguir a Nuno Álvares Pereira é
III/ 1-4 de Vasco da
IV/ 87 português, o personagem principal dos Gama talvez o herói português mais
V/ 49,60,99 Lusíadas. Por isso mesmo toda a sua venerado por Pessoa, que descreve a
faceta humana está presente. Descrito sua ascensão aos céus como um
como sublime e ilustre, é também humilde acontecimento único e extraordinário
quando se dirige inicialmente ao Rei de que até obrigou Deuses e Gigantes a
Melinde, é receoso perante a ameaça do suspenderem a sua guerra para
Adamastor mas ao mesmo tempo contemplarem a chegada do Herói
determinado (“Quem sois vós?”), comete Maior. O céu recebe-o com pompa e
erros na avaliação dos governadores circunstância, com direito à
indianos que o chegam a sequestrar, é divinização eterna.
temente a Deus quando pede ajuda
perante a tempestade organizada por
Neptuno e Baco, é corajoso e competente
na maioria das suas decisões, sensível e
emocional quando confessa que lhe
apetece chorar quando recorda as
despedidas de Belém. Enfim, trata-se de
um herói com mais qualidades do que
defeitos, mas acima de tudo alguém de
carne e osso, um herói humano. Nas
reflexões do poeta, quando Camões se
queixa da falta de cultura dos portugueses
que não têm quem lhes cante e imortalize
os grandes feitos, Gama é descrito como
um homem viril e corajoso, mas que
lamentavelmente não tem cultura nem
erudição à altura da sua bravura.
Fernão de X/ 137-141 Referências honrosas nas palavras de II- Fernão de Mais um herói que sobrevive à sua
Magalhães Magalhães
Thetis, no âmbito das profecias que narra morte prematura com a
a Vasco da Gama, lembrando a origem concretização de um objetivo maior:
Lusa do Herói e do seu magnífico feito “que até ausente soube cercar a Terra
histórico (a primeira viagem de circum- inteira com o seu abraço”. Magalhães
navegação da Terra). “violou” a Terra, objeto sagrado,
como só um Deus poderia fazê-lo,
perante a ignorância dos nativos.
D.Sebastião I/ 6-18 A abrir a obra e a fechá-la, Camões dirige- I – D. O Sebastianismo perpassa toda a
X/ 146-156 Sebastião,
se a Dom Sebastião, que era Rei de Rei de Mensagem. Há quatro poemas
Portugal quando o poeta decide publicar Portugal claramente dedicados a D.Sebastião,
II – A Última
os Lusíadas. Assim, na dedicatória, Nau
mas em muitos outros a sua presença
Camões dirige-se com venerável respeito III – aparece nem que subtilmente como
ao jovem Rei, em quem deposita enormes D.Sebastião brisa de esperança num novo
III – O
esperanças de continuar a engrandecer a Quinto Portugal que, na vontade do poeta, se
nação. No final da obra, Camões volta a Império deverá erguer perante a paralisia
III – O
dirigir-se a Sua Majestade para lhe pedir Desejado
atual. A loucura e o espírito sonhador
que saiba governar com justiça e ambição, III – Ilhas e ambicioso do jovem Rei são
e para que esteja à altura dos heróis Afortunadas venerados na primeira pessoa, o
III – O
portugueses de todos os tempos. Encoberto poder espiritual dessa alma que
D.Sebastião está vivo e é Rei. III – Escrevo apenas espera o dia certo para
meu livro à
beiramágoa
iluminar o povo português é exaltado
III - Calma até ao limite, o poeta anseia pelo seu
regresso. Não quer dizer isto que
Fernando Pessoa acredite no regresso
físico de D.Sebastião, não se trata de
tamanha alucinação. D.Sebastião
surge sim como símbolo, como
espírito presente e vigilante, como
alma salvadora, como energia positiva
e vibrante que o país necessita para
liderar um novo império espiritual e
cultural, que não tem lugar nem
matéria, mas apenas espírito e alma.
Pessoa fala por Dom Sebastião, dirige-
se ao antigo Rei, faz-lhe apelos,
elogia-o, pergunta-se por onde
andará ele. Todo o poema da
Mensagem parece ter Sebastião
como interlocutor, como o
mensageiro de um Deus ansioso por
completar a sua obra tendo Portugal
como ator principal.
Adamastor V/ 37-60 A par da Ilha dos Amores, é talvez o II – O O Adamastor de Camões é o
Mostrengo
episódio místico mais importante dos III - mostrengo de Pessoa, que na
Lusíadas. O Adamastor simboliza o medo Antemanhã Mensagem aparece em dois episódios
do mar desconhecido, o perigo da distintos. O primeiro episódio
descoberta para lá dos limites já mantém a linha simbólica já conferida
alcançados, a dureza das tempestades por Camões: o mostrengo representa
marítimas. Um medo que importava os perigos do mar, o abismo que é
ultrapassar. Camões aproveita para preciso vencer para alcançar a glória.
embelezar a obra com esta figura Contudo, no segundo poema
fantástica, que curiosamente, apesar das (Antemanhã), o mostrengo, já
cruéis profecias que augura, se revela uma domesticado por um Portugal
figura muito humana e sensível, um divinizado, regressa para espicaçar o
coitado da vida, um gigante castigado e país, para exortar novos heróis
enganado pelos Deuses, condenado a uma patriotas a deitar mãos à obra
eternidade de sofrimento. novamente e realizar o mais
importante: um novo império
espiritual.
Despedidas de IV/ 84-93 Trata-se de um relato sentido e detalhado II – Mar É uma reflexão e um processo de
Belém Português
do sofrimento dos que ficavam e dos que interiorização da dor provocada pelas
partiam. Há uma preocupação em viagens marítimas, recorrendo à
descrever todas as cerimónias da partida, hipérbole mais famosa da literatura
bem como os discursos das mães e das portuguesa “Ó mar salgado, quanto
esposas dos que iam para provavelmente do teu sal são lágrimas de Portugal”.
não voltarem. Retrato muito humano e Mas, ao contrário das despedidas de
factual. belém que retratam apenas
sofrimento e que são seguidas por um
velho (do Restelo) que condena a
partida das naus, Pessoa conclui que
todo o sofrimento valeu a pena, pois
a “alma não é pequena”. O espiritual
vence claramente o material.
Ilha dos Amores IX e X A Ilha dos Amores dos Lusíadas aparece III – As Ilhas As ilhas da Mensagem são
Afortunadas
como recompensa divina dos grandes III - Calma essencialmente ilhas de esperança.
feitos lusos, recebida epicamente por São os sítios que “não têm lugar”, são
Vasco da Gama e companhia. Tem um o espaço do sonho e onde “o Rei
efeito de adorno da obra, com um caráter mora esperando”, são a felicidade à
simbólico forte, mas sempre cumprindo a espera. Longe de um adorno poético,
ideia original de narrar uma aventura em funcionam como desejo lírico do
progresso. Trata-se do prémio final dos poeta. Uma nota final para o poema
vencedores de tantas e tamanhas “Horizonte”, que transforma a
peripécias. É um recurso expressivo experiência da descoberta de novas
próprio de uma grande narrativa, sempre terras, de ir avistando aos poucos a
embelezada por pedir emprestada ao mito terra ao longe a partir do mar, numa
a sugestão da felicidade e da imortalidade clara vivência estética e mística.
dos heróis.
Mitos e Lendas Luso- III/21 Apesar de esporádicos e com pouco peso Se os Lusíadas espelham em
VIII/ 2-4
Milagre da no espírito e propósito da obra, alguns momentos dispersos as lendas da
Batalha de
Ourique: III/ mitos e lendas nacionais não deixam de cultura nacional, já a Mensagem é
42-54 marcar presença na obra prima da toda ela uma obra criadora de mitos.
Maldição de
Dona Teresa
literatura portuguesa. Podemos dizer que Fernando Pessoa coloca os heróis
III/69 Camões se serve de algumas fantasias portugueses como autênticos seres
Sonhos de inscritas no imaginário tradicional divinos, que já o eram antes de serem
D.Manuel
IV/ 68-75 português - como é o caso da mítica humanos, inscritos numa eternidade
Dona Inês de fundação de Lisboa pelo herói Ulisses ou delineada por Deus, e que se
Castro III/
118-143
da oportuna associação do nome da humanizam quando descem à terra.
Doze de pátria à mitologia (Luso, companheiro de Nuno Álvares Pereira é o rei Artur e a
Inglaterra Baco) - ora para sublinhar a bravura ímpar sua espada é Excalibur, Vasco da
VI/ 42-69
dos seus heróis (a aventura heroica dos Gama ascende majestaticamente aos
“Doze de Inglaterra”, narrada pelo céus, D.Sebastião é dono e senhor do
marinheiro Fernão Veloso), ora no sentido paraíso e aguarda a hora certa para
de colocar os portugueses como povo agir, Bartolomeu Dias carrega o
acarinhado (mas não necessariamente mundo inteiro. Os portugueses
eleito) por Deus (milagre de Ourique), ora famosos são na verdade super-heróis
para valorizar o poder humano do amor dotados de poderes especiais,
num povo capaz de tudo pelo sentimento mágicos, esplendorosos, são anjos ou
maior (Inês de Castro), ou apenas como mensageiros de Deus.
reflexo de um país que nunca abandonou Os únicos mitos minimamente
a superstição (maldição de Dona Teresa, enraizados na cultura portuguesa de
mãe de Afonso Henriques, que estaria na que Pessoa se serve são o de Ulisses e
origem do desastre de Badajoz). Os o do eventual regresso de
Lusíadas refletem a cultura de um povo, D.Sebastião. O primeiro serve para
sublinham as lendas e mitos dominantes, justificar e legitimar a importância do
mas o autor não inventa novas ficções. próprio mito que funda e subjaz à
Exceção feita ao sonho profético de realidade, permitindo assim ao autor
D.Manuel que anuncia a fama e a glória da agarrar-se à pertinência do segundo
nação no Oriente, através da mito, que perpassa toda a obra, e que
personificação dos principais rios da Índia inspira a mitificação de todos os
(Ganges e Indo), desejosos de outros heróis.
portugalidade.
Reflexões do As várias reflexões com que Camões II – A última Na Mensagem, transparece a ânsia
poeta Nau
encerra quase todos os Cantos têm um II – Prece sofredora e suplicante de um sujeito
âmbito muito alargado: das críticas aos III O quinto poético carente de realização
Império
nobres portugueses que preferem o III - Nevoeiro
espiritual. Nesse sentido, se o
conforto dos palácios e castelos em vez do Portugal antigo é elogiado do
perigo da luta e da descoberta, às princípio ao fim, o país atual
qualidades necessárias para se ter direito assemelha-se a um nevoeiro a
à fama e à honra. Nota para três que se necessitar urgentemente de
destacam: quando o poeta censura a claridade. Aqui há uma certa
desvalorização das artes e das letras em cumplicidade com Camões, que
Portugal e quando se queixa do desprezo a também nos Lusíadas alerta para o
que os poderosos o votam a ele mesmo. perigo vindouro de uma névoa que
Se Portugal é elogiado e venerado pelos ofuscaria a glória nacional. Mas para
seus grandes feitos e heróis, não deixa de Pessoa, esse receio é apenas um
ser um Portugal com defeitos. A nação não estado de suspense, de espera, pois
é perfeita e precisa de líderes preparados Portugal está destinado a cumprir a
para mudar o que está mal e perpetuar o missão divina, seja quando for
que de melhor existe. Outro aspeto (“Quando?”, “Quando
importante nas reflexões do poeta é a voltarás?” ,“não sei a hora, mas sei
valorização das qualidades morais (honra, que há a hora”, “É a hora”). Há uma
justiça, honestidade) mais até do que as necessidade clara de dar um abanão,
guerreiras (coragem, força, terras), um pequeno empurrão para o que
condenando mesmo as que são está destinado a acontecer: o quinto
puramente materiais (reflexão sobre o império.
poder do dinheiro), embora exista um Partilha ainda com Camões a ideia de
claro equilíbrio entre duas primeiras. que os valores espirituais são mais
Finalmente, há que sublinhar que os valiosos que os valores materiais e
Lusíadas são escritos na época gloriosa dos que a alma engrandecida por Deus
descobrimentos e não 400 anos depois, e supera os cadáveres e a matéria
por isso o poeta tenta agir sobre o seu bruta, que não sabe sonhar. Ainda
tempo com mestria e conhecimento de assim, ao contrário do que os
causa, antevendo já uma certa falta de Lusíadas sugerem, os feitos bélicos e
fôlego da pátria que viria a perder matérias dos heróis são apenas a
rapidamente o papel de principal expressão divina da sua
protagonista mundial. Por outro lado, predestinação e não tanto algo
resta sempre a dúvida sobre o episódio do arrancado a pulso.
Velho do Restelo que, aquando da partida
das naus, num tom profético, sagaz e
certeiro, condena o excesso de ambição
da liderança nacional, cujo desejo de
fama, glória e riquezas diminui a
integridade de uma desejável natureza
sapiente, humilde e sensata. O conflito
entre a vaidade e o humanismo parecem
querer transpirar das letras de um poeta
cujo nacionalismo heroicista não seria
suficientemente poderoso para abafar a
sua cultura universal e humanista
Religião / Os Lusíadas não são uma obra religiosa, A mensagem pode ser considerada
Misticismo/ mas sim uma obra épica. Obviamente que uma obra religiosa, mística e até
Mitologia
o espírito da época, em que a religião exotérica, com algum ocultismo pelo
desempenhava um papel fundamental na meio. Desde logo, há uma diferença
luta pelo poder, torna os Lusíadas uma fundamental com Camões: se neste
obra cristã, com os infiéis (mouros e os heróis são humanos que
companhia, mas também os protestantes, ascenderam ao estatuto simbólico de
o que marca bem a defesa de um certo Deuses, já segundo Pessoa os
cristianismo -catolicismo- na obra) como portugueses são mais deuses que
vilões, embora os heróis sejam mais desceram à condição de seres
portugueses do que cristãos. A obra é por humanos para nos dar sinal do reino
isso mais de exaltação nacional e divino, para nos levar ao império
patriótica que religiosa. Por outro lado, espiritual e religioso, intemporal e
como outras grandes epopeias, os imaterializável. Se Camões vai da
Lusíadas não prescindem de um universo Terra ao Céu, Pessoa desce do Céu à
maravilhoso, com o séquito de Deuses Terra. Os heróis lusos já cumpriam,
Romanos a discutirem o destino e a ainda que por vezes
grandeza portuguesa. Obviamente, nada inconscientemente, a vontade de
disto coloca em causa o cristianismo dos Deus, são mensageiros e líderes
portugueses que se revela nas situações espirituais. Se em Camões os grandes
mais dramáticas, por exemplo quando feitos lusos conquistaram a graça
Vasco da Gama suplica a Deus no meio da divina, em Pessoa os grandes feitos
tempestade, ou noutras referências do lusos são eles mesmos uma
poeta ao Deus monoteísta e senhor de manifestação da vontade divina, uma
tudo. A mitologia pagã nos Lusíadas experiência mística, uma espécie de
cumpre essencialmente duas funções: energia positiva que emana de uma
embelezar o texto, fantasiando-o e ilha qualquer, sem lugar e à procura
tornando-o mais atraente (função de ser. Sem dúvida que, para Pessoa,
puramente estética), ou como forma de o mito funda a realidade, não é a
imortalizar e enaltecer a grandiosidade realidade que cria o mito.
dos feitos lusos. Os heróis portugueses
são seres humanos que conquistaram o
direito a ombrear com Deuses. São seres
de carne e osso que subiram a pulso. Aliás,
os deuses pagãos são eles mesmos heróis
que o mundo divinizou pelos seus feitos,
tendo conquistado e não herdado
qualquer estatuto. Para Camões a
realidade sustenta o mito, não é o mito
que subjaz à realidade.
Epicismo e lirismo Os Lusíadas são uma obra épica, são uma A Mensagem é uma obra híbrida, que
história com ações encadeadas no tempo, junta epicismo, lirismo e misticismo.
com peripécias, com avanços e recuos, Epicismo porque, ainda que num tom
com fio condutor. Narram de forma marcadamente subjetivo e sem a
grandiosa grandes feitos, em verso, intenção de contar uma aventura,
querendo essencialmente contar a enaltece grandes heróis e grandes
história, com os heróis em ação, no meio feitos de forma gloriosa. Lirismo
dos perigos, no suspense da descoberta. porque os próprios poemas
Os poucos episódios líricos da obra ou são transpiram sentimentos, angústias,
essencialmente estéticos (com a intenção desejos, frustrações e esperanças do
de embelezar, por exemplo, a tragédia de próprio sujeito poético, que mistura a
amor de Inês de Castro ou a vida sua alma com a dos heróis, que sofre,
profundamente infeliz do gigante chora, lamenta, implora, pede, exige,
Adamastor) ou funcionam como anuncia. Realce para o poema
desabafos do poeta (quando num “Screvo meu livro à beira-mágoa”,
momento específico olha para si, e que é o expoente lírico da obra. A
compara a escrita da obra a uma viagem dimensão do sonho está também
com perigo de naufrágio, tal como havia muito presente, com uma conceção
sido a sua vida, cheia de sofrimentos e existencial de felicidade ligada à
injustiças – “Que se não me ajudais, hei pureza espiritual e à força anímica
grande medo que o meu batel se alague (por exemplo, em “O Quinto
cedo” ). Império”). Além disso, são vários os
poemas em que Pessoa assume como
sujeito poético o próprio personagem
histórico, é o herói que fala na
primeira pessoa, é Pessoa que fala em
nome do herói. Misticismo porque
parece haver uma força sobrenatural
que paira no país e que os heróis
emanam, de forma às vezes oculta,
outras vezes às claras, num tom
marcadamente profético e até
mágico. Este messianismo é reforçado
pela natureza simbólica da obra,
patente desde logo na estrutura
externa, em que cada poema
preenche uma função na tarefa de
decifrar o código da bandeira
portuguesa, no sentido de unificar a
aliança entre Deus, a Pátria e os
Heróis.
Em jeito de conclusão: se na poesia
do ortónimo, o poeta se frustra na
busca da ilha de sonho e da felicidade
– condenada ao fracasso- é na
Mensagem que investe toda a sua
esperança, ao encontrar a cola do seu
eu fragmentado na assunção de uma
identidade coletiva que ainda tem
salvação.
Nacionalismo e Não tenhamos dúvidas que os Lusíadas O contexto da publicação desta obra,
racismo são uma obra nacionalista pois o herói é no âmbito da candidatura a um
um povo que se superioriza a outros pela prémio literário, em plena ditadura
sua pequenez enorme. Os portugueses portuguesa, não deixa dúvidas. O
são os mais sagazes e sensatos do mundo autor teve de cumprir um dos
ocidental, que já por si se encontra acima requisitos essenciais: “inspiração bem
de infiéis, mouros ou indianos. Há uma portuguesa e, mesmo, de preferência,
recusa clara do ecumenismo que se um alto sentido de exaltação
mistura com o nacionalismo, sendo o povo nacionalista”. A obra exala
português o verdadeiro representante do nacionalismo e misticismo dos pés à
cristianismo puro à face da terra (a este cabeça. O próprio autor reconhece
respeito sublinhe-se ainda e também o que “é um livro nacionalista e,
ataque que é feito aos cristãos portanto, na tradição cristã
protestantes). Pior, o “mouro” (já por si representada primeiro pela busca do
uma designação pejorativa do Santo Graal, e depois pela esperança
muçulmano) é denegrido como infiel, do Encoberto”. O povo português é o
inferior, falso, pérfido, vilão (atente-se nos predileto de Deus ou o Deus mesmo,
episódios que atribuem aos mouros a transpirando uma espécie de
malícia, traição e hipocrisia interesseira, supremacia nacional paternalista.
tanto na viagem como na Índia). Também Contudo, ao contrário de Os Lusíadas,
os indígenas de várias terras africanas são as referências ao presumível
colados a uma imagem de “selvajaria”, “inimigo/infiel/estrangeiro”
num tom muitas vezes depreciativo. simplesmente não existem ou
Apesar da militância cristã da obra, os escasseiam. O “não português” nem
heróis são em primeiro lugar nacionais, sequer tem o direito de existir na
fazendo dos Portugueses humanos obra (exceção feita aos “Colombos”
superiores. O racismo que perpassa na que apenas pediram a “nossa fama”
obra será contextualizado por uns e emprestada, ou aos nativos do
outros, mas ele existe e deve ser debatido. pacífico que, ignorantes do sucesso
de Magalhães e encarados como
inferiores, ofuscam-se em rituais
primitivos). A Mensagem sobrevive
ou tenta equilibrar-se à custa de uma
encruzilhada misteriosa: terá sido o
autor movido por um nacionalismo
feroz miticamente exacerbado e
militante ou a obra revela antes de
mais um “eu” (lírico) infeliz, quebrado
em pedaços e à procura de uma
identidade urgente, ávido de
esperança e felicidade, buscando-a
numa espécie de salvação coletiva da
alma?
(as citações deste último quadro foram retiradas de
uma publicação de José Blanco, disponíveis no blogue
“O Meu Pessoa”)
Miguel Reis, professor de Filosofia. Explicador de Filosofia, Português, Matemática e Física e Química na Associação Arte
de Aprender, Belas, Sintra.

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