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CienteFico. Ano III, v.

I, Salvador, janeiro-junho 2003

A Idéia de Sofrimento em Nietzsche

Sissi Viganó

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo elucidar alguns dos principais conceitos da obra de
Nietzsche e analisá-los sob a ótica de um "sofrimento necessário" - tema subjacente a toda
a obra nietzscheana. Desde a biografia do autor, até sua crítica à compaixão, o sofrimento
está presente como elemento indispensável à construção e ao aprimoramento do homem,
em sua caminhada rumo ao Super-Homem. Para suavizar as dores do crescimento,
Nietzsche sugere a retomada da Arte Trágica, única maneira de perceber
complementaridade no antagonismo dos deuses gregos Apolo e Dionísio. Conclui-se,
então, que psicólogos e profissionais da área de saúde mental devem revisar seus conceitos
de sofrimento, mudando suas abordagens dentro do consultório e o tratamento de quadros
depressivos.

Palavras Chave

Nietzsche, Jung, Sartre, sofrimento, compaixão, hedonismo, arte trágica, existencialismo,


depressão, psicologia, saúde mental.

O tema do sofrimento nas obras do filósofo trágico foi escolhido após a leitura de diversos
livros de Nietzsche e alguns de seus comentadores. O livro de Hilton Japiassu, Introdução
ao Pensamento Epistemológico, ajudou a guiar a elaboração desse trabalho após construir
uma visão mais completa do que é Epistemologia e, por sua vez, ter desenvolvido uma
pesquisa epistemológica. A leitura dos textos foi feita sublinhando idéias importantes e
anotando ao lado das páginas as idéias-chaves do capítulo ou do parágrafo: isso facilitou
não só a compreensão dos textos como a elaboração da monografia, uma vez que a idéia
geral do tema já estava dividida, anotada e esquematizada.

Há alguns conceitos peculiares e recorrentes na filosofia de Nietzsche, tais como: Vontade


de Potência, Super-homem, Amor Fati, Eterno Retorno e Transvaloração de todos os
valores que precisam ser esmiuçados para permitir a interpretação de sua obra. Nietzsche
começa sua produção associando helenismo e pessimismo – subtítulo de seu primeiro
livro,[1] escrito em 1872 –, e já aí se tem material suficiente que mostra o sofrimento
enquanto elemento detonador do pensamento nietzschiano. Suas críticas ao cristianismo
começam a aparecer em Humano, demasiado humano (1878-80) e persistem ao longo da
obra – sendo mais explícitas e contundentes, porém, em A Genealogia da Moral (1887), O
Crepúsculo dos Ídolos (1888) e O Anticristo (1888). Em Assim Falou Zaratustra (1883-5),
ele propõe uma nova tábua de valores como forma de superar o homem e atingir o super-
homem – uma espécie de ser humano, concebida por Nietzsche, que superaria a espécie
atual com uma discrepância, em termos evolutivos, igual ou superior à que é encontrada
entre o homem atual e o macaco. Todo esse caminho, no entanto, do homem ao super-
homem, do exercício da vontade de potência, de ídolos a serem derrubados, é um caminho
difícil de ser trilhado. Este texto tenta analisar a visão do autor, do sofrimento, na
elaboração de sua filosofia.

O filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Röcken,


uma pequena cidade da Prússia. Filho do pastor Karl Ludwig Nietzsche e de Franziska
Oehler, também ela de família luterana, Nietzsche cresceu em um ambiente conservador e
religioso. Teve dois irmãos mais novos: Elizabeth e Joseph, sendo que este morreu em
idade prematura. Antes que Friedrich completasse cinco anos, seu pai morreu,
provavelmente decorrente de um crescente quadro mórbido após queda e traumatismo
craniano. Nietzsche cresceu sem uma figura masculina, idealizando e futuramente
transferindo, talvez, o papel de pai para Schopenhauer e Wagner.

Nietzsche estudou Teologia e Filologia Clássica na Universidade de Bonn. Posteriormente,


Nietzsche deixa Bonn e vai para a Universidade de Leipzig, abandonando a Teologia por
não acreditar mais em Deus, decepcionando, assim, sua família. Ao descobrir
Schopenhauer, Nietzsche se identifica não só com o “modelo masculino” que este se tornou
para ele, mas também como um modelo de gênio solitário, que o próprio Nietzsche viria a
se tornar mais tarde. Com a descoberta da filosofia schopenhauriana, Nietzsche começou a
se desencantar da Filologia, vendo esse campo de estudo como estreito e sem lugar para
criatividade.

Ainda assim, aos 24 anos, Nietzsche tornou-se professor de Filologia Clássica na


Universidade de Basiléia. Apesar das suas incertezas em torno da Filologia, Nietzsche
lecionava com entusiasmo e disciplina, sendo muito querido pelos seus alunos. A
proximidade de Basiléia com a casa dos Wagner favoreceu idas freqüentes de Nietzsche
àquela casa, onde o jovem admirador foi praticamente adotado. Nietzsche passava todos os
finais de semana naquela casa, um ambiente que ele mesmo descreveu como sem
moralismos e intelectualmente estimulante. A importância de Wagner no florescimento
intelectual de Nietzsche e na elaboração de seu primeiro livro é reconhecida tanto por seus
comentadores, quanto por ele próprio. Para seu grande pesar, sua relação com Wagner foi
se deteriorando à medida que este foi se deixando corromper pela burguesia cristã, na ânsia
de conseguir fundos para a construção de um teatro “digno da apresentação de suas
óperas”, um monumento à música wagneriana. Em 1876, na época da apresentação do
Parsifal de Wagner, Nietzsche rompe definitivamente com o homem que tinha sido seu
grande ídolo.

Nietzsche escreveu diversas obras ao longo de dezesseis anos – um período produtivo que
vai de 1872 a 1888, quando sofre um colapso mental, ficando sob a tutela de sua mãe e logo
depois de sua irmã, até seu falecimento em Weimar, no dia 25 de agosto de 1900. Seu
primeiro livro, O Nascimento da Tragédia, foi publicado em 1872. O livro foi
primeiramente ignorado e depois mal recebido por seus colegas, que começaram a isolá-lo.
Nesse primeiro trabalho ficam claros seu envolvimento emocional com Wagner e uma
grande influência da filosofia schopenhauriana (Nietzsche afirma que os gregos não eram
felizes, mas pessimistas e descrentes na vida).[2]

Nietzsche foi, certamente, uma das maiores influências no Existencialismo.[3] Foi ele o
primeiro a se referir à náusea, o desespero decorrente da disparidade entre o mundo real e o
mundo imaginado, que dá nome ao livro homônimo de Jean-Paul Sartre.[4] Em seu livro A
Náusea, Sartre conta a história de intelectual que subitamente é acometido pela náusea, pelo
horror ao confrontar com a gratuidade das coisas e o sem-sentido da existência.

“Apertei com força em minhas mãos o volume que estava lendo: mas as sensações mais
violentas estavam amortecidas. Nada parecia verdadeiro; eu me sentia rodeado por um
cenário de papelão que podia ser bruscamente transplantado. O mundo esperava, retendo a
respiração, encolhendo – aguardava sua crise, sua Náusea, como o Se. Achille outro dia.”
[5]

“Minha existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples


aparência?” [6]

No decorrer do livro, o personagem principal, Roquentim, elabora sua Náusea e encontra,


ao final, como contra-peso, a Arte.

“A negra canta. Então pode-se justificar sua existência? Só um pouquinho? Sinto-me


extraordinariamente intimidado. Não é que tenha muita esperança. Mas estou como um
sujeito completamente gelado após uma viagem na neve que estivesse entrando de repente
num quarto aquecido. Creio que permaneceria imóvel perto da porta, ainda frio, e que
arrepios lentos percorreriam seu corpo todo. (...) Será que poderia tentar... Naturalmente
não se trataria de uma música... mas será que não poderia, num outro gênero? Teria que ser
um livro: não sei fazer outra coisa. Mas não um livro de história, isso fala do que existiu –
jamais um ente pode justificar a existência de outro ente. Meu erro foi querer ressuscitar o
Sr. de Rollebon. Outro tipo de livro. Não sei bem qual – mas seria preciso que se
adivinhasse, por trás das palavras impressas, por trás das páginas, algo que não existisse,
que estaria acima da existência.” [7]

Essa é justamente a postura defendida por Nietzsche – o resgate da arte como contraponto à
realidade angustiante – em seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia (1872).
Nietzsche começa sua trajetória filosófica sob influência do pensamento schopenhaueriano;
influência essa claramente percebida em O Nascimento da Tragédia, que contém algumas
citações de Schopenhauer comentadas por Nietzsche.[8] Neste seu primeiro livro,
Nietzsche defende a idéia de um retorno da arte trágica. Segundo ele, os gregos,
especialmente os atenienses, criaram uma noção de mundo essencialmente apolínea,
ignorando o outro lado representado por Dionísio, lado este que pode ser comparado, na
Psicologia, à “sombra” [9] junguiana.[10] O lado dionisíaco, no entanto, ressurgiria sempre,
apesar da repressão de uma visão de mundo apolínea – nesse escape do dionisíaco, o
homem seria tomado pela náusea. A questão era, então, como permitir que coexistissem
Apolo e Dionísio. A resposta estava na tragédia, em especial no drama trágico, que, através
da arte, mescla os dois universos de maneira saudável. Essa união é a cura para a náusea, a
reconciliação com o problema existencial que surge, não só na Grécia, mas em todas as
culturas.

Desde essa sua primeira obra, o sofrimento já é questão central, pois é o sofrimento do
povo grego que dá origem ao drama trágico:

“O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhes fosse possível
de algum modo viver. Teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica
dos deuses olímpicos.” [11]

Nietzsche mostra como o sofrimento grego deu origem à arte, dividindo-a em dois pólos: a
arte apolínea e a arte dionisíaca. O apolíneo, constantemente redimindo o homem,
resgatando-o de seu sofrimento, é ciclicamente devastado pelo dionisíaco, que mostra o
sofrimento cru, o deus despedaçado. Apolo eleva e enleva, envolve o artista em sonho;
Dionísio recaptura o artista e rasga o sonho –mostra o substrato mórbido da realidade. É o
enlace do apolíneo e do dionisíaco que dá origem ao drama, especialmente o drama trágico:

“O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Nesse encantamento o entusiasta


dionisíaco se vê a si mesmo como sátiro, e como sátiro, por sua vez, contempla o deus, isto
é, em sua metamorfose ele vê fora de si uma nova visão, que é a ultimação apolínea de sua
condição. Com essa nova visão o drama está completo. Nos termos desse entendimento
devemos compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se
sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo.” [12]

A luta e coexistência dos dois princípios é que traz a arte que justifica a existência:

“...nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte – pois só como
fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente...” [13]

O sofrimento, então, força impulsionadora da arte, é suavizado pela beleza que produz;
assim, os gregos não acabavam destruídos por ele:

“Da mesma maneira, creio eu, o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do
coro satírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade,
sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de
unidade que reconduz ao coração da natureza. (...) “Ele é salvo pela arte, e através da arte
salva-se nele – a vida” [14]

A arte surgirá, como substrato do sofrimento, sob duas representações que tornam a vida
possível:

“são elas: o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto


descarga artística da náusea do absurdo” [15]

Ainda em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche fala do sofrimento como resultante do


processo de compreensão da existência em sua essência – o sofrimento lhe é inerente.

“Na consciência da verdade, uma vez contemplada, o homem vê agora, por toda parte,
apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser; agora ele compreende o que há de simbólico
no destino de Ofélia; agora reconhece a sabedoria do deus dos bosques, Sileno: isso o
enoja” [16]

“Este conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa tríade do destino edipiano: aquele
que decifra o enigma da natureza – essa esfinge biforme –, ele mesmo tem de romper
também, como assassino do pai e esposo da mãe, as mais sagradas ordens da natureza. Sim,
o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria, e precisamente a sabedoria
dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que por seu saber precipita a natureza no
abismo da destruição há de experimentar também, em si próprio, a desintegração da
natureza. ‘O aguilhão da sabedoria se volta contra o sábio; a sabedoria é um crime contra a
natureza’ (...)” [17]

Essa ligação do sofrimento ao conhecimento será retomada e explicitada em obras


posteriores, principalmente em Humano, demasiado humano, ao tratar dos gênios e artistas.
O principal mito grego que ilustra essa relação entre sofrimento e conhecimento, entre este
e o antinatural, aquilo que não seria permitido pelos deuses, é o mito de Prometeu. Esse
titã, ludibriando o estado natural das coisas, trouxe a tocha da sabedoria aos homens e, por
esse motivo, foi condenado pelos deuses do Olimpo a ter seu fígado devorado por uma
águia todas as noites, depois de ter se recuperado das feridas durante o dia.

Humano, demasiado humano representa, segundo Paulo César de Souza,[18] a maioridade


intelectual de Nietzsche. Neste livro, Nietzsche faz um apanhado de vários aspectos do
homem, da sociedade, da política, das artes e da vida religiosa. É nesse livro que ele
aprofunda a relação entre sofrimento e conhecimento, especialmente nos capítulos Da alma
dos artistas e escritores e Sinais de cultura superior e inferior.

Em Humano, demasiado humano já estamos fora dos tempos gregos. Portanto, agora, o
sofrimento é analisado de acordo com os novos artifícios criados para superá-lo ou encobri-
lo. Provavelmente o maior artifício mascarador do sofrimento analisado por Nietzsche são a
moral e a religião – em especial a religião cristã.

“A besta que existe em nós quer ser enganada; a moral é mentira necessária para não
sermos por ela dilacerados” [19]

No decorrer do livro insinua-se, então, a glorificação da força como instrumento que irá
constituir o super-homem. É contra a fraqueza do homem perante o sofrimento criativo que
luta Nietzsche, como se pode ver também em Assim Falou Zaratustra:

“Procuram morder-me, porque lhes digo: ‘Para gente pequena, são necessárias virtudes
pequenas’ – e porque custo a compreender que gente pequena seja necessária” [20]

A religião é a maior evidência da existência dessa fraqueza:

“(...) até hoje nenhuma religião, seja direta ou indiretamente, como dogma ou como
alegoria, conteve uma só verdade. Pois foi do medo e da necessidade que cada uma delas
nasceu, e por desvios da razão insinuou-se na existência...” [21] (Humano, demasiado
humano; pág. 88)

Nesse e em outros livros, como no Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche irá demonstrar a
religiosidade enquanto sinônimo de fraqueza:

“O verme se enconcha quando é chutado. Essa é a sua astúcia. Ele diminui com isso a
probabilidade de ser novamente chutado. Na língua da moral: humildade” [22]

Nietzsche, então, ao longo da sua obra, desconstrói os princípios da moral e da religião


cristã, propondo, em seu lugar, uma filosofia para os fortes, ou para os “espíritos livres”. O
sofrimento existe e é essencial à evolução do homem; o sofrimento é criativo:
“Na doutrina dos mistérios, o sofrimento é dito sagrado: as ‘dores das parturientes’
sacralizam o sofrimento em geral – todo vir-a-ser e todo crescimento, tudo o que se
responsabiliza pelo futuro condiciona o sofrimento” [23]

Como não podia deixar de ser, a compaixão – elemento minuciosamente desconstruído na


análise da religião, tanto em O Anticristo quanto na Genealogia da Moral – torna-se um
percalço à evolução do homem. Querer aliviar o sofrimento do próximo seria retardar ou
barrar a chegada do super-homem;

“Isso exige meu amor pelos mais distantes: não poupes o teu próximo! O homem é algo
que precisa ser superado.” [24]

A compaixão é também, para Nietzsche, um desrespeito àquele que ainda tem “feridas não
cauterizadas”: é preciso superá-la, para, com mãos piedosas, não acabar por arruinar um
grande destino.

Em contrapartida à massa de homens fracos, que vegeta sob uma filosofia de rebanho,
aniquiladora da individualidade, há a personalidade criativa do gênio. O gênio também está
sujeito ao sofrimento existencial, em grau mais elevado, por sua sensibilidade aumentada –
para ele, no entanto, os artifícios dos fracos são inúteis:

“A tragédia é que não podemos acreditar nesses dogmas da religião e da metafísica, quando
trazemos no coração e na cabeça o rigoroso método da verdade, e que, por outro lado,
graças à evolução da humanidade, tornamo-nos tão delicados, suscetíveis e sofredores a
ponto de precisar de meios de cura e de consolo da mais alta espécie; daí surge o perigo de
o homem se esvair em sangue ao conhecer a verdade.” [25]

Além da sensibilidade exaltada e do sofrer qual nervo exposto, o gênio está sujeito a tanto
mais sofrimento quanto maior for sua capacidade intelectual, criativa e moral:
“Em casos muito raros – quando no mesmo indivíduo se fundem o gênio de criar e de
conhecer e o gênio moral – junta-se às dores mencionadas a espécie de dores que devemos
considerar as mais extravagantes exceções do mundo: os sentimentos extra – e
suprapessoais, dirigidos a um povo, à humanidade, a toda a civilização, à inteira existência
sofredora: os quais adquirem seu valor graças à ligação com conhecimentos
particularmente difíceis e abstrusos (a compaixão em si tem pouco valor).” [26]

Além do sofrimento exacerbado, o gênio padece na solidão de sua genialidade:

“O gênio artístico quer proporcionar alegria, mas, se estiver num nível muito alto,
provavelmente lhe faltarão os que a desfrutem; ele oferece manjares, mas não há quem os
queira. Isso lhe dá um pathos que às vezes é ridículo e tocante; pois no fundo ele não tem o
direito de obrigar os homens ao prazer. Seu pífaro soa, mas ninguém quer dançar.” [27]

O sofrimento é o berço da genialidade:

“Já foi mencionado que uma mutilação, um aleijamento, a falta relevante de um órgão, com
freqüência dá ocasião a que outro órgão se desenvolva anormalmente bem, porque tem de
exercer a sua própria função e ainda uma outra. Com base nisso, pode-se imaginar a origem
de muitos talentos brilhantes.” [28]

“A engenhosidade com que o prisioneiro busca meios para sua libertação, utilizando fria e
pacientemente cada ínfima vantagem, pode mostrar de que procedimento a natureza às
vezes se serve para produzir o gênio – palavra que, espero, será entendida sem nenhum
ressaibo mitológico ou religioso – : ela o prende num cárcere e estimula ao máximo o seu
desejo de se libertar.” [29]

E a genialidade está a caminho da cultura superior – no entanto, esse caminho não é para
os fracos:
“Quem quiser colher felicidade e satisfação na vida, que evite sempre a cultura superior.”
[30]

Esse sofrimento do gênio pode ser lido nas páginas do seu autobiográfico Ecce Homo.
Nele, temos a exaltação do seu sofrimento físico – Nietzsche padecia de dores de cabeça
constantes, vômitos e outros males que o obrigaram a se aposentar precocemente da
Universidade de Basiléia – como caminho que precisava necessariamente ser trilhado para
a constituição do seu gênio e de sua filosofia:

“Porque, note-se bem: foi precisamente nos anos da minha mais débil vitalidade que eu
cessei de ser pessimista; a necessidade instintiva de restabelecer-me, afastou-me da
filosofia da miséria e do desânimo...” [31]

A história de vida de Nietzsche nos mostra claramente o que ele não precisava ter dito: foi
justamente na época de sua desilusão amorosa com Lou Salomé,[32] em que ele chegou a
redigir cartas para amigos cogitando o suicídio, que ele escreveu a sua mais brilhante obra:
Assim Falou Zaratustra.

O sofrimento, entretanto, é necessário para a formação do homem; todo homem de boa


compleição deve trilhar esse caminho:

“Essas dores podem ser bastante penosas: mas sem dores não é possível tornar-se guia e
educador da humanidade; e coitado daquele que quisesse sê-lo e não mais tivesse essa pura
consciência!” [33]

Por fim, o gênio que sobrevive ao sofrimento que lhe cria e lhe acompanha acaba
superando as noções de “bom” e “mau”, e a moral existirá apenas como um vestígio de
uma cultura inferior:

“Enfim, quando a tábua de sua alma estiver totalmente coberta de experiências, ele não
desprezará nem odiará a existência, e tampouco a amará, mas estará acima dela, ora com o
olhar da alegria, ora com o da tristeza, e tal como a natureza terá uma disposição ora
estival, ora outonal.” [34]

“Quando o seu olhar tiver se tornado forte o bastante para ver o fundo, na escura fonte de
seu ser e de seus conhecimentos, talvez também se tornem visíveis para você, no espelho
dele, as distantes constelações das culturas vindouras.” [35]

A filosofia elaborada por Nietzsche é uma filosofia realista na medida em que não nega o
sofrimento; é amoral, na medida em que não o condena. Ao contrário, o sofrimento é
essencial para a chegada do super-homem – sem sofrimento, o homem não evolui.
Nietzsche, com muita sensatez, propõe o dever de honestidade intelectual com todo o
sofrimento que ele possa trazer, mas também oferece a arte como bálsamo em lugar da
religião e da moral – estes últimos, artifícios que obscurecem a razão e impedem o
progresso do homem. O sofrimento anuncia a vinda de uma cultura superior.

A leitura de Nietzsche favorece, portanto, uma visão crítica da postura hedonista adotada
pela sociedade nos dias atuais. Essa procura desenfreada pelo prazer, como fim em si
mesmo, não pode conduzir a um amadurecimento individual, e sufoca um possível
crescimento coletivo. A busca pelo prazer, encontrada, por exemplo, no consumo crescente
de drogas alucinógenas, é imediatista: o objetivo, quando alcançado, é, em geral, de curta
duração, e suas conseqüências a longo prazo são desconsideradas. Essa mentalidade
imediatista conduz a um individualismo irracional, onde o próprio indivíduo não tem
consciência de sua busca. A própria honestidade intelectual nietzschiana não pode ser posta
em prática porque não há um complexo de idéias coerente governando as atitudes: a vida é
construída em cima de impulsos para o prazer.

Aliada à busca incansável de prazer, existe nos tempos modernos uma aversão quase
visceral a qualquer tipo de sofrimento – em qualquer amplitude. Os indivíduos se tornam
intolerantes, os relacionamentos se rompem em suas primeiras crises. A violência para
com o outro encontra justificativa na medida em que este outro seja uma fonte de mal-estar.

Em concordância com essa postura de esquivar-se do sofrimento a qualquer custo está a


tendência psiquiátrica em medicar toda melancolia com os recém-descobertos
antidepressivos. Qualquer sofrimento sem causa imediata tende a ser visto como
desnecessário, sem uma investigação prévia da história de vida do paciente: só se legitima a
tristeza que todos compreendem (e nem por isso ela se torna menos lamentável). O
processo criativo, individual por natureza, é, portanto, ignorado. Os conflitos,
reconhecidamente necessários para a elaboração da personalidade,[36] são uma fonte de
sofrimento necessária ao crescimento individual e coletivo.

Rainer Maria Rilke, contemporâneo de Nietzsche, em carta ao jovem poeta Franz Xaver
Kappus, também escreve sobre a importância do sofrimento no processo de criação e
amadurecimento:

“O senhor teve muitas e grandes tristezas, que passaram, e me diz que até a sua passagem
foi difícil e desenganadora. Mas, por favor, reflita: essas grandes tristezas não terão
passado, antes, pelo âmago de seu ser? Muita coisa não se terá mudado dentro de si? Algum
recanto de seu ser não se terá modificado enquanto estava triste? Perigosas e más são
apenas as tristezas que levamos por entre os homens para abafar a sua voz. Como as
doenças tratadas superficialmente e à toa, elas apenas se escondem e, depois de leve pausa,
irrompem muito mais terríveis. Juntam-se no fundo da alma e formam uma vida não vivida,
repudiada, perdida, de que se pode até morrer. Se nos fosse possível ver além dos limites de
nosso saber e um pouco além da obra de preparação de nossos pressentimentos, talvez
suportássemos nossas tristezas com maior confiança que nossas alegrias. São, com efeito,
esses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo de ignoto: nossos sentimentos
emudecem com embaraçosa timidez, tudo em nós recua, levanta-se um silêncio e a
novidade, que ninguém conhece, se ergue aí, calada, no meio.” [37]
A leitura de Nietzsche possibilita a psicólogos e psiquiatras uma nova visão do sofrimento e
sugere ferramentas para lidar com ele – a arte, por exemplo, pode ser bem-sucedida em
uma abordagem terapêutica para alguns casos de depressão. Conclui-se, através de
Nietzsche, que o sofrimento dispensa a idéia de diagnóstico e tratamento e sugere uma
postura terapêutica de acompanhamento.

Referências Bibliográficas:

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de Janeiro, RJ, 1992.

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_____. Assim Falou Zaratustra. Tradução: Mário da Silva. Ed. Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, RJ, 1998.

_____. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução: Marco Antônio Casa Nova. Ed. Relume
Dumará, Rio de Janeiro, RJ, 2000.

_____. Ecce Homo. Tradução: Lourival de Queiroz Henkel. Ed. Ediouro, Rio de Janeiro,
RJ, 4a edição.

_____. A Genealogia da Moral. Tradução: A. A. Rocha. Ed. Ediouro.

_____. O Nascimento da Tragédia. Tradução: J. Guinsburg. Ed. Cia. das Letras, São Paulo,
SP, 2000.

_____. Humano, demasiado humano. Tradução: Paulo César de Souza. Ed. Cia. das Letras,
São Paulo, SP, 2000.

GIACOIA JR., Oswaldo. Labirintos da Alma – Nietzsche e a Auto-supressão da Moral. Ed.


da Unicamp, Campinas, SP, 1997.

BRUM, José Thomaz. O Pessimismo e suas Vontades. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, RJ,
1998.

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Claremont CA – USA, 1998.
SARTRE, J. P. A Náusea. Tradução: Rita Brava. 9a edição. Editora Nova Fronteira. Rio de
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JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Tradução: Maria Lúcia Pinho. 16a
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RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta / A canção de amor e de morte do porta-
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Nietzsche’s Labyrinth http://www.inquiria.com/nz/

The Nietzsche Channel http://www.geocities.com/thenietzschechannel/

Jean Paul Sartre / Existencialismo.


http://www.geocities.com/Athens/Olympus/7979/index.htm

--------------------------------------------------------------------------------

[1] Nietzsche, F.W. In O Nascimento da Tragédia – ou Helenismo e Pessimismo. Tradução:


J. Guinsburg; 2a edição, Cia. das Letras, 2000. São Paulo-SP.

[2] Nietzsche, F. W. O Anticristo. Ed. Martin Claret, 2000, São Paulo – SP. O homem que
foi ao campo de batalha, por Scarlett Marton; págs. 11-19. Introdução por Mauro Araújo
Souza; págs. 20-35; Ecce Homo – como cheguei a ser o que sou. Tradução: Lourival de
Queiroz Henkel. 4a edição, Ediouro. Rio de Janeiro-RJ; Beckman, Tad. Great Philosophers
Course – Nietzsche Harvey Mudd College, Claremont CA – USA, 1998; Nietzsche’s
Labyrinth http://www.inquiria.com/nz/; The Nietzsche Channel
http://www.geocities.com/thenietzschechannel/

[3] O Existencialismo é uma corrente filosófica contemporânea, cujo maior expositor foi
Jean-Paul Sartre (1905-1980), mas que remonta também a idéias de Kierkgaard, Jaspers,
Nietzsche e Camus, considerados modeladores do Existencialismo.

[4] Sartre, J.P. A Náusea. Tradução: Rita Brava. 9a edição, Editora Nova Fronteira. Rio de
Janeiro-RJ.

[5] Idem pág. 118.

[6] Idem; pág. 132.


[7] Idem; págs. 257-258.

[8] Nietzsche, F.W. In O Nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução:


J. Guinsburg, 2a edição, Ed. Cia. das Letras. São Paulo-SP. 2000; pág. 30.

[9] JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Tradução: Maria Lúcia Pinho. 16a
impressão. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro-RJ; pág. 118.

“É o conceito de sombra, que ocupa lugar vital na psicologia analítica. O professor Jung
mostrou que a sombra projetada pela mente consciente do indivíduo contém aspectos
ocultos, reprimidos e desfavoráveis (ou nefandos) da sua personalidade. (...) Assim como o
ego contém atitudes desfavoráveis e destrutivas, a sombra possui algumas boas qualidades
– instintos normais e impulsos criadores.”

[10] JUNG, Carl Gustav. Obras Completas, Vol. IX/2, "Aion - Estudos sobre o simbolismo
do Si-mesmo", p. 6 a 9. Petrópolis, Ed. Vozes, 1982.

[11] Nietzsche, F.W. In O Nascimento da Tragédia – ou Helenismo e Pessimismo.


Tradução: J. Guinsburg; 2a edição, Cia. das Letras, 2000. São Paulo-SP.; pág. 36.

[12] Nietzsche, F.W. In Humano, demasiado humano. Tradução: Paulo César de Souza. Ed.
Cia. das Letras, São Paulo-SP, 2000; pág. 60.

[13] Idem; pág. 47.

[14] Idem; pág. 55.

[15] Idem; pág. 56.

[16] Nietzsche, F.W. In O Nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução:


J. Guinsburg, 2a edição, Ed. Cia. das Letras. São Paulo-SP, 2000; pág. 56.

[17] Idem; pág. 65.

[18] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Ed. Cia. das Letras. São
Paulo, SP, 2000. Posfácio, página 133 a 137.

[19] Idem; pág. 49.

[20] Nietzsche, F.W. In Assim Falou Zaratustra. Tradução: Mário da Silva. Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, RJ, 1998; pág. 204.

[21] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Ed. Cia. das Letras. São Paulo,
SP, 2000; pág. 88.
[22] Nietzsche, F.W. In Crepúsculo dos Ídolos. Tradução: Marco Antônio Casa Nova. Ed.
Relume Dumará, Rio de Janeiro, RJ, 2000; pág. 14.

[23] Idem; pág. 117.

[24] Nietzsche, F.W. In Assim Falou Zaratustra. Tradução: Mário da Silva. Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, RJ, 1998; pág. 237.

[25] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Ed. Cia. das Letras. São Paulo,
SP, 2000; pág. 86.

[26] Idem; pág. 121.

[27] Idem; pág. 120.

[28] Idem; pág. 161.

[29] Idem; pág. 160.

[30] Idem; pág. 189.

[31] Nietzsche, F.W. In Ecce Homo. Tradução: Lourival de Queiroz Henkel. Ed. Ediouro,
Rio de Janeiro, RJ, 4a edição; pág. 32.

[32] Lou von Salomé, jovem russa de ascendência germânica, teve envolvimento amoroso
com vários intelectuais do fim do século XIX e começo do século XX, tais como Nietzsche,
Paul Rée, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud. Nietzsche se apaixona por Lou desde a
primeira vez que a vê, mas ela declina suas duas propostas de casamento e vai morar com o
amigo em comum dos dois, Paul Rée.

[33] NIETZSCHE, F. W. Humano, demasiado humano. Ed. Cia. das Letras. São Paulo,
SP, 2000; pág. 87.

[34] Idem; pág. 193.

[35] Idem; pág. 196.

[36] Fato encontrado tanto nos conceitos de assimilação e acomodação piagetianos quanto
na Lógica Dialética.

[37] RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Paulo Rônai. 30a edição.
Ed. Globo; São Paulo-SP; págs. 62-63.

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