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Captura Críptica:

direito, política, atualidade

Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito


da Universidade Federal de Santa Catarina
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Captura Críptica:
direito, política, atualidade

Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito


da Universidade Federal de Santa Catarina

Captura Críptica: direito, política, atualidade.


Revista Discente do PPGD/UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Centro de Ciências Jurídicas (CCJ)
Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD)
Campus Universitário Trindade
CEP: 88040-900. Caixa Postal n. 476.
Florianópolis, Santa Catarina – Brasil.
Experiente

Conselho Científico
Prof. Dr. Jesús Antonio de la Torre Rangel (Universidad de Aguascalientes - México)
Prof. Dr. Edgar Ardila Amaya (Universidad Nacional de Colombia)
Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)
Profª Drª Jeanine Nicolazzi Phillippi (UFSC)
Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel (UFPR)
Prof. Dr. José Roberto Vieira (UFPR)
Profª Drª Deisy de Freitas Lima Ventura (IRI-USP)
Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho (UNISINOS)

Conselho Editorial
Adailton Pires Costa (PPGD-UFSC)
Ademar Pozzatti Júnior (PPGD-UFSC)
Aírton Ribeiro Júnior (PPGD-UFSC)
Andreia Marreiro Barbosa (PPGD-UNB)
Danilo Christiano Antunes Meira (PPGD-UFSC)
Efendy Emiliano Maldonado Bravo (PPGD-UFSC)
Flávia do Amaral Vieira (PPGD-UFSC)
Gabriela Barretto de Sá (PPGD-UFSC)
Gabriela Natacha Bechara (PPGD-UFSC)
Helder Félix Pereira de Souza (PPGD-UFSC)
Isabella Cristina Lunelli (PPGD-UFSC)
Jackson Leal da Silva (PPGD-UFSC)
José Alexandre Ricciardi Sbizera (PPGD-UFSC)
Luana Renostro Heinen (PPGD-UFSC)
Lucas Machado Fagundes (PPGD-UFSC)
Macell Cunha Leitão (PPGD-UFSC)
Marina Corrêa de Almeida (PPGD-UFSC)

Captura Críptica: direito política, atualidade. Revista Discente do Programa de Pós-


Graduação em Direito. – v.4., n.1. (jan./dez. 2013) – Florianópolis, Universidade Federal de
Santa Catarina, 2013 –

Periodicidade Semestral

ISSN (Digital) 1984-6096


ISSN (Impresso) 2177-3432

1. Ciências Humanas – Periódicos. 2. Direito – Periódicos. Universidade Federal de


Santa Catarina. Centro de Ciências Jurídicas. Curso de Pós-Graduação em Direito.
Sumário

Captura Críptica Críptica


Intróito, prólogo, preâmbulo, prefácio ou Arendt e Kant: leituras paralelas dos textos
introdução: prolegômenos a um anti-texto que “Que é liberdade?” e “Fundamentação da
não começa nem termina metafísica dos costumes”
Por José Alexandre Ricciardi Sbizera, p. 3 Por Walter Marquezan Augusto, p. 145

Técnicas pedagógicas passo-a-passo de ensino de Derechos sociales y capitalismo em México y


filosofia para o jurista desocupado América Latina. Un acercamiento
Por Rubin Assis da Silveira Souza, p. 9 interdisiplinario desde la Critica Juridica
Por Daniel Sandoval Cervantes, p. 157

Captura Sufocado pelo vazio: o Direito e o Estado de


Exceção em Schmitt e Benjamin
Visualizações das interações críticas entre o Por Melissa Mendes de Novais e Danilo Christiano
Direito e a Teoria Feminista de Gênero a partir Antunes Meira, p. 187
de aspectos controversos da Lei 11.340/2006
Por Kamylla da Silva Bezerra e Féliz Araújo Neto, On Fairy Stories: as possíveis contribuições de
p. 21 J.R.R. Tolkien para os estudos de Direito e
Literatura
Atuação político-pedagógico das Assessorias Por Amanda Muniz Oliveira, p. 209
Jurídicas Universitárias Populares e a
concretização do Acesso à Justiça Outra dimensão de legalidade: um retorno a
Por Janderson Welligton Sousa Clemente e Rodrigo Antígona
Portela Gomes, p. 41 Por Gislaine Paula, p. 231
Cursos, cursinhos e ensino jurídico no Brasil A modernidade jurídica e o jusnaturalismo
Por Mariana Dutra de Oliveira Garcia e Marcelo moderno: a superação da experiência medieval e
Mayora Alves, p. 65 a constituição de um novo paradigma
Por Felipe de Faria Ramos, p. 241
Criminologia antropofágica: aportes para uma
criminologia crítica brasileira
Por Luciano Góes, p. 95 Verbetes
Direito e Memória: uma análise a partir do Pós-colonialismo
tribunal internacional de Nuremberg Por Tchenna Fernandes Maso e Tchella Fernandes
Por Fernanda Ruy e Silva e Lucas Selezio Souza, Maso, p. 261
p. 121

Resenhas
Escravização Ilegal e Representações da
História: considerações sobre o filme “12 Anos
de Escravidão”
Por Gabriela Barretto de Sá, p. 273
Apresentação

As Línguas do P: as objetivas da captura, os


objetivos da críptica

Dentro-Fora; Dispositivo-Profanação; Captura-Críptica. A série


corresponde ao desafio que o editorial de Captura Críptica: direito, política,
atualidade, revista discente do CPGD/UFSC, busca reavivar.
Quem conhece o mundo do direito sabe que é ele que nos captura e não
nós a ele. Isto é o que dizem os que não conhecem o direito. Conhecê-lo passa
por deixar o pedestal do saber certo e absoluto. Conhecê-lo significa reconhecê-
lo sempre. Sem dúvida, somos nós, como uns tantos a nós iguais, os capturados,
enjaulados, enovelados pelo direito. Não abdicamos de sê-lo. Mas isto não quer
dizer nada mais do que aceitarmos este como nosso espaço, nosso hábitat, nosso
campo de combate. Fazê-lo seria terrível.
Por sermos nós os mesmos que aceitam, mas ao mesmo tempo põem-se
contra as bases desta própria aceitação, cremos importante dizer quem somos
nós. E nós somos estes que crêem descrendo, fazem destruindo, falam ouvindo.
O mundo do direito, que miríades dizem ano a ano conhecer como a
palma de suas mãos – ou seja, como bacharéis –, não nos permite outra postura,
senão a de visibilizar a captura. Ela decorre de seu próprio desenvolvimento
como uma arma a ser usada por poucos infantes. Mas a guerra se faz com outras
armas, assim como a crítica se faz com outras línguas. Um p nos separa dos
quantos que como nós foram catapultados para o mundo sem volta e sem cores
vivas do acinzentado, sóbrio e polido direito.
Mais, porém. O mesmo p nos une em torno dessa própria separação.
Muito difícil é encontrar um elo, um motivo para um laço, uma causa para a
nossa guerra. Menos difícil, entrementes, achá-los para a nossa distinção. E
assim nem tudo nos divide.
Um p, portanto, nos coloca frente ao apavorante comum. Na captura
inevitável de quem caminha por onde caminhamos, todos, há uma possível
marcha que se sincroniza conforme o chão se compacta e conforme as fileiras se
desencontram. No seu caos, nós nos encontramos.
A críptica é um passo atrás e um p à frente. O resgate – diríamos, a

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 vii
captura – que procuramos é aquele que nos faz acertar as contas com um
passado tão efêmero como o momento instantâneo do agora. O programa, por
sua vez, é o que a fotografia não consegue registrar ainda, é o ladrilho sempre
incompleto de um caminho que redunda no horizonte, é a crise que crava seus
dentes nas costas do contemporâneo e nos lega como o critério a infinita tarefa
de continuar sangrando. Até que nosso p seque; até que ele seja desnecessário.
Mas o fato é que não é. Pouco palpável, ele surge; e do asfalto.
Com um p atrás, a crítica jurídica apagou as intensidades que permitiam
precisar os lugares de abandono do direito: eis o que constitui o paradoxo atual
da crítica – o seu poder ser capturada, ser transformada em dispositivo de
acomodação ou em função vazia; servir ao poder descrevendo precisamente o
que pode ser capturado por ele. Nossa recuperação para um p à frente é de uma
partição essencial entre dentro do direito (Captura) e a possibilidade de seu fora
(Críptica), de constituir objetos que, embora possam ser capturados, sujeitados,
esfarelados, fazem dispersar os dispositivos, criam um tempo e um espaço que o
poder não alcança, ao menos momentaneamente, na infinitude do átimo em que
se tornou o presente.
Crítica, cujo sentido etimológico resgatamos, apesar de uma definição
corrente a colocar ao lado da decisão sobre o valor de uma obra, por exemplo,
vem de krimein (krimein), do grego, e significa quebrar – quebrar a obra para
colocá-la em crise; apenas após a crise é que virá – não a decisão, que traz
consigo uma alusão ao arbitrário –, mas o julgamento: uma faculdade que não
pode basear-se senão no exercício do p, que também é exercício de pensamento.
Hoje, poucos, com efeito, quebram, e muitos dedicam suas sobre-vidas
a colar os cacos de seus ídolos ou a nomeá-los seus centauros particulares, a fim
de continuarem aconchegados ao calor frívolo de suas mitologias.
A partir da miséria da crítica jurídica, vem nascer a Captura Críptica:
que se debruça sobre o sedimentado e ausculta o futuro. A tentativa de fazer, por
um momento, mais que a Críptica da Captura, a arrebentação da Captura na
Críptica: um princípio de quebra e um movimento interminável: nunca
confortável, nunca aconchegante... maldito e inquieto, como fazer amor nas
noites frias dos desertos do direito.

Os editores.

viii CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Editorial

Apresentamos mais uma edição da Captura Críptica. Depois de


um ano marcado por protestos populares e manifestações rasgadas de
truculência e desrespeito à dignidade do povo, publicamos mais uma
revista. Mesmo conscientes e convencidas/os de que “é difícil defender,
só com palavras, a vida”1, o espaço que aqui anunciamos tem como
princípio e utopia abrigar e fazer ecoar em verso e prosa a crítica ao que
está autoritariamente posto e ao que se diz ser o direito. Contra toda a
opressão vívida e vivenciada, contra toda censura e opressão,
acreditamos que “não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la
desfiar seu fio, que também se chama vida”. E, neste movimento, nos
cabe fazer bom uso das ferramentas e possibilidades de garantir o direito
a uma existência marcada pela experiência da liberdade de ser e
expressar-se.
Assim, a Revista que se lança precisa também ser um espaço de
liberdade na academia jurídica. O projeto que conduzimos, como alunos
do PPGD, quer dar continuidade a proposta de que haja espaços de
manifestação, de crítica(s) e de divergência acadêmica. Ficamos felizes
ao receber e publicar inúmeros trabalhos que atenderam a essa chamada:
há algo que nos une, talvez seja a inquietude e a vontade de liberdade.
Motivados e inspirados pela força que provém das lutas e das
manifestações que tomaram o país no ano de 2013, convidamos à leitura
dos textos aqui publicados, certos de que esse momento pode nos inspirar
a duvidar, questionar, criticar e desconstruir os espaços de controle do
Direito.

1 Trechos da obra “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 ix
Captura Críptica
Intróito, prólogo, preâmbulo, prefácio ou introdução:
prolegômenos a um anti-texto que não começa nem
termina.

José Alexandre Ricciardi Sbizera*

O possível leitor do trabalho a que este intróito, prólogo, preâmbulo,


prefácio ou introdução antecede não mais vê o vertiginoso papel em branco
frente ao qual o autor no momento do ato da escrita deste texto se encontra. E
tanto assim é que neste mesmo instante este referido momento deixa de ser
presente para se tornar o que foi passado, razão pela qual onde se lê encontra
deveria ser lido encontrava.
No entanto, para que não se tenha o leitor frente a si um texto que
permaneça em incessante caminhada – como se pudesse algo que não cessa
permanecer – , usando de sua constitucional liberdade de locomoção, não tanto
no espaço quanto temporalmente, indo então do presente, que é passado, ao
futuro que já se faz presente, encurtar-se-á o (des)compasso de Cronos e
escrever-se-á como se neste momento escritor e leitor juntos estivessem. Por
outro lado espera-se, da mesma maneira, que o leitor, no ato da leitura, imagine
que este texto seja possivelmente a manifestação de um tal complexo de Castro
Alves diagnosticado por um tal Leminski em seus "Ensaios e anseios crípticos"
em um tal texto denominado "Os perigos da literatura" – e cada qual que
procure o seu – ; de modo que, por fim, o texto seja considerado um gesto de
encontro e diálogo.
Assim, é interessante notar durante o ato da escrita a existência em
mente de algo ainda inexistente na página e que, conforme passa a existir, deixa

* Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Especialista em
Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Bacharel em Direito pela
Universidade Norte do Paraná (UNOPAR).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 3
de ser o que era. Que diriam os de Campos? As letras, as palavras, as frases, os
parágrafos e os capítulos, bem como os devidos e pontuais sinais, que
transportarão os pensamentos para este texto por ora (sobre)vivem apenas na
caótica mente de quem os escreve; e os escreve com certa angústia, pois
segundo Gilles Deleuze e Pierre-Félix Guattari, nada mais doloroso do que
pensamentos e idéias, variabilidades infinitas, que fogem de si mesmas em
velocidades também infinitas; que desaparecem desde que esboçadas, corroídas
pelo esquecimento e pelo cotidiano. Perdemos(,) sem cessar nossas idéias. Seres
lentos, de lento cérebro, não nos damos conta desta súbita e incontida sangria.
Senão Descartes, também Platão o fizera.
E quando e enquanto estes pensamentos e idéias são arduamente
traduzidos, na medida em que traduzir não pode ser deixar mais barato, e com
todas as limitações existentes – pois segundo Leminski “toda tradução, de certa
forma, é uma impossibilidade, é sempre uma agressão, um ato de violência,
uma brutalidade” e também porque “nenhum original merece ser passado para
um repertório mais baixo, pois cultura é subir crescendo, para o mais rico, o
mais raro, o mais forte e o mais radioativo” – , e com todas as limitações
presentes, ia escrevendo, vão aqueles pensamentos preenchendo e como que
sujando o alvo espaço, ao mesmo tempo em que limpam e purificam estes
pensamentos na esperança de transferir o caos ou mesmo de criá-lo na mente de
quem os lê, no futuro, para que logo então ou neste outro exato instante passado
se preencha de outros tantos caóticos pensamentos, novos ou derivados, todos
presentes do presente.
Se ler é como que traduzir, como o queria Hans-Georg Gadamer,
escrever também o é, na medida em que quem realiza esta operação deficitária
lança ao leitor, este caro desconhecido, mas possível amigo, um (re)fluxo
infinito de seus pensamentos, tornados finitamente texto, reduzidos, algo
inevitavelmente modificado do original. Decorre que desta inexatidão do texto
em referência ao caos mental primário, surge com a leitura uma segunda
inexatidão, que se refere, desta vez, à introdução da intradução do texto pelo

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leitor. Não há, portanto, modos satisfatórios daquele que escreve perceber até
onde é que o outro, o leitor, deixa de acompanhá-lo, restando por isso, sempre, a
sensação da (ir)realização de uma tarefa: decepcionante. Avner Eisenberg, mais
do que ninguém, compreenderia. Em geral, ainda segundo Gadamer, falta, na
tradução, “a respiração daquele que fala, a respiração que anima a compreensão.
Falta à linguagem o volume original”. Fosse este trabalho uma poesia, e
necessária seria, por parte do leitor, uma verve poética para repoetizá-lo de
modo a não terminar o texto lido de forma degradada, estranha e artificial.
Por óbvio que no ato da leitura deste texto pelos possíveis leitores o que
se encontra agora em caos na mente de quem escreve foi transformado. Tudo,
leitor. A escrita e a leitura se dão em momentos extremos, agora unidos
imaginariamente por conveniência. De Bergson a Badiou, passando por Balzac
e Bakthin. O ato da escrita do texto é seu pré-texto. O ato da leitura do texto é
seu pós-texto. O que era pensamento dinâmico e caótico, como num brutal corte
de navalha, se solidifica, se reduz, e embora não seja mais, é avaliado pelo que
foi. O constante devir que estabelecia uma relação autor-obra se concretizará,
inaugurando, no ato da leitura, uma relação obra-leitor.
É assim que o autor deste trabalho pensa e deseja que mais importante
do que a relação que cria agora com a necessária confecção de um texto fruto de
uma pesquisa que nunca cessa, é a relação que a obra pode estabelecer com seus
possíveis leitores e, sobretudo, o caótico pensamento em que, se neste ato agora
estou, espero não mais estar durante o próximo ato que se inicia assim que o
presente acaba. Heidegger é que não era, jamais Artaud, Haydée Sosa e
Feyerabend.
No entanto, fala-se de um papel em branco sobre cuja superfície se
escreve quando em verdade o que há em frente é uma tela feita com a ajuda de
alguma tecnologia da qual se desconhece a procedência e funcionamento.
Agamben talvez esteja; e, profanados, Amelie distribui estratagemas a
desconhecidos enquanto Alex DeLarge não mais estupra Beethoven. Nesta
época pseudo-digital, porque digital para poucos, há também alguns

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 5
mecanismos demasiado agressivos ao texto, muito mais agressivo que o
anteriormente usado, de nome borracha, fortuna de outros poucos num Brasil de
outra época não digital. Iser e Ingarden não participaram, Auerbach tampouco.
Tudo aqui é pensado. Os botões de backspace ou del ou correspondentes, já
talvez ultrapassados mas presentes na máquina em que o ato desta escrita se
concretiza – na medida em que concretizar é possível, visto tratar-se de uma tela
com páginas virtuais – , fazem com que os erros, anotações ou rabiscos
literalmente manuscritos de outrora, passíveis de uso em projetos para um
qualquer dia pré-morte que a pós-vida raramente deixa realizar, já que "”á em
qualquer profecia, que o mundo se acaba um dia”, e que acabavam guardados
despretensiosamente para estudos posteriores (lista de compras, horários de
medicamentos e bilhetes de amor, inclusive?), hoje não existam mais – pelo
menos não nos autores os quais se utilizam do atual aparato tecnológico e
digital. Excluiu-se, estóico, Ariano Villar Suassuna, pelo sistema acusado de
vilão assassino.
Em suma, não se pode mais perceber os ensaios de pensamentos de um
autor – ensaio aqui entendido como todos os atos realizados com as cortinas
fechadas, atos que antecedem a apresentação de uma obra, seja ela musical,
teatral, ou neste caso, textual, no sentido de um espaço e tempo em que se
estudam, se aprendem, se estabelecem os métodos e possibilidades para um fim
a que se pretende alcançar ou não. Tudo é propósito. O que se tem agora é nada
além da pronta obra. Warat tinha sim olhos de Lince e, sim, a rua grita Dionísio!
Seus pensamentos possíveis e caminhos cogitados, entre variações, variáveis e
variedades, são deletados e o que se apresenta ao leitor não é nada mais do que
aquela.
Isto é abissal e visto de um certo ângulo muito possivelmente atormenta
também a figura do pesquisador que não mais possui acesso aos rabiscos em
páginas descartadas do espólio da obra do seu autor cujo pensamento venha a
ser objeto de pesquisa. Cervantes sim, mas Góngora y Argote também. Não se
tem mais acesso ao que mais o autor pensou além do que foi publicado. A obra

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escrita não passa de uma mitigada amostragem do que foi o pensamento de um
autor, a redução de um pensamento; ou então não é nada disso, Jarry.
Assim, em contraposição àquele velho idiota de que falam Deleuze e
Guattari, o qual ainda vive e quer somente o verdadeiro, pretendendo por si
mesmo dar-se conta do que era compreensível ou não, razoável ou não, perdido
ou salvo e não prestando contas a nada que não seja a razão, admitimos pensar
como aquele outro idiota, mais novo, amador apaixonado, e que quer fazer do
absurdo a mais alta potência do pensamento, recusando qualquer das pretensas
verdades da História, criando e não apenas pedindo senão que exigindo o
perdido, o impossível, o incompreensível e o inconcebível. Benjamin morreria
na fronteira; Christa Päffgen, em Ibiza. Gregorio Barenblitt aprovaria; mas
Grigory Barenblatt pode ser que não e é justamente naqueles momentos em que
a lógica se cala, os que consideramos de fundamental importância. Proust
lembra enquanto escreve, Barthes ergue a cabeça enquanto lê.
Deste modo, nos damos conta de que é necessário subir novamente o
caminho pelo qual descemos, e ao invés de um lógico encadeamento de
proposições, preferimos, por puro gosto, desligados de aderências psicológicas
e sociológicas determinantes e deterministas, revelar os fluxos e refluxos de um
monólogo interior ou as estranhas entranhas e trifurcações do diálogo ordinário.
Austry e Cortázar também; tudo para poder mostrar como o pensamento
produz, quando liberado e afastado da verdade como paradigma, ao arrepio da
academia de V. Flako, algo de interessante, sempre pronto à reconquista do
poder de criação e da humanidade do humano.
Um dos objetivos deste, se não, até aqui, foi, ou antes, mental dos que
(o)correm do cérebro de qualquer caos, que não é mas primeiro, e tanto mais,
desfaz no infinito enfrentamento, em uma muito possivelmente incapaz
tentativa filosófica de fazer com que Lia

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 7
8 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Técnicas pedagógicas passo-a-passo de ensino de
filosofia para o jurista desocupado

Rubin Assis da Silveira Souza*

Porém meu ódio é o melhor de mim.


Com ele que me salvo e dou a
poucos uma esperança mínima.
DRUMMOND. A Flor e a náusea

O objetivo do trabalho é auxiliar o jurista desocupado responsável pelo


ensino da cadeira de filosofia do direito. A situação mais frequente nas
faculdades de direito são as aulas de filosofia e de outras cadeiras do eixo
fundamental serem tapeadas por qualquer bacharel sem nada melhor para fazer.
Ocorre que tais ociosos juristas muitas vezes se veem receosos quando
instituídos nos seus cargos, isso porque não possuem qualquer conhecimento na
matéria em que lecionam, ao mesmo tempo em que são lançados em sala de
aula expostos às dúvidas e críticas dos alunos.
Nesse sentido apresento a esses professores, juristas desocupados, uma
técnica pedagógica resumida e de fácil compreensão para ministrarem sem
maiores sobressaltos a cadeira de filosofia do direito. Seguindo os passos
propostos, o jurista desocupado não terá riscos de ser questionado pelos alunos
ou pela instituição, mantendo seu complemento de renda garantido.

IDENTIFICAÇÃO DO JURISTA DESOCUPADO PROFESSOR DE


FILOSOFIA DO DIREITO

Se você é um jurista responsável pela cadeira de filosofia do direito,


responda o seguinte questionário:

QUESTÃO RESPOSTA

* Mestrando em Direito pela UFSC. Bolsista Capes.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 9
1. Você leciona geralmente cadeiras dogmáticas, como civil,
processo civil, penal, processo penal, administrativo,
constitucional etc., mas infelizmente tais disciplinas já foram SIM NÃO
ocupadas por profissionais mais competentes ou por um amigo
qualquer do reitor/diretor/ministro/deputado/senador/presidenta
etc, restando-lhe apenas a cadeira de filosofia do direito?
2. Você não passou no exame de ordem e não vislumbra, por
absoluta e consciente falta de competência, qualquer outra
carreira no direito, a não ser o magistério das disciplinas do eixo SIM NÃO
fundamental, pois não exigem outra qualificação além do
bacharelado e alguns contatos mais próximos com um
reitor/diretor/ministro/deputado/senador/presidenta?

3. Você é docente em uma faculdade privada de direito cujo


slogan é: a) “a universidade que ensina na prática, assim como as
universidades americanas”, b) “a universidade voltada para o SIM NÃO
mercado de trabalho”, c) “a universidade que te ensina a prática e
não a teoria”, d) “a universidade com a menor mensalidade” etc.?
Ou você é professor de uma instituição pública aprovado em um
concurso duvidoso, obscuro e repleto de ilegalidades?

5. Você leu o manifesto comunista ou a versão condensada da


Teoria pura do direito e se acha capaz de refutar tais teses SIM NÃO
facilmente, pois as considera superadas?

6. Você é um leitor eventual da bíblia ou um místico holista ou


tauista etc. e acredita que os filósofos são pagãos negadores dos SIM NÃO
seus dogmas e o ensino filosófico, para ser verdadeiro e justo, é
uma pregação das suas crenças?

Se você respondeu afirmativamente uma ou mais dessas questões,


parabéns! Você é um jurista desocupado professor de filosofia do direito. A
partir de então siga estes sete passos para manter-se tranquilo em seu cargo
recebendo sem dificuldades seu dinheirinho extra:

PASSO 1. SEJA UM MEDALHÃO

Esse é o primeiro passo e o mais importante, devendo ser observado em


todos os outros. Para tal, recomendo fortemente a leitura do conto “A teoria do
medalhão”, de Machado de Assis.

10 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Seja, então, um medalhão. Trate todos com extrema cordialidade e finja
um espirito de constante amizade entre os alunos. Promova encontros,
churrascos, pague a cerveja do churrasco, seja sempre solícito e sorridente. Um
aluno se sentirá mais constrangido em denunciá-lo à diretoria quando restrito
por vínculos de amizade com você, assim como ficará mais embaraçado diante
da turma no eventual questionamento sobre seus métodos.
Nesse sentido, jamais afirme que o aluno está errado em seu argumento
ou precisando aprofundá-lo. Procure sempre concordar com os alunos, mesmo
sendo gritantemente absurdos seus posicionamentos. Não discorde, apenas
concorde! Não corrija os alunos, somente os elogie! Sempre os aprove, dando-
lhes as melhores notas possíveis. Observe, entretanto, o perigo de qualquer
fiscalização que eventualmente possa ocorrer – proteja-se também contra os
fiscais e não ignore erros grotescos: estabeleça provas elementares e, antes da
sua aplicação, forneça aos alunos as respostas. Autorize os alunos a utilizar
qualquer material, como dicionários, internet etc. Um que outro aluno, mesmo
com as respostas, conseguira se sair mal. Preveja no seu plano de ensino, então,
o complemento da nota com trabalhos em grupo. Desta forma você poderá
aprová-lo sem incorrer em risco com a fiscalização e mantendo-se dentro do
tipo machadiano do medalhão.
Ainda, jamais exponha qualquer ideia nova ou uma filosofia
aprofundada sobre qualquer assunto. O medalhão deve unicamente repetir
preconceitos e chavões sociais, sem margem para discussões e raciocínios
lógicos. As ideias nunca deverão ter originalidade, mas refletir o pensamento
vulgar comum, com incisiva ênfase pedante.

PASSO 2. EVITE DAR AULA

A aula pode ser um momento crítico para o jurista desocupado professor


de filosofia do direito. Em sala, há o risco de você cometer alguma gafe ou um
aluno possuir conhecimentos suficientes para lhe desmascarar. Portanto, evite
dar aulas. Atestados médicos são sempre úteis nesses casos e são facilmente
conseguidos. Procure também oferecer a disciplina sexta-feira à noite, pois você
tem a oportunidade de dispensar os alunos mais cedo sem nenhuma reclamação.
Não exija frequência e participação em sala da aula. Caso seja uma
exigência da instituição, faça a chamada sempre no início da aula e dê presença
a todos os que lhe pedirem, fazendo-se claro de que está realizando um grande

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 11
favor ao aluno faltoso.
Quando em sala, realize frequentemente seminários sobre alguma ou
outra polêmica qualquer, menos em problemas filosóficos ou que demandem de
leitura. Faça perguntas genéricas – questione os alunos em grupo, se eles
responder de uma forma, concorde com ele, conceda-lhe efusivos elogios e
encerre a questão, sem aprofundá-la.
Exponha filmes emotivos e longos: dê preferência a filmes que ocupem
o tempo de duas aulas, mais uma aula para o debate. Não utilize filmes
filosóficos ou profundos – uma comédia romântica é o mais apropriado. Se
algum aluno questionar a escolha do filme, sustente frases vazias, tais como: tal
filme foi escolhido porque ‘aflora a sensibilidade’ ou ‘cultiva o humanismo no
aluno’.

PASSO 3. ESCOLHA UM MANUAL FÁCIL E DE QUALIDADE


DUVIDOSA DE FILOSOFIA DO DIREITO OU MESMO UM LIVRO DE
AUTOAJUDA OU HOLÍSTICO

Não precisa ser o melhor, mas apenas fácil. O ideal seria que esse
manual apresentasse alguns erros para que você os possa corrigir em sala de
aula, aparentando, assim, conhecimento profundo e crítico em filosofia.
Inclusive pode-se utilizar também algum livro de autoajuda com uma ou outra
citação filosófica. Em hipótese alguma utilize livros de filosofia de autores
reconhecidos ou o estudo dos textos dos próprios filósofos – isso pode fazer o
aluno se interessar pela disciplina e formular perguntas excessivamente difíceis
para você. Escolha um livro bem introdutório e certifique-se da sua
superficialidade. Também não é necessária a sua leitura antecipada, apenas o
indique no plano de ensino e aos alunos. Em sala de aula jamais o estude
objetivamente. Sempre que algum aluno levantar uma questão sobre o texto,
procure demonstrar os problemas do mesmo e invente uma resposta qualquer ao
questionamento, representando, assim, sua superioridade intelectual em relação
ao autor. Se o aluno insistir, mude de assunto sustentando a falsidade do
problema ou a sua irrelevância.

PASSO 4. RELATE SUAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS COMO SE


FOSSEM LEIS METAFÍSICAS A PRIORI DO DIREITO

12 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Esse é o método mais popular entre juízes, promotores, procuradores e
advogados aposentados. Quando entediados, tais profissionais do direito
buscam algo para além da monotonia de seus dias. O exercício do magistério
em filosofia do direito parece ser a disciplina mais atrativa. Mas também para o
advogado que está em difícil situação financeira o ensino em filosofia do direito
é uma boa alternativa, porque não demanda de muito estudo e garante uma
renda fácil e certa.
Abuse da falácia da autoridade. Sua autoridade como jurista jamais
poderá ser contestada. Se for, censure fortemente o aluno.
Relate seus processos e como os solucionou de forma magistralmente
bem. Sustente que tal posicionamento profissional é a realidade objetiva para
todos no mundo, com exceção daqueles perturbados por concepções
equivocadas e discordantes das suas. Busque, dentro dos seus procedimentos
profissionais, regras inventadas por si mesmo e as generalize a tal ponto de
fazer o aluno considerá-las como normas a priori da razão. Defenda esse
posicionamento e não recue em hipótese alguma.
Nesse sentido, a cadeira de filosofia do direito deve ser direcionada aos
moldes de sua profissão – caso você seja um profissional da área de direito
civil, por exemplo, procure generalizar posições civilistas e tratar seus
argumentos como necessariamente verdadeiros e reais diante dos problemas da
legislação civil. Exponha, finalmente, as suas teses profissionais como se
fossem verdades metafísicas, inquestionáveis, mas infelizmente ainda não
reconhecidas porque o mundo está permeado de maus filósofos que, de fato,
não lhe distinguem como um professor sério.
Caso algum aluno lhe questione sobre esse método, estigmatize-o,
afirmando a sua incapacidade de superá-lo intelectualmente tendo em vista a
sua renomada atividade profissional. Demonstre estar profundamente ofendido
com a insolência do aluno. Após a demonstração de indignação, volte a aplicar
o passo 1.

PASSO 5. EVITE OS FILÓSOFOS OU PROFESSORES DE FILOSOFIA

Fale mal dos filósofos e instigue o preconceito. Os filósofos geralmente


levam a carreira acadêmica extremamente a sério, o que é um perigo para você.
O preconceito mais usual é dizer que os filósofos não conhecem a
‘realidade’ pois estão absortos por filosofias ultrapassadas e apenas estudam

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 13
outros filósofos, repetindo conceitos, e não a ‘realidade’.
Nunca, jamais, em hipótese alguma, nem em sonho, recomende aos
seus alunos a leitura de textos filosóficos respeitáveis, ou a leitura direta dos
clássicos da filosofia.
Jamais publique um artigo na área de filosofia. Tal artigo ou livro irá
expor significativamente seu analfabetismo filosófico.

PASSO 6. CENSURE OS ALUNOS MAIS QUESTIONADORES

Um aluno questionador representa o maior desafio para você, prezado


jurista desocupado. Mesmo se o aluno não possuir conhecimento filosófico
algum, suas perguntas podem lhe fazer contradizer. E como você não têm
fundamentos para justificar suas posições, provavelmente você será
desmascarado e perderá sua renda extra.
Nesse sentido, procure censurar os alunos mais desembaraçados e
questionadores. Observe que essa censura deve ser velada - jamais censure o
aluno de forma explícita e objetiva. Procure silenciá-lo de forma que o mesmo
sinta-se envergonhado perante a turma em questioná-lo novamente. Sutilmente,
manipule os alunos para estarem completamente submissos. Os passos 1 e 4
deverão ser retomados aqui.

PASSO 7. JAMAIS CONSIDERE OS SEGUINTES VERSOS DE


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Procura da Poesia1

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à

1 Substitua “poesia”, “versos” e “canto” por “filosofia”, o que para Drummond não seria, pelo que sei, de
todo errado.

14 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro


são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.


O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das
casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas
junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,


não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.


Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 15
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.


Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Siga o poema tal como concebido por Drummond, só que ao contrário.


Seja extremamente subjetivo quando ensinar filosofia – indague, invoque, minta
sobre tudo. Conte sua vida pessoal e de sua família; suas posses, suas dores,
seus amigos e inimigos, seu passado e sua cidade. Dramatize o tempo todo. Mas
de forma alguma faça o que o poeta preceitua– nunca mergulhe no reino das
palavras – lá você e seus alunos poderão se perder e, consequentemente, perder
sua renda extra e a tranquilidade de seu sagrado sono existencial.

16 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
OBSERVAÇÕES FINAIS

Os passos apresentados nesse guia resumido são, conforme observação


empírica do pesquisador, os mais eficazes para o jurista desocupado manter sua
renda complementar sem despender de muito esforço. Ocorre, entretanto, que
você, jurista desocupado, enfrentará algumas consequências, mas não se
preocupe, elas podem ser relativamente remediadas.

Consequência 1. Você irá para o inferno

Na Divina Comédia, de Dante Aligeire, o personagem principal,


Virgílio, relata o oitavo círculo do inferno – destino dos fraudulentos,
falsificadores, manipuladores, etc. Enfim, destino dos maus professores. Lá
você será submergido em um fossa de esterco e fezes durante toda a eternidade.
É para lá que você, inevitavelmente, irá!
Para esse problema não vislumbro qualquer solução. É inevitável que
você, jurista desocupado, chafurdará em fezes durante toda a eternidade.
Recomendo que o Sr. desfrute extensivamente da sua fraude ainda na sua vida
terrena. No pós morte somente o esterco lhe aguarda.

Consequência 2. Você será o responsável por retirar a oportunidade de


profissionais sérios especialistas em filosofia do direito e com produção e
conteúdo filosófico para oferecer aos alunos

Essa consequência, na verdade, não precisa ser levada em consideração


pelo jurista desocupado – quem, de fato, preocupa-se com essa gente da
filosofia? Eles é que se virem para procurar outro meio de se manter. A sua
renda complementar já está assegurada e ninguém nesse mundo, caso siga os
passos apresentados, haverá de lhes subtrair o seu rico dinheirinho, que é pouco,
é verdade, mas bem paga a NET e a gasolina do mês.

Consequência 3. Os alunos não aprenderão conceitos filosóficos


básicos e necessários para a carreira acadêmica.

Repita mil vezes consigo mesmo: 1) quem faz a faculdade são os


alunos: os professores e a instituição não podem ser responsabilizados; 2) quem

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 17
faz a faculdade são os alunos: os professores e a instituição não podem ser
responsabilizados; 3) quem faz a faculdade são os alunos: os professores e a
instituição não podem ser responsabilizados; 4) quem faz a faculdade ...; 1000)
quem faz a faculdade são os alunos: os professores e a instituição não podem
ser responsabilizados.
Conforme os ensinamentos de um famoso publicitário alemão, após
você repetir mil vezes tal frase, ela se tornará verdade. Caso não esteja
convencido após as mil vezes, repita duas mil, assim sucessivamente, até se
convencer. Dessa forma você não se sentirá culpado pelas dificuldades
acadêmicas dos seus alunos.

18 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Captura
Visualizações das interações críticas entre o Direito e a
Teoria Feminista de Gênero a partir de aspectos
controversos da Lei 11.340/2006

Kamylla da Silva Bezerra*


Félix Araújo Neto**

RESUMO: A violência doméstica contra a mulher foi conceituada pela Lei


11.340/2006 como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial.
Com a entrada dessa lei em vigor,surgiram inúmeras dúvidas quanto à sua
incidência, algumas relacionadas à utilização do conceito de gênero. Assim, este
artigo tem por objetivo analisar a interação do direito com as teorias feministas,
mais especificamente aquelas que se utilizam dos conceitos de gênero para
explicar fenômenos como a violência doméstica contra a mulher. Assim, para
alcançar a finalidade deste trabalho foram utilizados os seguintes procedimentos
práticos metodológicos: levantamento documental e levantamento bibliográfico.
Como resultado pode-se observar que a teoria feminista de gênero trouxe
significativos avanços no que tange aos direitos das mulheres e de grupos
considerados vulneráveis durante o decorrer da história, se caracterizando,
assim, como uma teoria crítica do direito. Ademais, pode-se vislumbrar o inicio
de interesse e aceitação quanto à utilização do conceito de gênero das teorias
feministas no judiciário brasileiro, ao apontar a existência de decisões judiciais
que fazem emprego desta teoria em suas fundamentações.

PALAVRAS-CHAVE: teoria feminista; Lei Maria da Penha; controvérsias


judiciais.

* Graduanda do curso de bacharelado em Direito pela Universidade Estadual


da Paraíba – UEPB. Pesquisador bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
Email: mylla_74@hotmail.com. Contato: (83) 9925-2215
** Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual
da Paraíba – UEPB. Doutor em Direito Penal e Política Criminal pela
Universidade de Granada - UGR.Email: félixaraujoneto@hotmail.com.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 21
ABSTRACT: Domestic violence against women was conceptualized by Law
11.340/2006 as any action or omission based on gender which causes death,
injury, suffering physical, sexual, psychological and moral or property damages.
With this law in place there were emerged many doubts as to its incidence,
some related to use of gender concept. Thus, this article aims to analyze the law
interaction with feminist theories, more specifically those that use gender
concepts to explain phenomena such as domestic violence against women.
Thus, to achieve this work purpose we used the following practical
methodological procedures: documental and bibliographic survey. As a result it
can be seen that the women's genre theory has brought significant advancements
regarding the women rights and vulnerable groups considered during the course
of history, been characterized as a critical law theory. Moreover, we can glimpse
the beginning of the interest and acceptance about the use of the gender concept
of feminist theories in the Brazilian judiciary, pointing to the existence of
judicial decisions that make use of this theory in their foundations.

KEYWORDS: feminist teory; Maria da Penha Law; judicial controversies.

INTRODUÇÃO

A teoria feminista do direito que trata, entre outras questões, daquelas


relacionadas ao gênero, tem sido ignorada pelos juristas brasileiros. Apesar de
não serem poucas as organizações e entidades que trabalham com o tema dos
direitos das mulheres no país, e realizam intervenções práticas, quando se parte
para a reflexão teórica desses temas, a carência é quase que absoluta. Tal fato se
dá pela existência de uma desconfiança mútua, tanto dos juristas para com as
feministas, como vice e versa. Assim, é bem verdade que, para algumas
feministas, os estudos jurídicos perpetuam uma representação do direito como
técnica de controle social neutra, universal, abstrata, quando, na verdade, o
direito já representa um ponto de vista previamente sexualizado (OLSEN,
2000). Já aos olhos dos juristas, a teoria feminista parece ensejar mais “uma
teoria contra o direito do que propriamente uma teoria do direito”
(REVILLARD & LEMPEN, 2008).
Apesar da desconfiança e falta de interesse mútuos, fato é que as teorias
feministas já exercem grande influência no meio jurídico brasileiro, a exemplo

22 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
das inúmeras modificações realizadas em leis que foram conquistadas a partir
da reivindicação feminista. Assim, com uma legislação que perpetuava uma
discriminação negativa no que tange às questões de gênero, era de extrema
relevância que fossem propostas novas saídas para que as mulheres pudessem,
de fato, obter a igualdade de gênero. Convém citar como exemplo as seguintes
modificações: questionamento da separação público/privado com a consequente
reivindicação de interferência da justiça na esfera doméstica; o Código Penal
que até o ano de 2005 trazia o conceito de “mulher honesta”, para a
identificação da conduta moral e sexual considerada irrepreensível,
característica indispensável para a proteção legal em determinados crimes
sexuais; e ainda no Código Penal, era possível, até o ano de 2005, que caso o
estuprador casasse com sua vítima, o mesmo não seria condenado por seu
crime, em face da “reparação do dano aos costumes”.
Dessa forma, a lei 11.340/2006 foi instituída, segundo Bianchini (2013),
com o objetivo de coibir e prevenir a violência de gênero no âmbito doméstico,
familiar ou de uma relação íntima de afeto. Dessa forma, fazendo uso do
conceito de gênero,essa lei concretizou a relação entre as teorias feminista de
gênero e direito, cabendo aos juristas o estudo dessa abordagem, tendo em vista
sua manifestação em âmbito jurídico.
Os estudos de gênero surgiram no século XX, tendo por objetivo
problematizar os diferentes valores culturalmente atribuídos às mulheres e aos
homens, que definem os comportamentos e expectativas sobre o papel de cada
um dos gêneros em nossa sociedade. Assim, sucintamente, Saffioti (2004)
conceitua gênero como a construção social do masculino e do feminino.
No que tange à correlação entre gênero/direito, Rêgo et.all (2012)
explica que longe de ser apenas um detalhe de aspecto normativo, o conceito de
gênero deve assumir uma postura nevrálgica em qualquer leitura que seja feita
da lei 11.340/2006. Da mesma forma, acrescenta ser elementar que a utilização
desse conceito pela referida lei não está delimitada pelo sexo geneticamente
definido, não tendo vinculação fisiológica com o corpo do individuo. Assim,
para além do dado biológico que define o sexo (registro sexual homem ou
mulher), o gênero é concebido como o sexo socialmente construído
(ANDRADE, 2004).
Logo, se verifica que gênero trata-se de um elemento normativo
extrajurídico que se apresenta de forma crucial para abordagem dos institutos
jurídicos que tratam dos direitos das mulheres. Igualmente, parte da doutrina

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 23
tem setorizado o direito penal a partir de uma abertura para um específico ramo
chamado direito penal de gênero, com a tipificação do crime de gênero:

“Não se trata, portanto, de qualquer conduta lesiva


contra uma mulher. Para ser crime previsto na nova
Lei, é necessário que a conduta seja baseada no
gênero. A ação ou omissão que não for baseada no
gênero não tem previsão típica na Lei Maria da Penha.
A violência doméstica familiar ou em qualquer
relação íntima de afeto contra uma mulher, que não
for baseada no gênero, realiza tipos penais comuns e
não está abrangida pela nova Lei. Assim, o direito
penal de gênero é formado pelo estudo dos tipos
penais que têm um elemento específico que os define
como crime de gênero, ou seja, conduta baseada no
gênero” (SILVA JUNIOR, 2012).

Portanto, o estudo que relaciona a teoria feminista e que envolve a


utilização dos conceitos de gênero, com o direito acaba por criar uma instigante
teoria crítica: teoria feminista crítica do direito. Rabenhorst (2010) afirma que
essas abordagens proporcionam uma reflexão produtiva sobre os limites do
formalismo jurídico e da teoria liberal que lhe oferece sustentação, apontando
para um projeto concreto de transformação do direito.

1 OS PROPÓSITOS DA TEORIA FEMINISTA AO LONGO DO TEMPO

Cabe inicialmente esclarecer que falar em feminismo no singular, como


foi feito até agora, é incorrer em grande equívoco. Tal fato de justifica por se
estar diante de um pensamento que não se caracteriza de forma singular ou de
uma prática política homogênea. A história do feminismo abarca uma série de
teorias que apontam sua herança filosófica comum no liberalismo do séc. XIX.
Na perspectiva de Nye (1995), pode-se destacar algumas das teorias
feministas mais importantes a nível histórico e que explicam a evolução desse
movimento durante as revoluções e modificações sociais. A saber, tem-se os
chamados: feminismo liberal; feminismo marxista; feminismo existencialista e,
finalmente, o feminismo dos estruturalistas da linguagem.

24 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
As primeiras justificações sistemáticas dos direitos das mulheres foram
tomadas de empréstimo à teoria liberal e democrática. A panaceia democrática
do voto era o foco da luta feminista. John Locke, Jean-Jacques Rousseau e os
utilitaristas modelaram um mundo no qual os homens podiam ser livres e iguais
e uma sociedade onde estes determinariam seus próprios destinos. No entanto,
essas ideias jamais pretendiam aplicar-se às mulheres.
As reformas democráticas da Revolução Francesa foram teorizadas
como só beneficiando as mulheres indiretamente: como são dependentes dos
homens, logo, estarão emmelhor situação porque os homens estarão em melhor
situação.
Na primeira grande onda de feminismo do séc. XIX, a principal questão
era o sufrágio. Outras questões (direito de propriedade, reforma do casamento e
liberdade sexual) eram discutidas, mas o foco era do voto como modo correto e
mais prático para as mulheres atingirem suas metas, acreditando que quando
estas estivessem aptas a votar, elas o fariam em favor de uma legislação que
corrigiria as injustiças praticadas (NYE, 1995).
Assim, a primeira defesa sistemática dos direitos das mulheres veio de
John Stuart Mill e Harriet Taylor. Mill era utilitarista na tradição bethamista,
membro do grupo Radical Filosófico, e após encontrar-se com Harriet
aproximou-se cada vez mais dos Radicais Unitaristas. Estes eram mais
literários, mais radicais e mais libertários que os utilitaristas, sobretudo em
questões de família e sexualidade.
Com argumentos por uma sociedade na qual os interesses de todos os
homens fossem considerados e, ao mesmo tempo, na qual os direitos individuais
de cada homem fossem protegidos, Mill e Taylor descobriram a justificação
para uma correspondente revolução feminista. Seus argumentos formaram
agenda para os anos seguintes de feminismo liberal.
O utilitarismo de Bentham (1979) serviu de base para a construção
teórica de Mill, na qual se entendia que as coisas humanas eram governadas por
dois senhores soberanos: o prazer e o sofrimento. A partir da perspectiva
benthamista pretende-se que a sociedade nada mais é do que um punhado de
indivíduos que procuram o prazer e evitam o sofrimento, e uma sociedade justa
é aquela na qual se produz o máximo de prazer e o mínimo de sofrimento.
Assim, toda lei ou ação que cause a máxima felicidade e o mínimo sofrimento é
justa. Dessa forma, são esclarecidos dois princípios importantes da reforma
política: nenhum prazer deve ser superior a qualquer outro, exceto quanto à

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 25
quantidade, e cada pessoa deve ser considerada o melhor juiz do seu próprio
prazer.
Como se disse, o voto feminino era o mecanismo pelo qual as outras
reformas seriam conquistadas e os interesses das mulheres alcançados, assim,
reivindicava-se que o voto deveria ser para todos, e todos não podia significar a
metade masculina. Os argumentos de Bentham (1979) se aplicam nesse
contexto: as mulheres têm interesses, sofrem, desfrutam prazer. E em que base
não seriam elas o melhor juiz de como esses interesses devam ser atendidos?
No entanto, o utilitarismo de Bentham tinha uma fragilidade, como
observara Mill (1961). E se as mulheres não quisessem votar, ter empregos, ser
educadas? Em meados do séc. XIX a maioria das mulheres não apoiava o
sufrágio feminino. Assim, se a avaliação que a mulher faz do seu próprio prazer
não é confiável, então o utilitarismo que servia de base para a teoria liberal, por
si só, é inadequado para a defesa dos direitos das mulheres.
Já em 1900, outro tipo de feminista existia: a mulher que trabalhava. É
o caso da feminista socialista Flora Tristan, que podia falar por experiência
própria de miséria, más condições de trabalho e do desespero da prostituição.
Podia-se também comparar a Emma Goldman, nascida na Rússia em 1869 em
uma família pobre. Essas mulheres não tinham quaisquer das vantagens da
posição da classe ou riqueza das feministas liberais.
Nessa etapa acreditava-se que o antídoto para a opressão das mulheres
não era a legislação, mas uma organização de trabalhadores. As feministas não
deviam tentar descobrir nas estruturas socioeconômicas existentes os meios
legais de defender os interesses das mulheres, mas trabalhar para destruir
aquelas estruturas. Argumentava-se que a opressão das mulheres era só
superficialmente causada pelas leis ou falta delas e que, no entanto, a
exploração de uma classe por outra se encontrava na base da essência do
capitalismo (GOLDMAN,1970). Nascia, assim, o feminismo marxista.
Seguidor de Friedrich Engels, o social-democrata August Bebel
influenciou feministas como Alexandra Kollatai e Clara Zektin, com seu livro
“Womanundersocialims”. Bebel se empenhava em tentar convencer seus
companheiros socialistas de que as mulheres trabalhadoras deviam ser iguais
aos homens no Estado socialista.
Bebel se inspirava na genealogia de Engels (1884) do sexismo: a
família monogâmica, chefiada pelo homem, advém da propriedade privada 2. Os

2 Engels mostrava que o sexismo não era universal, visto que houve tempo que a terra era possuída

26 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
defeitos das mulheres seriam advindos de sua situação degradada e podiam ser
corrigidos na nova sociedade socialista (BEBEL, 1904). Assim, o autor
pretendia que, com o alvorecer do socialismo, as mulheres teriam direitos
trabalhistas iguais aos dos homens, seriam educadas e teriam participação à
semelhança masculina.
Entretanto, a teoria marxista deixa de lado as questões de família e sexo
por se tratarem de assuntos privados e nada terem a ver com a produção. A
sugestão de que novas formas sexuais e familiares pudessem ser criadas pelas
mulheres enfrenta desaprovação, visto que tais discussões não eram consistentes
com o modelo sindicalista de organização dos trabalhadores, sendo tratadas
como atividades não produtivas (NYE, 1995).
Desse modo, embora nessas análises a ideologia ou o discurso estejam
relacionados com estruturas econômicas, as categorias analíticas feministas
devem pouco à teoria marxista, visto que esta não oferece uma explanação
histórica da opressão de mulheres ou um modo de situar a opressão em
realidades materiais específicas, nem um programa de ação. Não era possível,
assim, analisar a reprodução da personalidade humana na família porque na
teoria marxista não são as personalidades responsáveis pela mudança social.
Ademais, existe uma lacuna na exposição de Friedrich Engels sobre o
momento em que a estirpe feminina foi derrubada. Se as relações de
propriedade é que devem ser culpadas, para que estas não sejam um simples
demônio machista, como esclarece Nye (1995), deve-se explicar também o
porquê de as relações de propriedade terem sido constituídas em primeiro lugar
contra a comunidade, e especificamente entre os homens. Sem essas
explicações as ligações entre o sexismo e relações produtivas não prevalecem, e
a produção assume uma precedência automática que assegura a correção do
sexismo independente da real situação das mulheres. Assim, não tendo
explicado o fenômeno em questão, o marxismo é incapaz de elaborar um
programa adequado para a libertação das mulheres.
Por conseguinte, surge Beauvoir (1949) tentando repensar as condições
de existência feminina num contexto onde não sobra absolutos, nenhuma
certeza. Deus foi destronado pela razão científica, e agora a religião não tinha
nem mesmo a validade subjetiva de outrora. Ao mesmo tempo, a batalha pela
igualdade jurídica foi amplamente vencida; as mulheres votavam, podiam ter
comunalmente, quando a herança era através da mãe, quando o trabalho da mulher tinha mesmo valor
que o dos homens.A família, tal qual como conhecemos, nasceu com a propriedade privada, que também
causa “a derrota histórica mundial do sexo feminino”.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 27
propriedade, eram juridicamente iguais no casamento e a sociedade civil parecia
aceitá-las como membros atuantes.
Assim, o enfoque representado por Simone de Beauvoir em O segundo
sexo, não tinha como base ideológica a economia ou a política, mas a filosofia.
O existencialismo seria a perspectiva pela qual se teriam condições de
compreender a situação das mulheres. E isto será possível porque trata de
indivíduos humanos, e não de coletividades mudas como fazia a teoria marxista.
Assim, um feminismo existencialista poderia oferecer um estudo tanto da
opressão das mulheres como de sua emancipação.
Qualquer exame que Beauvoir faz em seu livro, envolve o
existencialismo. Para a autora, a luta de classes não é por si explicativa, pelo
contrário, a apropriação masculina da propriedade privada só é inteligível como
projeto do individuo de autoafirmação e transcendência. A autora afirma que a
alteridade da mulher é anterior às relações de propriedade e que esta se faz
necessária para obter o entendimento do por que as relações de propriedade
assumem as formas que têm.
Da perspectiva existencialista pode-se dar uma exposição alternativa
das origens do sexismo que responde à questão de por que não foram as
mulheres a firmar direitos de propriedade. Isso não se deve, dizia Beauvoir
(1949), a qualquer tipo de essência feminina, mas à situação da mulher.
Assim, se explica que a inferioridade da mulher não é natural,
fisiológica ou psicológica. A mulher não tem essência, tanto quanto nenhum ser
humano tem. A opressão das mulheres fica ainda mais poderosa naquilo em que
é mascarada por trás da natureza, por trás da crença de que o destino das
mulheres é a passividade, pois não se pode rebelar contra a natureza. Beauvoir
(1949) não negava a existência do feminino e do masculino, mas afirmava que a
aceitação dessas categorias (institucionalização na família e no trabalho) é que
perpetuavam a inferioridade das mulheres.
De acordo com Nye (1995), do existencialismo de Beauvoir surge o
feminismo radical, que herda uma fragilidade teórica que a torna inevitável na
prática. Segundo a autora, em primeiro lugar, o poder como artifício teórico é
por demais rústico para explicar a complexidade da interação humana. Mesmo
que fosse verdade que os homens precisem representar o papel opressor, como
afirmava Beauvoir (1949), as origens sociais e ideológicas dessa necessidade
devem ser examinadas. A teoria feminista radical não consegue explicar porque
desde o início da historia existencialista foram os homens que se afirmaram.

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Beauvoir (1949) recorreu ao determinismo biológico para tal esclarecimento: as
mulheres devem dar à luz e por isso estão em desvantagem, o que acaba por
enfraquecer tal linha de abordagem pela falta de inovação.
Entretanto, surge a perspectiva de que não é a “natureza” ou qualquer
realidade física que determinaria a posição inferior das mulheres, mas uma
diferença de “pensamento”, como afirmava Lacan (1982), acrescentando que a
única diferença real era que as mulheres não sabem o que estão dizendo.
Essa linha de pensamento, pertencente aos estruturalistas da linguagem,
observa que são comuns os pares de palavras semelhantes ao significado, mas
diferentes em relação ao gênero. Era de se esperar que o conteúdo semântico
dessas palavras não se alterasse, e que apenas o gênero mudasse, no entanto,
não é isso que acontece. Nye (1995) exemplifica as palavras “solteirona” e
“solteirão”, onde a primeira nada tem de aspecto satisfeito e requintado da
segunda, indicando mais fracasso e inatratividade.
Assim, segundo esta abordagem, fica a impressão de que não existem
palavras neutras com que se possa tentar indicar uma relação
masculino/feminino na qual a mulher seja dominante ou igual. Acredita-se que
poder e feminilidade são contraditórios, que o componente semântico da
dominância é masculinizado e que a inferioridade das mulheres é codificada na
linguagem.
Nesse diapasão, a força semântica dos sufixos femininos é semelhante
na vinculação de feminilidade e impotência. No aspecto da exemplificação, há
herói e heroína, garçons e garçonetes, sacerdote e sacerdotisa, poetas e poetisas.
A transição sexual é indicada na força diminutiva do sufixo acrescentado.
Nye (1995) aponta que os títulos são mais uma maneira de denotar a
diferença masculino/feminino codificada na linguagem. Cada indivíduo é
tratado como masculino (senhor) ou feminino (senhorita e senhora). Entretanto,
a diferença é assimétrica: o estado civil da mulher é codificado, ao passo que o
do homem não. Isto reflete a expectativa de que a identidade da mulher depende
da do seu marido.
O exemplo mais frequentemente criticado do sexismo linguístico é o
emprego genérico de “homem”. No caso, persiste a valorização do masculino,
não tanto a codificação da inferioridade do feminino. “Evolução do homem”,
“direito do homem” e expressões afins indicam que o ser propriamente humano
é masculino.
Dessa forma, esses e outros exemplos fizeram com que, na perspectiva

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 29
das linguísticas feministas, houvesse a conclusão de que a diferença de sexos
encontra-se embutida no vocabulário disponível, tornando improvável que, no
atual estado, essa linguagem possa ser um veículo de expressão das mulheres.

2 DOS QUESTIONAMENTOS À UTILIZAÇÃO DO CONCEITO EM


ÂMBITO JURÍDICO

Logo da sua entrada em vigência, a Lei nº 11.340/2006 suscitou


divergências quanto sua constitucionalidade, ficando esclarecido que a referida
lei fere o princípio da isonomia, na medida em que estabelece uma desigualdade
somente em função do sexo. Ademais, a mulher vítima seria beneficiada por
melhores mecanismos de proteção e de punição contra o agressor. Já o homem
não disporia de tais instrumentos quando fosse vítima da violência doméstica ou
familiar. Este era o entendimento de autores como Santin (2007) e Campos
(2007). Dessa forma decidiu aSegunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça
do Mato Grosso do Sul (TJMS):

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
– DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE
INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N.
11.340/2006 – RECURSO MINISTERIAL – PEDIDO
DE MODIFICAÇÃO DA DECISÃO
MONOCRÁTICA QUE DECLAROU A
INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N.
11.340/2006 – VÍCIO DE
INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃO AOS
PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E
PROPORCIONALIDADE – DECISÃO MANTIDA –
COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL
CRIMINAL – IMPROVIDO.
A Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) está
contaminada por vício de inconstitucionalidade,
visto que não atende a um dos objetivos da
República Federativa do Brasil (art. 3º, IV da CF),
bem como por infringir os princípios da igualdade

30 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
e da proporcionalidade (art. 5º, II e XLVI, 2ª parte,
respectivamente). Assim, provê-se o recurso
ministerial, a fim de manter a decisão que declarou a
inconstitucionalidade da Lei n. 11.340/2006,
determinando-se a competência do Juizado Especial
Criminal para processar e julgar o feito. (grifou-se)

Entretanto, fica claro o equívoco realizado diante da ausência de


conhecimento acerca do conceito de gênero, onde se relacionam não os aspectos
fisiológicos do sexo, mas os sociológicos. Assim, no ano de 2012, o Superior
Tribunal Federal alegou procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade
19 (ADC 19), onde, por unanimidade, declarou a constitucionalidade dos
artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/2006, propiciando uma interpretação
judicial uniforme dos dispositivos contidos nesta lei. Assim, está afastada
qualquer dúvida quanto à constitucionalidade da Lei Maria da Penha.
Outra questão suscitada a partir das previsões da Lei Maria da Penha se
constitui no questionamento sobre a possibilidade de este instrumento legal ser
aplicado em virtude da proteção do homem. A questão deve ser analisada, mais
uma vez, utilizando-se o conceito de gênero, ou seja, vislumbrando não os
aspectos fisiológicos do sexo, mas sociais.
No que tange à violência da mulher contra o cônjuge, companheiro ou
namorado, é fato que tal agressão distingue-se, e muito, da praticada pelo
homem, seja em virtude da menor intensidade, finalidade, motivos ou
contextos. Um dos aspectos mais importantes da violência doméstica de gênero
diz respeito à “sensação de temor contínuo a uma ameaça onipresente e
onipotente” (BIANCHINI,2013), o que possibilita medidas mais enérgicas e
efetivas realizadas exclusivamente para proteger o gênero feminino em situação
de violência doméstica. Assim, Bianchini (2013) esclarece que a aplicação da
Lei Maria da Penha ao homem vítima de violência praticada em contexto
doméstico é indevida, visto a não incidência dos principais fundamentos e
especificidades da violência de gênero para aplicação da lei. Dessa forma vem
sendo decidido em diversos Tribunais brasileiros, entre os quais o TJPB e
TJMG:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. Vara


Criminal versus Juizado Especial Criminal. Violência

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 31
doméstica e familiar. Crime, em tese, de lesão
corporal leve. Vitima do sexo masculino. Alteração da
redação do §9° do artigo 129 do Código Penal. Pena
abstrata superior a 02 (dois) anos. Inaplicabilidade da
Lei n.º 11.340/06. Lei Especial que ampara,
exclusivamente, a violência praticada contra a mulher
no âmbito doméstico e familiar. Competência do Juízo
Comum. (TJPB. Processo nº.2011.003798-1/0011.
Rel. Dr. Onaldo Rocha de Queiroga. Data do
julgamento: 27/03/2012. Data da publicação:
02/03/2012).

PROCESSO PENAL - CONFLITO DE


JURISDIÇÃO – LESÃO - CORPORAL - ÂMBITO
DOMÉSTICO OU FAMILIAR – PRÁTICA
CONTRA HOMEM - LEI MARIA DA PENHA -
INAPLICABILIDADE. DECLARADA A
COMPETÊNCIA DA JUÍZA SUSCITANTE. De
acordo com o disposto no art. 1°, da Lei n° 11.340/06,
o referido diploma legal visa coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo,
tratando-se a vítima de homem, não há como se
aplicar a mencionada lei. (TJMG. Processo n.°
0610666-28.2010.8.13.0000. Relator: Des. Herbert
Carneiro. Data do julgamento: 12.01.2011. Data da
publicação: 27.01.2011).

Por outro lado, Bianchini (2013) esclarece que a aplicação da Lei


Maria da Penha para vítima transexual masculina foi reconhecida na decisão
oriunda da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis (Proc. 201.103.873.908,
TJGO), trazendo como motivações: a realização da cirurgia de redesignação
sexual torna a pessoa do sexo feminino, no que tange o seu “sexo social”; o
gênero é construído no decorrer da vida e se refere ao estado psicológico, de
forma que o transexual não se confunde com homossexual, pois este não nega
seu sexo. Bianchini (2013) acrescenta, ainda, que para o amparo da lei, não se
faz necessária a mudança de nome, com alteração do registro de identidade.

32 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
No que tange às relações homoafetivas, ressalta-se que estas foram
englobadas no conceito de família da Lei 11.340/2006, visto a determinação de
seu art. 5º de que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual”, assim como o seu art. 2º preceitua que

“(...) Toda mulher, independente de (...) orientação


sexual, (...) goza dos direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sendo-lhes asseguradas as
oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.
(BRASIL, 2006)

Da mesma forma, Rodolpho (2009) assevera:

“Com advento da Lei Federal nº 11.340, que entrou


em vigor em agosto de 2006, temos um avanço
positivo em relação ao novo conceito de entidade
familiar. Esta nova lei, conhecida como “Lei Maria
da Penha”, criou mecanismos para coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas,
não só regulamentou a violência no âmbito
doméstico como trouxe uma carga ideológica
inovadora, pois permitiu uma interpretação de
reconhecimento da entidade familiar entre pessoas
do mesmo sexo. [...] Hoje, a família é entendida sob
uma nova visão, como um núcleo de afetividade,
portanto, o afeto não está restrito às uniões
heterossexuais. Desse modo, os relacionamentos de
pessoas do mesmo sexo, que mantêm uma relação
baseada na afetividade, devem ter a merecida
pretensão e reconhecimento previstos na Constituição
Federal”. (grifou-se)

Assim, vítimas de violência doméstica oriundas de relações


homoafetivas, sejam lésbicas ou homossexuais, possuem o respaldo e proteção

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 33
dos institutos da Lei nº 11.340/2006, devido à utilização e correto entendimento
do conceito de gênero acerca da caracterização da incidência dessa violência
regulamentada pela lei. E, mais uma vez, dessa forma vem decidindo os
tribunais pátrios:

RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO ENTRE


MULHERES. LESÕES CORPORAIS. LEI MARIA
DA PENHA. APLICABILIDADE. Enquanto em
relação ao sujeito passivo a Lei elegeu apenas a
mulher, no polo ativo das condutas por ela
compreendidas encontram-se homens ou mulheres
que pratiquem atos de violência doméstica e familiar
contra mulheres. Dessa forma, se mulher com
relacionamento homoafetivo sofre lesões corporais
praticadas por sua companheira, no âmbito doméstico
e familiar, aplica-se a Lei Maria da Penha em todos os
seus termos. (TJMG, RSE 7918639-
66.2007.8.13.0024, 7ª C. Crim., Rel. Des. Duarte de
Paula, p. 17/06/2011)
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA. RELAÇÕES HOMOAFETIVAS.
OFENDIDA MULHER. GÊNERO INDEPENDE DA
ORIENTAÇÃO SEXUAL. COMPETÊNCIA DA
VARA ESPECIALIZADA. 1- A Lei nº 11.340/06
destina-se a proteger a mulher de violência doméstica,
não importa sua opção sexual, nem que envolva
relações homoafetivas e a agressora seja outra mulher.
2- O artigo 5º da Lei estabelece como âmbito de
incidência a proteção da mulher na unidade
doméstica, abrangendo os indivíduos que nela
convivem ou qualquer relação de afeto, vínculo
familiar, mesmo que não mais coabitem independente
da orientação sexual. A Lei não é limitada pelo gênero
do agressor, sua finalidade é sempre proteger a
mulher, independente de opção sexual (parágrafo
único do artigo 5º). 3- Competente a Vara de Violência

34 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Doméstica exercida na Comarca pela Vara de Família.
Conflito procedente. (TJRS, Conf. Jurisd.
70036742047, 3ª C. Crim., Rel. Desa. Elba Aparecida
Nicolli Bastos, j. 22/07/2010).

Cumpre esclarecer que, no que diz respeito às relações homossexuais


entre homens existem algumas especificidades quando tratamos da incidência
da Lei Maria da Penha. Parodi & Gama (2009) asseveram que, de fato a
analogia autoriza a proteção do homem quando vítima de violência doméstica
desde que este conviva com outro homem formando um casal homossexual. As
decisões dos principais tribunais tendem a seguir no mesmo sentido,
autorizando a aplicação com base no princípio da isonomia. Segundo o
entendimento do TJRS, de acordo com o Juiz de Direito Osmar de Aguiar
Pacheco, em decisão referente à temática, o art. 5º da Constituição Federal
brasileira prevê que, em situações iguais, as garantias legais valem para todos,
acrescentando que "todo aquele que é vítima de violência, ainda mais a do tipo
doméstica, merece a proteção da lei, mesmo que pertença ao sexo masculino".
Seguindo o mesmo entendimento, o TJRJ decidiu em 2011 (processo nº
0093306-35.2011.8.19.0001), a devida aplicação de medidas protetivas
previstas na Lei 11.340/2006 em caso de agressão entre homens que formavam
um casal homossexual, a qual segundo o Juiz de Direito Alcides da Fonseca
Neto da 11ª Vara Criminal do Rio de Janeiro:

“A especial proteção destinada à mulher pode e deve


ser estendida ao homem naqueles casos em que ele
também é vítima de violência doméstica e familiar, eis
que no caso em exame a relação homoafetiva entre o
réu e o ofendido, isto é, entre dois homens, também
requer a imposição de medidas protetivas de urgência,
até mesmo para que seja respeitado o princípio
constitucional da isonomia”.

Cumpre salientar que a aplicação da Lei Maria da Penha em casos de


violência doméstica entre casais homossexuais masculinos é devida e que sua
fundamentação também está relacionada à utilização da teoria de gênero na
conceituação de violência doméstica dada pela Lei Maria da Penha. Segundo

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 35
Swain (2001) os homens gays são definidos em termos de ausência de suas
masculinidades, apresentando certa identificação com o feminino, no momento
em que o indivíduo é dominado por outro homem como se fora uma mulher. Por
outro lado, Torrão Filho (2004) assevera que em muitos países da América
Latina a homossexualidade masculina é vista sob uma dupla moral, sendo ativos
e passivos encarados de maneira diferente. Assim, podem existir relações
homossexuais em que um indivíduo assuma papel vulnerável, submisso,
identificado, geralmente, pela passividade inerente à construção social do papel
feminino nas relações.
Nunan (2004) esclarece que, no caso dos homossexuais, as dificuldades
de se conviver e abandonar uma relação violência podem ser as mesmas ou até
piores do que em uma relação heterossexual. A autora indica que assumir uma
relação violenta significa, na maioria dos casos, revelar sua orientação sexual
para uma série de indivíduos (polícia, psicólogos, médico, família), atitude
extremamente difícil de ser tomada, visto a existência inegável de preconceito
por parte de parcela da sociedade diante das relações homoafetivas. Por outro
lado, ao contrário dos casais heterossexuais, gays e lésbicas tendem a estar mais
alienados de suas famílias de origem devido justamente ao preconceito
associado à sua orientação sexual, fazendo, assim, com que deem ainda mais
valor aos seus relacionamentos e estes podem ser suas únicas fontes de suporte
emocional. Dessa forma, Nunan (2004) classifica o rompimento com o parceiro
como um dos eventos mais estressantes para os homossexuais.
Dito isso, é inegável a correta aplicação dos institutos da Lei Maria da
Penha em casos de violência doméstica no seio de relações homossexuais,
mesmo quando se lida com uma parceria masculina, tendo sempre como
fundamento a relação entre os gêneros, e lembrando que esta se refere a uma
construção social dos papéis do homem e da mulher, e não apenas às questões
fisiológicas (macho/fêmea).
Portanto, é possível visualizar que as relações entre gênero e a ciência
jurídica estão cada vez mais acentuadas, seja pela implementação de leis que
tragam em seu conteúdo estas afinidades ou por decisões dos Tribunais
Superiores e Estaduais de todo o país que buscam seu fundamento nesta teoria.
A Lei nº 11.340/2006 realizou grandes inovações no que diz respeito à violência
de gênero, além de trazer um novo conceito de família, ao asseverar que as
relações protegidas por seu âmbito independem de orientação sexual, servindo,
mais tarde, entre outras coisas, para basilar o entendimento do Supremo

36 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Tribunal Federal de que as uniões homoafetivas também constituem entidade
familiar (ADI 4277e ADPF 132).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ponto de vista lúcido sobre a real função do direito ainda é incipiente


no campo dos estudos jurídicos, persistindo a visão de que essa ciência se
baseia em um discurso regulador neutro, voltado para sujeitos abstratos e
homogeneizados. Por outro lado, as inovações e contribuições indicadas pela
crítica feminista ao direito não consistiram em apenas introduzir teorias ou
conceitos em seu objeto de estudo, mas, sobretudo trouxe à reflexão temas que
antes eram marginalizados, enfatizando, assim matérias que haviam sido
deixadas no esquecimento.
Com o intuito de eliminar a condição de subordinação das mulheres em
diversos níveis sociais, a teoria feminista contribui incisivamente para o
desenvolvimento de políticas tanto sociais quanto jurídicas que visem à
proteção e emancipação do gênero feminino em meio à sociedade. Dessa forma,
as interações entre a ciência jurídica e as teorias de gênero e o feminismo
acabam por desmistificar julgamentos fundados em conceitos pré-concebidos,
construídos socialmente, e que setores conservadores da sociedade insistem em
perpetuar.
Portanto, é de extraordinária importância que antes que se inicie o
estudo dos institutos e aspectos da Lei Maria da Penha compreendam-se as
relações de gênero. Ademais, essa abordagem, que possibilita a interlocução
entre gênero e direito, se constitui em condição para uma prática jurídica crítica,
sendo esta extremamente necessária em meio à realidade de nosso país.

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40 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Atuação político-pedagógico das Assessorias Jurídicas
Universitárias Populares e a concretização do Acesso à
Justiça

Janderson Welligton Sousa Clemente*


Rodrigo Portela Gomes**

RESUMO: O direito de Acesso à Justiça, previsto constitucionalmente no


artigo 5º, XXXV, da CF, sem prejuízo de outras previsões, inclusive
infraconstitucionais, estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Contudo, fatores econômicos, culturais e
psicológicos impedem a concretização desse direito e, muito embora haja
tentativas de superação desses obstáculos, não se verificou, ainda, mudança
significativa. É preciso, portanto, caracterizar as Assessorias Jurídicas
Universitárias Populares dentro desse processo de estímulo à efetivação dessa
garantia constitucional, como forma de desmistificar os paradigmas que
obstaculizam a concretização desse Direito, bem como da própria ordem
constitucional.

Palavras-chave: Acesso à Justiça; Ajup; Ensino Jurídico; Direitos


Fundamentais; Educação Popular.

ABSTRACT: The Right of Access to Justice, constitutionally referred to in


Article 5, XXXV, the CF, without prejudice to other provisions, including infra,
states that "the law does not exclude consideration of the Judiciary injury or
threat to a right." However, economic, cultural and psychological impede the
realization of this right and, although there are attempts to overcome these
obstacles, there was also a significant change. It is necessary, therefore, to
characterize the Legal Services Popular College within that process stimulus to

* Graduando do Curso de Direito do Instituto Camillo Filho; integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica
Universitária Comunitária Justiça e Atitude – NAJUC JA e RENAJU.
** Graduando do Curso de Direito do Instituto Camillo Filho; integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica
Universitária Comunitária Justiça e Atitude – NAJUC JA e RENAJU; componente do Grupo de pesquisa
e extensão Direitos Humanos e Cidadania UFPI/DCJ

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 41
effect this constitutional guarantee, as a way to demystify the paradigms that
hinder the realization of this law and the constitutional order itself.

Keywords: Access to Justice; Ajup; Legal Education; Fundamental Rights;


Popular Education.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado da atuação do Núcleo de Assessoria


Jurídica Universitária Comunitária Justiça e Atitude (NAJUC JA), projeto de
extensão do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Prof. Camillo Filho, no
Bairro Olarias, em Teresina-PI. A comunidade, dentre outras doze, está
enfrentando problemas de toda ordem em razão da implementação de políticas
públicas neodesenvolvimentistas pela Prefeitura Municipal de Teresina (PMT).
Cite-se, a título de exemplo, o Programa Lagos do Norte, um
megaempreendimento financiado pelo Banco Mundial e Governo Federal, e que
atinge diretamente a comunidade, que se vê silenciada e esquecida em seus
direitos e, por via de consequência, sem nenhuma perspectiva de acesso à
justiça.
No primeiro momento, analisaremos o Direito de acesso à Justiça,
fazendo progressivamente uma ampliação do seu conceito, com o objetivo de
construir uma concepção dessa garantia constitucional, conforme o novo
momento de interpretação constitucional caracterizado pela atribuição
valorativa das normas constitucionais. Nesse sentido, apresentaremos como o
Acesso à Justiça é compreendido pela doutrina processualista, questionando a
literalidade dessa interpretação e apontando a necessidade de sua ampliação, em
razão do fenômeno da constitucionalização do Direito. Em seguida, a análise do
Acesso à Justiça passa ao âmbito constitucional, de forma a caracterizá-lo
dentro da distinção entre regras e princípios, enquanto direito fundamental e,
portanto, como pilar do Estado Democrático de Direito. Parte-se, então, para a
apresentação e análise das dificuldades de concretização do direito de Acesso à
Justiça, bem como das tentativas de superação impostas e desenvolvidas na
realidade social.
Na segunda parte da nossa reflexão, passaremos a analisar os recentes
movimentos de contestação ao conservadorismo jurídico, nascidos no seio da
Universidade, como forma de aproximação entre Direito e comunidade,

42 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
seguindo, como princípio, a Educação Popular, e assumindo uma postura
política clara, qual seja a defesa daqueles que, historicamente, foram e são
marginalizados, excluídos material, moral e politicamente. A reflexão almejada,
portanto, compreenderá a construção das chamadas Assessorias Jurídicas
Universitárias Populares (AJUP’s), buscando situá-las no contexto do seu
surgimento e conduzindo a um diálogo acerca de seus elementos vitais com o
fito de caracterizá-las como uma práxis insurgente, respeitosa e política.
Nessa linha, tentaremos fazer uma relação entre a atuação das AJUP’s e
os meios de concretização da garantia constitucional de Acesso à Justiça,
enquadrando essa prática extensionista estudantil como alternativa para o
“empoderamento” daqueles que, por muito tempo, estiveram distantes e
receosos do aparato judicial, dando-lhes voz, força e fôlego para romper as
amarras desse sistema econômico-social que oprime e desumaniza.

2 O DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA

Interessa, como ponto de partida para a reflexão que se fará neste


trabalho, compreender a garantia constitucional do Acesso à Justiça, de forma a
delimitá-lo dentro da lógica do nosso ordenamento jurídico, apresentando,
ainda, a sua importância para a concretização dos pilares democráticos, que
devem sustentar os Estados contemporâneos, e a problemática de sua
efetivação, que põe em cheque a coerência da atuação do Poder Público no
cumprimento de sua obrigação de manter, desenvolver e estimular o bem-estar
social.
O Direito de Acesso à Justiça vem consagrado no nosso ordenamento
jurídico, sem prejuízo de outras disposições de índole infraconstitucional, no
inciso XXXV do artigo 5º da CF, segundo o qual, “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, além da previsão no
artigo 8º, 1 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos – Pacto de
São José da Costa Rica, que dispõe: “Toda pessoa tem direito de ser ouvida,
com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na
apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determine seus
direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
natureza”.
Após essa rápida apresentação dos principais dispositivos que

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contemplam a garantia do Acesso à Justiça, passaremos a fazer a análise do
mencionado direito sob três perspectivas, com o escopo de chegarmos a um
conceito, ou senão – considerando que tal objetivo reflete uma verdadeira
ousadia –, a, pelo menos, uma noção que possibilite o delineamento da reflexão
visada por este excerto.

2.1 Sob os limites do processualismo

Pela doutrina processual civil, o direito de Acesso à Justiça constitui-se


na possibilidade de exigir do Estado uma resposta efetiva e útil quando houver
uma lesão ou ameaça de lesão a qualquer direito, ficando ressalvadas certas
hipóteses excepcionais. Nesse sentido, para Alexandre Câmara, a garantia do
acesso à justiça consiste no “direito de demandar perante os órgãos
jurisdicionais do Estado, seja qual for a causa que se queira deduzir perante
estes” (CÂMARA, 2008, p. 46).
Faz-se, assim, uma interpretação meramente declarativa do dispositivo
constitucional e que, irremediavelmente, resta insuficiente dado o dinamismo
que marca as relações sociais contemporâneas. Está, portanto, justificada a
necessidade de ampliação da noção de acesso à justiça, especialmente quando
consideramos que a interpretação das normas, no novo momento da
hermenêutica constitucional (por muitos, chamado de Neoconstitucionalismo),
deve ter como farol a principiologia constitucional, isto é, a ordem jurídica e
valorativa que representa um povo de determinado lugar em determinada época.
Não se pode perder de vista, ainda, que todas as normas jurídicas,
independente de sua hierarquia, devem manter entre si uma relação de
coerência, formando um conjunto marcado pela unidade, de forma que uma
norma não poderá ser interpretada isoladamente, mas sempre em conformidade
com as outras disposições do ordenamento jurídico. Dessa forma, é preciso que
a leitura feita do inciso XXXV, do artigo 5º, da CF não ignore as diversas
normas igualmente constitucionais que contemplam garantias de ordem social e
de importância vital para a construção de um Estado Democrático de Direito.
Como se pôde perceber, o que há, na doutrina processual civil, é o
apego à interpretação tradicional, caracterizada pela literalidade, pela atuação
reduzida do intérprete (que tão somente é a “boca da lei”), e pela mera e
insuficiente subsunção do fato à norma sem qualquer tentativa de
aprofundamento com vistas a identificar todas as facetas do Acesso à Justiça

44 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
dentro do conjunto principiológico encabeçado pela Constituição Federal de
1988, em descompasso com as novas concepções interpretativas emanadas a
partir do Pós-positivismo.
Ademais, há que se notar uma confusão conceitual verificada na
doutrina processualista: as principais obras deste ramo do Direito tratam como
sinônimos o princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional e o Direito
de Acesso à Justiça. A título de exemplo, tome-se o que diz Marcus Vinícius
Rios Gonçalves, ao comentar o inciso XXXV, do art. 5º, da CF, destacando que
se trata do princípio da Inafastabilidade da Jurisdição: “Esse dispositivo garante
a todos o acesso à justiça para postular e defender seus interesses, por meio de
tutela específica” (GONÇALVES, 2010, p.29).
Malgrado seja certo que ambos podem ser extraídos do mesmo
dispositivo (art. 5º, XXXV, CF), é importante fazer a distinção. Assim, o
Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição consiste, a nosso ver, na necessária
apreciação pelo Poder Judiciário das demandas de interesse jurídico que sejam
colocadas sob a sua averiguação, de modo que, não se permitirá a criação de
quaisquer obstáculos tendentes a impedir ou dificultar o exercício de tal
prerrogativa de interesse público. Por outro lado, o Direito de Acesso à Justiça é
mais amplo, uma vez que não basta o posicionamento do Judiciário, mas
também que seja colocada, à disposição de todos os cidadãos, uma ordem
jurídica justa. Sob essa perspectiva, a via judicial não seria a única forma de
obter uma resposta estatal quando houver lesão ou ameaça a lesão de direitos.
Em importante trabalho a cerca do tema, Fernando Pagani Mattos,
explica que:

A expressão “Acesso à Justiça” é objeto de várias


conceituações, podendo significar desde o acesso aos
aparelhos do poder Judiciário, simplesmente, até o
acesso aos valores e direitos fundamentais do ser
humano. A segunda, por ser mais completa e abranger
a primeira, sugere ser a mais adequada. Trata-se, não
obstante a importância dos aspectos formais do
processo, de um Acesso à Justiça que não se esgota no
judiciário, mas representa também e primordialmente
o acesso a uma ordem jurídica justa (MATTOS, 2007
p. 60-61).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 45
O referido autor, em seguida, ressalta essa concepção ao afirmar que o
poder judiciário, “por si só, não consegue promover com exclusividade o
mencionado acesso” (MATTOS, p. 63). É claro que as resoluções de conflitos
sociais demandam muito mais do que simplesmente a aplicação da lei, passando
por questões outras que serão apontadas mais adiante, e que derrubam os
paradigmas da neutralidade e imparcialidade que supostamente caracterizariam
o Direito.

2.2 A flexibilização constitucional

Uma vez identificada a forma como a doutrina processualista entende o


direito de acesso à justiça, passaremos, agora, a analisar a referida garantia sob
o ponto de vista constitucional, como tentativa de minimizar as limitações aqui
apontadas, na busca, conforme já exposto, de construir um conceito ou
concepção adequada às demandas sociais e complexidades características da
contemporaneidade.
Considerando que as normas constitucionais podem ser de dois tipos –
regras e princípios – é importante situar o Acesso à Justiça em uma dessas duas
categorias, vez que tal caracterização implica em regimes jurídicos diferentes
que levam, por isso mesmo, a consequências não menos diferenciadas.
Estamos seguindo, para a mencionada caracterização, a linha de
pensamento de Ronald Dworkin, que, considerando como necessária a
reaproximação entre Direito e Ética – ou, melhor dizendo –, Direito e Moral,
compreende que as normas do tipo regra são aquelas que se aplicam pela lógica
do “tudo ou nada”, isto é, por critérios de exclusão. Assim, quando há duas
normas igualmente aplicáveis a uma demanda jurídica posta sob a averiguação
do Poder Judiciário, o intérprete deverá escolher entre uma e outra, tendo, como
parâmetro, a hierarquia, cronologia ou especialidade de cada uma delas, ou,
ainda, a importância do princípio que as patrocina.
Os princípios, por outro lado, são as normas que não estão submetidas a
essa aplicação automática e/ou vinculante, uma vez que carregam em si uma
carga valorativa impossível de delimitação hermética. Consequentemente, não
há que se falar, em caso de possível aplicação de mais de um princípio ao
mesmo caso concreto, em anulação de um princípio por outro, de forma que o
magistrado, verificando o aparente conflito, deverá estabelecer pesos a cada um

46 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
dos princípios conforme elementos de natureza moral e só, então, dar resposta à
demanda jurídica. A escolha do intérprete – reafirma-se – não significa a
inaplicabilidade do princípio de menor peso, mas sim a preponderância, no caso
específico, do princípio de maior peso, isto é, de forma alguma haverá o
enfraquecimento do princípio não aplicado ou, mesmo, a sua menor valorização
dentro da ordem jurídica.
Entendida essa sucinta distinção entre as duas categorias de normas
constitucionais, é forçoso reconhecer que o Acesso à Justiça caracteriza-se
como uma norma do tipo princípio, pois transporta um importante valor da
ordem jurídica brasileira, qual seja o direito que cabe a todos os cidadãos e a
todas as cidadãs de buscar uma resposta estatal quando tiverem seus direitos
lesionados ou ameaçados de lesão. Ademais, mesmo toda a dificuldade de
concretização, que detalharemos mais adiante, não consegue arranhar a
possibilidade e necessidade de sua aplicação, de forma que toda e qualquer
atuação estatal deverá estar de acordo com a garantia do acesso à justiça.
Compartilhando com nossa posição, afirma Fernando Pagani Mattos que “o
Acesso à Justiça abrange todas as áreas do poder, de maneira que os cidadãos
possam exercer seus direitos inclusive frente a atividades estatais. Desse modo,
garantem-se os fundamentos da democracia e da estrutura de um Estado
fundado sobre suas bases” (MATTOS, 2007, p. 73).
Além de princípio constitucional, o Acesso à Justiça é, também, direito
fundamental por seu caráter de essencialidade a todo e qualquer cidadão
brasileiro e por sua estreita relação com o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, dentre outras coisas. Mais que isso, podemos afirmar que o Acesso à
Justiça é um dos mais importantes – senão, o mais importante – dentre os
direitos fundamentais, uma vez que é pressuposto para a concretização de
diversas garantias constitucionais, sejam de índole individual ou coletiva. Nesse
sentido,

A expressão “Acesso à Justiça” pode ser reconhecida


hoje como condição fundamental de eficiência de um
sistema jurídico que vise a garantir direitos. Assim,
calcado em modalidades igualitárias de direito e
justiça, tal instituto deve ser considerado o mais
básico dos direitos fundamentais do ser humano
(MATTOS, 2007, p. 70-71).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 47
Partindo dessas considerações, não se pode afirmar tão somente, como
fazem alguns processualistas, que o Acesso à Justiça é a possibilidade de levar
uma demanda jurídica à apreciação do Poder Judiciário. Tal conceituação é, por
demais, reducionista e, por isso, não reflete a real abrangência comportada por
essa garantia constitucional, podendo, inclusive, implicar em nefastas
consequências práticas.
Entendemos que, nesse ponto da reflexão que aqui se desenvolve, já
podemos aventurar-nos na tentativa de conceituar o direito de Acesso à Justiça,
a partir de todas as ponderações anteriores. O inciso XXXV, do art. 5º, da CF,
contempla, portanto, o princípio constitucional que deve iluminar toda a atuação
estatal e, ao mesmo tempo, o direito fundamental de acesso a instrumentos
jurídicos, sejam formais ou não, que possibilitem a reclamação pelo cidadão e
pela cidadã em razão de violação de seus direitos garantidos em uma ordem que
tem como fundamento o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Assim, fica notório o papel que o direito de acesso à justiça exerce no
sentido de fazer com que as promessas que o constituinte de 1988 previu como
essenciais para a construção de um Estado Democrático de Direito – e, portanto,
de uma ordem jurídica justa – sejam efetivadas, na tentativa de concretização
dessa sistemática constitucional.

2.3 Empecilhos ao direito de Acesso à Justiça e as tentativas de sua


superação

Não obstante, conforme se destacou, a importância vital da


concretização do Direito de Acesso à Justiça, há diversos fatores que o
inviabilizam, o que é potencializado quando aquele que busca a ordem jurídica
para a defesa de direito é pessoa de camada social desfavorecida
economicamente. Fala-se, aqui, daquelas pessoas que, historicamente, foram
desprovidas de atenção estatal e que, em geral, moram em zonas periféricas das
cidades, em condições precárias e bem longe da “potencial” sociedade que é
declarada na CF/88.
Imediatamente, podemos apontar o alto custo da via processual como
um dos principais aspectos impeditivos da concretização do Direito de Acesso à
Justiça. Custas processuais, honorários advocatícios, sucumbência, dentre outras
taxas, oneram intensamente o acesso à resposta jurisdicional. Essa situação é

48 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
agravada pela reconhecida morosidade do Judiciário brasileiro, em
descompasso com o princípio da duração razoável do processo, o que leva a
custos ainda maiores e, por vezes, à desistência da parte. Com muita
propriedade, afirma Boaventura de Sousa Santos que:

(...) a justiça civil é cara para os cidadãos em geral,


mas revela, sobretudo, que a justiça civil é
proporcionalmente mais cara para os cidadãos
economicamente mais débeis. É que são eles
fundamentalmente os protagonistas e os interessados
nas acções de menor valor e é nessas acções que a
justiça é proporcionalmente mais cara, o que
configura um fenômeno da dupla vitimização das
classes populares face à administração da justiça
(SANTOS, 2003, p. 168).

Deve-se lembrar, ainda, que o ponto de partida para o exercício da


cidadania é o conhecimento por parte do cidadão dos direitos que lhe são
garantidos. Mas, questiona-se: como efetivar essa cidadania se a grande maioria
dos brasileiros não conhece e nem tem como conhecer os seus direitos? Se,
mesmo para bacharelados em Direito, não é fácil extrair o sentido das normas
jurídicas, imagine para os milhões de brasileiros que não tiveram a seu dispor
um sistema educacional de qualidade e que acabaram integrando as torturantes
estatísticas do analfabetismo. Ora, se o sujeito não consegue ler um texto ou ler
o mundo, como poderá compreender quais os instrumentos mais adequados à
defesa dos seus direitos fundamentais?
Boaventura de Souza Santos, mais uma vez, é categórico nesse ponto:

(...) os cidadãos de menores recursos tendem a


conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais
dificuldades em reconhecer um problema que os
afecta como sendo problema jurídico. Podem ignorar
os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de
reparação jurídica. (...) mesmo reconhecendo o
problema como jurídico, como a violação de um

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 49
direito, é necessário que a pessoa se disponha a
interpor a acção. Os dados mostram que os indivíduos
das classes baixas hesitam muito mais que os outros
em recorrer aos tribunais, mesmo quando reconhecem
estar perante um problema legal. (SANTOS, 2003, p.
170).

Tal problemática é reflexo do modelo de educação adotado pelas nossas


instituições de ensino, em todos os seus níveis, que ignoram a problematização,
a crítica, a condição de sujeito histórico do educando e a sua potencialidade de
participação, vendo-o como instrumento do processo de ensino-aprendizagem,
ou, ainda, como depósito de informações que deverão tão somente ser
reproduzidas, sem, mais uma vez, qualquer tipo de problematização. É claro que
essa escolha política do método de educação contribui substancialmente para a
naturalização da concepção de que somente os “operadores jurídicos” têm
condições de conhecer o Direito e, mais, para a formação de profissionais
jurídicos apegados ao formalismo, que se afastam das ponderações éticas e da
noção mais basilar de justiça. Grande crítico desse método de ensino, o qual
chamou de “Educação bancária”, Paulo Freire explica:

Nela, o educador aparece como seu indiscutível


agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa
indeclinável é “encher” os educando dos conteúdos de
sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade
desconectados da totalidade em que se engendram e
em cuja visão ganhariam significação. A palavra,
nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta
que devia ter ou se transforma em palavra oca, em
verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais
som que significação e, assim, melhor seria não dizê-
la (FREIRE, 1987, p.37).

A própria organização geográfica do Poder Judiciário nas cidades


brasileiras é outro ponto que intensifica a dificuldade a concretização do Direito
de Acesso à Justiça. O que se constata é que, em regra, os órgãos do Judiciário
encontram-se localizados em regiões centrais, bem distantes das periferias, onde

50 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
ocorrem, diariamente, diversas lesões a direitos garantidos constitucionalmente.
É nessas localidades em que verificamos a grande deficiência de moradia,
saneamentos básico, transporte público, educação, saúde, dentre tantas outras. E
é nessas localidades, também, onde constatamos a grande ausência estatal,
obrigando o morador, para a tutela de seus direitos, a percorrer grandes
distâncias e a inserir-se em um ambiente completamente estranho a sua
realidade social, sujeitando-se a toda sorte de perigos e preconcepções.
E não se pode perder de vista que a linguagem do Direito, por si só,
afasta o popular, com o uso de brocardos característicos do âmbito jurídico e
que andam longe da realidade das pessoas de camadas sociais menos
favorecidas, além, é claro, da forma padronizada de vestir-se dos “operadores
do Direito”. Esses fatores impõem no popular um sentimento de inferioridade
perante os protagonistas do tecnicismo jurídico, o que faz com que ele enxergue
“o poder judiciário como um objeto distante, inacessível, que não pertence à sua
realidade” (RODRIGUES, 1993, p. 44).
Por fim, destacamos, ainda, que, como resultado de todos esses aspectos
apontados como sendo obstáculos à concretização do direito de acesso à justiça,
é comum àqueles que sempre ficaram de fora das políticas públicas, e foram
silenciados nas reclamações de seus direitos, sentirem certo receio, quiçá um
temor, em relação aos “operadores” do Direito. Pela experiência no Núcleo de
Assessoria Jurídica Universitária Comunitária Justiça e Atitude (NAJUC JA),
pôde-se verificar essa situação: os integrantes do Núcleo, em atuação no Bairro
Olarias, em Teresina-PI, propuseram aos moradores uma reunião com um
Defensor Público que, voluntariamente, havia se colocado para falar com eles
sobre Direito à Moradia; a reação foi de muita desconfiança, tão somente por
ser o defensor público figura representativa de uma estrutura estatal que os
oprime.
Esses são apenas alguns pontos, dentre tantos outros, que poderiam ser
levantados para demonstrar como a garantia do Acesso à Justiça está longe de
ser concretizada, mas isso não significa que nunca houve o dispêndio de
esforços nesse sentido. Conforme o entendimento de Cappelletti, houve três
momentos em que se verificaram ações estatais com o escopo de minimizar a
dificuldade de concretização do acesso à Justiça. O referido autor chamou esses
momentos de as três “Ondas” do Acesso à Justiça (CAPPELLETTI, 2002).
Infelizmente, não poderemos realizar uma reflexão mais aprofundada a
cerca do tema, dada as limitações deste excerto, mas de forma sucinta, podemos

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 51
afirmar que a Primeira Onda foi marcada pelos esforços no sentido de
minimizar os problemas decorrentes da falta de recursos financeiros de grande
parte da população, por meio, por exemplo, da instituição das Assistências
Judiciárias. A Segunda Onda objetivou a operacionalização dos chamados
“Novos direitos”, ou seja, aqueles que consubstanciam interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos, concedendo, por exemplo, ao Ministério
Público, a legitimidade para a sua tutela jurisdicional. A terceira Onda, por sua
vez, surge e desenvolve-se com o nascimento e crescimento de novas
concepções do Direito, que contestam o rigor processualista, apostando em vias
alternativas para a solução dos conflitos. Está intimamente ligada à concepção
de Pluralismo Jurídico, que, segundo Wolkmer, caracteriza-se pela
“multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sócio-político,
interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua
razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” (WOLKMER,
1999, XII).
No Brasil, a discussão acerca da dificuldade de concretização do Acesso
à Justiça somente ganhou corpo e voz após o fim da ditadura militar. Contudo,
não há como distinguir momentos que carreguem em si características
peculiares, de forma que as três “Ondas” ocorreram e ocorrem
concomitantemente, com a edição de diversos diplomas legislativos no sentido
de operacionalizar, sob diversos aspectos, essa garantia constitucional.
Como resultado dessa única “Onda” brasileira, podemos citar: a Ação
Civil Pública (instituída pela L. 7.347/85), o Estatuto da Criança e do
Adolescente (L. 8.069/90), o Código de Defesa do Consumidor (8.078/90), as
Defensorias Públicas (instituídas pela Lei Complementar nº 80) e os Juizados
Especiais (instituídos pela L. 9.099/95).
Tais conquistas devem ser consideradas como importantes no processo
de construção de uma ordem social justa e que preza pelo Direito de Acesso à
Justiça, considerando-o como direito fundamental por excelência e, portanto,
com normatividade tal que possa ser efetivado e cobrado dos Poderes Públicos.
Contudo, a realidade social brasileira é marcada por desigualdades e, a partir da
prática no NAJUC JA, constatou-se que se está, ainda, muito longe da
concretização dessa garantia fundamental e, por via de consequência, da própria
ordem constitucional, vez que, esta tem como pressuposto aquela.
Não se intentou, com a reflexão aqui construída, esgotar a discussão que
envolve a garantia do inciso XXXV, do art. 5º, da CF, mas tão somente apontar

52 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
indícios de questionamentos e pontos de partida para maiores reflexões.
Consideramos, outrossim, que toda e qualquer análise sobre o tema deve ser
guiada por recortes de classe, que situem os sujeitos do processo jurídico como
um todo em uma sociedade marcada pela opressão de muitos em favor de
poucos e, dessa forma, não há como não compartilhar com as inquietações de
Glauco Gumerato Ramos, ao afirmar que “cada vez mais pergunta-se como, a
que preço e em benefício de quem esses sistemas de fato funcionam” (RAMOS,
p.50-51).

3 ASSESSORIA JURÍDICA UNIVERSITÁRIA POPULAR: “o surgimento


de uma práxis insurgente no processo de desconstrução do tradicionalismo
jurídico”

3.1 Contextualização

Nesta sessão, realizaremos uma breve análise histórica sobre o processo


que preconizou a construção de novas práticas jurídicas, com o fito de contestar
o conservadorismo do Direito, na atuação do “universo forense”,
essencialmente no ensino jurídico. A importância de tal reflexão avulta-se
quando consideramos que o surgimento e desenvolvimento das práticas
jurídicas estão intimamente ligados às condições histórico-materiais de
determinada época e lugar. Partiremos, com essa linha de pensamento, à
condução de um diálogo acerca dos elementos vitais à práxis insurgente no
Direito, em especial na extensão universitária, caracterizadoras das Assessorias
Jurídicas Universitárias Populares (AJUP’s).
A princípio, compete-nos compreender em que conjuntura histórica e
social apresentaram-se, no Brasil, circunstâncias propícias a construção do
referencial teórico apto a provocar a edificação de práticas insurgentes,
resumidamente concebida a partir da expressão: “o Direito como instrumento de
mudança social”. A expressão anuncia a necessidade de um Direito de
resistência às opressões construídas e reproduzidas historicamente no processo
de dominação dos sujeitos marginalizados. Desenvolvendo, compreende-se
como a edificação de um “Direito da libertação”, calcado na concepção da luta
de classes, elemento essencial para conceber as estruturas sociais. É nesse
aspecto que destacamos o Direito estatal, substancialmente positivista e
conservador, como mecanismo que autentica e regula as relações sociais em

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 53
conformidade com os fascínios do capitalismo.
A conjuntura ulterior que entendemos ter servido como marco teórico
para o surgimento das AJUP’s compreende o período pós-1964, em que o
Estado brasileiro foi autoritariamente tomado pelos militares, em um processo
apoiado por diversos grupos sociais do país, bem como, motivado pela atuação
imperialista Norte-Americana. Nesse sentido, o Professor Luís Otávio Ribas
afirma:

“A partir da década de 1960, período de grande


insurgência à repressão estatal da ditadura militar
brasileira e contexto de surgimento das assessorias
jurídicas de movimentos populares como uma
proposta de trabalho com o povo. Além disso,
comparam-se algumas formas de exercício dos
serviços legais inovadores, assessoria jurídica popular,
universitária e serviços jurídicos alternativos, além de
identificar experiências na América Latina” (RIBAS,
2009, p.18)

Em um momento de total supressão da participação popular nas


escolhas políticas somada à deflagração de diversas violações a direitos
humanos, tem-se o substrato adequado para o surgimento das críticas ao aparato
estatal antidemocrático que ali se desenvolvia. Impelido pelo sistema opressor
que propõem a conservação do ordenamento e que constantemente vem
golpeando e asfixiando as minorias desprotegidas, buscou-se por alternativas no
Direito que rompessem com a lógica dominante. Utilizando-se metaforicamente
da poesia de Carlos Drummond de Andrade, é nesse cenário que: uma “flor
rompe o asfalto”. Essa flor que desabrocha em circunstâncias tão desfavoráveis
passa a reivindicar um Direito comprometido com as demandas sociais,
oriundas, sobretudo, do clamor advindo das camadas populares, assim como por
um ensino jurídico crítico. As assessorias jurídicas populares, como se pode
averiguar a partir de sua denominação, surgem no berço dos movimentos
populares pós-repressão estatal como uma proposta de trabalho com o povo.
Feita essa rápida digressão histórica, é importante apresentar uma
singela noção do que entendemos por Assessoria Jurídica Universitária Popular,
como forma de delimitar a reflexão que se fará, a partir de então, a cerca dos

54 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
seus princípios e características essenciais.
Portanto, as assessorias jurídicas populares podem ser compreendidas
como atividades concebidas por advogados populares, estudantes extensionistas
e militantes de direitos humanos juntamente aos movimentos sociais e grupos
minimamente organizados, problematizando as contradições sociais, com fins
de uma atuação prática na proteção dos Direitos Humanos, salvaguardando a
vida digna amparada na Constituição “cidadã” de 1988.
Nesse sentido, destacamos a atuação do Núcleo de Assessoria Jurídica
Universitária Comunitária Justiça e Atitude (NAJUC JA), como prática da
AJUP na comunidade do Bairro Olarias, na zona norte de Teresina-PI,
dialogando no sentido de compreender as reais condições de sobrevivência, bem
como os impactos que o Programa Lagoas do Norte vem trazendo para a vida
cotidiana dos moradores da região.

3.2 Assessoria Jurídica Universitária Popular: ecos do “quefazer”

Compreendida a conjuntura histórica que deu ensejo ao surgimento das


AJUP’s, precisamos discorrer a cerca da categoria: assessoria estudantil, que,
em uma análise preliminar, parte da prática extensionista norteada pela
educação popular com perspectivas de materializar um Direito transformador e
multifacetado.
É fundamental, inicialmente, compreender o espaço em que as
assessorias estudantis nascem, isto é, a universidade. O Direito convencional
passa a ser contestado em um terreno que, historicamente, constituiu-se como
um verdadeiro universo de disputa. Nos dizeres de João Francisco de Melo
Neto, o ambiente acadêmico é “como um aparelho de hegemonia, é um palco de
disputas políticas e ideológicas”.
Portanto, as assessorias reassumem a construção crítica do Direito nas
universidades, representando um espaço de luta contra a lógica jurídica
predominante. A partir do diagnóstico realizado em momento ulterior pela
doutrina contra-hegemônica, onde foi sustentada a necessidade de
instrumentalização do Direito com elementos que o tornem aparelho de
transformação social, foi possível verificar que era preciso ir além da edificação
de uma doutrina comprometida com metamorfose social, mas que esteja
instruída para uma atuação prática.
Seria necessário transpor os muros da universidade, propiciar a vivência

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 55
com as camadas marginalizadas, o diálogo com os guetos, permitindo-se, assim,
que as ações extensionistas contribuam para a luta por garantias fundamentais.
Nesse sentido, seria bastante interessante uma metodologia pedagógica apta a
construir uma ponte que agregasse os sujeitos sociais, uma vez que o propósito
passa a ser integrar universidade e sociedade, extensionistas e comunidade.
Então, destacamos a atuação dos assessores jurídicos universitários nos moldes
da educação popular, apresentando como importante referencial o pedagogo
Paulo Freire.
O teórico da pedagogia da libertação possuía a compreensão de que “a
educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de
saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos
significados”. A comunicação deve conceber uma via de mão-dupla, onde os
sujeitos se manifestam “mediatizados” pelo próprio mundo, os homens
ensinam-se uns aos outros em um processo de troca equânime. Assim para a
assessoria, o diálogo seria o instrumento combativo, pois em sua essência, a
comunicação pressupõe horizontalidade e troca de saberes.
A partir desta práxis, os sujeitos envolvidos teriam condições de dizer o
próprio mundo que, nas palavras de Paulo Freire, significa “dizer a palavra”.
Conscientes da própria condição em que se encontram na conjuntura social, os
indivíduos, providos do condão crítico, atuariam ativamente para dizerem suas
palavras, para dizerem o mundo como ele é. Por conseguinte, tornar-se-iam
agentes autônomos e livres a construir a própria história, isentos do fardo da
opressão.
A libertação do oprimido na práxis da extensão universitária ocorrerá
apenas quando o estudante e o popular encontrarem-se em um processo de
comunicação horizontal, amparados por uma linguagem equitativa. Asseverava
Paulo Freire que “o diálogo crítico e libertador, por isto mesmo que supõe a
ação, tem de ser feito com os oprimidos, qualquer que seja o grau em que esteja
a luta por sua libertação”. Freire ainda ressalvou que “pretender a libertação
deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é transformá-los em objeto que
se devesse salvar de um incêndio. É fazê-los cair no engodo populista e
transformá-los em massa de manobra”.
Por isso, os assessores devem ter com clareza a percepção de que a
extensão universitária deve compreender uma prática reflexiva, concebendo um
entendimento transformador do mundo. Assim, a atuação das assessorias
jurídicas universitárias populares deve ser pautada na práxis, pois como

56 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
assevera Paulo Freire “a teoria sem a prática vira 'verbalismo', assim como a
prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a
teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.

3.3 Assessoria Jurídica Universitária Popular: pedagogia da libertação no


gueto

Inspirada na “pedagogia freireana” as assessorias jurídicas


universitárias populares acreditam na humanização da ciência, no caso
específico da extensão jurídica, em um Direito humanizado, fundada na ação
comunicativa. Portanto, as assessorias jurídicas fomentam a crítica nos espaços
em que atuam convictos de que:

“os homens podem fazer e refazer as coisas; podem


transformar o mundo. Crença em que, fazendo e
refazendo as coisas e transformando o mundo, os
homens podem superar a situação em que estão sendo
um quase não ser e passar a ser um estar sendo em
busca do ser mais” (FREIRE, 1997, p.74).

Por conseguinte, depreende-se que os sujeitos cujas assessorias jurídicas


universitárias populares atuam, constituem especificamente uma classe. A
assessoria estudantil nos moldes de extensão popular é tendenciosa e parcial, ou
seja, opta por lutar ao lado de um grupo e este grupo é composto pelos
oprimidos.
O sujeito oprimido é aquele que padece perante o processo
desumanizador compelido pelo opressor. Tal processo é bem visível em nossa
sociedade, uma vez que esta está fundada na luta de classes. Esses sujeitos são
categoricamente marginalizados por sua condição socioeconômica, racial, de
gênero, de identidade, ressaltando-se, ainda, que a sua maioria não se encontra
no ambiente universitário e, mesmo quando nele inseridos, são criminalizados
e/ou também submetidos ao processo de estratificação e hierarquização social.
Assim, compelidos pela lógica capitalista, são tolhidos de dignidade, são
segregados da prosperidade, tem banalizados seus direitos, são, enfim,
esquecidos como “entulho humano”.
A atuação do NAJUC JA, nesse ponto, é, mais uma vez, importante

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 57
referencia de reflexão, pois, juntamente com os moradores da comunidade,
liderados pela Associação de Mulheres do Bairro, fomenta a construção de um
processo de autonomia dos sujeitos que ali se encontram, com vistas a
intensificar as lutas por garantias fundamentais e pela dignidade dos
componentes desse gueto que grita e clama diariamente por justiça.
Atualmente, a comunidade vive aflita e temerosa com a promessa de
desenvolvimento imposta – frise-se bem – pela Prefeitura Municipal de Teresina
(PMT). Sob a alegação da necessidade de desenvolvimento social, econômico e
requalificação ambiental, a PMT passou a implementar o Programa Lagoas do
Norte, voltado para o desenvolvimento sustentável da região. No entanto, o
poder público silencia quanto às mudanças reais que o projeto trará, bem como,
quanto a real inserção da comunidade nas ações de planejamento e execução do
programa.
O silêncio, insignificante para a Prefeitura, aflige os moradores do
Bairro Olarias e ecoa em suas vidas. Assim como o grito historicamente
injustiçado que já caleja, mas que persiste com esperança de romper a mudez de
anos e anos. O grito dos humildes é de dor e por direitos, inclusive pelo óbvio
direito de existir.

4 CONCLUSÃO

Diante dos empecilhos anteriormente verificados que impedem a


concretização do Acesso à Justiça (custos, deficiência de informação por parte
do popular e dos “operadores” jurídicos, organização geográfica, e questões
psicológicas) e, em razão da atuação nos moldes da assessoria jurídica popular,
é mister desconstruir que a “inconcretude” desse direito fundamental tem raízes
apenas no formalismo, na monetarização e sujeição ao sistema jurídico. Na
verdade, a partir da práxis da AJUP, que se propõe a desmistificar o Direito, é
necessário desconstruir a carga cultural e ideológica que foi edificada e marca o
sistema jurídico opressor, refletindo em maiores barreiras ao povo, sujeitando-o
a conformação com as inúmeras violações de seus direitos.
Nesse cenário de conformação, até mesmo o Direito de Acesso à Justiça
encontra-se limitado dentro da lógica excludente que marca a atuação estatal. É
preciso, portanto, desnaturalizar as construções ideológicas que circundam essa
garantia constitucional, considerando que é ela basilar para a concretização de
outras tantas garantias. Por óbvio, se a ordem social não viabiliza o “grito” do

58 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
povo pela execução das promessas constitucionais, não há que se falar em
justiça social, igualdade de condições e, mesmo, em democracia.
Assim, o princípio constitucional e Direito Fundamental de Acesso à
Justiça deve, conforme explanações anteriores, reger toda a atuação estatal, uma
vez que é garantia constitucional de importância tal que a sua supressão,
restrição ou condicionamento coloca em cheque toda a estrutura democrática
consubstanciada na retórica constitucional. Não se pode deixar de mencionar
que, como direito fundamental por excelência, possui eficácia normativa como
toda e qualquer outra norma constitucional, devendo, portanto, vincular a
atuação pública no sentido de estimular o acesso a uma ordem jurídica justa,
sem qualquer tipo de obstáculo.
Considerando o que compreendemos por AJUP, é preciso enquadrar
essa práxis insurgente dentro dos movimentos que, a partir da ditadura militar,
tentaram romper com os obstáculos que se colocaram frente à efetivação do
Acesso à Justiça. Por óbvio, a atuação dos assessores jurídicos populares, sejam
advogados populares, sejam estudantes universitários, contribui para a maior
aproximação do Direito com aqueles sujeitos que, via de regra, veem-se
violentados e sem poder de reclamar contra essa ordem de agressões.
É necessário, nesse ponto da discussão, recuperarmos aquilo que
elencamos anteriormente como exemplos de fatores responsáveis pela
dificuldade de efetivação do inciso XXXV, art. 5º, da CF, para, utilizando-se das
concepções de Educação Popular, que direcionam a atuação da AJUP, apontar
os indícios demonstrativos de uma possível emergência do Acesso à Justiça na
realidade social. Tal análise ocorrerá a partir de três recortes: Opressão por fator
econômico; opressão por fator cultural; opressão por fator psicológico.
No tocante à Opressão decorrente de fatores econômicos, os assessores
jurídicos podem estabelecer parcerias com as Defensorias Públicas, como forma
de potencializar a atuação das assistências judiciárias na comunidade, de forma
a possibilitar o acesso à resposta do Estado diante de violações de direitos
humanos. Outra parceria que serviria para minimizar os custos do processo para
os moradores de comunidades periféricas diz respeito a atuação do Ministério
Público como titular das ações que envolvem direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos. Há que se notar, também, que a pauta primordial da
atuação dos assessores jurídicos diz respeito à instrumentalização de
alternativas extrajudiciais de solução de conflitos, que, por via de consequência,
evitam o inconveniente da lide processual e o ônus do pagamento de suas

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 59
custas, sem abrir mão do questionamento da suficiência do Direito para a
prestação dos direitos fundamentais.
Na segunda perspectiva que seguiremos para desmistificar os entraves
ao princípio de Acesso à justiça, qual seja, o referente às opressões em razão do
aparato cultural e ideológico que impregna a criação e aplicação dos conceitos
jurídicos, a partir de valores tradicionais e descompassados com o atual
momento de interpretação constitucional, a práxis em assessoria jurídica
permite o compreensão de um direito crítico, que privilegia as demandas
sociais, desapegado do restrito e insuficiente formalismo jurídico,
desconstituindo o ideal de neutralidade e imparcialidade. Ademais, a formação
em assessoria jurídica possibilita ao assessor estudantil assimilar outras
compreensões que não somente aquela apresentada dentro dos “muros” da
Universidade, contribuindo, assim, para um entendimento mais social da
situações jurídicas recorrentes, embora não menos importantes.
Sob outra ótica, imbuídos da sensibilidade popular, estabelecer-se-á
entre os assessores e os sujeitos da comunidade canais de comunicação que
permitam uma maior proximidade e interação entre ambos, em um processo
político-dialógico. A partir daí, apresentar-se-á um estímulo à compreensão
coletiva dos direitos que assistem a todos os cidadãos e a todas as cidadãs e que
podem e devem ser exigidos e concretizados. É por meio de uma metodologia
que tome o popular como construtor da sua própria história, como agente do
processo político-pedagógico, que se poderá alcançar a utópica – enquanto
direcionamento constante – emancipação social coletiva.
Na terceira perspectiva que destacamos para delinear as relações entre a
atuação das assessorias jurídicas e o direito de acesso à justiça – relacionada às
opressões de ordem psicológica –, diz respeito à proximidade, ou seja, o contato
direto com as demandas sociais, com as reclamações populares, com os
movimentos sociais, por meio de vivências nas comunidades e outros grupos
marginalizados. Tais práticas possibilitam a reconquista da confiança a ser
depositada pelo popular nos sujeitos do mundo jurídico, perdida em razão dos
diversos fatores antes mencionados, dirimindo o característico receio em
relação aos “operadores” do Direito.
Além disso, o diálogo edificado na relação popular-assessor pauta-se
em linguagem coloquial, acessível, receptiva e respeitosa. Considera-se, para
tanto, as características peculiares da comunidade, de forma a não se perder de
vista a necessidade de manutenção dos aspectos constituintes da sua identidade

60 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
cultural, pois, caso contrário, estar-se-ia usurpando a sua autonomia, o seu
poder participativo e, consequentemente, a sua capacidade de exercer a
cidadania.
Por tudo isso, pode-se compreender que a atuação nos moldes da
assessoria jurídica universitária popular insere-se no terceiro momento de
propostas para a concretização do Direito de Acesso à Justiça, que, conforme o
entendimento de Ceppelletti, é marcado pelo afloramento das concepções
pluralísticas a cerca do Direito, que, também consagrou o nascimento das
Teorias do Direito Alternativo, do Direito Achado nas Ruas e do Direito
Insurgente. Deseja-se, com isso, enquadrar a AJUP na Terceira Onda do Acesso
à Justiça, malgrado tenhamos que reconhecer a fluidez no cenário nacional das
propostas de concretização dessa garantia constitucional, conforme
anteriormente apontado.
O que se constata, com a reflexão aqui apresentada, é que a atuação das
AJUP’s apresenta-se como verdadeiro ambiente criador de mecanismos que
possibilitem maior efetividade aos direitos fundamentais, em especial, à
garantia do Acesso à Justiça. Não foi, contudo, nenhuma pretensão esgotar a
discussão que envolve a problemática atual e sempre desconfortável que
abrange a ausência de direitos, sem qualquer perspectiva de manifestação por
meio da indignação, da inconformidade e do grito por uma ordem jurídica justa
que preze pelo estímulo e desenvolvimento da cidadania.
As práticas desumanas e violentas da ordem social capitalista ecoam na
vida de todos aqueles e todas aquelas marginalizados (as) na lógica ambiciosa,
individualista e extirpadora do sonho popular. Por isso, resta o grito
historicamente injustiçado que já caleja, mas que persiste com esperança de
romper a mudez de anos e anos. O grito dos humildes é de dor, mas também por
ausência de direitos, inclusive pelo óbvio direito de existir.

REFERÊNCIAS

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64 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Cursos, cursinhos e ensino jurídico no Brasil

Mariana Dutra de Oliveira Garcia*


Marcelo Mayora Alves**

RESUMO: O presente artigo busca diagnosticar o quadro da educação jurídica


contemporânea, considerando a relação entre o Direito e seu ensino. Para tanto,
será analisada a relação entre os campos jurídico, político e econômico, bem
como a interação entre Estado e Mercado. Ao final, refletir-se-á acerca do lugar
das disciplinas propedêuticas no contexto do ensino do Direito no Brasil

PALAVRAS-CHAVE: Ensino, Direito, Estado, Mercado

ABSTRACT: This paper examines the current status of Brazil’s legal


education, considering the relation between law and its teaching. In order to
accomplish that, it focuses on the interaction between the legal, political and
economic realms, as well as on the relation between the state and the market.
Finally, it addresses the role of theoretical courses in the context of the Brazilian
legal education.

KEYWORDS: Legal teaching, Law, State, Market

INTRODUÇÃO

Este cara é um compêndio de incultura -


María disse -, o exemplo típico da
Faculdade de Direito.
Roberto Bolaño, Os Detetives Selvagens

Os primeiros cursos jurídicos brasileiros foram criados no século XIX.


Embora a concretização das escolas de direito tenha ocorrido apenas no ano de
* Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista CAPES.
** Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
Doutorando em Direito e Professor Substituto na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista CNPq

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 65
1827, a discussão sobre a necessidade de criação de faculdades já estava em
curso desde 1823, sob a forte influência da Faculdade de Direito de Coimbra. A
proposta de estatuto para as faculdades - chamada de Estatuto do Visconde da
Cachoeira, por ter sido elaborado pelo detentor da insígnia, o Sr. Luis José de
Carvalho e Melo, bacharel formado em Coimbra que exerceu funções na vida
pública como deputado e senador pela província da Bahia - foi baseada nos
estatutos pombalinos da universidade portuguesa, com as devidas adaptações 3.
Após muitas discussões legislativas 4, foi a Lei de 11 de Agosto de 1827 que
criou os dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, um na cidade de São Paulo
e outro em Olinda, que posteriormente (1854) foi transferido para o casarão da
Rua do Hospício, em Recife. A referida lei determinava que tais cursos tivessem
a duração de cinco anos, sendo divididos em nove cadeiras com as seguintes
matérias: Direito Natural, Público, Análise da Constituição do Império, Direito
das Gentes e Diplomacia, Direito Público Eclesiástico, Direito Pátrio Civil,
Direito Pátrio Criminal com a teoria do processo criminal, Direito Mercantil e
Marítimo, Economia Política e Teoria e Prática do processo adotado pelas leis
do Império.
A criação das escolas jurídicas no Brasil, no contexto da recém-
conquistada independência política, mirava o futuro do país, dado que pretendia
garantir a construção do projeto nacional e a unificação do território (NEDER,
2007), a partir da criação de “uma intelligentsia local apta a enfrentar os
problemas específicos da nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 141). Conforme já
referido, tais cursos refletiam a imagem do chamado Coimbrão, o que ainda

3 Entre os motivos pelos que o Visconde de Cachoeira recomendava que não se


adotassem literalmente os estatutos demasiados eruditos da Universidade de
Coimbra estavam “a muita profusão de Direito Romano, o muito pouco que se
ensinava da jurisprudência pátria, a pobreza do ensino de Direito Natural, Público e
das Gentes.” (VENÂNCIO FILHO, 2011, P. 32). Para uma melhor elucidação é
possível conferir na íntegra as argumentações em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/panteao/panteao.htm
4 Dentre os argumentos dos deputados sobre o local de fixação dos cursos estiveram
presentes, inclusive, as críticas de Silva Lisboa à pronúncia paulista, que lhe
afigurava inadequada à constituição de uma elite intelectual nativa. Em sessão de 28
de agosto de 1823, nos debates da Assembleia Constituinte o deputado referiu ser
“reconhecido que o dialeto de São Paulo é o mais notável. A mocidade do Brasil,
fazendo aí os seus estudos, contrairia pronúncia mui desagradável.” (ADORNO,
1988, p. 85).

66 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
denota forte influência da antiga metrópole. Os primeiros lentes eram egressos
de Coimbra, e inclusive alguns dos primeiros alunos vieram de Portugal
transferidos. Entretanto, é preciso ressaltar que houve importante adaptação no
currículo brasileiro, de maneira que as disciplinas estavam relacionadas com as
necessidades do Brasil imperial.
Embora ambas as faculdades tenham sido criadas com a ideia de fundar
“uma nova imagem para o país se mirar” (SCHARWCZ, 1993, p. 141),
possuíam diferenças consideráveis, bem como travavam espécie de disputa
velada. Enquanto o curso da região nordeste – que teve como filhos da casa
juristas do porte de Tobias Barreto e Clóvis Beviláqua – educava para produzir
grandes doutrinadores, o da região sudeste teria sido o responsável pela
formação dos grandes políticos e burocratas, que tinham como única
preocupação a direção política da nova nação. Se no convento de São Francisco,
primeiro prédio a sediar a Faculdade de Direito de São Paulo, preconizava-se o
ensino do direito civil, no Mosteiro de São Bento, em Olinda, e no casarão da
Rua do Hospício, em Recife, dava-se maior ênfase ao direito penal, e,
posteriormente, à antropologia criminal. Resumidamente, se de “Recife vinha a
teoria, os novos modelos – criticados em excesso pelos paulistas; de São Paulo
partiam as práticas políticas convertidas em leis e medidas” (SCHARWCZ,
1993, p. 184).
Não obstante a diferenças entre as escolas jurídicas de Recife e São
Paulo é possível notar que o pragmatismo foi a principal saída adotada para
preservar os interesses da estrutura social oligárquica e escravocrata. O
compromisso com a adaptação foi uma das características básicas da recém-
formada elite intelectual brasileira, refletindo o cenário de uma Constituição de
cunho liberal (1824) que devia coexistir com as oligarquias rurais e com o
trabalho escravo, num país que se modernizava seletivamente, mantendo em sua
estrutura restos patriarcais e patrimonialistas. Para os juristas em formação
nesses centros, “o Brasil tinha saída”, e eles seriam os “missionários eleitos”
para dirigir o futuro da nação, como “mestres do processo de civilização e
guardiões do caminho certo” (SCHARWCZ, 1993, p. 187).
Tais escolas estariam dedicadas explicitamente à formação da elite
política brasileira (CARVALHO, 1981), educando e treinando jovens -
usualmente filhos dos senhores proprietários de terras e de escravos em
decadência diante da modernização - que deveriam “matar os pais”, de modo a

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 67
substituir os antigos donos do poder para instaurar a nova ordem 5. Os
protagonistas dessa neocracia, sobretudo após a coroação do jovem Imperador
Dom Pedro II, eram os recém-formados bacharéis, o que fez com que um
cronista da época lamentasse que as províncias do Brasil do Segundo Império
eram “desgovernadas por umas criançolas sahidas [sic] das escolas de Direito”,
“bachareletes que já não tomavam a benção aos velhos” e que “começaram a
governar o país quase uns meninos, com bigodes ou barbas que pareciam
postiças” (FREYRE, 2006, p. 127).
Conforme Gilberto Freyre, por um lado, “o bacharel – magistrado,
presidente de província, ministro, chefe de polícia – seria, na luta de morte entre
a justiça imperial e a do pater famílias rural, o aliado do governo contra o
próprio pai ou o próprio avô (FREYRE, 2006, p. 122). Por outro, houve
senhores endividados - diante da lenta e gradual corrosão da economia agrário-
escravista - que encontraram amparo no filho doutor ou na filha casada com o
bacharel funcionário público, burguês prototípico. Nas palavras do autor,

É curioso constatar que as próprias gerações mais


novas de filhos de senhores de engenho, os rapazes
educados na Europa, na Bahia, em São Paulo, em
Olinda, no Rio de Janeiro, foram-se tornando, em
certo sentido, desertores de uma aristocracia cujo
gênero de vida, cujo estilo de política, cuja moral,
cujo sentido de justiça já não se conciliavam com seus
gostos e estilos de bacharéis, médicos e doutores
europeizados. Afrancesados, urbanizados e policiados
(FREYRE, 2006, p. 123).

Normalmente, os alunos dessas escolas eram filhos de famílias ricas,


que eram previamente adestrados por tutores particulares para ingressarem na
carreira jurídica. Ambas as escolas cobravam altas taxas de matrícula, e por
estarem localizadas apenas nas regiões norte e sul do país, muitos dos alunos
tinham de se manter durante cinco anos nessas cidades. A admissão era
precedida de cursos preparatórios ou por repetidores particulares, o que gerava

5 “Como dizia um aluno, em 1831, no Brasil existiam ‘duas aspirações: obter para si
a patente de guarda nacional e conseguir o grao [sic] de bacharel ao menos para um
dos seus descendentes’” (SCHWARCZ, 1993, p. 142)

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alto custo para as famílias. Dessa forma, eram criados custosos obstáculos para
os alunos menos abastados. Apesar disso, alguns desses alunos mais pobres
conseguiam passar pela peneira do ingresso, de maneira que o estudo e a
formação bacharelesca foi um dos principais meios de ascensão social de tal
período, principalmente do mulato6. Existem relatos de estudantes de cor negra
já nos primeiros anos da Escola de São Paulo, onde um dos professores, o Dr.
Veiga Cabral, responsável pela cadeira de Direito Civil, se negava a
cumprimentá-los alegando que negro não podia ser Doutor. Conta-se que uma
vez ofereceu o pé a um deles que o queria cumprimentar e que este prontamente
respondeu: “Desaforo: negro não pode ser doutor. Há tanta profissão
apropriada: cozinheiro, cocheiro, sapateiro...” (VENÂNCIO FILHO, 2011, p.
41).
O excesso de bacharéis já havia sido detectado àquela época. A
quantidade de bacharéis que as Faculdades de Direito formavam era maior que
a quantidade de vagas no funcionalismo público de nosso Estado
patrimonialista, pois, nesse período de desagregação do patriarcalismo e da
economia escravocrata, o “Estado foi afinal o grande asilo das fortunas
desbaratadas da escravidão” (NABUCO apud FREYRE, 2006, p. 123). O
crescente desenvolvimento do país foi proporcionando vagas na advocacia,
inclusive, invertendo a própria elite política que nesse momento já restava
composta por advogados, enquanto no início estava tomada pela magistratura
(CARVALHO, 1981). Entretanto, o mercado para os advogados estava centrado
nas cidades e rapidamente constatou-se um excesso desses profissionais.
Segundo o Censo de 1872, havia no país 968 juízes e 1.647 advogados,
num total de 2.642 pessoas. Só a Escola de Recife formara, entre 1835 e 1872,
2.290 bacharéis, o que sugere que muitos não encontravam colocações nas
referidas profissões. Tal excesso de mão-de-obra formou “o fenômeno repetida
vezes mencionado na época da busca desesperada do emprego público por esses
letrados sem ocupação” (CARVALHO, 1981, p. 71). Lima Barreto (1997;

6 Conforme Gilberto Freyre, “é impossível defrontar-se alguém com o Brasil de D.


Pedro I, D. Pedro II, da princesa Isabel, da campanha da Abolição, da propaganda
da República por doutores de pincenez, dos namoros de varanda de primeiro andar
para a esquina da rua, com a moça fazendo sinais de leque, de flor ou de lenço para
o rapaz de cartola e de sobrecasaca, sem atentar nestas duas grandes forças, novas e
triunfantes, às vezes reunidas numa só: o bacharel e o mulato” (FREYRE, 2006, p.
711).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 69
2012), com sua crítica mordaz, construiu vários de seus personagens
inspirando-se nessa situação: como o Doutor Rocha que “tinha fama de sábio
porque era bacharel em direito e não dizia coisa alguma” (p. 60), ou o Doutor
Praxedes, que se vestia “sempre de fraque, botinas de verniz ou gaspeadas, e
não dispensava a pasta indicadora de homens de leis” (p. 130).
Em 19 de abril de 1879 foi promulgado o Decreto 7.247, ato do Poder
Executivo que reformou os ensinos primário e secundário, bem como o ensino
superior em todo Império, criando as chamadas Faculdades Livres.
Fundamentalmente, tal ato dividiu o curso de Direito em Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais, sendo o primeiro voltado à formação dos magistrados e
advogados, e o segundo, à formação de diplomatas, administradores e políticos
(MOACYR, 1940). Entretanto, tal reforma só colocou em prática ato de outra
reforma – que por motivos políticos não foi implementada – de autoria do Sr.
José Liberato Barroso, lente substituto da Faculdade de Direito de Recife, que
modificava mais uma vez as Faculdades de Direito durante o Império.
De acordo com sua proposta, na seção de Ciências Sociais seriam
ministradas as cadeiras de Direito Natural, Privado e Público, Análise da
Constituição, Direito Internacional e Diplomacia, Direito administrativo,
Economia Política e Direito Eclesiástico. Ainda, dispunha o novo estatuto que a
frequência à cadeira de Direito Eclesiástico seria facultativa, e logo que se
criassem as faculdades teológicas e após a audiência das Congregações e da
Seção do Império, do Conselho do Estado, o governo poderia suprimi-las, se
assim achasse conveniente. A reforma não teria agradado a Congregação da
Faculdade de Recife em vários aspectos, sobretudo na divisão estabelecida e na
possibilidade de os alunos não prestarem exames na cadeira de Direito
Eclesiástico, o que motivou o seu esquecimento. Neste período o Brasil parecia
ter mais questões de política externa a resolver, de modo que o decreto 3.454 de
26 de abril de 1865 nunca foi posto em execução.
A reforma do ensino livre surge no período chamado por Roque
Spencer Maciel de Barros (1986) de “ilustração brasileira”. Ou, “um bando de
idéias novas” como preferiu Silvio Romero (1926 apud SCHWARCZ, 1993),
referindo-se ao mesmo período. De fato este foi um período de mudanças na
sociedade brasileira como um todo: a urbanização e os movimentos migratórios
em expansão crescente, bem como os interesses entre os tradicionais
proprietários de terra do nordeste entravam em choque com as elites cafeeiras
que se mesclariam entre os cariocas com forte influência política junto ao

70 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Imperador com a ascendente aristocracia paulista. Não por outro motivo, Clóvis
Beviláqua, jurista formado pela Escola de Recife, compreende este período
como uma “reação científica”, devido à absorção direta das teorias cientificistas
do final do século XIX.
Como justificativa da aprovação da reforma do ensino livre, seus
defensores invocavam os exemplos europeu e norte-americano de
democratização do ensino e liberdade de ensinar. É que para o liberalismo do
século XIX, o ensino até aquele momento era um privilégio de classes
abastadas, por conseguinte sonegado às camadas populares. Tal situação era um
contrassenso para implementação de um regime democrático que começava a
surgir nos referidos continentes. A visão liberal viu-se diante de uma
encruzilhada: o laissez faire do mercado ou o apelo para o Estado? Uma
digressão para compreender como a tese de abstenção por parte do Estado no
ensino foi substituída pela tese de intervenção seria impraticável neste
momento. Entretanto, parece ser possível afirmar que a reforma do ensino livre
no Brasil naquela ocasião pretendia aproximar-se da que ocorrera na Alemanha
no início do século XIX, quando Humboldt tornara a Universidade de Berlim
autônoma em relação ao Estado, de modo a tornar o ensino superior livre por
não depender nem da Igreja nem do Estado.
A dita reforma parece ter ficado adstrita à discussão da possibilidade de
cobrar frequência às aulas nas faculdades de Direito, pelo menos é o que indica
os debates travados à época. Na fase imperial, portanto, o ensino livre se
caracterizou nestes cursos pela liberdade de frequência e pela inexistência de
exames parciais. Calcado em experiências importadas, talvez mal assimiladas, o
sistema só teria tido algum resultado se os exames finais fossem, de fato,
rigorosamente aplicados por bancas imparciais e exigentes, o que nunca
ocorreu. “De fato, sustentando-se em tão frágil noção de responsabilidade
individual, a reforma do ensino livre contribuiu ainda mais para debilitar a
estrutura pedagógica do curso jurídico.” (ADORNO, 1988, p. 116)
Com efeito, esta reforma não pode ser vista como fato isolado. Ao
contrário, uma cadeia de acontecimentos relacionados à camada de intelectuais
brasileiros estava em andamento. Machado de Assis com seu conto “O
Alienista” teria captado bem esse espírito científico que tomava o Brasil: “O
principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os
seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do
fenômeno e o remédio universal” bradava Simão Bacamarte. É neste período,

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 71
conforme já referimos, que os museus etnográficos, os institutos geográficos, as
faculdades de direito e medicina se consolidam como propulsores de uma
sociedade científica e moderna. “No Brasil respira-se sciencia” [sic] é a frase de
um dos artigos publicados em 1893 na Revista da Faculdade de Direito de
Recife. É particularmente nos cursos jurídicos, neste momento, que se nota a
emergência de uma guinada teórica, muito esperada pelos juristas que
acreditavam a estar realizando e que buscavam incessantemente dar ao direito
um estatuto científico, afastando-se, assim, das influências religiosas e
metafísicas então dominantes.
A necessidade de rompimento com o pensamento religioso em prol de
uma visão laica do mundo pode nos indicar que os juristas, como integrantes da
camada intelectual brasileira, ou como estes preferiam, como “autênticos
cientistas”, tinham uma espécie de missão a cumprir. Os juristas se designavam
arautos de um novo tempo; o Brasil deles dependia para se desenvolver. Esse
era o chamamento de um paraninfo da turma de 1900 em Recife: “O Brasil
depende exclusivamente de nós e está em nossas mãos. O futuro nos pertence.”
Uma legitimidade que parece muito mais ter sido assumida, que concedida.
Já no século XX, na gestão de Francisco Campos, Ministro da Educação
e da Saúde Pública, foi promulgado, através do Decreto nº 19.851 de 11 de abril
de 1931, o chamado Estatuto das Universidades Brasileiras. Outros dois
decretos também fizeram parte da reforma: um que criou o Conselho Nacional
da Educação, e outro que dispunha sobre a organização da Universidade do Rio
de Janeiro. Em relação aos cursos jurídicos, é a partir de tal reforma que os
estudantes começam a ser juridicamente socializados no modelo prático-
profissionalizante que estamos habituados atualmente. Cabe salientar, ainda,
que de forma ampla, a reforma desejou atribuir aos cursos superiores a difusão
de trabalhos práticos, por meio de demonstrações e ilustrações, para que o aluno
aprendesse observando, fazendo e praticando. Dessa forma, os cursos de Direito
foram divididos em dois novamente: o bacharelado e o doutorado, “cabendo ao
primeiro a formação dos operadores técnicos do Direito e ao segundo a
preparação dos futuros professores e pesquisadores, dedicados aos estudos de
alta cultura” (RODRIGUES, 2005, p. 27). Após esse período, no entanto, as
reformas efetuadas no ensino jurídico foram de caráter curricular. Diante da
consagração do currículo mínimo, em 1962, resoluções e portarias foram
sucessivamente editadas para adaptar os currículos das escolas de Direito ao
crescimento econômico do país, mantendo, assim, o caráter profissionalizante

72 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
do curso.
Posteriormente, acompanhando o movimento generalizado de
democratização do ensino universitário, que teve início paralelamente à crítica
estudantil dos anos 60 acerca do caráter elitista das Universidades (SANTOS,
1999), os cursos jurídicos também se expandiram, no processo que culminou na
situação contemporânea7. Nesse contexto, para lidar com a massificação dos
cursos - exigência que ambiguamente deriva tanto das necessidades econômicas
quanto da consolidação da democratização do ensino superior como valor
inarredável - o ensino jurídico também adotou como estratégia aquilo que
Boaventura de Sousa Santos (1999) chamou de “mecanismo de dispersão”. O
principal mecanismo de dispersão foi o da hierarquização, ou seja, a introdução
de um dualismo até então inexistente: universidades de elite e universidades de
massa. Quer dizer, para digerir tal situação e manter inabalada a sua função
primordial, de formar os operadores que posteriormente serão recrutados pelo
Poder Judiciário ou pelos escritórios de advocacia, o ensino jurídico operou
uma diferenciação interna. Assim que, atualmente, de um lado, encontramos as
universidades mais concorridas, nas quais se concentrará o ensino de ponta –
tanto do ponto de vista da crítica, por meio dos programas de pós-graduação,
quanto da formação legalista para concursos (no Brasil, geralmente as
universidades públicas). De outro, encontramos uma infinidade de faculdades,
que recebem diversos alunos com objetivos variados, mas que em razão de
inúmeras limitações estruturais atingem um ínfimo grau de qualidade do ensino,
independentemente do critério de avaliação adotado.
Nesse contexto, a “crise” do ensino jurídico é uma das maiores, senão a
maior, preocupação daqueles que se dedicam ao estudo do fenômeno da
7 Segundo declarações do advogado Jefferson Kravchychyn, conselheiro do Conselho
Nacional de Justiça: “O Brasil tem mais faculdades de Direito do que todos os
países no mundo juntos. Existem 1.240 cursos superiores para a formação de
advogados em território nacional enquanto no resto do planeta a soma chega a
1.100 universidades”. Fonte: <http://www.oab.org.br/noticia/20734/brasil-sozinho-
tem-mais-faculdades-de-direito-que-todos-os-paises> Não por outro motivo, mais
uma vez, o Ministério da Educação em cooperação com a Ordem dos Advogados do
Brasil, suspendeu a criação de novos cursos jurídicos no país. Em declaração oficial
o Ministro da Educação, Aloizio Mercadante declarou o fim da concessão
indiscriminada de autorizações para o funcionamento de cursos de Direito no país.
Conferir em: http://www.oab.org.br/noticia/25343/acordo-pioneiro-entre-oab-e-
mec-fecha-balcao-dos-cursos-de-direito

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 73
educação jurídica no Brasil. Apontada de forma abundante na literatura
especializada, a constatação que o ensino jurídico está em crise é quase uma
unanimidade. Dentre outros fatores, estão presentes a grade curricular, a
proliferação dos cursos jurídicos, o baixo nível de formação dos ingressos, a
falta de professores qualificados, o ensino técnico-profissionalizante, etc. Essa
infinidade de problemas, na maioria das vezes, tem sido solucionada através da
inserção de conteúdos sociais e humanísticos nos currículos das Escolas de
Direito. Não foram poucas as reformas que inseriram as disciplinas específicas
das áreas humanas para amenizar o paradigma legalista que
contemporaneamente é a espinha dorsal dos cursos jurídicos.
Diante dessa breve introdução - que buscou situar o ensino jurídico no
contexto das transformações das instituições e da sociedade brasileira - cremos
que a ideia de “crise do ensino jurídico” não é fértil em termos teóricos. Isso
porque tal concepção, no intuito de resumir toda a problemática do tema em
análise, acaba por obliterar o que necessitamos compreender. Do nosso ponto de
vista, é fundamental entender precisamente as funções manifestas e latentes que
o Direito e seu ensino têm cumprindo na contemporaneidade. Além disso, a
concepção de “crise” traz em seu bojo uma referência cristalizada acerca de
qual deveria ser a “correta função social” que o ensino jurídico deveria
desempenhar, o que raramente é explicitado. Nesses termos, caberia perguntar:
crise a partir de que padrão de normalidade ou mesmo de excelência? Em suma,
o presente artigo, afastando-se da ideia de crise, buscará situar a problemática
do ensino do Direito no “campo jurídico” (BOURDIEU, 2011), que possui uma
lógica própria e que se comunica – pois influencia e é influenciado - com os
demais campos. Então, questionar-se-á: qual o sentido das reformas dos
currículos operadas até hoje? Não estariam tais reformas a serviço da
manutenção e da reprodução de dada ordem? Estaria o ensino do Direito
preocupado fundamentalmente em produzir “mão de obra especializada para o
staff do Estado ou do big business” (LYRA FILHO, 1980, p. 8)? Como se
relacionam os campos jurídico, político e econômico, quer dizer, o direito e seu
ensino, o Estado e o mercado? Para procurar elementos para a compreensão das
questões colocadas, buscaremos diagnosticar a situação atual do ensino jurídico
a partir da ideia de hierarquização dos cursos de Direito, analisando as
problemáticas daí derivadas. Após o diagnóstico, tentaremos refletir acerca do
lugar das disciplinas “propedêuticas” no quadro do ensino do Direito
contemporâneo. Cabe observar, por fim, que diversas considerações sobre o

74 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
ensino e as faculdades de Direito têm origem na reflexão sobre a experiência
prático-teórica dos autores do artigo, como alunos e professores em instituições
de ensino superior da região Sul do Brasil.

2 A MULTIPLICAÇÃO E A HIERARQUIZAÇÃO DOS CURSOS DE


DIREITO

Considerando que a educação superior sempre foi encarada como


condição fundamental para o “desenvolvimento” do país, a proliferação dos
cursos jurídicos naturalmente acompanhou a expansão econômica. O controle
vertical das Instituições de Ensino Superior (doravante IES) é exercido pelo
Ministério da Educação, que é o responsável pelo credenciamento e
recredenciamento do estabelecimento que pretende oferecer cursos de nível
superior. É o Poder Público, por conseguinte, que regula, supervisiona e avalia
tais instituições, que estão divididas entre: universidades, centros universitários
e faculdades.
A forte expansão do sistema universitário foi consequência da explosão
na demanda por educação superior. A “questão dos excedentes” foi responsável
pelo aumento - principalmente na década de 70 do século passado - da
participação do ensino privado no nível superior, assim como o vestibular
começou a ser utilizado como técnica de seleção nas universidades públicas.
Entretanto, a democratização da universidade traduziu-se “na diferenciação-
hierarquização entre universidades e entre essas e outras instituições de ensino
superior” (SANTOS, 1999, p. 169).
As instituições brasileiras de ensino jurídico não passaram incólumes
por tais mudanças. A hierarquização nos cursos de Direito é um fato a ser
estimado, pois desconsiderar tal situação é ter visão parcial do processo de
educação jurídica. Assim como no século XIX, atualmente as vagas das
instituições públicas, em sua maioria, estão destinadas àqueles que podem ter
uma educação básica de qualidade, ou seja, grande parte dos alunos ingressantes
nos cursos de Direito das universidades públicas, que em regra são aquelas que
podemos considerar as “universidades de elite”, puderam estudar em boas
escolas e/ou frequentarem cursos preparatórios para garantir sua vaga 8.
Do outro lado estão os estudantes das classes mais baixas, que almejam

8 As fundamentais e justas políticas de cotas parecem estar gerando fissuras nesse processo.
Resta aguardar um pouco mais para avaliarmos o alcance de tais mudanças.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 75
algum tipo de ascensão social ao escolher o curso de Direito. Grande parte
desses alunos possui uma jornada de trabalho fora da área jurídica e, por
consequência, necessitam estudar no período noturno. Dessa forma, há espécie
de fratura que é facilmente perceptível pelos docentes que frequentam as salas
de aulas desses dois tipos de instituições. A divisão anteriormente apontada
(universidades, centros universitários e faculdades) não pode ser levada em
conta como única condicionante para diferenciação. Por óbvio há disparidade
entre os alunos que frequentam as diferentes instituições. Nem sempre o aluno
que ingressa numa universidade pública com tempo integral de estudo acaba
tendo um melhor desempenho na vida profissional do que aquele que trabalha
oito horas por dia e enfrenta o último turno imerso em aulas expositivas.
Entretanto, não há dúvida que é preciso considerar que a manutenção ou a
ascensão do status social está intimamente ligada com o tipo de ensino que é
oferecido, bem como com a experiência do aprendizado, principalmente do
ponto de vista da (im)possibilidade da dedicação exclusiva.
Tal diferenciação é a responsável pela preocupação dos próprios órgãos
públicos que credenciam as instituições de ensino superior. O Conselho Federal
da OAB também tem se dedicado a verificar a qualidade do ensino jurídico,
tendo inclusive criado o selo OAB Recomenda, que é ostentado de forma
orgulhosa nos endereços virtuais das faculdades que foram agraciadas com a
distinção. A mercantilização do ensino jurídico, dessa forma, foi ganhando força
e o quadro atual também está ligado a esse fator. Sob o auspício da
democratização do ensino, as classes populares entram no jogo de um sistema
seletivo e elitista.

2.1 A PREPARAÇÃO TÉCNICA PARA OS “CONCURSOS NOBRES”: O


RECRUTAMENTO ELITISTA

O alferes eliminou o homem. Durante


alguns dias as duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a
primitiva cedesse à outra; ficou-me uma
parte mínima de humanidade. Aconteceu
então que a alma exterior, que era dantes
o sol, o ar, o campo, os olhos das moças,
mudou de natureza, e passou a ser a

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cortesia e os rapapés da casa, tudo o que
me falava do posto, nada do que me
falava do homem. A única parte do
cidadão que ficou comigo foi aquela que
entendia com o exercício da patente; a
outra dispersou-se no ar e no passado.
Machado de Assis, O Espelho

Diante desse quadro, aparecem as diferenciações entre as instituições de


ensino jurídico. No topo da pirâmide estão as instituições responsáveis pelas
carreiras jurídicas nobres, quais sejam, exemplificativamente: a advocacia de
ponta (escritórios-empresa ou boutiques de advocacia), a magistratura e a
promotoria pública. As questões que envolvem a advocacia serão tratadas no
próximo tópico. Em relação às carreiras públicas, as possibilidades são variadas.
A Administração Pública oferece uma quantidade ímpar de vagas para as
carreiras jurídicas do alto escalão. Só na magistratura, por exemplo, há a
possibilidade de ser Juiz Federal, Juiz do Trabalho, Juiz Estadual nos 26 estados
da federação e Juiz Militar, garantia de estabilidade, remuneração polpuda e
prestígio social9. Ser um integrante do Ministério Público, seja a nível federal
ou estadual, também garante ares nobiliárquicos.
A partir do interesse dos alunos no ingresso no topo da carreira jurídica,
as escolas de Direito se veem obrigadas a adaptar seus currículos e professores
para o funil que tais vagas alardeiam. A preparação para um concurso desse
nível consiste, em média, em dez anos de estudos jurídicos. Normalmente
começa nas universidades consideradas de alta qualidade dentro do sistema de
ensino, usualmente as públicas, passando pelos cursinhos especializados e pelas
Escolas Superiores da Magistratura e do Ministério Público, federal ou estadual,
que oferecem treinamento para ingresso na tão sonhada carreira.
9 Cremos que é nessa dimensão do tradicional prestígio social, ou da distinção, para usarmos a
categoria de Pierre Bourdieu (2008), que encontramos a explicação para a “greve dos juízes
federais” em 2012, descontentes com seus salários de R$ 15.000 (líquidos), o que é um
evidente absurdo. É que a construção histórica do juiz como figura nobre não permite que o
sujeito que alcança tal posto se veja como um mero funcionário público, que cumpre função
tão importante como a do professor universitário ou a do lixeiro que evita que a rua se torne
imunda. Daí que necessita um salário “à altura de sua nobreza”, de modo a manter um padrão
de vida bem acima do resto da população. Sobre esse tema, ver o artigo com o título
“Julgando de barriga cheia”, de Túlio Vianna, publicado no Estadão, no dia 11 de novembro
de 2012.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 77
À medida que o tempo passa mais mecanismos de preparação
são criados. O concurseiro – expressão utilizada pelos próprios alunos para
designar o indivíduo que tem em vista só o concurso público – está disposto a
qualquer situação para chegar ao topo. Desde simpatias até preparação
particular com os chamados coachings, que são treinadores que difundem suas
experiências pessoais como uma espécie de autoajuda para o alcance do
objetivo. O esforço dedicado sempre terá recompensa no salário que a carreira
oferece. Investir na preparação complementar já está nos planos daqueles que
não tem outro objetivo senão o de fazer parte do seleto grupo institucional. Por
isso os cinco anos dedicados à graduação acabam sendo complementados por
escolas preparatórias, cursinhos, revisões, provões, enfim, tudo o que o mercado
for capaz de oferecer para bem servir o nicho dos egressos das escolas
jurídicas10.
Conforme Max Weber, uma das principais características do Estado
Moderno é o fato de possuir um quadro administrativo burocrático, recrutado de
forma impessoal, por meio de qualificação verificada mediante prova (WEBER,
2012, p. 144), o que contemporaneamente se traduz nos concursos públicos. O
concurso, nessa perspectiva, tem por função democratizar e racionalizar o
acesso às funções públicas, por meio da seleção meritocrática. Ou seja, a partir
dessa ideia, os cargos de juiz e promotor de justiça, por exemplo, não estão mais
destinados apenas aos amigos do rei, que podia nomeá-los livremente, ou
mesmo destinados aos vitoriosos de eleição direta. Como, portanto, concordar
com a ideia de Pachukanis, jurista marxista, de que a “jurisdição criminal do
Estado burguês é o terror da classe organizada”? (PACHUKANIS, 1988, p.
124). Os postos de juiz e promotor de justiça não estão disponíveis a todos os
postulantes que estudarem o bastante para passarem na seleção? Se assim o é,

10 Interessante observar, entretanto, que a carreira da Defensoria Pública não pode ser
encaixada nessa classificação de concurso nobre. Não obstante a Constituição Federal
considerar a Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional, os salários
dos defensores públicos por vezes são a metade dos salários de juízes ou promotores. Tal
condição, por si só, lamentavelmente, já é uma das explicações para a não opção pela
carreira. Dentre outras, estão a confissão de inabilidade para solução de problemas reais, o
sucateamento das defensorias estaduais, enfim, as mais variadas desculpas que apenas
estampam a atomização do estudante de Direito. Porém, é notável como o cargo tem sido
encarado como trampolim para as carreiras mais desejadas. Numa espécie de teste, o
concurseiro, muitas vezes, não se importa em agarrar a oportunidade da estabilidade que só o
emprego público pode lhe oferecer, para continuar decorando a legislação até alcançar outro
cargo mais rentável.

78 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
por qual motivo a imensa maioria dos juízes e promotores de nosso país foram
crianças e jovens socializados nas classes dominantes?
Weber continua a nos ajudar. O autor nos explica que aos afortunados
não basta a própria fortuna; eles precisam também sentir-se merecedores de
seus privilégios:

Os afortunados raramente se contentam com o fato de


serem afortunados. Além disso, precisam saber que
têm o direito à sua boa sorte. Desejam ser
convencidos de que a “merecem” e, acima de tudo,
que a merecem em comparação com os outros.
Desejam acreditar que os menos afortunados também
estão recebendo o que merecem. A boa fortuna deseja,
assim, legitimar-se (WEBER, 2010, p. 314).

E se a religião outrora cumpriu a função de legitimar a boa e a má-sorte,


oferecendo uma “interpretação ética do significado da distribuição das fortunas
entre os homens” (WEBER, 2010, p. 318), fundando assim uma ideia de justiça
que é fiadora da ordem, hoje é a meritocracia que supre tal questão. Pois o
“privilégio inconfessável” (SOUZA, 2010, p. 45) que explica por qual motivo o
filho da faxineira “terceirizada” não ingressa na faculdade onde a mãe limpa o
banheiro e, por conseguinte, não se torna juiz ou promotor, é justamente a
“produção de indivíduos diferencialmente aparelhados para a competição social
desde seu nascimento” (SOUZA, 2009, p. 22). O Estado, notadamente o Poder
Judiciário, legitima seu recrutamento com base na meritocracia, afirmando que
faz concursos públicos abertos a todos, de modo que os melhores ingressarão na
carreira. Para sustentar tal ilusão, contudo, deixa de explicitar que

(...) existem precondições “sociais” para o talento


supostamente “individual”. O que todos escondem é
que não existe “talento inato”, o mérito “individual”
independentemente do “bilhete premiado” de ter
nascido na família certa, ou melhor, na classe social
certa. O indivíduo privilegiado por um aparente
“talento inato” é, na verdade, produto de capacidades
e habilidades transmitidas dos pais para filhos por

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 79
mecanismos de identificação afetiva por meio de
exemplos cotidianos, assegurando a reprodução dos
privilégios de classe indefinidamente no tempo.
Disciplina, capacidade de concentração, pensamento
prospectivo (que enseja o cálculo e a percepção da
vida como um afazer “racional”) são capacidades e
habilidades da classe média e alta que possibilitam
primeiro o sucesso escolar dos filhos e depois o
sucesso deles no mercado de trabalho. O que vai ser
chamado de “mérito individual” mais tarde e legitimar
todo o tipo de privilégio não é um milagre que “cai do
céu”, mas é produzido por heranças afetivas de
“culturas de classe” distintas, passadas de pais para
filhos. A ignorância, ingênua ou dolosa, desse fato
fundamental é a causa de todas as ilusões do debate
público brasileiro sobre a desigualdade e suas causas e
formas de combatê-la (SOUZA, 2009, p. 22/23).

Por óbvio que não estamos aqui a desmerecer os esforços de juristas


aprovados em concursos públicos, não raro orgulhosos dos próprios cargos,
alguns com razão diante do bom uso que fazem de tais postos. Mas não
podemos deixar de perceber o mecanismo a partir do qual ocorre a reprodução
das desigualdades de classe no seio dos cargos públicos 11. Como imaginar que
um sujeito que sofre diariamente violências reais e simbólicas - não raro
precisando trabalhar desde cedo, largando assim os estudos ou mesmo aliando
estudo e trabalho - poderá ter condições de, primeiramente, vencer um
concorrido vestibular e ingressar em faculdade de qualidade, para depois
encarar a “corrida maluca” dos concursos públicos elitistas, com tranquilidade
para encontrar concentração, tempo para se dedicar à exegese das leis e dinheiro

11 Por certo que não faltarão aqui exemplos de “vencedores atípicos”, que passaram em
concursos elitistas mesmo após terem estudado em faculdades menos nobres, ou mesmo de
pessoas das classes subalternas que acessaram as universidades públicas em razão do talento
pessoal ou esforço hercúleo. Aliás, Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal
Federal, é o grande exemplo da segunda hipótese, “menino pobre que chegou ao topo da
carreira jurídica”. Seu caso é alardeado ideologicamente como símbolo da justeza da
meritocracia, ocultando no mesmo processo o destino de classe de todos aqueles que ficaram
para trás. As exceções, como sabem os estudantes de direito mais atentos, confirmam a regra.

80 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
para se sustentar enquanto não é aprovado?12
Cremos que compreender a reprodução do caráter classista de nossa
justiça é tarefa importante, pois o perfil do profissional (juiz ou promotor)
usualmente recrutado é um dos elementos que explicam a péssima qualidade da
prestação jurisdicional, sobretudo quanto à completa insensibilidade de classe
por parte dos juristas, o que é perceptível em qualquer audiência na qual ocorra
o drama da “luta de classes a portas fechadas” (SOUZA, 2009, p. 331). São
esses os funcionários públicos que decretarão prisões preventivas infundadas
em razão da necessidade de garantia da ordem pública, diante da
“periculosidade do agente”, destilando preconceito de classe. Os mesmos que
postularão em juízo o fechamento das escolas nos acampamentos do
Movimento Sem Terra, taxando-as de ideológicas (e imaginando que as escolas
particulares onde seus filhos estudam são neutras). São os profissionais que
decretarão a reintegração de posse no caso Pinheirinho, despejando milhares de
famílias de suas casas em nome da “segurança jurídica” e do título de
propriedade de um bilionário.

2.2 A ADVOCACIA E A PREPARAÇÃO PARA A PROVA DA ORDEM


DOS ADVOGADOS DO BRASIL

Dirigiu um olhar preocupado à sua


volta, mas felizmente ninguém prestava
atenção nele, todas as mesas estavam
ocupadas por estudantes de direito que
falavam de orgias ou de “sócios-
juniores”, enfim, dessas coisas que
interessam aos estudantes de direito,
podia chorar completamente à vontade.

12 Não adentramos aqui em “fatores pessoais” que contribuem para a aprovação ou reprovação,
como o pertencimento à família tradicional no mundo jurídico. Não obstante, é preciso
mencionar a persistência do poder pessoal nos concursos supostamente impessoais. O
concurso para juiz substituto de 2012, em Santa Catarina, por exemplo, foi anulado, tendo em
vista que o Conselho Nacional de Justiça encontrou diversas irregularidades, como o
favorecimento de candidatos (Conferir em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/14511-cnj-
anula-concurso-para-juiz-em-santa-catarina). Ademais, alguns dos concursos de recrutamento
elitista possuem uma fase denominada “investigação da vida pregressa”, fato que dispensa
maiores explicações.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 81
Michel Houellebecq, O mapa e o
território

Dentro das salas de aula das Faculdades de Direito encontram-se


estudantes que já ingressam no ensino superior com o fantasma da prova da
OAB sobre suas jovens cabeças. E a temida prova de habilitação profissional é
uma das grandes preocupações dos bacharéis que semestralmente são jogados
no mercado jurídico. Não ter a “carteirinha” da OAB, além de atestar não ser
sócio do clube, é considerado sinônimo de rebaixamento na carreira jurídica.
Na ginástica docente, o professor de Direito deve estar atualizado nos
exames que são aplicados três vezes por ano. Não saber o que a comissão
organizadora pediu na questão pode ser considerado um pecado capital perante
os alunos. Após tornar-se obrigatório, o exame da OAB acabou revelando
paulatinamente o fracasso das escolas jurídicas – do ponto de vista da formação
legalista. Os altos índices de reprovação dos bacharéis não convenceram as
faculdades de que o ensino jurídico estava obsoleto. Ao contrário, muitas
atestam a inutilidade de seu ensino criando cursos preparatórios para o exame,
sem nenhum constrangimento, concomitantemente ao último ano de graduação.
Os mesmos professores que acompanharam os alunos durante os cinco anos da
graduação preparam aulas com as temidas questões da OAB. Existem as
faculdades mais honestas que não cobram nada além da mensalidade habitual,
mas que dedicam fins de semanas e horas extras a preparar seus alunos cheios
de insegurança para prova da OAB13.
Igualmente, o mercado editorial foi se adaptando às exigências dos
cursos jurídicos. Dos famosos manuais recheados de dogmática, que, com o
passar do tempo, apenas agregam à autoria a dinastia genética que vai do pai ao
bisneto, até os folhetos que resumem toda matéria na frente e no verso de folha
A4 plastificada. A versão esquematizada de qualquer doutrina ganha quadros
sinópticos para simplificar a complexidade jurídica num passe de mágica. Até o
conhecido site de compartilhamento de vídeos na internet ganhou uma versão
especial para os graduandos das faculdades de Direito, é o OABTUBE 14, que
promete facilitar a vida do bacharel com suas aulas virtuais ministradas por
professores especialistas.

13 Conferir em http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/pucrs/Capa/Noticias?
p_itemid=5475477.
14 Disponível em :http://www.oabtube.com.br/new/

82 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Em média, a aprovação no referido exame varia de 20 a 30%. Ou seja,
nem a metade dos egressos dos cursos jurídicos estaria habilitada para exercer a
profissão. Com o passar dos anos, o excedente de mão de obra desqualificada
vai enchendo o mercado jurídico que lucra de qualquer maneira. Seja
oferecendo uma incontável quantidade de cursos preparatórios, seja explorando
o bacharel que fica numa espécie de limbo jurídico por não ter sido aprovado no
exame da OAB15. Não são raras as vezes que grandes escritórios aproveitam-se
da situação do recém-formado bacharel para utilizar sua mão de obra de forma
barata e descompromissada. A própria Seccional da Ordem dos Advogados do
Brasil do Rio Grande do Sul propôs a criação da figura do “estagiário bacharel”,
ou seja, uma extensão do período escolar na qual o estudante pode prestar
serviços, aprimorando seus conhecimentos, com a finalidade de ser aprovado no
exame. A Ordem dos Advogados do Brasil, que também deveria pensar sobre o
quadro do ensino jurídico no Brasil, parece estar mais atenta ao mercado, e
assim ajusta espécie de gambiarra na legislação para acomodar o excedente de
bacharéis que perambulam como fantasmas que não acham seu corpo dentro do
sagaz mercado jurídico, que bem poderíamos denominar “exército de reserva
minimamente escolarizado para o trabalho precário” (SOUZA, 2010, p. 63).
Superada a fase da prova da OAB, o estudante se torna um advogado,
de gravata e abotoadura, que terá que lutar por um espaço nesse concorrido
mercado. A advocacia top transita entre dois tipos-ideais. O primeiro é o do
escritório-empresa, capitaneado por um advogado-empresário que vislumbrou
um nicho interessante, como um tipo de ação de massa (contra o Estado, por
exemplo) ou que assumiu uma conta fértil, como a de um banco ou de uma
empresa de telefonia, levando a cabo uma advocacia de massa. Nesse caso, não
obstante a engenharia societária que divide os trabalhadores em advogados
seniores, juniores, etc – fato que tem a ver com o planejamento tributário –
apenas os sócios efetivamente proprietários auferem lucro expressivo, ao passo
que os demais advogados participam da linha de montagem, recortando e
colando petições-modelo que abarrotam o judiciário com discussões sobre
financiamentos, inadimplência, etc. Para os advogados contratados desse tipo de
escritório, restou pouco do charme de uma profissão liberal. Trata-se de um
trabalho fundamentalmente braçal, com todas as características da labuta

15 E os bacharéis reprovados, geralmente por diversas vezes, criaram sua própria ordem, a
Ordem dos Bacharéis do Brasil (OBB). Sua principal bandeira, pasmem(!), é a abolição da
prova da OAB.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 83
operária, como a rígida disciplina – exigências verticais sobre a roupa, por
exemplo - e controle de horário, muitas vezes com cartão ponto. Já o estudante
de direito que estagia nesse tipo de empresa de advocacia – que em razão da
colonizada inspiração nos escritórios norte-americanos chamam seus estagiários
de trainees - pouco aprende sobre questões jurídicas. Isso porque sua função
consiste em carregar processos para lá e para cá, nos variados fóruns da
metrópole. Carregam processos devidamente fardados de terno e gravata ou de
tailleur e salto-alto, é claro. A questão mereceria pesquisa empírica mais
cuidadosa, mas parece seguro afirmar que a possibilidade de ascensão
profissional nesse tipo de escritório é bastante limitada, apesar das promessas de
progressão funcional, pois o posto de “sócio proprietário” está guardado para o
herdeiro que está a cursar Direito.
O outro tipo-ideal é o que chamaremos de boutiques de advocacia, mais
ligadas à advocacia criminal ou administrativa, bem como à advocacia de
pareceres. Tal atividade geralmente acaba sendo exercida por aqueles que
possuem alguma ligação com gerações anteriores de tradicionais bancas que
defendem os interesses de empresários e de personalidades políticas, por
exemplo. Sempre que mais um escândalo político é noticiado na mídia,
aguarda-se a figura do bacharel pertencente à “nata” da advocacia brasileira.
Muitas vezes a fisionomia não é conhecida, mas o sobrenome lhe dá
credibilidade e confiança para atuar no caso. Nesses casos, o estudante de
Direito deve saber o que sabem os advogados mais antigos, que o fundamental é
- além de ser um estudioso da área na qual é especialista, não raro aliando
advocacia e docência - cultivar a própria imagem, adotando o sóbrio tom de um
pai de família, frequentando os mesmos ambientes nos quais transitam seus
possíveis clientes e firmando parcerias com colegas bem sucedidos de outras
áreas da advocacia (de modo a entrar no jogo das indicações). Para o sucesso
nessa seara, o estudante deve, desde o início de sua formação, buscar obter
“bons contatos”, que podem lhe render frutos no futuro. Portanto, o sucesso
nesse tipo de atividade tem a ver com a rede de relações que o postulante trava
ao longo de sua vida social e profissional, de modo que não resta dúvida de que
os agentes das classes alta e média já partem com larga vantagem na disputa
mercadológica por clientes escassos 16.

16 Outro ponto que não pode ser desconsiderado é a enorme disparidade entre os gêneros na
concorrência do mercado da advocacia, fato que parece bastante minimizado na cena dos
concursos públicos. Além disso, o acesso à “respeitabilidade” que garante sucesso na

84 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
2.3 A PREPARAÇÃO PARA OS CONCURSOS DO BAIXO ESCALÃO

O "inimigo" é a banca examinadora. A


forma que o inimigo tem para aniquilar
os guerreiros incompletos (ou seja,
aqueles que ainda não estão preparados
para o cargo) é valer-se das dificuldades
próprias do terreno, ou seja, da matéria.
William Douglas, A arte da guerra para
concursos

Existem ainda os bacharéis que representam espécie de “terceira divisão


do campeonato brasileiro das escolas de Direito”. São aqueles que, embora com
os diplomas de curso superior debaixo do braço, prestam concursos cujo
requisito mínimo é o ensino médio. Buscando de forma desesperada uma
colocação no mercado, milhares de estudantes fazem dupla jornada de sala de
aula – quando não possuem um emprego em outra área e família para sustentar,
quadro muito comum nas faculdades particulares – ouvindo espécie de mantra
legal repetidamente, para marcar a resposta correta e atingir o funcionalismo
público, seja a nível federal, estadual ou municipal, independentemente do
cargo.
Esta é uma das promessas feita à nova classe trabalhadora brasileira,
chamada criativamente por Jessé Souza (2010) da classe dos “Batalhadores”,
que ingressa na carreira jurídica em busca de ascensão social e melhores
condições de vida. Além de pagarem o curso de Direito durante o período
regular – muitas vezes através de financiamento público que pode durar até
vinte anos – contratam os serviços promissores e milagrosos de cursos
preparatórios que inventam cada vez mais novidades para atrair sua vasta
clientela. A própria publicidade dos “cursinhos” preparatórios para concurso
capta com precisão a ideologia que rege a condução da vida da classe dos
batalhadores. Por um lado, a promessa de sucesso – “o sucesso espera por você”
é o slogan do LFG, um dos maiores cursinhos do Brasil – e por outro,
depoimentos de vencedores17, que se assemelham profundamente aos

advocacia ainda está praticamente vedado aos homossexuais que assumem sua condição.
17 Conferir, por exemplo:

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 85
testemunhos pentecostais, que auxiliam na constante renovação da fé e da “ética
do trabalho duro” (SOUZA, 2010). A epígrafe desse ponto do artigo, retirada de
um texto de um palestrante motivacional bastante conhecido, que consta na
seção “dicas de sucesso” do site do cursinho LFG, também evidencia a guerra
diária travada pelo batalhador-concurseiro.
O trágico é que, salvo exceções, o trabalhador desse perfil não será
aprovado em nenhum concurso, pois as estruturas objetivas do cotidiano de
alguém que “não estuda para trabalhar”, mas que “trabalha para ter a chance de
estudar” (SOUZA, 2010, p. 77) impedem a existência das precondições para o
“sucesso” nesse tipo de disputa, como, exemplificativamente, a organização de
um tempo próprio para o estudo. Como percebe Jessé Souza, “é como se as
portas do universo escolar se abrissem pela metade ou pelo menos uma pequena
fresta pela qual as classes dominadas podem dar uma pequena espiada”
(SOUZA, 2010, p. 79).
A produção do “bando de avestruzes, que diligentemente se poem a
engulir [sic], com fervor estatolátrico [sic], a sua porção de artigos, parágrafos,
incisos e alíneas” (LYRA FILHO, 1981, p. 08) chegou a níveis incalculáveis.
Drasticamente, o ensino jurídico para esse contingente é encarado na sua forma
mais crua, e, consequentemente, numa de suas funções primordiais: a produção
de mão de obra burocrática e precária. Ao estudante dessa classe que, ao
contrário de seus compatriotas das classes média e alta, precisa suar a camisa
diariamente sob pena de naufragar na pirâmide social, pouco importa o
epistemicídio que sofre a “ciência jurídica”. Seu único e exclusivo interesse é
pagar para ter conhecimento de uma vasta legislação que vai sendo modificada
diariamente. Dessa forma, docentes deparam-se com salas de aula lotadas de
alunos-zumbis, batalhadores cansados, mas ansiosos por novidades legislativas,
em busca da redenção social. Acaba execrado o professor que deseja mostrar as
lacunas do ensino, desvendar as mentirinhas contadas ao longo de séculos,
mostrar que é possível pensar, ou seja, tentar fazer uma espécie de intervenção
lúcida. Qualquer aula dada fora do script curricular ou do edital será levada ao
conhecimento da instituição. Ao mestre impávido será mostrado o caminho a
ser seguido para que receba seu salário no fim do mês.

2.4 O FENÔMENO DOS CURSINHOS

http://www.damasio.com.br/complexo_educacional/historias_de_sucesso.aspx.

86 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
No ápice da cultura jurídica positivista e liberal difundida desde o
século XIX, surgem os cursinhos preparatórios como salvadores das ovelhas
desgarradas pela perversa lei do mercado. Figurões não medem esforços para
percorrer a extensão territorial do Brasil no intuito de difundir seus cursos e sua
filosofia yuppie. O delírio de alcançar um lugar ao sol é compartilhado em
palestras – também conhecidas como showlestras – que mais lembram cultos
religiosos cheios de pirotecnias e brindes. Contando sua história pessoal de
sucesso, muitos desses professores encaram a missão de catequizar o excedente
de bacharéis, escondendo o lucro que os proprietários desse setor obtêm a cada
nova matrícula, sobretudo diante do custo baixo que o ensino à distância
proporciona. O docente dos cursinhos é geralmente desqualificado do ponto de
vista acadêmico, pois seu tempo é dedicado ao cultivo da aparência de uma
felicidade plástica, à leitura dos códigos com a legislação recém-saída do forno,
ao domínio da mais recente jurisprudência e à elaboração de mil e uma
alternativas de sala de aula em busca da máxima didática – esquemas, músicas e
brincadeiras18.
Nesse contexto, os ícones do sucesso, além de repetirem os índices de
aprovação, decretam a própria falência do ensino jurídico ministrada nas escolas
de Direito há tanto tempo. Em realidade, como visionários do quadro dramático
do ensino “bancário” (FREIRE, 2011a) tão difundido na realidade brasileira,
cooptam os alunos para mais algumas sessões de difusão do ensino jurídico

18 O mantra tem ainda forma musical, nos moldes das aulas do “antenado” professor
de direito e processo penal, e Delegado de Polícia, Sandro Caldeira, também
proprietário da Vega Cursos Jurídicos. O “professor”, em busca de clientes, procura
lecionar a matéria por meio de canções que ele mesmo compõe. Na canção sobre
erro na execução, cuja letra vai abaixo transcrita, a música que serve de base é “Dia
de Domingo”, celebrizada na voz de Tim Maia: “Sim eu quero te matar, te dar um
tiro no peito/ Mas se o alvo eu errar, e acertar outro sujeito/ Mesmo assim vou
responder como se tivesse acertado a pessoa que eu queria, ter então matado/ Isso
está previsto no artigo 73/ é Aberratio Ictus. Refrão... Não tem jeito eu sou ruim de
mira/ Atirei nele e acertei em outro cabeção/ Com certeza vou continuar tentando/
Será que da pra treinar tiro na prisão... Agora eu quero acertar/ com uma pedra
essa vidraça/ Mas se o alvo eu errar, e te acertar, mas que desgraça! Bis... Então
como ficará minha responsabilidade/ sempre que acontecer a Aberratio Delicti/ eu
sempre responderei pelo resultado diverso, à título de culpa.” Conferir em
http://www.sandrocaldeiramusicas.com/

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 87
alienante. Sem nenhum constrangimento, apresentam-se como pertencentes a
uma elite jurídica brasileira a qual a maioria dos ouvintes jamais alcançará.
Roberto Lyra Filho, no início da década de 80 do século passado,
diagnosticava em sábias e cada vez mais raras palavras o drama do ensino
jurídico brasileiro:

“O curso breve, super-especializado [sic], tecnicista é


tão curto de visão, quanto encolhido no tempo; só cria
pseudo-especialistas do tipo subalterno; e, de técnicas,
ensina quanto basta ao aluno para se tornar um
profissional bonzinho e bem mandado. Em suma, dá
tributo à estrutura assente, que pede mão-de-obra, sem
cabeça.” (LYRA FILHO, 1981, p. 17).

Não há como desconsiderar que tal realidade tenha culminado na


criação de cursos gelatinosos e cheios de pactos fáusticos. A apropriação de
forma mercantilizada dessa área que captura aqueles que somente têm a
oferecer seus corpos para profissões burocráticas e precárias, deve ser sopesada
dentro do quadro do ensino jurídico brasileiro. Assim, qualquer análise ou
reforma proposta que não leve em conta o sufocamento gerado pelo ensino
jurídico bitolado, bem como a reprodução de classe no mundo jurídico, será
uma visão caolha de um problema complexo, que terá de ser enfrentado dentro
das universidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS - O LUGAR DAS PROPEDÊUTICAS NO


ENSINO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

Em quase 185 anos de ensino jurídico no Brasil, nota-se, que o perfil


epistemológico e ideológico que sustenta os currículos das escolas de Direito
está intimamente ligado com o paradigma normativo-positivista de viés liberal.
Após a consagração do currículo mínimo em 1962, com períodos mais calmos e
outros mais conturbados, reformas foram propostas sempre a partir de tal
diagnóstico. Todavia, a profissionalização, a despolitização e o tecnicismo
permaneceram sustentando os eixos de formação do bacharel brasileiro. As
Faculdades de Direito, portanto, ao longo da história (e com raras e brilhantes
exceções), podem ser consideradas apenas como “centros de transmissão de

88 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
informação” (WARAT; CUNHA, 1977, P. 61). As reformas curriculares não
foram direcionadas para desvendar os mitos jurídicos com os quais a dogmática
jurídica se alimenta. Enfim, nunca foi papel do ensino jurídico discutir como e
por que a cultura jurídica cria ficções ou promete situações de segurança,
amparada num sistema normativo (WARAT; CUNHA, 1977). Ao contrário, o
estudante de Direito tem sido formatado para não pensar e para agir
mecanicamente.
Após as décadas de 80 e 90 do século passado, momento proveitoso de
discussão acerca das diretrizes curriculares do curso de Direito, talvez pelo
ensejo da abertura democrática pela qual passava o Brasil, atualmente, é a
Resolução CNE/CSE nº 9/2004 que regulamenta as diretrizes nacionais do
curso de graduação em Direito. É baseado em tal resolução que as IES devem
elaborar seus projetos pedagógicos e os currículos plenos de seus cursos.
Basicamente o curso de graduação em Direito deverá contemplar conteúdos e
atividades que estão divididos em três eixos interligados de formação: o eixo de
formação fundamental, o eixo de formação profissional e o eixo de formação
prática.
O eixo de formação fundamental tem por objetivo a integração do
estudante no campo, para que estabeleça as relações do Direito com outras áreas
do saber através de estudos que envolvam conteúdos essências sobre:
Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia
e Sociologia. Importante ressaltar, contudo, que “as diretrizes não impõem que
esses conteúdos sejam trabalhados em disciplinas ou módulos específicos”
(RODRIGUES, 2005, p. 205). Não obstante, a realidade demonstra que tais
conteúdos encontram-se nos projetos pedagógicos e nos currículos das escolas
jurídicas tal como a resolução define. E mais, com a adjetivação colonizadora
do Direito, como “Antropologia Jurídica”, “Filosofia Jurídica” ou “Sociologia
Jurídica”. Os conteúdos do eixo de formação fundamental, normalmente, estão
distribuídos nos primeiros anos do ensino e, na prática, são encarados como
formação humanística, embora, conforme a resolução em análise, sirvam como
auxiliares na compreensão do Direito.
O ensino do Direito, dessa forma, ganha disciplinas de outras áreas do
conhecimento para consagrar a chamada interdisciplinaridade. E, da mesma
forma, os “concursos nobres” adaptaram-se a nova onda humanista, o que fez
com que o Conselho Nacional de Justiça editasse a Resolução nº 75 de 2009,
para que fossem cobradas em seus processos seletivos “noções gerais de direito

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 89
e formação humanística”. E assim, Durkheim, Marx e Weber serão cobrados em
perguntas de múltipla escolha: marque com um x qual dos autores acima
nominados cunhou o conceito de “solidariedade mecânica”?
A inserção das disciplinas do eixo de formação fundamental, ou
habitualmente chamadas de propedêuticas, tem como intenção a aproximação
do estudante de Direito com a construção da realidade. Ou seja, na melhor das
intenções, o acoplamento das humanísticas veio para suprir o caráter atomizante
ao qual os alunos são submetidos ao longo dos anos. De certa forma, o status
quo retrógrado e petrificado dos cursos jurídicos foi revelado.
Auxiliar na formação do pensamento jurídico obsoleto seria a função
das disciplinas que comportam o eixo de formação fundamental. A ideia de que
a abertura para as disciplinas de formação cultural e humanística seriam a chave
para o conhecimento mais amplo não foi alcançada. Ao contrário, o que é
possível verificar é apropriação pelo ensino jurídico dessas outras áreas do
conhecimento de forma a colonizá-las a partir da gramática do direito –
apropriação retórica dos padrões de cientificidade (PRANDO, 2012).
Embora a fissura tenha sido exposta – o que fez com as humanísticas
entrassem nas Faculdades de Direito – houve uma apropriação negativa do
espaço que tais disciplinas ganharam. O ponto de partida seria, declaradamente,
a superação do modelo tecnicista e dogmático, enquanto o ponto de chegada
seja ainda um tanto obscuro. O pensamento, portanto, estava liberado apenas
nesse espaço e o perigo da reflexão finalmente teria sido inserido no ensino
jurídico. Houve comemoração pelos docentes mais otimistas e questionamentos
pelos mais prudentes. Isso porque, para um bom uso dessas disciplinas seria
necessário olhar para o passado, ou seja, para o berço no qual nasceu o ensino
jurídico no Brasil, bem como para o futuro, desde a definição de uma concepção
clara acerca do tipo de sociedade que almejamos. A profícua compreensão de
tais disciplinas torna-se um perigo no ensino jurídico. A abertura ao pensamento
crítico poderia demonstrar que o castelo da dogmática jurídica, construído
arduamente por seus moradores, não se sustenta sem os alicerces da estrutura
econômica dominante. Seriam as disciplinas fundantes a brisa que faria ruir tal
castelo?
Infelizmente, cremos que não. Ajustadas aos currículos pragmáticos e
tecnicistas, as propedêuticas foram perniciosamente colocadas em seu lugar, ou
seja, como auxiliares do Direito 19. Contemporaneamente, quando possuem

19 Acerca do exemplo da Criminologia, secularmente rotulada como ciência auxiliar do Direito

90 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
algum espaço, representam entre 10 a 20% do currículo. Incluídas nos primeiros
anos do ensino jurídico, não é incomum escutar dos alunos que não servem
para nada. Normalmente, estes se encontram ávidos pelo amontoado de leis e
doutrinas que lhes foram prometidos. Desejam carregar em seus braços os
pesados códigos abarrotados da legislação pátria que será a chave do portal que
o Poder Judiciário ostenta.
A abertura oferecida pelas propedêuticas é parcial. Isso porque, tanto o
ensino conservador do Direito, quanto tais disciplinas, andam de mãos dadas, já
que frequentemente são oferecidas à luz do mesmo paradigma positivista,
selando desse modo uma estratégica parceria com a dogmática jurídica e, por
isso, terminam com sua eficácia invertida. O status quo permanece incólume
difundindo a ideologia dominante com a carapuça de neutralidade que só o
positivismo é capaz oferecer.
Não existe a possibilidade de recriar o ensino jurídico apenas com a
inserção de penduricalhos aos currículos das escolas jurídicas. Antes de
qualquer tipo de reforma, é fundamental que se tenha uma concepção clara
acerca de que tipo de efeito pretende-se produzir no campo social. Tal
concepção, por seu turno, será resultado de uma decisão política prévia, palco
no qual será necessário decidir a que tipo de interesses (da ordem ou da
transformação) o Direito vai servir. Vale salientar que a neutralidade é já uma
opção política e que o professor progressista deve estar advertido “em face da
esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação”
(FREIRE, 2011b, p. 95). É preciso, pois, repensar o ensino jurídico a partir de
sua base. Nas lúcidas palavras de Roberto Lyra Filho, é preciso saber o que é o
Direito, para que se possa ensiná-lo (LYRA FILHO, 1980).

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94 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Criminologia antropofágica: aportes para uma
criminologia crítica brasileira

Luciano Góes*

Para entender o objeto da criminologia, temos que


entender a demanda por ordem de nossa formação
econômica e social. A criminologia se relaciona com
a luta pelo poder e pela necessidade de ordem. A mar-
cha do capital e a construção do grande Ocidente co-
lonizador do mundo e empreendedor da barbárie pre-
cisam da operacionalização do poder punitivo para
assegurar uma densa necessidade de ordem. Espera-
mos tentar aprofundar essa reflexão daqui do lado
selvagem.
Massimo Pavarini – Controle e Dominação

RESUMO: Em face da imprescindível decolonialidade e norteado pela crimi-


nologia da libertação como construção de uma criminologia crítica própria,
contra-hegemônica, criminologia antropofágica esta assentada aqui em um du-
plo sentido. O primeiro explicita a auto-destruição que a recepção do paradigma
etiológico representou no continente latino-americano, sendo que no Brasil sua
tradução incorporou algumas especificidades. O segundo se refere exatamente a
necessidade de levar em consideração essas especificidades na construção de
uma criminologia crítica brasileira, ou seja, em uma perspectiva antropofágica
oswaldiana. Outrossim, esse artigo é parte integrante de um projeto que tentará,
a várias mãos, construir uma criminologia verdadeiramente brasileira. Nestes
termos, pretendemos contribuir com alguns aportes que vão desde e o estereóti-
po do criminoso à sua recepção acrítica no Brasil, que naquele momento, aban-
donava o modelo escravocrata que construiu nosso país a base de suor e sangue.
Entretanto, em que pese, o modelo de produção tenha sido modificado, o siste-
* Advogado criminal, mestrando da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
coordenador operacional do projeto de extensão “Universidade Sem Muros” e
bolsista CAPES.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 95
ma punitivo escravagista ainda continua vigente, moendo a mesma gente em
moinhos diferentes, continuando o genocídio.

PALAVRAS-CHAVE: Criminologia; Etiologia; Estereótipo; Seletividade;


Genocídio

RESUMEN: Ante la imprescindible de-colonialidad y guiada por la


criminología de la liberación como la construcción de una propia criminología
crítica, contrahegemónica, criminología antropofagica esta sentado aquí en un
doble sentido. La primera explica la auto-destrucción de la recepción del
paradigma etiológico representado en América Latina, y Brasil en su traducción
incorporado algunos detalles. El segundo se refiere precisamente a la necesidad
de tener en cuenta estas especificidades en la construcción de una criminología
crítica brasileña, o sea, en una perspectiva Oswaldiana antropofagica. Además,
este artículo es parte de un proyecto que intentará, a muchas manos, construir
una criminología genuinamente brasileña. En consecuencia, se pretende aportar
algunas reflexiones que van desde la creación de la criminología positivista y el
estereotipo criminal a la recepción acrítica en Brasil, en aquel momento,
abandonando el modelo de esclavitud que construyeron nuestro país la base de
sudor y sangre. Sin embargo, a pesar del modelo de producción se ha
modificado, el sistema punitivo de la esclavitud sigue vigente, moliendo las
mismas personas en diferentes molinos, el genocidio continuo.

PALABRAS CLAVE: Criminología, Etiología, Estereotipo, Selectividad;


Genocidio

1 O NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA: a Escola Positiva e o Direito


penal do autor

No final do século XIX e início do XX, a Europa se deparava com


uma situação inconciliável, vivia no deslumbre proporcionado pela nova ordem
social, na qual a burguesia usufruía as benesses das premissas basilares do
modelo capitalista, enquanto que aquele penal crítico, não conseguia responder
os problemas da criminalidade1.
1 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Las "clases peligrosas": el fracaso de un discurso policial prepositivista.
2005. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15174/13799>. Acesso
em: 06 set. 2012, p. 142

96 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
As críticas se orientavam pela impossibilidade das teorias formuladas
pela Escola Clássica2 identificarem as causas da criminalidade, onde, por via de
consequência, poderia ser combatida, dado que estas teorias sobre o crime (ente
jurídico), direito penal e pena, possuíam como características o livre arbítrio dos
criminosos, o mesmo livre arbítrio do restante da população.
Nessa paradoxal realidade, o olhar criminalizante se volta ao
delinquente, o elemento esquecido pelo Classicismo, tendo este que ser
diferente já que as causas da criminalidade não poderiam estar na estrutura
social. Assim, a burguesia procurou uma teoria com credibilidade capaz de
efetivar (e camuflar) a seletividade, deixando, nas entrelinhas, as consequências
econômicas e sociais causadas pelo sistema sócio-econômico.
Esta busca é demonstrada em um estudo pré-positivista, datado de
1.840, onde H.A. Frégier, chefe de polícia francês, tenta identificar os
criminosos que compõem as “classes perigosas”, o que legitimaria a corporação
policial ao exercício da sua atividade precípua, o controle social dos delitos e a
correção (prevenção especial) do delinquente, via cárcere, uma vez que esta
corporação possuía o poder mas não um discurso legitimante para seu uso
coercitivo ilimitado.
Entretanto, o discurso policial não obteve êxito, gerando críticas ao
modelo capitalista ao agregar influências sociais e morais, portanto, inadequado
aos interesses dominantes que necessitavam de outro discurso que legitimasse o
uso deste poder a favor dos seus princípios e objetivos, como descreve Eugênio
Raúl Zaffaroni:

Se demonstra aqui que o ensaio de um discurso por


parte da corporação policial, anterior ao positivismo,
não teve êxito devido a debilidade estrutural do
produto, a suas contradições resultantes e, em grande
parte, a inclusão de resultado desfuncional para
legitimar a repressão policial ilimitada. Se os médicos
tinham conseguido discursos mas lhes havia faltado

2 Segundo Vera Regina Pereira de Andrade, o conceito mais correto a esse movimento é “Classicismo”,
pois a designação de “Escola Clássica”, utilizada em sentido genérico, denota uma homogeneidade
teórica que não existiu, sendo que essas teorias foram produzidas em diversos países europeus no século
XVIII até meados do século XIX. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança
jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 45)

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 97
poder para conseguir a hegemonia, as corporações
policiais tinham poder mas não tinham conseguido o
discurso adequado; é curioso que sua escassez de
elementos fosse tal que, em boa parte que a intenção
resultou ser quase iluminista e de crítica social. 3

Vera Malaguti Batista defende que o saber/poder médico que tinha o


crime como patologia classificatória entre normais e anormais degenerados
(portadores da degenerescência que coloca em risco a sociedade sã, que mais
tarde irá embasar as teorias eugênicas), orienta o tratamento via correcionalismo
e à indeterminação, uma vez que “[...] a pena encontrará um caudal de razões
para expandir-se; as estratégias correcionalistas se revestirão de características
curativas, reeducativas, ressocializadioras, as famigeradas ideologias ‘re’.” 4
Se no disciplinamento carcerário necessário às fábricas, segundo a
microfísica do poder, houve a divisão da sociedade entre normais e anormais
(maniqueísmo radical), a necessidade de mensurar a periculosidade do
“criminoso” (o que corresponde à vinculação entre normais=corrigíveis=penas
determinadas ou anormais=incorrigíveis=penas indeterminadas), demandou um
saber “científico” que alcançaria o intangível (a alma, objeto da punição), pois
somente no limbo intramuros a natureza real do criminoso se revelaria. 5
Outrossim, tendo como laboratório científico as prisões e hospitais
psiquiátricos do Sul da Itália, o médico Cesare Lombroso, utilizando o método
científico indutivo (próprio das ciências naturais que utilizavam a observação e
experimentação), influenciado pelo evolucionismo darwiniano e pelo racismo 6,
logo percebeu em seu objeto de pesquisa (criminosos e doentes apenados),
algumas características em comum que lhe permitiram atribuir as causas do
crime à degeneração genética primitiva.
Destarte, se as causas da criminalidade não poderiam ser direcionadas à
estrutura social (erro do discurso policial), nada melhor para rechaçar àquela
igualdade que orientou as críticas do Classicismo e promoveu a mudança na
ordem social do que uma base “científica” para legitimar a desigualdade 7 e o

3 ZAFFARONI, 2005, p. 143, tradução nossa.


4 Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 45
5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41. ed. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 238
6 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio
de Janeiro: Revan, 2008, p. 297
7 BATISTA, V., 2011, p. 27

98 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
controle social da parcela disfuncional ao sistema. Nasce assim, a “ciência” que
estudará o criminoso: a Criminologia, resultado da união dos discursos médico
e policial.
Nesta senda, a Escola Positiva e o paradigma etiológico 8, recoberto por
sua “cientificidade”, atribuiu as causas dos crimes ao delinquente, considerando
suas características (fisionômicas, biológicas e psicológicas), de origem
genética. A criminalidade seria, pois, uma patologia social e portanto seriam
possíveis a profilaxia e a cura deste “mal”, “é nesse momento que o pensamento
criminológico dá o seu grande salto à frente, com uma reflexão ‘científica’,
autônoma, do discurso jurídico e, por isso, sem o embaraço das garantias e
limites.”9
Legitimado pela “ciência”, Lombroso, a partir da ontologia criminal,
individualizou nos “predestinados” anomalias sobretudo anatômicas e
fisiológicas, como pouca capacidade craniana, desenvolvimento do maxilar e
arcos zigomáticos, cabelo crespo e espesso, e “[...] por regressão atávica, o
criminoso nato se identifica com o selvagem”.10
Ao publicar L’Umo Delinquente (1876), Lombroso cataloga os sinais
que entendeu anatômicos da criminalidade e os dados antropométricos dos
criminosos, criando o estereótipo que inculcará o medo, individual e coletivo,
que logo se expandirá pelo mundo necessitado de “ordem”.
Entre o rol das características criminais estão: a tatuagem (“verdadeira
escritura do selvagem”), os traumas, a analgesia, o uso de gírias, a reincidência,
a associação para o mal, entre outras. Nas crianças, a insígnia do mal podia ser
observada na cólera, nos ciúmes, nas mentiras, na crueldade, na preguiça e ócio,
na vaidade, na imitação, etc., e dentre os caracteres “anormais” fisionômicos,
Lombroso destaca as anomalias craniais, apontando a frequência em:

[...] macrocéfalos de frequentes cristas ósseas do


8 Paradigma é utilizado na concepção de Kuhn, para o qual representa um conceito que é partilhado por
uma comunidade científica, e é, ao mesmo tempo, o que une os seus membros. Etiologia, derivada do
grego “aitía”, que significa causa, seria a ciência das causas e assim, tem por fundamento procurar as
causas do crime na pessoa do criminoso, como característica natural, pretendendo responder o porquê do
cometimento de crimes nas sociedades. Este paradigma, parte, assim, da ontologia, pré-determinismo ao
delito de alguns indivíduos portadores de patologias, ou seja, defeitos naturais com explicações
biológicas, psicológicas, genéticas e instintivas.
9 BATISTA, V., 2011, p. 26
10 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social:
mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. 1995. Disponível
em: <http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15819>. Acesso em: 10 ago. 2013, p. 25

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 99
crânio, de crânios muito alongados ou muito
arredondados, e na faces a desproporção entre as duas
metades da face, lábios volumosos, boca grande,
dentes mal conformados com precoce caída nas
formas mais graves, volta palatina assimétrica ou
escondida, restrita; a campainha da garganta alongada
e bífida, aumento e desigualdade das orelhas 11.

No bojo do paradigma etiológico assim, se vislumbrava uma forma de


combate ao fenômeno criminal, agora fenômeno antropológico e portanto,
previsível, determinante ontologicamente do crime.
De acordo com Lilia Moritz Schwarcz, essa previsibilidade transformou
o fenótipo em “espelho d’alma”, uma vez que o tipo físico criminal era, a partir
de então observável, possibilitando a criação de uma minuciosa tabela
subdividida em:

[...] “elementos anathomicos” (assimetria cranial e


facial, região occipital predominante sobre a frontal,
fortes arcadas superciliares e mandíbulas além do
prognatismo); “elementos physiologicos” (tato
embotado, olfato e paladar obtusos, visão e audição
ora fracas ora fortes, falta de atividade e de inibição);
e “elementos sociológicos” (existência de tatuagens
pelo corpo).12

Perante uma sociedade com problemas sociais complexos causados pela


industrialização e urbanização sem precedentes na história da humanidade,
restavam imprescindíveis, para a contenção destes problemas (ou melhor, dos
indivíduos causadores desses problemas), instrumentos eficazes de controle
social, o estereótipo criminal foi assim, funcional e eficiente.
Vera Regina Pereira de Andrade leciona que ao “ver o crime no
criminoso”, o prognóstico periculosista sustenta não apenas o maniqueísmo,
11 LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. trad. Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007, p.
197
12 SCHWARCZ. Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 217

100 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
mas um saber tecnológico que diagnosticava o agente patológico e prescrevia o
remédio curativo, orientando uma política criminal a partir da sua potencial
periculosidade social.13
Nestes termos, a Criminologia nasce exatamente para legitimar o
Direito Penal, orientando a criminalização a determinados indivíduos de
determinadas classes segundo o estereótipo lombrosiano que vinculou o crime
ao crimininoso. Essa orientação irá confluir o Direito Penal do fato e do autor,
dando origem a um sistema integrado (Von Liszt), onde o Direito Penal
hegemonizará a definição do crime enquanto a Criminologia definirá quem é o
criminoso, um sistema de controle social que encontrará campo fértil na
periferia do mundo.

2 A RECEPÇÃO DO PARADIGMA ETIOLÓGICO EM NOSSA


MARGEM LATINA

A “descoberta” do novo mundo pelos países centrais, já demonstra que


o modelo capitalista, mesmo em sua fase embrionária, necessita de humanos
para seu funcionamento, não apenas como meras engrenagens ou combustível,
mas como objeto de atuação, eis que se trata de uma “máquina de gastar
gente”14.
Desde nossa colonização, nossa dependência em relação ao centro não
se circunscreve a economia, é também ideológica, inculcando o desejo de ser
europeu a quem nunca será, mas semeando a “ideologia de superioridade
eurocêntrica” nas classes dominantes coloniais em relação aos povos
escravizados, uma posição que determinará a adoção e recepção dos mais
diversos modelos, nas mais diversas áreas, que os países centrais
desenvolveram, sem, contudo, levar em consideração nossas especificidades
sócio-culturais.
Um desses modelos foi o sistema punitivo, mas se na Europa o Direito
Penal e o cárcere cumprem uma função vinculada ao desenvolvimento do
capitalismo produzindo operários disciplinados para as fábricas, na periférica
esse adestramento não é verdadeiro pois nossa construção se operou a partir da
escravidão, sendo que a mudança no modo de produção ocorreu por imposição
dos países europeus em busca da ampliação do mercado consumidor.
13 ANDRADE, 1995, p. 25
14 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 69

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 101
Outrossim, no final do século XIX e início do século XX, a teoria do
“homem delinquente” começa a ser objeto de diversas críticas que fizeram
Lombroso rever sua tese. Porém, mesmo caindo em descrédito científico na
Europa, nos países marginais o discurso é adotado acriticamente, em sua
plenitude, como denota Eugênio Raúl Zaffaroni, a dizer que:

[...] basta indicar o sentido geral do saber


criminológico no momento de sua consolidação como
saber “científico”, determinando que com
fundamentos ou discursos parcialmente diversos,
generalizou-se um estereótipo que se estendeu pelo
mundo central a partir de uma perspectiva puramente
etiológica, que teve um grande sentido racista e que
foi incorporando matizes plurifatoriais, sem por em
dúvida jamais a legitimidade mais ou menos natural
da seletividade do sistema penal.15

Na mesma perspectiva, Rosa Del Olmo salienta que a “minoria ilustra-


da” periférica não questionou a exploração e as consequências do sistema capi-
talista (tardio), pois “o fundamental nesse momento era enfatizar que os proble-
mas locais não eram produtos das contradições desse tipo de sociedade [...]”. 16
Assim, os problemas se circunscreviam à classe inferior, os “resistentes
à ordem”, que não se integravam por suas características deficitárias, congêni-
tas, ontológicas, psíquicas ou intelectuais que se expressavam em forma de
apatia, repugnância e irresponsabilidade que impediam o desenvolvimento dos
países periféricos, distanciando-os economicamente dos EUA e países europeus
ocidentais, sendo responsáveis, assim, pelo atraso. Urgia, pois, uma solução.
Destarte, a antropologia criminal se orientava aqui a criminalizar os na-
tivos sul-americanos e os negros sequestrados pelo sistema escravagista, onde

Os índios e os negros seriam, para as “minorias ilus-


tradas”, nossos primeiros delinqüentes. Os índios co-
meteriam delitos devido ao seu atraso e ignorância,
15 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Criminología. Aproximación desde una margen. Bogotá: Temis, 1988, p.
169, (tradução nossa)
16 DEL OLMO. Rosa. A América Latina e sua criminologia. Tradução: Francisco Eduardo Pizzolante e
Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2004, P. 173

102 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
segundo os “especialistas” da época, em razão de ca-
racterísticas congênitas que os impediam de se supe-
rar, e não à exploração de que haviam sido objeto du-
rante séculos. Como não havia solução para eles, che-
gou-se a propor- inclusive já no século XX – que fos-
sem julgados por leis especiais, levando-se me conta
seu “estado de perigo”. O mesmo ocorria com os ne-
gros, que além disso foram objeto de atenção especial
– de parte sobretudo dos médicos legalistas – por pra-
ticarem suas religiões trazidas da África, consideradas
sintomas de patologia e expressão de bruxaria fomen-
tadora da delinqüência. Nos países com alta população
negra, a delinqüência era atribuída primeiro à bruxaria
e depois à sua condição de negros.17

3 O PARADIGMA ETIOLÓGICO NO BRASIL: a criminalização do negro

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz


na alma, quando não na alma e no corpo – há muita
gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil –
a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do
negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do
Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A
influência direta, ou vaga e remota, do africano. Na
ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que
se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na
fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que
é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a
marca da influência negra.
Gilberto Freyre – Casa grande e senzala

Mesmo descredibilizado, no final do século XIX a teoria do criminoso


nato foi recepcionada no Brasil, sendo que o médico Raimundo Nina Rodrigues
foi um dos mais importantes adeptos da “nova ciência criminal”, intitulado pelo

17 Ibid., p. 175

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 103
próprio Lombroso como “Apóstolo da Antropologia Criminal no Novo-
Mundo”18, modelou o paradigma às especificidades e à realidade brasileira,
publicando, em 1894, “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”.
Norteado pelo fio condutor do controle social dos “indesejáveis” no
pós-abolição, Nina Rodrigues defende que as “raças inferiores” mereceriam um
tratamento penal diferente dos “normais”, não apenas equiparando o negro a
uma “criança grande” (por sua inferioridade mental e moral), como também
embasando a degeneração antropológica na climatologia do país, sendo a
criminologia, portanto, a ciência pela qual se controlava socialmente os não
brancos.
Tal como a tese original, Nina Rodrigues nega o livre arbítrio da “raça
subdesenvolvida”, porém, não apenas pelos instintos selvagens, mas pelo
padrão moral(izante) que identifica, une e constitui uma sociedade, haja vista
que a responsabilidade penal só poderia ser imputada aos que compartilhassem
dos mesmos conceitos de crime e pena que a raça evoluída alcançou naquele
momento.
Inspirado, curiosamente, no “cérebro social” de Tarde 19, o discurso
rodrigueano, estruturado na consciência do direito e dever social que somente
os indivíduos seletos integrantes do ápice evolucionista humano possuíam,
chama a atenção para o choque cultural entre esta classe e os
selvagens/bárbaros, uma vez que:

[...] tão absurdo e iniquo, do ponto de vista da vontade


livre, é tornar os bárbaros e selvagens responsáveis
por não possuir ainda essa consciência, como seria
iniquo e pueril punir os menores antes da maturidade
mental por já não serem adultos, ou os loucos por não
serem são de espírito.

18 RODRIGUES, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3. ed. Salvador:


Livraria Progresso, 1957, p. 11.
19 Gabriel Tarde (1843-1904), magistrado francês, foi um dos responsáveis pela descrença da teoria de
Lombroso na Europa, pois, “em seus principais textos, como, por exemplo, La Criminalité Comparée,
faz críticas devastadoras aos trabalhos de Lombroso, ao indicar que a descrição do criminoso nato
corresponde muito mais às características de um tipo profissional do que a determinações biológicas
inatas.” (ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os
desiguais. Disponível em: <http://www.nevusp.org/downloads/down068.pdf>. Acesso em: 10 set. 2012,
p. 681-682). Neste sentido, Nina Rodrigues, ignora as críticas de Tarde, utilizando-a para re-legitimar a
teoria etiológica lombrosiana.

104 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Para habilitar-vos a julgar da extensão que ganharia a
impunidade com a aplicação ao nosso código desta
desconveniencia entre a consciencia do direito e do
dever nos povos civilizados e nas raças selvagens,
convém dizer que a observação constata nestas
últimas, uma como diminuição do campo de
consciencia social, de modo que o conceito do crime
restringe-se por demais, aplicando-se apenas a um ou
outro caso excepcional.20

Após a Revolução negra Haitiana (1791-1804), a Revolta dos Malês


(1835) e em face da extensão do problema negro21, de sua inferioridade e
degeneração primitiva que amedrontava 22 e preocupava a elite branca já em
184723, período no qual o Rio de Janeiro era a maior cidade escravista das
Américas24, o paradigma etiológico era indispensável ao “ideal de
20 RODRIGUES, 1957, p. 79
21 Através do tráfico negreiro, o Brasil introduziu em seu território, aproximadamente, 6 milhões de
escravos (RIBEIRO, 1995, p. 162), possuindo o recorde americano, 40% do total de negros sequestrados.
(FREITAS, Décio. O Escravismo Brasileiro. 3. ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1991, p. 11). Não há
consenso no número de escravos que chegaram ao Brasil, pois a quantidade corresponde apenas a uma
estimativa dos escravos que chegaram vivos em nosso solo. Assim, aproximadamente dois terços do
número total de escravos morreram antes de desembarcar aqui. Estudos históricos mostram que, do
número total estimado de negros feitos escravos, um terço morria na viagem até a costa africana e nos
postos de embarque, e outro terço morria na travessia oceânica ou no processo de aclimatação. Mais de
um milhão e meio de negros, entre homens, mulheres e crianças, morriam antes de completar a travessia.
(KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?: uma
análise histórico-juridico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil. Porto
Alegre: Livr. do Advogado, 2007, p. 52-53). Neste contexto, o resultado do ciclo escravagista brasileiro
é, entre vivos e mortos, de aproximadamente 18 milhões de escravos negros, até 1850, quando, em 04 de
setembro, por repressão da marinha inglesa nas águas e portos brasileiros, apreendendo e destruindo
navios negreiros, foi aprovada a lei Euzébio de Queiroz que adotava medidas drásticas para a se findar o
tráfico de negros, sendo que “sem a pressão externa o tráfico não teria cessado” (FREITAS, 1991, p. 95),
o que não significou o fim do tráfico de escravos, eis que até a abolição da escravatura, a sociedade
escravocrata brasileira necessitava de outros negros para a reposição das “suas peças”.
22 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de
Janeiro: Revan, 2003, p. 36
23 Naquele ano, na abertura da Assembleia Legislativa da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, o
Senador Conselheiro, Manoel Antonio Galvão, demonstrava sua preocupação ao dizer que: “[...] Na
opinião geral é considerada a colonização a necessidade mais palpitante do Império: a vastidão das terras
desertas, que não quereis sem dúvida povoar com negros [...]”. (CARDOSO, Fernando Henrique.
Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do
Sul. 3. ed. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1977, p. 191).
24 ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. et al. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no
Brasil escravista do século XIX. 2 ed. São Paulo: Alameda, 2006, p. 10

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 105
branqueamento”25 de uma sociedade periférica mestiça, “totalmente mulata,
viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia” 26, emoldurada pelos
padrões de “civilidade” e de beleza europeus, ou seja, um instrumento
imprescindível no período pós-abolição como controle social dos não-brancos
brasileiros, protegendo os brancos não-europeus (mas que assim desejavam ser),
pois a estigma estava ali, à flor da pele, o sinal, a estética da maldade, da
rebeldia, da inferioridade que não podia se expandir pelo país.
Em todas as agências do controle social, europeu e periférico, o
discurso positivo e seu estereótipo, baseado na evolução e supremacia europeia,
foi concebido como verdadeiro, pois sua (falsa) neutralidade viria de seu (falsa)
cientificidade, proporcionando, sem muitas dificuldades dada a aclamação do
senso comum das suas premissas eurocêntricas, a criminalização dos
indesejáveis, sendo estes a cura, a criminalidade a doença e a sociedade (branca)
a vítima.
Entretanto, ao contrário da Europa (que a partir do “darwinismo social”
ou “teoria das raças” concebia a miscigenação como degenerativa,
fundamentando a existência de “tipos puros” e da eugenia), o Brasil, que
desenvolveu “[...] a formação social escravista mais importante do Novo
Mundo”27, vivia, no pós-abolição, a iminente mestiçagem, sendo compreendida
“[...] de forma ambígua: apesar de temida, nela se encontrava a saída controlada
[...]”.28
Era a ideia da “boa miscigenação”, originária a partir do determinismo
racial, do qual o discurso científico interpretou a teoria original de uma maneira
inusitada, na medida em que “[...] a interpretação darwinista social se combinou
com a perspectiva evolucionista e monogenista. O modelo racial servia para
explicar as diferenças e hierarquias, na viabilidade de uma nação mestiça”. 29
Thomas E. Skidmore, ao transcrever um artigo de jornal da época,
explicita o ideário branqueador que exterminaria com o gene negro:

Não há perigo de que o problema negro venha a surgir


no Brasil. Antes que pudesse surgir seria logo

25 SCHWARCZ, 2012, p. 16
26 RAEDERS, 1988, apud SCHWARCZ, 2012, p. 17
27 “Nenhum outro país teve a sua história tão modelada e condicionada pelo escravismo, em todos os
aspectos – econômico, social, cultural”. (FREITAS, 1991, p. 11)
28 SCHWARCZ, 2012, p. 161
29 SCHWARCZ, 2012, p. 85

106 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o
elemento negro de sua importância numérica,
diluindo-o na população branca. [...] Como nos
asseguram os etnógrafos, e como pode ser confirmado
à primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela
prevalência do elemento superior. Por isso mesmo,
mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra
daqui. É óbvio que isso já começa a ocorrer. Quando a
imigração, que julgo ser a primeira necessidade do
Brasil, aumentar, irá, pela inevitável mistura, acelerar
o processo de seleção30.

Em 28 de junho de 1890, antes da aprovação da primeira Constituição


republicana brasileira, o governo provisório deixa evidente a intenção de
“branquear” o país, ao promulgar o Decreto nº 528, que dispunha em seu Art.
1º:

É inteiramente livre a entrada, nos portos da


República, dos indivíduos válidos e aptos para o
trabalho, que não se acharem sujeitos a ação criminal
do seu país, exceptuados os indígenas da Ásia ou da
África, que somente mediante autorização do
Congresso Nacional poderão ser admitidos, de acordo
com as condições estipuladas.31

Não obstante, aliado ao discurso higienista/racista compartilhado pela


elite, inclusive por D. Pedro II, estava a necessidade de substituir a mão-de-obra
desqualificada (ex-escrava) das lavouras de café pelos agricultores europeus, e o
problema negro se agigantava.
Imbuído da inferioridade dos não-brancos brasileiros, Nina Rodrigues
defende a diferenciação no tratamento penal dos indivíduos, devendo ser
adotado no Brasil códigos penais diversos para os superiores (brancos) e
inferiores (não brancos), pois o tratamento decorrente de um único código penal
ocasionaria a “[...] impunidade com a aplicação ao nosso código desta
30 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 90
31 Ibid., p. 155

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 107
desconveniencia entre a consciencia do direito e do dever nos povos civilizados
e nas raças selvagens [...]”. 32
A funcionalidade do paradigma é potencializada ao ser incorporada à
ideia de superioridade eurocêntrica, ditando o norte para a defesa social do
Brasil promovida pelos arianos, trazidos especificamente para “branquear” o
país e que subsidiados pelo governo brasileiro se instalaram no sul do país,
projetando o porvir desejado, garantindo a ordem (tudo e todos em seus devidos
lugares) que condicionará o progresso, como estabelece Nina Rodrigues ao
defender que:

A civilisação ariana está representada no Brasil por


uma fraca minoria da raça branca a quem ficou o
encargo de defende-la, não só contra os atos anti-
sociais – os crimes – dos seus próprios representantes,
como ainda contra os atos anti-sociais das raças
inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito
dessas raças, sejam ao contrário manifestações do
conflito, da luta pela existência entre a civilisazão
superior da raça branca e os esboços de civilisação das
raças conquistadas ou submetidas. 33

Neste diapasão, o conflito entre culturas se acirrou, como aponta Salo


de Carvalho, ao esclarecer que “[...] a questão racial, especificamente no que
tange à cultura afro-brasileira, tornar-se-á o primeiro inimigo da modernidade
brasileira, impedindo, segundo o saber colonizado(r), o desenvolvimento de
uma ‘boa’ civilização [...]”.34
No pós-abolição, aquela massa negra sem qualquer auxílio
governamental foi lançada no mundo, onde muitos preferiram continuar como
escravos pois assim tinham, ao menos, abrigo e comida, começa, assim, entre
cortiços e zungus35, o processo de favelização das grandes cidades, espaços
ignorados pelos brancos, tornando-se o lugar do negro, mantidas longe dos
32 RODRIGUES, 1957, p. 79
33 RODRIGUES, 1957, 1957, p. 162
34 CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008b, p. 65
35 Um tipo de moradia, um “[...] esconderijo, um reduto bem protegido na imensidão de corredores e becos
dos labirintos urbanos. Para onde convergiam silenciosamente centenas de africanos, escravos, pardos,
mulatos, libertos, crioulos e pretos. Em busca de amigos, festas, deuses, esperanças...”.(ARAÚJO, et al.
2006, p. 84)

108 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
olhos, verdadeiros campos de concentração onde se esperou que as doenças
causadas pela total ausência de saneamento básico e a inexistência de condições
de vida exterminassem os indesejados. Uma zona de pobreza e violência que o
Estado ignorou, até agora, quando após o total descaso sobe as vielas “sorrindo”
impondo a “pacificação”.
Outrossim, se a abolição da escravatura brasileira era um passo em
direção da igualdade, a Criminologia positiva fornecia a base “científica” para a
desigualdade e mais além, fornecia o estereótipo do criminoso ao qual a
fisionomia do negro se adequava plenamente, mantendo a subjugação, os
açoites e o genocídio, mesmo após a “liberdade” que acorrenta o negro com
novos grilhões.

4 AS SELEÇÕES CRIMINALIZANTES E A INFLUÊNCIA DO


ESTEREÓTIPO

“A justiça apresentou-se diante de mim: daí quebrei


os meus ídolos e me envergonhei. Submeti-me a uma
penitência e obriguei o meu olho a olhar para onde
ele não gostaria de olhar: e levar amor para lá”.
(Nietzsche)

Ao contrário do que declara, o Direito Penal não pode cumprir sua


promessa de segurança jurídica consistente na igualdade de punir quem comete
algum ato ilícito, isso por razões obvias, pois, segundo Michel Foucault “não há
uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que, para isso,
utilizasse a polícia como auxiliar, e a prisão como instrumento punitivo,
deixando no rastro de sua sombra o resíduo inassimilável da ‘delinqüência’”. 36
Outrossim, segundo Eugênio Raúl Zaffaroni, o sistema penal é um
“embuste”, pois, em sua programação (promessas) do “dever-ser” se encontram
inúmeras condutas criminais, porém, a capacidade repressora desse sistema é
ridiculamente ínfima face a hipertrofia punitiva, e assim, desde a sua gênese, há
uma “seletividade estrutural”37.
Diante desta incapacidade real, Alessandro Baratta explicita que a
criminalização se restringe a 10% de todas as infrações, uma resposta
36 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 267
37 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 27

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 109
meramente simbólica correspondente aos delitos típicos da classe dominada,
restando na imensidão de 90% os delitos próprios da classe dominante que são
imunes, esta então se torna a regra e não exceção. 38
O “Princípio da seleção”39, subdividido em diversas formas e instancias
do controle social, é estruturante do sistema penal que, no interior do seu
“universo”, cada agência seleciona os criminalizados segundo o direito penal do
autor, uma vez que o estereotipo40 criminal criado a partir da simbiose racismo-
etiologia, foi aceito e difundido pelas sociedades através dos tempos, sendo
introduzido, mesmo que inconscientemente, no imaginário coletivo (senso
comum), encontrando-se arraigado na sociedade atual, causando medo.
Dentre estas agências esta a polícia, principal responsável pela crimina-
lização secundária por efetuarem a primeira e mais ampla seleção do funil fil-
trante do controle social, orientando sua atuação simbólica do combate ao crime
pela ideologia lombrosiana41 que, ao construir o estereótipo criminal a partir dos
criminalizados, relacionou crime=criminoso=feio=perigo=prisão, pois, “por tra-
tar-se de pessoas desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas negati-
vas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar
a imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos,
etários, de gênero e estéticos,” 42 porém, em nossa margem, a partir da adequa-
ção às especificidades brasileiras a relação passa a ser
crime=criminoso=negro=perigo=punição.
Diante da agência policial, é a vulnerabilidade do agente que condiciona
sua maior ou menor chance de ser selecionado, uma vez que relaciona de forma
proporcional estas chances com o grau de vulnerabilidade dos indivíduos (maior
ou menor correspondência entre as características pessoais com o estereótipo do
criminoso e grau de instrução que determinará os delitos praticados, sendo que
nas classes dominadas, formadora da clientela penal, o grau de instrução baixo

38 BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal.


Fascículos de Ciências Penais: Porto Alegre, n. 2, p. 44-61, abr./maio/jun. 1993, p. 49-50
39 ANDRADE, 2003, p. 253
40 “Os estereótipos, designados por Karl-Dieter Opp e A. Peukert como ‘Handlungsleitenden Theorien’
(teorias diretivas da ação) e por W. Lippman (considerado o primeiro a refletir de forma sistemática
sobre eles) como ‘Pictures in our minds’ (imagens em nossa mente), são construções mentais,
parcialmente inconscientes, que nas representações coletivas ou individuais ligam determinados
fenômenos entre si e orientam as pessoas nas suas atividades cotidianas, influenciando também a
conduta dos juízes”. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle
penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 137)
41 ZAFFARONI, 1991, p. 77
42 ZAFFARONI, Eugenio Raúl (Et al.). Direito penal brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 46

110 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
define os delitos facilmente perceptíveis, toscos e portanto, facilmente crimi-
nalizados).43
Assim, no poder punitivo periférico co-existem dois “direitos penais”, o
declarado e o velado, o programado e o seletivo, operacionalizando a lógica da
inversão funcional que nos fala Vera Regina Pereira de Andrade, pois “trata-se,
em definitivo, de um (contra) Direito penal do autor, operando latentemente por
dentro de um Direito penal do fato e submetendo-o até deixá-lo imerso nele,
sendo condicionante da seletividade que a Dogmática, ademais de impotente
para exorcizar, culmina paradoxalmente por racionalizar”. 44
A seleção criminalizante se opera a partir de uma carga preconceituosa
e discriminatória resultante de um processo histórico e contínuo de racismo,
exclusão, segregação e construção de estereótipos para esses fins que orientam
todas as agências do controle social45 por uma minoria não branca (pois, mestiça
e marginal), e não europeia (embora assim deseja ser e se espelha, ainda), além
de toda concepção pejorativa46, que nos remete à imagem do “homo crimina-
lis”47 relacionada à “inferioridade genética” que a etnia traz consigo (o estigma
à flor da pele), atrelado intrinsecamente (e via (in)consciente) na idolatria do pa-
drão de beleza europeu.
Assim, elementos racistas são encontrados a partir do contraponto entre
padrões estéticos (adjetivados pela minoria dominante), que opera ambos siste-
mas punitivos.
Por este viés, nota-se a importância que o fenótipo étnico negro confere
à seletividade, pois, ao se distanciar do “padrão” endeusado pela sociedade, di-
fundido pela mídia em geral e em todos os âmbitos (padrão Barbie), não possu-

43 ZAFFARONI, 2011, p. 47
44 ANDRADE, 2012, p. 225
45 Com vistas a construção racista dos estereótipos, convidamos ao leitor a pensar nos super-heróis, nas
princesas, nos protagonistas dos filmes e das telenovelas, nas celebridades, nas modelos, nos
apresentadores, etc. Salvo raríssimas exceções, que a partir de uma posição esperançosa, acreditamos
existir, a primeira figura imaginada é representada como branca, olhos claros, etc. Agora, a contrário
senso, pense no personagem antagônico, este, mais uma vez, salvo rara exceção, é representada por um
personagem escuro, ou preto, feio, cruel, desumano, etc. Como exemplo maior, pense em Jesus Cristo,
nas suas virtudes e fisionomia. Será que o leitor pensou na figura criada pela ciência moderna que
reconstruiu sua imagem a partir dos fatores biológicos e climáticos que circundam a aridez de Israel? É
assim que o ideário etiológico de matriz racista é transportado.
46 Alertamos para caráter racista, atravessado pela ideologia etiológica, da utilização do termo “negro” e a
carga negativa atrelada à etnia. São inúmeros os exemplos, tais como: magia negra, cifra negra, mercado
negro, tempestade negra, peste negra, humor negro, “denegrir”(= tornar negro, enegrecer), etc.
47 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008a, p. 184

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 111
indo olhos ou pele clara, possuem o “estereótipo do mal” 48 que contrapõe e
procura, ao mesmo tempo, a materialização do bem (Deus) e do mal (diabo) na
fisionomia humana que corresponderia a natureza da alma.
Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni:

O “feio” é tudo o que colide contra a ilusão de cons-


tante mudança dentro da ilusão de harmonia cromática
urbana, onde parece que tudo é harmonioso - ou deve-
ria ser - a não ser pelas inadequadas irrupções do
“feio”, que é o “mau” que arruina a harmonia urbana.
Por este motivo, o “feio”, “mau”, deve ser marginali-
zado, a fim de preservar a reflexão intelectualizada, a
harmonia cromática da burguesia urbana central. O
“feio” é “mau”, porque ele é um selvagem que não
entende, não pode compreender nem intelectualizar tal
estética com sua intrínseca harmonia dinâmica, é
“primitivo”, “inferior”, “subumano”.
Tudo o que agredia a burguesia era o “ruim” e todo o
“mal” era o “feio”, por “primitivo” e “selvagem”.
Tanto o pobre que agredia como o colonizado que se
rebelava eram selvagens, ambos sob o signo do primi-
tivismo. O inimigo é “feio” porque é “primitivo” ou
“selvagem”: essa foi a mensagem49.

A seletividade penal, assim, se instrumentaliza de aportes racista-etioló-


gicos materializados na estereotipia marginal, que se escondem nas atuações po-
liciais sob a rubrica genérica de “atitude suspeita”, legitimando uma parte do
poder de policia discricionário que sempre recai sobre uma minoria periférica,
identificável pela sua “inferioridade genética” (que comporta as degenerações
biológicas e psicológicas, geralmente provocada por condições subumanas,
fome, miséria, inexistência de higiene, etc., ou seja, pela violência institucio -
nal50), que é feia por se afastar do padrão (dominante) socialmente aceito, se-
guindo a lógica de que o mal, primitivo e inferior deve ser feio, pois o mal e
feio quase sempre se identificam.
48 ZAFFARONI, 1988.
49 Ibid., p. 159, tradução nossa.
50 BARATTA, 1993, p. 48

112 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Vera Malaguti Batista explicita o ideário que percorre o senso comum
concernente a figura estereotipada do delinquente, com inegáveis bases racista-
etiológicas, construído e difundido pela ideologia seletiva/punitiva dominante,
que se reproduz a partir daquela “política de supervisibilidade”51, responsável,
em parte, pela incursão no imaginário coletivo dessa figura perigosa:

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura


de um jovem negro, funkeiro, morador de favela,
próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné,
cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de po-
der e de nenhum sinal de resignação ao desolador ce-
nário de miséria e fome que o circunda. A mídia, a
opinião pública destacam o seu cinismo, a sua afronta.
São camelôs, flanelinhas, pivetes e estão por toda a
parte, até em supostos arrastões na praia. Não mere-
cem respeito ou trégua, são sinais vivos, os instrumen-
tos do medo e da vulnerabilidade, podem ser espan-
cados, linchados, exterminados ou torturados.52

5 O GENOCÍDIO BRASILEIRO: o negro e as marcas do sistema penal


subterrâneo

Desde a diáspora negra, resultante do sequestro de milhões de africanos


que aqui foram desembarcados, até os dias atuais, ocorre um genocídio negro
em nosso país, mas, se outrora este genocídio se operou de forma imperceptível
por sua dupla operacionalização: o branqueamento por meio da miscigenação e
a imposição da cultura hegemônica euro-cêntrica 53, hoje, ele é explicito.
Neste norte, considerando nossas especificidades e o continuum do
Direito penal escravagista-doméstico54 (que passa ao longe da legalidades
estatais, próprias dos métodos de punição das fazendas escravocratas que
possibilitava a coexistência entre o direito penal publico e o privado), além de
51 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 13 ed. Rio
de janeiro: Record, 2006, p. 55
52 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: droga e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Revan, 1998, p. 28
53 NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 1.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
54 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Rio de Janeiro: ICC, 2000, p. 25

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 113
toda coexistência teórica central que aqui é recepcionada para nos deixar na
“vanguarda punitiva” de um “autoritarismo cool”55 podemos, com Vera Regina
Pereira de Andrade, falar em um “Ornitorrinco punitivo”, uma vez que pela
confluência de diversos matizes em um contexto sócio-econômico totalmente
singular às origens destes, o nosso sistema penal é “[...] um amálgama que tem
sido de escravismo com capitalismo, de público com privado, de
patrimonialismo com universalismo,de liberalismo com autoritarismo.” 56
Por isso Eugenio Raúl Zaffaroni conceitua o sistema penal periférico
com um “genocídio em ato” caracterizado pela ausência da legalidade estatal
por ser efetivado arbitrariamente pelos órgãos executivos do sistema penal que
“[...] são encarregados de um controle social militarizado e verticalizado, de
uso cotidiano, exercido sobre a grande maioria da população”. 57
Inobstante à seletividade criminalizante, Eugenio Raúl Zaffaroni
explicita uma singularidade periférica que conceituou de “seleção policizante”,
pela qual as agências policiais recrutam seus operadores na mesma classe que
forma a sua “clientela”, treinando e condicionando-os a criminalizar seus pares,
inculcando, com o auxílio do racismo brasileiro 58 e da “vergonha da
negritude”59, a diferenciação maniqueísta dos integrantes da classe na qual são
selecionados tanto os “mocinhos” quanto os “bandidos”, impossibilitando, a
partir do estereótipo, qualquer consciência de classe, qualquer identificação
entre os dois lados da mesma moeda, pois, a partir da formação militar impõe-se
a “proibição da coalizão”60. É a modernização do capitão do mato do período
escravagista.
Foi com a aliança em uma guerra que não é nossa que o genocídio

55 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
56 ANDRADE, 2012, p. 111
57 ZAFFARONI, 1991, p. 23
58 Segundo Oracy Nogueira, o preconceito racial no Brasil é de marca (uma reformulação do preconceito
de cor que se embasa na aparência, nos traços físicos do indivíduo, ou seja, na fisionomia), que na
dinâmica relacional leva em consideração a atuação do individuo e sua interiorização dos padrões
brancos que podem flexibilizar os “defeitos” ínsitos a sua etnia, possibilitando uma aceitação social em
proporção direta à interiorização dos modelos brancos. Assim, o negro pode ser aceito com mais
facilidade se “[...] contrabalançar a desvantagem da cor por uma superioridade inegável, em inteligência
ou instrução, em educação, profissão e condição econômica, ou se for hábil, ambicioso e perseverante
[...]”. Porém, este tipo de preconceito não extingue o racismo radical, apenas o encobre. (NOGUEIRA,
Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: Sugestão de um quadro de
referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. 2006, p.07. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf. Acesso em 22 out. 2013)
59 CARDOSO, 1977, p. 265
60 BARATTA, 2011, p. 180

114 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
negro, que sempre esteve em marcha, ganha uma “legitimidade”, pois se a
população negra sempre foi a inimiga, agora com a política de guerra explícita,
o extermínio esta legitimado em legítima defesa da pátria, da segurança, da
ordem.
A guerra contra a população negra não é exclusividade do Brasil 61,
porém, em nossa margem, o sucesso dessa política não se observa pelos lucros,
nosso “sucesso” se dá pelo número de mortos, diretos ou indiretos, sendo que
em ambos é o Poder Executivo (no pior sentido da palavra) a agência
responsável, uma vez que atua na ilegalidade (mortes diretas que formam a cifra
oculta das violências policiais), no início da criminalização secundária e no
cumprimento da sentença (morte indireta no interior do cárcere).
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a
cada três assassinatos no Brasil, dois são de negros, vítimas do racismo
institucional que atravessa toda a sociedade brasileira, que continua velado sob
a dita “democracia racial”.62
No interior daquele micro-universo que o direito penal funciona
simbolicamente orientado pela seleção operacional, o sistema penitenciário
explicita o racismo radical, pois, de acordo com dados do Ministério da Justiça,
a população afrodescendente representa, nas estatísticas da população carcerária
até dezembro de 2012, cerca de 53.83 % 63, porém, o número de negros
criminalizados é muito inferior ao número de negros vítimas do Direito Penal
subterrâneo64, aquele que tem como base a pena de morte, que acaba sendo
61 Alessandro De Giorgi explicita que também nos EUA há uma guerra contra os negros, porém, em virtude
de sua política criminal atuarial e seu sistema privado de prisão, a estratégia de guerra é a neutralização
dos inimigos (negros), nos campos de concentração (prisões) com o objetivo de lucro. Isto se reflete na
porcentagem de negros na população carcerária, que na década de 1990 chega a 60%, além da gigantesca
possibilidade de um negro ser preso em comparação com um branco (sete vezes mais), isso significa que,
a cada três negros, na faixa etária entre 18 e 35 anos, um esta preso. (DE GIORGI. Alessandro. A
miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 95).
62 OLIVEIRA JUNIOR, Almir de; LIMA, Verônica Couto de Araújo. Segurança pública e racismo
institucional. In: Boletim de Análise Político-Institucional/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 4
ed. Rio de Janeiro: Ipea, 2013, p. 21-26. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_analise_politico/1301017_boletim_analisep
olitico_04.pdf>. Acesso em 10 out. 2013.
63 BRASIL, Ministério da Justiça. Departamento penitenciário nacional. Sistema Integrado de Informações
Penitenciárias – InfoPen. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-
437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-
24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D. Acesso
em 17 set. 2013
64 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Tradução: Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro:
Revan, 2005, p. 96

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 115
encoberto pelo véu da legalidade/legitimidade que sustenta o Direito Penal
declarado.
Nesse contexto genocída, se o Direito Penal declarado subsiste através
da “saga do mais” 65, nosso sistema penal subterrâneo prescinde da “síndrome do
mais” que ainda movimenta a velha maquina de gastar corpos negros, base da
nossa “ninguendade”66, mais mortes negras, mais torturas negras, mais prisões
negras.
Outrossim, a atuação policial, tendo como legitimação declarada a
guerra contra as drogas, continua a exercer seu poder totalmente paralelo à
legalidade, onde a guerra racista não declarada é a mesma desde a construção da
corporação, pois se a função da Guarda Real de Polícia, no início do século XIX
era manter a ordem com as “Ceias de Camarão” 67, atualmente o extermínio é o
meio utilizado para manter a ordem através do medo, sendo que seu poder
arbitrário, incontrolável, movimenta o Direito Penal subterrâneo utilizando a
pena de morte “subterrânea” que é incalculável, mas em alguns poucos casos
vem encoberta pela “legalidade/legitimidade” da rubrica “resistência seguida de
morte”.

CONCLUSÃO

Percorrendo o fio condutor histórico-sociológico observamos que o


paradigma etiológico foi aclamado em nossa margem, legitimando, por sua
“cientificidade” a continuação da opressão e violência contra a população negra
mesmo depois da abolição da escravatura.
Em uma perspectiva higienista, vinculada a outros discursos
“científicos” como o racismo e a eugenia, a criminologia positiva auxiliou na
limpeza do terreno brasileiro às “raças superiores” eurocêntricas que povoaram
principalmente o sul do país, um pedaço da Europa em solo brasileiro, tudo em
nome da ordem demandada pelo medo do negro e da “africanização” do país.
Outrossim, na tentativa de se aproximar do centro, o estereótipo do
criminoso europeu se transfigurou no estereótipo do criminoso brasileiro: o
65 ANDRADE, 2012, p. 111
66 RIBEIRO, 1995, p. 131
67 De acordo com Vera Malaguti Batista, as “ceias de camarão” eram as torturas públicas nas quais as
vítimas eram literalmente descascadas até se chegar à carne. (BATISTA, Vera Malaguti. Duas ou três
coisas que sabemos (por causa) dele. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (Org.) Verso e reverso do
controle penal: (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2002, p. 192).

116 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
negro a ser extinto pelo processo de branqueamento, o inimigo a ser
exterminado pelas condições inumanas das favelas, pelo direito penal declarado
(e as mesmas condições inumanas dos presídios e penitenciárias) e pelo
subterrâneo que saiu ileso da abolição, transpassou os limites das fazendas e se
modernizou nas cidades, lugares onde se fazem presentes os grilhões (não mais
metálicos, agora ideológicos na submissão e resignação), os castigos corporais e
a pena de morte incontrolável que impulsiona ainda àquele mesmo genocídio
colonizador, pois o estereótipo é encontrado em cada esquina, o que permite
manipular o medo que direciona as agências do controle social ao mesmo lugar,
o lugar de sempre.

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120 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Direito e Memória: uma análise a partir do tribunal
internacional de Nuremberg

Fernanda Ruy e Silva*


Lucas Selezio de Souza**

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a questão da reparação jurídica


de alguns dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, bem como os
vestígios histórico-culturais do regime nazista na Alemanha, a partir da
observação do Tribunal de Nuremberg. Para tanto, serão apresentados os
antecedentes históricos do Tribunal, envolvendo-se questões indispensáveis
como a positivação do Direito de Guerra, o Direito Penal Internacional anterior
à Segunda Guerra Mundial, a responsabilidade do indivíduo do ponto de vista
pré-século XX, além dos preparativos históricos para a formação da Corte.
Após, será destacado o Tribunal em si, com seus estatutos, funções delineadas,
acusação, defesa e os resultados jurídicos dele advindos – adentrando na
questão da crítica a Tribunais de Exceção. Para finalizar, é indispensável
ressalva ao legado não apenas jurídico trazido por este julgamento, bem como a
atenção à memória histórico-cultural criada, a qual marca a sociedade até o
presente século.

Palavras-chave: Reparação jurídica; Tribunal de Nuremberg; Crítica a


Tribunais de Exceção; Memória histórico-cultural.

ABSTRACT: This article aims to analise the legal reparation of some crimes
committed in the World War II, as well as the historical and cultural traces of
the Nazism in Germany, taking it from the observation of the Nuremberg
Tribunal. To do so, will be showed the historical background of the Court,
covering up vital issues like positivism in the law of war, international criminal
law before the World War II, the individual's responsibility in terms of pre-
twentieth century, as the historical preparation for the formation of the Court.
Then, it will be highlighted the Court itself, with its statutes, functions,
* Graduanda pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
** Graduando pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 121
arraignment, defense and the legal results arising from it - entering the critical
issue of the Courts of Exception. Finally, it is essential not only to stress the
legal legacy brought by this trial, but also to give attention to the historical and
cultural memory created, which lasts until the present century.

Keywords: Legal Repair; Nuremberg Tribunal; Critic to Courts of Exception;


Historical and cultural memory.

INTRODUÇÃO

O século XX foi profundamente marcado pelos seus dois grandes


conflitos mundiais. A devastação produzida pela Segunda Guerra Mundial
trouxe consigo uma mudança de consciência, suscitando não apenas nos
governos afetados pelo conflito mas, principalmente, nas vítimas e na
população em geral, uma necessidade de reparação pelos crimes e horrores
perpetrados por regimes totalitários, pautados em uma lógica de Estado de
terror. O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg foi um dos meios pelos
quais se imaginou ser possível reparar as vítimas e os vestígios históricos desses
anos que marcaram o “breve século XX”.
Buscaremos, neste trabalho, analisar de que forma se inseriu o Tribunal
de Nuremberg nesse contexto de mudanças e exigência de respostas, a partir de
uma perspectiva histórica e jurídica, como forma de compreender não apenas os
seus resultados e o seu legado, mas também as suas limitações e críticas.
Num primeiro momento, será apresentada ao leitor uma breve
introdução acerca de conceitos que pareceram essenciais para a configuração do
Tribunal, como a positivação do Direito da Guerra, o surgimento do Direito
Penal Internacional e a mudança doutrinária que possibilitou o surgimento da
responsabilidade individual face ao direito das gentes. Após, buscaremos
apresentar os principais debates que culminaram na promulgação do Estatuto do
Tribunal Militar Internacional de Nuremberg. A terceira parte deste trabalho se
debruçará sobre o Estatuto do Tribunal, buscando compreender as suas funções
e objetivos. Igualmente serão analisados os principais argumentos expostos pela
acusação e defesa. Por fim, serão apresentados os principais argumentos
utilizados pelos juízes em suas sustentações, bem como uma análise acerca do
legado histórico-jurídico do Tribunal e uma discussão acerca da justiça, da
reparação e da memória.

122 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO TRIBUNAL MILITAR
INTERNACIONAL DE NUREMBERG

1.1 Direito da Guerra, Direito Penal Internacional e responsabilidade do


indivíduo no Direito Internacional

Os primeiros Tratados Internacionais multilaterais em matéria de


limitação da guerra, ratificados no século XIX, são considerados os
antecedentes do Direito Penal Internacional, marcados pela “tomada de
consciência da necessidade de punir delitos cujas consequências transcendiam
as fronteiras entre territórios nacionais” 1.
A excessiva influência da doutrina positivista, assentada na premissa de
que os Estados eram os únicos sujeitos de Direito Internacional, e a sua
concepção indivisível de soberania, levou à restrição dos “crimes de guerra” à
esfera estatal. Limitados ao Estado, não havia previsão de punição dos
indivíduos no âmbito internacional. Tal possibilidade exemplifica-se no artigo
IV da Convenção de Haia de 19072, que estabelece a responsabilização do
Estado por todos os atos cometidos por membros de suas forças armadas que
violem os regulamentos de guerra. A responsabilização individual, nesse
contexto, ficava a cargo do Estado a que pertencia o infrator, estando o
indivíduo sujeito às leis de Direito interno do país a que pertencesse.
A Primeira Guerra Mundial trouxe a convicção de que a guerra é um
crime contra a humanidade, que deve ser evitado e punido. Os países Aliados
pronunciaram-se não apenas em relação a crimes advindos da violação às leis e
costumes da guerra internacionais, como também acerca da necessidade de
responsabilização individual pelos “crimes contra a humanidade e civilização” 3.
O Tratado de Versalhes, firmado em 1919, expôs o objetivo Aliado de

1 BORGES, Gabriel Oliveira de Aguiar. Tribunal Penal Internacional: histórico, aspectos estruturais e
conflitos com a Constituição Federal. Âmbito Jurídico. Acesso em: 04 de outubro de 2013. Disponível
em: <http://www.ambito-juridico.com.br>.
2 CONVENTION RESPECTING THE LAWS AND CUSTOMS OF WAR ON LAND AND ITS
ANNEX. HAGUE, 18 OCTOBER 1907. International Committee of The Red Cross. Acesso em: 03 de
outubro de 2013. Disponível em: <http://www.icrc.org>.
3 PAULA, Thais Leo N. de, MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota. A Evolução do Direito
Internacional Penal e o Tribunal Especial para Serra Leoa: Análise da natureza jurídica e
considerações sobre sua jurisprudência. Nomos – Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito –
UFC. Fortaleza, 2002. p. 352.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 123
instituir um Tribunal Internacional composto por juízes originários daqueles
países, ao qual incumbiria julgar e punir o antigo imperador alemão Guilherme
II por “ofensa suprema contra a moral internacional e a autoridade sagrada dos
tratados”. Os outros acusados deveriam ser processados por Tribunais Militares
estabelecidos pelos países vencedores. Além da responsabilidade individual,
também estabeleceu o Tratado o dever de reparação do Estado alemão e de seus
consortes pelos danos causados às forças aliadas. De grande importância para o
Tribunal de Nuremberg foi o princípio da inaplicabilidade da imunidade de
oficiais à jurisdição internacional, e o conceito de responsabilidade de comando,
utilizados mais tarde naquela Corte como fundamento para a não admissão de
escusas absolutórias que se baseassem no cumprimento de ordens
hierarquicamente superiores4.
A tentativa de responsabilização individual através do Tribunal de
Leipzig, como ficou conhecida a Corte derivada do Tratado de Versalhes, restou
fracassada, uma vez que o principal réu, o Kaiser Guilherme II, estava em asilo
na Holanda, país que negou sua extradição. Ao final, restou um julgamento de
apenas quatro dos quarenta e cinco nomes arrolados na lista de acusados, sendo
todos eles oficiais subalternos.
Tendo em vista a ineficácia das condenações morais ao Direito de
Guerra e das tentativas jurídicas de condenação a esse instituto, buscou-se
solução na limitação da soberania dos Estados, através da instituição de um
organismo internacional independente, com poderes de exigir dos seus membros
o cumprimento dos regulamentos internacionais. Com isso, criou-se a
Sociedade das Nações (SDN) e a Corte Internacional de Justiça (CIJ), das quais
surgiram tentativas de estabelecimento de uma Corte Penal Internacional,
responsável por julgar crimes cometidos contra o direito internacional, não
tendo nenhuma delas logrado êxito, em razão da inexistência de um Direito
Penal Internacional reconhecido por todas as nações 5.
Diversos outros tratados que estabeleciam a ilicitude da guerra
sucederam Versalhes, como o Pacto Briand-Kellog (1928), o qual declarou a
guerra ilícita, e a Convenção de Genebra (1929), que determinou aos Estados-
partes, pela primeira vez na história, o dever de reprimir internamente as

4 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e legado
jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 26.
5 CARVALHO, Luiza Starling de; ARAÚJO, Priscilla Clementino. O Tribunal Penal Internacional e a
consagração do princípio a responsabilidade penal internacional individual. CEDIN – Centro de
Direito Internacional. Acesso em: 03 de outubro de 2013. Disponível em: <www.cedin.com.br>.

124 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
violações de certas regras do direito humanitário 6.

1.2 Preparativos para a formação do Tribunal

A ideia de penalizar os criminosos nazistas pelas atrocidades cometidas


durante a Segunda Guerra Mundial ganhou maior força em 1940, com a reunião
dos governos no exílio, juntamente com a Grã-Bretanha, num “protesto
conjunto contra os crimes nazistas na Polônia e na Checoslováquia” 7.
A 3ª Conferência Interaliada, celebrada em 1941, baseando-se na
Convenção de Haia de 1907 que “proibia às potências beligerantes cometer atos
de violência contra a população civil nos países ocupados, o desprezo às leis do
país e destruição das instituições nacionais”, expressamente declarou que os
Aliados estavam decididos a procurar que os culpados e os responsáveis,
independente de suas nacionalidades, fossem detidos, julgados e condenados, e
que essas condenações deveriam ser cumpridas 8.
Outro evento importante para a configuração do Tribunal foi a fundação
da Comissão Interaliada para Crimes de Guerra, em 1942, que ficou responsável
por reunir provas e testemunhas e preparar as listas dos criminosos de guerra
das potências do Eixo9. Os documentos produzidos pela Comissão formaram a
base das acusações contra os criminosos no julgamento de Nuremberg.
Em 1943, na Declaração de Moscou, os ministros das relações
exteriores dos aliados manifestaram novamente o desejo de punir a Alemanha,
desta vez delimitando claramente dois modelos repressivos que deveriam ser
seguidos: primeiro um sistema de repressão local, por crimes determinados
realizados num território específico; segundo, a punição de criminosos de
guerra cujos delitos transcendiam o critério geográfico 10.
A proposta norte americana de criação de um Tribunal Militar
Internacional pensada pelo futuro juiz estadunidense em Nuremberg, Robert
Houghwout Jackson, foi aceita pela França e pela Inglaterra, havendo relutância
por parte da União Soviética. O argumento principal de Robert foi o de “ou os
vencedores julgarão os vencidos ou estes serão chamados a fazer justiça”. A
6 Id.
7 HEYDECKER, Joe J; LEEB, Johannes. O Processo de Nuremberg. Rio de Janeiro: Bruguera, 1968. p.
72.
8 Id.
9 Ibid, p. 73.
10 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e legado
jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 26.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 125
ideia de criar um Tribunal composto por juízes advindos de países neutros foi
rechaçada mediante o argumento de que “o número de países neutros era tão
reduzido que o plano não poderia ser levado a prática” 11.
Após muitos debates, chegaram os Aliados ao acordo de que no
Tribunal somente seriam discutidos os atos praticados pelos acusados.
Concordaram, ainda, que caberiam ser discutidas apenas as violações ao Direito
Internacional apontadas pelo estatuto que instituiria o Tribunal, a fim de limitar
a discussão das questões legais e, consequentemente, limitar os argumentos da
defesa12.
Outro ponto importante nessa fase preliminar e já discutido
anteriormente é a questão da responsabilidade dos indivíduos perante o Tribunal
– visto que, antes de Nuremberg, inexistia precedente que justificasse a
responsabilização dos indivíduos por crimes cometidos no âmbito internacional.
A respeito dessa lacuna, Jackson afirmou que “o Direito Internacional é pouco
claro e um fundamento demasiadamente débil. Temos que dizer simplesmente
que são pessoalmente responsáveis”. Percebe-se, dessa forma, que o conceito
americano de “conspiração”, ausente no ordenamento jurídico dos outros países
aliados, foi de fundamental importância para a responsabilidade pessoal dos
criminosos, visto não haver previsão para tal no ordenamento internacional 13.
O impasse quanto ao número de criminosos a serem julgados foi
solucionado mediante a inclusão de grupos e organizações ligados ao partido,
como as SA e as SS, poupando, assim, um processo contra cada um dos seus
membros e um julgamento interminável.
Todos esses acordos culminaram na assinatura do Acordo de Londres de
08 de Agosto de 1945, que instituía o Estatuto do Tribunal Militar Internacional
de Nuremberg, onde eram definidos os princípios que norteariam os
julgamentos que se seguiriam14.

2 TRIBUNAL MILITAR INTERNACIONAL DE NUREMBERG

2.1 Estatuto e funções

11 HEYDECKER, Joe J; LEEB, Johannes. O Processo de Nuremberg. Rio de Janeiro: Bruguera, 1968. p.
80.
12 Ibid, p. 82.
13 Ibid, p. 81.
14 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 27.

126 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
O estatuto que instituiu o Tribunal Internacional de Nuremberg,
composto por trinta artigos, lançou as disposições normativas materiais e
procedimentais que orientariam o funcionamento daquela Corte, regida pelos
países Aliados que atuavam “no interesse de todas as Nações Unidas” 15.
Em seu artigo primeiro, reafirma o Estatuto tratar o Tribunal de
realização dos países signatários do Acordo de Londres, também membros do
Conselho de Controle da Alemanha, quais sejam: Estados Unidos da América,
República Francesa, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A cada um dos países aliados caberia
indicar um juiz titular e um juiz suplente, incontestáveis por qualquer uma das
partes que compunham o processo16.
À “Comissão de Instrução e de Processo dos Grandes Criminosos de
Guerra” (Ministério Público) seriam compelidas, entre outras, as tarefas de
delinear o trabalho de cada uma das Promotorias; de designar, em última
instância, os criminosos de guerra a serem levados ao Tribunal; de busca,
reunião e apresentação de todas as provas necessárias antes do processo ou ao
longo deste; de interrogatório preliminar de todas as testemunhas consideradas
necessárias dos acusados; de aprovação e submissão do ato de acusação e seus
documentos acessórios ao Tribunal17.
Ao Tribunal competiria, conforme estabelecido nos artigos dezessete e
dezoito, entre outras questões, convocar as testemunhas no processo, requerer
sua presença e seu testemunho, e interrogá-las; interrogar os acusados; requerer
a produção de documentos e de outros meios de prova; fazer as testemunhas
prestarem juramento e limitar estritamente o processo a um exame rápido das
questões levantadas pela acusação.
Condutas já consideradas ilícitas no Direito Internacional anterior à
Segunda Guerra Mundial foram incorporadas à Carta, que separou os delitos em
três categorias: crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade. Uma quarta categoria foi inserida pela promotoria estadunidense,

15 BAZELAIRE, Jean-Paul; CRETIN, Thierry. A Justiça Penal Internacional: Sua Evolução, seu
Futuro: de Nuremberg a Haia. 1ª Edição. São Paulo: Manole, 2004. P 20.
16 Ibid, p. 21.
17 GONDIN, op. Cit., p. 32.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 127
denominada “crimes de conspiração” 18.
Os crimes contra a paz englobavam os atos de planejar, preparar,
desencadear ou executar uma guerra de agressão (nomeado “crime de
agressão”). O precedente alegado pelo Ministério Público foi o Tratado de
Versalhes e a tentativa de incriminação do Kaiser Guilherme II; bem como o
Pacto de Briand-Kellogg de 1928 para a Renúncia da Guerra, iniciativa franco-
americana que condenava o uso da guerra como recurso para solução de litígios
internacionais. Apesar de não dotado de poder vinculativo, argumentou a Corte
que este Tratado recusava explicitamente a guerra como instrumento válido de
política internacional, e que as leis da guerra não se encontravam apenas no
direito positivado, mas também no costume dos Estados e nos princípios gerais
do direito. Nesse sentido, critica-se o julgamento devido à inexistência à época
de crimes contra a paz e da previsão de um tribunal internacional para exercício
da punição19.
Já os crimes de guerra abrangiam as violações das leis e costumes de
guerra, como o extermínio de populações civis; maus-tratos e escravização de
prisioneiros de guerra; pilhagem de bens e destruição de cidades sem fins
militares; etc.
Perceberam os Aliados que o tipo genérico “crimes de guerra”,
estabelecido em tratados anteriores, “não abrangeria uma das maiores
atrocidades da guerra: a perseguição e extermínio da população civil alemã,
notadamente os judeus, cometidos por oficiais e civis de nacionalidade alemã”.
O extermínio de indivíduos da própria nacionalidade do Estado agressor, e não
apenas de nacionais estrangeiros inimigos, levou à tipificação dos crimes contra
a humanidade, de fundamental importância para a condenação dos acusados 20.
Os crimes contra a humanidade abrangeram o assassinato, o extermínio,
a deportação, a redução à escravidão e outros atos desumanos praticados contra
qualquer população civil, antes ou depois da guerra, bem como perseguições

18 PAULA, Thais Leo N. de, MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota. A Evolução do Direito
Internacional Penal e o Tribunal Especial para Serra Leoa: Análise da natureza jurídica e
considerações sobre sua jurisprudência. Nomos – Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito –
UFC. Fortaleza, 2002. p. 353.
19 PAULA, Thais Leo N. de, MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota. A Evolução do Direito
Internacional Penal e o Tribunal Especial para Serra Leoa: Análise da natureza jurídica e
considerações sobre sua jurisprudência. Nomos – Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito –
UFC. Fortaleza, 2002. p. 354.
20 Id.

128 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
políticas, raciais e religiosas. 21 A tipificação de tal crime fora resultado da
construção histórica iniciada nas Convenções de Haia de 1899 e 1907,
resultando na internacionalização de crimes antes considerados domésticos,
devido ao seu cometimento em larga escala e a sua ligação a crimes de guerra.
O crime de genocídio não foi contemplado no Estatuto do Tribunal.
Os artigos sétimo e oitavo configuram ponto de fundamental
importância no Estatuto, visto que estabelecem que “as ações realizadas na
função de chefes de Estado ou altos-funcionários, bem como as correspondentes
ao cumprimento de ordens hierarquicamente superiores, não serão admitidas
como escusas absolutórias”22.
A fim de evitar o ocorrido no tribunal que se pretendeu instituir no pós-
primeira guerra, estabelece o artigo décimo segundo a prerrogativa do Tribunal
de realizar julgamento ainda que à revelia (como ocorreu no caso de Martin
Bormann)23.
O artigo vinte e quatro estabelece as normas procedimentais da Corte,
constituída como um julgamento coletivo, iniciado pela sustentação da
acusação, seguida pela defesa dos réus e concluído pelo julgamento por cada
um dos quatro juízes.
As garantias e direitos de defesa foram previstos no artigo dezesseis,
que conferiam, entre outros, o direito de produção de provas para suporte da
defesa e questionamentos às testemunhas de acusação 24.

3 ACUSAÇÃO, DEFESA E JULGAMENTO

3.1 ACUSAÇÃO

Ao Ministério Público, como salientado no item anterior, competiria,


entre outras questões, a elaboração da lista de acusados. Nesse quesito, assim
como em outros relacionados à organização do Tribunal, inclinaram-se os
Aliados a seguir a proposta norte-americana, decidindo acusar os “dirigentes,
organizadores, provocadores ou cúmplices que tomaram parte na elaboração ou
21 CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, realidades e implicações para o Brasil.
Brasília: FUNAG, 2012. p. 21.
22 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 30.
23 Id.
24 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 34.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 129
na execução de um plano orquestrado ou de um complô para cometer qualquer
um dos crimes acima citados”25.
Como forma de evitar um julgamento excessivamente moroso,
escolheram os Aliados pessoas-chave na organização da Alemanha nazista, a
fim de que fossem representadas na Corte as várias estruturas detentoras do
poder naquele regime totalitário26. Dessa forma, foram acusados não apenas
criminosos no sentido corrente e vulgar, como os assassinos, mas também
financistas, chefes militares, industriais e funcionários do Governo 27.
A lista final resultou na acusação de 24 líderes, aos quais se pretendia
imputar incriminações individuais e a de participação nas instituições que se
intentava declarar “criminosas”. Dentre os acusados, para citar os principais,
estavam Hermann Göring, presidente do Conselho de Ministros para Defesa do
Reich, criador da Gestapo e chefe da Luftwaffe; Rudolf Hess, Ministro do Reich
e membro do Conselho de Ministros para a Defesa do Reich; e Hans Frank,
Governador-Geral da Polônia.
A acusação de conspiração, da qual derivaram as outras três, referi-sea à
participação dos réus como chefes, organizadores, instigadores e cúmplices na
estruturação ou execução de um “plano ou conspiração comum que tinha por
objetivo, ou que teve como consequência, a realização de crimes contra a paz,
contra os costumes de guerra e contra a humanidade”. 28 Para se valer dos seus
objetivos, estabeleceram os altos escalões do partido uma estrutura de terror
como política de Estado e realizou a inversão do preceito “não matarás” para o
de “matarás”, mediante a implementação de uma nova “legalidade”. 29 O regime
nazista apresentava-se formalmente como um Estado de Direito, assentado em
uma Constituição e em uma legalidade não muito diferentes daquelas que
regiam os países democráticos.30
Através da referida acusação, buscou a promotoria norte americana
afirmar o papel dos réus na concretização dos crimes a que se lhes propunha

25 Ibid., p. 38.
26 Ibid., p. 29.
27 HEYDECKER, Joe J; LEEB, Johannes. O Processo de Nuremberg. Rio de Janeiro: Bruguera, 1968. p.
78.
28 HEYDECKER, Joe J; LEEB, Johannes. O Processo de Nuremberg. Rio de Janeiro: Bruguera, 1968. p.
443.
29 SILVA, Vinícius Técfilo Luchese de Moraes e. Hannah Arendt: Ruptura, Julgamento e Liberdade.
[S.l.]: [s.n.], 2008. p. 81.
30 DIMOULIS, Dimitri. O caso dos denunciantes invejosos: introdução prática às relações entre
direito, moral e justiça. 8. Ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 11.

130 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
imputar, já que “foram esses homens, em meio a milhões, e foram esses homens
liderando milhões, que construíram Adolf Hitler, e concederam à sua
personalidade psicopata não apenas pequenas decisões, mas também aquelas
relativas à guerra e à paz”.
Foi através da deslegitimação do “Princípio do Líder”, baseado no
estrito cumprimento das ordens superiores; e da tese dos “atos de Estado”,
baseado no fundamento de que um Estado soberano não pode julgar outro, que
a promotoria conseguiu firmar o entendimento de que qualquer pessoa que
comete um ato criminoso que contrarie a lei internacional é responsável e,
portanto, passível de punição. Sob a tese dos “atos de Estado”, até mesmo Hitler
poderia ser absolvido por ter seus atos confundidos com os do Estado alemão 31.
A acusação de crimes de guerra foi certamente a menos controversa no
Tribunal, visto que, conforme sustentado pela Promotoria, já havia instrumentos
à época que regulamentavam os conflitos armados, como a Convenção de Haia
sobre a condução das hostilidades (1907) e a Convenção de Genebra referente
ao tratamento de prisioneiros de guerra (1929). 32 Ficou provado, dessa forma,
que no período anterior ao segundo conflito mundial, a compreensão de
determinadas práticas como inaceitáveis (como a pilhagem, a escravidão por
guerra etc.) já estava consolidada no direito internacional, não cabendo, em
relação a esse argumento, o princípio nulla poena sine lege (não há crime sem
lei anterior que o defina).
A imputação de tal delito personalíssimo aos acusados seguiu a lógica
do “Princípio do Líder”, que depositava a autoridade no Füher, “legitimando
progressivamente seus subordinados, ao passo que a responsabilidade seguia o
caminho inverso na pirâmide social – da base para o topo” 33.
Em relação aos crimes contra a paz, arguiu a promotoria serem os
acusados responsáveis pelo desencadeamento de uma guerra de agressão,
violando trinta e seis tratados internacionais em sessenta e quatro ocasiões;
entre eles os Tratados de Haia de 1899 e 1907 e o Tratado de Versalhes de

31 SILVA, op. cit., p. 80.


32 PAULA, Thais Leo N. de, MONT’ALVERNE, Tarin Cristino Frota. A Evolução do Direito
Internacional Penal e o Tribunal Especial para Serra Leoa: Análise da natureza jurídica e
considerações sobre sua jurisprudência. Nomos – Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito –
UFC. Fortaleza, 2002. p. 353.
33 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 41.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 131
191934. A ilicitude não derivava apenas da guerra em si, mas incluía, ainda, a
transformação da economia alemã visando fins bélicos, culminando no segundo
conflito mundial.
Os crimes contra a humanidade são uma inovação do Tribunal de
Nuremberg, representando, talvez, o maior legado do processo. Isso se deve ao
fato de o Tribunal ter sido o primeiro a reconhecer formalmente que o ser
humano tem direitos inerentes como ser, e não apenas como um cidadão
inserido em um Estado35. Dessa forma, a Promotoria e o Tribunal não
apresentaram os horrores do nazismo apenas como violações a Tratados
Internacionais, mas como violações aos direitos intrínsecos à própria condição
humana.
Ainda que não formalmente delimitados antes da Segunda Guerra
Mundial, já havia referências ao direito humanitário e aos crimes contra a
humanidade em diversos dispositivos. Um exemplo é a Segunda Convenção de
Haia Referente às Leis e Costumes de Guerra Terrestre, de 1907, que
estabelecia em seu preâmbulo: “[...] as populações e os beligerantes ficam sob a
salvaguarda e sob o império dos princípios do direito das gentes, como resulta
dos usos estabelecidos entre nações civilizadas, das leis da humanidade e das
exigências da consciência pública” 36.

3.2 DEFESA

Quatro foram os pontos principais levantados pela defesa em sua


exposição, que buscou, em muitas situações, contestar a legitimidade da Corte
para julgar os acusados, em virtude da sua inegável parcialidade em relação ao
conflito.
O primeiro ponto levantado coincide com a crítica da maior parte da
doutrina, isto é, o da ilegitimidade da Corte e a parcialidade do Tribunal frente
aos acusados. Tal fato constitui grave ofensa ao princípio do devido processo
legal, o qual pressupõe a neutralidade do magistrado, a fim de que não seja
comprometido o seu veredito.
Ainda válida, a crítica necessita ser analisada de acordo com as
perspectivas que se apresentaram à época, sob o risco de as conjecturas não
34 HEYDECKER, Joe J; LEEB, Johannes. O Processo de Nuremberg. Rio de Janeiro: Bruguera, 1968. p.
444.
35 GONDIN, op. cit., p. 42.
36 GONDIN, op. cit., p. 43.

132 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
corresponderem à realidade. Como citado anteriormente, a opção de se instituir
uma corte composta por países neutros no conflito foi rechaçada devido às
grandes proporções que havia tomado a Segunda Guerra Mundial. Os países
que não se envolveram diretamente no embate eram, em virtude dos mais
variados interesses e situações, partidários de uma das potências envolvidas.
Não há de se negar uma parcela de desacordo ao Direito positivado referente a
este primeiro ponto. Entretanto, possivelmente essa era a única alternativa
plausível à época, sob o risco de tamanha barbárie permanecer, mais uma vez,
impune na história.
O segundo ponto refere-se ao “Princípio do Líder”, anteriormente
discutido e desconstruído pela promotoria. Buscaram os advogados de defesa
fundamentar as ações dos acusados no estrito cumprimento de ordens
superiores. Outro fator que muito contribuiu para descaracterizar a obediência
hierárquica como fator absolutório foi uma diretriz do próprio Código Militar
Alemão, segundo a qual “nenhum soldado deve obedecer a uma ordem ilegal”.
Apesar da já anteriormente discutida mudança no paradigma da legalidade nos
regimes totalitários, é indiscutível afirmar que obedecer a ordens em proporções
de matança de milhões de pessoas é algo considerado, no mínimo, ilegal 37.
Outro ponto ainda muito discutido na doutrina e alvo de grandes
debates no Tribunal foi o princípio nulla poena sine lege, ou princípio da
legalidade, importante instrumento por meio do qual ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei. A grande crítica residia na
tentativa de julgar os acusados através de leis instituídas após a concretização
dos crimes, “não se levando em consideração a exigência de definição prévia
das condutas e das penas a fim de que alguém pudesse ser punido por
determinado crime”38. Constituiu-se em Nuremberg, dessa forma, verdadeiro
Tribunal de Exceção.
Em contraponto a esse argumento, alguns autores afirmam que, devido
ao fato de o Direito Internacional ser eminentemente consuetudinário, a
positivação das normas caminha de forma mais lenta que o fortalecimento dos
seus costumes39.

37 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 50.
38 CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, realidades e implicações para o Brasil.
Brasília: FUNAG, 2012. p. 22.
39 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 51.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 133
Nessa linha, o Tribunal argumentou a favor da refutação da tentativa de
aplicação do citado princípio àquela Corte. O primeiro ponto levantado foi o de
que a comunidade internacional à época já compreendia ser a guerra de agressão
um ilícito internacional. O segundo, derivado deste e atestado mediante os
pronunciamentos dos acusados perante o Tribunal, era o de que estes estavam
conscientes da violação a essas normas consuetudinárias no momento em que as
cometeram40. Concluiu o Tribunal que o argumento da violação do referido
princípio não se sustentava porque a Alemanha era signatária do Pacto Briand-
Kellog, que condenava a guerra como instrumento de política internacional e a
reconhecia, dessa forma, ilegal à luz do Direito Internacional 41.
O último ponto, que possivelmente melhor exemplifica a parcialidade
do Tribunal em relação aos seus réus, referia-se ao fato de ambos os lados terem
cometido crimes contra o Direito Internacional, e somente os “grandes
criminosos alemães” terem sido trazidos a julgamento. O Estatuto, conforme
analisado anteriormente, previu que caberia à Corte julgar apenas os crimes
cometidos pelos agentes das potências do Eixo.
Um argumento emblemático apresentado por Alfred Seidl, advogado de
Rudolf Hess, exemplifica essa tendência do Tribunal à parcialidade: Hess trouxe
como prova uma cópia do Pacto de Não Agressão entre Hitler e Stalin,
documento desconhecido à época, em que era estabelecido o seu objetivo mútuo
de atacar a Polônia (fato que deu início à Segunda Guerra) e a sua futura divisão
entre as duas potências. Com a apresentação de tal evidência, Seidl queria
provar que “uma das nações juízas era culpada de um crime que pretendia
inculpar os acusados: preparativos para uma guerra de agressão”. Se fosse
possível demonstrar a participação do líder soviético na guerra de agressão
nazista, ruiria toda a estrutura sobre a qual se assentava o Processo de
Nuremberg. Com medo de ter todo o processo destruído por uma “folha de
papel”, o Tribunal excluiu o documento por se tratar de “prova de origem
duvidosa”42.

3.3 VEREDITO E LEGADO JURÍDICO

Os símbolos são importantes para a história porque auxiliam na


40 Id.
41 Ibid, p. 54.
42 HEYDECKER, Joe J; LEEB, Johannes. O Processo de Nuremberg. Rio de Janeiro: Bruguera, 1968. p.
218.

134 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
compreensão acerca de determinados acontecimentos. A escolha de Nuremberg
como local de julgamento e justiça segue uma simbologia que se pretendia
essencial ao processo. A cidade trouxera grandes triunfos a Hitler e seus
partidários, fora o lar dos comícios do partido nazista, a terra da “legalidade”
nazista. Nada mais simbólico que realizar ali o julgamento que pretendia
sepultar o nazismo e a maior barbárie cometida contra a humanidade.
Na “Casa da Justiça”, como conceitua Hannah Arendt, “não está em
julgamento um sistema, uma história ou tendência histórica, um ismo, o anti-
semitismo, por exemplo, mas uma pessoa, e se o réu é por acaso um
funcionário, ele é acusado precisamente porque até um funcionário ainda é um
ser humano, e é nessa qualidade que ele é julgado” 43.
Nuremberg entrou para a história não apenas por ter sido o primeiro
Tribunal a lidar com crimes de tamanha brutalidade e alcance geográfico, mas
também porque tudo naquele julgamento se afastou do habitual. Os sumários do
processo compreenderam, ao fim, mais de quatro milhões de palavras, que
ocuparam mais de dezesseis mil páginas. Foram celebradas quatrocentas e três
sessões públicas, onde foram ouvidas trinta e três testemunhas citadas pela
acusação e sessenta e uma pela defesa. Outras cento e quarenta e duas
testemunhas realizaram declarações juramentadas por escrito 44.
O julgamento dos quatro juízes, ao final, mostrou que seus argumentos
tentaram justificar uma decisão anteriormente tomada, respaldada pelos crimes
de guerra, devido a sua inegável configuração; mas orientados pela
configuração, ainda que contestável, devido às situações já expostas, dos crimes
contra a humanidade45. “Dos vinte e quatro acusados, três foram absolvidos,
doze foram condenados à morte por enforcamento, três à prisão perpétua e
quatro à prisão de dez a quinze anos”. Quanto às organizações, foram
consideradas criminosas o Corpo dos Chefes Políticos do Partido Nacional-
Socialista Alemão de Trabalhadores, as SS, as SD e a Gestapo. Os condenados
foram executados na noite entre os dias 15 e 16 de outubro de 1946 46.
Além da responsabilidade do indivíduo perante o direito internacional,
aspecto muitas vezes citado neste trabalho, fruto do amadurecimento da

43 SILVA, Vinícius Técfilo Luchese de Moraes e. Hannah Arendt: Ruptura, Julgamento e Liberdade.
[S.l.]: [s.n.], 2008. 93.
44 HEYDECKER; LEEB, op. cit., p. 98.
45 SILVA, op. cit., p. 72.
46 RAMOS, Luiz Felipe Gondin. Tribunal Militar Internacional de Nuremberg: análise história e
legado jurídico. [S.l.]: [s.n.], 2009. p. 55.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 135
doutrina e da comunidade internacional, instituiu o Tribunal o “Princípio de
Nuremberg” (“agir sob o pretexto de ordens superiores não é escusa para a
prática de crimes internacionais, desde que a possibilidade de escolha moral
fosse, de fato, viável”), norma basilar que, desde então, vem sendo invocada nas
mais variáveis situações que envolvem crimes contra os direitos humanos.
Após Nuremberg, desencadearam-se diversos outros julgamentos,
realizados nos países Aliados, de nazistas acusados por crimes semelhantes
àqueles tipificados em Nuremberg. Os resultados do julgamento foram
imediatamente submetidos à recém-criada ONU, servindo de pauta para uma
série de Tratados e Convenções, que tipificaram no direito internacional, entre
outros, o crime de genocídio e serviram de base para a criação de um Código de
Crimes47.

4 LEGADO HISTÓRICO-CULTURAL

A catástrofe humana gerada pela Segunda Guerra Mundial foi quase


certamente a maior na história da humanidade – aprendeu-se a viver em um
mundo em que a matança, a tortura e o exílio em massa tornaram-se fenômenos
rotineiros e não mais notáveis48. Os vestígios de lembranças do século XX
refletem uma história única de genocídio e destruição em massa, a qual, a
princípio, barra qualquer tentativa de glorificar o passado 49 - as feridas abertas
pelo século XX parecem não poder cicatrizar. Após a guerra e com o fim dos
regimes políticos que colaboraram com a exposição da população a tamanha
atrocidade, buscou-se evitar a repetição de tal experiência traumática.
Estudaremos, neste ponto, as consequências para a memória histórico-cultural
na Alemanha pós-nazismo.
A memória é vista como uma das preocupações políticas centrais das
sociedades ocidentais50. Houve, após a vigência do regime nazista totalitário,
uma tentativa de “desnazificação”, uma necessidade de instituir-se a cultura do
“nunca mais” através, por exemplo, de campanhas de esclarecimento da opinião

47 CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, realidades e implicações para o Brasil.
Brasília: FUNAG, 2012. p. 25.
48 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Tradução Marcos Santarrita;
revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 57.
49 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2000, p. 31.
50 Ibidem, p. 09.

136 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
pública e de resgate da memória51.
Atualmente, o debate acerca do Holocausto está cada vez mais amplo,
expressando-se através de manifestações públicas, abertura de museus,
discursos presidenciais, eventos internacionais etc 52. Observa-se que o discurso
perpassa a esfera nacional, sendo este o primeiro problema apontado com
relação à memória cultural pós-nazista - pode-se falar em globalização do
discurso do Holocausto, sendo este lugar-comum para os traumas históricos?
Há, pois, uma possibilidade de “globalização da memória” 53?
O Holocausto é visto como uma figura de linguagem universal que
permite entender situações locais particulares, historicamente distantes e
politicamente distintas do evento original. Funciona como um prisma através do
qual se observam outros exemplos de genocídio. Entretanto, essa comparação
com o Holocausto também pode servir como uma falsa memória ou um
bloqueio à percepção de histórias específicas 54, criando uma distância entre o
mítico e o real.
Além da crítica à generalização do discurso do Holocausto, o qual
ultrapassa os limites geográficos e o contexto político particular em que
ocorreu, há um paradoxo a ser destacado: o papel da mídia na dicotomia
memória-esquecimento. Ao mesmo tempo em que a mídia torna a memória
cada vez mais disponível através das novas tecnologias de informação, a mesma
é responsável pela criação de “memórias imaginadas”. Ressalta-se, diante disso,
que o combate ao esquecimento não ocorre, então, apenas na esfera pública,
mas alcança, também, a esfera privada55.
A enorme influência das novas tecnologias de mídia como veículos para
todas as formas de memória torna prejudicado pensar o Holocausto ou outro
trauma histórico como uma questão ética e política séria, sem que se leve em
conta os múltiplos modos pelos quais se encontra ligado à mercadorização e à
espetacularização em filmes, museus, “docudramas”, sites na internet, livros de
fotografia, histórias em quadrinhos, ficção etc. 56.
Além das duas problemáticas acima apontadas, diz-se, ainda, que é
impossível contar a totalidade dos fatos passados, já que a história é escrita a
51 DIMOULIS, Dimitri. O caso dos denunciantes invejosos: introdução prática às relações entre direito
moral e justiça. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 11.
52 HUYSSEN, Andreas, op. cit., p. 11.
53 Ibidem, p. 12.
54 Ibidem, p. 13.
55 Ibidem, p. 20.
56 Ibidem, p. 21.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 137
partir dos interesses dos grupos dominantes, sob a égide da ideia de verdade
absoluta. A reescrita do passado, ao analisarem-se as memórias excluídas do
discurso oficial, distancia-se do que foi assimilado pela sociedade, significando
que houve uma propagação de discursos propícios a gerarem incorreções,
estetizações, entre outros elementos que podem estar distantes dos fatos reais57.
Apesar de as críticas feitas à propagação da memória revelarem uma
verdade presente na cultura da sociedade atual (a memória fictícia, irreal),
evidencia-se que, diante dos traumas gerados pelo século XX através de suas
guerras e crimes nunca antes cometidos, a memória deve ser sempre retomada 58.
Ou seja, mesmo tendo o Holocausto sido mercadorizado59, isto não o banaliza
como evento histórico que deve ser sempre relembrado como fonte para o
futuro político e social.
Assim, a fratura múltipla da memória do Holocausto em diferentes
países e a sedimentação em diversas camadas de imagens e discursos variáveis
deve ser vista em seus aspectos de capacitação política e cultural, como antídoto
em potencial contra o congelamento da memória numa imagem traumática ou
no enfoque embotador dos números60. Precisamos da memória para construir
uma proteção contra o desaparecimento, e cabe aos governos e às sociedades
preservarem-na em sua cultura.

CONCLUSÃO

Para além do debate da legalidade e da justiça no Tribunal de


Nuremberg, este artigo buscou, não intentando esgotar o tema, analisar o legado
histórico-cultural do que restou do regime totalitário na Alemanha nazista.
Compartilhamos a ideia exposta por Giorgio Agamben em sua obra O que resta
de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, que afirma que o Direito não deve
pretender esgotar a questão dos crimes e dos traumas vividos durante a Segunda
Guerra Mundial. Há, para ele uma consistência não jurídica na verdade, na qual
a quaestio facti nunca poderá ser reduzida à quaestio iuris61.
57 BATISTA, Cristiano Rodrigues. Memórias, esquecimentos e simulacros. Disponível em:
<http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie06/RevLitAut_art05.pdf>. Acesso em: 08 out. 2013, ps. 69-70.
58 Ibidem, p. 72.
59 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2000, p. 21.
60 Ibidem, p. 82.
61 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução
Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 27.

138 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Ao afirmar essa consistência, porém, não desprezamos o legado de
Nuremberg para a História e para o Direito. O Tribunal passou a ser visto como
um divisor de águas, rompendo com um paradigma extremamente estatal no
Direito Internacional mediante a inserção dos indivíduos, os verdadeiros
destinatários das normas internacionais, no direito das gentes. Somente após
essa inserção foi possível estabelecer todo o arcabouço jurídico de proteção do
ser humano no Direito Internacional, seja através de tratados e convenção em
matéria de Direitos humanos ou por meio da instituição de Cortes Penais
Internacionais, que resultaram na criação do Tribunal Penal Internacional.
Para a História, apesar da sua inegável parcialidade, expôs a Corte os
horrores do regime nazista, a intenção da humanidade de sepultar os regimes
totalitários, sua política de terror e os perigos da “banalidade do mal”, resultado
do vazio de pensamento e da trivialização da violência.
Indo, pois, além da esfera jurídica, percebemos a necessidade de se
aprofundarem os debates acerca da memória, enfatizando os Direitos humanos,
as questões de minorias e gêneros e a reavaliação da História, como forma de
evitar o esquecimento acerca da banalidade da violência diária 62.
“Essa distância da realidade e essa incapacidade de pensar podem gerar
mais devastação do que todos os maus institutos juntos – talvez inerentes ao
homem; essa é, de fato, a lição que se pode aprender com o julgamento de
Jerusalém”63. O excerto, retirado da obra Eichmann em Jerusalém, de Hannah
Arendt, apesar de escrito em diferente contexto, resume o que se se pretendeu
estudar neste trabalho.

REFERÊNCIAS

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(Homo Sacer III). Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade


do mal. Traduzido por José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, 1999.

62 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia.


Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000, p. 35.
63 SILVA, Vinícius Técfilo Luchese de Moraes e. Hannah Arendt: Ruptura, Julgamento e Liberdade.
[S.l.]: [s.n.], 2008. 96.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 139
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Evolução do Direito Internacional Penal e o Tribunal Especial para Serra
Leoa: Análise da natureza jurídica e considerações sobre sua jurisprudência.
Nomos – Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito – UFC. Fortaleza,
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CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 141
142 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Críptica
Arendt e Kant: leituras paralelas dos textos “Que é
liberdade?” e “Fundamentação da metafísica dos
costumes”

Walter Marquezan Augusto*

RESUMO: Hannah Arendt e Immanuel Kant são autores que possuem


conceitos diferentes de “liberdade”. Neste trabalho, baseado na leitura de dois
textos específicos de cada autor, procuro fazer “aproximações conceituais
marginais”, de forma a tentar demonstrar possíveis inflexões para refletir a
direta e mútua implicação que o tema da liberdade tem com a Ética, a Política e
o Direito.

PALAVRAS-CHAVE: liberdade; ética; política; Hannah Arendt; Immanuel


Kant.

ABSTRACT: Hannah Arendt and Immanuel Kant are authors who have
different concepts of “freedom”. In this artcle, based on the reading of two
specific texts of each author, I intend to make “marginal conceptual
approaches”, to demonstrate the possibility of inflections to think the direct and
mutual implication that the theme of freedom has to Ethics, Politics and Law.

KEYWORDS: freedom, ethics, politics, Hannah Arendt, Immanuel Kant.

1 – Considerações iniciais:

O tema da liberdade surge e ganha importância na Modernidade,


sendo decisivo para a formação do Direito e do pensamento jurídico herdeiro
desta tradição. Liberdade é um dos pontos decisivos de intersecção da Política e
do Direito, portanto, podemos dizer que a discussão que gira em torno do seu
conceito é determinante não apenas para a vida em comum, mas para a própria
constituição do imaginário de um povo. Neste sentido, trago à reflexão a leitura

* Mestrando em Direito pela UFSC, área de Teoria, História e Filosofia do Direito.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 145
sobre os textos de dois autores: Immanuel Kant e Hannah Arendt.
Este trabalho foi primeiramente pensado como uma leitura kantiana
do texto sobre liberdade de Hannah Arendt. Ocorre que à medida que fui
estudando os temas, percebi que a ideia inicial não poderia ser concretizada por
vários motivos, mas principalmente porque tal leitura (crítica), ao menos de
forma tão direta, se mostrou irrealizável, sob pena de ter de cometer grande e
bizarra injustiça, seja com Arendt, que se sabe que é uma notória kantiana, ou
Kant, o que resultaria numa crítica infundada e sem qualquer respaldo na sua
construção ética.
Sendo assim, mantive apenas a ideia original de situar-me diretamente
nos textos escolhidos, sem partir de comentadores, porém, estruturando a minha
escrita de forma "paralela", tentando em um terceiro momento suscitar possíveis
inflexões das ideias revistas. Juntamente com o auxílio de outros autores, como
Benjamim e Agamben, críticos aos temas do Estado de Direito e da Soberania,
procuro refletir sobre como as aproximações conceituais feitas tem direta
implicação na Política, na Ética e, portanto, também no Direito.

2 – A razão de ser da política: a liberdade em Hannah Arendt:

No ensaio “Que é liberdade?”, Hannah Arendt se propõe analisar o


tema da liberdade sob a premissa de que essa é a “raison d’être da política, e
[que] o seu domínio de experiência é a ação” (2011, p. 192). A autora afirma
que esse é o motivo pelo qual os homens vivem politicamente organizados:
“Sem ela [a liberdade], a vida política como tal seria destituída de significado”
(2011, p. 192).
Arendt fixa o seu ponto de partida na refutação de certa “distorção
obscura” que a tradição filosófica operou ao transpor a liberdade do seu campo
original, “o âmbito da política e dos problemas humanos em geral”, para a
esfera interna do pensamento, “do diálogo comigo mesmo [...] do qual emergem
as grandes questões filosóficas e metafísicas” (2011, p. 191). Para esse divórcio
entre política e a noção de liberdade, a autora nos remete à Antiguidade tardia,
precisamente a um ensaio de Epicteto, que teria afirmado que “livre é aquele
que vive como quer” (2011, p.193).
A despeito desse conceito de “liberdade interior e apolítica”, Arendt
sutenta que o homem nada saberia de liberdade interior se antes não tivesse
experimentado uma condição factual da liberdade, e que sem a existência de um

146 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
“âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto
onde aparecer” (2011, p. 194-5).
Assim, rejeitando toda a tradição filosófica que separou política da
noção de liberdade, bem como os discursos da Modernidade que favoreceram a
ideia de “segurança” como critério de política a favor de uma liberdade
particular, Hannah Arendt começa a sua empreitada crítica lançando a seguinte
afirmativa (2011, p. 197): “A liberdade, enquanto relacionada à política, não é
um fenômeno da vontade.”.
Essa curiosa proposição tem íntima relação com a afirmativa de que
os homens “são livres enquanto agem [...], pois ser livre e agir são uma mesma
coisa” (ARENDT, 2011, p. 199, grifo da autora). Todo agir, por sua vez, não
pode prescindir de um elemento de virtuosidade, por isso a autora nos irá
remeter a uma possível relação de política com as “artes de realização”, para a
qual as instituições políticas dependem da ação dos homens para a sua
conservação (2011, p. 200). Nesse sentido, a ação necessita de um espaço
político20, que não é meramente dado pela simples razão dos homens
conviverem em comunidade, e cuja finalidade é possibilitar que a liberdade
apareça como virtuosismo e que adquira uma realidade concreta.
Mas para Hannah Arendt a principal dificuldade que não nos
permitiria enxergar liberdade em termos de ação consiste num legado da
tradição cristã. Segundo a autora, o problema teria começado na interpretação
de Agostinho aos conflitos internos de Paulo, em que havia um “quero-e-não-
posso” (2011, p. 206). Liberdade passou, então, a ser confundida com livre-
arbítrio. Era justamente essa situação que não era vivenciada na Antiguidade
grega e romana, onde o conceito de liberdade era exclusivamente político; o que
os antigos não conheciam era a distinção entre “quero” e “posso”.
Ocorre que da noção de liberdade enquanto “poder” e “não poder”,
vontade potente e impotente, decorreu uma consequência mais perniciosa ao
qual Arendt nos chama atenção. Na compreensão da “liberdade como um estado
de ser manifesto na ação para o liberum arbitrium, o ideal de liberdade deixou
de ser o virtuosismo [...] tornando-se soberania” (2011, p. 211, grifo meu).
Assim, aquele que tudo pode é (o) soberano, o que experimenta a liberdade por
excelência.
Mas, o que devemos entender por ação? E em que consiste afinal a
20 A título de exemplo desse espaço, a autora cita a pólis grega, que deve ser entendida como “forma de
governo” e não apenas como a cidade-estado, e que foi pensada para servir aos livres (ou seja, apenas
aqueles que não eram escravos ou que não estavam sujeitos a coerção de outrem).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 147
liberdade, enquanto ação e conceito indissociavelmente político? Responderia
Hannah Arendt que “[...] o homem é livre porque é um começo”, provocando-
nos a compreender liberdade como a faculdade de começar. É nessa capacidade
(ou potência) de quebrar uma sequência automática, ou seja, a capacidade de
gerar um (novo) começo, que consiste a ação e, enquanto tal, a liberdade; e por
isso, “enquanto essa fonte permanece oculta, a liberdade não é uma realidade
tangível, isto é, não é política”.
A liberdade enquanto fenômeno descrito por Arendt coloca numa
difícil situação qualquer argumento que sustente liberdade como mera “vontade
impotente”, ou um ideal de livre-arbítrio inconcebível neste mundo (ao menos
para aqueles que não são “soberanos”). Contudo, liberdade seria, por assim
dizer, ação por ação? Longe dessas serem indagações que clamassem por um
valor ontológico de liberdade, elas apenas adiantam a inquietação que motiva a
leitura paralela de Kant que ora farei.

2 – O reino dos fins como espaço possível: o imperativo categórico de Kant.

Em meio à análise arendtiana da noção de liberdade enquanto ação 21,


considero que possa ser interessante instigar um cotejamento com alguns
conceitos kantianos, os quais irei esboçar a partir da obra “Fundamentação da
metafísica dos costumes”.
Ao se propor uma busca e fixação de um princípio supremo de
moralidade, Kant afirma que há para o homem uma digna intenção de
existência, a qual a razão se destina, e que consistiria na produção de uma
vontade boa em si mesma (2011, p. 25-6).
A noção de uma “boa vontade” pode ser identificada no conceito de
dever, para o qual Kant afirma que é “a necessidade de uma ação por respeito à
lei”; e é essa representação da lei em si mesma, que determina a vontade e, por
consequência, exclui a influência de “inclinações”, é que “pode constituir o bem
excelente que chamamos moral” (2011, p. 32-3, grifo do autor). Essa lei moral,
nesta acepção formal, frente a qual nos encontraríamos despojados de outros
estímulos, pode ser tida como “uma lei universal das acções”, que Kant assim
enuncia (2011, p. 34): “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer
também que a minha máxima se torne uma lei universal”.
21 Na qual poderíamos enxergar como principal característica uma “ruptura estética”, se posso assim dizer...
Ver: CASTORIADIS, Cornelius, A polis grega e a criação da democracia. In: As encruzilhadas do
labirinto: os domínios do homem. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 286.

148 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Kant reconhece que é impossível comprovar ao menos um único caso
em que a ação tenha se baseado puramente em motivos morais e na
representação do dever. Mas essa verificação não retira a relevância de se poder
constatar de que a razão, por si mesma, pode ordenar o que deve acontecer. Sob
este argumento, refuta-se a ideia de que moralidade possa ser extraída de
exemplos empíricos; logo, o seu contrário é que se mostra verdadeiro, pois é da
razão a priori, enquanto teorização de uma metafísica dos costumes, que se
extraem todos os conceitos morais, para que esses possam ter uma validade
universal – e é nesta pureza que reside a sua dignidade.
Kant afirma, então, que tudo na natureza age segundo leis, mas só um
ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, ou seja,
só ele tem uma vontade. Logo, se para derivar ações dessa lei é necessário
razão, a “vontade não é outra coisa senão a razão prática” (2011, p. 50). Assim,
a razão como aquilo que contém a vontade por respeito à representação de uma
lei moral é o que exprime o conceito de obrigação. Em outras palavras, a
vontade humana, ao verificar uma conduta objetivamente necessária, coloca-se
numa posição subjetivamente contida, por respeito a essa lei moral, daí nasce
uma obrigação. A partir disso é que Kant pode elaborar o conceito de
“imperativo”, como uma representação de um princípio objetivo obrigante para
uma vontade, que se exprime pelo verbo dever (sollen). Segundo o autor,
praticamente bom é aquilo que determina a vontade por meio de representações
da razão, em sede objetiva, ou seja, livre de causas subjetivas e que por isso
pode ser válido para todo ser racional.
O imperativo categórico, portanto, “seria aquele que nos representasse
uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem relação com
qualquer outra finalidade” (KANT, 2011, p. 52). O imperativo categórico seria
uma ordem que se tem de seguir mesmo contra uma inclinação – ainda que não
seja passível de demonstração por um exemplo. O cerne do imperativo seria o
seu caráter de inafastabilidade do dever, contudo, é Kant que reconhece que o
imperativo só existe em razão da “imperfeição subjetiva deste ou daquele ser
racional” (2011, p. 52) – e essa “razão de ser” do imperativo por seu reverso
nos parece essencial para o problema que aqui se quer suscitar.
Assim, Kant (2011, p. 62) formula um primeiro enunciado do
imperativo categórico: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. Se a razão é a faculdade
comum aos homens, o dever à lei tem que ser igual para todos, da mesma forma

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 149
que a lei deve poder obrigar a todos, daí decorre a necessidade de
universalidade de uma máxima – como sustentação possível do imperativo
categórico. Decorre, também, desse argumento certo “teste do imperativo
categórico” que Kant aplica aos seus exemplos, para confirmar ou não a
validade da máxima de uma ação segundo a lei da moralidade 22.
Até aqui, Kant conseguiu demonstrar como a razão pode conceber um
dever que possa ser universalmente válido, contudo, não disse o que
objetivamente (ou seja, no plano universal) possa dar base, ou em outras
palavras, conteúdo ao imperativo categórico. Assim, tendo em conta esse fim
para a vontade, Kant (2011, p. 71, grifo do autor) pergunta se há alguma coisa
“cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto [...] como fim em si
mesmo”? E Kant responde (2011, p. 72, grifo do autor): “O homem [...] existe
como fim em si mesmo”. Daí decorre a chamada fórmula da humanidade
(KANT, 2011, p. 73, grifo do autor): “Age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.
Cotejando os dois enunciados antes trabalhados, derivados de uma
razão pura inerente ao homem, Kant afirma que a vontade não apenas se
submete à lei moral, mas que devemos conceber também “a vontade de todo o
ser racional [...] como vontade legisladora universal” (2011, p. 77, grifo do
autor). Somente assim, submetendo-se a si mesmo à sua legislação, sem que se
funde em algum outro interesse, é que se pode ter o imperativo como
incondicionado. Aqui, pois, reside o princípio da “Autonomia da vontade”
(KANT, 2011, p. 80, grifo do autor).
Kant diz, então, que esses conceitos nos levam a outro conceito, o do
Reino dos fins23, segundo o qual todos nós (seres racionais) estamos submetidos
a uma mesma lei que institui cada ser racional como um fim em si mesmo
(2011, p. 80, grifo do autor).
A terceira secção do livro dedica-se a entender um conceito de
liberdade equalizado com os demais conceitos antes trabalhados. Kant nos
distingue uma liberdade negativa, como aquela que liga a vontade à causalidade
22 Considero que seja interessante neste ponto salientar, sem fazer juízo de valor, a expressão que Kant usa
em um dos seus exemplos para propor tal verificação: “a questão é a de saber se é justo” (2011, p. 64,
grifo meu).
23 Aqui vale transcrever uma passagem (KANT, 2011, p. 82, grifos do autor): “No reino dos fins tudo tem
ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer
outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite
equivalente, então ela tem uma dignidade.”

150 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
eficiente – sem interferência de causas externas; e uma positiva, que deriva da
autonomia da vontade, ou seja, a vontade como própria produtora leis com
causalidade eficiente.
O impasse no conceito de liberdade de Kant é que ele não passa de
uma ideia (2011, p. 102,113). Há que se reconhecer que não se trata de uma
“ideia qualquer”, uma vez que permite que o ser racional aja conforme todos os
imperativos que se propõe – o que, portanto, não autoriza a crítica que Hannah
Arendt faz a outras ideias de liberdade, para as quais se poderia ser escravo no
mundo e ainda assim ser livre (ARENDT, 2011, p. 193).
Igualmente não se pode dizer que tal ideia não tenha significação
política. Porém, a riqueza das demais construções do livro ofusca esse conceito
de liberdade, sendo que poderíamos enxergar nessa primeira estruturação da
ética kantiana24 maior relevância (e repercussão política) para os fins que aqui
nos interessam.

3 – Inflexões possíveis: liberdade como ação e a razão de ser da ética.

Vimos, portanto, que os conceitos de liberdade de Kant e Arendt são


conceitos que não se tocam. Vale dizer que Hannah Arendt presta atenção à
contribuição kantiana logo no início do seu ensaio, contudo, afasta a hipótese
pelo fato do homem “livre” nunca aparecer de fato no mundo fenomênico
(2011, p. 189-190).
Mas, afora o tema da liberdade, podemos dizer que os conceitos
trabalhados na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” são os
importantes germes para a construção da ética kantiana. E é a partir dessas
balizas que pretendo lançar o questionamento de alguns pontos do ensaio de
Arendt. Pois se problematizar politicamente a ideia kantiana de liberdade parece
não ter consequências práticas relevantes, por outro lado, é certo que o
imperativo categórico e os seus desdobramentos, apesar de terem sido
concebidos em um plano metafísico, referem-se necessariamente ao plano
“físico”, um aqui e agora, o qual nos dá um norte para condutas dentro de um
cenário político – que Kant representou como o Reino dos fins.
É muito interessante notar a forma como Arendt define liberdade
enquanto potência para uma nova ação. Uma propriedade para chamar à

24 Que terá continuidade na Crítica da Razão Prática e na Metafísica dos costumes, principalmente a
doutrina das virtudes.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 151
existência o que não existia, contradizendo todas as expectativas, na quebra de
um processo automático, o que poderia ser comparado com um “milagre”
(ARENDT, 2011, p. 198, 217).
A propriedade de fixar um começo e de interromper o automatismo se
parece muito ao que Walter Benjamin (1995) havia tratado no seu ensaio “Para
una Critica de la violencia”. Naquele ensaio, o que interrompia uma ordem e
operava uma refundação era uma violência pura - a violência divina, por
excelência (BENJAMIN, 1995, p. 41). Mas tal qual a ação na liberdade
arendtiana, a violência divina é apenas manifestação, uma violência que
purifica, que tem um fim em si mesma. Essa violência é acessível aos homens
pela forma revolucionária, porém, está fadada a ser “violência mítica” toda vez
que refundar uma ordem de Direito – para a qual violência sempre espreita no
princípio da lei.
Agamben, por dar continuidade às pesquisas de Arendt e Benjamin,
também dá seu conceito para esse “fenômeno”, como a ação humana que corta
o nexo entre violência e direito, a tarefa da “política que vem” (2004, p. 133).
Ocorre que na descrição de liberdade como ação, há que se reconhecer
apenas uma “fenomenologia” da liberdade. Arendt deixa claro que a liberdade
da ação está caracterizada na sua capacidade de transcender os fins e os
objetivos propostos, que determina a sua possibilidade de criação e não ação por
conveniência. Mas Arendt (2011, p. 198) parece jogar a valoração dos efeitos
dessa ação num momento após sua concretização, nas suas palavras: “O
desígnio da ação varia e depende das circunstâncias mutáveis do mundo;
identificar uma meta não é uma questão de liberdade, mas de julgamento de
certo e errado”.
Essa ação não acontece por si só, depende da existência humana, e por
isso, tem algo em si que a motiva, que a impulsiona para frente. Mas Arendt
(2011, p. 198-9) nega que ação esteja sob a direção do intelecto ou sob ditames
da vontade; para a autora, aludindo a Montesquieu, a ação “brota de algo
inteiramente diverso [...] um princípio [...], como que inspiram do exterior, e são
demasiado gerais para prescreverem metas particulares”. Esse princípio tem sua
validade universal, não estando ligada a uma pessoa ou um grupo particular, e
pode ser tanto “a honra ou a glória, amor à igualdade, que Montesquieu
chamou de virtude, ou a distinção, ou ainda a excelência, [...] mas também o
medo, a desconfiança e o ódio” (ARENDT, 2011, p.199). Assim, sob essas
inspirações, a ação pode dar tanto origem à liberdade quanto ao seu contrário,

152 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
mas a verdadeira “liberdade política [...] consiste em poder fazer o que se deve
querer” (ARENDT, 2011, p. 209). Em que pese a ênfase recaia sobre o “poder”
fazer, esse poder não prescindiu do “que se deve querer”, para que seja tida
como liberdade.
Arendt parece, então, estar presa em uma armadilha 25. Kant talvez
diria que a experiência não nos diz outra coisa senão a existência de uma causa
– ainda que não a descobrimos (2011, p. 60). Mas qual é a causa da liberdade de
Arendt? Por que, ou por qual motivo, a liberdade se mostra (ou tem a
necessidade de ser demonstrada)? Se não está se tratando de ditames da razão e
da vontade, por que Arendt teve que se valer dos “princípios”, que inspirariam
do exterior, e que têm a sua validade por serem universais?
Se estas indagações forem válidas, realmente ficamos perplexos frente
a essa situação. Não nos ocorre pensar que Arendt não teria se apercebido de
tais observações, muito menos que tenha negligenciado as lições de Kant. O
fato é que Arendt as rejeitou para tratar da liberdade, mas não sabemos aqui
discorrer o porquê26.
Não se quer aqui perverter a noção arendtiana de liberdade (pois a
autora deixa muito clara a sua preocupação ética ao longo do texto); pelo
contrário, quero poder enxergar nessa liberdade talvez um espaço para a ética
kantiana, e que essa noção [a liberdade enquanto manifestação] por ter sido
tratada com outras palavras, mas de forma tão similar pelos demais autores
citados (Benjamin e Agamben), talvez nos permita estender esta interpretação
kantiana a estes também27.
Se tomarmos a formulação do imperativo categórico na acepção
formal, como a necessidade de cumprimento pelo dever que racionalmente nos
é imposto, corremos o risco à crítica feita por Agamben, de estarmos diante de
uma lei reduzida ao grau zero do seu significado (2010, p. 57). De fato, essa é a
lei pela lei, que vige sem significar na esfera ética 28.

25 Benjamin parece ter saído dessa armadilha ao diferenciar uma violência divina, como violência pura que
depõe a violência posta e se mantém como fim em si mesmo, e uma violência revolucionária, acessível
aos homens, que também pode depor uma violência posta, mas que não está a salvo de se tornar ela a
própria instituição (ou seja, que não podemos admitir como fim em si mesmo).
26 O que obviamente não descarta a hipótese da minha incompreensão das ideias veiculadas nos textos
analisados.
27 Note-se que não é dizer que esses autores tenham sido kantianos nos seus escritos, mas que talvez
naquilo que não disseram possamos enxergar um espaço para uma leitura kantiana.
28 Kant (2011, p. 55) afirma que os mandamentos são leis a que “se têm de seguir mesmo contra
inclinação”, se “tende” seguir mas não necessariamente se segue.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 153
Contudo, se tomarmos o imperativo categórico como uma formulação
material, no enunciado da humanidade, teremos de reconhecer o peso político
do seu preceito.
É certo que Kant afirma que o imperativo categórico só existe em
razão da imperfeição da vontade humana. De forma que essa questão da
definição do imperativo (lei) pelo seu reverso suscita o pensamento de que o
mandamento só existe porque de alguma forma se sabe que será descumprido.
No entanto, da mesma forma que se ordena porque se sabe que nem tudo se
cumpre (pois aí tudo divinamente deslizaria), tampouco se ordena sem qualquer
perspectiva que não se cumpra. O que se extraí é que Kant formula uma lei cuja
máxima característica não está na (aparência de) total potência, mas tampouco
na impotência. Não apenas cumprimento e nem tanto descumprimento, uma
orientação moral.
Parece ser estranha essa interpretação que se poderia achar que
rebaixa o imperativo categórico, cuja característica é seu inafastável dever, a
uma proposição que se assemelharia ao conselho (o que Kant qualifica como
imperativo hipotético). Mas não é disso que se trata.
A possibilidade de ser pensável enquanto orientação é aquilo que
sustenta a lógica de que a Razão pode determinar como as coisas devem
acontecer, que no fundo, parece ser o cerne da construção do imperativo.
Se pudéssemos interpretar que “liberdade” (Arendt), “violência pura”
(Benjamin), “resistência” (Agamben), todas atentam contra aquilo que age por
princípios contrários à moralidade kantiana (me refiro aqui ao poder soberano
antes mencionado), talvez também poderíamos pensar que, ainda que não se
diga, é para um reino dos fins, no qual tudo tem um preço ou uma dignidade,
que a liberdade se orienta. Se a liberdade é a “razão de ser” da política, a
política deve ser “razão de ser” da ética.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2.ed. Traduzido por POLETI, Iraci


D. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.ed.


Traduzido por BURIGO, Henrique. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

154 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
ARENDT, Hannah. Que é liberdade? In: Entre o Passado e o Futuro. 7.ed.
São Paulo: perspectiva, 2011.

BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Traduzido para o


espanhol por MURENA, Héctor A. Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de


Paulo Quintanela. Edições 70: Lisboa, 2011.

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156 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Derechos sociales y capitalismo em México y América
Latina. Un acercamiento interdisiplinario desde la
Critica Juridica

Daniel Sandoval Cervantes*

RESUMEN: El objetivo del presente escrito es realizar un análisis


introductorio del papel que los derechos sociales –y, por tanto, las
constituciones— han tenido en el desarrollo del capitalismo en nuestro país y en
nuestra región, tratando de encontrar una metodología por medio de la cual sea
posible comprender la situación y el papel actual del uso del discurso del
derecho. Por un lado, lo anterior implica la necesidad de contar con una
metodología de carácter interdisciplinario por medio de la cual sea posible
comprender lo jurídico, específicamente el uso del discurso del derecho, como
parte de un conjunto de fenómenos y relaciones sociales más complejos en cuya
reproducción o ruptura tiene un papel específico. Como se tratará de mostrar en
el siguiente apartado, la crítica jurídica es un enfoque metodológico
necesariamente interdisciplinario. Por otro lado, es necesario partir del
materialismo-histórico, pues la producción y el uso mismo del discurso del
derecho no se presentan sino en las relaciones dialécticas entre clases sociales.
Lo anterior es especialmente cierto para los derechos sociales, mismos que
representan, a la vez, las reivindicaciones de las clases subalternas movilizadas
y un instrumento de control social, a través del cual las clases dominantes
pueden legitimar la exclusión existente sin transformar las relaciones de

* Editor de la revista Crítica jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho. Miembro
del grupo de trabajo CLACSO “Crítica Jurídica Latinoamericana: movimientos sociales y procesos
emancipatorios”. Miembro del proyecto PAPIIT IN301711 Movimientos sociales y procesos
constituyentes contemporáneos en México y América Latina. Colaborador del Programa de Investigación
“Derecho y Sociedad”, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades,
Universidad Nacional Autónoma de México. Doctor en Derecho por la Universidad Nacional Autónoma
de México. El presente artículo ha sido posible gracias al apoyo de la DGAPA, por medio del proyecto
PAPIIT IN301711 Movimientos sociales y procesos constituyentes contemporáneos en México y
América Latina. Correo electrónico: dscervantes@hotmail.com

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 157
explotación.1 En todo caso, es fundamental contar una metodología que, desde
la comprensión de las contradicciones y las disputas entre clases sociales con
intereses antagónicos irreductibles, permita observar el carácter dialéctico del
derecho, y de los derechos sociales, marcado por la influencia que la capacidad
de movilización y de dirección de cada una de las clases le imprime a las
normas jurídicas existentes y a su aplicación.

PALABRAS CLAVE: Sociología jurídica crítica, Crítica Jurídica, Historia


crítica del derecho, México, América Latina.

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é realizar uma análise introdutória


do papel que os direitos sociais – e, consequentemente, as constituições – vem
tendo no desenvolvimento do capitalismo em nosso pais e região, tratando de
encontrar uma metodologia por meio da qual seja possível compreender a
situação e o papel atual do uso do discurso do direito. Por um lado, implica a
necessidade de contar com uma metodologia de caráter interdisciplinar por
meio da qual seja possível compreender o jurídico, especificamente os usos do
discurso do direito, como parte de um conjunto de fenômenos e relações sociais
mais complexos em cuja reprodução o ruptura tem um papel específico
interdisciplinar. Por outro lado, é necessário a partir do materialismo-histórico,
pois a produção e o uso mesmo do discurso do direito não se apresentam senão
nas relações dialéticas entre classes sociais. O primeiro é especialmente certo
para os direitos sociais, mesmo que representam, por vezes, as reivindicações
das classes subalternas mobilizadas e um instrumento de controle social através
do qual as classes dominantes podem legitimar a exclusão existente sem
transformar as relações de exploração. Em todo caso, é fundamental contar com
uma metodologia que, desde a compreensão das contradições e das disputas
entre classes sociais com interesses antagónicos irredutíveis, permita observar o
caráter dialético do direito, e dos direitos sociais, marcado pela influência que a
capacidade de mobilização e direção de cada uma das classes imprime as
normas jurídicas existentes e a sua aplicação.

PALAVRAS-CHAVE: Sociologia Jurídica Crítica, Crítica Jurídica, História


Jurídica Crítica, México, América Latina.
1 Véase Correas, Oscar, “4. Estado, sociedad civil y derechos humanos”, en Correas, Oscar, Acerca de los
derechos humanos. Apuntes para un ensayo, UNAM-CEIICH-Ediciones Coyoacán, México, 2003,
pp.57-65.

158 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
1. El derecho y lo social. La crítica jurídica como interdisciplinar

Para construir el derecho –lo jurídico— desde un enfoque


interdisciplinario resulta importante contar, primero, con una definición del
mismo que sirva no como punto de llegada, al cual retornarían
irremediablemente todos los resultados de la investigación, sino como un punto
de partida, desde el cual sea posible profundizar los análisis. En este sentido,
considerar el derecho como un discurso que tiene características particulares
(por ejemplo el uso del lenguaje prescriptivo y la amenaza de la coacción física
organizada), por un lado, no es un punto de partida ajeno a otras disciplinas del
conocimiento de lo social como la ciencia política o la sociología; por el otro,
permite analizar este discurso del derecho desde lo social sin perder de vista su
carácter jurídico.
En mi opinión existen cuatro categorías que son fundamentales para
estar en condiciones de comprender crítica e interdisciplinariamente al derecho:
la distinción entre discurso del derecho y discurso jurídico, y entre sentido
deóntico y sentido ideológico. La primera permite analizar la relación que la
construcción del derecho, como objeto de conocimiento por medio de la teoría
jurídica dominante (generalmente no crítica y pocas veces con perspectiva
multidisciplinaria), tiene para la legitimación del discurso del derecho
dominante (las normas jurídicas que reproducen las relaciones sociales de
dominación), es decir, esta distinción nos coloca en una discusión política y
sociológica acerca de la epistemología jurídica: el derecho como objeto de
estudio es construido en medio de la lucha de clases, y esto incluye la
asignación del sentido de lo que es el derecho (al menos el derecho dominante)
para una sociedad determinada.2
Como complemento de lo anterior, la distinción entre sentido deóntico
(el sentido propiamente normativo del derecho) y el sentido ideológico (el
sentido que, contenido en el discurso del derecho, más que prescribir conductas,
naturaliza las relaciones sociales de dominación en medio de las cuales se
produce y aplica el discurso del derecho) nos ayuda a profundizar el enfoque
interdisciplinario acerca del derecho. 3 La categoría de sentido ideológico es
2 Véase Correas, Oscar, Teoría del derecho, Fontamara, México, 2004, p. 24 y Wolkmer, Antonio Carlos,
História do Dereito no Brasil, 6ª edición, Río de Janeiro, Gen-Editorial Forense, 2012, pp. 45-55.
3 Correas, Oscar, Crítica a la ideología jurídica. Ensayo sociosemiológico, UNAM-CEIICH-Ediciones
Coyoacán, México, 2005, pp. 147-150.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 159
fundamental para ello, pues, a través de ésta es posible pensar que el derecho no
solamente se construye por medio de normas jurídicas que prescriben conductas
(y que muchas veces pueden ser vistas como colocadas por encima de las
relaciones sociales antagónicas que implica una sociedad, como la nuestra,
dividida en clases), sino que, por el contrario, permite observar que dichas
normas (el discurso del derecho) contienen también una ideología, la
dominante, que, por medio de la posibilidad de presentar a las normas jurídicas
como algo políticamente neutral, extiende o posibilita la reproducción del
sistema dominante y la construcción de su hegemonía. 4 En todo caso, la
categoría de sentido ideológico del discurso del derecho nos permite construir
un conocimiento crítico en el cual el concepto de dominación, el de lucha de
clases, el de discurso, el de sentido y el de hegemonía se relacionan y
construyen de manera compleja. También nos coloca en la posibilidad de
abordar una crítica del derecho por medio de la teoría de la subjetividad
política.5
En todo caso, si por medio de la interdisciplina, la crítica jurídica ha
logrado construir determinadas categorías que permiten concebir al derecho
desde su relación con otros campos del conocimiento de lo social, en este
mismo sentido, es a través de ella que la crítica jurídica puede analizar al
derecho en su desenvolvimiento/construcción en procesos históricos concretos.
La relación entre la construcción de las categorías de la crítica jurídica y el
análisis del papel del derecho en la producción y reproducción de las relaciones
de dominación en un proceso histórico concreto es de gran relevancia.
4 En todo caso es un tema de profundización repensar el concepto de hegemonía, sobre todo, el carácter de
dirección política-ética que implica, de cara a la eficacia del sentido ideológico del discurso del derecho.
Esto es de cara a las condiciones de naturalización de la dominación que concede dicha eficacia, a través
de las cuales se invisibiliza la violencia fundante del sistema capitalista y, por tanto, del sistema jurídico
capitalista, lo cual implica revisar la siguiente tríada conceptual: hegemonía, violencia simbólica y
sentido ideológico del discurso del derecho. Correas, Oscar, “Capítulo V. Eficacia del derecho y
hegemonía política” en Correas, Oscar, Kelsen y los marxistas, Ediciones Coyoacán, México, 2004, pp.
127-194; Gramsci, Antonio, “Algunos aspectos teóricos y prácticos del “economicismo””, Selección de
textos de Antonio Gramsci, Tomados de www.gramsci.org.arg, consultado el día 20 de mayo de 2013,
pp. 2-3.Bourdieu, Pierre, “Capítulo II. Sobre el poder simbólico”, tr. Ma. José Bernuz Beneitez, en
Boudieu, Pierre, Poder, Derecho y Ciencias Sociales, introducción Andrés García Inda, tr. María José
Bernuz Beneitez, Andrés García Inda, María José González Ordovás, Daniel Oliver Lalana, Bilbao,
Desclée de Brouwer, 2000, pp. 88-99.
5 Sobre todo del papel que tiene el poder y la dominación capitalista en la construcción de subjetividades
dóciles, adecuadas para la reproducción cada vez más eficiente del capitalismo. En esta faceta de la
subjetividad política, por supuesto, es recurrente la necesidad de tener en cuenta el concepto de
hegemonía, Foucault, Michel, Vigilar y castigar. Nacimiento de la prisión, 31ª ed., trad. Aurelio Garzón
del Camino, México, siglo XXI, 2001, pp. 197-249; Correas, O., Teoría del derecho, op. cit, pp. 159-161.

160 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Lo anterior porque, en un primer término, la misma construcción
dichas categorías parte de la observación de los procesos concretos; por el otro,
porque es a través de esta observación y análisis que las categorías de la crítica
jurídica muestran su capacidad explicativa. En este sentido, ambas cuestiones se
relacionan de manera dialéctica: a la vez que los procesos históricos permiten la
construcción inicial de las categorías de la crítica jurídica, es también por medio
de éstos que las últimas se transforman tornándose útiles para comprender las
particularidades de cada proceso histórico.
De acuerdo con lo anterior, la crítica jurídica, al menos como uno de
sus posibles puntos de partida, necesita una teoría y una filosofía de la historia
por medio de la cual pueda establecer esa relación entre sus categorías y los
procesos históricos concretos, observando la especificidad del derecho en la
formación de los modos de producción de cada sociedad. 6 En este sentido, la
perspectiva teórica que considero más adecuada para ello es el materialismo
histórico. No solamente porque, desde un principio, su concepción misma de la
historia y su importancia para la comprensión de las relaciones sociales-
productivas es un punto de partida inmejorable para una crítica de lo social
como una totalidad.7 Sino también porque en sus categorías, en su percepción
de la manera en que se construye el conocimiento histórico y su relación con los
distintos circuitos del poder, el materialismo-histórico, en su intento de
comprensión de la totalidad concreta, tiene una clara tendencia a la
interdisciplina, dentro de la cual permite integrar los distintos circuitos a través
de los cuales se ejerce el poder: el económico, el político, el cultural (en sentido
restringido) y, en nuestro caso específico, el derecho. 8

6 Desde Marx, los modos de producción implican, en su complejidad, la reproducción de la vida y, por
tanto, de la cultura, entendida en un sentido amplio, véase Marx, Karl y Engels, Frederich, “Feuerbach.
Contraposición entre la concepción materialista y la idealista” en La ideología alamena. Crítica de la
novísima Filosofía alemana en las personas de sus representantes Feuerbach, B. Bauer y Stirner y del
socialismo alemán en las de sus diferentes profetas, trad. Wensceslao Roces, México, Ediciones de
Cultura Popular, 1974, pp. 19-20. En América Latina, la necesidad de analizar desde lo concreto y local
las particularidades de cada sociedad es observable en Zavaleta, René, “Problemas de la determinación
dependiente y la forma primordial”, en René Zavaleta Mercado, El estado en América Latina, La Paz,
Los amigos del libro, 2009, pp. 133-135.
7 Thompson, E.P., “Marxism and History”, en The essential E.P. Thompson, edited by Dorothy Thompson,
The New Press, New York, 2001, p. 474.
8 Por ejemplo, véase Thompson, E.P., “Marxism and History”, op. cit. , p. 474 sobre la necesidad de un
análisis político de la dominación capitalista; en Braudel, la frecuentemente remarcada importancia de
una historia abierta a la interdisciplina, principalmente a la sociología y a la geografía, Braudel, Fernand,
“1. Reflexionando sobre la vida material y la vida económica”, en Braudel, Fernand, La dinámica del
capitalismo, trad. Rafael Tusón Calatayud, México, Fondo de Cultura Económica, 1997, pp. 9 y ss.,

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 161
Por otro lado, el materialismo histórico concibe al proceso histórico
como algo contingente, en el sentido de ser algo cambiante y para cuya
comprensión es necesaria la transformación adecuada de las categorías, a fin de
que permitan observar las transformaciones históricas y las especificidades de
cada sociedad9. Sin embargo, no por ser capaz de dar cuenta de estas
particularidades, el materialismo histórico renuncia a la construcción (o
reconstrucción) de una totalidad social y, por tanto, a la descripción de la
manera en que los distintos circuitos del poder se articulan en torno a un mismo
sistema de dominación: el capitalismo. 10 De esta manera, el materialismo
histórico mantiene una postura epistémica que permite observar la realidad
desde su característica dialéctica, sin caer en el dogmatismo teórico, pero
también sin caer en la imposibilidad de reconstruir lo social como un todo.

2. La relación entre los derechos sociales y el capitalismo desde la crítica


jurídica

Sin duda, son los derechos humanos uno de los puntos de partida para
comprender el carácter dialéctico del derecho, específicamente del moderno
capitalista. Por un lado, al menos desde la perspectiva de la crítica jurídica,
estos derechos son importantes para la reproducción y la legitimación jurídica
de las relaciones de dominación impuestas por el sistema capitalista. 11 De esta
manera, la formación histórica de los derechos humanos debe ser analizada
paralelamente con la construcción del sistema capitalista y, sobre todo, como
Braudel, Fernand, “Historia y sociología”, en La Historia y las Ciencias Sociales, Alianza Editorial,
Madrid, 1999, pp. 107-128
9 Así también la concepción de que las categorías y conceptos no pueden ser definidos de una vez y para
siempre, sino que sus contenidos deben adecuarse a los cambios históricos contingentes, para poder
mantener una capacidad explicativa en cada proceso concreto, véase Thompson, E.P., “Historical Logic”,
The essential E.P. Thompson, edited by Dorothy Thompson, The New Press, New York, 2001, pp. 445-
452; Barco, Oscar, “Concepto y realidad en Marx (Tres notas)”, en Dialéctica, núm. 7, año VI, diciembre
1979, Puebla, México, pp. 11-13. Para el caso de América Latina, Bagú, Marx-Engels. Diez conceptos
fundamentales en proyección histórica, 3ª ed., Editorial Nuestro Tiempo, México, 1977, pp. 102-129;
Quijano, Aníbal, “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”, en Lander, Edgardo
(comp.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas,
CLACSO, Buenos Aires, 2003, pp. 203-228.
10 Así la definición de proceso histórico y de hecho histórico, debe ser completada con la definición de
racionalidad histórica, la cual, desde la contingencia de los hechos históricos plantea que éstos no
ocurren sino en un transcurrir histórico global del cual es posible encontrar una racionalidad.
11 Correas, Oscar, “Criminalización de la protesta social. El contexto”, en Correas, Oscar (coord.), La
criminalización de la protesta social en México, México, UNAM-CEIICH-DGAPA, Ediciones
Coyoacán, 2011, pp. 17-34.

162 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
una de las características que distinguen al derecho moderno-capitalista de otras
formas de producir lo jurídico.12
Sin embargo, el mismo análisis histórico-socio-jurídico acerca del papel
de los derechos humanos en la conformación y reproducción del sistema
capitalista, no pude ser realizado de forma unilateral, sin observar que este
mismo discurso tiene un papel importante en la reivindicación de las demandas
de los movimientos sociales, incluyendo aquéllos que en algún punto presentan
exigencias que desafían la lógica capitalista. En este sentido, analizar, desde la
crítica jurídica, el discurso de los derechos humanos permite, a partir de un
estudio de un proceso histórico concreto, reconstruirlo desde la comprensión de
su carácter dual, es decir, comprendiendo que puede ser utilizado a la vez como
un instrumento de dominación o de construcción de hegemonía capitalista y
como un discurso a través del cual se cuestione a éstas. 13
Probablemente ningún sector del discurso de los derechos humanos, ni
conceptual ni históricamente, muestra este carácter dual de manera tan clara
como los derechos sociales (y en general los derechos colectivos que rebasan
los límites teóricos de la denominada primera generación de derechos
humanos). Es en la utilización y apropiación de este discurso a través de
prácticas políticas y sociales que es palpable, en la realidad, la tensión entre el
uso del discurso del derecho para la dominación y su uso para la construcción
de horizontes emancipadores. Sin embargo, estos análisis, a pesar de tener que
partir de un marco teórico y de una lectura internacional y global del sistema
capitalista de dominación, no pueden emprenderse sino a partir de la
comprensión de la situación nacional/local de su uso concreto. 14
En este sentido, proponemos analizar la historia del uso del discurso de
los derechos sociales en la conformación del sistema político-jurídico de

12 Correas, Oscar, “Los derechos humanos y el estado moderno (¿Qué hace moderno al derecho
moderno?)”, en Correas, O., Acerca de los derechos humanos. Apuntes para un ensayo, op. cit., pp. 21-
39.
13 Para amplios sectores de la crítica jurídica, este carácter dual es conceptualizado bajo el nombre de “uso
alternativo del derecho”: “[el uso alternativo del derecho] constituye las diversas acciones encaminadas a
que toda juridicidad (normatividad, derechos subjetivos, ideas y concretizaciones de justicia) sea usada
al servicio de los pobres como sujeto histórico, tanto ante las instancias judiciales y administrativas del
Estado, como por ellos mismos en sus relaciones comunitarias y recreando la solidaridad”, p. 100, Torre
Rangel, Jesús Antonio de la, El derecho como arma de liberación en América Latina. Sociología
jurídica y uso alternativo del derecho, 3ª ed., San Luis Potosí, Universidad Autónoma de San Luis Potosí
/ Facultad de Derecho / CENEJUS / CEDH, 2006, pp. 100-130.
14 En la conformación concreta de sus propios sistemas políticos, en este sentido, véase Zavaleta, R.,
“Problemas de la determinación dependiente y la forma primordial”, op. cit., pp. 113-115 y 122-135.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 163
dominación en nuestro país (México) para, a partir de ahí, articular la
posibilidad de un análisis regional en el mismo tenor. Dicho estudio tendría que
partir, precisamente para dar cuenta del carácter dual del discurso del derecho,
de su construcción en medio de la relación antagónica entre las clases
populares, sobre todo organizadas en movimientos sociales, principalmente
obreros y campesinos/indígenas, y el aparato burocrático y las clases
dominantes.
Por un lado, se tendría que dar cuenta de los conflictos abiertos entre las
formas dominantes y las clases populares organizadas y movilizadas, y la
manera en que la resolución, parcial, de estos conflictos ha resultado en la
conformación, transformada, de sistemas de dominación que, si bien con
cambios en la manera en que ésta se ejerce, se mantienen dentro del
capitalismo. En este sentido, a pesar de que es complicado establecer cortes
certeros en la calificación entre un conflicto abierto y uno latente –pues, a lo
largo de la historia de nuestro país, siempre han existido movimientos sociales
que, con diferente grado de visibilidad y de impacto político nacional,
cuestionan las relaciones de dominación imperantes y, por tanto, al uso, por
parte del aparato burocrático, del discurso del derecho— lo cierto es que hay un
conflicto que, con mayor intensidad que cualquier otro, marca una
transformación en la utilización del discurso del derecho, y sobre todo de los
derechos sociales, en nuestro país: la revolución de 1910.
Analizar la construcción del discurso de los derechos sociales a partir de
una perspectiva clasista – y socio-histórica— de la revolución mexicana y, por
tanto, de la promulgación de la constitución resulta de importancia para la
crítica jurídica, y en general para las ciencias sociales y la teoría crítica, puesto
que implica la posibilidad de develar el papel reproductor y legitimador que
dichos derechos tienen en la construcción de la dominación y la hegemonía del
sistema capitalista. Lo anterior, sin perder de vista que dicho discurso también
fue utilizado para construir las reivindicaciones y demandas de las clases
subalternas.
En este sentido, reconocer los diferentes –y antagónicos— intereses que
dieron pie a la construcción de formas distintas de concebir y producir el
discurso del derecho durante la etapa revolucionaria, principalmente la
porfirista –hasta entonces dominante—, la carrancista, la obregonista y la
zapatista, nos permite la posibilidad de analizar la manera en que dicho
antagonismo tiene también su correlato en la construcción de diferentes

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discursos del derecho, al menos distintas maneras de construir los derechos
sociales.15
Por un lado, el discurso del derecho dominante hasta antes de la
revolución (el del régimen porfirista), basado en relaciones de dominación en
las cuales el plusvalor se obtenía no de un aumento en la productividad debido a
la tecnificación de los medios de producción, sino a un aumento constante de
los índices de explotación. 16 Se caracterizaba por la ausencia de un discurso de
derechos sociales y por medidas criminalizantes y represiva en contra de
cualquier intento de organización de las clases subalternas. 17 De lo cual la
represión de las huelgas de Cananea y Río Blanco son solamente una muestra,
pues dichas prácticas tienen sus antecedentes a lo largo de todo el periodo
liberal autoritario y son observables en la manera en que, desde el gobierno de
Juárez, se utilizó el discurso del derecho para desarticular/destruir cualquier
socialidad de carácter comunitario en el campo y en las fábricas. 18
15 Para una mejor perspectiva clasista de la conformación de éstas véase Gilly, Adolfo, La revolución
interrumpida, 2ª edición, tercera reimpresión, México, ediciones ERA, 2010; Katz, Friedrich, De Díaz a
Madero. Orígenes y estallido de la Revolución Mexicana, México, ediciones Era/LOM
ediciones/Ediciones Trilce/editorial Txalaparta, 2004 y Córdova, La ideología de la Revolución
Mexicana. La formación del nuevo régimen, 2ª reimpresión, México, ediciones ERA, 2003.
16 Sobre el carácter de la explotación y extracción de plusvalor en la época porfiriana, véase Díaz Soto y
Gama, Antonio, Historia del agrarismo en México, rescate, prólogo y estudio bibliográfico por Pedro
Castro, Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa/ERA/CONACULTA-FONCA, México, 2002,
pp. 306 y ss., Katz, Friedrich, La servidumbre agraria en México en la época porfiriana, ERA, México,
2010, pp. 13-55; Basurto, Jorge, El proletariado industrial en México. 1850-1930, Universidad Nacional
Autónoma de México/Instituto de Investigaciones Sociales, México, 1975, pp. 34, 37, 39-40, 95-96. En
consideración de este carácter, la pequeña burguesía ranchera del norte, con técnicas productivas más
modernas, antagonizaban no solamente en el aspecto jurídico-político, sino también en el aspecto de las
relaciones de producción, véase Katz, F., De Díaz a Madero. Orígenes y estallido de la revolución
Mexicana, op. cit., pp. 71-101; Gilly, A., La revolución interrumpida, op. cit., pp. 64-84; Córdova, A., La
ideología de la revolución mexicana, op. cit., pp. 96-111.
17 Basurto, Jorge, El proletariado industrial en México (1850-1930), op. cit., p. 77. Además de las
represión brutal de las huelgas en Cananea y Río Blanco hacia 1910, la represión y criminalización eran
un método común durante el porfiriato para “resolver” las huelgas: por ejemplo las de Puebla en 1884,
en Tlaxcala 1898 (en la cual los trabajadores fueron obligados a volver a trabajar por el ejército), en
Pinos Altos, Chihuahua en 1883 (que se resolvió mediante el decreto de estado de sitio, juicio militar y
fusilamiento de los líderes del movimiento), la huelga contra Compañía Metalúrgica Guggenheim en
1903 (la cual derivó en el control militar del lugar de trabajo hasta 1911), finalmente la huelga en contra
Centro Industrial de Puebla en factorías de Puebla y Tlaxcala en 1906 que se extendió y solicitó la
mediación del gobierno, mismo que respondió con la estigmatización mediática del movimiento y su
criminalización, véase Basurto, J. , op. cit.
18 Así, las leyes de desamortización tuvieron como uno de sus efectos principales la destrucción de la
posesión comunitaria de la tierra por parte de las comunidades indígenas, a pesar de que buena parte de
la teoría vea esto como un efecto secundario. Por otro lado, los reglamentos de fábrica, con carácter
abiertamente explotador, y la concepción del contrato de trabajo como una de carácter civil y, por tanto,

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 165
La intervención decisiva de los ejércitos populares de la División del
Norte y Libertador del Sur, hace que el conflicto armado, de entrada con un
carácter plenamente liberal-burgués promovido por la pequeña burguesía rural
emergente en el norte del país, adquiera un carácter clasista y que, todos los
bandos, tengan que adoptar, al menos en el discurso, en algún grado las
demandas campesinas e indígenas de reparto agrario. De esta manera es posible
explicar el viraje discursivo de Madero y después de Carranza (con la
promulgación de la ley agraria del 6 de enero de 1915 y las adiciones al Plan de
Guadalupe).19 En este mismo contexto, ya de lucha entre el ejército
constitucionalista y el Libertador del Sur, se entienden también los esfuerzos
por construir una legalidad en defensa de los trabajadores urbanos, en el
contexto de la creación de los batallones rojos, que fueron una pieza importante
para evitar que los ejércitos populares, de composición predominantemente
campesina-indígena, establecieran alguna alianza con los obreros. 20
En este sentido, los derechos sociales, desde su surgimiento, y no por
una especie de desvirtuación de su papel en la sociedad, surgen dentro de la
lucha de clases y como un instrumento para cada una de las clases en conflicto.
Ahora bien, su proceso de institucionalización inicial, para nuestro país la
uno en el que el estado no tenía ninguna posibilidad “legal” de intervención –a pesar de lo cual, en toda
oportunidad intervino de manera represiva en contra de las organizaciones de trabajadores— son
muestras que el uso del discurso del derecho por parte del liberalismo mexicano tenía un carácter casi
abiertamente autoritario, cuyo papel consistió en disruptir las relaciones sociales no capitalistas,
dominantes hasta ese momento, para comenzar la construcción de las relaciones sociales capitalistas,
véase Leal, Juan Felipe y Woldenberg, José, La clase obrera en la historia de México: del estado liberal a
los inicios de la dictadura porfirista, 5ª edición, México, Universidad Nacional Autónoma de México /
Instituto de Investigaciones Sociales / Siglo XXI, 1988, pp. 50-53; Basurto, J., El proletariado industrial
en México. 1850-1930, op. cit., pp. 96-98, Fujigaki Cruz, Esperanza, “Las rebeliones campesinas en el
porfiriato 1876-1910”, en Enrique Semo (coord.), Historia de la cuestión agraria mexicana 1. El siglo de
la hacienda 1800-1900, México, Centro de Estudios Históricos del Agrarismo en México/Siglo XXI,
1988, pp. 175-176 y 217-218; Caribó, Margarita, “La reforma y la intervención: el campo en llamas”, en
Semo, Enrique (coord.), Historia de la Cuestión Agraria Mexicana 1. El siglo de la hacienda 1800-1900,
Centro de Estudios Históricos del Agrarismo en México/Siglo XXI, México, 1988, pp. 89 y ss.
19 Esta ley agraria se promulgó en pleno conflicto entre el carrancismo y el zapatismo, recordando que,
también este último e incluso el villismo, produjeron leyes agrarias con contenidos, en algún grado,
antagónico con la anterior, para entender el contexto combativo en el cual se producen dichas
legislaciones, véase González Casanova, Pablo, La clase obrera en la historia de México. En el primer
gobierno constitucional (1917-1920), 4ª edición, México, Universidad Nacional Autónoma de
México/Instituto de Investigaciones Sociales/Siglo XXI, 1996, pp. 24-85; Basurto, J., El proletariado
industrial en México. 1850-1930, op. cit., pp. 174-183; Córdova, A., La ideología de la revolución
mexicana, op. cit., pp. 213-218; Gilly, A., La revolución interrumpida, op. cit., pp. 154-204.
20 Véase Basurto, J., El proletariado industrial en México. 1850-1930, op. cit.; Córdova, A., La ideología
de la revolución mexicana, op. cit., pp. 206-208, Hart, John M., El anarquismo y la clase obrera
mexicana. 1860-1931, trad. María Luisa Puga, México, Siglo XXI, 1980, pp. 168-184.

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promulgación de la constitución de 1917, marca también la derrota de las
concepciones subalternas de los derechos sociales, es decir, el triunfo de la
nueva facción burguesa dominante en la definición, sobre todo ideológica, de
dichos derechos. Aquí el papel político-jurídico del obregonismo y su triunfo
sobre el carrancismo, da pie para hablar de una transformación, dentro de un
proyecto capitalista que continúa su marcha, en la manera en que se utiliza el
discurso del derecho para reproducirlo y legitimarlo. En términos de la ciencia
política y la sociología, este cambio en el uso del discurso del derecho se ha
denominado como la construcción del sistema político corporativista y
autoritario.21
De esta manera, el discurso de los derechos sociales resultó de
importancia en la conformación del sistema corporativista, parte fundamental en
la adaptación y reproducción de la dominación capitalista en nuestro país. Al
contrario de lo que afirman los análisis, sobre todo jurídicos tradicionales, mi
hipótesis es que la formación del sistema de dominación política no se
construyó de manera contraria al sistema jurídico existente, siendo el uno y el
otro hasta cierto punto antagónicos, sino que el discurso del derecho y su uso
consistió una de las condiciones de posibilidad para la conformación de dicho
sistema de dominación.
En este punto, el sentido ideológico de las normas jurídicas, en este
caso de las normas que contienen derechos sociales, es esencial para entender
dicha relación, pues, por un lado, existía una constitución formal que
enumeraba los derechos existentes, por el otro, un conjunto de prácticas que los
negaban sin contradecirlos explícitamente. Uno de los objetivos del presente
escrito es encontrar un punto de partida por medio del cual se pueda
comprender esta relación de complementariedad entre un discurso de los
derechos sociales amplio y un conjunto de relaciones sociales de dominación.
En nuestro país esta relación compleja entre un discurso del derecho

21 Así la diferencia entre la estrategia política de Carranza y la de Obregón reside, para algunos autores, en
el hecho de que Obregón supo cómo generar algo así como una política bonapartista a la mexicana, parte
de dicha política fue la juridificación de las demandas de las clases subalternas en forma de derechos
sociales, por ejemplo, a través de la expedición de leyes que regularan los derechos de los trabajadores, a
través de la intensificación del reparto agrario y, a través de la organización en partidos oficialistas de las
movimientos sociales, véase Gilly, A., La revolución interrumpida, op. cit., pp. 195-204 y Córdova, A.,
La ideología de la revolución mexicana, op. cit., pp. 447-452; Tamayo, Jaime, La clase obrera en la
historia de México. En el interinato de Adolfo de la Huerta y en el gobierno de Álvaro Obregón (1920-
1924), México, Universidad Nacional Autónoma de México/Instituto de Investigaciones Sociales/Siglo
XXI, 1987, pp. 13 y ss.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 167
que incluía de manera amplia a los derechos sociales y un sistema político-
económico que se reproduce por medio de la imposición de relaciones de
dominación y exclusión es observable y comprensible si se parte de la relación
entre violencia física, dominación y discurso del derecho, con el fin de
encontrar al vinculación que mantiene el discurso del derechos sociales con la
violencia necesaria para imponer y reproducir la dominación capitalista. Sobre
todo en aquellos periodos históricos, posteriores al liberalismo y a los gobiernos
posrevolucionarias, durante los cuales se fue oscureciendo esta relación, sin
dejar de existir. 22
En este sentido, una pieza importante para la comprensión del sistema
económico y político de dominación consolidado en la etapa posterior a los
gobiernos posrevolucionarios (que terminan con el de Lázaro Cárdenas) es el
análisis del uso del discurso del derecho para la contención, e incluso la
represión, de los movimientos sociales. La hipótesis de partida es la siguiente:
el discurso del derecho, sobre todo el de los derechos sociales, se utiliza con
mayor fuerza por parte del gobierno cuando existen movimientos sociales que,
con mayor o menor grado de intensidad, cuestionan no solamente prácticas de
exclusión aisladas, sino la lógica del ejercicio del poder en un sistema de
dominación capitalista. Sin embargo, esta utilización y aplicación del discurso
de los derechos sociales no se concibe como una vía de establecimiento de
diálogo, menos como la construcción progresiva de una sociedad igualitaria,
sino como uno de los instrumentos de contención social, necesarios para el
aseguramiento de las condiciones de posibilidad de la reproducción del sistema
capitalista.23

22 Por un lado, recordando el papel fundamental que la violencia y su legalización tiene en la acumulación
originaria, importancia que, a la par que las relaciones sociales capitalistas se extienden, se naturaliza y
se presenta de formas distorsionas y eufemísticas, de manera que se deja de percibir a la dominación
capitalista en toda la amplitud de su violencia. Aquí el concepto de violencia simbólica puede ser un
concepto importante para el explicar la relación entre violencia, dominación y construcción de
hegemonía, Marx, K. y Engels, F., “Feuerbach. Contraposición entre la concepción materialista y la
idealista”, op.cit., pp. 33-37, 71-72; Bourdieu, Pierre, “4. Espíritus de estado. Génesis y estructura del
campo burocrático”, en Bourdieu, Pierre, Razones prácticas. Sobre la teoría de la acción, Trad. Thomas
Kauf, Barcelona, Anagrama, 2007, pp. 119-125.
23 Por un lado el cardenismo fue el periodo en que los movimientos obreros y campesinos tuvieron mayor
peso en la construcción del estado nacional, mientras que por el otro, marcó la consolidación de las
relaciones de subordinación entre éstos y el gobierno federal, la creación del partido oficial a finales del
gobierno de Cárdenas es muestra de ello. De manera que, de manera aparentemente paradójica, el
momento de mayor auge en la organización de las clases subalternas también es el inicio de su
subordinación a las políticas gubernamentales, véase. Esto mismo ha ocurrido en procesos históricos de
otros países de América Latina, por ejemplo Argentina, véase Baily, Samuel L., Movimiento obrero,

168 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Esta vinculación entre la correlación de fuerzas y la producción y el
sentido del discurso del derecho dominante se mantiene, si bien de manera
transformada, en las etapas históricas posteriores. Así, durante los gobiernos
posrevolucionarios, un discurso político y del derecho a favor de los
trabajadores y de los campesinos no fue desvirtuado, posteriormente, por un
conjunto de prácticas y de relaciones sociales de dominación en contra de los
intereses explicitados en el discurso del derecho, y en violación de algo que
hacen llamar el espíritu de las leyes, o, en nuestro caso, de la revolución. 24
Por el contrario, el discurso del derecho (y sus derechos sociales) fueron
una de las condiciones de aceptabilidad de dichas prácticas. Así, por ejemplo, la
construcción de la legalidad secundaria (de los mecanismos jurídicos de
resolución de conflictos en materia del trabajo), a la vez que permitió al
gobierno presentarse a sí mismo como un árbitro neutral, colocado por encima
de los intereses de clase en disputa, le permitió mantener una postura de
conciliación de clases, también fue una pieza clave para contener, invisibilizar y
reprimir a las movilizaciones obreras y campesinas, cuya combatividad
rebasaba al marco institucional vigente. 25
En este sentido, el conjunto de estas prácticas jurídico-políticas fue
parte esencial en la imposición y consolidación de organizaciones obreras y
campesinas que se caracterizaron, y se caracterizan, por mantener una postura
oficialista, aunque discursivamente favorable a los intereses de las clases
subalternas. La construcción de este sistema corporativo y autoritario fue,
entonces, una mezcla de represión, violencia física, cooptación política y uso
del discurso del derecho, en particular de los derechos sociales. Los cuales, ya

nacionalismo y política en Argentina, Buenos Aires, Hyspamerica, 1986; para el caso de Bolivia: Tapia
Mealla, Luis, La producción del conocimiento local. Historia y política en la obra de René Zavaleta,
CIDES/UMSA, La Paz, Bolivia, 2002, pp. 305; Rodríguez García, Huascar, La choledad antiestatal. El
anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano (1912-1965), Libros de Anarres, Buenos Aires,
2010, pp. 9 y ss., y Zavaleta Mercado, René, “Consideraciones generales sobre la historia de Bolivia
(1932-1971)”, en González Casanova, P. (coord.), América Latina: historia de medio siglo. 1. América
del Sur, México, UNAM-Instituto de Investigaciones Sociales/Siglo XXI, 2003, pp. 74-128.
24 A pesar de que, casi inmediatamente después del gobierno cardenista, se comenzó a cuestionar si la
revolución había sido traicionada. El punto es que la ideología de la revolución, al menos la de la
fracción triunfadora, fue siempre pequeño burguesa, en la cual los derechos sociales (de los trabajadores
y el reparto agrario) eran pensados en términos de su funcionalidad para el desarrollo de la
modernización capitalista, véase Torres, Blanca, Historia de la revolución mexicana, 1940-1952. Hacia la
utopía industrial, México, Colegio de México, 1984, pp. 20-24.
25 De nuevo, esta transformación, a pesar de consolidarse incluso después del gobierno cardenista, por
medio de la CTM y la CNC, se inició desde el gobierno obregonista, véase Córdova, A., La ideología de
la revolución mexicana, op. cit., 216 y ss., 307 y ss.

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sea en forma de derecho del trabajo o de reparto agrario, en su uso burocrático –
no así en su uso reivindicatorio de las demandas de las clases subalternas—, no
han sido contrarios o aparte del sistema autoritario, sino una de sus condiciones
de aceptabilidad.
En la etapa posterior a los gobiernos posrevolucionarios, que se
distingue por un giro político progresivamente conservador, se mantuvo tanto la
disputa clasista por la determinación del sentido de los derechos sociales como
el uso de éstos por parte de los gobiernos para legitimar y reproducir las
relaciones sociales que permiten la continuidad del sistema de dominación
capitalista.
En este análisis, la reconstrucción del sentido ideológico es importante
para comprender hasta qué punto el sentido deóntico de las normas jurídicas, en
su aplicabilidad superficial o en su inaplicabilidad, constituye no un espacio de
contra-poder frente a prácticas políticas autoritarias, como argumenta la teoría
jurídica dominante, sino una de sus condiciones de posibilidad, al ser una de las
premisas de su aceptabilidad y legitimación y, por tanto, de la naturalización e
interiorización de la dominación capitalista. Para comprender este sentido
ideológico es fundamental no desvincular la producción, interpretación y
aplicación de las normas jurídicas que estableces derechos sociales de sus
condiciones históricas de producción; mejor dicho, es importante reconstruir la
historicidad del derecho desde una crítica jurídica interdisciplinaria.
En este sentido, la lucha de clases y los momentos de mayor algidez de
la disputa por el sentido de los derechos sociales se han intercalado con
acciones de represión continuas (más visibles en las etapas de mayor conflicto)
y con un uso estatal del discurso de los derechos sociales que, a la vez que
contiene la movilización social, torna aceptable la represión de las clases
subalternas movilizadas. Los ejemplos de dicho uso son múltiples en la historia
de nuestro país: desde los aumentos salariales de emergencia en la década del
cuarenta,26 hasta los programas asistenciales creados durante la década de los

26 Superficiales y de carácter de contención, pues, si bien fueron decretados de manera general, finalmente
se le daba a las empresas la opción de argumentar que no estaban en condiciones económicas de
otorgarlos. De manera que fue una estrategia eficaz para fragmentar la lucha obrera y para permitir que,
principalmente las empresas mineras transnacionales, dilataran la implementación de los aumentos hasta
tornarlos ineficaces debido a la inflación, véase Basurto, Jorge, La clase obrera en la historia de México.
Del avilacamachismo al alemanismo (1940-1952), México, UNAM-IIS/Siglo XXI, 1996, pp. 47-48 y
Basurto, J., La clase obrera en la historia de México, en el régimen de Echeverría: rebelión e
independencia, 3ª ed., UNAM-IIS/Siglo XXI, México, 2005, pp. 80-90, 91-121.

170 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
años noventa,27 pasando por la estrategia represiva a la huelga de los
trabajadores ferrocarrileros a finales de la década del cincuenta 28 y la
promulgación de la Ley Federal del Trabajo en 1970, como premio al apoyo
activo al gobierno de Díaz Ordaz de la CTM y de Fidel Velázquez en contra del
movimiento estudiantil del 68 y como paliativo o mecanismo de
desmovilización –o de consolidación del corporativismo sindical— de la clase
obrera.29
Ahora bien, para mantener la capacidad explicativa de estos análisis
críticos del discurso del derecho es importante observar que frente a este uso
burocrático siempre existen, con mayor o menor intensidad, prácticas y
relaciones sociales que producen un discurso del derecho antagónico con el
capitalista, o bien utilizan de manera subversiva al que es dominante, sobre todo
el de los derechos sociales. Estos discursos y usos subversivos, debido a la
forma peculiar de legitimación de la dominación capitalista, llegan a tener
efectos distintos sobre el sistema jurídico-político dominante. De ahí el carácter
siempre dialéctico del derecho moderno.30
La contracara de esta historia del uso del discurso del derecho para la
dominación, sería una de los usos del discurso del derecho para la emancipación
o para la revolución. Estos usos, más que encontrarse en la historia de las ideas,
se encuentran en la historia de la formación, organización y movilización de las
clases subalternas y de su relación con el estado y con las clases dominantes. En
nuestro país, a grandes rasgos y con el riesgo de superficialidad, se pueden
27 Los cuales fueron pieza importante para la campaña presidencial de Salinas y para la política agraria
posterior, y que, a la vez que brindaban ayuda asistencial paliativa, sirvieron para cambiar el terreno de la
lucha agraria de la demanda y lucha por la tierra, a la lucha por la incorporación, subordinada y en
condiciones de desigualdad, en el ciclo productivo, véase Moguel, Julio y Bartra, Armando, “El sector
agropecuario mexicano. Un balance sobre el desastre (1988-1994)”, en Problemas del desarrollo.
Revista Latinoamericana de Economía, México, Vol. 26, Núm. 102, Julio-septiembre, 1995, pp. 188-
190, 193-197.
28 Véase Trejo Delarbre, Raúl, “Los trabajadores y el gobierno de Adolfo López Mateos (1958-1962)”, en
Reyna, José Luis y Trejo Delarbre, Raúl, La historia de la clase obrera en la Historia de México 12. De
Adolfo Ruiz Cortines a Adolfo López Mateos, 5ª. Ed., UNAM-Instituto de Investigaciones Sociales, Siglo
XXI, México, 1996, pp. 81-85, 106-125.
29 Véase Fernández Christlieb, Paulina y Rodríguez Araujo, Octavio, La clase obrera en la historia de
México. En el sexenio de Tlatelolco (1964-1970). Acumulación de capital, estado y clase obrera,
México, Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Sociales, Siglo XXI,
1985, pp. 336-353.
30 La legitimación de la dominación capitalista se distingue por su necesidad de presentar los intereses
particulares de la clase burguesa como universales, en lo cual la construcción del estado y el discurso del
derecho tienen un papel importante, véase Marx, Karl y Engels, Friederich, “Feuerbach. Contraposición
entre la concepción materialista y la idealista”, op. cit., pp. 71-72.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 171
agrupar estos en dos grandes grupos: los movimientos obreros y los
movimientos indígenas-campesinos. Si bien es cierto, los primeros tuvieron una
gran importancia en la emergencia de los derechos sociales, en las condiciones
históricas actuales, tanto nacionales como regionales, podría resultar más
importante analizar el papel de los segundos en la construcción de posibilidades
de un discurso del derecho emancipatorio y en el uso alternativo del discurso
del derecho capitalista. En este punto, el análisis del pluralismo jurídico es algo
difícilmente evitable.

3. América Latina, derecho moderno y pluralismo jurídico

Como había escrito en el apartado anterior, en la construcción del


discurso del derecho, de los derechos sociales, se realiza en medio de la lucha
de clases, y es posible que exista tanto un uso dominante del discurso del
derecho moderno-capitalista, como un uso subversivo de éste, como es el caso
del que realizan las organizaciones de trabajadores cuando exigen mejores
condiciones de trabajo y, sobre todo, una participación central en la toma de
decisiones de los procesos productivos.
Ahora bien, no solamente es posible un uso subversivo del discurso del
derecho, también puede ocurrir, y ocurre en la realidad concreta de nuestra
región, la construcción, producción y aplicación de discursos del derecho
distintos y, en gran medida, antagónicos frente al discurso capitalista dominante.
La crítica jurídica ha denominado a este fenómeno de coexistencia de discursos
del derecho distintos para una misma población y territorio con normas jurídicas
que se contradicen, al menos parcialmente, entre sí, como pluralismo jurídico.
En el caso de sistemas jurídicos irreductiblemente antagónicos, la crítica
jurídica habla de “pluralismo jurídico comunitario” o “pluralismo jurídico
alternativo” o “subversivo”.31

31 “En algunos casos, de manera diferente que en el caso de la simple alternatividad [en el cual hay al
menos una norma jurídica de uno de los dos sistemas que implica la comisión de un delito en el otro], los
órdenes o sistemas normativos le disputan la hegemonía al orden o sistema dominante. Es decir, en caso
de ampliarse su eficacia, disminuiría la del otrora absolutamente dominante, a veces hasta hacerlo
desaparecer”, p. 176, Correas, O., Teoría del Derecho, op. cit. Wolkmer lo denomina “pluralismo
jurídico comunitario” y tiene su característica definitoria en su autonomía con respecto del estado y la
construcción normativa a partir de una democracia formada desde una subjetividad colectiva, Wolkmer,
Antonio Carlos, Pluralismo jurídico. Fundamentos de una nueva cultura del derecho, trad., revisión y
estudio preliminar de David Sánchez Rubio, Editores David Sánchez Rubio y Juan Carlos Suárez
Villegas, Sevilla, MAD, 2007, p. 203.

172 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
El fenómeno del pluralismo jurídico constituye, quizá, el caso más claro
de posibilidad histórica real de un discurso del derecho contrario a aquél de la
dominación y la construcción de hegemonía capitalismo. Pero, para comprender
este posible carácter subversivo del pluralismo jurídico, no solamente hay que
conocer el contenido deóntico de los distintos discursos del derecho, sino que
también es necesario incluir en el análisis y la explicación la relación entre sus
sentidos deóntico e ideológico, y la forma en que éstos se producen a partir de
matrices y sistemas culturales que reproducen relaciones sociales y de
producción distintas y antagónicas a las capitalistas. 32
Puesto que el carácter anti-capitalista del pluralismo jurídico solamente
puede ser comprendido en conjunto con la explicación de las relaciones sociales
no capitalistas desde las cuales se produce el fenómeno en el plano normativo,
el análisis de éste, desde el punto de partida, es un esfuerzo interdisciplinario
que involucra, al menos, a la antropología, la sociología, la ciencia política, la
economía política y la crítica jurídica.
En cuanto a la antropología, el tema del pluralismo jurídico nos remite
al análisis de las sociedades no capitalistas (en las cuales el capitalismo no es el
modo de producción dominante). En todo caso, existen comunidades con
sistemas normativos alternativos (no capitalistas) que han subsistido desde
épocas anteriores a la conquista europea, o bien mantienen sistemas político-
normativos que recuperan su matriz cultural precolonial. 33 De esta manera la
antropología, específicamente la rama de esta disciplina cuyo tema central es la
antropología jurídica, permite una explicación más adecuada acerca del papel y
las características de los sistemas de resolución de conflictos en las sociedades
que no adoptan la forma judicial del derecho moderno-capitalista como método
principal. De manera que sus análisis pueden ser de importancia para entender
32 Matriz cultural distinta que se refleja en una concepción no-capitalista de la propiedad, de la identidad y
de las relaciones de producción, Correas, “Los sistemas normativos de las comunidades indígenas”, en
Correas, O. (coord.), Derecho Indígena Mexicano I, UNAM/CEIICH, México, 2009, pp. 67-109 y “La
propiedad. Reflexiones sobre la propiedad en el Mundo Indígena”, en Correas, O. (coord.), Pluralismo
jurídico. Otros horizontes, México, UNAM-CEIICH/Fontamara, 2007, pp. 167-176 y Zibechi, Raúl,
“Ecos del subsuelo: resistencia y política desde el sótano”, en Ceceña, Ana Esther (coord.), De los
saberes de la emancipación y de la dominación, Buenos Aires, CLACSO, 2008, pp. 80-82; Echeverría,
Bolívar, “La identidad, lo político y la cultura”, en Echeverría, Bolívar, Definición de la cultura, Fondo
de Cultura Económica/ITACA, México, 2010, pp. 149-172.
33 Véase Díaz-Polanco, Héctor, La rebelión zapatista y la autonomía, Siglo XXI, México, 2007, pp. 32-48;
Prada Alcoreza, Raúl, “Umbrales y horizontes de la descolonización”, pp. 41-94 y Tapia, Luis, “El
estado en condiciones de abigarramiento”, pp. 95-126, ambos en García Linera, Álvaro, Prada, Raúl,
Tapia, Luis y Vega Camacho, Oscar, El estado. Campo de lucha, La Paz, Bolivia, CLACSO/.Muela del
diablo/Comuna, 2010.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 173
la disputa por la definición de lo jurídico más allá de los límites impuestos por
la modernidad capitalista, entendiendo que las comunidades no-capitalistas, a
pesar de no adoptar un sistema jurídico con estas características, cuentan con
sistemas normativos que se adecuan a sus modos de producción de vida, que
incluso pueden ser más democráticos y más efectivos que los sistemas jurídicos
modernos-capitalistas.34
Por otro lado, esta perspectiva antropológica del pluralismo jurídico
también es adecuada para explicar dichos sistemas alternativos en el contexto de
un conjunto de relaciones sociales (y, por tanto, de producción material y
cultural) en los que no predomina el capitalismo. Es decir, permite tener en
cuenta que una de las características del pluralismo jurídico, al menos en
algunos de sus casos, es provenir de una matriz cultural distinta a la capitalista.
Por supuesto, explicitar estas diferencias no solamente en el plano cultural
(lengua, formas de atribución de la identidad individual y colectiva) y en el
plano normativo (el conjunto de normas jurídicas utilizadas por la comunidad),
sino en el plano político (formas de participación comunitaria en la resolución
de los conflictos y en la toma de decisiones, y el sistema de cargos) y en el
plano productivo (por ejemplo, la producción familiar con rotatividad en las
tareas productivas y con ausencia de una dirección especializada y centralizada)
constituye un aspecto esencial para comprender porque, en algunos casos, los
sistemas jurídicos alternativos y comunitarios constituyen auténticos ejemplos
de discurso del derecho anti-capitalistas y, por tanto, subversivos.
En este sentido, los fenómenos del pluralismo jurídico también nos
remiten a la composición actual de las sociedades de América Latina, pues, es
un fenómeno existente en la actualidad en nuestra región. Así, el análisis del
pluralismo jurídico denota y explica, desde un plano normativo, lo que en los
saberes de otras disciplinas del conocimiento (por ejemplo la sociología y la
ciencia política) se ha denominado como el carácter abigarrado de América
Latina.35 Por tanto, el estudio del pluralismo jurídico permite un acercamiento

34 Véase Krotz, Esteban, “Sociedades, conflictos, culturas y derecho desde una perspectiva antropológica”,
en Krotz, Esteban (ed.), Antropología jurídica: perspectivas socioculturales en el estudio del derecho,
Barcelona, Anthropos/UAM-Iztapalapa, 2002, pp. 13-50.
35 Véase Tapia, Luis, La producción del conocimiento local. Historia y política en la obra de René
Zavaleta, La Paz, Bolivia, CIDES-UMSA / Muela del Diablo editores, 2002: “Una formación social
abigarrada se caracteriza, primero, por la coexistencia de diversas temporalidades o tiempos históricos.
Esto es algo que se define básicamente al nivel del momento productivo […] En el capitalismo en rigor,
se inicia un nuevo tipo de tiempo histórico, o éste transforma el tiempo histórico de las sociedades sólo
en su fase de madurez, aquélla de la subsunción real.” (pp. 308-309); “Otra característica de una

174 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
interdisciplinario de las condiciones de dominación y las posibilidades de
construcción de horizontes emancipatorios en la América Latina
contemporánea. En estos casos, la politización de las diferencias en la matriz
cultural, en la forma de la producción y en las relaciones sociales también
refleja y es la condición de posibilidad de las diferencias y antagonismos entre
distintos discursos del derecho, uno de ellos el dominante-capitalista. 36
Por otro lado, el pluralismo jurídico es un tema relevante para la
explicación actual de las sociedades latinoamericanas, puesto que, quizá los
ejemplos más claros de resistencia a la hegemonía capitalista, y más
específicamente a la universalidad pretendida de su discurso del derecho, a
partir de la década de los años noventa, provienen de casos que bien pueden
analizarse desde el pluralismo jurídico. Ejemplo de ello lo podemos encontrar
en nuestro país con el levantamiento del EZLN 37 y la organización de sus
comunidades autónomas y también con la experiencia de la policía comunitaria
de la Costa Chica de Guerrero.38 Dos experiencias en las cuales, retomando sus
raíces de organización comunitaria (y, por tanto, política y también normativa),
las comunidades resistieron en contra de la imposición del sistema jurídico
capitalista, manteniendo uno propio.
Además existen casos de pluralismo contrario a la hegemonía del
derecho capitalista en casi todos los países de América Latina. Aquí los casos
más emblemáticos en la actualidad, por sus alcances y visibilidad a nivel
internacional, son los de Bolivia y Ecuador, países en los cuales la resistencia,
movilización y lucha de las comunidades indígenas fueron pieza clave para la
emergencia y consolidación de los procesos constituyentes y la promulgación de
las constitucionales que, junto con la de Venezuela de 1998, han sido agrupadas
en lo que se conoce como nuevo constitucionalismo latinoamericano.
El papel determinante de las comunidades indígenas dentro del
territorio boliviano y ecuatoriano, a la vez que nos permite analizar la relación
formación social abigarrada es la diversidad de formas políticas y de las matrices sociales de
generación”, p. 309.
36 Véase Zibechi, R., “Ecos del subsuelo: resistencia y política desde el sótano”, op. cit., p. 80.
37 Díaz-Polanco, H., La rebelión zapatista y la autonomía, op. cit., pp. 127 y ss.;
38 Torre, Jesús Antonio de la, “Capítulo XI. Justicia comunitaria: resistencia y contribución. Una visión
desde el sistema comunitario de la Montaña y Costa Chica de Guerrero”, en Torre Rangel, Jesús Antonio
de la, (coord.), Pluralismo Jurídico. Teoría y Experiencias, San Luis Potosí, Facultad de Derecho de la
Universidad Autónoma de San Luis Potosí, 2007, pp. 279-292; Melgarito, Alma, “Pluralismo jurídico: la
realidad oculta. Enfoque crítico semiológico a propósito de la policía comunitaria en la Sierra de
Guerrero, México”, en Salanueva, Olga Luisa (comp.) VI Conferencia Latinoamericana de Crítica
Jurídica, La Plata, Universidad Nacional de La Plata, 2011.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 175
de la subjetividad de las comunidades indígenas en la construcción de las
nuevas constituciones, también nos abre un camino para explicar la posibilidad
de construir un nuevo discurso de los derechos humanos, entre ellos los
sociales, pues, una de las novedades de estos nuevos marcos normativos es,
precisamente, la manera en que se integran las demandas de autonomía de
dichas comunidades y como se traducen o institucionalizan en los textos
constitucionales.39
Ahora bien, en los procesos de construcción y de promulgación de
dichos textos, así como también en estas primeras etapas de su aplicación y de
la consolidación de la normatividad jurídica no dejan de existir las tensiones y
las confrontaciones entre intereses de clase antagónicos, recordándonos el papel
que tiene la correlación de fuerzas existentes en la dación del sentido –de los
sentidos, dicho más propiamente—, del discurso del derecho: del ideológico y
del deóntico.40
Así, la intensidad de la organización y de la movilización de las clases
subalternas, sobre todo de las que provienen de una matriz cultural indígena, fue
la exigencia que logró no solamente la destitución y reversión de gobiernos y de
políticas neoliberales, y también la inclusión en las discusiones constituyentes y
en los textos constitucionales de derechos políticos y sociales que reflejaran,
aún parcialmente, las exigencias de las comunidades indígenas. De manera que,
este momento, bien puede explicarse como uno de apropiación y construcción
de un discurso del derecho por y desde las clases subalternas. 41
Sin embargo, en el momento mismo de institucionalización de estas
movilizaciones y de estas exigencias –en el proceso de asamblea constituyente

39 Véase Prada Alcoreza, Raúl, “Umbrales y horizontes de la descolonización”, op. cit.; Velasque Tigse,
Cecilia, “Estado nacional y plurinacional: un breve recorrido”, en Ágora política, no. 2, junio, 2010,
Quito, Ecuador, pp. 37-42.
40 Por ejemplo los peligros de la especialización electoral y la relegación de los movimientos sociales en
los partidos políticos mayoritarios en Bolivia (MAS) y Ecuador (Alianza PAÍS), véase Chávez León,
Patricia, Mokrani Chávez, Dunia y Uriona Crespo, Pilar, “Una década de movimientos sociales en
Bolivia”, OSAL, año XI, no. 28, noviembre, 2010, Buenos Aires, CLACSO; Sandoval Cervantes, Daniel
y Melgarito Rocha, Blanca, “Entrevista a Maristella Svampa”, Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana
de Política, Filosofía y Derecho, no. 36, Julio-diciembre, 2013 (en proceso de edición), México, Centro
de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades; Hernández E. Virigilio y Buendía G.,
Fernando, “Ecuador: avances y desafíos de Alianza PAÍS”, en Nueva Sociedad, no. 234, Julio-Agosto,
2011, Ecuador.
41 En otros países de América Latina, como Argentina y Brasil, los movimientos sociales también lograron
contener las políticas neoliberales, no logrando, sin embargo, consolidar procesos constituyentes, Borón,
Atilio A., “Crisis de las democracias y movimientos sociales en América Latina: notas para una
discusión”, OSAL, año VII, no. 20, Marzo-Agosto, 2006, CLACSO, Buenos Aires.

176 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
mismo— se observa el conflicto entre intereses de clase antagónicos e
irreductibles. A partir de lo cual el texto constitucional, tanto en su sentido
deóntico como en su sentido ideológico, no es una resolución final de dichos
intereses en conflicto, sino de su enfrentamiento y choque, es decir, de la
correlación de fuerzas existente.42
Este conflicto, en el cual la determinación del sentido deóntico y del
sentido ideológico del discurso del derecho (de la constitución y de las normas
jurídicas secundarias) es parte importante, es visible en los casos en los cuales
se presenta de manera explícita un choque de intereses de clase, sobre todo,
aquéllos casos en que el interés por mantener formas y procesos de producción
capitalista, principalmente en relación con procesos modernos de explotación de
la naturaleza (incluyendo a lo que se entiende como recursos naturales y al ser
humano), aún cuando tenga un carácter redistributivo superficial y progresista,
se enfrenta a los intereses de las comunidades por la preservación de sus
territorios y autonomía (lo cual incluye su organización productiva, política y
normativa sus formas de construcción de identidad y de subjetividad política y
la defensa de la Naturaleza).43
Así, la construcción interpretación y aplicación de los nuevos marcos
normativos de Bolivia y Ecuador, es parte de un proceso social altamente
complejo en el cual se enfrentan no solamente concepciones distintas de lo que
es el discurso del derecho y, en particular, los derechos humanos y sociales, sino
entre intereses de clase en conflicto y, por tanto, entre modos de producción y
sistemas culturales, sociales y políticos que se producen y reproducen a partir de
las relaciones sociales antagónicas e irreductibles. El enfrentamiento entre la
concepción de desarrollo y progreso moderno-capitalista y la concepción
comunitaria-indígena de lo político, lo cultural y lo normativo, es, quizá, el

42 En este sentido, las tensiones en el proceso de institucionalización de la participación de los movimientos


sociales en las asambleas constituyentes, marcada por la partidización de dicha participación, también la
tensión entre la normatividad liberal-burguesa y la comunitaria, ambas presentes en las nuevas
constituciones, aunque con predominio de la primera, véase Romero Bonifaz, Carlos, “Los ejes de la
Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia”, en Varios Autores, Miradas. Nuevo texto
constitucional, La Paz, Bolivia, Universidad Mayor de San Andrés/Vicepresidencia del Estado
Plurinacional de Bolivia/IDEA, 2010, pp. 19-36; así como las referencias bibliográficas señaladas en la
nota 42 arriba.
43 De manera que se visibiliza un conflicto entre la ideología desarrollista de la modernidad y el
capitalismo y las relaciones sociales comunitarias, véase Melgarito Rocha, Blanca Estela, “El laberinto
del desarrollo en América Latina”, en Correas, Oscar y Wolkmer, Antonio Carlos, Critica Jurídica na
América Latina (Actas de la VII Conferencia Latinoamericana de Crítica Jurídica, Octubre 2012,
Florianópolis, Brasil), (libro en proceso de edición).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 177
punto en que el conflicto social, y con ello la disputa por la determinación del
sentido deóntico y el sentido ideológico del discurso del derecho, se muestra de
forma más aguda y palpable.44

4. Conclusiones

Como hemos visto, un análisis crítico e interdisciplinario del discurso


del derecho, y en particular de los derechos sociales, es de importancia no
solamente para la teoría jurídica en sí o para la conformación del derecho como
un objeto de análisis, sino, en general, para una comprensión y una explicación
adecuadas de las relaciones sociales de dominación capitalista, en las cuales el
discurso del derecho tiene un papel importante. Más que un escrito con
conclusiones definitivas acerca de lo que un análisis crítico del derecho puede
aportar a la comprensión de lo social como una totalidad –necesariamente una
tarea interdisciplinaria— , representa un punto de partida para acercar a la
crítica jurídica con la teoría crítica construida desde otras disciplinas del
conocimiento de lo social, esperando que, reforzando sus acercamientos, sea
posible una explicación de lo social tal que acompañe los procesos sociales con
horizontes emancipadores que, en grados distintos, están presentes en la
realidad latinoamericana.
En este sentido, una crítica jurídica construida desde una comprensión
interdisciplinaria de lo social tiene un doble papel en su transformación, pues a
una explicación desmitificadora de las características del discurso del derecho y
de los derechos sociales, a través del análisis de su utilización en la
reproducción de la dominación capitalista; se agrega una comprensión de los
movimientos sociales que resisten y luchan en contra de la hegemonía
capitalista desde una perspectiva jurídica no alineada a los parámetros
capitalistas. Un caso particular de ello, de gran importancia para comprender las
condiciones actuales de nuestra región, y concretamente, los procesos
constituyentes de su historia reciente, lo encontramos en el pluralismo jurídico.
De manera que los análisis de la crítica jurídica, desde la perspectiva presentada
en este trabajo, no solamente no se contraponen a los esfuerzos críticos de otras
disciplinas, sino que presuponen, como una de sus condiciones de existencia, su
acercamiento y su mutua complementariedad.

44 Ibídem.

178 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
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186 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Sufocado pelo vazio: o Direito e o Estado de Exceção em
Schmitt e Benjamin

Melissa Mendes de Novais*


Danilo Christiano Antunes Meira**

RESUMO: Este trabalho se ocupa do vazio instaurado pelo Estado de Exceção,


enquanto matriz jurídico-política do ocidente. O Estado de Direito resta
sufocado pelo desaguar da anomia para além das situações excepcionais,
suspendendo direitos e garantias fundamentais. O paradigma do Estado
(Democrático) de Direito deve ser questionado a partir do desenvolvimento de
uma teoria que evidencie a existência de um Estado de Exceção que tem
invadido os espaços proclamados como de domínio do Direito. Nesse vértice,
impõe-se resgatar o debate travado entre Walter Benjamin e Carl Schmitt, uma
vez que, a partir dele, as principais aporias do estado exceção são evidenciadas,
fornecendo importantes elementos para a construção de uma teoria que se faz
cada vez mais imperativa.

PALAVRAS-CHAVE: Estado de Exceção, Carl Schmitt, Walter Benjamin.

ABSTRACT: This study focuses on the emptiness brought by the state of


exception, while legal-political matrix of the West. The rule of law remains
stifled by emptying anomie beyond exceptional situations, suspending
fundamental rights and guarantees. The paradigm of State (Democratic) Law
should be questioned from the development of a theory which evidences the
existence of a state of exception that has invaded spaces proclaimed as the
domain of law. In this corner, it is imperative to rescue the debate between
Walter Benjamin and Carl Schmitt, since, from it, the main exception aporias
state are highlighted, providing important elements for the construction of a
theory that is increasingly imperative.

KEYWORDS: State of Exception, Carl Schmitt, Walter Benjamin.

* Pós-graduada em Direito Público pela FIP-MOC.


** Mestrando em Direito pela UFSC. Bolsista CAPES.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 187
A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de
Exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.
Precisamos construir um conceito de história que
corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é originar um
verdadeiro Estado de Exceção.
WALTER BENJAMIN

INTRODUÇÃO

A teoria do Estado de Exceção reclama um lugar no centro dos debates


sobre o Direito Público na medida em que expõe uma reconfiguração sobre as
manifestações do poder no ocidente, bem como uma redefinição sobre o que
seja o político. O paradigma do Estado de Direito pode ser questionado a partir
do desenvolvimento de uma teoria que evidencie a existência de um Estado de
Exceção, o qual tem invadido os espaços proclamados como de domínio do
Direito. Ademais, inegável é que suspender e problematizar as regiões
inquestionáveis sobre as quais se estrutura toda a teoria do Direito Público pode
expor a sua fragilidade e torná-la precária a sua validade. Eis o papel da
Filosofia do Direito: pôr em questão os elementos capazes de comprometer a
formação da dogmática jurídica.
Nesse vértice, impõe-se resgatar o debate travado entre Walter
Benjamin e Carl Schmitt no intervalo entre as duas grandes guerras, uma vez
que, a partir dele, as principais aporias do estado exceção são evidenciadas,
fornecendo importantes elementos para a construção de uma teoria que se faz
cada vez mais imperativa.

1 O PONTO DE PARTIDA: A CRÍTICA DA GEWALT

Em 1921, Walter Benjamin publica “Zur Kritik der Gewalt”1 (Crítica da


violência – crítica do poder) na revista Archiv für Sozialwissenschaft und
Sozialpolitik, proponto uma reflexão sobre a violência – ou, mais

1 Para dar conta da dúplice referência contida no termo “Gewalt”, uma tradução
brasileira do ensaio de Walter Benjamin optou por expor as duas faces da palavra
alemã pelo uso deste título: “crítica da violência – crítica do poder”.

188 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
especificamente, de sua relação com o direito e a justiça. Essa discussão
também desencadeia outra que a ela é conexa: a problematização do poder. A
primeira e mais evidente relação entre a violência pode ser vislumbrada no
próprio termo que se designa o objeto do ensaio de Benjamin, Gewalt. A
ambivalência desse termo alemão, que comporta a referência ao poder legítimo
e à violência (PONS, 2012), já aponta o cerne da crítica benjaminiana sobre as
crises políticas e questões que permeavam sensivelmente as instituições
europeias no intervalo entre as duas grandes guerras.
Essa “crítica da violência – crítica do poder” desenvolvida por Walter
Benjamin pretende, no fundo, desconstruir o fundamento tradicional que
posiciona o Direito como um edifício humano construído para a instituição da
justiça. O Direito para Benjamin, ao contrário, a fim de garantir sua
autopreservação, estaria constituído por uma necessária relação com a violência,
ou melhor, com duas violências: a violência instituidora e a violência
mantenedora do Direito. Tanto o poder constituinte e o poder constituído, ou
seja, tanto o poder instituinte do Direito quanto o poder mantenedor
(administrado) do Direito fundam-se em violências ilegítimas, que devem ser
regeitadas. Por essa razão é que o ensaio se encaminha para a defesa de uma
“violência pura”, divina, insurgente, oprimida, exterior ao Direito, que venha a
aniquilá-lo. Nesse sentido, inquietado pelo questionamento sobre a
(im)possibilidade de uma Gewalt para além do Direito é que Walter Benjamin
chega à conclusão da “indecidibilidade” que envolve o Direito, desnudando a
aporia jurídica que consiste em conciliar fins universais com situações
singulares. Essa questão, que será contestada em seguida por Carl Schmitt em
resposta ao ensaio2, aponta que, “em última instância, é impossível ‘decidir’
qualquer problema jurídico - aporia que talvez só possa ser comparada com a
impossibilidade de uma decisão taxativa sobre o que é ‘certo’ ou ‘errado’ em
linguagens que têm uma evolução histórica” (BENJAMIN, 1986, p. 171).

2 O PROBLEMA DA LÓGICA DA SOBERANIA

Pouco depois da publicação de Benjamin, Carl Schmitt lança a sua


“Politsche Teologiae” (Teologia política). Nela, Schmitt expõe as duas
principais teses de seu pensamento político e a partir das quais será

2 Aqui se abre o campo sobre o qual Carl Schmitt desenvolverá a sua teoria sobre a
soberania enquanto poder de decisão sobre a suspensão do ordenamento jurídico.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 189
desenvolvida a sua teoria sobre o Estado de Exceção. Há uma inescondível
proximidade entre o tema privilegiado por Schmitt e o objeto de reflexão do
ensaio de Benjamin. Embora não tenha Schmitt declarado abertamente, não há
muita dúvida sobre o fato do seu trabalho (em especial a própria proposta de
teologia política) ser apresentado como uma resposta ao ensaio benjaminiano. A
revista que publicou Benjamin, a propósito, era de leitura comum de Carl
Schmitt.
Nas frases inaugurais dos respectivos primeiro e terceiro capítulos de
seu livro, Carl Schmitt expõe os dois problemas em torno dos quais estrutura
seu conceito de teologia política: 1) “soberano é aquele que decide sobre o
Estado de Exceção” (SCHMITT, 1996, p. 87); e 2) “todos os conceitos
expressivos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos
secularizados” (SCHMITT, 1996, p. 109). A primeira tese insurgente
diretamente contra a crítica da violência de Walter Benjamin, desenvolvida no
primeiro e segundo capítulos, aponta para a figura de uma violência soberana
“que não funda nem conserva o Direito, mas o suspende” (AGAMBEN, 2011a,
p. 86). Pela decisão é que subsiste a relação entre a violência e o Direito porque
aquela fixa os limites do próprio Direito e de sua suspensão. A possibilidade da
violência divina não encontra espaço na tese schmittiana em função da
existência de uma força que opera dentro do próprio Direito: a exceção. Assim,
“não seria possível existir uma violência pura, isto é, absolutamente fora do
Direito, porque no Estado de Exceção ela está incluída no Direito por sua
própria exclusão” (AGAMBEN, 2011a, p. 86). Os conceitos de decisão, Estado
de Exceção e soberania são elementares nessa primeira parte. A soberania seria
um conceito limite, o que significa que só pode ser compreendido quando
levado ao seu extremo (SCHMITT, 1996). Seu conteúdo faz-se desnudar em
momentos de anormalidade. O soberano situa-se no limiar do Direito vigente.
Ele está dentro e, ao mesmo tempo, fora do ordenamento jurídico. É ele quem
decide sobre a suspensão deste. O conceito de soberania schmittiano lança num
amálgama duas instâncias que se pressupunham autônomas: o fato político e o
fato jurídico.
A importância do Estado de Exceção para a definição da soberania
constitui-se pela possibilidade do soberano de decidir sobre essa situação que
não pode ser assimilada nem mesmo justificada pela norma jurídica geral
(SCHMITT, 1996). A exceção está inscrita no ordenamento jurídico nos termos
gerais do que se configuraria a extrema necessidade ou urgência, mas é

190 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
essencialmente alheia à descrição normativa (SCHMITT, 2006), pois não se
pode determinar com clareza quando o Estado de emergência estaria
configurado, mas apenas pode-se determinar quem poderá pronunciá-lo ou a
quem é incumbida a função de determinar o conteúdo semântico de “interesse
público”, “segurança”, “ordem pública”, etc. (SCHMITT, 1996).
Schmitt observa que já em Bodin e em “autores do Direito Natural do
século XVII a questão da soberania foi entendida como a questão da decisão
sobre o Estado de Exceção” (SCHMITT, 2006, p.10). Eles compreendiam que o
conceito de ordem jurídica carrega uma contradição. “A ordem jurídica, como
toda ordem, repousa em uma decisão e não em uma norma” (SCHMITT, 2006,
p. 11). A limitação do soberano a seu dever e vinculação à norma desaparecem,
portanto, em face da necessidade, já que os princípios gerais do Direito natural
não podem ser concebidos fora da normalidade. No entanto, um direito
utilitarista não vislumbra qualquer interesse prático no problema da exceção. Só
a normalidade é subsumível, o resto é um incômodo. Assim, “diante do caso
extremo ela fica perplexa, pois nem toda competência extraordinária, nem toda
medida de polícia no caso de necessidade considera-se exceção” (SCHMITT,
2006, p. 12).
A norma não pode ser aplicada ao caos, por isso a ordem deve ser
reestabelecida para que a incidência da lei adquira sentido. A decisão soberana,
portanto, remete a esse caráter “situacional” do Direito. O soberano detém o
monopólio da decisão sobre a situação que justifica a suspensão do Direito.

Toda norma geral exige uma configuração normal das


condições de vida nas quais ela deve encontrar
aplicação segundo os pressupostos legais, e os quais
ela submete à sua aplicação normativa [...]. A norma
necessita de um meio homogêneo. Essa normalidade
fática não é somente um “mero pressuposto” que o
jurista pode ignorar. Ao contrário, pertence à sua
validade imanente (SCHMITT, 2006, p. 13).

O Estado de Exceção era incomensurável para o racionalismo do século


XVIII diante da pretensão de completude e coerência própria do sistema
jurídico. Sua consequência seria o desinteresse pelo caso excepcional, pois é a
generalidade produzida pela ciência que deve ser explicada, porque passível de

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 191
repetição. A esse respeito, o racionalismo considera que o que não está previsto
pelo ordenamento jurídico não pode ser explicado em termos jurídicos, não
seria uma questão jurídica.
Nesse cenário é que serão encontrados normativistas como Kelsen, para
o qual o direito de necessidade já não é direito e, portanto, não interessa à
ciência jurídica. Schmitt provoca-o: “Fica claro que um neokantiano como
Kelsen3 não sabe, sistematicamente, o que fazer com o Estado de Exceção. No
entanto, também aos racionalistas deveria interessar que a própria ordem
jurídica preveja o caso excepcional e possa ‘suspender a si mesma’”
(SCHMITT, 2006, p. 14). A tentativa das constituições modernas descrever ao
máximo possível a situação excepcional é somente uma forma de traçar com
maior clareza as hipóteses em que o Direito será suspenso.
Entretanto, a exceção carrega em seu interior a explicação de si e da
própria regra. “Na exceção, a força da vida real transpõe a crosta mecânica
fixada na repetição” (SCHMITT, 2006, p.15). Se a exceção não pode ser
explicada também o geral não poderá sê-lo, posto que o caso extremo seja o
limite de alcance da regra geral.
As várias teorias que se desenvolvem em torno do conceito de soberania
guardam similaridades essenciais: a ideia de poder supremo, originário e
juridicamente independente. Tais definições, sem significado mensurável,
poderiam conduzir os mais distintos interesses políticos. Não existe na realidade
estatal qualquer “poder supremo”, na medida em que o poder não prova nada ao
Direito. Aqui se estabelece o dilema entre o poder político e o poder jurídico:
“A relação entre o poder máximo factual e jurídico é o problema básico do
conceito de soberania” (SCHMITT, 1996, p. 96).
Para atender a essa questão, alguns autores como Kelsen, acabaram por
dissociar essas dimensões – fática e jurídica, separando a sociologia da
jurisprudência por uma simplista contraposição em instâncias puras distintas
(KELSEN, 2000b).
Kelsen defende a autossuficiência da ordem jurídica para a reflexão
sobre os problemas jurídicos, posto que se trata de uma ciência jurídica (e não
política), invocando a unidade (de vocação monística) do sistema jurídico, cujo

3 Cumpre apontar que a tensão entre Carl Schmitt e o normativismo alemão


tradicional já se fazia presente em outras obras. Suas divergências com Kelsen estão
emblematicamente representadas no debate sobre quem seria o guardião da
constituição.

192 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
fundamento está na Constituição (KELSEN, 2000b). Para Kelsen, o jurista não
poderia amparar-se em valores (correspondência a um fim) próprios, senão em
valores positivados (dever ser) (KELSEN, 2000b). Poderia reunir os princípios
que lhes interessassem, desde que permanecessem “puros”.
Segundo Kelsen, o Estado “é tomado em consideração apenas como um
fenômeno jurídico, como uma pessoa jurídica” (KELSEN, 2000a, p. 261). O
Estado correspondente a uma ordem jurídica soberana formado pela unidade
normativa. Para Kelsen, como

“não temos motivo para supor que existam duas


ordens normativas diferentes, a ordem do estado e a
sua ordem jurídica, devemos admitir que a
comunidade a que chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’
ordem jurídica” (KELSEN, 2000a, p. 263). Para
resolver o problema da soberania, Kelsen o nega: por
ser o Direito e o Estado ordens coincidentes, “o
conceito de soberania deve ser radicalmente
reprimido” (KELSEN apud SCHMITT, 1996, p. 99).

Essa concepção teria sido, ao menos aparentemente, também ratificada


por Krabbe4. Ele concebia a soberania como pertencente ao Direito e não ao
Estado ou, mais especificamente, que a soberania deveria encontrar validade
somente nas normas (SCHMITT, 1996). Para Krabbe, a modernidade conferiu
ao Estado um caráter objetivo (KRABBE apud SCHMITT, 1996). Se a
soberania residia outrora em um poder pessoal (do rei ou da autoridade civil), a
modernidade deslocou-a para as normas e forças intelectuais produzidas pelo
hipotético consenso social. Krabbe defendia que a função estatal estaria restrita
à formação do Direito mediante a identificação dos valores jurídicos dos
interesses. Isso implica em duas limitações: a primeira é a circunscrição da
produção do Direito ao interesse e bem comum; a segunda, à função
declaratória de identificação dos valores, nunca constitutiva dos tais (KRABBE
apud SCHMITT, 1996). Dessa forma, afirma Schmitt, o Estado seria um

4 Hugo Krabbe foi um jurista e filósofo holandês que desenvolveu um conceito de


soberania voltado ao caráter impessoal da lei, isto é, o direito e não o Estado seria o
detentor da soberania, seu livro A ideia moderna do Estado publicado em 1906,
apresenta uma relevante contribuição, nesse sentido (SCHMITT, 2009)

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 193
simples “arauto declaratório” e não mais um ente soberano (SCHMITT, 1996, p.
100).
Essas teorias sobre o conceito de soberania invocam o valor impessoal
da norma. Já que o personalismo seria reminiscência da monarquia absoluta,
deveria toda pessoalidade sucumbir ao conceito de Estado. No entanto, observa
Schmitt,

“essas objeções não levaram em conta que a


ideia da personalidade e sua conexão com a
autoridade formal evadiram-se de um interesse
jurídico específico, de uma consciência
especialmente clara daquilo que se constitui no
espírito da decisão jurídica” (SCHMITT, 1996,
p. 105).

Carl Schmitt mostra que as concepções normativistas do Direito,


representadas por Kelsen e Krabbe, detêm-se no plano teórico e ignoram os
momentos de necessidade que exigem a decisão. O pensamento jurídico não
seria capaz de exaurir os elementos necessários a todas as circunstâncias que
eventualmente se apresentem no momento de efetivação do Direito. Para Carl
Schmitt, em contraposição à ideia de indecidibilidade das questões jurídicas
proposta por Walter Benjamin, a decisão é integrante do Direito na medida em
que a adequação do Direito à realidade, em sua pureza, nunca é possível,
exigindo a avaliação concreta de suas possibilidades. Em outros termos, o
Direito deve ser concebido não só em sua abstração, mas do ponto de vista de
sua efetivação.
O Direito deve residir no limiar entre a norma e sua aplicação. Deste
modo, não é do anseio por segurança jurídica que nasce o interesse pela decisão,
mas da necessidade de conferir concretude ao Direito em uma dada situação,
tendo apenas uma norma geral como parâmetro (SCHMITT, 1996, p. 105).
Contudo, a decisão proferida por uma autoridade competente não possui
necessária vinculação com o conteúdo dessa mesma decisão que é autônoma à
sua fundamentação argumentativa. Isso pode ser atestado pela natureza
constitutiva dos efeitos jurídicos produzidos por uma decisão, porque “é
inerente à ideia de decisão o fato de não poderem existir decisões absolutamente
declaratórias” (SCHMITT, 1996, p. 106).

194 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
A tradição do Estado de Direito pressupõe a autossuficiência da norma
jurídica. Ocorre que, admitir a figura da decisão implica no resgate da
pessoalidade da qual fugiam os normativistas. Antes deles, Locke afirmava que
a lei, e não o comando pessoal do monarca, é que confere a autoridade, mas a
lei não determina qual é o sujeito da autoridade ou quem deve decidir, somente
determina como será a decisão (SCHMITT, 1996). Deste modo, o problema que
se coloca é: de quem é a competência quando a ordem jurídica não impõe
normas de competência? É dizer, a quem é dado tomar a decisão, cuja
substância não pode ser deduzida do conteúdo material de uma norma?
O art. 48 da Constituição Alemã de 1919 conferia ao presidente o poder
de decretar o Estado de Exceção sob o controle do Parlamento, que poderia
revogá-lo. Isso representa a característica do Estado de Direito que pretende
aplacar a soberania mediante o controle recíproco entre as Funções Estatais
(SCHMITT, 1996). Porém, ao conteúdo do artigo 48 da Constituição alemã de
1919, o soberano poderia exercer um poder decisório ilimitado.
Carl Schmitt destaca que é exigível que a possibilidade de suspensão da
ordem vigente seja ilimitada, aliás, a decisão requer a suspensão de todo o
Direito. O Estado estaria acima do direto, o qual deve suspender-se para a
preservação do Estado. Trata-se do exercício do Direito à própria conservação.
Mas o Estado de Exceção não é a anarquia ou o caos. Ele detém um
sentido jurídico de ordem, ainda que não seja uma ordem jurídica. A decisão
soberana não está circunscrita na norma. A decisão aniquila a norma, por isso
ela é absoluta (SCHMITT, 1996). Daí o interesse sobre o problema da forma
jurídica que emerge da circunstância de um caso concreto, no qual se instaura a
contraposição entre quem decide e substância da decisão. A decisão para
Schmitt funda e conserva o Direito.

3 A TEOLOGIA POLÍTICA DE CARL SCHMITT

Como alternativas a esse impasse, Carl Schmitt apresenta duas


possibilidades, ou melhor, afirma que “existem talvez dois tipos de
cientificidade jurídica que podem ser determinados quando se consegue
identificar até onde se forma ou não uma consciência científica da peculiaridade
normativa da decisão jurídica” (SCHMITT, 1996, p. 107): o decisionismo e a
teologia política.
O primeiro tipo é o decisionismo. Carl Schmitt aponta Hobbes como

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 195
um dos seus representantes. Nessa corrente será encontrada uma das
justificações racionais do poder ilimitado do soberano (SÁ, 2004). O filósofo
inglês estabelece a antítese entre autoritas e veritas em sua clássica formulação:
“a autoridade, e não a verdade, que faz as leis” (HOBBES apud SCHMITT,
1996, p. 107). Hobbes aproxima esse decisionismo do personalismo e
contrapõe-se à ideia de uma ordem abstrata superior. Essa vertente decisionista
hobbesiana, entretanto, é rejeitada por Carl Schmitt.
O segundo tipo de cientificidade jurídica, a teologia política, é
apresentado por Schmitt como aquele segundo o qual todos “os conceitos
expressivos da moderna doutrina do Estado são [concebidos como] conceitos
teológicos secularizados” (SCHMITT, 1996, p. 109). Não só pelo
desenvolvimento histórico de seus conceitos exemplificados pela transformação
do “Deus todo-poderoso” em “legislador onipotente”, mas em sua estrutura é
que a tese pode ser constatada (SCHMITT, 1996, p. 109). Nesses termos, a
filosofia do Estado deve ser compreendida partindo do pressuposto de que o
Estado de Exceção estaria para a jurisprudência tal como o milagre para a
teologia. Assim, do mesmo modo que o teísmo rejeitou o milagre, o Estado de
Direito aniquilou a exceção, já que

la idea del moderno Estado de derecho se afirmó a la


par que el deísmo, con una teología y una metafísica
que destierran del mundo el milagro y no admiten la
violación con carácter excepcional de las leyes
naturales implícita en el concepto del milagro y
producido por intervención directa, com o tampoco
admiten la intervención directa del soberano en el
orden jurídico vigente (SCHMITT, 2009, p. 37)

Os românticos alemães (conservadores ou reacionários que idealizavam


a Idade Média) convergem em respaldar seu discurso contrarrevolucionário na
consciência da necessidade de uma revolução. Defendem a inexistência de uma
mediação. O Estado e a igreja são postos em um mesmo patamar, já que a
soberania política é sinônima da infalibilidade espiritual, pois ambas implicam
em uma decisão inapelável (SCHMITT, 2009). Seja em função da soberania,
seja em função da infalibilidade.
Tendo como pano de fundo a discussão sobre a natureza humana é que

196 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
as teorias sobre a função do Estado irão se dividir. As vertentes anarquistas
ancoram-se no pressuposto de que o povo é bom e o governo, ao contrário,
corruptível. De outro lado, estão os que defendem que, quando instituída, a
autoridade civil é boa. Isso porque a autoridade implica em uma decisão e não
importa o modo pelo qual as coisas devam ser decididas, mas que elas o sejam
sem protelações. De qualquer maneira, a infalibilidade está presente. As teses
políticas passam, portanto, a carregar como tema de fundo a questão se o
homem é bom ou mau. A questão será desvirtuada, só aparentemente, mediante
o recurso a explicações pedagógicas ou econômicas.
Os filósofos contra-revolucionários centram-se tanto na ideia de decisão
que a questão da legitimidade é posta de lado. Deste modo, a partir da
afirmação de que todo Estado compreende uma decisão absoluta, conclusões
distintas podem ser formadas a partir da concepção da natureza má ou boa do
homem e, portanto, da função do governo. Schmitt observa que “para o
racionalismo do iluminismo, o homem era grosseiro e tolo por natureza, mas
passível de instrução. Assim justificava-se o seu ideal de um ‘despotismo legal’
com propósitos pedagógicos” (SCHMITT, 1996, p. 123). O socialismo
marxista, por sua vez, não atribui tanta relevância à natureza do homem por
compreender que ela pode ser modificada pelas condições econômicas e sociais.
O anarquismo, reconhecidamente ateísta, concebe o homem como bom
e todo mal provêm “do pensamento teológico e de duas derivações, que incluem
as ideias de autoridade, Estado e autoridade civil” (SCHMITT, 1996, p. 124).
Por conseguinte, o anarquismo concebe todo governo como uma ditadura. O
“certo” se produziria naturalmente na sociedade, sem a necessidade de uma
decisão que seria, tão somente, arbitrária. “Naturalmente”, explica Schmitt,
“essa antítese radical força-o a decidir-se contra a decisão; e no maior
anarquista do século XIX, Bakunin, ocorre o raro paradoxo de ter-se tornado,
teoricamente, o teólogo do antiteológico e na prática o ditador de uma
antiditadura” (SCHMITT, 1996, p. 130).
Em síntese, Carl Schmitt desenvolve a tese da decisão soberana e em
seguida expõe sua inarredável presença na realidade do Direito político. Os dois
primeiros capítulos destinam-se a desconstruir o normativismo que ampara a
ideia de Estado de Direito para inserir a figura do Estado de Exceção como
constituinte do Direito. Dito de outro modo: o Direito não está só. Na verdade,
ele subsiste numa necessária vinculação ao político que o institui. O terceiro e
quarto capítulos cumprem a função de integração da tese da teologia política. O

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 197
trabalho centra-se na relação, inicialmente obscura, entre o decisionismo
schmittiano, no qual abre-se a possibilidade de um Estado de Exceção e a
concepção geral do político como a secularização 5 de uma teologia. A partir de
um confronto com o decisionismo hobbesiano, Schmitt desenvolve a sua
teologia política a fim de justificar racionalmente a origem do poder soberano
ilimitado (SÁ, 2004).
Tendo em vista a constatação de que a realidade jurídica implicará
sempre uma submissão à decisão política, Carl Schmitt demonstrará que
também a política encontrará na teologia a origem de seus conceitos. A vertente
normativista, na tentativa de conferir autonomia ao jurídico, procura
compreendê-lo a despeito do fato político. Mas mesmo o político não poderia
ser por si só compreendido em função de sua alusão ao teológico.
Tal como a política representaria uma mediação do jurídico, a política
representaria a mediação da teologia, de sorte que a tentativa de conferir
autonomia ao político corresponderia à sua aniquilação (SÁ, 2004, p. 32). As
similaridades entre essas duas formas de mediação já foram, a propósito,
vislumbradas por Engels: “A essência do Estado, assim como da religião, é o
medo da humanidade diante de si mesma” (ENGELS apud SCHMITT, 1996, p.
119).
Para Carl Schmitt, a teologia enquanto imagem metafísica do mundo
importaria em uma visão de mundo que interfere no desenvolvimento político
(SCHMITT, 1996). Em sua teologia política, Carl Schmitt se põe na defesa da
mediação. Sua pretensão é sufocar o fanatismo, que por sua possibilidade de
acesso direto à verdade é intransigente, não aceita o diferente nem a
divergência, é intolerante (SÁ, 2004).
Carl Schmitt manifestará a sua defesa da mediação sob três formas: 1)
defesa da Igreja como mediadora institucional do acesso ao teológico – a
decisão inapelável do papa estaria em condição semelhante à da figura do
soberano; 2) também, Carl Schmitt rechaça a possibilidade da autonomização
do jurídico na medida em que deve este ser mediado pelo político – contudo, a
dimensão política também não seria autônoma, já que não pode ser
compreendida por si só, senão em sua remissão ao teológico, onde residem os

5 A secularização schmittiana é distinta daquela diagnosticada por Weber. Se para


Weber a secularização implicava no desencantamento do mundo e, portanto, na
desteologização, Schmitt mostra a presença eminente da teologia no mundo
moderno (AGAMBEN, 2011b).

198 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
seus conceitos fundantes; 3) por fim, a total negação ao anarquismo, que em sua
tentativa de findar como toda autoridade e mediação é combatida por Carl
Schmitt. Por essa razão é que Carl Schmitt refuta o posicionamento político de
cunho anárquico ao qual se filia Walter Benjamin em sua referência à greve
geral e à possibilidade de uma violência pura. O Estado de Exceção, explica
Agamben, é “o dispositivo por meio do qual Schmitt responde à afirmação
benjaminiana de uma ação humana inteiramente anômica” (AGAMBEN, 2011a,
p 86).

4 A RESPOSTA DE WALTER BENJAMIN

No “Ursprung des deutschen Trauerspiels”6 (Origem do drama Barroco


alemão), Walter Benjamin formula sua resposta ao conceito de soberania
apresentado por Carl Schmitt sob o enfoque da obra de arte, propondo um
estudo sobre a teoria da soberania do século XVII mediada pelo drama Barroco.
A relação entre os textos é evidente. Pode ser constatada pela citação
benjaminiana da Politische Theologiae em Origem do drama Barroco alemão,
no curriculum vitae de 1928 de Benjamin e na carta 7 que este escreveu para
Schmitt em dezembro de 1930 (AGAMBEN, 2011a, p. 83).
Como exposto, Carl Schmitt recorre ao conceito de decisão para
determinar o ato do soberano que, decidindo sobre o Estado de Exceção,
estabelece a conexão entre ordem jurídica e anomia. Walter Benjamin,
entretanto, substitui o termo “decisão” por “exclusão”. Assim, o soberano não
seria o elo entre o Direito e a exceção, mas justamente a figura da ruptura entre
tais instâncias. O soberano seria aquele que exclui a exceção.
Nesse sentido, Walter Benjamin reinsere a questão da (in)decisão sob
6 Importa destacar que o termo Trauerspiel foi utilizado precisamente pela
duplicidade de seu significado, já que no "século XVII, o termo Trauerspiel se
aplicava tanto à obra [tragédia ou drama Barroco] como aos acontecimentos
históricos, do mesmo modo que hoje, com maior justificação, ocorre com o termo
trágico" (BENJAMIN, 1984, p 87).
7 Eis um trecho da carta: "O senhor irá notar muito rapidamente quanto o livro deve a
sua apresentação da doutrina da soberania no século XVII [Cf. Politische
Theologie, 1922]. Talvez eu deva, além disso, já dizer que derivei de suas obras
posteriores, particularmente de Diktatur, uma confirmação dos meus métodos de
pesquisa em filosofia da arte das suas sobre filosofia do estado" (BENJAMIN apud
SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 13).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 199
uma nova ótica a fim de contestar a tese schmittiana. Ele acrescenta essa nova
abordagem distinguindo o governo de seu exercício, o que corresponderia “à
cisão entre normas do Direito e normas de realização do Direito” (AGAMBEN,
2011a, p 88). O soberano seria aquele a quem é dado decidir sobre o Estado de
Exceção, mas não pode fazê-lo (BENJAMIN, 1984). Como Benjamin observa,

a antítese entre o poder do governante e sua


capacidade de governar conduziu, no drama Barroco,
a um traço próprio, mas que só aparentemente é
característico do gênero, e que só pode ser explicado à
luz da doutrina da soberania. Trata-se da indecisão do
tirano. O Príncipe, que durante o Estado de Exceção
tem a responsabilidade de decidir, revela-se, na
primeira oportunidade, quase inteiramente
incapacitado para fazê-lo. (BENJAMIN, 1984, p. 94)

Dessa forma, o papel do soberano tomam novamente caminhos distintos


em Carl Schmitt e Walter Benjamin. Para Carl Schmitt, como vimos, o soberano
estaria dentro e fora do Direito, articulando Direito e exceção. Ele não admite
que o Direito se confunda com a anomia. Aliás, a anomia deveria ser preservada
para que a própria ordem jurídica subsistisse. Se para Schmitt, “a regra vive só
na exceção” (SCHMITT, 1996, p. 94), para Benjamin “o ‘Estado de Exceção’
em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 2005, p. 226).
Assim, Benjamin estabelece uma alteração programática no enunciado de
Schmitt (BENTO, 2000, p. 4). Seu intento é mostrar que ordem jurídica e
exceção convivem em uma zona de absoluta indistinção “em que a esfera da
criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma mesma catástrofe”
(AGAMBEN, 2011a, p. 89). Nesse espaço, nenhuma decisão é possível.
Benjamin, portanto, apregoa o rompimento de toda a relação entre
exceção e Direito. Não por outro motivo Agamben observa que “ao gesto de
Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever a violência no contexto jurídico,
Benjamin responde procurando, a cada vez, assegurar a ela – como violência
pura – uma existência fora do Direito” (AGAMBEN, 2011a, p. 92).
Nesse sentido, o problema será transposto para a esfera da filosofia da
história. Walter Benjamin trata a questão da soberania como o deslocamento de
concepções históricas. Duas formas de história apresentam-se, portanto, como

200 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
integrantes de uma dialética da imanência que constitui o Barroco: a história-
destino e a história naturalizada. Por que inspirado em movimentos
contrarreformistas, o Barroco opunha-se à concepção da história como redenção
escatológica e, impondo a secularização, aniquilou a transcendência. A história,
portanto, seria uma história cega, guiada pelo destino. O Barroco conhece o
escatológico, mas ele é vazio. A catástrofe é essa escatologia (BENJAMIN,
1984). Esse é o drama do qual padece o Barroco (Trauerspiel), a agonia dessa
história que antecipa a catástrofe e, nas palavras de Rouanet, “não é uma
catástrofe messiânica, que consuma a história, e sim a do destino, que o
aniquila” (BENJAMIN, 1984, p. 35). A história-destino, portanto, está
assentada na concepção circular da natureza, é uma história trágica, catastrófica.
Num sentido oposto está a história naturalizada, que se apresenta como
corretivo para as incertezas dessa história-destino (BENJAMIN, 1984). Seu
anseio é a estabilidade da qual emerge a teoria da soberania. Ambas, na medida
em que são desdobramentos da imanência, negam a perspectiva messiânica. O
Barroco está relegado à imanência pura, à história constituída de sucessivas
catástrofes sem qualquer fim determinado. Deste modo, o Barroco rompe com a
relação entre soberania e transcendência, entre o rei e Deus, na qual está
radicada a teologia política schmittiana. Como explicam Villacañas e García,

esta teoria política baseia-se em uma experiência


metafísica, em uma totalidade concreta da experiência
do Dasein, o que põe em jogo a tensão entre
imanência e transcendência. [...] O Barroco percebe
bem próxima a presença da transcendência, mas a
percebe como catástrofe, como ruína do mundo
(VILLACANÃS; GARCIA, 1996, p. 48, tradução
nossa)8

Nessa esteira é que Rouanet advertiu que se “o Barroco está condenado


à imanência é porque exclui a história messiânica” (BENJAMIN, 1984, p. 43).
A percepção da história como salvação, como tempo messiânico, cede lugar a

8 esta teoría política se nutre de una experiencia metafísica, de una totalidad concreta
de experiencia del Dasein, que pone em juego la tension entre inmanencia y
transcendencia. […] El Barroco percibe muy próxima la presencia de la
transcendencia, pero la percibe como catástrofe, como ruina del mundo.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 201
uma história natural existente sob as leis de ferro da natureza (BENJAMIN,
1984). Essa história naturalizada, enquanto pretensão da política absolutista, é a
saída proposta pelo Barroco para garantir a estabilização da história
(BENJAMIN 1984).
A teoria da soberania é explicada a partir do drama Barroco porque
ambos convergem para uma história privada da transcendência. Aqui, o milagre
perde seu lugar de paradigma do Estado de Exceção (tal qual apresentado por
Carl Schmitt) para que em seu lugar a ideia de catástrofe ganhe relevo. O
soberano teme a catástrofe, porque esta põe fim ao tempo histórico. Para evitar
a catástrofe é que o soberano dispõe de poderes especiais para contê-la. Esses
poderes definem o Estado de Exceção (VILLACANÃS; GARCIA, 1996).
A legitimidade dessa capacidade decisória reside em seu propósito de
assegurar a permanência da comunidade política em face das ameaças do
inimigo. Em outros termos, a decisão do soberano legitima-se em função da
necessidade de retorno à estabilidade. A segurança e a ordem devem ser
mantidas quando restem ameaçadas no Estado de Exceção. Essa é a função do
tirano: restaurar a ordem (BENJAMIN, 1984). O soberano representa a história
estabelecendo a sua continuidade, de sorte que a estabilidade histórica (o tempo
mítico) seja resguardada. A tarefa da revolução seria romper essa continuidade,
daí a teoria benjaminiana da história, de vocação descontinuísta, se apresentar
como insurgência ao culto moderno do progresso que só poderia levar à
catástrofe.
A nona tese sobre o conceito de história apresenta essa percepção
benjaminiana da história. O desalento da modernidade, contestando o otimismo
histórico apregoado pelos positivistas, é retratado pelo anjo da história que
carrega em seu seio o paradoxal desfecho da redenção messiânica. Citemos
Benjamin, diretamente:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus.


Representa um anjo que parece querer afastar-se de
algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O
anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está
dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia
de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as

202 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para
acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prendes-se em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro,
ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de
ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que
chamamos progresso (BENJAMIN, 2005, p. 226).

Nesse sentido, a teologia política schmittiana, para Benjamin,


conduziria à mitificação da política na medida em que implicava na
secularização sob a forma de uma representação/mediação. Essa acepção mítica
leva a história à catástrofe e é exatamente essa violência mítica que constitui
objeto da crítica benjaminiana já presente na “Crítica da violência – crítica do
poder”. Daí a latente oposição de Walter Benjamin à teologia política proposta
por Schmitt. Giorgio Agamben traduz esse confronto estabelecendo a distinção
entre a secularização, defendida por Schmitt, e a profanação por ele proposta,
como destituição de toda forma de mediação.
A secularização apontada por Carl Schmitt corresponde a um
movimento diverso do ato de profanar proposto por Agamben. Secularizar diz
respeito ao deslocar dos rituais e conceitos de um determinado lugar para outro,
sem alterar seu conteúdo semântico. Os conceitos políticos carregariam,
portanto, uma assinatura que os remete à sua origem teológica (AGAMBEN,
2011b, p. 16). A secularização preserva os ídolos, mas atribuem-lhes novos
nomes, conferem-lhes novas roupagens. A profanação, ao contrário, rasga o véu
do templo9 que isola a divindade do mundo humano. Ela dissolve a separação. A
secularização mantém a violência, a profanação a desativa. Ademais, expõe
Agamben,

A secularização é uma forma de remoção que mantém

9 Alusão ao fato descrito nos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João no qual
pouco antes do último suspiro de vida de Cristo no Gólgota, ele brada: tetélestai
[está consumado]. Trata-se da consumação do propósito messiânico da redenção.
Nesse momento, o véu do templo judaico se rasga de alto a baixo, representando o
fim da mediação sacerdotal e a ruptura com o ritualismo constituinte da Antiga
Aliança.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 203
intactas as forças, que se restringe a deslocar de um
lugar a outro. Assim, a secularização política de
conceitos teológicos [...] limita-se a transmutar a
monarquia celeste em monarquia terrena, deixando,
porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por
sua vez, uma neutralização daquilo que profana.
Depois de ter sido profanado, o que estava
indisponível e separado perde a sua aura e acaba
restituído ao uso. Ambas as operações são políticas,
mas a primeira tem a ver com o exercício do poder
[...]; a segunda desativa os dispositivos do poder e
devolve ao uso comum os espaços que ele havia
confiscado (AGAMBEN, 2007, p. 68).

Uma leitura isolada da “Origem do drama Barroco alemão” talvez possa


conduzir a uma compreensão equivocada da pretensão benjaminiana. A obra
deixa nebulosa sua percepção de consumação da história pelo tempo messiânico
enquanto alternativa à visão progressista da história. Mas importa avultar que o
Barroco aponta para além dele mesmo, ele não é a proposta final de Walter
Benjamin. Aliás, é apenas o diagnóstico do presente que ainda deve ser
redimido. Agamben, deste modo, sintetizou:

Benjamin quer redimir esse Barroco porque sente que,


mais que qualquer outro, nosso presente é visado por
ele. Nossas ruínas são análogas às do Barroco. Sua
morte é também a nossa morte [...]. Por tudo isso,
dirigimos um apelo a nosso futuro, como o Barroco
dirigiu um apelo a nosso presente. Talvez a redenção
seja possível. Talvez a catástrofe seja inevitável. No
meio tempo, esperamos e desesperamos. A Origem do
Drama Barroco Alemão nos fornece argumentos tanto
para essa esperança como para essa desesperança
(BENJAMIN, 1984, p. 46-47).

Walter Benjamin postula a instituição de uma história se consumaria


com a redenção e a vinda do messias, na qual haveria uma ruptura com qualquer

204 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
forma de mediação do Direito. Trata-se do resgate da transcendência. Ele quer a
violência pura, a violência divina. O espectro revolucionário (messianismo
histórico) que perpassa grande parte das obras de Walter Benjamin sob a forma
de uma violência divina será encontrado no fim desse debate com Carl Schmitt
que se dará com a oitava tese sobre o conceito de história, na qual Walter
Benjamin prenuncia:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de


Exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.
Precisamos construir um conceito de história que
corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é originar um
verdadeiro Estado de Exceção; com isso nossa
posição ficará mais forte na luta contra o fascismo
(BENJAMIN, 2005, p. 226).

Walter Benjamin retoma, assim, seu intento de ruptura entre Direito e


exceção e propõe a alternativa de um Direito sem qualquer relação com a vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado de Exceção descortina uma duplicidade da ordem jurídica,


uma de cunho normativo em sentido estrito (potestas) e outra anômica
(autoritas) (AGAMBEN, 2005). Se por um lado o jurídico norteia a face
normativa do poder estatal, de outro, uma figura gerencial se apresenta
agigantada no campo político do ocidente. A questão é que esse aspecto
extralegal não só esteve sempre presente na política como tem suplantado o
Estado de Direito.
As concepções positivistas do Direito, que pretendem reduzir o
fenômeno jurídico à sua dimensão normativa, ignoram o fenômeno da decisão,
bem como os fatores políticos capazes não só de interferir na produção do
Direito, mas, sobretudo, de suspender a ordem jurídica. Nesse sentido,
questionar o paradigma do estado de Direito implica tomar consciência do que a
realidade política do Ocidente tem denunciado sobre o poder.
Impõe-se, portanto, pôr em evidência o que a história de Weimar
demonstrou ao fazer arder os olhos das teorias jurídicas, que se negam a

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 205
enxergar a sua própria impotência diante dos fatos, as aporias que emergem dos
conceitos basilares do Direito público. Os paradoxos do Estado de Exceção
devem, pois, ser considerados pelos juristas, enquanto realidade sobre a qual se
erige a constituição do presente, ainda assombrado pelos destroços da
racionalidade ocidental, cuja representação do poder tem se mostrado, no
mínimo, deficitária.

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economia e do governo. Homo sacer, II, 2. Trad. Selvino J. Assmann. 1. ed. São
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Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000a.

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CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 207
208 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
On Fairy Stories1: as possíveis contribuições de J.R.R. Tolkien
para os estudos de Direito e Literatura

Amanda Muniz Oliveira*

RESUMO: No intuito de propor um diálogo interdisciplinar entre Direito e


Literatura, surge nos Estados Unidos o movimento Law and Literature, que
defende a utilização da literatura como ferramenta analítica do Direito, vez que
esta permite uma análise mais próxima da realidade social. Ao analisar o direito
na literatura, o leitor da obra fictícia é transportado a uma situação distinta da
sua própria, o que permite o entendimento das relações sociais e jurídicas a
partir da ótica de um terceiro. Wigmore, um dos ícones deste movimento,
propõe aos juristas a leitura de obras literárias cujo enredo ocorram em
âmbiente jurídico. Todavia, indaga-se a possibilidade de utilizar gêneros
literários distintos como instrumento de estudo. Desta forma, procura-se
demonstrar que o gênero literário denominado por Tolkien de “estórias de
fadas” também pode ser utilizado como um instrumento de estudo do jurista.

PALAVRAS-CHAVE: Direito. Literatura. Interdisciplinaridade.

ABSTRACT: In order to propose an interdisciplinary dialogue between Law


and Literature, arises in the United States the Law and Literature movement,that
propose the use of literature as an analytical tool of law, since literature allows a
closer examination of the social reality. Analyzing the law in literature, the
reader is taken to a situation different from his own, allowing the understanding
of social and legal relations from the perspective of a third person. Wigmore,

1 O ensaio acadêmico “On Fairy-Stories” foi traduzido para o português, pela editora Conrad, com o título
de “Sobre Histórias de Fadas”. Entendemos que esta tradução prejudica o entendimento de questões
centrais do pensamento de Tolkien, que por sua formação de filólogo, empregou em seus escritos
palavras que não encontram tradução para a língua portuguesa. Desta forma, optou-se por utilizar tanto a
obra em seu idioma original, vez que constitui objetivo central deste trabalho a exposição das ideias
concebidas pelo referido Autor, quanto a dissertação de mestrado de Reinaldo José Lopes: uma tradução
mais fiel do texto a ser analisado. Neste sentido, também optou-se por empregar o título original em
inglês no título deste trabalho.
* Acadêmica do 10º período de Direito das Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros-MG. Email:
amandai040@gmail.com.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 209
one of the icons of this movement, proposes to jurists reading literary works
whose plot occur in the legal environment. However, we look into the
possibility of using different literary genres as a means of study. The objective
of this paper is to demonstrate that the literary genre called by Tolkien of "fairy
stories" can also be used as a tool of legal study.

KEYWORDS: Law. Literature. Interdisciplinary.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por foco principal a apresentação pontual das


ideias de J.R.R. Tolkien a respeito da literatura fantástica, mais especificamente
sobre o gênero literário a que o Autor denomina “estórias de fadas”, e suas
possíveis contribuições aos estudos de Direito e Literatura. Objetiva-se ainda
destacar a importância do diálogo interdisciplinar entre Direito e Literatura para
a ciência jurídica e identificar de que forma esta relação pode ser abordada, seja
através de obras cujos enredos se passem em ambientes jurídicos, seja em
romances fictícios fantásticos.
Inicialmente, cumpre destacar a importância da interdisciplinaridade
para o Direito. A tentativa de esvair do Direito as matérias que não fossem
estritamente jurídicas culminou no chamado Positivismo Jurídico, para o qual se
fazia necessário retirar da órbita jurídica quaisquer conceitos sociológicos,
antropológicos e filosóficos, objetivando tornar o direito uma ciência pura. Tal
fato acabou por legitimar verdadeiras atrocidades, vez que por mais esdrúxulas
que as normas positivas se apresentassem, possuíam validade, devendo ser,
portando, cumpridas.
O movimento pós-positivista contrapôs estas hipóteses, partindo do
pressuposto de que, se uma norma fosse destituída de princípios valorativos (e
portando de matérias pertinentes às ciências sociais e filosóficas), poderia ser
considerada injusta, não devendo, portanto, ser aplicada.
Ocorre que o Direito não pode ser vislumbrado como mera ciência
normativa, tal como imaginado pelo movimento positivista, pois depende da
realidade político-social na qual se insere. Para que as normas tenham
condições de subsistência em face da realidade, é preciso empreender uma
análise de todos os elementos necessários atinentes às situações e forças, cuja
atuação afigura-se determinante no funcionamento da vida do Estado. Por isso,

210 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
o Direito depende das ciências da realidade mais próximas, como a História, a
Sociologia e a Economia.
Destarte, infere-se que o auxílio de disciplinas diversas é necessário não
apenas para o estudo do Direito, mas também para a aplicação da norma ao caso
concreto. Com a literatura, não seria diferente. Esta rica área do conhecimento
pode contribuir de forma significativa para o estudo do Direito, seja através da
teoria literária, seja através da análises de textos literários, conforme será
demonstrado.

1 DIÁLOGOS ENTRE O DIREITO E A LITERATURA

A utilização de metáforas para se explicar uma regra de conduta, seja


moral ou jurídica, não é um fenômeno inédito. Rorty (1991) afirma que para
compreender os problemas que permeiam o século XX, faz-se necessário a
leitura das obras de Heidegger, Dewey e Davidson simultaneamente às obras de
Nabokov, Kafka e Orwell. Ward (2008), por sua vez, relembra Aristóteles e a
sua metáfora do justo-meio2, ainda utilizada no meio jurídico, bem como o uso
de metáforas, fábulas e contos fantásticos em textos de diversas religiões,
pregados como exemplo de regra de conduta.
Desta forma, infere-se que a relação entre Direito e Literatura foi tema
constante na tradição do ocidente em tempos passados, vez que o homem das
leis também era o homem das letras. A busca por um Direito mais racional,
burocrático e positivista é apontada como causa da cisão entre estas áreas do
conhecimento humano, pois, segundo Godoy (s.d.) a Literatura foi transferida
ao estético puramente artístico, enquanto o Direito foi reservado ao tecnicismo
formal.
Segundo Siqueira (2011), com o advento do Positivismo Jurídico3
procurou-se esvair do Direito as matérias que não fossem estritamente jurídicas,
inclusive as questões relativas à literatura, metáfora e parábolas. Assim, a
reaproximação do Direito e da Literatura apenas tornou-se possível com o
2 Segundo Boto (2001, p. 127), “Aristóteles, ao reportar-se ao ideal do justo meio, enfatiza a moderação
como virtude capaz de entrelaçar prudência e o discernimento na ação: a medida exata entre dois
extremos. O ser virtuoso adquire, ao agir, a propensão do caráter educado para a moderação.”
3 Galuppo (2002, p. 02) afirma que positivismo jurídico consiste “numa epistemologia e numa ideologia
de leitura do direito positivo, essencialmente metafísica, que crê, de uma forma um tanto quanto
contraditória com a ideia de mudança inerente ao fenômeno da positivação, na autoexistência do objeto
criado pelo homem, notadamente da lei, razão pela qual o Positivismo pretende converter o
conhecimento jurídico em ciência”.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 211
surgimento do pós-positivismo4, sendo tal reaproximação marcada notadamente
pela emergência do movimento americano conhecido como Law and Literature,
o qual ganhou notória repercussão após a publicação do livro The legal
imagination, de James Boyd White. Segundo Siqueira (2011, p.32):

Essa proposta surgiu como uma das várias tendências


antipositivistas do mais amplo movimento “direito e
sociedade”, atuando na formação do profissional do
direito de forma a resgatar aspectos humanísticos de
que as carreiras jurídicas se afastaram. A centralização
do direito no positivismo kelseniano levou à redução
gramatical de seus enunciados e à análise estritamente
sintática e semântica de suas normas, tornando-o
incapaz de atender as demandas sociais postas ao
direito.

White (1985) acredita que os tanto os textos jurídicos quanto os


literários são fundamentados pelas identidades de seus personagens e pelos
significados de seus conceitos. Desta forma, a literatura possibilitava ao jurista
uma nova abordagem da ordem legal estabelecida, bem como uma nova visão a
respeito do ordenamento jurídico vigente.
Importante destacar que o movimento Law and Literature apresenta
diversas propostas de estudos cruzados entre estas áreas do conhecimento.
Neste sentido, podem ser citados os estudos de direito como literatura, a
literatura como instrumento de mudança do direito, hermenêutica, direito da
literatura, direito e narrativa, apenas para citar alguns.
Dentre eles, um estudo em particular merece atenção: o direito na
literatura. Sobre esta ótica, indaga-se o jurista: de que forma é possível
empreender uma análise jurídica em textos literários?

3 O DIREITO NAS OBRAS LITERÁRIAS

4 De acordo com Galuppo (2002, p. 07), “O Pós-Positivismo pressupõe que, apenas com a atividade do
legislador, o sentido das normas jurídicas é incompleto: o aplicador deve realizar um juízo de
adequabilidade da norma ao caso concreto, verificando se as condições de aplicação de uma determinada
norma se dão no caso concreto. Em poucas palavras, o Pós-Positivismo recusa ao Direito o estatuto de
uma ciência. Nosso saber não é científico. Não precisa sê-lo. Sobretudo não pode sê-lo, se estiver a
serviço da emancipação”.

212 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
A vertente de estudos denominada direito na literatura investiga as
questões jurídicas que permeiam as narrativas literárias. Esta abordagem possui
um caráter instrumental, vez que trata o direito enquanto recurso literário e a
literatura, por sua vez, como recurso de compreensão do direito. Ocorre que a
leitura crítica de obras literárias auxilia na formação sociológica e filosófica do
jurista, revelando uma verdadeira função pedagógica, fruto da interseção entre
as duas disciplinas. O estudo da literatura torna o jurista mais apto a lidar com
sua própria realidade, vez que instiga um senso de alteridade e sensibilidade, e
porque não, o despertar de uma visão crítica acerca do mundo que o cerca.
Segundo Olivo, (2012, p. 14)

A vertente do Direito na Literatura estuda as formas


sob as quais o Direito é representado na Literatura.
Não se trata somente de procurar representações
jurídicas nos textos literários, mas, sobretudo, utiliza-
se das múltiplas perspectivas que a literatura é capaz
de oferecer, para fazer desse material uma
possibilidade de multiplicar as possibilidades de se
pensar, interpretar, criticar e debater o Direito.

Aristóteles (1996) já afirmava esta ideia. Na sua obra Poética, o


referido filósofo defende que a diferença entre um historiador e um poeta está
no fato de que o primeiro conta fatos reais ocorridos, e o último, fatos que
poderiam vir a ocorrer. Devido a este caráter geral e hipotético, Aristóteles
(1996, p. 39) defende que a poesia contém mais filosofia do que a própria
história.

Não é em metrificar ou não que diferem o historiador


e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada;
não seria menos uma história com o metro do que sem
ele; a diferença está em que um narra acontecimentos
e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por isso, a
Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a
História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata
fatos particulares. Enunciar verdades gerais é dizer

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 213
que espécies de coisas um indivíduo de natureza tal
vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a
isso visa a Poesia, ainda quando nomeia personagens.
Relatar fatos particulares é contar o que Alcibíades fez
ou o que fizeram a ele.

Ost (2005), por sua vez, defende a literatura como liberadora dos
possíveis caminhos disponíveis ao indivíduo frente a realidade codificada do
direito. Para o autor, embora o direito e a literatura descrevam as relações
humanas, a literatura o faz livre das amarras impostas pelo tecnicismo formal
arraigado no direito. A liberdade formal e material de que goza a arte literária
pode ser utilizada como força renovadora do direito. Tal renovação ocorre com
o choque entre a narrativa jurídica e a narrativa literária, que possibilita uma
discussão acerca das questões fundamentais do direito, como a ordem social, as
leis e o poder.
Assim, infere-se que as obras literárias estão carregadas de valores,
significados e sentidos, sendo diretamente influenciadas pelo contexto histórico-
social em que foram escritas. As relações sociais são abarcadas pela literatura e
ali retratadas, transmitindo emoções, sentimentos, críticas e mesmo reflexões
sobre temas diversos. Sendo o Direito um fenômeno essencialmente social, é
indubitável que possamos encontrar em textos fictícios a interpretação do autor
sobre os fenômenos jurídicos ocorridos ao seu redor, seja de forma mais direta e
clara, como em O Processo, de Kafka, seja de uma forma mais velada, como em
1984 de George Orwell. Fruto da ação humana, a atividade literária encerra em
si ideias e significados passíveis das mais diversas interpretações que terão um
impacto sobre a realidade e, independentemente de sua magnitude, poderão ser
abordadas pelo Direito.
Neste diapasão, compreende-se a obra literária como verdadeira
testemunha da realidade social na qual está inserida a realidade jurídica. Os
mais diversificados gêneros literários atentam-se a demonstrar um retrato social
pautado no particular e no específico, permitindo uma abordagem não
normativa do direito. De acordo com Siqueira (2011, p. 49), “A característica de
denúncia da literatura tem poder de atuar, portanto, como força recriadora de
mudanças sociais e jurídicas, sendo capaz de contribuir diretamente à
formulação e à elucidação das principais questões relativas à justiça, à lei e ao
poder”.

214 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Ademais, ao analisar o direito na literatura, o leitor da obra fictícia é
transportado a uma situação completamente distinta da sua própria, o que
permite o entendimento das relações sociais e jurídicas a partir da ótica de um
terceiro, autor e/ou personagem. Assim, obtêm-se uma troca de visões acerca do
mundo jurídico, em diversas épocas e contextos sociais.
Segundo Dunlop (1991) a literatura permite o entendimento das
relações sociais a partir da ótica de um terceiro, seja autor ou personagem do
enredo, permitindo assim uma verdadeira troca de visões sociais em diversas
épocas e contextos. Weisberg (1988, p.54), afirma que romances relativos a
temas jurídicos são “o caminho para a compreensão humana 5.” West (1988), por
sua vez, acredita que as obras literárias devem ser exploradas no intuito de
realizar uma crítica ao poder e as instituições políticas, sustentadas pelo Direito.
Para Ward (2008, p.23), os estudos de direito e literatura proporcionam uma
melhor forma de aprendizado, já que grande virtude dessa perspectiva é o seu
caráter simples, descomplicado. Sobre isto, o Autor escreve: “Essa qualidade,
acima de todas, não deve ser perdida. Uma grande quantidade de palavras
longas é algo perigoso. E como Dunlop sugere, o Direito já está obstruído com
muitas palavras que na verdade não significam nada, nem para os advogados
nem para ninguém6”. O que se busca, portanto, é utilizar a literatura como
instrumento de análise, visando desenvolver nos estudantes de direito a
capacidade de enfrentar temas complexos, relativos não só ao Direito, mas à
condição humana, como um todo.
Segundo Godoy (s.d.), os estudos de direito na literatura foram
iniciados pelo professor norte-americano John Henry Wigmore, que, dentre
outros livros sobre o tema, escreveu A List of One Hundred Legal Novels, obra
que propõe a leitura de uma centena de romances úteis à ciência jurídica.
Justificando suas escolhas, o autor afirma que o operador do direito busca a
literatura como forma de aprender sobre o mundo jurídico. Para tanto, as obras
indicadas, além de terem sido criteriosamente selecionadas, deveriam ser lidas
por juristas e não por leigos. Certos autores, como Dickens e Conan Doyle,
deveriam ser leitura obrigatória para os estudantes de Direito, vez que,
conforme Wigmore (apud GODOY, s.d., p. 10) “uma coisa é saber que a prisão
por dívidas foi abolida; e algo totalmente diferente é conhecer os livros de
5 Traduziu-se do original “the path to human understanding”.
6 Traduziu-se do original: “That quality, above all, must not be lost. Too many long words are dangerous.
As Dunlop suggests, law is already beset by far too many words that do not really mean anything, either
to lawyers or to anyone else”.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 215
Dickens, que colaboram para um Direito mais humano.”
Importante ressaltar, todavia, que o potencial pedagógico não encontra
termo na simples instrumentalidade das narrativas literárias para o direito. A
simples apresentação de uma narrativa em nada contribui para o estudo do
direito. Faz-se necessário mais. É de suma importância um estudo crítico e uma
construção de significados que permeiam as obras literárias a serem analisadas,
no intuito de aproveitá-la ao máximo. Siqueira (2011, p. 108), aduz:

A análise das obras literárias, portanto, pode


representar uma rica possibilidade de discussões de
entendimentos jurídicos, ainda que dependa da
disponibilidade reflexiva de seu leitor. O cuidado que
se deve ter é não restringir-se a uma leitura superficial
e ilustrativa, somente a título de exemplificação para o
direito.

A reflexão proposta ao se estudar o direito na literatura permite um


autoconhecimento por parte do leitor, que o instiga a pensar sobre a posição e o
sentimento por ele tomados na obra apresentada, o que possibilita toda uma
revisão de seus próprios valores e posicionamentos. Todavia, para que tal fato
ocorra, a obra literária não deve ser estudada como mera ilustração de questões
jurídicas.
Tal estudo é capaz de contribuir para um aprimoramento da capacidade
de atuar em sociedade de maneira desvinculada e reflexiva, no intuito de
questionar os dogmas fortemente absorvidos pelos leitores. Isto ocorre devido
ao fato de que a literatura favorece o pensamento de que o mundo pode ser
imaginado de forma diversa, nos permitindo reconhecer o caráter artificial das
construções sociais, tais quais nosso universo jurídico-político. Para Siqueira
(2011, p. 108), esta reflexão crítica libertária por parte do leitor

Dá-se visando superar a relação de distância e de


dominação existente no conhecimento, como ressalta
Michel Foucault. O agente do direito deve buscar
adequar-se ao objeto de modo a assimilar as questões
de luta e poder que o envolvem. A literatura pode
atuar nesse propósito ao horizontalizar os campos de

216 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
conhecimento, assim como a relação entre seus
personagens, libertando o agente do direito de suas
amarras hierárquicas e ideológicas.

Para Vieira e Morais (2013, p. 46) os estudos de Direito e Literatura


constroem uma dialética rica e pouco explorada, vez que “assim como o Direito
repercute na Literatura, esta contribui para aguçar as percepções sobre as
emoções, os sentimentos, as relações e (…) compreender um pouco da
sociedade e do Direito.” Isto porque tais narrativas distanciam-se da rigidez
técnico-científica proporcionando uma maior liberdade, não apenas de
interpretação como de reflexão propriamente dita, já que, segundo Olivo (2011,
p. 19) “o próprio discurso literário (é) uma tentativa de interpretar a realidade.”.
Feitas estas considerações acerca do modo de leitura das obras literárias,
tem-se como importante mencionar de que forma tais obras devem ser
selecionadas. Wigmore, como mencionado, fez uma lista de romances a serem
estudados pelos juristas, os distinguindo da seguinte forma: a) Romances com
cenas de julgamento ou interrogatório; b) Romances que descrevem atividades
típicas dos operadores do direito; c) Romances que descrevem métodos de
processamento e punição dos crimes; d) Romances que afetam direitos ou
tenham algum assunto jurídico marcado na conduta de seus personagens.
O autor preferia os clássicos como Charles Dickens, Arthur Conan
Doyle e Mark Twain. Sem sombra de dúvida, as obras clássicas gozam da
vantagem de serem atemporais, podendo ser estudadas por indivíduos de
diferentes épocas, culturas e contextos sociais. Todavia, nada impede que obras
regionais e específicas sejam objeto de análise do jurista, pois, de acordo com
Siqueira (2011, p. 108) “importa que o livro desperte a capacidade interpretativa
de seu leitor, instigue suas experiências reflexivas e que o incite interpelar
diferentes narrativas da forma mais hábil possível.”
Ao discutir quais livros deveriam ser objetos de estudo de direito na
literatura, Streck (2013, p. 229) afirma que “não há livro que não seja útil nessa
relação direito-literatura.” Neste mesmo sentido, Siqueira, Zambonato e Caume
(2009, p.155) afirmam que as obras utilizadas devem ser “aquelas que
despertarem a leitura responsável do seu leitor.” Partindo destas afirmativas,
indaga-se: é possível depreender uma análise de direito na literatura em obras
de literatura fantástica, mais especificamente do gênero chamado por J.R.R.
Tolkien de “estórias de fadas”?

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 217
3. Os juristas em Feéria: as possíveis contribuições das estórias de fadas 7
para o estudo do Direito

Em 1939, na Universidade de St. Andrews, Escócia, o professor J.R.R.


Tolkien8 proferiu uma palestra sobre a importância dos contos fantásticos na
modernidade. Esta palestra foi posteriormente publicada como ensaio filosófico
na coletânea de textos Tree and Leaf, sob o título On fairy-stories.
Neste trabalho, Tolkien (2001) procura responder três questionamentos
primordiais: o que são estórias de fadas, quais suas origens e para que servem.
Sobre o primeiro, o Autor adverte que a utilização de um dicionário será inútil e
desnecessária, pois a maioria destes conceitua estórias de fadas como uma
história sobre fadas. Na visão de Tolkien (2001), nada mais equivocado. Não se
tratam de simples narrativas sobre fadas e elfos, mas sim contos a respeito de
Feéria9, lar não apenas das fadas, mas também de anões, trolls, bruxas, árvores,
pássaros, água e homens mortais, quando encantados 10.
Para Tolkien (2001, p.48) “Feéria não pode ser aprisionada em uma rede
de palavras, pois uma de suas qualidades é ser indescritível [...]. Ela contém
muitos ingredientes, mas uma análise certamente não desvendará o segredo do

7 A distinção entre story e history é fundamental em diversas passagens do texto original; portanto, Lopes
(2006), aconselha a utilização da extinta palavra “estória” quando se referir ao termo cunhado por
Tolkien, sugestão acatada neste trabalho para uma melhor compreensão do assunto.
8 Embora John Ronald Reuel Tolkien tenha se tornado mundialmente famoso como escritor de narrativas
fantásticas, é importante destacar que sua formação era completamente acadêmica, voltada para o estudo
da linguística e da filologia, tendo sido um grande acadêmico de Oxford. Tolkien possui diversas obras
acadêmicas, desconhecidas do grande público, nas quais tece considerações a respeito da teoria literária,
retórica, tradução, filosofia da linguagem e filologia. De acordo com Carvalho (2007) sua obra,
acadêmica e literária, é amplamente estudada na Europa, Canadá, Estados Unidos e muitos outros países.
Carvalho (2007) também informa que a Universidade de Oxford possui uma sociedade de estudos
específicos sobre a obra de Tolkien, a Taruithorn – The Oxford Tolkien Society, o que só ressalta a
importância acadêmica do referido escritor.
9 Segundo Lopes (2006), a palavra utilizada no original em inglês, “Faerie”, não encontra correspondente
na língua portuguesa, sendo que o Autor aconselha sua tradução para o termo Feéria, que possui raiz
etimológica semelhante à palavra em inglês. Na tradução da editora Conrad, opta-se pelo termo “Belo
Reino”. Assim, optou-se pela sugestão de Lopes, que esclarece que o conceito de Feéria liga-se
diretamente ao das “estórias de fadas”, pois significa o mundo em que tais narrativas acontecem. Algo
próximo (mas não semelhante) ao “reino encantado.”
10 Infere-se que encantados não no sentido de sob efeito de magia, mas no sentido de deslumbrados,
admirados.

218 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
todo11”, motivo pelo qual o Autor se recusa a conceituar o que exatamente
entende por estórias de fadas. Tolkien (2001, p. 50) se limita a caracterizar tal
gênero como sendo uma história “que toca ou usa Feéria, qualquer que seu
próprio propósito central possa ser: sátira, aventura, moralidade, fantasia 12”
acompanhados de um final surpreendentemente feliz, que o autor denominou de
“eucatástrofe”.
De acordo com Klatau (2009), a utilização da expressão “fairy stories”,
traduzida por Lopes (2006) como “estórias de fadas”, tem por objetivo
diferenciar este gênero literário das expressões “history” e “tales”. “History”,
ou história, segundo Klatau (2009, p. 05) seria “a realidade em que vivemos, no
mundo onde acontecem os fatos”. “Tales”, os contos, seriam “aquelas narrativas
que são usadas como fábulas, sem nenhuma pretensão de expor e investigar
nada. [...] contos infantis e de puro entretenimento quais estamos acostumados a
ver”. Klatau (2009, p. 05-06) diferencia os contos de fadas das estórias de fadas,
afirmando que:

Os contos de fadas são as narrativas com fadas dimi-


nutas, que normalmente são consideradas ingênuas e
graciosas. As estórias de fadas são sobre um lugar, o
Reino Encantado, ou Feéria, onde seres humanos
adentram e vivem experiências literárias próprias. As
aventuras dos seres humanos em Feéria é que são as
estórias de fadas. As estórias de fadas sempre tratam
de seres humanos em relação consigo mesmo, com a
natureza e com o mistério transcendente. Esses são os
desejos que são saciados em Feéria: a observação das
profundezas do tempo e do espaço e a outra é a comu-
nhão com todas as coisas vivas.

No que se refere à origem das estórias de fadas, Tolkien (2001) afirma


que muitos acadêmicos (filólogos, arqueólogos, antropólogos) preocuparam-se
mais em utilizá-las como fontes históricas do que analisa-las como narrativas.

11 Traduziu-se do original “Faerie cannot be caught in a net of words, for is one of its qualities to be
indescribable (...). It has many ingredients, but analysis will not necessarily discover the secret of the
whole.”
12 Traduziu-se do original “is one which touches on or uses Faerie, whatever its own main purpose may be:
satire, adventure, morality, fantasy.”

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 219
Para Tolkien (2001, p. 62), “também é mais interessante, e também mais difícil
a seu modo, considerar o que elas são, o que se tornaram para nós e quais
valores os longos processos alquímicos do tempo produziram nelas 13”
Tolkien (2001) sugere que as estórias de fadas se originaram a partir de
três elementos, a saber: evolução independente, herança e difusão. A evolução
independente, que confunde-se com a invenção, seria o elemento mais
complexo de se examinar, e que a busca pelas origens a partir da difusão e da
herança, apenas deslocam a questão da origem para um debate mais complexo.
Neste ponto, Tolkien (2001) afirma que o método cartesiano é completamente
incapaz de desvendar as origens destas estórias, sendo possível apenas dissecar
seus elementos. Tolkien (2001, p. 62) prossegue, afirmando que

Nós devemos estar satisfeitos com a sopa que nos é


servida, e não querer ver os ossos do boi com que foi
fervida. [...] Como “sopa” eu me refiro a história tal
como é servida por seu autor ou narrador e como
“ossos”, a suas fontes ou seu material – mesmo
quando (por rara sorte) estes possam ser descobertos
com certeza14.

Desta forma, o Autor centra-se na terceira questão a que propõe: tecer


considerações sobre a utilidade das estórias de fadas na contemporaneidade.
Tolkien (2001, p. 64) cita o pensamento de Max Müller, para quem a mitologia
era vista como uma “doença da linguagem 15”, de forma a dizer exatamente o
contrário: para Tolkien (2001, p. 65), “as línguas, em especial as europeias mo -
dernas, são uma doença da mitologia 16”, posto que tais estórias constituem ele-
mento primordial da comunicação humana.
No que se refere à importância das estórias de fada no cotidiano do ho-

13 Traduziu-se do original “It is also more interesting, and also in its way more difficult, to consider what
they are, what they have become for us, and what values the long alchemic processes of time have
produced in them.”
14 Traduziu-se do original: “We must be satisfied with the soup that is set before us, and not desire to see
the bonés of the ox out of which it has been boiled. […] By ‘the soup’ I mean the story as it is served up
by its author or teller, and by ‘the bones’ its sources or material – even when (by rare luck) those can be
with certainty discovered. ”
15 Traduziu-se do original “disease of language”.
16 Traduziu-se do original: “Languages, especially modern European languages, are a disease of
mythology”.

220 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
mem comum, Tolkien (2001) afirma:

Primeiro de tudo: se forem escritas com arte, o valor


primordial das estórias de fadas será simplesmente
aquele valor que, por ser literatura, elas compartilham
com outras formas literárias. Mas as estórias de fadas
oferecem também, em grau ou modo peculiar, estas
coisas: Fantasia, Recuperação, Escape, Consolo [...] 17.

Nota-se que os quatro último elementos elencados pelo Autor é que evi-
denciam a importância das estórias de fadas na contemporaneidade. Tolkien
(2001) realiza uma breve análise sobre cada elemento citado, a começar pela
Fantasia, que, para ele, é injustamente vista como algo depreciativo e infantili-
zado. Para Tolkien (2001, p. 102), a grande vantagem da Fantasia é a “estranhe-
za arrebatadora18”; uma estória de fadas é capaz de envolver o leitor de forma
tal que este passa a crer, mesmo que por curto tempo, que o enredo é real. Suas
situações inusitadas, exóticas e estranhas ao leitor, são capazes de cativá-lo e
absorvê-lo, da forma que outro gênero literário jamais faria, pois ao mesmo
tempo que cativa, torna evidente as diferenças entre o real e o mundo de Féeria.
Neste sentido, Tolkien (2001, p. 112) afirma:

A Fantasia é uma atividade humana natural. Certa-


mente ela não destrói ou mesmo insulta a razão; e ela
também não abranda o apetite pela verdade científica
nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto
mais aguçada e clara for a razão, melhor fantasia pro-
duzirá. Se os homens estivessem num estado em que
não quisessem conhecer ou não pudessem perceber a
verdade (fatos ou evidências), então a Fantasia min-
guaria até que eles fossem curados. […] Pois a Fanta-
sia criativa está fundamentada no duro reconhecimen-
to de que as coisas são assim no mundo como ele apa-
rece sob o Sol; no reconhecimento do fato, mas não na
17 Traduziu-se do original: “First of all: if written with art, the prime value of fairy-stories will simply be
that value which, as literature, they share with other literary forms. But fairy-stories offer also, in a
peculiar degree or mode, these things: Fantasy, Recovery, Escape, Consolation […].”
18 Traduziu-se do original: “arresting strangeness”.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 221
escravidão a ele. Assim, sobre a lógica foi fundado o
disparate que se mostra nos contos e versos de Lewis
Carroll. Se as pessoas realmente não conseguissem
distinguir entre sapos e homens, não teriam surgido
estórias de fadas sobre reis sapos 19.

Observa-se que o elemento fantasia é capaz de transmitir ao leitor uma


situação inusitada, completamente distinta de toda a experiência que já vivenci-
ado. E justamente por isso, Tolkien (2001) acredita que a fantasia é uma caracte-
rística marcante das estórias de fadas. Explica-se. Os mais diversos gêneros lite-
rários também são capazes de apresentar enredos diferentes e inusitados ao lei-
tor; mas as estórias de fadas possuem em seu cerne o elemento fantástico. A
possibilidade de se utilizar livremente de elementos imaginários, exóticos e
deslumbrantes, os quais só se conhece através de mitos e lendas, é capaz de des-
pertar todo o fascínio do leitor e, assim, cativá-lo.
No que se refere ao jurista, as estórias de fadas distanciam-se da rigidez
técnico-científica, da lógica positivista de subsunção do fato à norma e até mes-
mo da percepção acerca do sujeito jurídico. É um mundo completamente dife-
rente, estranho, instigante, e por isso mesmo proporciona uma maior liberdade,
não apenas de interpretação como de reflexão. Todavia, a literatura, de uma for-
ma geral, também possui essa habilidade de provocar epifanias nos operadores
do direito, não sendo exatamente o elemento fantasia o que mais contribuiria
para uma forma inédita de se observar as questões jurídicas, embora, indubita-
velmente, se trate de uma característica importante.
Assim, passa-se a analisar os demais componentes das estórias de fadas.
Tolkien (2001) enumera a Recuperação, o Escape e o Consolo, como elementos
hábeis a tornar as estórias de fadas tão peculiares. Explanar-se-á cada um deles,
a começar do elemento recuperação.
Para Tolkien (2001), a recuperação seria a possibilidade de enxergar si-

19 Traduziu-se do original: “Fantasy is a natural human activity. It certainly does not destroy or even insult
Reason; and it does not either blunt the apetite for, nor obscure the perception of, scientific verity. On the
contrary. The keener and the clearer is the reason, the better fantasy will it make. If men were ever in a
state of which they did not want to know or could nor perceive truth (facts or evidence), then Fantasy
would languish until they were cured. […] For creative Fantasy is founded upon the hard recognition
that things are so in the world as it appears under the sun; on a recognition of fact, but not a slavery to it.
So upon logic was founded the nonsense that displays itself in the tales and rhymes of Lewis Carroll. If
men really could not distinguish between frogs and men, fairy-stories about frog-kings would not have
arisen”.

222 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
tuações e objetos aos quais o leitor já está há muito familiarizado, a partir de
uma nova perspectiva. Nas palavras de Tolkien (2001, p. 116):

A recuperação […] é a retomada de uma visão clara.


Não digo “ver as coisas como elas são”, para não me
envolver com os filósofos, porém posso arriscar-me a
dizer “ver as coisas como nós devemos (ou devería-
mos) vê-las – como coisas à parte de nós mesmos. [...]
Precisamos, de qualquer forma, limpar nossas janelas,
para que as coisas vistas com clareza possam ficar li-
vres do insípido borrão da trivialidade ou familiarida-
de – da possessividade20.

O elemento recuperação, assim, pode ser compreendido como a retoma-


da da reflexão, do deslumbramento, com tudo aquilo a que já se está habituado
e conformado. Vislumbra-se aqui o mesmo caráter pedagógico da analise do Di-
reito na Literatura defendido por Wigmore. Todavia, ao tratar depara Tolkien
(2001), ao se deparar com narrativas cheias do elemento fantasia, o leitor será
capaz de, ao voltar-se para a realidade na qual se insere, reaprender a apreciar as
coisas comuns e banais.
Ocorre que, ao deparar-se com enredos povoados de temas como elfos,
dragões e fadas, o leitor é transportado a um Universo completamente diferenci-
ado do seu próprio, habitado por povos distintos, com costumes e tradições dis-
tintos, mas ainda similares em certos aspectos. Os anseios, os sentimentos, as
tramas experimentados pelos personagens são os mesmos que perseguem o ser
humano comum. As estórias de fadas possuem heróis, vilões, donzelas e
príncipes, que agem e se orientam sob a mesma perspectiva moral que permeia
o mundo real. A ambição é castigada; o bom e o justo são recompensados; os ti-
ranos são destronados.
Transportando esta lição para o cotidiano forense, pode-se dizer que o
caráter fantástico e mirabolante das estórias de fadas é capaz de provocar no ju-
rista, tão habituado ao manuseio de autos que passa a vê-los como meros núme-

20 Traduziu-se do original: “Recovery is a re-gaining – regaining of a clear view. I do not say ‘seeing things
as they are’ and involve myself with the philosophers, thought I might venture to say ‘seeing things as
we are (or were) meant to see them’ – as things apart from ourselves. We need, in any case, to clean our
windows; so that the things seen clearly may be freed from the drab blur or triteness or familiarity – from
possessiveness”.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 223
ros e papéis, ume retomada de consciência, uma recuperação. Alguns fatos que
ocorrem no dia-a-dia do jurista nem sempre deveriam ser encarados como nor-
mais e aceitáveis. Neste diapasão, Tolkien (2001, p. 114) acredita que as estórias
de fadas podem proporcionar essa visão mais aguçada e detalhista da realidade.

Deveríamos olhar o verde outra vez, e ser assombra-


dos de novo (mas não cegados) pelo azul e amarelo e
vermelho. Deveríamos encontrar o centauro e o dra-
gão, e então talvez subitamente contemplar, como os
antigos pastores, ovelhas, e cães, e cavalos – e lobos.
Essa recuperação as estórias de fadas nos ajudam a fa-
zer21.

Observa-se, assim, que o elemento recuperação possui grande relevân-


cia para os estudos jurídicos, pois é capaz de modificar a forma como as pessoas
em geral, bem como os operadores do direito, vislumbram a diária labuta lega-
lista. Junto ao elemento fantasia, a recuperação passa a tornar as estórias de fa -
das como um gênero literário interessante aos estudos de Direito e Literatura,
passível de contribuir para profundas reflexões a respeito da ordem legal esta-
belecida, já que recupera a visão crítica por meio da fantasia.
Outro elemento apresentado por Tolkien (2001) é o escape. Todavia, im-
portante ressaltar que é preciso não confundi-lo com alienação ou fuga covarde.
Trata-se antes de voltar-se para o agradável, o aceitável e o prazeroso como for -
ma de amenizar a dureza da realidade na qual o indivíduo se insere. Um ponto
crucial a respeito do escape, é a capacidade que este tem de provocar uma rea-
ção. Sobre este aspecto, Tolkien (2001, p. 120) explica:

O escapista não é tão servil aos caprichos da moda


evanescente como seus oponentes. Ele não faz dos ob-
jetos […] seus mestres ou seus deuses, adorando-os
como inevitáveis, até “inexoráveis”. E deus oponen-
tes, de desprezo tão fácil, não têm garantia de que ele
parará por aí: ele poderá incitar as pessoas a derruba-
21 Traduziu-se do original: “We should look at green again, and be stardle anew (but not blinded) by blue
and yellow and red. We should meet the centaur and the dragon, and them perhaps suddenly behold, like
the ancient shepherds, sheep, and dogs, and horses – and wolves. This recovery fairy-stories help us to
make.”

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rem as lâmpadas de rua. O escapismo tem outro rosto,
mais perverso: a Reação22.

Infere-se que as estórias de fadas, por seu caráter escapista, hábil a


transportar o leitor a um ambiente agradável e aconchegante, pode instiga-lo a
realizar transformações em seu mundo real primário, de forma a adequá-lo aos
moldes de Feéria, tornando-o um lugar melhor. Obviamente que não se deve es-
perar uma reação revolucionária, profunda, capaz de realizar grandiosas mudan-
ças em curto espaço de tempo. As reações a que Tolkien (2001) se refere são as
menores, no sentido de mudança, tanto de visão de mundo como de atitudes.
O último elemento elencado por Tolkien (2001) é o consolo. Por conso-
lo, o Autor entende algo próximo do “final feliz”, fim de todos (ou quase todos)
os contos de fada modernos. A diferença, reside em dois pontos principais: o
consolo das estórias de fadas ocorre de forma mirabolante, quando tudo o mais
parece estar perdido; e as estórias de fadas não tem um “final” propriamente
dito. No que se refere ao primeiro aspecto, Tolkien (2001, p.77) nomeia este fi-
nal surpreendente de “eucatástrofe”,

uma graça repentina e milagrosa: nunca se pode confi-


ar que ocorra outra vez. Ela não nega a existência da
discatástrofe, do pesar e do fracasso: a possibilidade
destes é necessária à alegria da libertação. Ela nega
(em face de muitas evidências, por assim dizer) a der-
rota final universal, e nessa medida é evangelium,
dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além
das muralhas do mundo, pungente como o pesar23.

Pode-se inferir que este final feliz seria uma forma de esperança, de

22 Traduziu-se do original: “The escapist is not so subserviente to the whims of evanescente fashion as
these opponents. He does not make things (which it may be quite rational to regard as bad) his masters or
his gods by worshipping them as inevitable, even ‘inexorable’. And his oponnents, so easily
contemptuous, have no guarantee that he will stop there: he might rouse men to pull down street-lamps.
Escapism has another and even wickeder face: reaction”.

23 Traduziu-se do original: “a sudden and miraculous grace: never to be counted on to recur. It does not
deny the existence of dyscatastrophe, of sorrow and and failure: the possibility of these is necessary to
the joy of deliverance; it denies (in face of much evidence, if you will) universal final defeat and in so far
is evangelium, giving a fleeting glimpse of joy, joy beyond the walls of the world, poignant as grief”.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 225
crença em algo melhor. Mas não porque o futuro já está certo e estabelecido; as
adversidades estão sempre presentes nas narrativas, o que faz com que os perso-
nagens não se acomodem e lutem por seus objetivos.
No que se refere à ausência de final, Tolkien (2001) explica que as estó-
rias de fadas, na verdade, são narrativas atemporais, no sentido de não terem um
tempo predeterminado e preciso. O que tais estórias possuem são o que ele cha-
ma de molduras, de forma a delimitar seu início e fim narrativo, mas não o seu
começo e fim efetivo. Mesmo porque, para o referido Autor, as estórias de fadas
estão interligadas entre si, compondo uma verdadeira floresta encantada de estó-
rias que se aproximam.
Trata-se de uma visão holística, segundo a qual tudo está interligado. Se
as estórias de fadas estão interligadas entre si, que falar dos processos judiciais,
narrativas individuais, específicas, mas interligadas pelo grande cenário princi-
pal que é o ordenamento jurídico brasileiro?
Desta forma, procura-se realizar considerações pontuais sobre as possí-
veis contribuições das estórias de fadas para os estudos de Direito e Literatura,
obviamente, não restringindo análises futuras e análises mais aprofundadas. Ve-
rifica-se que os elementos individualizadores deste gênero literário fornecem
grandes possibilidades de pesquisa e inovação no que se refere à propedêutica
jurídica.

4. Considerações Finais

A tentativa de esvair do Direito as matérias que não fossem


estritamente jurídicas culminou no chamado Positivismo Jurídico, que defendia
a purificação da norma, através da exclusão de quaisquer conceitos oriundos das
demais áreas do conhecimento. Tal método mostrou-se falho, vez que não
respeitava as particularidades de cada caso concreto, fazendo com que, não
raras vezes, normas injustas fossem impostas aos cidadãos.
Contra este movimento, insurgiu-se o pós-positivismo, defendendo a
necessidade de interdisciplinaridade para aplicação de uma norma justa e que
atendesse aos interesses populares. Muito se fala da filosofia, sociologia e
mesmo antropologia em âmbito jurídico, mas pouco se fala da literatura –
disciplina apta a despertar o a sensibilidade e o senso crítico do jurista.
O direito na literatura investiga as questões jurídicas que permeiam as
narrativas literárias. Fruto da ação humana, a atividade literária encerra em si

226 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
ideias e significados passíveis das mais diversas interpretações que terão um
impacto sobre a realidade e, independentemente de sua magnitude, poderão ser
abordadas pelo Direito.
Neste diapasão, compreende-se a obra literária como verdadeira
testemunha da realidade social na qual está inserida a realidade jurídica. Os
mais diversificados gêneros literários atentam-se a demonstrar um retrato social
pautado no particular e no específico, permitindo uma abordagem não
normativa do direito.
No que se refere as estórias de fadas, observou-se que seus elementos
primordiais podem ser utilizados como subsídio para relevantes pesquisas
jurídicas, em especial no que se refere aos estudos de Direito e Literatura. A
fantasia, a recuperação, o escape e o consolo presente nas estórias de fadas,
fornecem, cada qual, grandes possibilidades de explorações aos estudiosos desta
área, devendo, portanto, ser visto como um gênero passível de análise pelos
operadores do direito.

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230 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Outra dimensão de legalidade: um retorno a Antígona

Gislaine de Paula*

RESUMO: O presente artigo pretende revisitar Antígona, procurando ler a


tragédia grega como um escrito que traz algo muito próprio do humano. Assim,
a partir da leitura que o psicanalista Jacques Lacan realiza da peça, buscaremos
demonstrar como a jovem Antígona, ao desvelar a condição de precariedade do
humano, aponta para uma outra dimensão de legalidade, a chamada Lei na
teoria psicanalítica, uma instância que vem para indicar que nem tudo é
possível.

PALAVRAS-CHAVE: Antígona; legalidade; Lei.

ABSTRACT: The following article intend to revisit Antigone, reading this


Greek Tragedy as a literary composition that introduces something particularly
human. Thus, beginning with Jacques Lacan’s reading of the play, we will aim
to demonstrate how the young Antigone, by disclosing the human’s precarious
condition, points towards another dimension of legality, the so-called Law in the
psychoanalytic theory, an instance which comes to indicate that not everything
is possible.

KEYWORDS: Antigone; legality; Law.

1 PARA LER A TRAGÉDIA GREGA

Não é de hoje que Antígona é trabalhada nos cursos de Direito.


Geralmente, é citada para ilustrar um conflito entre o Direito Natural e o Direito
Positivo. Bom, pensamos que esta é uma leitura um pouco empobrecida dessa
tragédia, como se as ações da jovem Antígona se reduzissem a um apelo às leis
eternas imutáveis dos deuses em contraponto às leis da cidade, destacando a
superioridade das primeiras com relação às últimas, simplesmente por serem

* Graduada em Direito pela UFSC. Mestranda em Teoria, Filosofia e História Direito na Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 231
leis divinas e a elas dever-se naturalmente certo grau de obediência.
Para além do choque entre direito e moral, costumes familiares e leis
positivas, nos parece que há outros meandros na tragédia de Sófocles, há algo
de um “mal-estar” aí. Logo, a partir da leitura da peça que Lacan realiza no
Seminário 7 de seu ensino, tentaremos demonstrar que Antígona vem apontar
para outra dimensão de legalidade, fundada na condição de precariedade do
humano.
A função da tragédia é mostrar aquilo que é próprio do humano.
Segundo Nicole Loraux, para que a tragédia grega, nascida na democracia
ateniense, se tornasse atual para nós fez-se necessário que não fossem tratadas
questões estritamente políticas. Desse modo, a atualidade do gênero trágico
ateniense é acompanhada de uma tendência à inatualidade, no sentido de que a
cena trágica é capaz de exceder os limites temporais, ultrapassando sua época,
que se manifesta no fato “de ainda [hoje] podermos ser espectadores da
tragédia” (LORAUX, 1992, p. 17-18)
Para a autora, ao submeter o herói a um “padecer”, a tragédia acaba por
reduzir a distância entre o homem ordinário – os espectadores – e o humano de
exceção – o herói –, isto é, entre a condição mortal e toda a guinada heroica. É
um jogo mortal para realizar tal equacionamento, um jogo de assassínios que
servirão para demonstrar que o herói não passa de um humano comum. (Ib., p.
27)
Todavia, não se trata de uma mera identificação do espectador com os
protagonistas da tragédia. Para Loraux, o drama coloca os espectadores como
seres ativos, ou, ao menos, atentos ao que lhes é proposto de forma tal que às
vezes causa mal-estar: “um universo onde, sobre si mesmo, aprende-se mais
com o inimigo do que com o amigo, porque o terrível e a morte são os lugares
obrigatórios do humano” (Ib., p. 31).
Consoante Jeanine Philippi, a cena trágica vem substituir os ideais
políticos – que procuram moldar o sujeito – para desvelar uma humanidade
precária, mortal e cercada por limites inerentes à sua própria condição. “Na
tragédia, a humanidade é enunciada, metaforicamente, como resultado de uma
perpétua tensão do homem mal consigo mesmo e com os outros, mas que,
apesar dessa agonia, permanece estranho a tudo aquilo que não é humano.”
(PHILIPPI, 2001, p. 72)
Em Antígona a dimensão de precariedade do humano se demonstra de
forma dramática. Mas é justamente a partir deste desvelamento radical que o

232 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
texto trágico irá trazer uma referência a uma compreensão de lei marcada pela
falta, a lei como metáfora para um limite. (Ib., p. 73) Vejamos, então, o drama
da jovem.

2 A CENA TRÁGICA DE ANTÍGONA

Antes de colocar Antígona em cena, é importante destacar ela é filha de


Édipo, personagem que, carregado por um destino do qual não pôde fugir,
assassinou o pai e se casou com a própria mãe, tendo com ela quatro filhos.
Descobrindo a verdade de seu terrível delito, cegou-se e passou a vagar sem
destino. Édipo Rei é uma peça que não passou despercebida à psicanálise, Freud
criou seu “complexo” ao redor da tragédia tomada como mito. Mas, a proposta
agora não é analisar o Édipo, e sim o destino trágico que marcará seus filhos por
conta de seu crime primordial.
Os dois irmãos varões de Antígona, Etéocles e Polinices, morrem pelas
mãos um do outro. Etéocles lutava pela cidade de Tebas, pela justiça e pela lei.
Polinices, no entanto, lutava contra a cidade. A tragédia começa quando
Creonte, tio de Antígona e herdeiro legítimo do trono, dá a Etéocles um funeral
digno, com todos os ritos sagrados que chegam ao além, enquanto que proclama
que os cidadãos tebanos deixem o corpo de Polinices sem sepulcro, para
decompor-se ao ar livre, sem que fosse lamentada sua morte: sua carne seria
bem-vinda às aves de rapina e cães selvagens, “se havia de tornar um espetáculo
vergonhoso” (SÓFOCLES, 1992, p. 47), diz Creonte. Aquele que contrariasse
as ordens do rei sofreria lapidação pública pelo seu crime.
Ao edito do rei, responde o Coro: “Em tuas mãos está a faculdade de
usar das leis, quaisquer que sejam, quer para os mortos, quer para os que
estamos vivos” (Ib., p. 47). Após isto, um guarda avisa a Creonte que alguém
havia tentado dar sepultura ao cadáver abandonado. Ao receber tal notícia, entoa
o Coro: “Senhor, há muito que o meu espírito pondera, se acaso este feito não
será obra dos deuses” (Ib., p. 50). É interessante notar a função do Coro, onde
se confundem espectador e participante das cenas. Segundo Lacan, o Coro se
encarrega de dar o comentário emocional, ele sente no lugar dos espectadores.
“Ele é tolo justo o necessário, ele tampouco deixa de ser firme, ele é mais
humano” que os demais personagens (LACAN, 2008, p. 299).
Neste sentido, o Coro começa a questionar-se sobre a ordem absoluta de
Creonte, e parece avisar: “se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé,

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 233
grande é a cidade; mas logo a perde quem por audácia incorre no erro. Longe do
meu lar o que assim for! E longe esteja dos meus pensamentos o homem que tal
crime perpetrar!” (SÓFOCLES, 1992, p. 53). Creonte, contudo, não demonstra
nenhum sinal de que pretende recuar.
Antígona, então, contrariando o edito do rei de Tebas, tenta dar
sepultura a seu irmão, mas é descoberta e levada à presença de Creonte. Com
veemência afirma que as leis da cidade não tinham o poder de sobrelevar os
preceitos imutáveis dos deuses, que vigoraram desde sempre. Assim, a jovem
entrega-se à morte voluntariamente e diz: “se agora te parecer que cometi um
acto de loucura, talvez louco seja aquele que como tal me condena” (Ib., p. 57).
O filho do rei, Hêmon, ama a jovem e tenta convencer o pai a perdoá-la.
Procurando fazê-lo ceder de sua posição bruta, lhe diz: “Não há Estado algum
que seja pertença de um só homem. (...) mandarias muito bem sozinho numa
terra que fosse deserta” (Ib., p. 70). Creonte não cede: condena a heroína a ser
sepultada viva. Hêmon deixa o pai com a sentença: “Ela morre, mas ao morrer,
causará a perda de alguém” (Ib., p. 71). Creonte, em sua cegueira, não consegue
perceber que não se trata aí de uma ameaça, mas de um agouro.
Antígona, então, antes de ser levada ao túmulo onde será encerrada, fala
diante de Creonte e do Coro, fala como alguém já a caminho da morte; num
misto de doçura com amargor, a donzela já havia desistido do mundo dos vivos.
A heroína dá seu último discurso, mostrando a todos suas razões:
E contudo, eu soube bem honrar-te, aos olhos dos que pensam bem.
Pois nem que eu fosse uma mãe com filhos, nem que tivesse um marido que
apodrecesse morte, eu teria empreendido estes trabalhos contra o poder da
cidade. Mas em atenção a que princípio é que eu digo isto? Se me morresse o
esposo, outro haveria, e teria um filho de outro homem, se houvesse perdido
um. Mas estando pai e mãe ocultos no Hades, não poderá germinar outro irmão.
Por eu ter preferido honrar-te, devido a este princípio, é que apareci aos olhos
de Creonte como culpada e ousada, ó meu caro irmão! E agora ele tem-me nas
suas mãos, e leva-me, privada de tálamo, privada do himeneu, sem me terem
tocado em sorte os esponsais nem a criação de filhos, mas vai esta infeliz,
abandonada pelos amigos, ainda viva para o sepulcro dos mortos. (Ib., p. 78)
Após a saída de Antígona, Creonte é advertido do mal de sua decisão
por um adivinho cego, Tirésias. Segundo ele, seu conselho causava enfermidade
ao Estado, todos os altares e braseiros estavam poluídos pelas aves e cães que
haviam comido a carne de Polinices. Tirésias lhe diz: “a teimosia merece o

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nome de estupidez. Anda, cede diante do morto e não batas num cadáver” (Ib.,
p. 82)
Creonte finalmente decide ceder. Arrepende-se e vai até a sepultura de
Antígona para libertá-la. Porém, antes de ir até sua caverna infernal, dá as
honras fúnebres a Polinices. Chegando ao local onde a jovem havia sido
encerrada vê que ela já havia dado fim a sua vida. Hêmon, seu filho, atordoado
pelo ódio puxa a espada e, não conseguindo atingir o pai, atinge a si mesmo
mortalmente, toma a donzela em seus braços e desfalece.
Ao saber o destino do filho, Eurídice, esposa de Creonte, também retira
sua vida, em silêncio. A tragédia recai sobre Creonte, que havia desobedecido às
leis divinas mais elementares. O Coro avisa-o que deverá, como mortal que é,
ater-se ao destino que ele mesmo havia atraído para si.
Durante toda a tragédia, Antígona é apresentada por Sófocles como uma
heroína corajosa e imponente, chegaria quase a exalar um ar de caridade não
fosse o tom de crueldade que por vezes aparece em sua fala. Antígona fascina o
espectador. Segundo Lacan, ela tem um brilho insuportável, que retém o
público, ao mesmo tempo em que intimida, esta vítima voluntária desnorteia
(LACAN, 2008, p. 294).
Seu brilho, continua Lacan, é extraído do lugar que ocupa no entredois
de dois campos simbolicamente diferenciados. Trata-se do “destino de uma vida
que vai confundir-se com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada,
morte invadindo o domínio da vida, vida invadindo a morte” (Ib., 2008, 295). É
justamente desse entremeio que Antígona brilha e causa o fascínio, empresta
seu corpo para marcar a tenuidade da linha que separa vida e morte.
Creonte, por sua vez, movido por seu desejo, sai de seu caminho e
procura romper os limites, tentando atingir Polinices para além daquilo que lhe
é permitido atingí-lo. O que o rei de Tebas quer é golpear o inimigo da cidade
com uma segunda morte, que não tem o direito de infringir-lhe. (Ib., p. 302) É aí
que Creonte se perde, e seu destino vem lembrar-lhe o preço de transpor os
limites.
Uma observação importante é que Antígona e Creonte não parecem
conhecer nem a piedade nem o temor. No entanto, até o final da tragédia a única
que ainda vai continuar nesta posição é Antígona. É por isso, diz Lacan, que ela
é a verdadeira heroína, enquanto que Creonte deixa-se tocar pela piedade, o que
é sinal de sua perda. (Ib., p. 305)
Segundo Nicole Loraux, as personagens trágicas parecem inumanas,

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 235
tendo em vista sua vontade inflexível. Antígona não recua diante da morte, não
dobra sua vontade a mortal nem ser divino nenhum, ao contrário de Creonte,
que irá recuar diante dos maus auspícios dos deuses. A lógica trágica, porém,
afirma a autora, exige justamente que de forma inflexível eles exerçam a
essencial mortalidade do homem. (LORAUX, 1992, p. 26)

3 OUTRA DIMENSÃO DE LEGALIDADE

Há diversos debates que podem ser suscitados a partir da tragédia de


Sófocles. Mas o que se quer salientar aqui é a dimensão de legalidade para a
qual Antígona aponta. Há um trecho na peça, o qual já foi destacado mais
acima, em que Antígona coloca o motivo de seus atos. Segundo a jovem, ela só
contrariou os editos do rei pelo seu irmão, não o teria feito por um filho ou
marido, pois poderia casar-se novamente ou ter outro filho. Seu irmão, contudo,
é este ser precioso, insubstituível. É interessante demarcar que esta passagem é
considerada por alguns comentadores como uma interpolação que perturba o
sentido do texto. É como se este trecho saltasse para fora do texto, logo diante
dos olhos do espectador (ou leitor), acabando com qualquer espírito de
benevolência que se pudesse ver em Antígona: a questão primordial não está em
fazer valer a lei dos deuses perante as leis da cidade.
Segundo Lacan, não se trata de um direito que vem se opor a um outro
direito, mas de uma iniquidade que se contrapõe àquilo que Antígona
representa. Isto é, a tragédia não diz respeito simplesmente aos direitos sagrados
de um morto e sua família, e nem à santidade da donzela. Para o psicanalista,
Antígona age guiada por uma paixão. (LACAN, 2008, p. 302)
Creonte, em sua lei insensata, soberana, não percebeu que transborda,
ultrapassa o limite, limite este que Antígona defende. Visando o bem da Cidade,
o bem de todos, Creonte edita sua lei. E o bem, diz Lacan, “não poderá reinar
sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas consequências fatais nos
adverte a tragédia” (Ib, p. 306).
Em Antígona, portanto, se trata de um limite no qual a jovem se apoia,
onde se sente inatingível, um ponto onde nenhum mortal pode passar por cima
das leis. Neste momento não se trata mais de leis, mas de uma certa legalidade
consequente das leis dos deuses – a Lei. O irmão de Antígona é esse algo único,
ele é o que é, e é somente isso que motiva sua decisão de contrariar os
mandamentos do rei. “Antígona não evoca nenhum outro direito senão este, que

236 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
surge na linguagem do caráter indelével do que é – indelével a partir do
momento em que o significante que surge a detém como uma coisa fixa através
de todo o fluxo de transformações possíveis.” (Ib., p. 329)
Assim, Antígona se posiciona nesse limite radical que está para além de
todos os conteúdos, daquilo que seu irmão pôde ter feito de bem ou de mal: ele
mantém seu valor de ser. Este valor, segue Lacan, é essencialmente a
linguagem, nada mais é que o corte que a presença da linguagem instaura na
vida humana. É este corte significante que confere ao ser humano o poder
intransponível de ser o que é, contra tudo e contra todos. (Ib., 331, 333)
Neste sentido, segundo Jeanine Philippi, encontra-se, em Antígona, uma
outra compreensão de legalidade. Para além do poder do tirano e de suas
normas,
Antígona expõe este desnudamento radical do homem. Ela conhece a
precariedade da existência humana e, através desse saber, explicita uma forma
singular de articular o efeito da experiência da falta – uma lei que a tradição
jurídica do ocidente tentou, avidamente, revogar... (PHILIPPI, 1992, p. 75)
Esta outra dimensão de legalidade é explicitada na teoria psicanalítica
de orientação lacaniana, e é representada pelo significante “Lei” – com “L”
maiúscula – em contraposição às leis do direito. A Lei, então, pode ser
compreendida como aquilo que coloca os sujeitos, enquanto seres falantes, no
laço social. Está relacionada à linguagem, à falta fundante do humano, e é o que
torna possível a convivência dos homens porquanto opera como limitação ao
gozo de cada um deles em relação aos demais. É esta instância que vem para
dizer: nem tudo é possível. E é só a partir disso que algo é possível, que somos
livres para construir nosso próprio destino.
Neste sentido, enquanto por Lei, com maiúscula, podem-se entender as
leis da humanização, da linguagem; a lei, com minúscula, refere-se àquelas
normas que foram construídas pelo homem, as leis da Cidade, as leis escritas. É
esta distinção que pode ser entrevista na tragédia de Sófocles.
A Lei vem mostrar, portanto, que há um ponto de basta, um ponto para
além do qual não se pode ir. Patrick Guyomard coloca isto de forma
interessante: há uma distância entre o que é proibido, estando escrito em uma
lei, e o que não se ousa proibir, porque não se ousa nem mesmo pensá-lo.
(GUYOMARD, 2007, p.7) A Lei, pois, mais do que um grande interdito, traz
uma impossibilidade. Jean-Pierre Lebrun afirma que “não há meio de conceber
um sujeito sem essa inscrição [da Lei] de um menos-de-gozar; mas tampouco

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 237
conceber qualquer via coletiva sem uma perda na qual deve consentir cada um
dos membros do coletivo.” (LEBRUN, 2008, p. 144)
Não obstante o conflito entre a Lei e as leis que é mostrado em
Antígona, estas últimas deveriam chegar o mais próximo possível daquela – no
sentido de não perder de vista a dimensão de falta própria do humano. Segundo
Patrick Guyomard, o domínio da ética é aquele que implica a responsabilidade
na interpretação e aplicação das leis, é o que permite não as relativizar, mas
situá-las, referi-las a outra coisa, podendo, em alguns casos, julgá-las injustas. É
justamente a ética, segundo o autor, que irá permitir que haja uma relação entre
a Lei e as leis. Assim, por exemplo, se há uma tentativa de interpretação
perversa da lei, usando suas carências, obscuridades ou sua própria letra contra
seu ‘espírito’, é a ética que permite desmascarar esta tentativa. (GUYOMARD,
2008, p. 45)
Levar em conta a Lei, portanto,
Evita o que se poderia chamar de legalismo, ou seja, a obediência, o
respeito à lei pelo respeito à lei, todas as formas administrativas de obediência,
de assujeitamento, o que evacua completamente a responsabilidade individual
de cada um, como se bastasse obedecer à lei para estar em regra com qualquer
questão de responsabilidade. (Ib., p. 4)
É isso que se pode colher a partir de Antígona: outra compreensão de
legalidade, aquilo que nos constitui como humanos que somos. A questão que se
deixa para reflexão é até que ponto o Direito contemporâneo leva isto em
consideração.

4 PONTO DE PARTIDA DE ANTÍGONA; PONTO DE BASTA

No presente texto revisitamos a tragédia de Sófocles, Antígona,


procurando trazer uma discussão que geralmente não é traçada quando se
apresenta a peça nos cursos de Direito. A ideia de que o drama simplesmente
apresente um embate entre direito natural e direito positivo, que pode
transparecer em uma primeira leitura, diminui em muito as possibilidades de
interpretação dessa obra curta, mas com uma profunda densidade.
Há variados elementos que poderíamos destacar: a morte dos irmãos
advindos de uma relação incestuosa, as nuances do Coro, a teimosia e
insensatez de Creonte, o amor autodestrutivo de Hêmon, a podridão do corpo de
Polinices e mesmo o silêncio cortante de Eurídice. Isso tudo faz a peça ser

238 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
envolvida por um enorme mal-estar, e o que se sobressai é o brilho de Antígona,
jovem inabalável que decide ainda viva tomar o partido do mundo dos mortos.
Como disse Lacan, a donzela agiu movida pela paixão. O trecho em que
justifica seus atos é o ponto chave para a interpretação que se busca dar aqui:
ela não o faria por qualquer ser amado. O irmão é esse ser que lhe falta, é por
ele que ela escolhe ficar entre os dois mundos, é o que faz com que, ainda viva,
seja dada como morta. É a partir da inscrição da Lei que Antígona é capaz de
seu ato, e de, contra qualquer objeção, emprestar seu corpo para mostrar de
forma radical que nem tudo é possível.
Por fim, é isto tentamos demonstrar a partir de Antígona: uma dimensão
de legalidade que vai além dos decretos e do poder soberano, a Lei que funda o
humano como tal, o ponto de basta para além do qual não há mais humanidade.

5 REFERÊNCIAS

ALVES, Marcelo. Antígona e o direito. Curitiba: Juruá, 2007.

GUYOMARD, Patrick. A Lei e as leis. In: ALTOÉ, Sônia. A Lei e as leis –


Direito e
Psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 2007.

LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2008.

LEBRUN, Jean Pierre. A perversão comum: viver juntos sem o outro. Rio de
Janeiro: Campo Matêmico, 2008.

LORAUX, Nicole. A tragédia grega e o humano. In: NOVAES, Adauto. Ética.


São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

MELMAN, Charles. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de


Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei: uma abordagem a partir da leitura cruzada


entre direito e psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 239
SÓFOCLES. Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

240 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
A modernidade jurídica e o jusnaturalismo moderno: a
superação da experiência medieval e a constituição de
um novo paradigma

Felipe de Farias Ramos*

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo indicar a relação da doutrina


contratualista – aqui visceralmente ligada ao jusnaturalismo moderno – com o
processo de centralização do Estado durante a Idade Moderna, apontando que
tal movimento, fungível do ponto de vista político, é um dos primeiros passos
para, na penosa superação do direito plural característico do medievo, a
constituição de um direito objetivo e racionalizado, advindo completa e
soberanamente da entidade estatal.

PALAVRAS-CHAVE: História do Direito, Contratualismo, Direito Natural,


Ordem Jurídica Medieval. Modernidade.

ABSTRACT: This article aims to indicate the relation of Contractualist theory


– this doctrine is intrinsically connected to the modern Natural Law – with
process of centralization of the state during Modernity. Then, here we point out
that movement, fungible in political terms, contributed to - considering the
painful overcoming of plural Law, typical in Middle Ages - the establishment of
a streamlined and objective Law, that arises from the state entity, completely
and sovereignly.

KEYWORDS: Legal History, Contractualism, Natural Law, Medieval Legal


Order. Modernity.

INTRODUÇÃO

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Teoria, Filosofia e História
do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGD/UFSC). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica: Ius Commune
(CNPq/UFSC). Assessor correicional da Corregedoria-Geral de Justiça do TJSC.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 241
A chamada Idade Moderna – compreendida, linhas gerais, entre os
séculos XV e XVIII – é vista como período histórico em que, no campo
político, a entidade estatal toma efetivo corpo, vindo a desenvolver-se e
centralizar-se numa espiral ascendente. Consequência desse processo é a figura
do Estado Moderno, construção teórica que, num primeiro momento, se
relaciona com o absolutismo monárquico, no qual a figura do rei toma para si o
poder político, enfeixando em suas mãos tarefas que, reflexo direto do que se
hodiernamente entende por soberania, variavam entre o comando do exército, a
distribuição de justiça, o decreto da legislação, a arrecadação de tributos etc.
O presente artigo tem por fim indicar que esse caráter absoluto com que
é desenhada a figura estatal da época – nas oscilações que encontrou segundo
variações de tempo e lugar durante aqueles três séculos – não tem arrimo, no
exagero com que inadvertidamente é talhado, nas fontes históricas.
Mais do que isso: tencionam estas linhas apontar, diante de um quadro
sociopolítico desfavorável à penetração do ente estatal, para o papel da doutrina
contratualista nesse esforço levado a efeito pelo grande Leviatã para
efetivamente fazer-se presente na realidade político-social da época, para a qual
ele era figura absolutamente estranha - excêntrica mesmo para os padrões então
vigentes.
Assim, quer este trabalho enxergar na doutrina específica de Hobbes e
Locke – verificação perfeitamente transponível para autores contratualistas
como Grotius, Pufendorf ou Rousseau (evidentemente que, em cada um deles,
em maior menor medida) - certa “estratégia política” (acentuada, aqui, em seu
teor) que acaba por justificar teoricamente a figura do Estado perante a longa
tradição medievalista que em nada lhe era favorável, processo este que mais
tarde haverá de possibilitar a constituição de um direito embasado somente na
vontade legislativa estatal, traço central da Modernidade Jurídica.
Se, num campo mais estrito, o intento deste pequeno trabalho desenha-
se pontual (isto é, revelar como o discurso da doutrina contratualista serviu
historicamente às pretensões do Leviatã no seu movimento de consolidação
durante a Idade Moderna), vistas em maior escala, estas páginas pretendem
alinhar-se com determinada postura epistemológica que, desconfiada da
neutralidade dos conceitos, visa a mostrar o papel político por eles
desempenhado, indicando ainda como as interpretações que são feitas de tal ou
qual teoria, longe da imparcialidade, têm, sim, direta relação com os interesses
postos em jogo no conflito político social.

242 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
1 DESENVOLVIMENTO

1.1 O jusnaturalismo moderno e a varredura da ordem jurídica medieval

O processo de centralização do poder ocorrido durante a idade


moderna1, somente quando encarado de forma idealizada, pode ser enxergado
como uma tarefa de fácil execução. Não é todo desarrazoado dizer que o quadro
social e político legado pela Idade Média – que vai perdurar na Europa, segundo
variações geográficas, até o século XVIII 2 – em nada colaborava com as
pretensões de um Estado que se pretendia absoluto e supremo perante o quadro
social de então.
O primeiro dado que merece menção é a precariedade do aparelho
institucional com que, naquela época, contava a entidade estatal. A imprensa
ainda incipiente3, a grande distância entre a corte e as províncias (sobretudo as
1 Processo este do qual a Revolução Francesa, longe de ser uma ruptura, representa verdadeiro apogeu: “A
própria centralização foi o sinal e o começo da revolução. E acrescentaria ainda que, quando um povo
destruiu a aristocracia, ele persegue, por si próprio, a centralização. Nessas circunstâncias, é preciso
muito menos esforço para precipitá-lo sobre este plano inclinado que para impedi-lo de cair. Em seu seio,
todos os poderes tendem naturalmente para uma unidade e só com muita habilidade se pode mantê-lo
divididos. A revolução democrática embora destruísse tantas instituições do antigo regime, deveria,
deste modo, consolidar a centralização, pois esta encontrava seu lugar de modo tão natural na
sociedade que a revolução havia criado que se poderia tomá-la facilmente como uma de suas obras”.
(TOCQUEVILLE. Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Os pensadores. trad. Leônidas
de Gontijo de Carvalho et al. Seleção de textos de Francisco C. Weffort. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural.
1979, pp. 342-343, grifo nosso).
2 É o caso de países da Península Ibérica, em que, por força da tradição da Igreja Católica (refratária aos
ideais liberais), tardou a chegar o pensamento fundante dos movimentos revolucionários que invadiram
Inglaterra e França durante os séculos XVII/XVIII. Nesse sentido, admoestação de PEREZ VALIENTE
endereçada a acadêmico de Valência em 1749: “Tambíen tú debes conmoverte y destruir esa falsa
opinión publicando tus libros, cuyo estilo es tan elegante y adaptado a las reglas de la verdadera
latinidad, que me parece Haber leído los escritos de Ciceron sobre las leyes. Enriquecidos de ellos,
nuestros españoles no tienen por qué envidiar su Gravina a los italianos y su Hugon a los franceses. No
hablo de Pudendorf y Hobbes, que escribieron de derecho natural y de gentes no para enqirquecimiento
de la relublica, sino para su perturbación e subversion, ni de quien há escrito em estos últimos años um
libro titulado De l’esprit d´lois (El Espíritu da Las Leyes), del que no se te oculta cuáles y cuan grandes
errores lo llenan y que, buscado com avidez e aplauso, podrá penetar em nuestras fronteras no sin
detrimento de nuestros costumbres” (PÉREZ VALIENTE. Pedro José. Derecho Público Hispânico.
Madrid: CEC, 2000, p. 38).
3 LADURIE, não é à toa, vai indicar a forma por que a mídia, à época escrita, teve papel importante nas
atividades de que se valeu a Monarquia no processo de penetração social: “As novas mídias sustentam a
difusão de um saber universitário, colegial e mesmo primário; ele é indispensável para a formação dos
funcionários da categoria; e para a dos agentes modestos, às ordens do Estado ou das comunidades. O
número desses homens, nos mais diversos níveis, vai aumentar. [...] Certas necessidades são irredutíveis:

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 243
ultramarinas), a falta de representantes do soberano nas localidades 4, e a própria
ausência de um aporte financeiro apto a respaldar o fortalecimento estatal, tudo
isso fazia do rei alguém distante, de limitado poderio frente a instituições que,
tradicionais, tinham seu vigor embasado no longo costume advindo do
Medievo.
A pluralidade de ordenamentos espraiados por toda a Europa de então 5 –
consequência, também ela, da tradição medieval – fazia por atrapalhar o direito
pretensamente posto pelo rei através das nada sistemáticas ordenações.
De fato, a precariedade dessa forma de legislar (de duvidosa
capilaridade) via-se ladeada pelo direito romano 6, vicejante por toda a Europa
através do movimento da recepção, 7 pela força do direito canônico e
principalmente por um vigoroso direito consuetudinário local – iura propria8 -
a realeza, do século XVI ao XVIII, faz amplo uso do pequeno cartaz com inúmeros exemplares, da
circular e do formulário administrativo, os três saídos das prensas e das oficinas. Não há função pública,
sobretudo real, que não tenha seus impressores, oficiais ou oficiosos”. (LADURIE. Emmanuel Le Roy.
O Estado Monárquico. trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 35-
36).
4 “Por certo, esse monarca e mesmo seus sucessores ou subordinados tiveram a pretensão, por momentos,
à onipotência. Mas, apesar do culto da personalidade que cerca os soberanos e compensa de fato as reais
fraquezas de seu poder, a monarquia clássica permanece objetiva e subjetivamente descentralizada, em
todo o caso nitidamente menos centralizada que os sistemas políticos que a sucederão no século XIX”
(id., ibid., p. 16).
5 Quanto ao conceito de Pluralismo Jurídico, consulte-se: HESPANHA. Antônio Manuel. Cultura
Jurídica Européia: Síntese de um Milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 161. Em
pormenor, já agora numa analise detida da ordo iuris medieval: GROSSI. Paolo. El Orden Jurídico
Medieval. trad. Francisco Tomás y Valiente y Clara Álvarez. Madrid: Marcial Pons, 1996, pp. 50-58.
6 Na experiência portuguesa, observe-se trecho da Lei da Boa Razão (de 18 de agosto de 1769) surgida na
Era Pombalina, em que se bradava contra a tradição romanística ainda vicejante: “mando que as glossas,
e opiniões dos sobreditos Accursio, e Bartholo não possão mais ser alegadas em juízo, nem seguidas na
prática dos julgadores; e que antes muito pelo contrário em hum, e outro caso, sejam sempre as boas
razões acima declaradas [...referia-se antes que seguindo somente meus tribunais e magistrados
seculares nas materias temporaes e de sua competencia as leis pátrias, e subsidiarias, e os louváveis
costumes e estylos legitimamente estabelecidos, na forma que por esta lei tenho determinado...], e não as
auctoridades daquelles, ou de outros semelhantes doutores da mesma escola, as que hajão de decidir no
foro dos casos ocorrentes...”. (ALMEIDA, Cândido Mendes de. Ordenações Filipinas, Aditamentos ao
Livro III, Lei de 18/08/1769. Rio de Janeiro, 1870, pp. 725-730. Ver também: id., ibid., Liv. III, Tít.
LXIV, pp. 663-665).
7 Interessante perceber, por outro lado, como o próprio direito romano, em passagens sobretudo advindas
do Império, também foi utilizado pelos teóricos da soberania – defensores de um estado absolutista –
como expediente legitimador da uma monarquia onde o rei seria a lei viva, ou na qual o rei estaria
acima/fora da lei.
8 Confira-se, igualmente, outro excerto da mesma Lei da Boa Razão, agora contra o costume: “e
reprovando como dolosa a supposição notoriamente falsa de que os Principes Soberanos são ou podem
ser sempre informados de tudo que passa nos foros contenciosos em que transgressão das suas leis, para
com esta supposição se pretextar a outra igualmente errada, que se presume pelo lapso do tempo o

244 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
que dava suporte às ordens locais.
Em seus rigores, esse direito local, embasado na tradição feudal,
mantinha de pé os privilégios estamentais sempre avessos ao reconhecimento de
uma normatização alienígena, descompassada com aquilo que, então, era
entendido por Direito.
Realmente, a própria concepção de direito então vigente em nada
colaborava com o programa de instalação da entidade estatal. É que, longe de
ser expediente de modificação do status quo, o direito, como legado pela Idade
Média, é entendido como reflexo de uma ordem natural predeterminada 9, como
algo que deve espelhar o que já está disposto naturalmente no campo social. O
dever-ser, em termos mais atuais, devia então identificar-se com o ser, de forma
que a atuação do monarca, sempre pontual, teria de limitar-se aos casos em que,
por alguma razão, aquela ordem predeterminada fosse acintosamente
desobedecida.
Assim – identificando o direito com uma natureza manifestada pelo
social –, a concepção medieval de direito reservava à atuação real aplicação
para os casos de desordem, de ameaça àquela ordenação preestabelecia. Direito
bom, então, era sinônimo de direito tradicional, cabendo ao rei medieval o papel
do juiz conservador da ordem jurídica advinda de uma sociedade regrada
natural e espontaneamente10.
Tal concepção do direito – que, prolongando-se, ultrapassa a Idade
Média – fazia por barrar as pretensões de um ente que, trazendo consigo
propostas absolutamente inovadoras, ainda não tinha aporte na tradição, nem
naquilo que, entendido como estabelecido espontaneamente de forma natural, se
dava no bojo social.
consentimento, e approvação, que nunca se estendem ao que se ignora; sendo muito mais natural a
presumpção, de que os sobreditos Príncipes castigarão antes os transgressores das suas leis, se
houvessem sido informados das transgressões dellas nos casos ocorrentes” (id., ibid., pp. 725-730; pp.
663-665).
9 Nesse sentido, nos aconselhamentos ao príncipe quanto ao modo por que se deve governar, Saavreda
Fajardo, após indicar que a multiplicidade das leis é muito danosa à República e que a complacência
seria uma qualidade do monarca diante do castigo a ser imposto ao súdito, lecionara: “se pudieran
remediar los dos excesos dichos: el primero, el de tantos libros de jurisprudencia como entran em
España, prohibiéndolos; porque ya más son para sacar el dinero que para enseñar, habiéndose hecho
trato y mercancís ls imprenta. Com ellos se confunden los ingenios, y queda embarazado y dudoso el
judicio. Menores daños nascerán de que cuando faltan leyes escritas com que decidir alguna causa, sea
ley viva la razon natural, que buscar la justicia em la confusa noche de las opiniones de los doctores ,
que hacen por la uma y outra parte , com que es arbitraria y se da lugar al soborno y a la pasion ”
(SAAVREDA FAJARDO. Diego de. Empresas Políticas. Barcelona: Planeta. 1988. p. 145).
10 HESPANHA, Antônio Manuel. Opus cit., p. 162.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 245
Por fim, vale citar ainda que o próprio direito derivado do rei – e suas
concepções – não tinha espaço nas academias de então. Vale dizer, a formação
dos juristas da época era calcada não na legislação emanada do monarca, mas
nas antigas fontes romanas – tidas por universalmente aplicáveis. Intuitivo, pois,
que a prática levada a efeito por aqueles de formação jurídica resistisse à
aplicação das Ordenações que, somente mais tarde, tiveram vez nos currículos
das universidades de direito11.
Na precariedade com que era levada ao conhecimento da comunidade
jurídica, principalmente daquela afastada da Corte, a falta de sistematização das
ordenações - verdadeiro depósito da legislação emitida pelo rei - também não
colaborava para formação de um corpo de textos jurídicos que pudesse ser
analisado de modo mais sistematizado, segundo as feições acadêmicas 12
acostumadas até então com a suposta lógica de que dotada a experiência
jurídica canônico-romana.
Destarte, claras parecem ser as dificuldades encontradas em diversos
flancos pelo Estado Moderno para fazer-se efetivamente soberano diante
daquelas concepções que, calcadas na experiência do período medieval,
reduziam as possibilidades de penetração dessa ainda incipiente experiência
político-jurídica.

1.2 A superação da experiência jurídica medieval

Diante desta grande pluralidade de ordenamentos, o embasamento com


que contava o direito tinha variadas faces: poderia ser justificado na tradição, na
história por todos aceita e jamais negada (às vezes elevada em seu status por
eventual ligação que tivesse com os textos romanos); poderia ainda vir de um
11 “De certo modo, o currículo universitário e o apego às fontes tradicionais tenderiam até a desprestigiar,
na prática jurídica e na doutrina, os direitos não letrados, as normas de “polícia” urbana e mesmo o
direito legislado pelos reis. [...] Na Espanha, a resistência passiva das faculdades ainda inviabilizou, por
volta de 1713, o plano de lhes impor o ensino do direito pátrio. [...] Somente nos anos 70, porém, é que
começariam a surgir espaços curriculares próprios para o ensino das leis reais. Na França, a criação das
cátedras correspondentes se deu só em 1679 – não por acaso em pleno reinado de Luís XIV, o ativo rei-
legislador das Ordonnances. Em Portugal, a Universidade de Coimbra ainda rejeitava, em 1623, a
proposta da Coroa de ali se instituir o ensino do direito pátrio. A matéria só foi introduzida em 1772, ou
seja, no mesmo período em que o corpo docente tradicionalista era desmantelado pela Reforma
Pombalina”. (SEELAENDER. Airton Cerqueira Leite. O Contexto do texto: notas introdutórias à história
do direito público na idade moderna. Seqüência: estudos jurídicos e políticos. Florianópolis: Fundação
Boiteux. Ano XXVII, n. 55, dez. de 2007, pp. 257-258).
12 Panorama esse que, relativizado, contudo, em países como a França, se revela pontual em Portugal, na
Espanha e nos territórios alemães onde vicejara o movimento da contrarreforma.

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direito natural ainda ligado à religião; ou então poderia ter por estribo a própria
ordem local em seus privilégios ratificados pela experiência feudal.
Nesse passo, algo é certo: somente de forma subsidiária é que poderia
um jurista tradicional da época conceber que o direito tivesse por sustentação a
lei posta pelo monarca. Ou seja, a própria fundamentação do direito –
majoritariamente ao largo do legislado pelo soberano – tinha por fonte
instâncias outras que não a vontade do rei, o que sobremaneira impedia que o
direito dele advindo superasse aquelas outras ordens jurídicas 13.
E é justamente nesta luta por saber quem é que dá sustentação ao direito
– se o costume/tradição/história, ou se o direito emanado pelo monarca – que a
doutrina contratualista, partindo do jusnaturalismo moderno 14, exerceu
importante papel em favor dos interesses do ente estatal, que, como se viu,
ainda se defrontava com os ordenamentos consuetudinários que então se
espraiavam por toda a Europa.
Ora, ao conceber a existência de um direito naturalmente existente –
deveras divorciado de um chão historicamente verificável 15 –, o contratualismo
enquanto teoria política – nas gradações existentes em cada um dos autores
daquela corrente – fez justamente por estabelecer que nenhuma outra
sustentação fática pode ter o direito senão o ordenamento estatal em si
considerado (com a observação de que a função dele seria o resguardo do
direito natural).
Vale dizer, é a partir do contratualismo que o Estado – entendido em
maior ou menor medida como ente artificial criado por um consenso existente
13 Conturbada, nesse sentido, a já indicada relação existente entre o costume e o direito posto pelo
soberano. Afinal, – inapto a suplantar as práticas consuetudinárias o poderio monárquico - mantinham-se
elas de pé por sua força própria? Ou, era por concessão do monarca que elas subsistiam? a resposta que
se pretenda dar a dito questionamento terá direta relação com a concepção – se alinhada a concepções
realistas, ou não – que se tenha da realidade jurídica de então.
14 Se o caráter laico - para além da célebre frase de Grotius, conforme a qual continuaria o Direito Natural a
existir: “[...] mesmo quando Deus não existisse” (GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz.
Coleção Clássicos do Direito Internacional. trad. Círio Mioranza: Ijuí, 2004, pp. 39-40. Tomo I) - não é
incontroversamente uma marca capaz de apartar o jusnaturalismo de que ora se trata daquele
antigo/medieval – já que “o Direito Natural é profano desde nascença, desde Aristóteles” (VILLEY,
Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 648) -, justifica-se o adjetivo “moderno” ao menos como forma de aqui acentuar que,
para o jusnaturalismo de que se cuida, o direito natural pertence ao indivíduo em si, decorrendo deste
último em sua essência, de modo absolutamente despregado de qualquer outra coisa senão da própria
existência individual.
15 De fato, expediente abstratamente concebido, é na figura de espécie de pressuposto teórico que o estado
natural é visto na obra contratualista, conforme se fará vera adiante nas obras específicas de Hobbes e
Locke (ver nota 39).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 247
entre os homens – passa a ser entendido como o único – único! – ente capaz de
fazer respeitar por meio de sua legislação – até mesmo contra a figura do
monarca – o verdadeiro direito pertencente naturalmente aos homens.
Embora advindo da metafísica “natureza humana”, esse direito, cujo
exercício a ninguém pode ser negligenciado, passa a ter por campo de proteção
somente a normatização estatal, e nenhuma outra ordem jurídica pode ser
invocada, seja para confrontá-lo, seja para enunciá-lo. O direito natural passa a
ser protegido exclusivamente por dentro dos textos legais advindos do Estado, e
tudo quanto refuja a este último não goza do status de direito16.
O paradigma sustentado pelos autores contratualistas – ou seja,
existência de um núcleo de prerrogativas advindas da essência própria do
homem, cuja proteção é o motivo da existência da legislação artificialmente
pelos homens -, dito modelo faz por varrer qualquer alinhavo de ordenamento
que busque legitimidade em outra.
Dessa forma, tal arranjo conceitual – ao tonar abstrato o fundamento
último do direito, reservando-lhe proteção apenas através do ordenamento
estatal – acaba por abrir espaço na teoria jurídica para essa legislação estatal,
ainda em estágio inicial naquele momento histórico.

1.3 A fungibilidade do direito natural

Antes de prosseguir, importante firmar neste passo certeira premissa: a


concepção contratualista, permeada que está pelo direito natural, não carrega
consigo necessariamente a defesa de interesses antirrealistas ou (à falta de
melhor designação) protoliberais.
É que, ainda que seja impossível negar o aspeto revolucionário desta
17
teoria , essa concepção serviu de forma ambígua tanto para aqueles alinhados

16 É o que se lê, v.g., do preâmbulo da Constituição Francesa de 3-9-1791, ao vedar que títulos de nobreza,
ordens de cavalaria, corporações ou condecorações pudessem dar base a distinção entre homens, a partir
de então concebidos como iguais – não distintos – em essência (GOEDECHOT. J. [org]. Les
Constitutions de la France depuis 1789. Paris: Garnier, 1993, p. 35).
17 De fato, se comparada às teorizações que enxergam no poder do monarca, simplesmente, a vontade de
Deus, as idéias contratualistas – mesmo as vindas de Hobbes – trazem consigo notável diferencial, na
elaborada concepção artificial do pacto que, entregando ao soberano o poder da espada, se volta à
proteção de direitos naturais (naquele autor, aliás, o plural utilizado não se justifica, porque, em Hobbes,
a esfera de resistência ao soberano com base num suposto direito natural, além de mínima, goza de
pouca relevância prática como se verá adiante). É propriamente esse corte de finalidade – com os olhos
voltados a um Direito que, natural, tem por origem a individualidade mesma do homem – que aparta a
doutrina cá destrinçada das posições teóricas que, então, intentavam justificar o poder político.

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às concepções realistas quanto para aqueles de idéias mais “liberais”. Vale dizer,
firme em que esse arranjo teórico teve certeira participação no movimento de
fortificação da entidade estatal perante as ordens consuetudinárias 18, não é
possível conferir dali posições que rumem necessariamente veredas
antimonarquistas19.
Com efeito, na criação de uma espécie de “tábula rasa política” – parte-
se doravante de um direito natural universalmente válido sem resquícios
histórico-sociais –, o que passa importar não é tanto o conteúdo da ordem
jurídica artificialmente engendrada para proteção daquelas pretensões naturais,
nem a elasticidade destas últimas – daí a defendida fungibilidade 20 -, antes o que
enfeixa relevância é seu caráter de exclusividade para aqueles fins de resguarde
daqueles direitos.
Somente tendo por foco essas premissas, é que se poderão ladear teorias
tão antípodas como a de Hobbes e a de Locke, cabendo aqui algumas
comparações pontuais a fim de estabelecer as discrepâncias existentes entre a
posição de ambos os autores.

1.3.1 Um pacto de conteúdo vário, uma só consequência jurídica

A fim de indicar de modo mais preciso o que está neste ponto sendo
exposto, serão aqui indicados alguns aspetos que, na obra de dois conhecidos
autores igualmente contratualistas - Hobbes 21 e Locke22 –, mostram-se
claramente contraditórios.
O núcleo firme de direitos a respeito dos quais a ninguém, até mesmo
ao soberano, é dado malferir é evidentemente diferente em extensão nos dois

18 Não é outra a interpretação que ora se propõe: enxergar na doutrina contratualista, sim, um movimento
de centralização de poderes em torno da figura estatal, sem ligá-la de forma determinante a pensamentos
políticos pré-determinados.
19 De fato, “Sia l' assolutismo che i suoi oppositori - ceti, città, confessioni - si sono serviti del suo arsenal
e hanno legittimato e criticato l´autorità sempre partendo de ciò che consideravano li ‘diritto naturale’
nella particolare situazione politica. Nè l'ideologia né la critica all'ideologia poterono fare a meno del
topos suggestivo nella ‘natura’” (STOLLEIS. Michael. Storia del Diritto Pubblico in Germania. trad.
Cristina Ricca. Milano: Giuffrè Editore, 2008, p. 351). Como ainda: HESPANHA. Antônio Manuel.
Opus cit., p. 304.
20 id., ibid., p. 341.
21 HOBBES. Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção
Os pensadores. trad. João de Paulo Monteior et al. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
22 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Coleção Os Pensadores. trad. e Jacy Monteiro et al.
São Paulo: Abril Cultural, 2ª ed., 1978.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 249
autores, mostrando-se claramente mais alargado em Locke 23, muito embora seja
impossível desconsiderá-lo, ainda que em seu teor mínimo, em Hobbes 24.
É à proteção desses direitos25 que se presta o pacto firmado entre os
homens – realizado este último não em razão de uma força externa (natureza
humana, vontade divina e quejandos), mas por causa da vontade dos homens
mesmos, de um cálculo racional entre meios e fins 26-27.
Neste passo, parece evidente que quanto menor for a extensão de
direitos naturais maior será o campo de intervenção do soberano; bem assim,
quanto mais terrível for o estado de natureza, mais fáceis parecem ser
justificativas da maior elasticidade do poder sobrenado (sempre tendo por
limite, naturalmente, aqueles prerrogativas inerentes à condição humana 28).
Hobbes, vendo como inato à natureza humana somente o direito à
23 Id., ibid., p. 87.
24 “Há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais,
possa abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o
ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise a algum
benefício próprio”. (HOBBES. Thomas. Opus cit., p. 115). “[...] O consentimento de um súdito ao poder
soberano está contido nas palavras eu autorizo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há
nenhuma espécie de restrição a sua antiga liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me mate não fico
obrigado a matar-me quando ele mo ordena. Uma coisa é dizer mata-me, ou a meu companheiro, se te
aprouver; e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro. Segue-se, portanto, que ninguém
fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem [...]”. (id., ibid., p. 176, grifo no
original).
25 "O fim último, causa dos desígnios dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre
os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o
cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita”. (id., ibid., p. 41, grifo nosso). A
seu turno, em Locke: “Essas circunstâncias [referia-se à incerteza existente no estado de natureza quanto
à fruição dos direitos garantidos pela natureza humana...] obrigam-no [...o homem...] a abandonar uma
condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de
boa vontade juntar-se em sociedade com outros que já estão unidos, ou pretendem unir-se, para mútua
conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo [...note-se aqui a amplitude do conceito...]
propriedade. O objetivo grande e principal da união dos homens m comunidade, colocando-se eles sob
governo, é a preservação da propriedade”. (LOCKE, John. opus cit., §§ 123-124, p. 82, grifo nosso).
26 Id., ibid., p. 72.
27 HOBBES. Thomas. Opus cit., p. 143
28 Em Hobbes, as misérias do estado de natureza - retoricamente descritas para chegar à conclusão de que
em tal condição “não há sociedade” (id., ibid., p. 109) – são aptas, pois, a justificar qualquer eventual
incômodo político que se possa ter perante o soberano: “Mas poderia aqui objetar-se que a condição de
súdito é muito miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles
que detêm em sua mão um poder tão ilimitado. [...] E isto sem levar em conta que a condição do homem
nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em
geral, em qualquer forma de governo, é de pouco monta quando comparada com as misérias e horríveis
calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem
sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança” ( id.,
ibid., p. 151).

250 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
autodefesa, faz derivar todos os outros direitos – incluída aí a propriedade 29 – do
próprio poderio estatal arquitetado por sobre aquele mínimo direito natural. É
certamente esse “exagero” que lhe possibilita, dentro de uma visão
contratualista, defender serem do soberano tão amplos poderes. 30
Aliás, é na doutrina hobessiana – a fazer derivar do soberano
prerrogativas tradicionalmente justificadas pelo costume 31 – que se vê a clara
substituição das ordens consuetudinárias advindas do medievo pelo poder
estatal, na esteira do que defende pontualmente este artigo.
Por sua vez, Locke, em sua tendência protoliberal (vencedora
historicamente, bem se sabe), torna bem mais diminutos e teleologicamente
direcionados32 os direitos enfeixados pelo soberano diante das prerrogativas

29 id., ibid., p. 148.


30 Vale notar o registro hobbesiano, tratando da questão relativa a saber se súditos cristãos devem
obediência a ordens advindas se soberanos que não professem tal fé: “[...] e está fora de controvérsia que
a mesma obediência [...obediência em todas as coisas, espirituais e temporais...] é devida nos assuntos
temporais, até por um súdito cristão, a qualquer príncipe que não seja cristão; [...], então, devemos
resistir aos príncipes, quando não pudermos obedecer a eles? Certamente que não, porque isso será
contrário ao pacto civil. Então, o que devemos fazer? Ir a Cristo pelo martírio. E, se isso parecer muito
duro a alguém, então é certíssimo que ele não acredita de todo o coração que Jesus é o Cristo vivo
(pois, se acreditasse, ele desejaria ser dissolvido, para estar com Cristo), porque fingindo a fé cristã ele
bem será capaz de faltar com a obediência que prometeu submeter-se à cidade”. (HOBBES. Thomas.
Do Cidadão. trad. Renato Jeanine Ribeiro. Coleção Clássicos. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 376,
grifo nosso).
31 Como, por exemplo, a magistratura - o juiz nada mais faz senão “representar” a pessoa do soberano
(HOBBES. Thomas. Opus cit., 1997, pp. 148-149; 192-193), e as condecorações e títulos nobiliários
(id., ibid., p. 149).
32 “Embora os homens quando entram em sociedade abandonem a igualdade, a liberdade e o poder
executivo que tinham no estado de natureza, nas mãos da sociedade, para que disponha deles por meio
do poder legislativo conforme o exigir o bem dela mesma; entretanto fazendo-o cada um apenas com a
intenção de melhor se preservar a si próprio, à sua liberdade e à sua propriedade – pois que nenhuma
criatura racional pode supor-se que troque a sua condição por uma pior – o poder da sociedade ou o
legislativo por ela constituído não se pode nunca supor se estenda mais além do que o bem comum, mas
fica na obrigação de assegurar a propriedade de cada um [...] E assim sendo, quem tiver o poder
legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obriga-se a governá-la mediante leis
estabelecidas, promulgadas e conhecidas pelo povo, e não por meio de decretos extemporâneos; por
juízes indiferentes e corretos, que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis; e a empregar a
força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis [...]” (LOCKE, John. Opus cit.,
§131, pp. 83-84). Neste passo, diante de um legislativo tirânico, cabe, sim, - ao contrário do martírio
aconselhado por Hobbes - a deposição daqueles que se comportam contra os fins perseguidos pelo
estabelecimento do Estado: “[...] sendo o legislativo um poder somente fiduciário destinado a entrar em
ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo
quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram. Porque, sendo
limitado qualquer poder concedido com encargo para conseguir certo objetivo, por esse mesmo objetivo,
sempre que se despreza ou contraria manifestamente esse objetivo, a ele se perde o direito
necessariamente, e o poder retorna às mãos dos que o concederam, que poderão colocá-lo onde o

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 251
mais infladas possuídas universalmente pelos homens desde o estado de
natureza33.
Realmente, ao entender um pouco menos miserável a condição humana
no estágio anterior à estatalidade, 34 a constituição da entidade estatal por meio
de um pacto passa a ser entendida, sem os arroubos hobbesianos, como
ajustadora das inaptidões35 que o estado de natureza possui para fins de proteção
da propriedade, objetivo maior da constituição da sociedade por meio do pacto.
Contudo, também o Locke, propulsor de idéias nada absolutistas36, faz
por apagar a tradição que se ponha para além do poderio estatal, porque em sua
teoria, exatamente nos moldes contratualistas já indicados, tudo quanto não
esteja apoiado no indicado pelo legislativo, poder cuja extensão tem por fim a
proteção do já indicado direito natural (qual seja: a propriedade), não goza de
status jurídico37.

julguem melhor para garantia e segurança próprias.” (id., ibid., §149, p. 93, grifo nosso).
33 “Não é, nem poderia ser [o poder legislativo] absolutamente arbitrário sobre a vida e a fortuna das
pessoas, porquanto, sendo ele simplesmente o poder em conjunto de todos os membros da sociedade,
cedido à pessoa ou grupo de pessoas que é o legislador, não poderá ser mais do que essas pessoas tinham
no estado de natureza antes de entrarem em sociedade e o cederem à comunidade; porque ninguém pode
transferir a outrem mais poder do que possui, e ninguém tem poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou
sobre outrem, para destruir a própria vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem” (id., ibid., §135,
pp. 86-87).
34 Para Locke - longe de constituir-se o estado de natureza como o estado hobbesiano da guerra de “todos
os homens contra todos os homens” (HOBBES, Thomas. Opus cit., 1997, p. 109) - ambos os conceitos
(estado de natureza e estado de guerra) não se confundem (LOCKE, John. Opus cit., §19, p. 41).
35 Pontuando que “O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade,
colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade”, Locke atenta a que no estado de
natureza não há (a) uma lei “estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante um
consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer
controvérsias entre os homens”, sem que exista (b) “um juiz conhecido e indiferente com autoridade para
resolver quaisquer dissensões, de acordo com a lei estabelecida”, na ausência, outrossim, de um (c)
“poder que apóie e sustente a sentença quando justa, dando-lhe a devida execução” (id., ibid., §§124-
126, p. 82).
36 “[...] É evidente que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é, de fato,
incompatível com a sociedade civil, não podendo por isso ser uma forma de governo civil, por que o
objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que
resultam necessariamente de poder cada homem ser juiz do próprio caso, estabelecendo-se uma
autoridade conhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano
que lhe causem ou controvérsia que possa surgir, e à qual todos os membros dessa sociedade terão de
poder estabelecer. Onde quer que existem pessoas que não tenham semelhante autoridade a que
recorrerem para decisão de qualquer diferença entre eles, estarão tais pessoas no estado de natureza; e
assim se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio” (id., ibid., 1978,
§ 90, p. 68). São esses em Locke os desajustes do estado de natureza, pois.
37 “A primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder
legislativo; como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o poder legislativo

252 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
De fato, ao propugnar o caráter supremo do legislativo – sempre
vinculado aos fins por que estatuído o Estado –, logo se percebe que o autor,
também ele, faz por desautorizar qualquer outra espécie de normatividade que
retire sua legitimidade de uma fonte não estatal 38.
Logo se vê, por isso, que, em ambos os autores, o Estado soberano –
fundamentado na proteção do direito natural - é a fonte exclusiva do direito,
posição teórica essa que, sem dúvida, possibilitou ao direito estatal, agora com
sustentação teórico-política, flanco de atuação capaz de fazer frente a toda a
experiência jurídica pré-estatal, a qual, doravante, haverá de ser desconsiderada.

1.4 Um novo quadro político, um novo paradigma do direito

Destruídos eventuais marcos jurídicos histórica e socialmente


determinados anteriores à estatalidade (de fato, o que antecede o ente estatal é a
abstrata noção de um estado de natureza) 39, o contratualismo passou a
possibilitar o pensamento de um novel quadro político, cujos rigores, embora
justificados por uma concepção que entende universais certos direitos, haverão
de ser concretizados numa realidade normativa de ordem absolutamente
contingente, emanada simplesmente do acordo de vontades dos cidadãos, e
derivada diretamente de cada Estado, entidade à época em franca ascensão.
Esse novo paradigma há de possibilitar que cada Estado possa repensar,
a partir de um marco inicial desgarrado de tudo quanto até então era entendido
por Direito, sua própria normatização; o quadro político, a partir de então, é
consiste na preservação da sociedade e, até o ponto em que seja compatível com o bem público, de
qualquer pessoa que faça parte dela. Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da
comunidade, mas sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade uma vez o colocou; nem pode
qualquer edito de quem quer que seja, concebido por qualquer maneira ou apoiado por qualquer poder
que seja, ter a força e a obrigação da lei se não tiver sanção do legislativo escolhido e nomeado pelo
público; porque sem isto a lei não teria o que é absolutamente necessário à natureza de lei: o
consentimento da sociedade sobre a qual ninguém tem o poder de fazer leis senão por seu próprio
consentimento e pela autoridade dela recebida” (id., ibid., § 134, p. 86).
38 id., ibid., p. 90
39 Em Hobbes: “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu tal tempo nem condição de guerra como
esta, e acredito que jamais tenha sido assim no mundo inteiro; [...] seja como for, é fácil conceber qual
seria o gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam
deixar-se cair numa guerra civil” (HOBBES. Thomas. Opus cit., 1997, p. 110). Em Locke: “Pergunta-se
muitas vezes como objeção relevante: ‘Onde estão ou onde estiveram alguns dias esses homens em tal
Estado de natureza?’ Ao que pode bastar por enquanto como resposta que, como todos os príncipes e
governantes de estados independentes por toda a parte do mundo se encontram em um estado de
natureza, claro que o mundo nunca esteve, nem nunca estará, sem ter muitos homens nesse estado”
(LOCKE, John. Opus cit., § 14, p. 39).

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 253
alterado, como exata conseqüência das modificações operadas nas fontes do
direito40.
Com efeito, ao reunir nas mãos do soberano toda a prerrogativa de criar
Direito – mesmo quando tal se encontre limitada pela existência de um “direito
natural”, – mostra-se evidente a sistematização da atividade jurídico-normativa
que o contratualismo implica, porquanto, agora, não há nenhuma outro quid
concreto limitador do direito estatal fora dos contornos legislativos.
Não mais se trata de analisar o fundamento do direito com base em
origens tão contraditórias (ordem estamental, leis fundamentais, costumes etc),
cuida-se em verdade de um novo direito, canal de veiculação tão-só da vontade
soberana única expressada numa lei, tida por completa (fora de suas balizas
concretas direito não existe), objetivamente clara (a ninguém é dado alterá-la
por meio de expedientes interpretativos) e destituída de contradições (afinal ela
é conseqüência da vontade de uma só pessoa 41).
Os meios por que esse processo vai tomar rumo histórico, complexos
nas veredas que virão a ser percorridas, passam pelo movimento de codificação,
pela redução do objeto de conhecimento do jurista (entendido cada vez mais
exclusivamente como a norma posta pelo Estado), pela interligação lógica
operada entre os textos de lei e os conceitos jurídicos (pressuposto de um
sistema fechado em si, destituído de lacunas e contradições), e, for fim, pelo
abandono definitivo do direito natural 42, num arranjo teórico capaz de fazer do
fenômeno jurídico algo visceralmente coligado ao marco da legalidade tão só.
Esse desenrolar histórico certamente não seria possível sem que, neste
40 Veja-se ainda: STOLLEIS. Michael. Opus cit., p. 351.
41 Em Hobbes tal panorama fica claro em: HOBBES. Thomas. Opus cit., p. 210.
42 O papel “limitador” e fundante que, no momento histórico em que Hobbes e Locke publicaram suas
obras (séc. XVII), o Direito Natural exerce por sobre o direito estatal – papel nestas linhas acentuado -,
nem sempre foi encarado de forma tão rigorosa como seria de esperar-se do ponto de vista teórico.
Sobretudo durante no decorrer do Século XVIII, o Direito Natural – em seu teor abstrato e carente de
definição mais segura – não rara vezes foi trazido para dentro do direito estatal por juristas e políticos,
restando-lhe (ao direito natural) papel mais retórico ou filosófico do que propriamente jurídico. Não é à
toa que Bobbio, destrinçando a Escola da Exegese, registrará ser uma marca sua a “inversão das relações
entre Direito Natural e Direito Positivo”, como modo de apontar a circunstância aqui assentada: um
direito natural que, do ponto de vista teórico, deveria estar acima do Direito estatal – os juristas deste
momento histórico seguem a tradição, sem que haja negação dessa base jusnaturalista -, mas que, visto
de mais perto, possui pouco interesse prático. (BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico: Lições de
Filosofia do Direito. trad. Márcio Puygliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995,
pp. 84-85). Também Hespanha adverte que, em meados do já citado Século XVIII, o Direito Natural
temperava o “monopólio” exercido pela lei estatal nas atenções dos juristas, salientando que, nos finais
do mesmo século, o quadro se altera com a “identificação do Direito com os novos Códigos”.
(HESPANHA. Antônio Manuel. Opus cit., pp. 376-377).

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primeiro passo, os rigores contratualistas fizessem superar a tradição jurídico-
medievalista, dando angustos limites ao que, dali em diante, passaria a ter status
jurídico.

CONCLUSÃO

Nas dificuldades de inserção enfrentadas pelo Estado por entre aquela


dificultosa teia dos vários ordenamentos medievais, indicou-se ser o
contratualismo um dos expedientes teóricos que, já no campo concreto das
relações de poder, fez por colaborar para introdução do ente estatal e seu direito
na ordem jurídica de então.
Com efeito, tal corrente do pensamento jurídico moderno fez com que
fosse “varrida” a vasta tradição em que embasada concepção medieval de
direito, possibilitando que a identificação do fenômeno jurídico e lei estatal
ocorresse, mesmo quando, jusnaturalista que é, não viesse a negar
expressamente o direito natural.
Realmente, a partir dessa construção teórica, o Estado vale-se de sua
condição de figura única de protetor dos direitos naturais, de forma que, a partir
de então, só a ele tocará o decisivo papel – jurídico e político – de estabelecer o
que realmente tem o status de direito.
Vale dizer, mesmo que sem negar o jusnaturalismo, foi expediente
decisivo para tal mudança de paradigma, porque apto a colocar em xeque a
tradição costumeira medieval multissecular, colaborando, a seu modo e num
momento inicial, para que o direito pudesse ser pensado a partir de uma fonte
única (a regra estatal).
Mesmo quando estivesse a propugnar limites - mais ou menos amplos -
à pessoa do soberano, é certo que dita doutrina serviu como expediente de
centralização política, pondo fim ao quadro tipicamente pré-moderno.
Os caminhos seguidos pela história são de todos conhecidos, de sorte
que a concepção jurídica vitoriosa nos séculos XIX e XX, em seus
característicos, é marcada por signos inconfundíveis: abandono do direito
natural, recolhimento do jurista ao seu mundo normativo, identidade entre
direito e lei etc. Na base de todo esse processo, porém, vale registrar esse
primeiro momento de concentração político-jurídica propiciado pelo
contratualismo.

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258 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
Verbetes
Pós-colonialismo

Tchenna Fernandes Maso*


Tchella Fernandes Maso**

Termo amplo, e de uso recente nas Ciências Humanas e Sociais, remete


aos processos de descolonização emergentes na segunda metade do século XX.
Seu uso envolve cognição e ação situados temporal e espacialmente, midiado
por teóricos preocupados com as díades colonizador/colonizado e
império/colônia. Nesse sentido, dentre a gama de perspectivas teóricas que
admitem o conceito, os estudos pós-coloniais podem ser compreendidos como a
interpretação das relações multicausais provocadas por essas relações de
dualidade, e em particular pelas analogias de poder subjacentes ao pacto
colonial.
O processo de colonização, associado por muitos teóricos marxistas -
com destaque para Lênin - à expansão do capitalismo às diferentes regiões do
globo, se deu em diferentes ondas. A primeira, como expõe Vandana Shiva, se
deu no processo de dilatação do mercantilismo na América e Ásia no século
XVI e XVII, empreendido por Espanha, Portugal, e mais tardiamente Inglaterra.
Posteriormente, no século XIX, o imperialismo adquiriu contornos mundiais, na
partilha da África e Ásia empreendida por diferentes potências européias. Na
atualidade, afirma-se que uma terceira onda, marcada pela invasão das redes de
consumo em amplitude global, configura-se como um neo-colonialismo 1.
A dominação colonial é caracterizada pela ingerência das grandes
potências no seio político, econômico, social e cultural dos países da porção sul
globo. Estes considerados mais frágeis no que se refere ao protagonismo
exigido pelo projeto da modernidade (poder monetário, intelectual, físico e etc.)
sucumbem à força econômica e militar dos Estados do centro. Isso significa que
se promove um sistema de trocas internacionais mitigado pela exploração

* Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná, atualmente Assessora Jurídica da Relatoria
de Terra, Território e Alimentação Adequada Plataforma Dhesca Brasil.
** Graduada em Relações Internacionais pela Unesp, mestrado em Relações Internacionais pela Unb,
professora assistente de Teoria das Relações Internacionais UFGD
1 Reflexões acerca da globalização como uma nova face do imperialismo capitalista, ou como ampliação
das relações de poder em escala global ver: IANNI, 1995; SHIVA,2001

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primária “dos povos primitivos” em prol do progresso das “sociedades
civilizadas” – Franz Fanon será um dos primeiros autores a apresentar tal
interpretação, bem como criticá-la.
Tendo em vista tal contexto de opressão extensiva, as colônias
libertaram-se do jugo imperial em diferentes momentos históricos e, em sua
maioria, de forma pouco autônoma. América do Norte e Caribe foram as
primeiras regiões a proclamar sua independência, seguida por América Latina –
ainda nos séculos XVIII e XIX. Ásia e África somente no século XX iniciaram
seus processos de alforria, motivados por uma reordenação do sistema
internacional para uma ordem bipolar e passagem da hegemonia britânica para a
norte-americana, no Ocidente.
Enquanto a América Latina substituiu a dominação imperial pela
dependência - como apresentam as teorias da dependência, em particular Rui
Mauro Marini – ainda no século XIX, as colônias africanas iniciaram seu
processo de emancipação há menos de um século. Tal disposição no tempo
impõe conseqüências para o atual estágio dessas regiões, isso porque os latino-
americanos em um processo lento desenvolveram símbolos nacionais capazes
de homogeneizar, minimamente, as populações em torno de um Estado com
território definido2. O caso do continente africano, por sua vez, é mais
complexo: seus processos de independência se deram em um contexto de
periferização da Guerra-Fria, o que gerou conflitos separatistas entre tribos,
antes incólumes, que compartilhavam um mesmo Estado. Ou seja, o processo
de partilha vivenciado entre os povos africanos, significou uma compactação
intensiva da diversidade cultural e social sob um mesmo território, Estado-
Nação – tal fenômeno pode ser observado no presente em meio às guerras civis
características da região.
A partir da contextualização histórica desenhada nos parágrafos
anteriores, torna-se inteligível a condição de criação dos estudos pós-coloniais.
Estes pertencem a um campo amplo e múltiplo de cognição das relações
interno/externo, local/global, a fim de desmistificar a estruturação vinculada a
tais embaraços; são, portanto, estudos de fronteira: entre áreas do conhecimento,
entre grupos étnicos e culturais, entre incluídos e excluídos. As vozes dos pós-

2 Para Weber o Estado Moderno é aquele que detêm monopólio da força legitima em território
determinado. Tal concepção, apesar de restritiva, é importante para compreender a importância do
Estado no projeto de modernidade, bem como o modo como as sociedades se organizaram no interior
dos mesmos: nacionalismo, símbolos patrióticos, idioma comum, cultura partilhada e etc. Mais detalhes
em ANDERSON (1989)

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colonialismo representam, de forma geral, a miscelânea vivenciada pelos povos
do Sul, uma vez que atuam para romper as identidades referenciadas no
eurocentrismo em defesa dos clamores subalternos.
Originado nos estudos literários, o termo pós-colonial referia-se à
tentativa localizada e particular de romper com as cognições trazidas de fora.
De forma ilustrativa, escritores pós-coloniais podem ser associados ao
moçambicano Mia Couto e sua tentativa de desvendar a colonização portuguesa
e as identidades múltiplas daí conseqüentes.
Nas ciências sociais, Franz Fanon merece destaque ao desvendar o
binômio colonizador/colonizado em uma rede psicológica e social de
sobreposição de relações de poder. Fanon, argelino contemporâneo à Guerra de
Libertação da Argélia3, empreendeu em seu livro “Os condenados da terra”
(1961) uma análise de como o colonizado, ao desvendar as teias do poder
imperial descobre os elos de sua submissão. Nesse sentido, o autor lança luz à
internalização do colonizador na identidade do colonizado, reafirmando a
subordinação característica do sujeito argelino – um sujeito que não constrói sua
própria voz e autonomia, pois ao romper com a referência francesa perde parte
de si mesmo.
Apesar destes precursores, a obra considerada fundante dos estudos
pós-coloniais é “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” (1971),
de Edward Said. Nesta o autor inova os estudos culturais ao analisar os aspectos
objetivos, mas principalmente subjetivos, da formação da identidade por meio
das relações de alteridade. Nesse sentido, o EU, oriental, molda-se e adquire
nova cor com o contato com o OUTRO, ocidental. Em tal interação as vozes
não são compartilhadas de forma mútua e horizontal, mas se estabelece um
vínculo hierárquico de imposição dos costumes exógenos. Conseqüentemente
promove-se a padronização do estrangeiro como superior, e o interno como
frágil, tradicional, estabelecendo entre esses agentes uma prática de aculturação
3 A Guerra da Argélia ocorreu em um período turbulento para o Governo francês, já enfraquecido pelo
processo de independência da Indochina (1954), e por agitações na Tunísia (1952) e no Marrocos (1953-
1955), o que depois resultaria na libertação de ambos os países. O conflito armado se deu na forma de
terrorismo e guerrilha, modo encontrado pelos insurgentes argelinos, representados pela Frente de
Libertação Nacional (FLN), para enfrentar a superioridade militar francesa. Por outro lado, como forma
de combater esses movimentos dispersos, o exército francês utilizou-se largamente da captura e da
tortura a fim de obter informações que lhe possibilitassem desmantelar as forças resistentes. Além disso,
a FLN ainda combateu com outras correntes nacionalistas, entre as quais se destaca Movimento Nacional
Argelino (MNA), cujos apoiantes principais eram argelinos que viviam na França. A guerra terminou em
com a supremacia da FLN, que conseguiu por parte do governo francês o reconhecimento da
independencia do país, em 5 de julho de 1962.

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 263
e pasteurização, que invisibiliza uma das vozes, a oriental.
Uma questão central nos estudos pós-coloniais levantada por Said é a
restrição ontológica provocada pela ciência ocidental, uma vez que esta não
permite que o colonizado fale por si. O modo como o olhar dos pesquisadores
sociais limita seu objeto de estudo, tem por conseqüência o esvaziamento da
completude do que se analisa. No caso particular do estudo do orientalismo,
Said afirma: “Investigar o orientalismo é também propor modos intelectuais de
tratar os problemas metodológicos a que a história deu origem, por assim dizer,
em seu tema de estudos, o Oriente” (2003, p. 119). Logo, a normatividade do
pesquisador envolvido com a pesquisa pós-colonial se assenta na necessidade
de lançar luz ao invizibilizado, dar voz ao subalterno e ressignificar conceitos
monolíticos de cunho marginalizante.
Em geral, estes primeiros pensadores pós-coloniais são intelectuais da
elite colonial que tinham contato com as produções européias, muitos estudaram
em universidades do centro, e a partir dessa assimilação refletiam acerca de suas
realidades nacionais - Fanon, por exemplo, associa grande parte de suas análises
ao contato com textos de Sartre. Esse movimento entre império e colônia é
característico da perspectiva aqui delineada, grande parte de seus intelectuais é
fruto dessa formação (filhos de europeus no Sul, ou imigrantes no centro), e seu
ímpeto está em romper com o imaginário eurocêntrico e/ou moderno; é,
portanto, um pensamento híbrido em sua essência, antropofágico.
No cinema, filmes como “Exílios” de Tony Gatlif 4 (2004) ou “Terra
Estrangeira” de Walter Salles (1996) retratam esse sentimento de antropofagia.
A busca por referenciais por parte dos franceses, filhos de argelinos, ou dos
brasileiros rumo à Portugal, exemplificam o sentimento de miscelânia que dá
cor à normatividade do pensamento pós-colonial. Este representa a
sistematização de novos atores (Estado-Nação antes colônias) no cenário
internacional, outros problemas (migrações, etnocentrismos, fuga de cérebros e
etc), com vistas a romper categorizações insuficientes para o momento pós-
colonial, como soberania, nacionalidade, Estado democrático de direito, sujeito
de direito.
Na academia, sob a nomenclatura de pós-colonial subsiste uma gama

4 Uma passagem do filme bastante ilustrativa da questão abordada é: "Es urgente hablar de los ausentes.

Ya es tiempo de hablar de aquellos que se equivocan. Es importante interrogar los ausentes, aquellos
que viven sin democracia en general. Es urgente hablar de los ausentes, de las ausencias... Es urgente
hablar de la libertad... La democracia está siempre volada..."

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variada de autores e perspectivas oscilando entre marxismo, feminismo, pós-
estruturalismo e pós-modernismo. Admite-se que são diferentes epistemologias
e metodologias que compartilham do olhar pós-colonial. Em comum estes
matizes possuem o tempo histórico (pós-colonial) e/ou o local de onde se fala
e/ou objetivo de quebrar com o imaginário do velho mundo. Por exemplo,
Gayatri Chakravorty Spivak, autora indiana, versa o olhar subalterno com a
perspectiva feminista e pós-estruturalista de J. Derrida. Famosa por seu artigo
"Can the Subaltern Speak?”, a teórica busca romper com discursos monolíticos
impostos por estruturas opressivas de imperialismo e patriarcalismo. Hommi
Babha, por sua vez, também de descendência indiana, realiza estudos culturais
por meio de conceitos chave, como hibridismo, mimetismo e ambivalência; sob
a influência de Said, Derrida, Foucault, Lacan, entre outros. Neste ínterim,
Stuart Hall, pensador jamaicano atuante no Reino Unido, analisa a formação de
identidades na pós-modernidade a partir de uma perspectiva pós-gramisciana.
Como se pode observar são múltiplos os locais de fala do pós-
colonialismo: inglês/indiano, ibero/americano, ibero/africano entre outros. Estes
se formam da díade colônia/império, uma vez que é esse invólucro que forma as
identidades culturais. Nesse sentido, por mais que o pós-colonialismo se
configure na busca por rompimento com o velho, admite a centralidade deste na
sua formação. Embora suas origens remontem, predominantemente, ao mundo
de fala inglesa, “el post-colonialismo tiene contribuciones para hacer en el
análises de las realidades sociales, culturales y políticas de calquier parte del
mundo, especialmente cuando el tópico es sobre asimetrías de poder” (Ribeiro,
2005, p.45). De maneira a não perder de vista as potencialidades analíticas e
políticas da abordagem Pós-Colonial e, ao mesmo tempo, buscando
problematizar sua aplicabilidade, Boaventura de Souza Santos propõe um pós-
colonialismo situado, que leve em conta a enorme especificidade de cada
contexto histórico, onde vários colonialismos distintos floresceram, de forma a
compreender as também grandes particularidades dos contextos pós-coloniais
(2001). Em sentido similar, Gustavo Lins Ribeiro afirma a necessidade de
procurar “partir de nuestra posición única [para então] producir narrativas
críticas en sintonía con nuestras localidades, en diálogo heteroglósico con los
discursos de otras localidades del mundo globalizado” (Ribeiro, 2005, p.45).
Partindo destas premissas, a localização do Pós-Colonial na América
Latina acarreta algumas questões preliminares. Em primeiro lugar, um Pós-
Colonialismo ibero-americano, ao invés de um latino-americano, seria uma

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expressão mais precisa e acurada, uma vez que, como já vimos, as relações de
inter-identidades presentes nos regimes coloniais conduzem a uma análise em
que é impossível pensar isoladamente colonizador e colonizado, devido a sua
imbricação um no outro. Em segundo lugar, é preciso ressaltar que os próprios
colonialismos português e espanhol guardam substanciais diferenças entre si,
em decorrência tanto de sua própria constituição como pela diversidade dos
contextos a que se aplicaram. No entanto, a caracterização diferenciada destes
colonialismos envolvem uma série de análises históricas, sociológicas e
discursivas que, por razões óbvias, não serão abordadas aqui. Por fim,
deveremos assinalar a existência de uma grande heterogeneidade no interior do
que poderíamos identificar como Estudos Pós-Coloniais ibero-americanos.
Dentre esses destacam-se os seguintes autores e conceitos: Colonialidade do
Poder, de Aníbal Quijano; Ocidentalismo, de Fernando Coronil; de Geopolítica
do Conhecimento de Walter Mignolo; e Epistemologia do Sul, de Boaventura de
Souza Santos.
Dentre a diversidade intrínseca ao pós-colonialismo algumas
características são comuns ao conjunto de autores situados em diferentes locais
de fala. Para Boaventura de Souza Santos, um dos fundamentos teóricos
principais da abordagem Pós-Colonial é a diluição da fronteira entre a crítica e a
política (2001, p. 31). Reconhecendo as intrincadas relações de saber-poder
subjacentes a toda prática acadêmica, o Pós-colonialismo propõe uma crítica,
um saber, que seja consciente de sua função política, a qual seja: opor-se
radicalmente à assimétrica distribuição global do poder e todas as injustiças que
acarreta. Neste sentido, o intelectual pós-colonial deve trabalhar ativamente na
implosão dos discursos coloniais/ocidentais hegemônicos que, por meio do
discurso da modernidade, naturalizam as desigualdades entre os países, classes,
raças e povos – como afirma Babha (1994). Da mesma forma, ao ligar a
marginalização dos grupos e discursos subalternos ao seu silenciamento, Spivak
localiza na fala a condição si ne qua non para subversão da subalternidade. Para
esta teórica, trabalhar na emergência desta fala, deste discurso, exige um
trabalho político que vai além da discursividade acadêmica, marcando um claro
comprometimento do crítico pós-colonial para com os “subalternos da terra”.
Ao privilegiar a subalternidade enquanto lugar de enunciação de onde o pós-
colonial pode emergir, essa perspectiva “parte da ideia de que, a partir das
margens ou das periferias, as estruturas de poder e de saber são mais visíveis”
(SANTOS, 2004, p.9).

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Outro ponto apresentado pelo Pós-Colonialismo é a recusa de
essencialismos, sejam eles de origem política, social, étnica ou outra qualquer. A
crítica aos regimes coloniais afirma que o poder e o discurso colonial
construíram-se a partir do recurso a uma “violência epistêmica” (Spivak, 1988)
que construiu o sujeito colonizado enquanto o Outro do colonizador. Por outro
lado, o colonizador e, em sentido mais amplo - o Ocidente - constrói a si mesmo
de forma relacional, como o Mesmo a partir do qual o resto do mundo é
subalterno/subalternizado (Said, 2007). A recuperação das obras seminais de
Franz Fanon e Albert Memmi, para muitos os predecessores da crítica pós-
colonial, ajudam a perceber que esta construção da diferença entre colonizador e
colonizado está inscrita em um processo “dialeticamente destrutivo e criativo”
(SANTOS, 2001, p.32), em um jogo de espelhos e inter-identidades em que
ambos “já não são independentes um do outro e nem pensáveis um sem o outro”
(SANTOS, 2001, p.31).
A recusa pós-colonial destas oposições binárias a partir das quais os
discursos coloniais construíram todas as formas de racismo impede a utilização
de “linhas puristas de policiamento da identidade” (SOHAT; STAM, 2006,
p.79), buscando, ao contrário, identidades complexas, multifacetadas e,
sobretudo, híbridas. A ideia de hibridismo, amplamente desenvolvida nos
estudos de Stuart Hall e Hommi Babha, subverte os binarismos políticos, de
forma a demonstrar que “os ‘efeitos de fronteira’ não são ‘gratuitos’, mas
construídos; consequentemente, as posições políticas não são fixas, não se
repetem de uma situação histórica a outra, nem de um teatro de antagonismos a
outro, sempre ‘em seu lugar’. O reconhecimento deste “espaço híbrido”
desestabiliza as representações hegemônicas, nos confrontando com uma
realidade politicamente complexa e ambígua, em que o posicionamento dos
atores precisa ser visto de maneira relacional e inserido em relações de poder
não apenas hierárquicas como, também, transversais.
Esta multiplicidade de relações de poder advém do reconhecimento de
que a realidade é extremamente complexa, produto de um mundo em que “o fim
do colonialismo enquanto relação política não acarretou o fim do colonialismo
enquanto relação social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade
autoritária e discriminatória” (SANTOS, 2004, p.8). Com efeito, grande parte
da vitalidade do Pós-Colonialismo enquanto teoria reside em sua disposição
para pensar “as continuidades e descontinuidades do poder”. Neste sentido,
embora muitos afirmem que o prefixo “pós” refira-se a uma ruptura com o

CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013 267
período anterior, indicando uma superação do colonialismo, defende-se que a
acepção do que constitui o Pós-Colonial pressupõe não só a revisão crítica do
passado contado em termos da modernidade ocidental, mas: a identificação de
um presente ainda permeado por uma série de discursos, práticas e relações
políticas que confluem na perpetuação da distribuição assimétrica do poder e da
riqueza em nível global.
Por fim, o Pós-Colonialismo envolve em seu âmago a crítica dos
pressupostos epistemológicos em que se assenta o discurso da Modernidade e,
portanto, da superioridade européia. Spivak, por exemplo, situa a subalternidade
como produto de incisivas relações de “violência epistêmica”, pautada na
imposição colonial de uma ordem científica e de um sistema legal (1988). Se,
como afirma Hall, “a expansão, exploração, conquista, colonização e
hegemonia imperial [constituem] a ‘face mais evidente’, o exterior constitutivo,
da modernidade capitalista européia”, então a celebração da ciência moderna se
inscreve em uma relação de poder pautada na diferença colonial entre aqueles
que “pensam, logo, existem” e aqueles que não existem a não ser enquanto
objeto de dominação.
Cabe ressaltar, que a recusa de essencialismos é uma característica da
crítica Pós-Colonial, que tende a ver categorias, atores e dinâmicas a partir de
uma perspectiva relacional. No entanto, a própria consolidação da área
enquanto um “corpo teórico” pode facilmente resultar em cristalizações
generalizantes que incorreriam em tais essencialismos e generalizações que esta
corrente tenta combater. Na raiz deste problema, reside o fato de que o Pós-
Colonialismo, em sua versão mais difundida, é uma abordagem desenvolvida,
em linhas gerais, por intelectuais oriundos de antigas colônias britânicas e que,
portanto, pensam a “questão colonial” da forma como foi formulada, aplicada e
experimentada no Imperialismo Inglês. Não é preciso dizer que, embora possa
ser concebido como um “sistema” de características fundamentais
compartilhadas, o Colonialismo não se impôs de maneira homogênea nos vários
contextos históricos e sociais inscritos sob seu domínio. Nesse sentido, o
Imperialismo inglês é tão particular e guarda tantas especificidades quanto
qualquer outro modelo de relações coloniais. Ignorar ou não conferir a
importância devida a estas manifestações particulares deste mesmo processo
pode incorrer em uma série de erros conceituais catastróficos para o próprio
fortalecimento da abordagem Pós-Colonial, na medida em que sua
“absolutização” poderia levar a um “imperialismo cultural” (SANTOS, 2001)

268 CAPTURA CRÍPTICA: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.4., v.1., jan./dez. 2013
que só pode ser contra-producente.

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Resenhas
Escravização Ilegal e Representações da História:
considerações sobre o filme “12 Anos de Escravidão”

Gabriela Barretto de Sá*

A escravidão negra é mais complexa do que a relação entre proprietário


e propriedade. Apesar de parecer óbvio, tal fato é comumente desprezado pelas
tentativas de representação midiática do período escravista. Talvez seja este o
principal equívoco do filme estadunidense “12 Anos de Escravidão”. Dirigido
pelo diretor britânico Steve McQueen o filme é baseado na autobiografia “12
Years a Slave”1 escrita por Solomon Northup no ano de 1853. Na trama, o
protagonista é vivido pelo ator Chiwetel Ejiofor. A história gira em torno da
escravização ilegal de Northup, violinista negro e livre dos Estados Unidos que
no ano de 1841 é vítima do plano de dois jovens brancos que, após atraí-lo com
a aparência de uma suposta parceria profissional, sedam o músico e retiram a
sua capacidade de autonomia. Ao despertar, o pai de uma estruturada família
negra da classe média nos EUA do século XIX, está acorrentado e, ilegalmente
reduzido à escravidão2, será embarcado num navio negreiro para o trabalho
forçado em plantations de cana de açúcar e fazendas de algodão no sul dos
Estados Unidos.
O enredo do filme aposta na história do cativeiro e só a partir dessa

* Bacharela em Direito pela Univeridade Federal da Bahia – UFBA. Mestranda em Direito, area de
concentração “Teoria, Filosofia e História do Direito” pela Universidade Federal de Santa Catarina -
UFSC. Bolsista CAPES. Este texto resulta das pesquisas atualmente desenvolvidas pela autora para
elaboração de dissertação de mestrado acerca da escravização illegal de pessoas livres no Brasil
oitocentista
1 NORTHUP, Solomon. Twelve years A Slave: Narrative of Solomon Northup, a Citizen of New York.
Buffalo, NY: Derby, Orton and Mulligan, 1853. Considerando que a maioria da população escravizada
não era letrada, a peculiaridade do livro se deve ao fato de constituir-se enquanto um relato da escravidão
escrito desde a ótica do homem negro escravizado. A partir de outro lugar de fala, também figura como
relato clássico da escravidão no sul estadunidense o livro “Memories of the old plantation home” diário
escrito em 1850 pela jovem Laura Locoul Gore que viveu a realidade desde a condição de integrante de
uma família proprietária de fazenda escravista.
2 No Brasil o artigo 179 do Código Criminal do Império previa o crime de reduzir pessoa livre à
escravidão. Para mais informações sobre a prática da escravização ilegal ver: CHALHOUB, Sidney. A
força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras.
2012. Ver também: MAMIGONIAN, Beatriz G. A liberdade no Brasil oitocentista (Resenha de 'A
força da escravidão', de Sidney Chalhoub). Revista Afro-Ásia, Salvador, nº48, p.395-405, 2013.

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dimensão é que temos acesso à história deste homem negro. Esta é a primeira
opção do filme que nos parece digna de nota: não há qualquer preocupação em
fornecer elementos sobre a vida de Solomon Northup enquanto cidadão livre na
cidade de Saratoga Springs. Ao espectador mais atento, restam em suspenso e
sem resposta questões relativas à história pessoal de Northup e sua existência
enquanto homem negro e livre numa sociedade escravista. Assim, não sabemos
de onde ele vem, se era descendente de negros africanos trazidos para o trabalho
escravo nos Estados Unidos; se nasceu livre ou foi liberto e tampouco como foi
possível a sua requintada formação artístico-musical. Solomon parece ser
apenas mais um entre os descendentes daqueles povos outrora considerados sem
história. São silenciadas algumas décadas da existência do músico e que seriam
essenciais para ajudar a compreensão e garantir contornos mais expressivos
para a mudança brusca e dramática da sua condição civil. Apesar de o título
apresentar expressamente como recorte a abordagem do período de escravidão
sofrido pelo protagonista, o enredo dispensaria tamanha literalidade e
reducionismo. A história de escravização ilegal pressupõe uma história prévia
de vivência de liberdade, e são apagadas justamente as memórias desta fase da
vida de Solomon para dar lugar à apresentação detalhada da brutalidade do
cativeiro.
Não bastasse o silêncio acerca do período no qual a personagem era
livre e exercia o uso e gozo da sua condição de ser humano, é flagrante a
invisibilidade da família negra estadunidense. A Sra. Northup e seus dois filhos
aparecem em poucas cenas iniciais e retornam apenas para o reencontro feliz
após os doze anos. Não há qualquer menção sobre a sobrevivência da família ao
longo do tempo, muito menos, às estratégias e tentativas de encontrar o familiar
desaparecido. Tal silêncio dá asas à nossa criatividade e nos leva a tentar
imaginar todo o sofrimento e luta da família ou talvez a resignação com a
eventual normalidade de casos de sequestro e escravização ilegal de pessoas
negras que, com alguma sorte, conseguiam libertar-se algum dia e retornar ao
lar.
Mas nem só de silêncios e omissões se compõem um drama histórico. A
trama se esmera em visibilizar os horrores da escravidão traduzidos pelas cenas
longas de violência e sadismo protagonizadas por traficantes de escravo,
proprietários e feitores contra os negros escravizados. Ao abordar a violência
quase que exclusivamente através da análise das relações entre senhor e
escravo, comete-se o reducionismo de justificar a culpa da barbárie da

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escravidão pelo comportamento – quase caricato - de proprietários brancos e
perversos. Tal abordagem despreza que a estrutura social escravista do século
XIX tinha raízes mais profundas, política e economicamente mais complexas
que a arbitrariedade e exagero no uso e gozo dos objetos de propriedade. A
escravidão não era garantida por um pacto de homens maus, era a base
econômica de sustento das sociedades envolvendo diferentes atores nacionais e
internacionais no lucrativo comércio transatlântico de escravos 3.
Dos 134 minutos de duração do filme, não seria exagerado afirmar que
a quase totalidade deste tempo é destinado para o retrato impiedoso da violência
e desumanidade da escravidão. O filme aposta na incansável exposição de
corpos negros desnudos, dilacerados pelo trabalho degradante e por castigos
desumanos e excessivos4. A violência sexual contra a mulher negra escravizada
é explorada como ápice da depravação moral dos senhores. A naturalização do
sofrimento do corpo negro e mais especificamente a violência contra a mulher
negra ganha desnecessária e perversa ênfase visual 5. A nudez do corpo feminino
negro da atriz Lupita Nyong’o que vive a escravizada Patsey é
desnecessariamente explícita em situações intrinsecamente revoltantes e
trágicas como o estupro e o castigo no tronco. Situações tão óbvias e de
conhecimento público prescindem da abordagem quase didática e impiedosa
com que são retratadas no filme. Existirá ainda alguém que ignore a violência
intrínseca à escravidão?
Tentativas de reconstrução midiática do passado escravista correm o
risco de apresentar versões acríticas e transformar a história em mera
mercadoria voltada ao entretenimento 6. Mais ainda, a possibilidade de dispor de

3 Como indicativo da dimensão multitudinária da população escravizada, destacamos que “quando a


escravidão foi legalmente abolida nos Estados Unidos, na década de 1860, quase 4 milhões de afro-
americanos foram libertados.” (SMALL, 2012, p.92)
4 “Em última instância, o racismo serve como forma de catalogação dos indivíduos, afstando-os ou
aproximando-os do sentido de humanidade de acordo com suas características raciais. Essa peculiaridade
faz dele uma das justificativas mais recorrentes nos episódios de genocídio e em toda sorte de vilipendios
materiais e simbólicos que tenham por objetivo violar a integridade dos seres humanos”. (FLAUZINA,
2008, p. 16)
5 “Tanto na literatura brasileira quanto na norte americana, recorreu-se abundantemente à representação
de uma crueldade especificamente sexual nas relações entre o proprietário e suas escravas.” (GOMES,
2009, p.175)
6 Exemplo de manipulação tendenciosa e deliberada do passado para transformar a história em mera
mercadoria de entretenimento também é apresentado por Stephen Small ao analisar as versões acerca da
escravidão negra no sul dos Estados Unidos construídas para o consumo turístico: “Há centenas de
museus de plantation espalhados pelo sul dos Estados Unidos atualmente. Baseados em antigas fazendas
e estruturas escravistas, esses lugares variam consideravelmente em tamanho, organização e importância.

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um orçamento de 20 milhões de dólares para criar e (re)produzir a realidade de
determinado período histórico traz consigo a inegável oportunidade de ampla
difusão de uma única versão, visão e imagem histórica sobre uma época. A
indústria do cinema já descobriu que tematizar a violência da escravidão negra é
uma aposta lucrativa. Alternando entre a dicotomia do protagonista escravo
justiceiro ou injustiçado7, o sucesso do produto pode ser medido pelas listas dos
indicados e ganhadores ao Óscar dos últimos anos. Em 2013 o filme “Django
Livre” do diretor Quentin Tarantino foi indicado à categoria de melhor filme e
ganhou o prêmio de melhor roteiro original por abordar a saga do escravo
Django que, quando liberto, assume o papel de justiceiro e vingativo numa saga
para libertar sua esposa que continua escravizada. Na cerimônia do Óscar de
2014, o drama do injustiçado escravo violonista concorre em diversas
categorias, dentre elas a de melhor filme. Tais versões ganham visibilidade e
legitimidade mundiais, passando a constituir-se enquanto representações da
história dignas de premiação segundo critérios dos organizadores do evento
milionário8.
Abordagens que apresentam versões maniqueístas de fatos da história
da humanidade, gozando de recursos financeiros e possibilidade de divulgação
extensiva mundo afora, são importantes meios de imposição de uma memória
coletiva unívoca, construída a serviço do interesse de determinados grupos de
poder9. De igual modo é recorrente o esforço de tratar a escravidão como página

[...] Em relação ao tratamento dado à escravidão, esses locais revelam estratégias marcadamente
discrepantes. Uma das mais comuns é omitir qualquer menção à escravidão ou mencioná-la apenas de
forma passageira.” (SMALL, p.94-95)
7 “Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria e a maior parte do
tempo numa zona de transição entre um e outro pólo. O escravo aparentemente acomodado e até
submisso de um dia podia tornar-se o rebelde do dia seguinte, a depender da oportunidade e das
circunstâncias. Vencidos no campo de batalha, o rebelde retornava ao trabalho disciplinado dos campos
de cana ou café e a partir dali forcejava os limites da escravidão em negociações sem fim, às vezes bem,
às vezes malsucedidas. Tais negociações, por outro lado, nada tiveram a ver com a vigência de relações
harmoniosas, para alguns autores até idílicas, entre escravo e senhor. Só sugerimos que, ao lado da
sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos.”
(SILVA; REIS, 1989, p.07)
8 Para uma análise sobre a história social do cinema e um estudo de caso acerca do seu uso ideológico em
benefício da ditadura no Brasil através da premiação de filmes pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda – DIP ver: FILGUEIRA, Bianca Melyna Negrello. Luz, câmera... (doutrin)ação?: os
filmes premiados pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), 2012, 219 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012
9 “É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo
Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é ‘nkali’. É

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virada, fato social traumático que se exaure sem deixar vestígios. Desse modo, o
tribunal histórico cinematográfico constrói a coerência histórica necessária para
carregar nas tintas ao “denunciar” os horrores cometidos pelos vilões de um
passado morto e enterrado. No entanto, nas antigas colônias escravistas, a
escravidão e as relações sociais daí decorrentes seguem vivas através da
marginalização histórica dos afrodescendentes e na violência cotidiana do crime
de racismo. Não acreditamos em absoluto que a exibição da violência escravista
sem cortes ou pudores tenha o condão de estimular interpretações cujo alcance
extrapole a sensibilização momentânea e se converta em lúcida problematização
sobre a desumanização do ser humano negro: dimensão econômica e social
constituinte das nossas sociedades.
Além de reforçar a naturalização da imagem de submissão e sofrimento
infligida aos corpos negros, a ênfase em recriar e reproduzir imagens de
profusão de sangue e lágrima de seres humanos negros termina por induzir a
construção de consciências históricas coletivas e individuais forjadas a partir de
tais pontos de vista10. De tudo isso vale refletir sobre a quem pode interessar a
reprodução de uma história da população negra baseada em abordagens
pitorescas de experiências individuais apresentadas sem contextualização
um substantivo que livremente se traduz: "ser maior do que o outro". Como nossos mundos econômico e
político, histórias também são definidas pelo princípio do ‘nkali’. Como são contadas, quem as conta,
quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não
só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino
Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua
história, e começar com "em segundo lugar". Comece uma história com as flechas dos nativos
americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a
história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem
uma história totalmente diferente.” (ADICHIE, 2009, p. 03)
10 No ano de 2006 o Ministério Público do Estado da Bahia, através da Promotoria de Combate ao Racismo
e Intolerância Religiosa, iniciou inquérito civil e realizou audiências públicas para apurar o racismo
presente na telenovela “Sinhá Moça” exibida no Brasil pela Rede Globo. A história era inspirada no livro
homônimo de autoria de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, publicado em 1950 e que retrata a
escravidão negra brasileira durante a segunda metade do século XIX, no contexto de cultivo do café.
Dentre as ações do Ministério Público vale ressaltar que durante audiência pública realizada com a
presença de historiadores, antropólogos e sociedade civil, professores do ensino básico relataram que
durante o período de exibição da novela as crianças apresentavam comportamentos e opções de diversão
violentas, marcadas pela teatralização do que era visto na televisão. Assim, por exemplo, eram comuns
casos de brincadeiras que simulavam o castigo no tronco e, mesmo entre crianças negras, a representação
da figura do feitor era sempre a mais disputada pelas crianças. Exibida no horário de 18 horas o folhetim
apresentava cenas fortes de violência, mutilação e até mesmo morte de negros escravizados em
decorrência dos castigos. Dentre os presentes a audiência pública, eram comuns relatos de que as cenas
provocavam revolta e depressão naqueles que reconheciam sua ancestralidade no povo negro
escravizado. Porém, eram igualmente frequentes relatos no sentido de que as cenas eram tristes mas que
infelizmente o sofrimento parecia ser a única história e sina do povo negro

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histórica e que dificilmente convidam o espectador a assumir postura crítica
frente aos fatos sociais do perverso legado que se manifesta na atualidade 11.
Consolida-se assim a infeliz e incontornável história de seres humanos
predestinados ao sofrimento, violência e histórica negação de direitos.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única história. Conferência Anual


TED Global. Oxford, Reino Unido, 2009. Disponível em:<
http://www.osurbanitas.org/osurbanitas9/Chimamanda_Adichie.pdf>. Acesso
em: 15 de maio de 2013.

CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil


oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal
e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

FILGUEIRA, Bianca Melyna Negrello. Luz, câmera... (doutrin)ação?: os


filmes premiados pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). 2012,
219 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

GOMES, Heloisa Toller. As Marcas da Escravidão: o negro e o discurso


oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

MAMIGONIAN, Beatriz G. A liberdade no Brasil oitocentista (Resenha de 'A


força da escravidão', de Sidney Chalhoub). Revista Afro-Ásia, Salvador, nº48,
p.395-405, 2013.

REIS, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito. A Resistência Negra


no Brasil Escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
11 Parece oportuna trazer um dos resultados do Mapa da Violência no Brasil no ano de 2012: “(...) Podemos
observar que mesmo com grandes diferenças entre as Unidades Federadas, a tendência geral desde 2002
é: queda do número absoluto de homicídios na população branca e de aumento dos números da
população negra”. (WAISELFISZ, 2011, p.60)

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SMALL, Stephen. “’E o vento levou’: cabanas de escravos e escravidão no
turismo histórico sulista nos Estados Unidos”. In: SANSONE, Livio (org.).
Memórias da África: patrimônios, museus e políticas das identidades.
Salvador: EDUFBA, 2012, p. 91 – 123.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012. Os novos padrões da


violência homicida no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2011

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