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Mary Balogh

A pérola secreta (The Secret Pearl)

Capítulo 1
A multidão que havia fora do teatro Drury Lane se
dispersou na noite. A última carruagem, com seus dois
ocupantes já desaparecia rua abaixo. Os poucos que
tinham chegado à apresentação a pé há muito tempo
que tinham abandonado o lugar.
Parecia que só ficava um cavalheiro, um homem alto
com capa escura e chapéu. Não tinha querido que o
levassem na última carruagem que partiu. Havia dito a
seus amigos que preferia ir caminhando para casa.
Mas tampouco era a única pessoa que ficava na rua.
Ao dar uma olhada a seu redor, seu olhar detectou uma
figura que permanecia de pé, apoiada em silencio contra
o edifício, e vestida com uma capa um pouco mais
escura que as sombras da noite: uma prostituta que
companheiras mais afortunadas ou atraentes tinham
deixado atrás e que agora parecia ter perdido qualquer
oportunidade de conseguir um cliente elegante aquela
noite.
Não se movia, e na escuridão resultava impossível
saber se o estava olhando. Poderia haver-se aproximado
até ele rebolando. Poderia ter saído das sombras e
sorrir. Poderia havê-lo chamado, e oferecer-se com
palavras. Poderia haver-se afastado rapidamente para
encontrar um lugar mais prometedor.
Mas não fez nenhuma dessas coisas.
E ele ficou de pé olhando-a, debatendo-se entre
empreender a caminhada solitária para casa que tinha
em mente ou participar de uma noite de diversão
inesperada. Não via a mulher com claridade. Não sabia
se era jovem, atrativa, bonita, limpa… qualquer dessas
qualidades pelas que teria valido a pena trocar de
planos.
Mas possuía uma quietude silenciosa que lhe
resultava intrigante por si mesmo.
Ao aproximar-se percebeu que o estava olhando,
com uns olhos que na sombra resultavam escuros.
Usava capa, mas não chapéu. E o cabelo
cuidadosamente recolhido na nuca. Era impossível saber
quantos anos tinha ou se era bonita. A garota não disse
nada e não se moveu. Não mostrava nenhuma
artimanha, nem dizia palavras sedutoras.
O cavalheiro se deteve uns poucos passos dela.
Observou que lhe chegava ao ombro, era um pouco mais
alta que a média, e de que era de compleição magra.
—Quer trabalhar esta noite? —perguntou-lhe.
A garota assentiu de maneira quase imperceptível.
—E o preço?
Ela duvidou e disse uma cifra. Ele a contemplou em
silencio durante uns instantes.
—E o lugar está perto?
—Não tenho aonde ir — murmurou ela.
Tinha a voz suave, carente da dureza ou o acento
coquete que tinha esperado. Olhou-a entrecerrando os
olhos. Deveria empreender a caminhada para casa, com
seus pensamentos como única companhia tal e como
tinha previsto. Nunca tinha sido próprio dele copular com
uma prostitutao na entrada de um estabelecimento.
—Há uma estalagem na seguinte rua — comentou
ele, e se virou para caminhar nessa direção.
Ela ficou a caminhar a seu lado. Não trocaram uma
só palavra. A garota não fez nenhum movimento para
agarrar seu braço. E ele tampouco ofereceu.
A jovem o seguiu entre a multidão do abarrotado e
buliçoso botequim do Touro e o Corno e permaneceu em
silêncio junto a ele enquanto pedia um quarto para
passar a noite no piso de acima e pagava adiantado. A
prostituta lhe seguiu escada acima. Suas pegadas eram
tão delicadas que o cavalheiro fez gesto de virar-se
antes de chegar acima para assegurar-se de que seguia
ali.
Permitiu-lhe entrar primeiro no quarto e fechou a
porta com o fecho detrás de si, colocando a única vela
que havia trazido em um spot da parede, mas o ruído do
bar logo diminuía na distância.
A prostituta estava de pé no meio do quarto, olhando-
o. O homem viu que era jovem, embora não fosse uma
menina. Em outra época devia ter sido bonita, mas agora
tinha a face magra e pálida, os lábios secos e gretados,
e os olhos marrons marcados com olheiras escuras. O
cabelo, de um vermelho apagado, não tinha brilho nem
volume. Tinha-o preso em um coque singelo na nuca.
O cavalheiro tirou a cartola e a capa e viu que os
olhos da garota se deslocavam por seu rosto e através
da feia cicatriz que começava junto a seu olho esquerdo,
cruzava sua face até a comissura do lábio e continuava
até o queixo. Sentiu toda sua feiúra: o cabelo rebelde e
quase negro, os olhos escuros, o nariz grande e aquilino.
E o incomodou sentir-se feio ante o olhar de uma
prostituta comum.
Cruzou o quarto, desabotoou a capa cinza pálido da
jovem, que não tinha feito nenhum gesto para tirar-lhe e
a jogou em um lado.
Curiosamente, a garota usava um vestido de seda
azul, de manga larga, decote recatado, cintura alta e sem
adornos. Mas, embora limpo, o vestido estava
descolorido e enrugado. O cavalheiro pensou que devia
ser um presente de um cliente satisfeito umas semanas
antes, e que o tinha usado cada noite após.
Ela levantou o queixo um par de centímetros, e o
contemplou sem apartar a vista.
—Tire a roupa — ordenou ele, incômodo ante sua
tranqüilidade, por distinta que era de todas as prostitutas
que tinha conhecido em sua juventude e durante os anos
que tinha passado no exército. Sentou-se em uma
cadeira de respaldo duro junto à chaminé vazia e a
contemplou entrecerrando os olhos.
A jovem permaneceu uns instantes sem mover-se,
mas logo começou a despir-se, dobrando cada objeto de
roupa ao tirar-lhe e colocá-la no chão a seu lado. Já não
o estava observando, mas sim se concentrava no que
estava fazendo. Só quando chegou à camisa, a última
peça de roupa que ficava, titubeou e olhou em direção ao
chão. Mas a tirou também, tirando-lhe por cima da
cabeça, dobrando-a como tinha feito com os outros
objetos e pondo-a em cima da pilha.
Ficou com os braços em jarras sem esticá-los e
voltou a olhá-lo, com o mesmo olhar fixo e inexpressivo
de antes.
Estava muito magra. Muito magra. E mesmo assim
havia algo na larga esbelteza de suas pernas, na forma
de seus quadris, em sua cintura muito estreita e nos
peitos turgentes e firmes que excitou ao cavalheiro que a
estava observando. Pela primeira vez se alegrou de ter
decidido contratar seus serviços. Tinha passado já muito
tempo sem estar com ninguém.
— Solte o cabelo — pediu.
E ela levantou os finos braços para fazê-lo,
inclinando-se para colocar cuidadosamente as forquilhas
junto à pilha de roupa. O cabelo lhe caía pelos ombros,
rosto e pelo meio das costas quando voltou a ficar em
pé. Era um cabelo limpo, mas sem vida, nem vermelho
nem loiro. Levantou uma mão para apartar um cabelo da
boca sem deixar de olhá-lo.
Ele sentiu como lhe invadia a luxúria.
— Deite-se na cama — indicou a seguir, ficando em
pé e começando a despir-se.
A prostituta desfez a cama com delicadeza e se
colocou em um extremo, com as pernas juntas, os
braços a cada lado, e as palmas contra o colchão. Não
se cobriu. Girou a cabeça e o observou.
Ele se despiu de tudo. Não quis tentar esconder-se
de uma puta, tentar ocultar as marcas de cor púrpura de
quão feridas o desfiguravam no flanco esquerdo e na
perna esquerda, que inclusive em um espelho lhe
repugnavam, e que deviam repelir a qualquer estranho
que não as esperasse. Os olhos da jovem se dirigiram
para as marcas e logo voltaram tranqüilamente para
rosto dele. Aquela puta tinha coragem. Ou pode que nem
sequer pudesse permitir-se perder ao cliente mais
repulsivo do mundo antes de ganhar o pagamento.
Estava zangado. Zangado consigo mesmo por ter
voltado a sair com putas, algo que tinha deixado de fazer
anos atrás. Zangado por sentir-se complexado e
envergonhado ante uma prostituta. E zangado com ela
por controlar tanto seus sentimentos que nem sequer
demonstrava o repugnante que lhe resultava seu
aspecto. Se o tivesse feito, poderia havê-la utilizado em
conseqüência.
E esse pensamento lhe enojava e lhe zangava ainda
mais.
O cavalheiro se inclinou sobre ela e a agarrou pelos
antebraços. Moveu-a de modo que ficou cruzada na
cama em vez de deitada ao longo. Agarrou-a pelos
quadris e a empurrou para diante até que seus joelhos
ficaram flexionados a um lado da cama e os pés
apoiados no chão.
Deslizou as palmas entre as coxas da garota e lhe
abriu as pernas. Abriu-as ainda mais com os joelhos,
flexionando as pernas para apoiá-las na cama. E
introduziu os dedos entre as coxas da jovem e a abriu
com os polegares.
Ela baixou a vista, observando o que fazia.
Ele se colocou em posição e a montou empurrando
uma só vez, de maneira intensa e profunda.
Sentiu o impacto que produzia no mais fundo da
garganta da jovem e viu como mordia ambos os lábios
ao mesmo tempo e fechava os olhos. Sentiu todos os
músculos da garota em tensão, em atitude defensiva. E
esperou, colocado em cima dela e imerso no mais
profundo de seu interior, observando-a com os olhos
cansados até que a garota respirou fundo e obrigou a
seus músculos a relaxar-se. Tinha o olhar fixo no dele.
O cavalheiro deslizou as mãos por debaixo da
garota, sujeitando-a contra o colchão enquanto se
inclinava sobre ela e desfrutava do prazer para o que a
tinha contratado. Ela permaneceu quieta e relaxada
enquanto ele se movia rápida e profundamente em seu
interior, com os braços estendidos na cama, aos lados, e
o olhar que percorria a cicatriz da face para logo voltar a
fixar-se em seus olhos. Em uma ocasião baixou a vista
para observar o que o fazia. Tinha o cabelo estendido
sobre o colchão, a um lado.
O homem fechou os olhos ao descarregar em seu
interior, e inclinou a cabeça por cima dela até que sentiu
a respiração da garota contra seu cabelo. E junto à feliz
relaxação sentiu a pontada de um arrependimento
indescritível.
Endireitou-se e se separou do corpo da jovem.
Dirigiu-se para o móvel colocado aos pés da cama onde
repousava a bacia e verteu água fria da jarra na terrina
gretada, molhou um trapo nele, escorreu o excesso de
água e voltou para a cama.
—Pegue. —Aproximou-lhe o trapo. A prostituta não
se moveu, além de juntar as pernas. Seguia com os pés
apoiados no chão e os olhos abertos—. Limpe-se com
isto.
E o cavalheiro olhou para suas coxas manchadas de
sangue.
Ela levantou uma mão para agarrar o pano, mas
tremia de uma maneira tão descontrolada que a apoiou
outra vez na cama e virou a cabeça a um lado, fechando
os olhos. Agarrou a sua mão, pôs com a palma para
cima e lhe deu o pano.
—Pode se vestir quando tiver terminado —
comentou, e deu as costas para vestir-se.
Os débeis ruídos que ouviu detrás indicaram que a
prostituta tinha recuperado o controle e estava fazendo o
que havia dito. Mas quando finalmente se voltou,
encontrou-se com que tentava prender os botões da
capa, mas tremiam muito as mãos. Percorreu os poucos
passos que o separavam dela, apartou as suas mãos e
prendeu os botões.
Por cima do ombro viu que o lençol da cama estava
coberta de sangue. Tinha-a desvirginado.
—Quando comeste por última vez? —perguntou.
A garota se concentrou em colocar a capa
corretamente.
—Quando faço uma pergunta, espero resposta —
insistiu bruscamente.
—Faz dois dias — murmurou ela.
—E o que comeu então?
—Um pouco de pão.
—E hoje decidiste ser uma prostituta?
—Não. Ontem. Mas ninguém me quis.
—Não me surpreende. Não tem nem idéia de como
se vender — espetou.
Agarrou seu chapéu, abriu a porta e saiu do quarto. A
jovem o seguiu. Deteve-se o pé das escadas e jogou
uma olhada no ruidoso botequim. Havia uma mesa vazia
em um extremo afastado. Voltou-se, agarrou à garota
pelo cotovelo e cruzou a sala em direção à mesa.
Qualquer cliente que estivesse em seu caminho se fixava
nele, em sua roupa elegante e em seu rosto duro e com
cicatrizes, e imediatamente se apartava a um lado.
Sentou à garota dando as costas à sala e ele ocupou
uma cadeira em frente dela. Logo ordenou à garçonete
que os tinha seguido até a mesa e estava fazendo
reverências que trouxesse uma bandeja de comida e
duas jarras de cerveja.
—Não tenho fome — repôs ela.
—Comerá — afirmou ele.
A garota não voltou a falar. A garçonete trouxe uma
bandeja em que havia um bolo de carne grande e
fumegante e duas fatiadas grossas de pão com
manteiga, e o duque indicou que a colocasse diante da
prostituta.
O homem observou à garota comer. Saltava à vista
que estava faminta, embora fizesse esforços por comer
devagar. Jogou uma olhada a seu redor quando os
dedos, ainda trementes, ficaram cobertos de miolos,
carne e massa, mas é que se tratava de uma estalagem
corrente e não havia guardanapos. O cavalheiro retirou
um lenço de linho de seu bolso, e após hesitar um
instante ela o agarrou e limpou os dedos.
—Obrigado — murmurou ela.
—Como te chama?
A jovem terminou de mastigar o pão que tinha na
boca.
—Fleur — acabou dizendo.
—Só Fleur? —O cavalheiro tamborilava lentamente
com os dedos na mesa enquanto com a outra mão
sustentava a jarra de cerveja.
—Só Fleur — repetiu ela em voz baixa.
Ele a observou em silêncio até que se terminou o
último miolo que ficava na bandeja.
—Quer mais? —perguntou.
—Não. —A prostituta levantou a vista
apressadamente para olhá-lo—. Não, obrigado.
—Não quer terminar a cerveja?
—Não, obrigado.
O cavalheiro pagou a conta e saíram juntos da
estalagem.
—Há dito que não tinha lugar onde exercer seu ofício
— recordou—. Não tem casa?
—Sim. Tenho um quarto.
—Acompanharei-te até lá.
—Não. —Retrocedeu até a entrada do Touro e o
Corno.
—A quanto vive daqui?
—Não muito longe. Não chega a dois quilômetros.
—Então te acompanharei três quartas partes desse
caminho. É uma jovem inocente. Não sabe o que pode
passar a uma mulher sozinha nas ruas.
A jovem soltou um riso discordante. E ficou a
caminhar a toda pressa pela rua, com a cabeça
abaixada. O homem caminhava junto a ela,
experimentando pela primeira vez em sua vida —
embora fora através de outra pessoa— o desespero da
pobreza, o saber que seus próprios problemas, os
motivos que o levavam a infelicidade, eram risíveis em
comparação com os desta garota, a puta mais flamejante
de Londres.
—Por favor, não me siga mais — acabou dizendo a
garota, detendo-se em uma esquina onde se encontrava
uma loja lúgubre que se anunciava como agência de
emprego.
—Não encontra trabalho? —perguntou o cavalheiro.
—Não.
—Tentaste-o?
A jovem levantou a vista para ele e voltou a rir como
antes.
—Não lhe parece que este é meu último recurso? —
replicou—. Resulta difícil obrigar-se a morrer de fome
quando ainda se pode vender uma última coisa.
A garota se voltou e estava a ponto de sair correndo
outra vez. A voz do homem a deteve.
—Não te esqueceste que algo? —perguntou ele.
Ela se voltou a olhá-lo.
—Não te paguei.
—Pagou-me a comida.
—Bolo de carne, duas fatias de pão e meia jarra de
cerveja em troca de sua virgindade. Foi um trato justo?
A jovem não respondeu.
—Um conselho — continuou o homem, agarrando a
de mão e fechando suas mãos ao redor de umas
moedas—. Não te vendas barato. O preço que pediste
só fomentaria o desprezo e que a tratassem mal. E por
certo, eu não te tratei mal. Deveria pedir o triplo do que
pediste. Quanto mais peça, mais respeito infundirá.
Ela baixou o olhar para a mão fechada, voltou-se e
partiu sem dizer nada mais.
O cavalheiro ficou ali de pé, olhando preocupado
como partia, antes de voltar-se e dirigir-se para ruas
mais elegantes e familiares.

Isabella Fleur Bradshaw não saiu de seu quarto ao


dia seguinte. De fato, nem sequer saiu da cama durante
grande parte dele, mas sim ficou olhando languidamente
o teto com manchas de umidade ou as paredes de um
marrom apagado onde os quadros antigos formavam
apenas alguns flocos de sujeira. A garota só levava a
camisola. Seu vestido de seda, seu único vestido, estava
dobrado cuidadosamente em cima do respaldo quebrado
na cadeira solitária do quarto.
Pela primeira vez em sua vida aquele dia começava
a se sentir-se desesperada e não tinha nem à vontade
nem a energia de liberar-se do desespero. Tinha estado
a ponto de sucumbir, durante o mês passado, mas a
força de vontade tinha permitido aferrar-se à esperança,
a uma determinação obstinada por sobreviver.
Sally, a ajudante de costureira que vivia no piso de
acima, chamou a sua porta ao meio dia, tal e como
estava acostumada a fazer. Mas Fleur não respondeu. A
garota queria falar, e queria compartilhar sua comida
também escassa. Fleur não queria companhia nem
caridade amável.
Tinha sobrevivido. Sobreviveria… possivelmente.
Mas tinha descoberto que, depois de tudo, a
sobrevivência não era necessariamente um triunfo, mas
sim podia fazer que alguém se inundasse nas
espantosas profundidades do desespero.
Sangrou de maneira intermitente durante todo o dia.
Doía-lhe tanto que às vezes se retorcia pela dor aguda
de sua virgindade rasgada.
E aquilo não era o final. Era somente o princípio. Seu
primeiro cliente a tinha pago generosamente: três vezes
mais do que tinha pedido, além da comida. O dinheiro
serviria para pagar o aluguel que devia e para alimentá-
la uns poucos dias. Mas logo teria que voltar a sair para
continuar com sua nova profissão.
Era uma puta. Apartou a vista do teto, e fechou os
olhos, esgotada. E não se tornar uma prostituta
representava com espanto e a esperança cada vez
menor de que de algum modo poderia evitar o inevitável,
acreditando no mais profundo de seu coração que
apareceria algo que a salvasse disso.
Era uma puta. Tinha acessado a que a contratasse
um cavalheiro, tinha ido a uma estalagem com ele, tirou
a roupa seguindo suas ordens enquanto ele olhava,
deitou-se nua na cama ao pedir e tinha visto como ele
tirava a roupa, e logo tinha permitido que a abrisse e
levasse seu prazer masculino às profundidades mais
recônditas de seu corpo. Tinha entregado seu corpo para
que o utilizasse e aceito seu dinheiro como pagamento.
De maneira desumana, enumerou mentalmente os
passos que tinha seguido para entrar na profissão que
exerceria até que fora muito velha feia e doente para
atrair inclusive ao pior cliente. Ou até que ocorresse algo
pior.
Pertencia a uma profissão que só pensar nela sentia
horror e asco.
Era uma puta. Uma prostituta. Uma fulana.
Tragou a saliva repetidas vezes e com determinação
até que a vontade de vomitar retrocedeu.
Logo, dentro de uma semana, estaria outra vez fora
do teatro, esperando atrair a outro cliente, temendo o
êxito.
Aquele cavalheiro moreno e aterrador que tinha sido
seu primeiro cliente havia dito que não tinha sido duro
com ela. Que Deus tivesse piedade dela se algum
homem a tratava alguma vez com rudeza. Sentia calor e
suava aterrorizada ao recordar de novo suas mãos, de
dedos largos, com boas unhas, umas mãos bonitas que
abriram as suas pernas, que a abriram de tudo com os
joelhos, tocando-a aí com os polegares, abrindo-a, e a
visão e a sensação que produziu essa outra parte dele,
grande e dura, contra sua tenra carne interior,
introduzindo-se rápida e profundamente em seu corpo,
de modo que pensava que morreria do susto e a dor… e
esperava fazê-lo.
As imagens daquela noite brotaram de maneira
espontânea e inoportuna: as cicatrizes rugosas, feridas
do flanco e a perna do homem; os músculos aterradores
e potentes de seu peito, ombros e braços, o triângulo de
cabelo negro que ocupava a extensão de seu peito e se
estreitava até debaixo de seu umbigo; seu rosto angular
e de feições duras, com um olhar direto e feroz, o nariz
proeminente e a cicatriz que o desfigurava; suas mãos
tocando-a, agarrando seu traseiro, sujeitando-o com
força para que não pudesse retrair-se da força intensa e
a profundidade de suas investidas.
Não tinha nem a energia nem a força de vontade
necessárias para desfazer-se das lembranças. E de
todos os modos não tinha sentido tentar relegá-los a
essa categoria. Sua profissão consistiria em permitir a
homens como esses que utilizassem seu corpo em troca
dos recursos necessários para sobreviver.
Tinha que recordá-lo deliberadamente, acostumar-se
às lembranças, aprender a aceitar o mesmo e talvez algo
pior, se é que podia haver algo pior, de outros homens.
Era uma troca justa, verdade? Porque não só tinha
que escolher entre a sobrevivência e a morte, a não ser
entre a sobrevivência e a morte lenta e dolorosa de
fome. Nunca, nem sequer durante aquele dia no que
sentia um desespero abismal, expôs-se o suicídio como
escapatória a seus problemas.
Assim não ficava nenhuma eleição por fazer. Tinha
que alimentar do único modo que ficava. Não encontraria
outro emprego. Não tinha experiência nem referências. A
senhora Fleming da agência de emprego a havia dito
numerosas vezes. Não se necessitava nenhuma das
duas coisas para fazer-se puta, só um corpo de mulher
razoavelmente jovem e bem formado. E um estômago
forte.
Era uma puta. Tinha vendido seu corpo uma vez e
continuaria fazendo-o uma e outra vez até que ninguém
mais a quisesse. Devia acostumar-se à idéia e ao feito.
E o certo é que devia dar-se por satisfeita se era
capaz de viver se prostituindo. Sempre existia a
possibilidade de que ocorresse algo pior e mais aterrador
ainda se a encontravam. Mudou o nome, e o terror
constante que tinha experimentado antes tinha diminuído
comparado com o medo muito real de ter que viver em
um entorno que não conhecia de nada e ao bordo da
inanição. Mas não devia confiar-se. Sempre existia a
possibilidade de que a descobrissem, sobretudo, se
devia passar cada noite apostada fora do teatro Drury
Lane e que a visse todas as pessoas elegantes de
Londres.
E se Matthew tinha vindo a Londres? E a prima
Caroline e Amelia tinham vindo inclusive antes que ela.
Quando Sally chamou a sua porta mais tarde, de
noite, e gritou seu nome através da fechadura, Fleur
ficou olhando ao teto e não respondeu.

Adam Kent, duque de Ridgeway, apoiou um cotovelo


na lareira de mármore no estúdio de sua casa em
Hanover Square e deu umas batidas nos dentes com um
nódulo.
—E bem? —Entrecerrou os olhos escuros ao ver seu
secretário, que acabava de entrar na habitação.
O homem meneou a cabeça.
—Temo-me que não houve sorte, Sua Excelência.
Saber só o nome de pilha da garota é muito pouco para
começar.
—Mas é um nome incomum, Houghton — protestou
o duque—. Chamaste a todas as portas?
—Ao longo de três ruas e ao redor de três lugares —
explicou Peter Houghton, fazendo um esforço por ocultar
sua exasperação—. De todos os modos pode ser um
nome falso, Sua Excelência.
—Pode — concedeu o duque. Franziu o cenho
sumido em seus pensamentos. Voltaria a estar fora do
teatro outra vez aquela noite? A agência de emprego em
que se detiveram… tinha ido realmente a procurar
trabalho alguma vez? E procuraria outro trabalho agora
que tinha eleito e começado com uma nova profissão?
Pode que não vivesse naquela parte de Londres. E pode
que tivesse dado um nome falso. Não tinha respondido à
pergunta imediatamente.
—Vou pôr isso mais fácil nos próximos dias —
decidiu de repente o duque—. Vais contratar a uma nova
criada para mim. No posto que te pareça adequado,
Houghton. Pode ser uma governanta… sim, acredito que
de governanta, se é que você é capaz de fazer o
trabalho. Tenho a sensação de que pode ser adequada.
Há uma agência perto das ruas que estiveste
percorrendo hoje.
—De governanta? —O secretário franziu o cenho.
—Para minha filha — respondeu o duque—. Tem
cinco anos. Já é hora de que tenha algo mais que uma
babá face à reticência de Sua Excelência a que comece
sua educação.
Peter Houghton tossiu.
- Perdoe-me, Sua Excelência, mas me pareceu
entender que a garota é uma prostituta. Acaso deveria
permitir estar a menos de quinze quilômetros de Lady
Pamela?
O duque não respondeu, e o secretário, que entendia
muito bem o que queria expressar o olhar de seu senhor,
recordou que não era mais que um humilde empregado
ao serviço de um dos nobres mais ricos do reino.
—Passará os próximos dias sentado na agência —
ordenou o duque—, até que te diga que já não é
necessário. Enquanto isso, irei habitualmente ao teatro.
Houghton fez uma reverência e o duque se apartou
bruscamente do suporte e saiu da habitação sem dizer
uma palavra mais. Subiu de duas em duas as escadas
para suas habitações privadas.
«Qualquer puta foi virgem antes.» O poeta William
Blake tinha escrito essa frase em alguma parte, ou
palavras similares. Não havia motivo para sentir uma
culpa especial por ter sido ele quem a desflorou. Alguém
tinha que fazê-lo uma vez que a garota decidiu seu
caminho. Se tivesse sido seu segundo cliente em vez do
primeiro não teria notado a diferença e aquela manhã já
teria se esquecido dela. Não tinha mostrado nenhuma
habilidade, nenhum atrativo, nada que fizesse que
desejasse voltar a encontrá-la. Não tinha idéia que uma
mulher pudesse sangrar tanto. E tinha visto e sentido sua
dor enquanto rasgava sua virgindade.
Se soubesse, poderia havê-lo feito de outra maneira.
Poderia havê-la preparado, acalmado, poderia havê-la
penetrado lenta e cuidadosamente, empurrando
brandamente através de sua dolorosa barreira. Mas tal e
como tinha ido, zangou-se com ela e com ele mesmo.
Parecia que tinha tentado degradá-los aos dois
colocando-se em cima dela, impondo seu domínio.
Mas ao mesmo tempo não lhe devia consideração
alguma. Vendeu-se de bastante bom grau, e ele a tinha
comprado. Tinha pagado três vezes mais do que ela
tinha pedido. Ficou bastante insatisfeito mais à frente do
alívio momentâneo que tinha sentido ao liberar sua
semente. Não tinha motivos para sentir-se culpado.
Mas tinha passado o dia e a noite incapaz de tirar a
garota da cabeça: seu corpo magro, sua compleição
pálida, seus olhos desfigurados e seus lábios partidos,
sua tranquilidade… Não tinha conseguido esquecer que
a pobreza e o desespero tinham conduzido a aquela
garota a converter-se na mais vulgar das prostitutas
guias de ruas.
Não podia evitar sentir-se responsável. Não podia
esquecer-se da calma com a que tinha aceitado o seu
destino, nem do sangue.
Perguntou-se se voltaria a encontrá-la. E se
perguntava quanto tempo seguiria tentando-o: o muito
mesmo duque de Ridgeway procurava uma puta da rua
com olhos grandes e sossegados e gestos e voz
refinada.
Fleur. Só Fleur, havia-lhe dito.
Capítulo 2

A senhorita Fleming, que era a proprietária e a


administradora da agência de emprego perto de onde
vivia Fleur, sempre a tinha tratado com certa altivez e
condescendência. Sua voz nasal sempre arrastava as
palavras como se aborrecesse. Como podia demonstrar
a senhorita Hamilton que seria uma dama de companhia
competente ou uma vendedora ou uma boa faxineira ou
qualquer outra coisa? Sem alguém que a recomendasse
não havia nenhuma maneira de que a senhorita Fleming
fora a jogar-se sua reputação enviando-a a que a
entrevistasse um possível patrão.
—Mas como podem me recomendar até que tenha
um pouco de experiência? —tinha perguntado Fleur uma
vez—. E como posso adquirir experiência se ninguém se
arriscar comigo?
—Conhece algum médico que pudesse falar por
você? —tinha insistido a senhorita Fleming—. A algum
advogado? A algum clérigo?
Fleur tinha pensado no Daniel e sentiu uma pontada
de dor. Daniel a recomendaria. Mostrou-se disposto a
que abrisse uma escola de povo com sua irmã. Mostrou-
se disposto a casar-se com ela. Mas estava muito longe,
no Wiltshire. Além disso, já não quereria casar-se com
ela nem contratá-la nem recomendá-la para um
emprego, não depois do que tinha ocorrido ali e depois
de que fugisse.
—Não — tinha respondido Fleur.
Foi o mero desespero a que a conduziu a voltar para
a agência cinco dias depois de fazer-se prostituta. Ao
abrir a porta e entrar não tinha nenhuma esperança real.
Mas sabia que essa noite teria que voltar para teatro
Drury Lane ou a qualquer outro lugar onde se
congregassem cavalheiros elegantes em busca de
prazer noturno. Tinha acabado o dinheiro.
O sangramento tinha cessado e a dor tinha
desaparecido. Mas o asco e o terror ante o que lhe
tinham feito a seu corpo tinham crescido a passos
aumentados, de modo que tinha náuseas quase todo o
tempo. Perguntava-se se algum dia chegaria a
acostumar-se à vida de prostituta, se algum dia seria
capaz de tratar seu trabalho simplesmente como o que
era. Pensava que provavelmente teria sido melhor que
tivesse saído à noite depois da primeira, embora lhe
doesse e todo o resto, e que não tivesse permitido que o
terror se afiançasse em seu interior.
—Tem algum emprego adequado para mim,
senhora? —perguntou à senhorita Fleming em voz baixa,
com o olhar fixo e tranqüilo. Tinha vivido uma infância e
uma juventude difíceis que a tinham preparado para não
mostrar nenhum sinal da dor e da degradação que
pudesse estar experimentando.
A senhorita Fleming levantou a vista adotando uma
expressão de impaciência e parecia estar a ponto de lhe
dar a réplica habitual, mas a olhou com maior
determinação e franziu o cenho. A seguir se ajustou os
óculos sobre o nariz e sorriu condescendente:
—Bom, senhorita Hamilton, há um cavalheiro na sala
do lado que está fazendo entrevistas para o posto de
governanta da filha de seu senhor. Pode ser que queira
fazer umas quantas perguntas, embora você seja jovem
e não tenha cartas de recomendação, e não conheça
ninguém influente. Espere aqui, por favor.
Fleur juntou as mãos com força, afundando as unhas
nas palmas. Estava sem fôlego, como se tivesse
deslocado dois quilômetros. Trabalhar de governanta!
Não, não, não. Não devia começar nem sequer a
albergar esperanças. Provavelmente o homem não
quereria nem vê-la.
—Passe por aqui, por favor, senhorita Hamilton —
indicou a senhorita Fleming com tom de eficiência da
entrada da sala do lado—. O senhor Houghton a
receberá.
Fleur era muito consciente de seu vestido enrugado,
a capa opaca, e de que não levava chapéu. Ia vestida
com a roupa que usava fazia mais de um mês, quando
tinha tido que fugir. Era consciente de que seu cabelo
não estava muito atraente, das olheiras que tinha, dos
lábios partidos. Tragou saliva e entrou na habitação. A
senhorita Fleming fechou a porta sem fazer ruído detrás
dela.
—A senhorita Fleur Hamilton? —O homem que
estava sentado detrás de uma mesa grande a examinou
lenta e intensamente, da cabeça aos pés.
Fleur ficou quieta e lhe devolveu o olhar. Era um
homem jovem, calvo, magro. Se a aparência da garota
resultava inaceitável, seria melhor que o dissesse agora
antes que suas esperanças aumentassem sem poder
remediá-lo.
—Sim, senhor.
Apontou uma cadeira e ela se sentou, com as costas
retas e o queixo alto.
—Estou fazendo entrevistas para o posto de
governanta — explicou o cavalheiro—. Trabalho para o
senhor Kent de Dorsetshire. Sua filha tem cinco anos.
Considera que está qualificada para o posto?
—Sim — respondeu ela—. Eduquei-me em casa até
os onze anos e logo na escola Broadridge de
Oxfordshire. Era competente em todas as disciplinas.
Falo francês e italiano razoavelmente bem, toco o piano
e sou boa aquarelista. Sempre me interessaram muito a
literatura, a história e os clássicos. E tenho certa
habilidade com os trabalhos de costura.
Respondeu a suas perguntas tão clara e
sinceramente como pôde. O sangue martelava as
têmporas, agarrava as mãos formando um punho no
regaço, e tinha os dedos de ambas as mãos cruzados
onde ele não podia vê-los.
«Por favor, Deus», rezou em silêncio, «OH, por favor,
Meu Deus.»
—Se tivesse que me pôr em contado com sua antiga
escola, a diretora me confirmaria o que me contou? —
perguntou.
—Sim, senhor. Estou segura.
«Mas, por favor, não o faça. Não reconheceriam o
nome. Negariam que tivesse estudado ali.»
—Poderia me dizer algo a respeito de sua família e
suas origens, senhorita Hamilton? —perguntou
finalmente o senhor Houghton.
Ela o olhou fixamente e tragou saliva.
—Meu pai era um cavalheiro. Morreu endividado. Vi-
me obrigada a vir a Londres em busca de emprego.
«Perdoe-me, pai», suplicou em silencio a seu pai
falecido.
—O que? —perguntou ela.
—Quanto tempo faz? —repetiu o senhor Houghton
—. Quanto tempo faz que veio a Londres?
—Recentemente mais de um mês.
—Que emprego teve após?
Ela ficou um momento em silêncio, olhando-o
fixamente.
—Tive dinheiro suficiente para agüentar até a data.
Ficou quieta enquanto o olhar do homem percorria o
inadequado vestido de seda que levava sob a capa. Ele
sabia. Devia notá-lo. Como poderia ter vivido toda a dor
e a degradação de na semana anterior e mantê-lo
invisível aos olhos dos estranhos? Devia saber que
mentia. Devia saber que era uma prostituta.
—Tem cartas de recomendação? —seguiu
perguntando—. Leva você as cartas?
Já sabia que albergava uma esperança cruel. Em
realidade não tinha albergado esperanças.
—Não tenho, senhor — confessou—. Nunca tive
emprego. Vivi como filha de um cavalheiro.
E esperou em silêncio a que a despachasse.
Mas a esperança se viu cruelmente respirada.
«Por favor, Deus», rezou, «Por favor, Meu Deus. OH,
por favor…»
E Fleur desejou não ter ido. Desejou que não tivesse
existido essa esperança ilusória.
—O que? —repetiu a garota.
—O posto é seu se o desejar.
Ela o olhou fixamente.
—Não desejaria o senhor Kent falar comigo primeiro?
—perguntou.
—Confia em meu critério.
—E a senhora Kent? Não quererá me entrevistar?
—A senhora Kent está em Dorsetshire com a menina
— explicou o homem—. Quer o posto, senhorita
Hamilton?
—Sim — afirmou. Uma das unhas tinha acabado lhe
atravessando a carne da palma—. OH sim, por favor.
—Necessitarei seu nome completo e endereço —
comentou, estendendo um papel. Agarrou uma pluma e
a molhou no tinteiro, mostrando-se expedito e eficiente
—. Nos próximos dias lhe entregarei um bilhete para a
diligência que vai ao Dorsetshire e farei que vá procurar
à localidade de Wollaston e a levem ao Willoughby Hall,
lar do senhor Kent. Enquanto isso me autorizaram a
pagar um dinheiro adiantado para que compre roupa
adequada para uma governanta. —Levantou a vista e a
percorreu com o olhar uma vez mais.
Ela permaneceu escutando atordoada o impossível,
o incrível. Seria governanta. Viveria no campo e se
encarregaria da educação de uma menina de cinco anos.
Estavam-lhe dando dinheiro suficiente para comprar
vestidos decentes e chapéus e sapatos. Viveria com uma
família respeitável em um lar honorável.
O que diria o senhor Houghton, como a olharia se
soubesse a verdade sobre ela? O que ocorreria se
chegasse a averiguá-lo? Ou se o senhor e a senhora
Kent chegavam a averiguá-lo? Como se sentiriam se
soubessem que o homem que trabalhava para eles ia
empregar a uma prostituta para ensinar a sua filha?
—Bom — disse finalmente Fleur, levantando-se da
cadeira enquanto o senhor Houghton ficava sentado na
mesa—. Se isto for tudo, senhor.
—Levarei o bilhete para a diligência nos próximos
dias, senhorita Hamilton — reiterou, e inclinou a cabeça
indicando que podia partir—. Que tenha um bom dia,
senhorita.
Fleur saiu da habitação e da agência aturdida, sem
fixar-se apenas na senhorita Fleming, que assentiu
cortesmente quando passou.
Na sala, Peter Houghton franziu a boca e ficou
olhando a porta fechada pela que acabava de sair a
amante de seu senhor.
Não via onde radicava seu atrativo. Era uma garota
magra e pálida, com rasgos comuns e cabelo
avermelhado ao que faltava brilho. Quando ganhasse um
pouco de peso poderia ser que tivesse uma figura
bastante bonita, mas a fim de contas não era a não ser
uma puta a que seu senhor tinha recolhido à saída do
Drury Lane umas noites atrás.
Que ele soubesse, seu senhor nunca tinha
agasalhado a uma amante, nem sequer em Londres. E,
entretanto não tinha previsto pôr discretamente a aquela
garota uma casa própria, onde poder visitá-la e desfrutá-
la como gostasse. Pensava enviá-la Willoughby, para
que estivesse sob o mesmo teto que a filha e a mulher
do duque. Para que fosse a governanta de sua filha.
Sua Excelência era um homem estranho. Peter
Houghton respeitava ao seu senhor e valorava o
trabalho, mas mesmo assim havia algo estranho naquele
homem. A duquesa era dez vezes mais encantadora que
a amante.
Esposa e amante sob o mesmo teto. A vida podia
voltar-se interessante. Certamente, Sua Excelência
decidiria muito em breve que o melhor era voltar para
campo e à felicidade de seu lar.
Peter Houghton sorriu levemente e meneou a
cabeça. De todos os modos, uma coisa estava clara:
estaria encantado de sair daquela sala e de livrar-se dos
sorrisos tolos e insinuantes da senhorita Fleming detrás
passar quatro dias esperando a que a fraca e ruiva Fleur
fizesse ato de presença.

Fleur saiu de Londres na diligência seis dias mais


tarde, depois de haver-se visto uma vez mais e de forma
fugaz com o senhor Houghton. Levou consigo um baú
pequeno, nele dobrou cuidadosamente seu vestido de
seda azul, a capa cinza e vários objetos e acessórios
novos, singelos, mais práticos.
Foi uma viagem longa e incômoda. Passou a maior
parte do tempo espremida entre grandes, irritáveis e
sujos passageiros. Mas não se queixou, nem sequer em
seu foro interno. As alternativas resultavam muito
descarnadas.
Se não fosse pelo emprego viveria em um quartinho
durante o dia e exerceria seu ofício de prostituta a noite.
Para então já teria saído com vários clientes distintos, e
possivelmente teria descoberto a verdade do que havia
dito o primeiro. Poderia ser que outros homens a tivesse
tratado pior. E poderia ser que tivessem pago menos,
assim seria obrigada a trabalhar cada noite.
Não, não queria queixar-se. Oxalá o senhor e a
senhora Kent não descobrissem a verdade sobre ela.
Mas como poderiam fazê-lo? Só um homem sobre a
terra sabia a verdade, e nunca voltaria a vê-lo, embora
habitasse em seus pesadelos durante o resto de sua
vida.
Claro que o senhor e a senhora Kent também tinham
que descobrir outra verdade. E uma vez que Londres e
seus terrores ficaram atrás, recordou-o outra vez, com
maior intensidade, e se dedicou a olhar nervosa ao seu
redor não sabia muito bem o que.
Voltou a ver o rosto morto do Hobson com maior
freqüência em sua mente uma vez voltou a estar no
campo: os olhos que a olhavam fixamente, a mandíbula
desencaixada, o rosto lívido e surpreso. Assombrava-lhe
que não a tivesse açoitado mais em sonhos do que o
tinha feito nas últimas sete semanas. Mas é que se
encontrou com o terror ainda major de sobreviver nos
bairros baixos de Londres. Mas a perseguia agora que
estava acordada.
Tinha-o matado. Além de prostituta, era uma
assassina. O que faria ou diria essa gente da diligência
se soubesse quem era ou o que era? A idéia quase lhe
resultava divertida. Espantosamente divertida.
—O que é o que te faz tanta graça, menina? —
perguntou uma mulher muito bem dotada sentada no
assento de em frente, carregada com uma cesta quase
tão grande como ela mesma. Fleur se acalmou
imediatamente.
—Estava pensando que quando acabarmos de
cruzar este trecho da estrada igual já estaremos todos
feitos gelatina — explicou, e sorriu.
Foi uma boa resposta. Todos os passageiros se
animaram e ficaram a arejar seus queixa contra o distrito
responsável pela reparação desse trecho da estrada pelo
que estavam passando.
Não, não era uma assassina. Não devia chamar-se
assim a si mesmo. Tinha-o empurrado e se cansado e
bateu com a cabeça na quina da chaminé e morreu.
Tinha sido um acidente. Estava-se defendendo. Pensava
sujeitá-la quando Matthew o indicasse. Fleur só lutava
por liberar-se.
Matthew tinha utilizado a palavra «assassinato»
depois de examinar o corpo. Foi a palavra e o impacto de
ver o rosto esvaído do morto o que provocou que fugisse
sem pensar em nada em vez de continuar com os planos
que tinha feito.
Tentou não pensar nisso. Poderia ser que nunca a
tivessem açoitado. Poderia ser que, depois de tudo,
Matthew tivesse explicado que tinha sido um acidente. E
inclusive se tinham dedicado a persegui-la, poderia ser
que para então já tivessem abandonado a perseguição.
Ou possivelmente não a encontrariam jamais. Tudo tinha
ocorrido sete semanas atrás. Mas se havia sentido mais
segura em Londres.
Quase voltou a sorrir. Mais segura!
Tratou de imaginar-se à pequena senhorita Kent, a
menina de mamãe e papai. Imaginou em uma casa
acolhedora, uma família pequena unida pelo amor, a
diferença de seus próprios pais e dela mesma quando
era menina. Tratou de imaginar-se a si mesmo
introduzindo-se no grupo, e que a tratassem quase como
a alguém da família.
Compensar-lhes-ia pelo grande engano que estava
perpetrando. Não tinha respondido com sinceridade à
pergunta do senhor Houghton. Quando perguntou no que
tinha trabalhado desde que chegou a Londres, tinha
fingido que levava suficiente dinheiro para manter-se.
Não tinha falado do único emprego que tinha encontrado.
Mas isso pertencia ao passado. Ninguém saberia
jamais. A única pessoa a que se sentiria obrigada a
contar o seria a um futuro marido e não se imaginava
que fora a desejar casar-se jamais. Agora não podia.
Pensou durante um instante no Daniel, mas apartou a
imagem de seu sorriso bondoso, seu cabelo loiro e seu
traje clerical da mente. Se as circunstâncias tivessem
sido distintas, poderia haver-se casado com o Daniel e
ser feliz com ele o resto de sua vida. Tinha-o amado.
Mas as circunstâncias não eram distintas. Agora já
não poderia voltar para ele, inclusive se de repente se
inteirava de que Matthew não tinha considerado essa
morte como assassinato. Não poderia voltar atrás. No
momento era uma perdida. Fechou os olhos lamentando
um instante e os abriu para examinar a paisagem que
passava estralando por diante das janelas da carruagem,
ou o passado que deixava atrás estralando, para
expressá-lo com maior precisão.
Estava começando uma nova vida, e sempre deveria
estar agradecida de que isso tivesse sido possível por
haver-se apresentado na agência da senhorita Fleming
durante a hora exata em que se encontrava o senhor
Houghton para realizar entrevistas. Só lamentava que
não tivesse aparecido por ali cinco dias antes, mas não
tinha sido assim, e isso era tudo. Não se mostraria
ingrata ante o presente de uma nova vida e um novo
começo. Mostraria sua gratidão sendo a melhor
governanta que tivesse tido jamais uma família.

Matthew Bradshaw, Lorde Brockehurst, tinha alugado


um coquete piso de solteiro no St. James Street durante
sua estadia em Londres, preferindo não alojar-se com
sua mãe e sua irmã durante toda a agitação da
temporada londrina, embora as visitassem para contar as
novidades. Sua mãe comentou friamente que não lhe
surpreendiam absolutamente. Sempre tinha sabido que
Isabella acabaria mal.
Ao princípio, Matthew não previu que ficaria durante
muito tempo. Isabella se tinha assustado tanto que tinha
desaparecido dos arredores de seu lar no Wiltshire. E
Matthew descobriu quando foi à paróquia que nem
sequer tinha ido ver o reverendo Booth. Devia ter ido a
Londres. Era o único destino que poderia ter escolhido.
Teria se posto a mercê de sua mãe ou de algum
conhecido, embora não tivesse muitos na cidade. Ao
longo de sua vida não tinha passado muito tempo longe
de casa, exceto os cinco anos que tinha passado na
escola a que a mãe do Matthew se empenhou em enviá-
la para livrar-se dela.
Não tinha encontrado nenhum rastro dela, embora
tivesse procurado durante mais de um mês e tinha feito
um sem-fim de perguntas. E já tinha descoberto que não
tinha recorrido a sua mãe. Tinha sido uma estupidez
esperar que o tivesse feito.
Assim Matthew tinha acabado adotando medidas se
desesperadas. O homem baixo, fornido e com a face
avermelhada que se encontrava de pé em seu salão com
as pernas separadas duas manhãs depois de que Fleur
partiu de Londres, que levava um lenço não muito limpo
e alisava incansavelmente o cabelo gordurento, era
membro dos Bow Street Runners, a polícia urbana.
Levavam um momento falando.
—Isto é o que terá ocorrido, eu creio, senhor —
assegurou o senhor Henry Snedburg. Negou-se a sentar-
se, explicando que seu tempo era muito valioso—, estará
escondida nos bairros mais pobres e procurando
emprego.
—Então a busca será inútil — repôs lorde
Brockehurst—. Como a agulha proverbial no palheiro.
—Não, não, não. —O agente levantou uma mão para
arranhar a parte traseira de seu pescoço gordo e
vermelho—. Eu não diria isso, senhor. Há agências.
Como é uma dama, terá pensado tentá-lo em uma ou
várias delas. Só necessito uma lista e já posso começar.
Há dito que a buscavam por assassinato, senhor?
—Intento de roubo — corrigiu Lorde Brockehurst—.
Tentou fugir com as jóias da família.
—Ah, miúda peça parece, senhor. Começarei minha
investigação sem mais demora e com toda cautela. A
jovem dama estará se desesperada. Deteremo-la em um
abrir e fechar de olhos pode estar seguro. Posso lhe
perguntar o que nome acredita que pode adotar?
Lorde Brockehurst ficou a pensar nisso.
—Acredita que terá trocado de nome? —perguntou
Matthew.
—Se tiver um mínimo de sentido comum o terá feito,
senhor — explicou o senhor Snedburg—. Mas muito
poucas vezes a gente se inventa um nome totalmente
novo. Diga-me seu nome completo, senhor, e o nome de
sua mãe, e os nomes de algumas das criadas da casa e
os das amigas e conhecidas da jovem.
Lorde Brockehurst começou a lhe dar nomes.
—Seu nome completo é Isabella Fleur Bradshaw. O
nome de sua mãe era Laura Maxwell, o de sua criada
pessoal, Annie Rowe, e o de sua melhor amiga, Miriam
Booth.
—E o de sua governanta, senhor?
—Phyllis Matheson.
—Os das avós da garota?
—Hamilton por parte de pai — recordou—. Lenora,
acredito. Por parte de mãe não sei.
—E o de seu mordomo?
—Chapman.
—Provarei com estes — disse finalmente o senhor
Snedburg—. Encontrarei algo. Não tenho nenhuma
dúvida. Bem, e agora necessito uma descrição da jovem.
—Um pouco mais alta que a estatura média —
começou Lorde Brockehurst—. Magra. Olhos marrons.
Cabelo avermelhado dourado.
—Diria que é seu traço mais destacado, senhor? —
perguntou o agente, olhando fixamente a seu cliente.
—Sim. —Lorde Brockehurst percorreu a sala com o
olhar, mas sem ver nada concreto em realidade—. O
mais destacado. Como a luz do sol e do crepúsculo
mescladas.
O senhor Snedburg tossiu.
—Muito bem, senhor. Então, diria que é uma beleza?
—Ah sim. —O cavalheiro lhe devolveu o olhar—.
Uma autêntica beleza. Quero que a encontrem.
—Entendo que como juiz de paz, senhor — corrigiu o
agente—. Porque, pese ao feito de que é sua prima,
deve ser julgada pelo assassinato de seu ajudante
pessoal.
—Sim, por esse motivo — concedeu Lorde
Brockehurst, abrindo e fechando as mãos aos flancos—.
Encontre-a.
O senhor Snedburg fez uma reverência pouco
elegante e saiu da sala sem mais preâmbulos.

—Senhorita Hamilton?
Fleur se voltou um pouco surpreendida ante o jovem
vestido com elegantes roupagens azuis que pronunciou
seu nome ao descer da diligência no Wollaston.
—Sim — respondeu ela.
—Sou Ned Driscoll, senhorita. Vim levá-la à mansão.
Onde estão seus baús, senhorita?
—Só esse — indicou Fleur.
O jovem ia vestido de um modo realmente elegante.
E carregou o baú ao ombro como se não pesasse mais
que uma pluma e atravessou o pátio pavimentação da
estalagem onde se deteve a diligência em direção a uma
carruagem fechada com um brasão pintado a um lado.
Uma casa acolhedora? Uma família pequena?
—Você é o criado do senhor Kent? —perguntou ao
moço, seguindo-o—. Esta é sua carruagem?
Ele se voltou e sorriu divertido.
—O senhor Kent? Mais vale que não lhe ouça
chamá-lo assim, senhorita. É «Sua Excelência» para
pessoas como você e eu.
—Sua Excelência? —Fleur sentiu que fraquejavam
os joelhos.
—Sua Excelência, o duque de Ridgeway — explicou
o criado, olhando-a com curiosidade—. Não sabia? —
Sujeitou firmemente o baú na parte traseira da
carruagem.
—O duque de Ridgeway? Deve haver um engano.
Contrataram-me como governanta para a filha do senhor
e a senhora Kent — explicou a jovem.
—Lady Pamela Kent, senhorita — esclareceu o
criado, oferecendo uma mão para ajudá-la a entrar na
carruagem—. Foi o senhor Houghton quem a contratou?
É o secretário pessoal de Sua Excelência. Deve ter feito
uma brincadeira.
Uma brincadeira. Fleur se sentou na carruagem
enquanto a moço subia à boléia, e fechou os olhos um
momento. Seu senhor era o duque de Ridgeway? Tinha
ouvido falar dele. Estava considerado um dos pares mais
ricos do país. Matthew tinha conhecido a seu meio irmão,
Lorde Thomas Kent. Kent! Nem sequer se tinha
precavido de que era o mesmo nome.
Deveria havê-lo pensado. Deveria ter estado muito
mais alerta. Matthew conhecia irmão de seu senhor. Mas
ela não conhecia esse homem. E não a reconheceria a
ela nem seu nome agora que o tinha trocado. Não devia
começar a fazer hipóteses absurdas.
Willoughby Hall. O senhor Houghton tinha dado esse
nome como lar de seu senhor. Mas a mente brincava
com estranhas passadas. Tinha concebido uma imagem
tão forte e rápida da família Kent que em seguida se
imaginou uma casa singela. Mas sabia como era
Willoughby. Era um dos imóveis maiores da Inglaterra, e
além se dizia que tinha algumas das mansões e parques
mais magníficos do país.
E naquele momento, muito antes que sua mente se
adaptasse às novas circunstâncias de sua existência, a
carruagem passou por diante do muro elevado de um
parque salpicado de musgos, líquenes e coberto de hera,
e girou entre enormes ombreiras de pedra em direção a
um passeio que serpenteava bordeado de limas.
Fleur viu pastos ondulantes salpicados de carvalhos
e castanhos a cada lado. Inclusive viu um grupo de
cervos que pastavam durante um instante. Logo a
carruagem passou retumbando por cima de uma ponte e
viu umas cascatas efervescentes por debaixo. Mas
quando se voltou para vê-lo melhor, sua atenção se
distraiu.
As limas não se estendiam mais à frente da ponte.
Os pastos abertos e ondulantes não obstruíam a visão
de uma mansão cuja magnificência fez que Fleur ficasse
sem respiração.
A casa tinha uma fachada ampla. Suas asas
inferiores se estendiam a cada lado de uma seção
central elevada com frontão triangular, cujas colunas
estavam elaboradas com um delicioso desenho
corintiano estriado. Uma grande lanterna central e uma
cúpula se elevavam atrás do frontão. Os parapeitos
estavam repletos de estátuas de pedra, bustos, vasos e
urnas.
Uma grande fonte de mármore diante da casa
brincava entre sebes recortados e terraços de flores e
plantas.
Pensava que Heron House, sua própria casa — a do
Matthew— era bastante esplêndida. Mas em
comparação com aquilo não pareceria mais que uma
casinha rústica.
E ela que se imaginou uma casa acolhedora e uma
família pequena! Pensativa, Fleur apoiou um instante a
cabeça contra as almofadas que tinha detrás enquanto a
carruagem se detinha ante os degraus de mármore em
forma de ferradura que conduziam às portas principais e
ao piano nobile, o piso principal.
Mas foram as portas duplas sob os degraus as que
se abriram para que entrasse, as portas que levavam às
habitações dos criados. Um criado informou que a
senhora Laycock, a ama de chaves, estaria encantada
de receber à senhorita Hamilton em seu salão privado,
fazendo meia reverencia antes de voltar-se para lhe
indicar o caminho.
Para Fleur, a própria senhora Laycock já parecia uma
duquesa. Possuía uma figura esbelta e seu traje era
singelo, mas elegante, de cor negra. Tinha o cabelo
prateado recolhido no alto da cabeça. Só o punhado de
chaves que pendurava na cintura proclamava sua
condição de criada.
—Senhorita Hamilton? —perguntou, tendendo uma
mão a Fleur—. Bem - vinda ao Willoughby Hall. Deve ter
tido uma viagem longa e tediosa de Londres. O senhor
Houghton nos informou que chegaria hoje. Alegro-me de
ver que Sua Excelência considerou oportuno contratar a
uma governanta para a Lady Pamela. Chegou a hora de
tenha mais estímulos para a mente e mais atividades das
que pode lhe proporcionar uma babá anciã.
Fleur estendeu a mão à ama de chaves e recebeu
um firme apertão.
—Obrigado, senhora. Farei todo o possível por
ensinar bem à menina.
—Não será fácil — comentou a senhora Laycock,
conduzindo a Fleur até uma cadeira—. Quer um pouco
de chá, senhorita Hamilton? Vejo que está esgotada.
Terá que as ver-se com a duquesa.
Fleur a olhou inquisitiva.
—Armitage, a criada pessoal de Sua Excelência,
confiou-me que à duquesa não gostou que Sua
Excelência contratasse a uma governanta sem nem
sequer consultar, explicou a ama de chaves, vertendo
chá em uma taça e dando a Fleur.
—Vá Por Deus…
—Mas não se preocupe — a tranqüilizou a senhora
Laycock—. O duque é o que manda aqui, e a Sua
Excelência pareceu apropriado preocupar-se com o
futuro de sua filha. E agora, senhorita Hamilton, me
conte algo de você. Acredito que nos daremos bem.

Capítulo 3

Peter Houghton estava revisando a correspondência


do duque de Ridgeway e apartando os convites que
pensava que seu senhor desejaria aceitar quando, para
ouvi-lo entrar em casa, antes inclusive de que chegasse
ao estúdio, soube que estava de mal humor. Havia algo
em seu tom de voz, embora não pudesse ouvir suas
palavras exatas, que traía seu estado de ânimo.
E o secretário, ficando em pé e afundando-se outra
vez na cadeira quando o duque fez um gesto impaciente
com a mão para que voltasse a sentar-se, viu que, além
disso coxeava ligeiramente. Normalmente Sua
Excelência fazia grandes esforços por não coxear.
—Algo importante? —perguntou, assinalando para a
pilha do correio.
—Um convite para jantar com sua Majestade.
—Prinny? Desculpe-me — pediu o duque.
—É uma entrevista real para jantar e jogar às cartas
—insistiu o secretário tossindo.
—Sim, entendo-o. Desculpe-me. Há algo de minha
esposa?
—Nada, Sua Excelência — respondeu Houghton,
olhando para a pilha.
—Partimos ao Willoughby — ordenou Sua
Excelência de maneira cortante—. Vejamos… prometi
acompanhar aos Dennington à ópera amanhã de noite
com sua sobrinha. Não se pode cancelar nada mais,
verdade? Partiremo-nos depois de amanhã.
—Sim, Sua Excelência. —Peter Houghton dissimulou
um sorriso enquanto seu senhor saía dando pernadas da
habitação. Tinham passado duas semanas desde que
tinham mandado a sua amante na diligência. O duque
tinha mostrado muita fortaleza ao esperar tanto antes de
encontrar uma desculpa para ir atrás dela.
O duque de Ridgeway subiu as escadas de dois em
dois, tal e como estava acostumado a fazer, em que
pese a que o flanco e a perna lhe doíam. Distraído,
esfregou-se o olho esquerdo e a face. Era pela umidade.
As velhas feridas sempre incomodavam quando piorava
o tempo. Maldita Sybil! Negou-se sistematicamente a
acompanhá-lo a Londres desde fazia quatro anos,
quando se viu obrigado a enfrentar-se a ela e pôr fim à
indiscrição mais selvagem em que se embarcou. E,
entretanto, parecia que quase cada vez que se instalava
em Londres só para ter uns poucos meses de paz, ela
tinha decidido organizar uma grande festa no campo,
convidando a todos os membros da alta sociedade,
homens e mulheres, aos que conseguia convencer para
que partissem de Londres e fossem ao Dorsetshire.
Estranha vez lhe parecia necessário informar de seus
planos. Só ficava averiguá-lo, se é que o averiguava,
acidentalmente. Em uma ocasião dois anos atrás não
soube até que voltou para casa e descobriu que todos os
convidados tinham estado ali e partiram exceto um que
ficou atrasado. E esse atrasado tinha tido a amabilidade
de fazer um favor às donzelas deixando livre sua própria
habitação de convidados e compartilhando a da
duquesa. O duque tinha expulsado a esse cavalheiro em
particular menos de uma hora depois de ter tornado, e o
homem pareceu tomar-se muito a sério o conselho de
não deixar-se ver nem em Willoughby nem em Londres
ao menos durante os próximos dez anos.
E tinha repreendido à duquesa por não mostrar
decoro diante dos criados e os que dependiam deles, o
que tinha provocado que a duquesa empalidecesse e
acabasse sumida em muitas lágrimas. Sybil sempre
parecia mais bonita do habitual quando chorava. E o
tinha acusado de ter o coração de pedra, de abandoná-
la, de mostrar-se tirano… todas as acusações habituais.
Aquela vez Sua Excelência se inteirou da festa de
Sybil no White's por boca do Sir Hector Chesterton. O
homem se mostrou agradecido por seu convite enquanto
resfolegava pela bandagem rangente que lhe oprimia.
—Não há muito que fazer na cidade estes dias,
querido amigo - explicou—, exceto comer-se com os
olhos às meninas. E suas mães se aferram a elas como
sanguessugas, assim que quão único a gente pode fazer
é olhar. Sybil foi muito amável ao me convidar.
—Sim — o duque tinha sorrido friamente—, adora
rodear-se de companhia.
E, portanto, devia voltar para o Willoughby muitas
semanas antes do previsto. Chamou com o sino e tirou o
casaco enquanto esperava que chegasse seu ajudante
de quarto. Pelo bem dos criados e pelo bem de Pamela,
tinha que voltar. Não seria justo lhes permitir que
presenciassem as libertinagens de Sybil e seus amigos.
Por Deus! Tirou o seu lenço e o jogou em um lado.
Tinha-a amado. Uma vez, fazia uma eternidade, tinha-a
amado. Tinha amado a doce, frágil, loira e bonita Sybil.
Tinha sonhado com ela, suspirado por ela durante o
tempo que esteve na Bélgica esperando a batalha que
se converteu na Batalha do Waterloo. Tinha vivido da
lembrança de seus sorrisos radiantes, de suas doces
declarações de amor, do acanhamento com a que tinha
aceitado sua proposta de matrimônio, de seus quentes
beijos de donzela.
Por Deus! Abriu o botão superior da camisa e viu
como saía disparado pelo quarto e tilintava contra a
terrina de porcelana do lavabo.
—Que alguém pregue estes botões infernais —
ladrou a seu ajudante de quarto, que teve a má fortuna
de entrar pela porta naquele momento.
Mas seu ajudante de quarto estava com ele desde
que era menino, e o tinha acompanhado à guerra e tinha
sido seu ajudante pessoal na Espanha e na Bélgica. Era
um homem resistente.
—Doe-lhe a perna e o flanco, verdade, senhor? —
perguntou alegremente—. Imaginava que sim, com este
tempo… vire-se e me deixe que lhes dê uma massagem.
—E isso como ajudará a que os botões não se
desprendam das camisas, maldito seja? —espetou o
duque.
—Servirá, confie em mim — o tranqüilizou o ajudante
de quarto—. Deite-se, agora.
—Quero minha roupa de montar — exigiu o duque—.
Vou galopar pelo parque.
—Depois de que eu faça a massagem —insistiu o
homem, como uma babá falando com um menino—.
Vamos voltar para o Willoughby, senhor?
—Houghton se dedicou a fazer correr a voz, não? —
comentou Sua Excelência, tornando-se obediente em um
sofá do vestidor e permitindo a sua ajuda que lhe tirasse
a roupa e fizesse mãos à obra com suas mãos fortes e
peritas, que sempre conseguiam aliviar a dor—. Alegrará
a você voltar para casa, Sidney?
—Assim é — afirmou o homem—. E você também,
senhor, se decidir a admiti-lo. Willoughby sempre foi seu
lugar favorito do mundo inteiro.
Sim. Tinha-o sido. Criou-se sendo consciente de que
um dia tudo seria dele. E seu amor pelo Willoughby
estava profundamente enraizado nele. Tinha-lhe
acompanhado durante os anos de escola e universidade
e durante os anos que tinha passado no exército.
Empenhou-se em ocupar seu lugar em um regimento de
infantaria apesar de ser o filho mais velho e o herdeiro e
face à oposição de seu pai e de quase todo mundo que o
conhecia.
Mas Willoughby tinha permanecido em seu sangue.
Era aquilo pelo que tinha lutado: por Willoughby, seu lar,
Inglaterra em miniatura.
E mesmo assim odiava voltar ali. Porque Sybil estava
ali. Porque a vida nunca poderia ser como tinha sonhado
que seria quando era jovem.
Mas tinha que ir-se. E algo em seu interior estava
perversamente feliz de que tivesse que fazê-lo.
Willoughby a finais da primavera e no verão: fechou os
olhos e sentiu que o invadia essa saudade profunda que
sempre tinha sentido por seu lar quando estava longe e
se permitia pensar nele.
E logo estava Pamela. Em que pese a sua atitude
protetora, pese ao feito de que não suportava deixá-lo
estar perto da menina, Sybil não se preocupava muito
por ela. Quase não passava tempo com sua filha.
Pamela o necessitava. Necessitava algo mais que uma
babá.
E tinha algo mais que uma babá. Tinha uma
governanta. Fleur… A tinha afastado de sua mente para
sossegar a voz de sua consciência encontrando um
emprego. E Houghton tinha assegurado que parecia
capacitada para ser governanta. Houghton a teria
entrevistado a fundo.
O duque não queria pensar nela. Não queria voltar a
vê-la. Não queria recordá-lo. Só tinha sido infiel ao Sybil
aquela vez, embora houvesse muito pouco ao que ser
infiel.
Por que tinha feito que mandassem a Fleur a
Willoughby? Tinha outras propriedades. Poderia havê-la
mandado a uma delas para que trabalhasse de criada.
Por que Willoughby? Para que estivesse na mesma
casa que sua esposa. Para que educasse a sua filha.
Uma puta educando a Pamela.
—Já basta, maldito seja! —protestou, abrindo os
olhos—. Pretende que durma?
—Isso tentava, senhor — respondeu Sidney, sorrindo
alegremente—. Quando está dormido não tenho que
sofrer seu temperamento, senhor.
—És insolente! —irritou-se o duque, sentando-se e
esfregando-se outra vez o olho—. Vá procurar minha
roupa de montar.

Fleur não conheceu a menina que tinha que cuidar


nem à duquesa o dia que chegou ao Willoughby Hall. Ao
parecer tinham ido visita pela tarde, levando-se a babá
com elas.
—A senhora Clement foi a babá de Sua Excelência a
duquesa — explicou a senhora Laycock—. Estão muito
unidas. Temo-me que lhe incomodará sua presença
tanto como à duquesa, senhorita Hamilton. Deve
recordar que é Sua Excelência o duque quem paga seu
salário — explicou rapidamente, de modo que a Fleur
deu a impressão de que não era a única criada que devia
recordar esse fato.
Ao que parecia Sua Excelência estava ausente de
casa. Era provável que estivesse em Londres para a
temporada se o senhor Houghton que a tinha
entrevistado era seu secretário pessoal. A senhora
Laycock não sabia quando se esperava que voltasse.
—Embora sem dúvida tenha se inteirado que Sua
Excelência está planejando outra festa —explicou a
mulher—, é um grande baile.
Utilizou um tom de desaprovação, embora não disse
nada mais a respeito. E acrescentou que aproveitaria
que a duquesa não se encontrava ali para mostrar a
Fleur parte do piso de acima da casa.
A mansão era tão magnífica e estava construída a
uma escala tão colossal que Fleur ia atrás da senhora
Laycock, olhando assustada e sem dizer virtualmente
nada. Todas as habitações de uso comum, da família e
os escritórios estavam no piano nobile, enquanto que o
quarto de estudo, o quarto de brincar e os quartos dos
criados se encontrava nas habitações menores de
abaixo. Fleur já tinha visto seu próprio quarto: pequeno,
quadrado, luminoso e ventilado, e situado junto ao quarto
de estudo. Dava a uma zona de grama e a umas árvores
na parte de atrás. A habitação parecia um paraíso em
comparação com a que tinha em Londres.
O circuito pela casa começou no grande salão
abovedado da entrada com sua lanterna e seu trifólio no
alto justo por debaixo da cúpula, que alagavam a
habitação de luz, e a cúpula grafite com anjos voadores.
Uma galeria ocupava o círculo debaixo da lanterna.
—Nas grandes ocasiões é o local da orquestra —
explicou a ama de chaves— Quando há um baile, as
portas até a galeria alargada e o salão se deixam abertas
para fazer uma grande sala de baile com um passeio. Já
verá se chover o dia do baile de Sua Excelência. Tem
que celebrar-se ao ar livre junto ao lago, e nos convidam,
senhorita Hamilton, ao tratar-se de uma atividade ao ar
livre. Mas o transladarão ao interior se o tempo se
mostrar inclemente, claro está.
Fleur olhou para cima e tratou de imaginar uma
orquestra sentada ali e a reverberação da música na
entrada circular com colunas. Imaginou multidões
vestidas com seus melhores ornamentos para a noite,
alegres, risonhos e dançando. E sorriu. Ah, que feliz
seria! Face ao que a senhora Laycock tinha insinuado
sobre a duquesa e a babá da Lady Pamela, seria feliz.
Como poderia não sê-lo? Tinha conhecido o inferno e
tinha sobrevivido a ele.
A galeria alargada ocupava inteira uma das asas, na
parte dianteira da casa. Um de seus lados estava
formado inteiramente por janelas largas e antigos bustos
romanos colocados em nichos. O friso revogado côncavo
e o teto produziam a impressão de grande altura e
esplendor. A larga parede em frente das janelas estava
repleta de retratos com o Marcos dourados.
—É a família de Sua Excelência há gerações —
explicou a senhora Laycock—. Necessitaria ao senhor
mesmo para que o explicasse tudo, senhorita Hamilton.
Não há nada do Willoughby que não saiba.
Fleur identificou um Holbein, um Vão Dyck, um
Reynolds. Pensou que devia ser maravilhoso imaginar-
se a uns antepassados como aqueles. A senhora
Laycock explicou também que o duque de Ridgeway era
o oitavo duque de sua família.
—Todos esperaram um herdeiro — comentou, com
certa dureza—. Mas até agora só teve a Lady Pamela.
Indicou a Fleur que os escritórios e a maioria das
habitações de convidados estavam detrás da galeria
alargada, mas não ia levar a ali.
O salão grande era o eixo central detrás da entrada.
Tinha dois pisos de altura e as paredes estavam
decoradas com veludo vermelho Utrecht. Os móveis
pesados estavam colocados ordenadamente ao redor do
perímetro da habitação, forrados do mesmo material. As
grandes molduras das portas, a cornija e o suporte da
chaminé estavam recobertos de dourado, e o teto estava
pintado com uma cena de uma batalha mitológica que a
senhora Laycock não conseguiu identificar. Havia
grandes pinturas de paisagens com as molduras
pesadas penduradas nas paredes.
O comilão, o salão, a biblioteca, outras habitações e
as habitações privadas da família estavam na outra asa,
a que servia de contrapeso à asa da galeria.
Fleur estava impressionada por tudo. Criou-se em
uma casa grande. Seu pai tinha sido o proprietário até
que morreu no incêndio de uma estalagem com sua mãe
quando Fleur tinha oito anos. Tanto a casa como o título
tinham passado ao seu primo, o pai do Matthew, e ela se
converteu em uma mera pupila do senhor, que a tratava
com amabilidade, mas sem emprestar muita atenção:
sua esposa e sua filha não gostavam dela e lhes
incomodava, e Matthew a tinha ignorado até fazia
poucos anos.
Mas Heron House não era uma das grandes jóias da
Inglaterra. Evidentemente, Willoughby Hall sim o era. E
em que pese a lamentar que se desvanecesse o sonho
de uma casa acolhedora e uma família pequena, estava
emocionada. Viveria naquela mansão magnífica.
Formaria parte de sua agitada vida, seria responsável
pela educação da jovem filha do duque e a duquesa.
Depois de tudo, parecia que a boa fortuna ia
acompanhá-la. Poderia ser que fosse conhecer um
pouquinho do céu para compensá-la por outras
experiências recentes.
—Levaria você para um passeio pelo parque —
comentou a ama de chaves—, mas vejo que está
esgotada, senhorita Hamilton. Tem que subir acima e
descansar um momento. Possivelmente Sua Excelência
vai querer falar com você mais tarde e possivelmente
queira que conheça a Lady Pamela.
Fleur se retirou gostosamente a seu quarto. Estava
um tanto afligida por tudo aquilo, pelos acontecimentos
dos últimos dois meses, pela grande sorte que tinha tido
ao encontrar um posto como aquele quando não tinha
ido à agência de emprego durante uma semana, pelo
descobrimento inesperado de que o posto não era
absolutamente ordinário. A viagem tinha resultado longa
e exaustiva.
E aquela manhã tinha conseguido esquecer-se de
um de seus grandes medos: não estava grávida.
Sentada junto à janela da habitação e desfrutando da
paisagem pacífica que se via fora e da suave brisa que
levantava as cortinas e lhe acariciava as faces, pensou
que em conjunto era muito mais afortunada do que
poderia haver-se esperado só dois meses atrás.
Poderiam havê-la enforcado. Ainda podiam enforcá-
la. Mas não queria pensar nisso. Hoje tinha começado
sua nova vida, e seria mais feliz do que o tinha sido em
qualquer outro momento de sua vida… desde que tinha
oito anos.
Tirou o vestido, dobrou-o cuidadosamente e o pôs no
respaldo da cadeira, e se deitou em cima das mantas
com a camisa. Voltou a pensar em quão distinto era de
seu quarto em Londres enquanto olhava para o dossel
coberto de seda que havia em cima da cama, observava
o esmero e a limpeza que a rodeavam e escutava
somente o silêncio, à exceção do gorjeio longínquo dos
pássaros.
Fechou os olhos para deixar-se levar por uma
sonolência ditosa, e o voltou a ver: voltou a ver seu rosto
moreno, angular e duro, a cicatriz lívida que lhe cruzava
a face da altura do olho até o queixo, inclinando-se de
novo sobre ela, com seus olhos escuros e frios olhando
diretamente aos seus.
Pôs as mãos em cima, primeira entre as coxas e em
seu local mais secreto e logo por debaixo. E essa outra
parte dele se abriu caminho, abrasador e implacável,
para o mais profundo de seu interior. Sentiu como a
rompia em pedaços.
—Puta — sussurrou—. Não volte a pensar em
escapar a essa etiqueta. É uma puta agora e o será o
resto de sua vida, por muito que corra ou por muito
rápido que vá.
—Não! —Fleur meneou a cabeça na cama, apoiou
os pés com maior firmeza no chão, e tratou de escapar
de suas potentes mãos para que não a penetrasse tão
profundamente—. Não!
—Isto não é uma violação — insistiu ele—. Vieste a
mim por própria vontade. Vais levar meu dinheiro.
—Porque estou morrendo de fome — suplicou—.
Porque levo dois dias sem comer. Porque tenho que
sobreviver.
—Puta — sussurrou ele outra vez—. É porque o
desfruta. Está-o desfrutando, não é assim?
—Não. —Ela se retorceu para livrar-se das fortes
mãos que a sujeitavam enquanto se saciava dela—.
Não.
Não. Não. Já não ficava nada. Nenhuma dignidade.
Nenhuma intimidade. Nenhuma identidade. Privada de
sua roupa. Com as pernas abertas por seus joelhos e os
poderosos músculos de suas coxas. Invadida até o mais
profundo de seu ser.
Não. Não, não, não!
Estava sentada na cama, suando, tremendo. Era um
sonho recorrente. O sonho que a atormentava cada
noite. As pessoas poderiam ter pensado que seria o
rosto morto do Hobson o que viria à mente assim que
deixasse de controlar sua consciência, mas não era
assim. Era o do cavalheiro com a cicatriz feia que se
havia balançado sobre ela, que tinha arrebatado a última
posse que ficava por dar… ou vender. Fleur se levantou
cansativamente da cama e ficou de pé ante a janela para
refrescar o rosto. Acaso alguma vez o esqueceria? Não
se esqueceria de sua imagem? De como a havia tocado?
Realmente havia dito aquelas palavras? Já não se
lembrava. Mas seu corpo e seu rosto as haviam dito
embora não as tivesse pronunciado em voz alta.
Pensou que não podia haver um homem mais feio e
mais malvado no mundo. E não obstante, recordou que
tinha comprado comida e tinha insistido em que a
comesse. Tinha-lhe pago três vezes mais do que tinha
pedido fora do teatro. Não tinha feito nada que ela não
tivesse oferecido livremente.
E tinha dado um pano frio para que limpasse o
sangue e aliviasse a dor.
Apoiou a face nas mãos. Devia esquecê-lo. Devia
aceitar o presente de uma nova vida que algum poder
benevolente lhe tinha concedido.

—Que bonito, carinho — exclamou a duquesa de


Ridgeway, inclinando-se para beijar a sua filha na face e
olhando sorridente o que a menina tinha pintado para
que o examinasse—. Vou vê-la, tata. Tem que ficar claro
que deve subordinar-se a ti e que não deve obrigar a
Pamela a fazer nada que não deseje fazer.
—Espera começar a trabalhar esta manhã, milady —
comentou a babá—. Expliquei-lhe que Lady Pamela
gosta de estar tranqüila no quarto de brincar pelas
manhãs.
—Tenho que conhecer minha nova governanta hoje,
mamãe? —perguntou a menina zangada—. A enviou
papai?
—Tem-no feito para me provocar, não? —disse-lhe a
duquesa a sua babá—. Deve haver-se informado de
meus planos e lhe ocorreu vingar-se enviando a uma
vulgar e aborrecida governanta para minha menina
querida. Mas tenho direito a ter companhia, não? Tanto
como ele. Está desfrutando da temporada em Londres.
Acredita que posso viver aqui só e aborrecida? Acredita
que não necessito eu também companhia para que
desapareça este aborrecimento interminável? —E então
tossiu com secura e procurou um lenço.
—Ontem lhe disse que usasse a capa, querida —
admoestou a babá—. Embora brilhe o sol, ainda é
primavera. Nunca se livrará do catarro se não se cuidar.
—Não se preocupe tanto, tata — a cortou a duquesa,
zangada—. Tenho esta tosse do inverno, embora então
sempre andasse agasalhada, como você me mandava.
Acredita que ele virá inteirar-se?
—Imagino que sim, querida — respondeu a babá—.
Está acostumado a fazê-lo.
—Não gosta que tenha nenhum prazer nem
companhia —protestou Sua Excelência—. O odeio, tata,
de verdade que sim.
—Silêncio — espetou a babá—, não diante da Lady
Pamela, querida.
A duquesa olhou à menina e tocou um suave cacho
escuro.
—Bom, pois envia ao meu salão, à senhorita
Hamilton. Pode ser que Adam a tenha contratado, tata,
mas tem que saber que terá que me render contas. Ao
fim e ao cabo, Adam…
—Silêncio, querida — afirmou a babá.
A duquesa beijou outra vez à menina na face e saiu
deslizando-se da habitação, com sua bata movendo-se a
seu passo.
Sua filha já a olhava partir com expressão de
saudade.
—Acredita que gostou de meu quadro, tata? —
perguntou.
—claro que sim, carinho. —A babá se inclinou para
abraçá-la—. Mamãe te adora e adora tudo o que faz.
—E gostará a papai? —insistiu a menina—. Vai vir
para casa?
—Guardaremo-lo bem até que venha — respondeu a
senhora Clement.
Quando pouco depois levaram a Fleur ao salão da
duquesa, o encontrou vazio. Ficou de pé dentro, junto à
porta, e esperou em silencio com as mãos juntas diante
do corpo. Era uma habitação pequena, mas bastante
deliciosa e de forma oval. Tinha uma cúpula grafite como
teto e estilizadas colunas corintianas douradas que
sujeitavam o teto. Uns painéis decorativos sobre uma
superfície cor marfim, pintados em tons vermelhos,
verdes, rosas pálido e pão de ouro faziam que as
paredes resultassem delicadas e femininas.
Não teve que esperar muito. Abriu-se a porta ao
outro lado da habitação e entrou uma dama miúda e
afetada com um delicado vestido azul de musselina e o
cabelo loiro platino recolhido em suaves cachos e
recolhidos em volta da cabeça e do rosto. Fleur pensou
que a duquesa era extremamente bonita e parecia ter
menos dos vinte e três anos que tinha ela mesma.
—A senhorita Hamilton? —perguntou a duquesa.
Fleur fez uma reverência.
—Sua Excelência…
Percebeu que os olhos azul céu da duquesa a
estavam analisando abertamente da cabeça aos pés.
—Meu marido a tem feito vir para que seja
governanta de minha filha? —Tinha uma voz doce e
entrecortada.
Fleur inclinou a cabeça.
—Dá-se conta de que aos cinco anos ainda não tem
necessidade de que a eduquem? —perguntou Sua
Excelência.
—Mas inclusive um menino tão pequeno pode
aprender muitas coisas sem sentar-se realmente com um
livro durante todo o dia, Sua Excelência — respondeu
Fleur.
A duquesa elevou o queixo.
—Atreve-se a estar em desacordo comigo? —
perguntou. Tanto sua voz como seu rosto eram
agradáveis e de algum modo discrepavam com suas
palavras.
Fleur permaneceu em silêncio.
—Meu marido a enviou. Que relação tem com ele, se
pode saber?
Fleur se ruborizou.
—Não conheço sua Excelência — explicou—. Foi o
senhor Houghton quem me entrevistou na agência de
emprego.
A duquesa voltou a olhá-la de cima abaixo.
—Como terá deduzido — começou—, não estou de
acordo com meu marido em que minha filha necessite
que lhe dêem aulas. É uma menina pequena e delicada
que só necessita o amor de sua mãe e os cuidados de
sua babá. Não lhe encherá o cérebro de conhecimentos
inúteis, senhorita Hamilton, e receberá ordens da
senhora Clement, a babá da Lady Pamela. Será uma das
criadas desta casa e ficará em sua própria habitação ou
no salão dos criados quando sua presença no quarto de
estudo não seja necessária. Não espero vê-la nesta
planta da casa a não ser que eu a chame
expressamente. Entende-me?
Disse tudo aquilo com um tom de voz suave e
amistoso enquanto seu rosto frágil e belo a contemplava
com grandes olhos azuis. Fleur pensou compassiva que
era uma mãe muito amante e temerosa de que sua filha
deixasse de ser um bebê, face à natureza imperiosa das
palavras que tinha pronunciado.
—Sim, Sua Excelência — respondeu.
—Agora pode partir e passar meia hora com minha
filha sob a vigilância da senhora Clement — ordenou Sua
Excelência.
Mas quando Fleur se voltou para ir-se, Sua
Excelência voltou a lhe falar.
—Senhorita Hamilton — comentou—, parece-me
correto o modo que se vestiu está amanhã e o modo que
arrumou o cabelo. Espero que sua maneira de vestir
sempre me resulte satisfatória.
Fleur voltou a inclinar a cabeça e saiu da habitação.
E dado que ia vestida com uma de suas novas
aquisições, um austero vestido de algodão cinza com um
pequeno pescoço de encaixe branco, e que levava o
cabelo totalmente retirado da face e enroscado em um
coque grosso na nunca, pensou que entendia
perfeitamente à duquesa.
Significava isso que o duque era a classe de homem
que acossava as suas criadas jovens? Era esse o motivo
pelo que Sua Excelência tinha perguntado sobre sua
relação com ele em Londres? Esperava fervorosamente
que ficasse ali durante muito tempo.
Ao recordar, com um ligeiro calafrio, as palavras e a
atitude da duquesa, Fleur pensou que a tinham advertido
que nem Sua Excelência nem a senhora Clement se
alegrariam de vê-la. E não devia queixar-se. Nenhuma
das duas se mostrou abertamente hostil para ela. Estava
segura de que trocariam de opinião quando se
precavessem de que não tinha nenhuma intenção de
passar o dia vigiando a Lady Pamela com um pau em um
quarto de estudo fechado.

O senhor Snedburg terminava um longo dia de


trabalho. Relaxou-se o bastante para tomar assento em
um salão do St. James Street e inclusive para aceitar
uma taça de porto.
—Muito obrigado, senhor — murmurou, agarrando a
taça da mão de seu anfitrião—. Doem-me os pés de
tanto caminhar e tenho a garganta seca de fazer tantas
perguntas. Sim, assim é, é a senhorita Fleur Hamilton.
Muita coincidência para que não fora a mesma jovem,
não lhe parece? E encaixa com a descrição.
O senhor Snedburg não acrescentou que seus dois
informantes, a senhorita Fleming e a caseira da jovem,
haviam descrito a Fleur Hamilton como uma jovem de
aspecto muito ordinário com um cabelo avermelhado
muito ordinário também. Entendia que a seu cliente
gostava bastante sua prima embora fosse uma
assassina e uma ladra de jóias. E terei que perdoar aos
homens apaixonados se em ocasiões ficavam poéticos.
Era como a luz do sol e do crepúsculo juntas, claro que
sim. Com isso bastava para que ao agente lhe
entrassem vontades de devolver.
—E? —Lorde Brockehurst o observava
intensamente, com sua própria taça de porto a meia
altura dos lábios. Em que pese a sua reputação, o
agente tinha demorado mais de uma semana em
elaborar seu primeiro relatório.
—E a contrataram como governanta da filha de um
tal senhor Kent de Dorsetshire. Fez-o um tempo — o
agente fez uma pausa para que tivesse mais efeito—,
um cavalheiro que a esperou na agência quatro dias
inteiros, a ruiva Fleur. A moça já se pôs a caminho.
Lorde Brockehurst franziu o cenho. A taça seguia a
vários centímetros de sua boca.
—Não pode haver muitos Kent em Dorsetshire —
explicou o senhor Snedburg—. Investigarei o assunto a
ver se podemos associar a nosso homem com um só
ponto do mapa, senhor.
Lorde Brockehurst bebeu, submerso em seus
pensamentos.
—Kent? —perguntou—. Não serão os Kent de
Ridgeway, verdade?
—Como o duque de Ridgeway? —perguntou o
agente, levantando uma mão para arranhá-la parte de
atrás do pescoço—. É um Kent?
—Conheci seu meio irmão — comentou Lorde
Brockehurst—. Viviam no Dorset. Em Willoughby Hall.
O senhor Snedburg meteu o dedo mindinho na
orelha.
—Verei o que posso averiguar que seja certo,
senhor. Encontraremo-la em seguida, o asseguro.
—Fleur… — murmurou o outro, observando os
redemoinhos que formava o conteúdo de sua taça—.
Estava acostumada a ter chiliques de menina porque
minha mãe e meu pai não a chamavam assim. Ao
parecer era o nome que empregou até que morreram
seus pais. Tinha-me esquecido.
—Bom, sim, como você disser, senhor — concedeu o
senhor Snedburg, acabando-o que ficava na taça de um
gole e ficando em pé—. Verei o que posso averiguar
desse duque e sua governanta.
—Quero que a encontre logo — pediu Lorde
Brockehurst.
—Muito em breve, hoje mesmo — acrescentou o
outro eficiente—. Tem minha palavra, senhor.
—Bem, disseram-me que você era o melhor. Embora
haja demorado muito em averiguar isto…
Snedburg decidiu não comentar nada da adulação
nem da crítica. Saudou de um modo quase militar e saiu
a toda pressa do salão.
Capítulo 4

A vida de Fleur não resultou absolutamente difícil


durante as primeiras duas semanas que passou em
Willoughby. Haviam-lhe dito que seguisse as ordens da
senhora Clement, e ao que parece a senhora Clement
não estava mais de acordo dando aulas à menina que
estava a seu cargo que a duquesa. A nova governanta
era afortunada se lhe concediam uma hora pela manhã e
outra pela tarde com sua aluna.
Estava um tanto inquieta e inclusive um pouco
preocupada que a despedissem, porque era uma criada
pouco útil, ou porque se o duque e o senhor Houghton
chegassem a casa e descobrissem que ao fim e ao cabo
não se estava ganhando o salário. Mas tentou seguir o
conselho da senhora Laycock, que lhe recomendou que
se tranqüilizasse e que pusesse boa face, e que a
assegurou que quando o duque chegasse finalmente a
casa —e estava segura de que o faria quando se
inteirasse da festa que tinha organizado a duquesa—
tudo se arrumaria.
Enquanto isso, Fleur se familiarizou com seu novo lar
e começou a acomodar-se nele. Passou largas horas de
tranqüilidade e paz nas que teve oportunidade de deixar
que os velhos medos se dissipassem e as velhas feridas
se curassem. Às vezes passava um dia inteiro sem sentir
a antiga necessidade de olhar ansiosa por cima do
ombro se por acaso houvesse alguém que a
perseguisse. E às vezes podia dormir uma noite inteira
sem ver o rosto duro e coberto por uma cicatriz
inclinando-se sobre ela e lhe dizendo o que era enquanto
a convertia precisamente nisso.
Comia com muito apetite e tinha ganhado parte do
peso que tinha perdido. Parecia ter o cabelo mais
abundante e brilhante. As marcas mais acusadas das
olheiras tinham desaparecido. Tinha cor nas faces.
Energia nos músculos. Começava a sentir-se jovem
outra vez.
Durante essas duas semanas, a senhora Laycock
encontrou tempo para passear por grande parte do
enorme parque com ela. E Fleur sempre aprendia mais
dos costumes do novo lar e a família para a que
trabalhava a partir da conversação tranqüila da ama de
chaves.
—Desenharam-no faz anos para que parecesse uma
beleza natural — comentou a senhora Laycock no
parque—. O lago se escavou, criaram-se as quebradas e
se plantou cada árvore para oferecer uma perspectiva
agradável desde quase cada mirante. Resulta-me um
pouco ridículo, senhorita Hamilton, considerando que a
natureza funciona muito bem por sua conta sem a ajuda
de homens que fazem fortuna do desenho de jardins
para os ricos. Eu preferiria jardins singelos, com uma boa
quantidade de flores. Mas isso é só minha opinião. E
ninguém me pediu isso nunca.
A Fleur adorava o parque, sua grama ondulante e
aparentemente inacabável e seus arvoredos. Adorava os
passeios serpenteantes e os templos de pedra e outros
caprichos. Sentia que podia passear por ali eternamente
e não se cansar nunca das vistas ou da sensação de paz
que lhe proporcionavam.
A senhora Laycock tinha explicado que Sua
Excelência o duque tinha lutado com o exército inglês na
Espanha e na Batalha do Waterloo, embora fosse o
herdeiro do duque falecido, e que já tinha herdado o
título quando partiu a Bélgica.
—Nunca evitou nenhuma responsabilidade — contou
a ama de chaves—. Claro que houve alguns que
disseram que seu dever era ficar aqui são e salvo para
assumir suas responsabilidades. Mas se foi.
—E voltou são e salvo — acrescentou Fleur.
A senhora Laycock suspirou.
—Foi uma época terrível. Estava tão contente antes
de voltar a lutar outra vez, quando aquele monstro
escapou de Elba. Acabava-se de se comprometer com
Sua Excelência a duquesa, que naquela época era a
Honorável Senhorita Sybil Desford, e era muito feliz.
Tinham sido o um para o outro durante anos, mas só
durante esses meses esteve totalmente dedicado a ela.
—Mas voltou para ela, tudo terminou felizmente.
—Pensávamos que tinha morrido — explicou a
senhora Laycock—. Chegou-nos a notícia de que o
tinham matado na batalha, e seu criado voltou para casa
destroçado; tinha passado anos com Sua Excelência. Eu
não gosto de recordar essa época, senhorita Hamilton.
Primeiro o velho duque e logo nosso moço. O moço! —
riu —. Ouça, a verdade é que já tem mais de trinta anos.
Sentaram-se em um assento de ferro forjado junto ao
caminho que estavam percorrendo e olharam através
das árvores em direção a um lago em forma de meia lua
com uma ilha e um barraco abovedado no centro.
—Lorde Thomas assumiu o título — continuou a
senhora Esse Laycock é o meio irmão de Sua
Excelência. Parecem-se fisicamente, mas são tão
distintos como o dia e a noite. Alguns preferem ao Lorde
Thomas porque é alegre e sorri. Propôs matrimônio a
Sua Excelência, à senhorita Desford.
—Tão rápido? —perguntou Fleur—. Mas seguro que
o engano foi esclarecido em seguida.
—Demorou um ano inteiro — suspirou a ama de
chaves—. Deram a Sua Excelência por morto e
enterrado no campo de batalha. Esses franceses, ou
belgas, comportaram-se como bárbaros, senhorita
Hamilton. Mas um casal decente descobriu que ainda
respirava e o levaram a sua casa para cuidá-lo e que se
curasse. Recebeu umas feridas terríveis. —Meneou a
cabeça—. Esteve inconsciente ou febril durante
semanas. E então não podia recordar grande coisa.
Passou meses sem saber quem era, e logo ao que
parece custou muito convencer a qualquer um de que
era quem dizia que era. Quando o encontraram estava
nu, pobre cavalheiro.
—Assim passaram um ano acreditando que estava
morto? —perguntou Fleur.
—Nunca esquecerei o dia que voltou para casa —
recordou a senhora Laycock—. Ainda coxeava e estava
tristemente desfigurado, pobre cavalheiro. Nunca o
esquecerei.
—O que ocorreu ao Lorde Thomas? —perguntou
Fleur quando seu acompanhante ficou a olhar
silenciosamente para o lago.
—Partiu. Desapareceu sem mais uns três meses
depois de que Sua Excelência voltou para casa. Alguns
dizem que não podiam estar juntos na mesma casa e
que Sua Excelência lhe ordenou que partisse. E outros
dizem outras coisas. Não sei o que ocorreu. Mas não
retornou jamais.
—E ao final a duquesa se casou com Sua
Excelência? —perguntou Fleur—. A história teve um final
feliz.
—Sim. —A senhora Laycock ficou em pé e tocou as
dobras de seu vestido negro—. Casou-se com ele.
Embora lamentasse quando veio aqui com seu pai e
descobriu que Lorde Thomas havia ido embora, e me
custou muitíssimo fazer calar aos criados, senhorita
Hamilton. E contente que estava Sua Excelência de
voltar para casa tão somente três meses antes, que
quando desceu da carruagem a agarrou entre seus
braços e ficou a dançar com ela para que todo mundo o
visse…
Continuaram caminhando, cada uma sumida em
seus próprios pensamentos. Fleur pensou que era
estranho que o duque passasse tanto tempo longe de
casa se gostava tanto, e se amava tanto à duquesa e
tinha um sentido da responsabilidade tão elevado.
Mas Fleur tampouco dispunha de todo o tempo para
ela. Tinha umas duas horas diárias com sua aluna, uma
menina pequena, magra e moréia que algum dia poderia
ser bonita se seu olhar freqüentemente irascível não se
voltava habitual. Não se parecia em nada a sua mãe.
Devia o ter tudo de seu pai.
Era uma menina difícil. Não queria olhar livros, não
queria escutar contos, não queria bordar, e quando
pintava só queria fazer o de maneira despreocupada,
esbanjando papel e pintura e ficando muito teimosa
quando Fleur insistia em que recolhesse o que tinha
atirado ao chão.
Fleur tentava ser paciente. Ao fim e ao cabo, Lady
Pamela era pouco mais que um bebê, e devia saber,
como revestem saber os meninos, que sua mãe e sua
babá estavam de sua parte. Fleur tratava de despertar
na menina o desejo de aprender.
Havia um piano velho no quarto de estudo. Fleur se
sentou diante dele e o tocou durante uma tarde quando
Lady Pamela se negou a cooperar em nenhuma das
atividades planejadas, e continuou tocando quando se
precaveu de que a menina estava de pé a um lado do
tamborete.
—Quero brincar — exigiu Lady Pamela quando os
dedos de Fleur se detiveram finalmente.
Fleur sorriu.
—Estudou algo?
—Não. Quero brincar. Levante-se.
—Por favor — tratou de corrigi-la Fleur.
—Levante-se! —repetiu a menina—. Quero brincar.
—Por favor — voltou a dizer Fleur.
—Você é uma criada — espetou Lady Pamela com
altivez—. Levante-se ou o direi a tata.
—Levantarei com gosto — acrescentou Fleur—, se
me pedir isso em vez de me ordenar isso.
A menina esbofeteou uma boneca velha que havia
trazido para o quarto de estudo.
Fleur exalou um suspiro e continuou tocando
tranquilamente. Tudo aquilo recordava a muitas coisas. A
prima Caroline e Amelia, que se voltaram altivas e
autoritárias porque de repente se converteram na Lady
Brockehurst do Heron House e na Honorável Senhorita
Amelia Bradshaw depois da morte de seus pais.
E a tinham tratado assim porque estavam obrigadas
a lhe oferecer um lar na casa em que sempre tinha
vivido. Amelia tinha ficado com seu encantador quarto
chinês e a tinha relegado a um quarto mais feio na parte
traseira da casa.
Teve alguns dias bons com sua aluna. Uma manhã,
Lady Pamela estava nervoso porque sua mãe a levaria
para uma visita a tarde, mas na hora de comer avisaram
de que Sua Excelência tinha febre e o médico havia dito
que descansasse.
Fleur estava comendo no piso de acima e viu a
expressão de intensa decepção no rosto de sua aluna.
As lágrimas brotavam dos olhos e o lábio tremia fazendo
uma careta. A menina via muito pouco a sua mãe. Mas
Fleur sabia que a decepção principal seria não poder ver
os meninos dos Chamberlain e a seus cães. Lady
Pamela tampouco via muito a outros meninos.
—Poderia levar a Lady Pamela a visitar os meninos?
—perguntou-lhe à senhora Clement quando a menina
não podia ouvi-la.
Esperava que se negasse, mas a babá a olhou
pensativa e disse que o consultaria com Sua Excelência.
Em menos de meia hora Fleur teve o prazer de ver como
o rosto da menina se iluminava de modo que quase
parecia bonita. Ficou a saltar entusiasmada até que a
babá agarrou a sua face entre as mãos e ordenou que
não se excitasse tanto. Fleur pensou que por fim tinha
feito algo que tinha contado com a aprovação de sua
aluna.
Saíram logo que estiveram preparadas e trouxeram a
carruagem. E Fleur sorriu enquanto observava a Lady
Pamela sentar-se para diante, olhando a paisagem que
passava por diante da janela, saudando a mulher do
guarda e conversando de vez em quando sobre os cães
dos Chamberlain.
—Mamãe não me deixa ter um cachorro — explicou
—, nem um gato. Nem um coelho — acrescentou um
instante depois.
Quase pela primeira vez desde que se conheceram,
Fleur sentiu que sua aluna parecia uma menina.
O senhor Chamberlain era um viúvo de uns quarenta
anos que vivia com sua irmã e seus três filhos em uma
casa elegante que Fleur pensou que se parecia muito à
casa acolhedora dos sonhos que tinha tido de caminho
ao Dorsetshire.
Fleur explicou à senhorita Chamberlain, uma
elegante dama na trintena que levava um gorro de
encaixe sobre o cabelo escuro penteado brandamente
com raia, que Sua Excelência estava indisposta e que
Lady Pamela se tinha mostrado decepcionada ante a
idéia de perder o prazer de brincar com os meninos.
Pediu permissão para permanecer sentada nas
habitações dos criados durante uma hora.
—Nas habitações dos criados? —replicou a senhorita
Chamberlain rindo-se—. De maneira nenhuma, senhorita
Hamilton. Você é a nova governanta da Lady Pamela?
Disseram-nos que tinha governanta. Tomará o chá com
o Duncan e comigo enquanto os meninos brincam.
Fleur seguiu a sua anfitriã até o salão, onde em
seguida as acompanhou o senhor Chamberlain, que lhe
fez uma reverência e não se mostrou nada aborrecido
ante a perspectiva de ter que tomar o chá com uma mera
governanta.
—Sem dúvida, dentro de pouco nossa conversação
se verá afogada pelos latidos, senhorita Hamilton —
explicou o senhor Chamberlain—. Colocarão aos pobres
cães no quarto para brincar com eles. Sempre é assim
quando Lady Pamela está aqui. Acredito que não tem
muitas oportunidades de juntar-se com outros meninos
ou com animais.
—E lhe ensinaram que os cavalos são perigosos —
acrescentou a senhorita Chamberlain, dando a Fleur sua
taça e seu prato.
Seu irmão sorriu.
—Suponho que resultaria fácil ser muito protetor com
um só filho — opinou ele—. É uma pena que Adam não
esteja em casa mais freqüentemente. Sabe se for voltar
para o baile, senhorita Hamilton?
—Temo que não sei, senhor — respondeu Fleur.
—Não será o mesmo sem ele — continuou o senhor
Chamberlain—. Mas os bailes do Willoughby são as
celebrações mais esplêndidas que existem. Parece que
as opiniões estão muito divididas na zona respeito a se
os melhores são os de interior ou os que são ao ar livre.
Emily acredita que os que se fazem ao ar livre som muito
mais românticos, não é assim, querida?
—Ah, mais românticos, sim, sem dúvida — afirmou a
senhorita Chamberlain—. Não estou segura de que
sejam mais esplêndidos. Não há nada como um passeio
pela galeria larga, senhorita Hamilton, com a música que
chega procedente do grande salão e as velas acesas
nos spots da parede e todos os antepassados dos
Ridgeway olhando. Está satisfeita com seu emprego?
Fleur passou uma hora agradável conversando com
irmão e irmã e passeando com eles pelo caramanchão
repleto de flores. Pareciam bastante imperturbáveis ante
o escândalo e as risadas procedentes da parte superior
da casa.
—Tenho a uma babá que se ocupa dos ossos
quebrados, os puxões de cabelo e coisas pelo estilo —
explicou o senhor Chamberlain quando Fleur comentou
que esperava que Lady Pamela se estivesse
comportando como devia—. Não tenho problemas para
suportar um pouco de ruído.
—Colocando-te em seus livros, Duncan — interveio
sua irmã—. Poderia gritar ao ouvido quando está lendo,
senhorita Hamilton, e faria caso omisso.
Durante uma hora, Fleur se sentiu outra vez como
uma pessoa real. Embora enquanto levava a uma
reticente Lady Pamela à carruagem para voltar para casa
pensou que possivelmente as palavras «outra vez» não
eram as adequadas. Nunca a tinham tratado com muito
respeito quando vivia no Heron House.
—Uma tarde levaremos aos meninos a Hall para lhe
devolver a visita — prometeu o senhor Chamberlain,
agarrando a mão a Fleur para ajudá-la a subir à
carruagem—. Obrigado por trazer para a menina,
senhorita Hamilton. Estou seguro de que lhe tem feito
bem sair. E obrigado por nos visitar.
—Desconheço seu horário de trabalho, mas suponho
que disporá de tempo livre. Venha quando o desejar,
senhorita Hamilton. Desfrutarei de sua companhia —
propôs Emily Chamberlain.
—Um dos cães mordeu o traseiro ao Randall quando
se estava subindo a uma cadeira — explicou Lady
Pamela a Fleur quando a carruagem ficou em marcha—.
A babá há dito que o tem feito porque havemos posto
nervoso ao cão —riu—. Mas foi muito divertido.
Fleur sorriu com ela, mas resistiu o impulso de
abraçar à menina. Era muito cedo para fazê-lo.
Fiel a sua promessa, o senhor Chamberlain levou a
sua irmã e a seus filhos de visita vários dias depois.
Enquanto a senhorita Chamberlain permanecia sentada
bebendo chá com a duquesa, ele levou aos meninos ao
piso de acima, mas se encontrou com que Lady Pamela
estava em metade de uma lição de aritmética no quarto
de estudo.
—Rogo-lhe que me desculpe —disse quando bateu
na porta e Fleur lhe respondeu—. Posso provocar sua
eterna cólera, senhorita Hamilton, e lhe pedir que
dispense a Lady Pamela cedo de suas aulas para jogar
com meu trio? Estou seguro de que fará o dobro de
esforço amanhã, verdade, Pamela?
—Sim — gritou ela entusiasmada, ficando em pé.
—Também é uma mentirosa consumada —
sussurrou o senhor Chamberlain a Fleur enquanto sorria
—, como todos os meninos. Posso convencer a de que
saiamos para que possam brincar, gritar e brigar sem
destroçar os ouvidos?
—Que idéia mais esplêndida — exclamou Fleur, e
baixou à planta baixa e saiu por uma porta pela parte
traseira da casa, em direção a uma grama que conduzia
até uma longínqua fila de árvores. Duvidou quando o
cavalheiro lhe ofereceu seu braço enquanto
caminhavam. Os meninos se adiantaram com uma bola
que um dos meninos Chamberlain mantinha firmemente
arranca-rabo. Era um gesto apropriado? Ela era uma
criada. Ele um visitante. Fleur o agarrou do braço.
—Se passearmos devagar — comentou ele—, os
meninos se afastarão o bastante como para que não
tenhamos que ouvir palavrões ou insultos desagradáveis.
A experiência há me ensinando que para tratar com
meninos, senhorita Hamilton, o melhor é voltar-se cego,
surdo e tolo. E é obvio ter uma babá competente e uma
irmã que viva em casa e que resistência muito. Fale-me
de você. O que a trouxe até aqui?
Fleur se sentia culpado pelas mentiras e meias
verdades que se via obrigada a contar.
—Assistirá ao baile? —perguntou ao despedir-se
dela um momento depois e voltar-se para chamar a seus
três filhos—. Espero dançar com você ali, senhorita
Hamilton.
Ela também o esperava. Ao levar a Lady Pamela da
mão de volta ao quarto de brincar e suportar o olhar
glacial da senhora Clement quando se fixou nas faces
ruborizadas e o cabelo um tanto despenteado da
menina, Fleur o desejou profundamente. Voltou para
quarto de estudo para guardar os livros que tinham
deixado antes e deu um giro, com o livro de aritmética
apertado contra o peito.
Era tão agradável sentir-se jovem, feliz e cheia de
esperança outra vez! E que um cavalheiro atraente lhe
pedisse que dançasse com ela no baile…
Não é a que seduziram as expectativas de futuro,
claro está. Só lhe estava permitido o mais leve dos
flertes. O matrimônio ficava totalmente descartado. Mas
se conformaria com um flerte leve. Seria suficiente.
E finalmente parecia que Sua Excelência o duque ia
voltar para casa. Lady Pamela o contou uma tarde em
que atravessou correndo a porta do quarto de estudo,
quando normalmente arrastava os pés e estava
acostumado a adotar uma expressão carrancuda.
— Papai vem! —anunciou triunfante—. Mamãe
acaba de receber uma carta dele. Deve chegar qualquer
dia destes. Tem que estar aqui antes que cheguem os
convidados de mamãe.
A duquesa esperava a perto de vinte convidados
durante a semana, até no dia anterior ao baile.
Fleur sorriu.
—Que bom — exclamou—. Estará muito contente de
ver seu pai.
—Não, não o estarei — protestou a menina—.
Estarei zangada com ele.
—De verdade? E isso por quê?
—Porque se foi e ainda não voltou. E porque mandou
você.
Fleur sorriu discretamente para si. Pensou que tinha
avançado.
Mas ao que parece só fora do quarto de estudo.
Tinha que recordar que quem algo quer, algo lhe custa.
—Olhamos o alfabeto?
—Dói-me a cabeça — replicou Lady Pamela—.
Quero pintar.
—Um quadro para seu papai? —perguntou Fleur—.
Muito boa idéia. Mas primeiro dez minutos de alfabeto.
A batalha tinha começado.
—Farei que papai a devolva a seu lugar — ameaçou
Lady Pamela.
—Isso fará? —Fleur se sentou junto à menina e a
agarrou brandamente do braço quando se levantou de
seu lugar—. Recorda esta letra?
—A de árvore — disse Lady Pamela sem olhar—.
Essa é fácil. Não recordo as outras. Dói-me a cabeça.
Sim, Fleur pensou que Sua Excelência o duque bem
poderia despedi-la. Não trabalhava mais de duas horas
ao dia, e inclusive então, tentar ensinar a Lady Pamela
se parecia bastante a tentar atirar de uma mula.
Mas não queria pensar na demissão e em tudo o que
significaria para ela. Não voltaria a inundar-se outra vez
na melancolia. Já resultava incrível ser feliz e estar viva.

Houghton era um empregado valioso. Levava a


serviço do duque de Ridgeway mais de cinco anos, de
fato quase desde que o duque havia tornado da Bélgica.
E Sua Excelência tinha chegado a confiar cada vez mais
nele para administrar os assuntos cotidianos de sua vida.
Era um homem sensato, trabalhador e discreto.
Mas Houghton possuía uma qualidade que o duque
valorava mais que qualquer outra, e era sua capacidade
de precaver do estado de ânimo de seu senhor e
adequar seu próprio comportamento a isso. Comiam
juntos quando estavam em Londres e conversavam
freqüentemente sobre temas variados. Mas quando o
duque queria permanecer em silêncio, seu secretário não
parecia sentir a necessidade de seguir conversando.
Aquele dia, enquanto se aproximavam do
Willoughby, Houghton permanecia sentado em silencio
na carruagem, olhando a paisagem através da janela, e
guardava silêncio.
Sua Excelência o agradecia. A dor do amor e a
nostalgia haviam tornado a apoderar-se dele.
Encontravam-se junto ao velho muro do parque. Logo
percorreriam o passeio de limas e se encontrariam
realmente em casa. Perguntava-se se todos os homens
sentiam para seu lar o que ele sentia pelo seu. Formava
parte de sua identidade, parte de si mesmo.
Recordou aquela vez, seis anos atrás, quando voltou
depois de uma ausência muito larga e dolorosa. A
mulher do vigilante da entrada levou o avental aos olhos
e se pôs a chorar ao vê-lo: seu rosto enrugado se
desfazia em sorrisos agora ao lhe fazer uma reverência.
O duque levantou uma mão a modo de saudação e
sorriu. Todos os criados tinham saído a terraço para
recebê-lo, inclusive o tinham aclamado, e teriam jurado
que sua felicidade não era fingida.
E pensou no Thomas. A lembrança perdia parte de
seu brilho. Não tinha pensado que… tinha sido tão
estúpido como para não pensar no que tinha significado
para o Thomas o ano no que acreditaram que tinha
morrido. Tinha sido o duque de Ridgeway e agora era só
Thomas Kent outra vez.
O duque sempre tinha pensado que Thomas o
queria, embora tivessem tido suas diferenças e embora
só fossem meio irmãos. Thomas era o filho da segunda
esposa de seu pai. Pode que o tivesse querido. Pode
que simplesmente o golpe de ver-se privado
repentinamente de um título e uma propriedade que tinha
considerado seus tivesse resultado muito para ele.
E o duque pensou em Sybil mais tarde, aquele
mesmo dia. Sybil, com a que tinha sonhado semanas
antes de voltar, desde que tinha recuperado a memória.
Outra vez em seus braços, durante um breve instante.
Mais bonita que nunca.
Mas não queria recordá-lo. Agora voltava para casa
outra vez e estava emocionado apesar de que Sybil
estivesse ali.
A senhora Laycock e Jarvis, o mordomo, estavam de
pé no alto dos degraus com forma de ferradura, diante
das enormes leva dobre que conduziam à entrada. Tudo
lhe resultava muito familiar e muito querido. A senhora
Laycock era a ama de chaves do Willoughby desde que
Sua Excelência tinha uso de razão, e Jarvis tinha estado
na casa toda sua vida, subindo da categoria de lacaio até
seu posto atual, que tinha passado a ocupar quatro anos
atrás. A senhora Laycock fez uma reverência e Jarvis
inclinou seu corpo para fazer o mesmo, embora a
postura se tornasse muito mais rígida o mesmo dia de
sua ascensão. O duque sorriu e os saudou. Sybil não
tinha saído para recebê-lo. A senhora Laycock lhe
informou que estava em sua sala.
Transcorreu quase uma hora até que foi vê-lo. A
Sybil não gostaria de receber a um marido ansioso
vestido com a indumentária enrugada com a que tinha
viajado. Primeiro se banhou e se trocou.
Sua mulher estava recostada no divã da sala, mas
não se levantou quando entrou.
—Adam! —exclamou com voz entrecortada, sorrindo.
Era a mesma Sybil bonita, frágil e de enormes olhos da
que se apaixonou uma vez na vida—. Tiveste uma
viagem cômoda?
Ele se inclinou para beijá-la e lhe pôs a face ao
receber seus lábios.
—Como está, Sybil? —perguntou-lhe.
Ela se ruborizou um pouco.
—Bem — respondeu—. Aborrecida. Sir Cecil
Hayward organizou um jantar ontem à noite e entreteve
ao grupo com histórias de sua recente caçada e louvores
para seus sabujos. Partiu cedo. Não podia parar de
bocejar.
—Temo-me que é o típico cavalheiro de campo —
comentou ele sorrindo—. Recuperaste do seu resfriado?
Ela se encolheu de ombros.
—Não se preocupe, verdade? A tata já se preocupa
o bastante.
—Então tenho que me lembrar de lhe agradecer.
Como está Pamela?
—Bem. Face às circunstâncias, pobrezinha. Tem que
despedir dessa governanta, de verdade, Adam. Por que
a mandaste?
—Não está fazendo um bom trabalho?
—Pamela é muito pequena para passar horas no
quarto de estudo. E não gosta da governanta. Eu
gostaria de saber onde a conheceu, Adam.
—Houghton a contratou. A quem há convidado além
dos Chesterton?
—Só a umas poucas pessoas. Aborrecia-me tão
quando foi…
—Sabe que poderia ter vindo comigo — replicou ele
—. Pedi isso. Teria levado a Pamela e a ti. Poderíamos a
ter ensinado Londres.
—Mas sabe que te teria se posto a jogar como
marido ciumento assim que tivesse sorrido a outro
cavalheiro —protestou ela—. Sempre o faz, Adam. Não
suporta ver como me divirto. Voltaste para casa para me
danificar outra vez as coisas? Dedicará-te a enfrentar a
todos meus convidados?
—Acaso tenho que fazê-lo?
—É terrível comigo — lamentou Sybil. Seus grandes
olhos azuis começaram a encher-se de lágrimas—.
Sabia do baile?
—O baile?
—Preparei-o tudo para a noite depois de que chegar
todo mundo. E convidei a todo mundo, Adam. Não se
preocupe, ninguém se sentirá ofendido.
—Planejaste um baile sem mim? E isso não resultou
estranho aos nossos vizinhos, Sybil?
—Acaso posso evitá-lo se parte a Londres a cada
oportunidade que se apresenta em busca de prazer?
Acredito que qualquer estaria de acordo comigo. É um
baile ao ar livre. Contratei uma orquestra para que toque
no pavilhão. Instalar-se-á uma pista de baile no lado
oeste do lago, no lugar habitual. E pedi as luminárias e
os refrigérios. Espero que não chova.
—E tudo isto vai acontecer dentro de quatro dias? —
perguntou ele—. Alegro-me de que te tenha ocorrido
mencioná-lo hoje, Sybil. Odeio surpresas.
—E eu odeio esse tom de sarcasmo — espetou ela
—. Antes não me falava assim. Foi amável comigo.
Queria-me — começou a tossir, e tirou um lenço de um
lado—. Faz muito calor aqui dentro —queixou-se —.
Acredito que agora tenho que descansar. O médico me
há dito que descanse mais. E de todas maneiras estará
ansioso por partir e te ocupar de seus próprios assuntos.
- Deixe-me te acompanhar ao dormitório — pediu
Adam, inclinando-se para ela—. Teria trazido um médico
da cidade se tivesse sabido que seguia mal. É evidente
que Hartley não te está servindo de muito.
—Não tem escrito para me perguntar como me
encontrava. Ficarei descansando aqui, obrigado, Adam.
«Não me toque.» Não havia dito essas palavras, mas
suas ações o haviam dito por ela. Quando Adam
estendeu as mãos se encolheu um pouco. Negou-se a
que a ajudasse. Tinha posto a face ao tentar saudá-la
com um beijo. O duque apertou a mandíbula quando
ficou de pé ao outro lado da porta uns instantes depois.
Conhecia muito bem aquelas palavras, às vezes
pronunciadas, e outras vezes só insinuadas.
Perguntou-se se Pamela seguiria em aula. Ou no
quarto de brincar. Iria ver se a encontrava. Tinha-a
sentido falta dela.

Capítulo 5

Fleur estava lendo um conto a Lady Pamela, embora


sabia que a menina não a escutava. Tinha visto chegar a
seu pai fazia mais de uma hora da janela do quarto de
brincar, onde tinha estado com a senhora Clement. Mas
a babá não lhe tinha permitido baixar correndo ao piso
de abaixo para recebê-lo e pouco depois a tinha enviado
ao quarto de estudo.
A menina estava dividida entre o entusiasmo
impaciente por sua chegada e a insistência teimosa em
que não lhe importava, em que de todos os modos não
queria vê-lo.
Embora fosse uma menina carrancuda e antipática a
maior parte do tempo, às vezes Fleur ansiava agarrá-la
entre seus braços, estreitá-la com força, lhe assegurar
que a queriam, que importava, que não se esqueciam
dela.
Sabia como era aquilo. Claro que sabia, embora não
o tinha sabido a uma idade tão nova. E para quando
tinha acontecido já era o bastante maior para saber que
não tinha que culpar a seus pais disso. Sempre lhe tinha
consolado o saber que a amavam, que para eles era
tudo.
Poderia ser que ao fim e ao cabo o caso de Lady
Pamela fora pior que o seu. Sua mãe estranha vez a
visitava, embora a enchesse de amor e palavras
carinhosas quando a via. Seu pai levava várias semanas
fora.
Mas ao final tinha vindo. Ouviram-se umas firmes
pisadas masculinas no corredor, fora do quarto de
estudo, e uma voz profunda que falava com a senhora
Clement. E Fleur soltou um suspiro de alívio pela Lady
Pamela, cujo rosto se iluminou adotando uma expressão
de entusiasmo pouco habitual nela, mas que a fazia
atrativa, enquanto a governanta ficava silenciosamente
em pé, atravessava a habitação e guardava o livro para
deixar um pouco de intimidade ao pai e a filha.
A porta se abriu e se ouviu um grito infantil. Fleur
sorriu e guardou o livro cuidadosamente na estante com
outros. Para falar a verdade, estava nervosa. O Duque
de Ridgeway! Sempre o tinha imaginado como um
personagem magnífico.
—Papai! Papai! —chiou Lady Pamela—. Fiz um
quadro, e perdi um dente, vê-o? O que me trouxeste?
Ouviu-se uma risada masculina profunda, e um
sonoro beijo.
—Interesseira — protestou ele—. Pensava que era
para mim a quem te alegrava de ver, Pamela. O que te
faz pensar que te trouxe algo?
—O que trouxeste? —a menina seguia chiando.
—Mais tarde — a conteve—. Está diferente sem o
dente.
—Quando mais tarde? —insistiu a menina.
O Duque de Ridgeway voltou a rir.
Fleur se voltou. Sentia-se estúpida por seu próprio
nervosismo. Era filha de um barão. Tinha vivido na casa
de um barão, no Heron House, a maior parte de sua
vida. Não havia o mínimo motivo para que a intimidasse
um duque. Endireitou-se, juntou as mãos por diante no
que esperava que parecesse uma atitude relaxada e
levantou a vista.
O duque tinha a sua filha em seus braços e ria ao
abraçar a menina ao seu pescoço. A metade de seu
rosto marcado se tornou para o Fleur.
De repente, a garota se sentiu como se estivesse em
um túnel, um túnel comprido e escuro através do qual
soprava um vento frio. Ouvia como zumbia, embora
estivesse convencida de que não havia suficiente ar para
respirar.
Os olhos do duque se encontraram com os de Fleur
ao outro lado da habitação, e o frio penetrou pelo nariz
da garota e lhe subiu até a cabeça. O som do vento se
converteu em um zumbido surdo. As mãos ficaram frias
e úmidas e como se estivessem a um milhão de
quilômetros de sua cabeça.
—Senhorita Hamilton? —O duque de Ridgeway
deixou a sua filha no chão e deu uns passos para o
Fleur, fazendo uma leve reverencia—. Bem-vinda ao
Willoughby Hall, senhorita.
Fleur sabia que se conseguisse respirar fundo e de
maneira regular durante o tempo suficiente recuperaria a
visão e o sangue bombearia outra vez à cabeça. Pensou
unicamente na respiração. Inspirar. Exaltar. Não te
acelere. Não o force.
—Confio em que tenha encontrado tudo a seu gosto.
—E assinalou por volta do quarto de estudo que estava
ao seu lado.
«Respira lentamente, Não, não te deixe levar pelo
pânico. Não te deprima. Não te deprima!»
—Papai, o que me trouxeste? —Lady Pamela puxava
a perna da calça de seu pai.
Aqueles imensos olhos escuros deixaram de olhá-la
para fixar-se em sua filha. Sorriu, mas o lado da boca
que via Fleur, o lado da cicatriz, permaneceu impassível.
Fleur sentiu um terror sombrio, que a deixou sem
fôlego um instante antes de voltar a controlar a
respiração.
—Será melhor irmos abaixo a ver ou não me deixará
em paz, verdade? — comentou ele —. Sidney se
queixou todo o caminho de Londres. Só espero que você
goste.
Estendeu a mão para que a agarrasse sua filha: uma
mão de dedos largos e cuidados.
Lentamente. Inspirar. Exaltar.
—Sidney é um tolo — opinou Lady Pamela.
—Tremo com apenas pensar o que diria Sidney se
alguma vez te ouvisse dizer isso.
—Sidney é tolo, Sidney é um tolo — gritou a menina,
rindo bobamente e agarrando a sua mão.
Fleur sentiu que voltava a cravar os olhos escuros
nela, embora a governanta mantivesse o olhar fixo em
Lady Pamela.
—A senhorita Hamilton descerá conosco —
acrescentou o duque—, e te devolverá antes de que a
tata possa enviar uma equipe de busca.
Fleur saiu antes que ele e cruzou o corredor a seu
lado, em direção a uma das escadas gêmeas que
flanqueavam a entrada principal.
—Senhorita? —disse Adam ao chegar às escadas,
estendendo o seu braço livre.
Mas ela emitiu um som inarticulado, e se apartou
ainda mais, até o ponto de que seu vestido roçava a
parede enquanto baixavam. O duque se voltou a escutar
o falatório de lady Pamela.
Fleur ouviu o eco de seus passos ao cruzar a entrada
principal, fixou-se na elegância com a que um lacaio se
inclinava para diante para abrir as portas duplas, sentiu o
ar fresco e o sol contra seu rosto, contou os degraus de
mármore enquanto os baixavam, e sentiu os
paralelepípedos do passeio serpenteavam ao caminho
dos estábulos sob seus pés.
Concentrou-se intensamente nas sensações físicas
imediatas. Era o melhor modo de ocupar seus
pensamentos.
—Aonde vamos? —Lady Pamela caminhava junto a
seu pai com passo ligeiro, aferrando-se ainda a sua mão.
—Logo o verá — a tranqüilizou—. Pobre Sidney.
—Sidney tolo — repetiu ela.
O cachorrinho Border collie de focinho arrebitado
tinha o cabelo branco no nariz e uma raia torcida na
cabeça e parte do pescoço. Meio corpo do animal e a
barriga eram de cor branca. O resto era negro.
Queixava-se de que o tivessem colocado em um
curral improvisado com um montão de palha contra a
que tropeçava quando tentava caminhar. Gemia
sonoramente chamando a sua mãe.
—Aaaah! —Lady Pamela soltou a mão de seu pai e
ficou olhando-o sem dizer nada até que ficou de joelhos
junto ao curral e levantou o agarrou entre as mãos. O
cachorrinho deixou de chorar imediatamente e lhe
lambeu a face, o que fez que a menina enrugasse o nariz
e a apartasse, rindo.
—Sidney viajou de Londres com má cara e os dedos
mordiscados — explicou Sua Excelência—. E muitas
vezes com as calças molhadas.
—OH! —Lady Pamela olhava seu presente
maravilhada—. É meu, papai? Todo meu?
—Estou seguro de que Sidney não o quer.
—Vou levar ele a meu quarto. Vou dormir com ele.
—É uma cadela — esclareceu o duque—. E pode ser
que sua mãe e a tata tenham algo que dizer respeito ao
de ter um animal em casa.
Mas Lady Pamela não o escutava. Estava brincando
com seu cachorrinho e rindo quando lhe mordiscava os
dedos com seus dentinhos afiados.
Fleur olhava à menina e ao cachorrinho, com os
ombros inclinados para trás e o queixo levantado.
Manteve as mãos apertadas quando sentiu que o duque
voltava a fixar-se nela e a percorria com o olhar.
—Acaso não o suspeitava? —perguntou-lhe em voz
baixa.
Fleur não podia mover-se. Se movesse um músculo,
desabaria.
—Não o suspeitava — afirmou ele, e se ajoelhou
junto a sua filha.
Decidiu que o cachorrinho ficaria nos estábulos até
que o tivessem educado para estar em casa. Pamela
poderia visitá-lo quando quisesse enquanto não
interrompesse nem suas aulas nem seu descanso. Mais
adiante poderia levar o seu mascote a casa, sempre e
quando nunca entrasse no piano nobile, a ou sua mãe
lhe daria um ataque de tosse e Sidney ficaria furioso.
O duque permaneceu nos estábulos enquanto Fleur
levava a Pamela da mão de volta a casa. A menina
falava sem parar. O cachorrinho era encantador. Os
meninos Chamberlain ficaram ciumentos quando o
virem… quando a virem. Ensinar-lhe-ia a sentar-se e a
obedecer as ordens. Acaso não era seu pai o papai mais
maravilhoso do mundo inteiro?
Fleur retornou com a menina pelo mesmo caminho
pelo que tinham ido: subiram os degraus, cruzaram a
entrada principal e o arco, subiram as escadas e
atravessaram o corredor até o quarto de brincar onde as
esperava a senhora Clement. O falatório da Lady Pamela
aumentou de velocidade e volume para seu novo
público.
—As aulas terminaram por hoje, senhorita Hamilton
—ordenou a babá em tom desdenhoso.
Fleur foi para seu quarto sem vacilar, fechou a porta
detrás de si e se apoiou contra ela, com os olhos
fechados, como se ao fazê-lo pudesse manter-se fora do
mundo.
E a seguir se encerrou na privada, inclinou-se sobre
a cadeira com urinol e vomitou até que lhe doeu o
estômago.

—Sua Excelência o duque partiu a sua propriedade


no campo — informou o senhor Snedburg ao Lorde
Brockehurst em um dia embaraçosamente quente de
maio—, levando-se a seu secretário, o senhor Houghton,
com ele. Isso parece confirmar o assunto. Foi o homem
que contratou a senhorita Hamilton, senhor.
—Tem que ser ela e deve estar ali — comentou seu
cliente, observando carrancudo e enojado enquanto o
agente secava a face com um lenço grande—. Que
desculpa posso encontrar para ir até ali? Não terá
descoberto o paradeiro de Lorde Thomas Kent por
acaso, verdade?
—Ainda não comecei a investigá-lo — comentou o
senhor Snedburg—. O pode fazer, mas, é necessário,
senhor? Se buscar a jovem por assassinato, posso ir ali
imediatamente com sua aprovação como juiz de paz e
com uma ordem de arresto, e trazê-la outra vez aqui.
Não me escapará, pode estar seguro. Em um momento a
pode ter com a cabeça na corda e os pés pendurando no
ar, senhor.
Lorde Brockehurst se estremeceu ligeiramente.
—Encontre ao Lorde Thomas Kent —ordenou—, ou
encontre um modo de me apresentar nessa casa sem
parecer um completo imbecil, e seu trabalho terá
terminado. Eu farei que volte.
—Então o único que tem que fazer, senhor, é ir até
ali para buscá-la — comentou o senhor Snedburg,
secando o cangote e observando as licoreiras do
aparador com uma expressão decididamente nostálgica
—. Se a governanta do duque for uma assassina e uma
ladra de jóias não necessita desculpas.
—Obrigado. —Lorde Brockehurst olhou fria e
fixamente ao agente—. O farei a minha maneira. Traga-
me a informação que quero e arrumarei as contas com
você.
—Por isso dizem todos, vai haver uma festa em
Willoughby Hall, senhor — comentou o agente—.
Conseguirei uma lista de convidados e dos que estão em
Londres e ainda não partiram.
—Tão rápido como é possível, por favor — pediu
Lorde Brockehurst, animando-se, e a seguir ficou em pé
para que o policial se fora.
—Pode contar com isso, senhor — afirmou o senhor
Snedburg—. E se Lorde Thomas estiver na Inglaterra,
descobri-lo-ei.
Quando voltou a ficar sozinho, Lorde Brockehurst
cruzou a sala para servir uma bebida, e ficou com a
licoreira nas mãos, olhando-a fixamente com expressão
de desgosto.
Tinha que ser Isabella. Mas trabalhar de governanta
para o duque de Ridgeway? E que a tivesse contratado
seu secretário, que se tinha passado quatro dias naquela
agência esperando-a…
Que diabos estava ocorrendo? Se Ridgeway ou
algum outro lhe tinha posto a mão em cima… Fechou a
mão ao redor da licoreira. Encontraria-a. Faria entender
as coisas a sua maneira, embora fosse a última coisa
que obtivesse na vida. Não teria nenhuma outra
alternativa que não fora entender as coisas tal e como
ele as entendia. Não é que tivesse querido ameaçá-la.
Nunca se tinha exposto que fora necessário.
Que mulher mais estúpida. Sempre lhe tinha
assombrado sua teimosia. Não tinha sido capaz de
entender sua maneira de raciocinar. Claro que as
mulheres apaixonadas nunca eram razoáveis. E
acreditava que estava apaixonada pelo galinha do Daniel
Booth.
Embora resultasse impossível dizer o que era o que
tinha visto Isabella em um padre que ainda era ajudante.
Membros largos, cachos loiros e olhos azuis… pensou
que todo aquilo devia bastar a uma mulher que não sabia
o que lhe convinha.
Fechou os olhos e pensou no cabelo da Isabella,
dourado como o entardecer, sentiu seus dedos
enredados em sua suavidade e cheirou sua fragrância.
Maldita seja, mas agora a tinha onde a queria, e faria
que se desse conta disso. Tinha que começar a ameaçá-
la, faria-o. A corda oscilante não constituía uma imagem
muito agradável. Já o compensaria mais adiante.

Ao dia seguinte de sua chegada, o duque de


Ridgeway estava no terraço superior fora da casa pela
manhã cedo, olhando para o parque que conhecia quase
como a palma de sua mão, e se enfureceu ao pensar
que em questão de dois dias tudo aquilo estaria invadido.
Adorava receber convidados em Willoughby. Adorava
organizar concertos e grandes bailes quando fosse
possível e convidar a seus vizinhos para jantar, a jogar
às cartas ou a conversar. Inclusive desfrutava tendo
algum que outro hóspede que ficasse a passar a noite.
Mas não gostava de nada albergar a uma multidão que
não procurava outra coisa que não fora entretenimento
frívolo e superficial, a classe de gente que gostava Sybil.
E tinha visto a lista de convidados. Aquela ocasião não
seria uma exceção à regra geral.
Amava a paz e a tranqüilidade de seu lar quase mais
que qualquer outra coisa na vida. E todo aquilo duraria
Deus sabe quanto tempo. Uma vez que chegavam, os
convidados de Sybil nunca sabiam muito bem quando
deviam partir.
Percorreu o terraço e a lateral da casa em direção à
grama da parte de atrás, a horta e as estufas.
Que não daria por sua liberdade, pensou durante um
instante de descuido, e imediatamente teve uma imagem
mental de Pamela e o muito que se emocionou com sua
cadelinha, a que tinha insistido em chamar Pequenina,
embora tivesse explicado que o cachorrinho cresceria. E
pensou em sua face adormecida e o cabelo revolto que
tinha quando tinha ido ver a noite anterior, sem precaver-
se de que já estaria na cama. Pensou em seus braços
aferrando-se a ele com afeto, e em seu beijo úmido e em
sua pergunta.
—Não irá outra vez, verdade, papai?
—Estarei aqui durante muito tempo — tinha
assegurado ele.
—Promete-o?
—Prometo-o — afirmou, abraçando o corpinho
ligeiramente e beijando-a—. Agora durma. Verei
amanhã.
Não. Uma menina tinha direito a ter um lar seguro e
pai e mãe, embora não fossem perfeitos. Errou a deixá-la
durante tanto tempo só por sua própria tranqüilidade.
Deteve-se um momento. Havia uma mulher
atravessando os enormes canteiros de flores.
Não era igual a como a recordava. De fato, ao olhá-la
no dia anterior, sua primeira impressão tinha sido que
Houghton tinha cometido um engano e tinha contratado à
mulher equivocada. Mas era ela, é obvio. Tinha-a
reconhecido ao fixar-se mais atentamente.
Cada vez que tinha pensado nela nas últimas
semanas a tinha imaginado magra e pálida, nada bonita,
só ligeiramente atrativa. É verdade que tinha as pernas
largas e magras, os quadris marcados e os seios firmes
e turgentes. Mas se tratava de uma mulher pouco
atrativa, parecia-lhe que era uma dama que passava
uma má fase, alguém a quem se havia sentido obrigado
a ajudar por algum motivo desconhecido.
E a tinha ajudado.
Não era tal e como a recordava. Tinha ganhado
bastante peso como para que agora sua figura
resultasse atrativa, face à barreira da roupa. Seu rosto
tinha cor e um brilho saudável. Já não estava abatido e
desfigurado. E o cabelo, que recordava de um vermelho
apagado e sem vida, agora brilhava como um fogo
dourado.
No dia anterior tinha descoberto que a senhorita
Fleur Hamilton era uma mulher assombrosamente
bonita, e o fato lhe tinha surpreendido e não o tinha
agradado precisamente.
Só em um único sentido era do modo em que a
recordava. Era como uma estátua de mármore: fria,
distante, indiferente. Apenas havia dito uma palavra
durante seu primeiro encontro, embora recordasse que o
tinha observado em todo momento enquanto desfrutava
dela. No dia anterior não havia dito uma só palavra. Nem
sequer tinha feito uma reverência.
Limitou-se a apartar-se dele: o terror nu e a
repugnância se refletiam em seu olhar quando lhe tinha
devotado o braço para baixar as escadas. E de todas as
maneiras por que lhe teria devotado seu braço a uma
criada?
«Não me toque» murmuravam seus lábios.
Provavelmente poderia lhe ensinar ao Sybil umas
quantas coisas sobre rebaixar-se.
Continuou avançando em direção a ela, e antes de
chegar soube que se deu conta de que se aproximava,
embora não mostrasse nenhum sinal visível e não o
olhou.
—Bom dia, senhorita Hamilton — sussurrou ele,
detendo-se vários passos dela.
Fleur se voltou olhando-o fixa e diretamente, do
modo em que ele recordava.
—Também gosta de passear pela manhã? —
perguntou o duque—. Sempre me parece o melhor
momento para estar ao ar livre.
—Não serei sua amante — afirmou ela em voz baixa.
—Não o será? Perdoe-me, mas acaso o pedi?
—Está tudo tão claro! Entendi-o perfeitamente assim
que o vi ontem. Não serei sua amante.
—E eu o que entendi é que a tinham contratado para
que fosse a governanta de minha filha. Espero que
dedique todas suas energias à tarefa, senhorita.
—É asqueroso — seguiu ela—. Você um homem
casado. Trouxe-me até aqui para viver sob o mesmo teto
que sua esposa e sua filha. Espera que passe várias
horas ao dia ensinando a sua filha. E também espera
que seja sua puta em tais condições. Por isso me pagou
tão bem e me deu de comer? Para que estivesse em
dívida com você? Voltarei para lugar onde me
corresponde, mas não lhe permitirei que volte a me
tocar. Dá-me asco.
O duque estava furioso com a garota. Furioso. Como
se atrevia? Como se atrevia a acusar o de trazê-la a sua
casa para ensinar Pamela para poder se deitar com ela
entre os bosques e nos apartamentos de cobertura!
- Deixe-me que esclareça uma coisa, senhorita
Hamilton —sussurrou ele, com as mãos apertadas detrás
das costas—. Ordenei a meu secretário que a
empregasse porque necessitava desesperadamente um
emprego distinto de que tinha decidido exercer. Acreditei
quando me disse que era apta para o posto. Você é
minha criada, senhorita, pagam-lhe bem e a cuidam
bem. Acredito que estará de acordo nisso. Não tenho por
costume confraternizar com minhas criadas. E
certamente não tenho o costume de dormir com elas.
Quando necessito uma puta, emprego a uma que
ofereça seus serviços para isso, e lhe pago em
conseqüência. O deixei claro?
Ela se ruborizou e não disse nada. O duque
entrecerrou os olhos.
—Acredito recordar que já disse uma vez que
quando faço uma pergunta exijo uma resposta — insistiu
—. Responda-me.
—Sim — suspirou ela, e lhe olhou fixamente, com o
queixo levantado—. Sim, Sua Excelência.
Ele inclinou a cabeça para a garota.
—Continue passeando. Que tenha um bom dia,
senhorita.
O duque partiu dando pernadas pelo mesmo lugar
pelo que tinha chegado. A manhã se danificou pela fúria
e a agitação que sentia. Mas estava agradecido pelos
anos que tinha passado no exército, que lhe tinham
ensinado a disciplina de dar rédea solta a sua cólera só
através das palavras.
Tinha experiente o desejo de agarrar à mulher pelos
braços e sacudi-la até lhe partir a cabeça. Tinha sentido
desejos de feri-la.
Separou-se do terraço e cruzou a grama que o
conduziria até o lago. E abrandou deliberadamente seus
passos e sua mente. Suas experiências como oficial
tinham ensinado a pensar assim, a pensar utilizando a
lógica calculada em vez da fúria intensa.
Se ela acreditava o que dizia — e resultava evidente
que sim—, então tinha que admitir que tinha mostrado
uma valentia notável. Imaginava que não devia resultar
fácil para uma mulher pobre e em uma situação precária
enfrentar a um duque.
Tinha mostrado sua indignação ante o que pensava
que ele tinha planejado. Uma puta com sentido moral?
Mas por que não? Havia muitas mulheres respeitáveis
que careciam totalmente dele.
Havia-lhe dito que era asqueroso. Era só pelo
comportamento de que imaginava que era capaz? Ou
era sua pessoa o que lhe resultava repulsivo?
O duque não tinha nenhuma dúvida de que, ao
menos em parte, tratava-se disto último. Despiu-se
diante dela, algo que não tinha feito com nenhuma
mulher antes, em todo caso não desde que foi ferido em
combate. E se tinha colocado frente a ela,
permanecendo totalmente exposto a sua vista todo o
tempo que tinha passado na cama com ela.
Agora se precavia de que o tinha feito de propósito,
para liberar-se de toda a dor, a inibição e a degradação
com a que tinha vivido durante seis anos. Queria que
uma mulher o visse, uma mulher que não pudesse
permitir-se mostrar repulsão ou rechaçá-lo.
E a valente Fleur tinha superado a prova: seus olhos
não se apartaram dos dele em que pese a que tinha sido
uma ocasião muito mais importante para a garota do que
soube o duque até que foi muito tarde.
Bom, pois lhe resultava repugnante. Isso o
surpreendia? E acaso importava? Era sua criada, uma
de muitas. Tinha-lhe dado o emprego porque o
necessitava e nunca teria tido êxito como prostituta.
Fazia sua contribuição para expiar seu pecado de
infidelidade e por ter contribuído a pôr à garota no
caminho da degradação e a perdição.
Não importava. Fazia sua contribuição e se
esqueceria dela. Se não resultava uma boa governanta
para Pamela, a enviaria a outra de suas propriedades
para que se ocupasse de outras tarefas.
Ficou olhando para o lago, desejando que sua terra,
sua casa, produziram esse efeito mágico que produziam
sempre em sua alma.
Capítulo 6

Lady Pamela se apartou uns quantos metros de seu


animal e a cachorrinha tropeçou enquanto tentava correr
para ela. A menina ria sem poder conter-se ao ver que o
bicho tropeçava na erva larga e dava voltas antes de
voltar a ficar em pé e retomar o intento de alcançá-la.
Agarrou o cachorrinho e caiu de costas. Sustentou-o
bastante perto como para que pudesse lhe lamber a
face, e continuou rindo.
Fleur não tinha como recordar a sua aluna que a
tinha feito sair para que pintasse e que tinha tido que
suplicar à senhora Clement que lhes permitisse estar ao
ar livre. Só tinha concedido uma hora. Eram tão
escassas as ocasiões nas que Lady Pamela parecia
desfrutar… de salvo com os meninos Chamberlain e
exceto na tarde anterior, quando seu pai tinha voltado
para casa.
Fleur se estremeceu.
—Vê-o? —indicou quando cessaram as risadas—.
Podem ver o pavilhão na ilha refletido no lago e rodeado
de árvores. Você tinha razão. Será um quadro muito
bonito.
—Ai! —voltou a rir outra vez Lady Pamela—. Não
morda, Pequenina.
—Ou possivelmente hoje gostaria de pintar a
Pequenina rodando na erva — sugeriu Fleur.
—Sim. —O olhar da menina se iluminou—. Não lhe
parece divertida, senhorita Hamilton? Não lhe parece
que papai é maravilhoso?
—Sim, certamente — afirmou uma voz que procedia
de detrás de Fleur—. Mas isto o que é? Uma parte de
papel em branco e pincéis secos? Tem erva no cabelo,
Pamela! E por todo o vestido! O que vai dizer a tata?
—Arreganhará-me —respondeu Lady Pamela—.
Papai, vem tocar o nariz da Pequenina, que divertido.
Deixa-a fria.
O duque de Ridgeway passou por diante de Fleur e
se ajoelhou junto a sua filha.
Fleur ficou onde estava, diante do cavalete, e sentiu
que se congelou. Esperava não vê-lo durante muito,
muito tempo depois daquela manhã… sobre tudo depois
daquela manhã. Havia se sentido totalmente humilhada.
O duque estava furioso: cada palavra que havia dito
tinha sido como uma chicotada. Viu-se obrigada a
recordar que tinha sido oficial de infantaria com os
exércitos de Sua Excelência o duque do Wellington
durante vários anos. E parecia que lhe havia dito a
verdade.
Tinha-lhe dado esse emprego porque a compadecia,
não porque a desejasse.
E o primeiro que lhe havia dito tinha sido «Não serei
sua amante»… Dizer isso ao duque de Ridgeway! A seu
senhor. Não suportava recordá-lo.
O duque ficou em pé e se voltou enquanto Pamela
brincava.
—Trouxe-a aqui para que pintasse? —perguntou.
—Sim, Sua Excelência.
—E insistiu em que o fizesse?
—Esta tarde está muito emocionada com o seu
cachorrinho, Sua Excelência — comentou Fleur.
—Não ficamos ontem em que o cachorrinho não ia
interferir com as aulas?
—Sim, Sua Excelência.
Fleur olhou nas profundidades escuras dos olhos do
duque e reprimiu o terror que sua altura, a largura de
seus ombros, seu cabelo negro e suas facções
marcadas ameaçavam convertendo em pânico. E
contemplou a cicatriz que o desfigurava e que lhe
recordou as outras marcas de seu corpo, que eram muito
pior que cicatrizes.
—Às vezes, com os meninos pequenos, as aulas não
têm que ser totalmente rígidas — continuou Fleur—. Esta
tarde falamos que os dentes do cachorrinho e do motivo
pelo que são tão pequenos e por que caem, como ocorre
com os da Lady Pamela. Falamos que tamanho da
cabeça do cão e de como mudará quando crescer.
Expliquei-lhe como seus moços treinarão ao cão para
que possa acabar vivendo na casa. Havemos…
—Não pensava despedi-la, senhorita — a
interrompeu—, embora tenha sido uma boa resposta.
Qual era o objetivo da classe de pintura?
- Ia descrever as colunas corintianas e os frontões—
explicou a governanta, olhando para o pavilhão—, e
assinalar que tudo se via o reverso ao refletir-se. Mas
sua filha tem cinco anos, Sua Excelência. Minha intenção
básica era lhe permitir desfrutar de do ar fresco e
experimentar com as pinturas.
Fleur elevou o queixo orgulhosa. Que se aborrecesse
se queria. A menina desfrutava de muito pouca
espontaneidade em sua vida.
—Boa resposta, também. Está especializada nelas?
Não havia resposta para uma pergunta semelhante.
—Suponho que se fixou em que o templo é uma
réplica exata em miniatura da seção central da casa.
—Excetuando os degraus em forma de ferradura —
matizou ela, voltando o olhar para o lago que ficava por
debaixo deles—. Ocorre o mesmo por dentro?
—É muito parecido, inclusive com a pintura que há
dentro da cúpula. Mas no templo não há galeria.
Construiu-se para que resultasse pitoresco, como todo o
resto que há no parque, mas se utiliza como pavilhão
musical nas festas do jardim. E o utilizará a orquestra no
baile que há dentro de três dias. Hão-lhe dito que pode
assistir?
—Sim, Sua Excelência.
O duque se voltou a falar com sua filha.
—Vamos caminhando até a borda da água —
comentou—. O pavilhão resulta mais imponente de ali. E
a ponte se vê ao longe, e parte das cascatas. Agarra ao
cachorrinho, Pamela. Não pode caminhar tanto.
—Mas é hora de irmos para a casa —interpôs Fleur.
O olhar escuro se voltou para ela. O duque levantou
uma sobrancelha.
—E quem o diz?
Fleur sentiu que se ruborizava.
—A senhora Clement estará nos esperando, Sua
Excelência.
—A babá? Pois a babá terá que esperar, não lhe
parece?
Pamela baixou fazendo ruído pelo pendente em vez
de agarrar o caminho que a rodeava até chegar a um
pendente menos levantado. O duque deu a mão a Fleur
para ajudá-la a baixar, e a garota voltou a entrar no túnel.
A escuridão e o ar frio a rodeavam: só via a mão, os
dedos largos e bonitos que se deslizaram entre suas
coxas, tinham-nas aberto e que logo se introduziram em
seu interior, preparando-a para a penetração.
O duque baixou a mão e se voltou para ela.
—Agarre-a devagar, a não ser que tenha pensado
em nadar.
E de algum jeito Fleur conseguiu sair do túnel e
obrigou a suas pernas a mover-se para poder segui-lo
pelo pendente até o caminho que havia debaixo, onde o
cachorrinho estava dando saltos em círculo, contente de
encontrar-se no chão.
Demoraram uma hora em voltar para casa.
Passearam junto ao lago e subiram outra vez pelo aterro
em outro lugar. O duque descreveu as distintas vistas a
Fleur de um modo muito mais consciencioso do que o
tinha feito a senhora Laycock. William Kent, com o que o
duque comentou que não tinha nenhum parentesco,
tinha desenhado o parque para o avô de Sua Excelência,
substituindo os largos passeios e os grandes jardins
planos com canteiro que o tinham precedido.
—Acredito que minha avó se escandalizou —
comentou o duque—. Era uma dama do século dezoito
muito recatada. Acreditava que quanto maio era o jardim
de um, maior importância tinha.
O duque levou em cima ao cachorrinho a maior parte
do caminho, acariciando o focinho com um dedo
enquanto o cão se acomodava contra seu peito e dormia.
Entregou o cão a Fleur antes de ficar a perseguir Pamela
através de uma grama ampla e jogá-la ao chão, onde a
menina ficou renda-se e agitando os braços e as pernas.
Tanto o pai como a filha estavam um tanto
enrugados quando subiram a terraço que havia diante da
casa.
—Virão logo os convidados de mamãe, papai? —
perguntou Lady Pamela.
—Depois de amanhã, a não ser que algum se atrase.
—Poderei ver as damas?
—Quer as ver?
—Posso? —suplicou—. Mamãe dirá que não, sei que
dirá que não.
—Pode ser que mamãe tenha razão —explicou ele,
lhe soltando a mão e agarrando ao cachorrinho que
levava Fleur—. Você não gostaria das conhecer,
Pamela.
—Mas… — murmurou a menina.
—É hora de entrar — a cortou, olhando a Fleur aos
olhos. Olhou-a fixamente quando sua mão roçou com a
da governanta por debaixo da barriga do cachorrinho.
Fleur a apartou e deu um passo precipitado para trás—.
Vou devolver a Pequenina aos estábulos.
—Ah — recordou Fleur—, esquecemo-nos que
cavalete e as pinturas. Tenho que voltar para por eles.
—Enviarei a um criado — comentou o duque
impaciente—. Não se preocupe, senhorita.
Fleur agarrou a Lady Pamela da mão e a subiu ao
quarto de brincar. A menina estava cansada e
incrivelmente suja e despenteada, o qual a senhora
Clement não se absteve de observar e comentar.
Dez minutos mais tarde, Fleur estava de pé junto à
janela de seu quarto. Os ouvidos lhe ressonavam pela
cáustica reprimenda que tinha recebido. Ao que parecer
a senhora Clement pensava informar a Sua Excelência a
duquesa da terrível insubordinação que supunha ter
deixado que a menina estivesse fora da casa uma hora
mais do permitido e por devolvê-la como um espantalho,
e tão esgotada que sem dúvida ao dia seguinte estaria
doente.
Fleur permaneceu perto da janela e olhou em direção
à zona de grama da parte de atrás, que produzia uma
enganosa sensação de paz. Pensava que era um lugar
tranqüilo. Pensava que era o paraíso. Tinha começado a
relaxar-se e a sentir-se mais feliz do que se sentou
desde sua mais tenra infância.
Deveria partir antes que a despedissem? Mas aonde
iria e o que faria? Embora tivesse tudo o que podia
necessitar em Willoughby, ainda não lhe tinham pagado.
O único dinheiro que tinha eram as escassas moedas
que ficavam do adiantamento que tinham entregue para
comprar roupa nova. Nem sequer tinha suficiente para
voltar para Londres.
Estremeceu ao pensar em Londres. Só havia um
futuro para ela ali.
Logo que tinha reagido ainda ante o pesadelo do que
tinha acontecido. O trabalho o tinha dado o homem que
enchia tudo seus pesadelos de terror. Não tinha sido
uma casualidade afortunada, absolutamente. Tinha-lhe
dado esse emprego porque a compadecia, ou ao menos
isso dizia. Não sabia se confiava nele ou não.
E de repente aquele dia tinha descoberto que haviam
tornado todos seus outros medos. Tinham-na procurado?
Seguiam-na procurando? Ela seria enforcada se a
pegassem? Embora tivesse sido um acidente? Embora
tivesse atuado em defesa própria? Podiam enforcá-la a
um sem importar as circunstâncias se matava a outro ser
humano? Seguro que não.
Mas Matthew tinha sido a única testemunha. E
Matthew era barão e juiz de paz. Seria sua palavra
contra a dele. E tinha levantado a vista do corpo morto
do Hobson e a tinha chamado assassina.
Ela seria enforcada. Amarrar-lhe-iam as mãos e os
pés e lhe colocariam a bolsa sobre a cabeça e uma
corda ao redor do pescoço. Fleur se apartou
bruscamente da janela.
Não queria pensar nisso. E decidiu que tampouco
queria pensar no Daniel. Não o faria. Mas seu sorriso
amável, seus olhos azuis e seu cabelo loiro e suave se
apareceram de todos os modos ante ela, e também seu
corpo alto e esbelto vestido com o elegante e escuro
traje clerical.
Nunca a tinha beijado. Só a mão, e só uma vez. Ela
sempre tinha querido, mas ele se negou a única vez que
o tinha pedido. Esboçando o doce sorriso que o
caracterizava, havia-lhe dito que queria que fosse pura
no dia de suas bodas.
E por um beijo teria se tornado impura? Fleur fechou
os olhos e se tirou as forquilhas que lhe sujeitavam o
cabelo de maneira afetada na nuca.
Se soubesse o que tinha feito se escandalizaria.
Olharia com pena. Acaso a perdoaria? Sem dúvida o
faria, como Jesus perdoou à mulher surpreendida
cometendo adultério. Mas Fleur não queria seu perdão.
Queria seu amor e seus braços protetores. Queria paz.
Mas não poderia haver paz, embora durante duas
semanas se convenceu de que poderia havê-la. Tinha
matado a um homem e nunca poderia voltar para casa.
Se a apanhavam a enforcariam. E tinha feito o que tinha
feito com Sua Excelência, o duque de Ridgeway. E agora
estava apanhada em sua casa como um pássaro em
uma gaiola.
Escovou o cabelo embaraçado. Por muito tempo que
passasse naquela casa, por muito freqüentemente que o
visse, nunca poderia sentir outra coisa que não fosse um
terror muito profundo e uma repugnância terrível cada
vez que o olhasse.
Por muito elegante que tivesse vestido, sempre o
veria tal e como o tinha visto naquela habitação do Touro
e o Corno: alto, musculoso e nu, com um triângulo de
pêlo escuro lhe atravessando o peito e lhe baixando até
o umbigo e umas feridas espantosas de cor arroxeada,
detento de uma excitação aterradora que a tinha
penetrado e ferido de maneira virulenta, e que a tinha
violado de maneira irrevogável.
Um homem dotado de uma masculinidade
descarnada que exercia sua implacável supremacia
sobre a debilidade, a pobreza e a desesperança.
Em seu interior sabia que possivelmente era injusto
odiá-lo. Tinha-lhe pago bem pelo que lhe tinha devotado
livremente. Tinha mostrado sua generosidade ao lhe
oferecer aquela comida e o emprego.
Mas o odiava com um horror e uma repugnância tais
que ainda podia provocar que a expulsassem da casa de
improviso e sem ter nada previsto, ao igual a tinha fugido
do Heron House fazia mais de dois meses.
Fleur voltou a fechar os olhos. Na mão sujeitava a
escova, e se imaginou seu dedo acariciando
delicadamente o cabelo do cachorrinho. Teve que tragar
várias vezes para superar a náusea.

À manhã seguinte, o duque de Ridgeway bateu na


porta da sala da duquesa e esperou a que sua donzela
pessoal lhe deixasse entrar, fizesse uma reverência e
saísse da habitação em silêncio. Sua mulher o tinha
mandado chamar. Estranha vez entrava em uma de suas
estadias privadas sem que o convidasse.
—Bom dia, Sybil, como te encontra hoje?
Atravessou a habitação para agarrar a das mãos e
beijá-la. Como de costume, pôs a face.
—Melhor — respondeu a duquesa—. Esta noite tive
um pouco de febre, mas esta manhã me encontro
melhor.
Apartou as mãos das dele. Tinha umas mãos
pequenas e delicadas que antes ao duque gostava de
agarrar e beijar.
—Tem que se cuidar —advertiu ele—. Eu não
gostaria que voltasse a estar doente como esteve no
inverno.
—Ordenei ao Houghton que pague à senhorita
Hamilton e a despeça - espetou ela com a respiração
entrecortada, olhando-o com seus enormes olhos azuis
—. Disse-me que devia consultar você primeiro. O que
vais fazer a respeito, Adam?
—Pergunto o motivo pelo que quer se despedir da
governanta, suponho. O que tem feito ou deixado de
fazer?
—Refiro ao Houghton — explicou a duquesa. As
lágrimas começaram a lhe brotar dos olhos. Levava uma
bata ondulante de seda e encaixe branco, e tinha o
cabelo loiro solto nas costas. De maneira bastante
desapaixonada, seu marido pensou que resultava
impressionante e encantadora. E tão frágil como a
menina em quem tinha depositado seu coração quando
partiu a Bélgica—. Vais permitir que me fale desse
modo?
—Houghton é meu secretário pessoal, e só responde
ante a mim, Sybil. Despediria-o em um instante se o
esquecesse até o ponto de aceitar ordens de qualquer
outra pessoa da casa sem me consultar isso primeiro.
Sybil se ruborizou.
—Assim que seu secretário é mais importante para ti
que eu. Não sempre foi assim, Adam. Uma vez me
amou, ou isso acreditava. Ao parecer me enganava.
—Já deveria saber que tem que falar pessoalmente
comigo quando tiver um problema. Se o fizesse não te
humilharia tanto. Um secretário eficiente não pode
receber ordens de duas pessoas. O que é o que ocorre
com a senhorita Hamilton?
—Não deveria ter que perguntar me protestou isso,
retorcendo um lenço nas mãos—. Deveria bastar com
que eu queira que parta. Não acredito que seja
adequada para cuidar de minha filha. Por favor,
despede-a, Adam.
—Já sabe — suspirou ele—, que não demito nem ao
mais humilde de meus criados sem um bom motivo,
Sybil. Não sei se for consciente do perto que vivem os
criados do limite da pobreza. Não despedirei de ninguém
para satisfazer um mero capricho.
—Um capricho! —exclamou a duquesa. Abriu os
olhos e lhe voltaram a encher de lágrimas uma vez mais
—. Sou sua esposa, Adam.
—Sim. —Olhou-a fixamente—. O é, não é assim?
Ela baixou a vista e se sentou elegantemente no
extremo do divã.
—Sou a duquesa de Ridgeway — afirmou em voz
baixa.
—Essa descrição se ajusta muito mais a ti —
comentou Adam. Sua voz tinha um certo traço de
cansaço—. Sempre temos que ter esta classe de
conversação, Sybil? Sempre tenho que parecer eu o
tirano? Lamento meu sarcasmo. Que problema tem com
a senhorita Hamilton?
—Ontem pela tarde fez sair a Pamela — lamentou
Sybil—, pese ao vento frio e a luz direta do sol. Insistiu-
lhe à babá até que acessou, mas só uma hora. E voltou
mais de duas horas depois. Pamela estava suja e
esgotada, e esta manhã está muito cansada para
levantar-se sequer da cama, a pobrezinha. Desobedeceu
à babá deliberadamente, Adam. Nem sequer você pode
defender a disso.
—Estavam comigo — explicou ele—. Não as deixei
voltar para casa quando a senhorita Hamilton ia voltar.
Sybil o olhou adotando uma expressão severa.
—Esteve contigo? —perguntou, levando o lenço aos
lábios—. Mais de duas horas?
—Não esteve — a corrigiu—. Hei dito que estiveram
comigo: Pamela, a senhorita Hamilton e o cachorrinho.
Se Pamela estava suja, foi porque estive rodando pela
erva com ela. Se estiver cansada, é porque corri e
brinquei com ela e lhe dava mais de duas horas de sol e
ar fresco. Os meninos deveriam estar cansados depois
de sair e derrubar-se por aí.
A duquesa estava muito pálida.
—Isto é intolerável. Já lhe adverti isso antes, Adam: é
muito rude com Pamela. É uma menina delicada e
deveria ficar aos meus cuidado e ao da tata. E o cão!
Pode lhe contagiar sabe Deus que enfermidades. Ah,
sabia que ocorreria isto assim que voltasse para casa.
Não tem nenhuma consideração por minha sensibilidade
absolutamente. É tão egoísta! Como me enganaste!
Ele continuou olhando-a fixamente até que ela voltou
a baixar a vista.
—Continuarei passando tanto tempo com Pamela
como posso — declarou Adam—. Necessita a atenção
paterna mais que os mímicos de uma babá anciã, Sybil.
E necessita atividade, tanto física como mental. E me
deixe ver se o entendo: a senhorita Hamilton recebe
ordens da babá?
—Sim, claro que sim. Minha menina é só um bebê.
—Em adiante, será justo ao reverso. Confio em que
informe à babá da mudança. Ficará a fazer panelas
quando o disser, embora você também. Informarei à
senhorita Hamilton da nova regra.
Duas lágrimas brotaram dos olhos da duquesa.
—É um homem cruel e desumano. Fará algo para
frustrar meus desejos, não é assim, Adam? Só porque
uma vez te levou bem comigo, tenho que estar em dívida
para sempre?
Ele a olhou sem responder.
—Já sabe que nunca pensei isso. E nunca o
pensarei. Só em sua imaginação, Sybil. Às vezes quase
chega a me convencer de que sou um tirano e um vilão.
Sybil esfregou os olhos com o lenço e o dobrou
pondo-o em seu regaço.
—Assim tenho que suportar que aparte a minha filha
de meus cuidados e dos de sua babá e a ponha em
mãos de sua concubina. Pois muito bem, Adam. Estou
muito fraco para brigar contigo.
—Minha concubina? Tome cuidado, Sybil. Parece
que te resulte improvável que eu possa desejar os
serviços de uma concubina. —O lado direito do rosto do
duque sorriu fugazmente quando ela levantou a vista
para ele, perplexa—. Não, já me parecia que essa idéia
não te resultaria atrativa.
—Às vezes penso que me obrigará a te odiar —
sussurrou com o fio de voz que brotava de suas
lágrimas.
—Fica muito pesada…
Contemplou-a enquanto tossia e se reclinava nas
almofadas do divã, levando o lenço aos lábios.
—Faz meses que deveria ter insistido em que outro
médico olhasse essa tosse — acrescentou Adam em voz
baixa—. Hartley parece incapaz de curá-la. Deixe-me
que chame um médico de Londres, Sybil. Deixe-me fazer
algo por ti. Deixe que haja um pouco de amabilidade
entre nós para variar.
—Eu gostaria de estar sozinha. Preciso descansar.
—Isto não o tinha previsto — comentou ele, cansado
—. Não tinha previsto que chegaríamos a brigar e a opor
nossos desejos. Não previ que chegaria a me considerar
um tirano e que às vezes me veria obrigado a atuar
como tal. Esperava que fosse um bom matrimônio. Não
previ que poderíamos chegar a nos odiar.
—Às vezes — continuou ela, afundando o rosto no
lenço e com um fio de voz que refletia seu sofrimento—,
odeio-te por ter fingido que tinha morrido e voltar vivo.
Odeio-te por fazer que Thomas partisse quando sabia
que tínhamos chegado a ser o um para o outro. Às vezes
me custa não te odiar, Adam, embora intento não fazê-lo.
É meu marido.
A duquesa voltou a tossir outra vez e não podia
parar. Pálido, Adam cruzou a habitação para ela, tirou
seu próprio lenço, plantou um joelho no chão ante a
duquesa e o quis dar. Mas apartou a mão.
—Sybil… — murmurou o duque, e apoiou
delicadamente uma mão na nuca de sua esposa
enquanto tossia.
Mas Sybil escapou dele, ficou em pé, e fugiu ao
vestidor, fechando de uma portada ao entrar.
O duque de Ridgeway permaneceu com um joelho
no chão e a cabeça inclinada para diante. E se
perguntava como tinha ocorrido muitas vezes antes, se o
tinha amado alguma vez. Havia-lhe dito que o amava só
porque queria ser sua duquesa e a proprietária de uma
das casas mais esplêndidas do reino? Acaso todos os
beijos, todas as olhadas enternecedoras e os doces
sorrisos, tinham sido um mero artifício?
Adam se tinha criado sabendo que se esperava que
se casasse com ela. E a idéia nunca lhe tinha inquietado.
Mas não se apaixonou por ela até que voltou para casa
procedente da Espanha e a encontrou convertida em
uma mulher adulta, encantadora e frágil, com uns olhos
azuis que gotejavam admiração por ele. Apaixonou-se
profunda, totalmente dela.
E esses sentimentos tinham sido unilaterais? Acaso
suas declarações de amor tinham sido unicamente
mentiras? Ou possivelmente ela também se viu obrigada
pelas expectativas geradas durante anos. Possivelmente
tinha tentado apaixonar-se por ele ou ao menos lhe ter
carinho. Possivelmente o tinha tentado.
Supunha que devia haver sentido certo carinho por
ele então, quando tinha a face sem desfigurar, quando
possivelmente poderiam havê-lo descrito como um
homem atraente. Nunca esqueceria a expressão de
repugnância profunda no rosto de Sybil quando tomou
entre seus braços a primeira vez que se viram depois de
seu retorno e lhe fez dar voltas e a beijou.
Tinha-lhe doído muito. Mas esperava que a
expressão de repugnância desaparecesse uma vez se
adaptou a sua nova aparência. Nunca foi assim. Mas
claro, para quando voltou se prometeu ao Thomas. Em
um primeiro momento não lhe deu muita importância a
esse fato.
O duque ficou cansativamente em pé e se guardou o
lenço no bolso. Se alguém lhe houvesse dito aquela
primavera do Waterloo e a primavera seguinte, quando
voltou para casa, que seu amor pelo Sybil chegaria a
desaparecer algum dia, teria posto-se a rir burlando-se
disso. Um amor como o seu não poderia desaparecer
jamais enquanto existisse a vida.
E depois falam do amor, pensou com cinismo.
Voltou-se para a porta, sabendo de que sua mulher
estaria tossindo em seu vestidor. Ao duque não ficava
nem a mais mínima faísca de amor. Só certa compaixão
pelo que indubitavelmente tinha sofrido ela, e a vaga
esperança de que pudesse haver certa paz entre eles. A
esperança de não parecer sempre o vilão na vida que
compartilhavam.
Mas parecia que nem sequer a paz lhe ia conceder.

Capítulo 7

Foi Peter Houghton quem informou a Fleur da nova


disposição mais tarde, aquela mesma manhã, enquanto
esperava no quarto de estudo a uma aluna que não
vinha porque estava doente de esgotamento dos
esforços do dia anterior.
Fleur tinha um pouco de medo ao Peter Houghton
porque sem dúvida sabia quem era e o que era. E
mesmo assim a tinha tratado com uma cortesia
inquebrável nos dias que tinham transcorrido desde que
tinha voltado para o Willoughby. Ambos comiam com os
criados do piso de acima na mesa da senhora Laycock.
Não havia nada em suas palavras ou em seus gestos
que indicasse que lhe desagradava ter que confraternizar
com ela como se fosse seu igual. Não tinha cochichado
nem insinuado nada do que era a nenhum dos outros
criados.
Sentiu-se aliviada ante o novo acordo, não porque
queria controlar a babá da Lady Pamela, mas sim porque
desejava sentir que estava fazendo algo para ganhar o
salário e a manutenção. Nas semanas anteriores tinha
experimentado a incômoda sensação de que estava ali e
não devia está-lo.
O próprio duque levou a sua filha ao quarto de
estudo aquela tarde. Fleur fez uma reverência e a
propósito evitou olhá-lo diretamente. Mas ao pouco
momento Fleur se precaveu de que não tinha intenção
de partir imediatamente. Sentou-se em silencio em uma
cadeira, em um rincão da habitação, e ficou a observar.
Estiveram um momento com o alfabeto,
memorizando as letras através de um jogo: cada uma
pensava em alguma palavra absurda que começasse
com a letra em questão e logo tentava recordar cada
palavra e sua letra em uma seqüência.
—Fanfarrão! —exclamou o duque quando Lady
Pamela se passou vários segundos refletindo sobre a
letra F.
A menina estalou em uma repentina gargalhada.
Foi a única contribuição do duque a aquela aula em
particular.
Logo contaram até cinqüenta e outra vez até um e
fizeram algumas somas singelas em um papel.
Examinaram uma toalha que Fleur tinha encontrado
dobrado em uma gaveta de seu quarto, e nomeou cada
ponto bordado para a Lady Pamela e lhe prometeu que
poderia começar um lenço próprio ao dia seguinte e
aprender um dos pontos.
—E posso escolher as cores que queira? —
perguntou a Fleur.
—As cores que queira — prometeu Fleur com um
sorriso.
—Margaridas vermelhas e caules azuis?
—Margaridas moradas e caules amarelos se quer —
respondeu Fleur.
—Mas todos rirão.
—Então tem que escolher as cores que queira e que
riam de você ou escolher as cores esperadas e que não
riam de você. É muito fácil. Só depende de você.
Lady Pamela franziu o cenho e olhou com receio a
sua governanta.
Falaram sobre o quadro do pavilhão, que ainda não
estava pintado, e Fleur baixou uma pintura grande de
uma paisagem que pendurava da parede para que sua
aluna pudesse apreciar quantos cores e tons distintos se
utilizaram para criar o efeito geral do céu, a erva e as
árvores.
—Mas, verá, a eleição depende de você — continuou
Fleur—. Seu trabalho como artista é ajudar à pessoa que
olhe a ver o que vê. E ninguém pode lhe dizer
exatamente o que vê. Todos vemos as coisas de um
modo distinto.
—Quero que toque o piano para mim — exigiu Lady
Pamela quando se esgotou o tema.
Fleur era muito consciente de que seu senhor estava
sentado em silencio na esquina.
—Possivelmente gostaria de sentar-se no tamborete
e que lhe dê uma aula — sugeriu.
Mas Lady Pamela já tinha tentado tocar por sua
conta e se precaveu de que não podia tocar como Fleur.
Também tinha aprendido que inclusive depois de uma ou
duas aulas não tinha adquirido a fórmula mágica para
tocar uma melodia fluída.
—Sente-se e toque para mim — exigiu a governanta.
—Por favor — sussurrou Fleur.
Mas inclusive enquanto pedia silenciosamente sua
cooperação, sabia que não a obteria.
—Toque para mim —ordenou a menina zangada.
—Por favor — repetiu Fleur.
—Que tolice! —exclamou Lady Pamela—. Que
diferença há em dizer «por favor»?
—Sinto que me pede isso, não que me ordena que
—explicou isso Fleur—. Faz que me sinta bem.
—Isso é uma tolice.
—Pode tocar o piano, por favor, senhorita Hamilton,
enquanto Pamela vai deitar-se na cama?
As costas de Fleur ficaram rígidas. Não tinha ouvido
como se levantava e atravessava a habitação.
Sua filha o olhou exasperada.
—Por favor, senhorita Hamilton.
Fleur fechou os olhos um instante. Faria qualquer
outra coisa antes que tocar. Tinha as mãos suarentas.
Mas se sentou no tamborete sem olhar a seu redor e
tocou Bach da melhor maneira que sabia.
—Agora é sua vez, Lady Pamela —indicou Fleur
quando teve terminado.
—Fá-lo bem — comentou Sua Excelência—. Viu os
instrumentos do salão e a sala de música?
Fleur os tinha visto durante a visita que tinha feito
com a senhora Laycock, embora não tinha tido a ousadia
de tocar nenhum deles. Suspeitava que o pianoforte do
salão era melhor que o que havia no Heron House, por
muito bonito que tivesse sido, já que era o tesouro
prezado de sua mãe. Só tinha sido capaz de contemplar
o enorme pianoforte da sala de música com um respeito
reverencial.
—Sim, Sua Excelência. Vi-os o dia que cheguei aqui.
—Vamos, Pamela. —O duque lhe estendeu a mão a
sua filha—. Vamos escutar a senhorita Hamilton na sala
da música. E nos lembraremos de dizer «obrigado»,
verdade?
—Sim, papai — respondeu a menina.
Fleur os seguiu sem reagir da habitação e pelo
corredor superior até a escada mais afastada. Mas
também estava emocionada. Permitir-lhe-iam tocar o
pianoforte!
Quando entraram na habitação que ficava junto à
biblioteca se aproximou do instrumento e tocou reverente
suas teclas. Oxalá pudesse estar sozinha. Oxalá eles
não estivessem ali.
—Por favor, senhorita Hamilton — pediu o duque em
voz baixa, e se sentou a costas dela com sua filha.
Fleur tocou Beethoven. Tinha passado muito tempo.
Beethoven não era apto para o clavicémbalo. Ao
princípio tocou sem convencimento, até que os dedos lhe
acostumaram ao suave marfim das teclas e a fluidez da
música e até que sua alma se transportou além de si
mesmo e se esqueceu de quem era.
A música sempre tinha sido seu grande amor, sua
grande válvula de escapamento. A língua afiada da
prima Caroline, os comentários mordazes da Amelia, o
saber que nunca voltaria a ver seus pais, a disciplina
estrita e a rotina monótona de seus anos escolar… todo
aquilo deixava de existir quando tocava um teclado.
Inclinou a cabeça sobre as mãos imóveis quando
terminou.
—Agora posso ir ver a Pequenina, papai? —ouviu-se
uma voz detrás de Fleur, voltando a introduzir sua alma
em seu corpo.
—Sim. Pede a um lacaio que vá contigo. A ver se te
lembra de dizer «por favor».
—Isso é uma tolice, papai — protestou a menina.
Fleur ouviu que a porta se abria e se fechava outra
vez.
—Tem muito talento — afirmou o duque de Ridgeway
—. Mas faz tempo que não pratica.
—Sim, Sua Excelência.
—Se for ensinar a minha filha, tem que tocar de uma
maneira impecável. Meia hora ao dia para a classe da
menina, e uma hora ao dia para que você pratique.
—Onde, Sua Excelência? —Ainda não havia se
tornado.
—Aqui, claro.
Fleur acariciou uma tecla com o dedo.
—Não me permite estar nesta planta, Sua
Excelência.
—Não lhe permite? São ordens da babá?
—De Sua Excelência a duquesa.
—Dadas em pessoa?
—Sim, Sua Excelência.
—Passará uma hora e meia ao dia aqui — repetiu o
duque— por ordem expressa minha. Já o explicarei a
Sua Excelência a duquesa.
Fleur não podia passar-se todo o dia aí sentada com
ele a suas costas. Começou a respirar de maneira
regular, ficou em pé, e se voltou para olhá-lo. Ele se
encontrava bastante perto, assim por um instante sentiu
outra vez o terror que lhe impunha seu tamanho.
—Está coberto o pianoforte a maior parte de sua vida
—comentou o duque. Não era uma pergunta.
Fleur não disse nada.
—Contou ao Houghton que seu pai havia falecido
endividado recentemente.
—Sim.
—Foi assim?
Ela o olhou aos olhos.
—Morreu endividado?

—Sim. —Não estava segura de que ao afirmá-lo não


lhe tivesse notado algo mais.
—E sua mãe?
—Faleceu, faz muito tempo.
—E não tem outra família?
Nunca lhe tinha dado bem mentir, embora saiba
Deus quanto o tinha feito nos meses anteriores. Pensou
na prima Caroline, na Amelia e no Matthew e meneou a
cabeça rapidamente.
—O que é o que lhe assusta? Eu?
—Eu deveria estar com a Lady Pamela —afirmou
Fleur, levantando o queixo e adotando um tom de voz
mais firme.
—Não, não deveria. Minhas ordens têm prioridade
sobre as suas, senhorita Hamilton. Pamela é uma aluna
difícil?
—Não está acostumada a fazer o que não deseja
fazer, Sua Excelência.
—Tem minha permissão para insistir. Sempre e
quando não converter sua vida em um pouco aborrecido.
—É uma menina. Meu maior prazer é vê-la sorrir e
ouvi-la rir.
—E essas habilidades se podem ensinar, senhorita
Hamilton? Eu tampouco a vi nem a ouvi fazê-lo.
—Posso-lhe emprestar toda minha atenção —
continuou Fleur—, e elogiá-la quando resulta apropriado
e animá-la quando elogiá-la resultaria inapropriado. E
posso lhe dar liberdade suficiente para que se sinta
como uma menina.
Olhava-a tão fixamente aos olhos que sentiu que
ficava sem fôlego, e resistiu a tentação de que entrasse
o pânico. Desejou ter dado um passo atrás quando se
levantou do tamborete, e teria resultado muito mais
natural fazê-lo então que agora. Por estranho que
pudesse parecer, sentia que o calor do corpo do duque
podia abrasá-la, em que pese a que se encontrasse a
vários centímetros de distância. O rosto dele estava
muito perto, tão perto como se encontrava em tudo seus
pesadelos, inclinado sobre o corpo nu dela.
—Seu dia de trabalho terminou, senhorita — ordenou
o duque. Sua voz tinha trocado de tom. Era fria, cínica—.
Pode retirar-se. Vou unir-me com minha filha nos
estábulos.
—Sim, Sua Excelência. —A garota se voltou para
partir.
—Senhorita Hamilton?
Fleur voltou parcialmente a cabeça.
—Estou satisfeito com o trabalho que a vi fazer esta
tarde —comentou.
Ela ficou quieta um momento antes de sair da
habitação e fechar a porta detrás de si. Continuando,
respirou muito fundo antes de continuar subindo até seu
quarto.

Lorde Brockehurst tirou seu cartão para que a


entregassem em uma das habitações do Pulteney Hotel
e se passeou impaciente acima e abaixo pelo vestíbulo.
Sabia que tinha sido questão de sorte, embora o
policial lhe tivesse informado dos detalhes no dia anterior
inchado de orgulho e dando-se importância, como se o
tivesse averiguado toda graças a suas esplêndidas
habilidades policiais.
A lista de convidados ao Willoughby Hall tinha
resultado decepcionante. Só conhecia vagamente a uma
ou duas pessoas. Sendo realistas, não teria tido
nenhuma possibilidade de estabelecer uma amizade o
bastante estreita com nenhum dos dois para fazer-se
convidar a casa. Além disso, todos exceto um casal, aos
que não conhecia de nada, partiram-se já de Londres.
Teria que fazer as coisas do modo em que não
queria as fazer. Teria que ir ao Dorsetshire em qualidade
de juiz de paz para prender a Isabella e levá-la a casa
para que a julgassem. Não queria forçar tanto as coisas.
Não queria que se reduziram suas opções.
Maldita seja, não queria ver esse pescoço
encantador rodeado por uma corda.
Mas tão somente um dia depois de lhe entregar a
lista e afirmar que Lorde Thomas Kent não se encontrava
em nenhum lugar de Grã-Bretanha, e depois de ter
cobrado, Snedburg havia tornado correndo, dando-se
importância como um pavão, para anunciar que sua
senhoria tinha atracado em terra inglesa aquela manhã
procedente de um navio da Companhia das Índias
Orientais.
—É obvio, senhor — havia dito—. Sei por
experiência que quando a nobreza desaparece de
nossas costas, freqüentemente é para empregar-se em
uma das companhias. Entenderá que resultou fácil fazer
as perguntas, mas custou tempo. O que poderia ter sido
melhor que descobrir não só que sua senhoria se partiu
a Índia, mas também que voltava outra vez? —E
Snedburg tinha tossido ufano.
Lorde Brockehurst sentia que tinha pagado ao
homem com maior generosidade do que devia. Viver na
cidade resultava condenadamente caro.
Um empregado do hotel fez uma reverência ante ele
e lhe informou que Lorde Thomas Kent o receberia em
sua suíte. Lorde Brockehurst se dirigiu à escada.
Lorde Thomas Kent era uns poucos anos mais jovem
que ele. Nunca tinham sido muito bons amigos, somente
se conheciam e mantinham uma relação cordial por ter
freqüentado os mesmos antros de jogo e botequins
muitos anos atrás.
Lorde Thomas estava em seu salão vestido com uma
larga bata de brocado quando um criado fez passar
Lorde Brockehurst, percebendo que se tornou mais
atraente ao passar a primeira juventude: estava
bronzeado e esbelto, tinha o cabelo escuro e era um
pouco mais alto que a média.
—Bradshaw! —exclamou, alargando a mão direita.
Os dentes muito brancos contrastavam com seu rosto
bronzeado pelo sol—. Quase não o reconheço pelo título
que põe em seu cartão. Seu pai faleceu, não é assim?
—Faz cinco anos — respondeu Lorde Brockehurst—.
Tem bom aspecto, Kent.
—Nunca me havia sentido melhor. Pensei que
ninguém saberia que havia tornado. Pensei que hoje
teria que me dedicar a percorrer todos os clubes e deixar
meu cartão em cada porta do Mayfair. Que surpresa
mais agradável.
—Inteirei-me por acaso. Leva muito tempo fora,
verdade, Kent?
—Pois mais de cinco anos — respondeu o outro—.
Do descalabro pelo ducado. Parti-me com o rabo entre
as pernas. Estou seguro de que se inteirou.
—Sim. —Lorde Brockehurst tossiu delicadamente—.
Um assunto desagradável, Kent. Tem meu apoio.
Lorde Thomas se encolheu de ombros.
—Depois de tudo, tampouco acredito que a vida
sedentária tivesse sido para mim. Nem a vida de casado.
Muito restritivas. São tão encantadas as damas como
estavam acostumados a, Bradshaw? E igual de
dispostas? Tenho que lhe dizer que ardo em desejos de
estar com uma beleza inglesa ou duas… ou vinte.
—E resultam tão caras como sempre — comentou
Lorde Brockehurst—, se não mais. Parte a casa?
—Ao Willoughby? —Lorde Thomas se riu em voz alta
—. Acredito que é quão pior poderia fazer em minha
vida, considerando algumas das coisas que se disseram
quando me parti. Suponho que não é nada agradável ter
em cima a alguém que levou seu título, e que, além
disso, esteve prometido a sua esposa. Embora tudo isso
valesse a pena só para ver a face que põe Ridgeway.
—As velhas feridas se curam logo — interveio Lorde
Brockehurst—, sobre tudo nas famílias. Provavelmente
estaria encantado de vê-lo.
—O retorno do pródigo e a festa de bem-vinda? Não
acredito. Tenho muita fome e ódio comer nos hotéis.
Segue White's onde estava?
—Eu adorarei convidá-lo a comer ali — comentou
Lorde Brockehurst.
—De verdade? —Lorde Thomas voltou a rir - Vai
bem com a propriedade Heron, verdade? Lembrança a
época em que nenhum dos dois tinha um só penico. Pois
adiante, vamos comer, e possivelmente esta noite
possamos ir em busca de vinho, mulheres e cartas,
embora possa passar sem as cartas. Permita que meu
criado lhe sirva uma taça enquanto me visto.
Uns minutos depois, Lorde Brockehurst deu um sorvo
a sua taça e ficou olhando pensativo a porta pela que
tinha desaparecido Lorde Thomas.

Dezesseis convidados chegaram para alojar-se em


Willoughby Hall, todos o mesmo dia. O duque de
Ridgeway permaneceu de pé junto a sua mulher na
entrada principal para recebê-los, e se passeou entre
eles enquanto tomavam o chá no salão um momento
depois.
Pensou que, podendo escolher, não seria
precisamente o grupo de pessoas com o que teria
optado por confraternizar, mas Sybil estava radiante e
feliz, e também devia ter direito a desfrutar de um pouco
de felicidade. Alegrava-se realmente de ver que
desfrutava. Desde que se tinham casado, parecia que
tinha sido incapaz de lhe proporcionar nenhum tipo de
prazer.
E cada vez estava mais cansado de compartilhar a
mesa com ela, com um em uma ponta e o outro na outra,
esforçando-se por conversar através de sua extensão
vazia.
—Aqui tem boa caça, Ridgeway? —perguntou Sir
Ambrose Marvell enquanto sorviam o chá.
—Meu guarda-florestal me comentou que a taxa de
cervos está aumentando bastante — respondeu.
—E a pesca? —perguntou o senhor Morley
Treadwell.
Já se via quem tinha convidado Sybil como seu cher
ami; tinha que haver alguém, como sempre ocorria em
tais ocasiões. Tinha ouvido dizer que era Sir Philip Shaw,
que logo que precisava ter casa própria já que se
passava o tempo deslocando-se entre as casas de seus
numerosos flertes e amantes. E o rumor atual era que
não fazia falta atribuir uma habitação de convidados ao
Shaw, já que estaria encantado de compartilhá-la com
uma das damas, normalmente sua anfitriã.
Ao parecer sua atitude indolente, quase efeminada,
sua elegância e seus olhos permanentemente
dormitados resultavam irresistíveis para as damas. E
Sybil já estava animada com ele; tinha uma mão fina e
branca apoiada em seu ombro. Onde diabos o tinha
conhecido? Mas é que às vezes ia visitar sem ele: nunca
o pedia, e ele nunca lamentava que não o pedisse. Em
sua última visita tinha passado duas semanas na casa
de sua irmã, aparentemente em companhia de outros
convidados seletos.
O duque suspirou para seus adentros. Esperava não
ter que passar outra vez pela ridícula farsa de jogar a ser
o marido glacial que defende seus direitos conjugais.
Resultava muito pesado, e bastante humilhante. E é
obvio servia para realçar a imagem de tirano sem senso
de humor que tinha Sybil dele. Pode que só fora isso.
Quase estava começando a acreditar-lhe. Perguntava-se
quando poderia escapulir-se sem resultar descortês. E
aonde poderia escapar. As aulas do piso de acima
deviam ter terminado por esse dia. Ao menos se
alegrava de que a senhorita Hamilton tivesse estado
praticando pela manhã cedo, já que tinha tido ocasião de
escutá-la. Tinha aberto a porta entre a biblioteca e a sala
de música e se sentou diante de seu escritório a escutar.
Mas tinha assegurado de que ela o visse. Não queria
que desse a impressão de que a estava espiando.
A garota tinha autêntico talento. A música que ele só
tinha podido tocar com correção cobrava vida, calidez e
fluidez nas mãos de Fleur. A hora que tinha passado
escutando o tinha aliviado muito mais que o passeio a
cavalo que tinha planejado.
Não tinha entrado na habitação, nem se tinha ficado
no marco da porta para observá-la. Teria que ter estado
cego para não precaver-se da profunda repugnância que
havia nos olhos da governanta cada vez que o olhava.
Mas não importava. Não procurava nenhuma classe de
relação com ela. Só esperava que fosse adequada para
Pamela. E gostava de sua música.
—Adam, querido — ouviu uma voz discreta, cuja
possuidora estava provida além de um perfume sedutor.
Era Lady Vitória Underwood, uma viúva que durante a
temporada do ano anterior tinha decidido que eram
suficientemente amigos para esquecer a incômoda
formalidade de utilizar os títulos, e que agora lhe sorria
—. Têm uma mansão esplêndida como poucas. Por que
não me havia convidado antes?
Estava-se inclinando ligeiramente para ele. Por
algum motivo sua cicatriz nunca lhe tinha resultado
repulsiva.
—Faz que seja o homem mais atraente que conheço
— havia dito no ano anterior em uma das múltiplas noites
em que não tinha conseguido seduzi-lo e levar-lhe à
cama.
Adam se perguntava freqüentemente por que não
tinha cedido. Não era bonita, mas sua sexualidade
resultava sedutora. Deitar-se com ela teria resultado uma
experiência mais sensual que a que tinha tido com o
Fleur Hamilton.
Mas oxalá não tivesse feito essa comparação.
Inconscientemente, dedicou-se a tentar separar em sua
mente à senhorita Hamilton, que queria educar e cuidar
de Pamela e que convertia ao Mozart e Beethoven em
experiências fascinantes para a alma, da prostituta fraca,
pálida e sem brilho que tinha tomado fazia um mês na
habitação troca de um botequim, levado por um
arrebatamento de luxúria.
—Pensava que não gostava de sair de Londres, Lady
Underwood — comentou, sorrindo.
—Vitória — corrigiu ela, olhando-o aos lábios—.
Acredito que aceitaria um convite às ilhas Hébridas, meu
querido Adam, se soubesse que foste estar ali.
—Isso não aconteceria. Parece-me muito frio para
mim.
—Que desculpa mais divina, aconchegou-se em uma
manta para aquecer. Com a companhia adequada, claro
que sim.
Adam riu e utilizou a desculpa de uma bandeja de
bolos que passava naquele momento para que os
Mayberry entrassem no grupo.
Podia suportar os flertes e o bate-papo quando
estava em Londres. Inclusive lhe divertiam um pouco,
embora preferisse as noites de conversação séria e
estimulante com seus amigos mais íntimos. Mas quando
estava ali sempre podia retirar-se à tranqüilidade de sua
casa quando já tinha tido suficiente. Ali se encontrava em
seu próprio lar.
Esse era o eterno problema nas condenadas festas
de Sybil.
Felizmente os convidados não ficaram muito
momento. Quase todos tinham viajado desde muito
longe e se mostraram encantados de poder descansar e
refrescar-se na intimidade de suas próprias habitações.
Também a duquesa se retirou a seus próprios aposentos
até a hora de jantar.
O duque saiu ao terraço. Perguntava-se se Pamela
estaria visitando seu cachorrinho e ouviu gargalhadas no
mesmo momento em que o pensava. Voltou-se e
caminhou em direção aos estábulos, perguntando-se
ansioso se Fleur Hamilton também estaria ali ou se
Pamela teria se trazido um lacaio como tinha feito no dia
anterior. Não se imaginava que a babá pudesse
considerar que uma visita aos estábulos e ao
cachorrinho fora algo digno dela.
Pamela estava sentada no alto da cerca ao redor do
cercado junto aos estábulos, com as pernas pendurando,
enquanto Fleur, no interior do cercado, fazia cócegas a
cachorrinha com o pé. Estava-se rindo, e seu rosto
refletia uma beleza tão despreocupada que Sua
Excelência ficou atrás para que não o vissem.
Ned Discroll, uma moço, estava-se rindo também.
Tinha um pé apoiado na travessa inferior da cerca, e os
braços enroscados nela. Tinha a boina encasquetada
sobre os olhos.
—Acredito que ao cachorrinho gosta —comentou
Fleur.
—Mas a quem não, senhorita? —espetou Ned com
descaramento um momento antes de detectar ao seu
senhor, de pé e em silêncio, detrás dele. Endireitou-se a
toda pressa, puxou a aba de sua boina, e escapuliu em
direção aos estábulos.
Fleur não levantou a vista e continuou fazendo
cócegas ao cão com os pés. Mas o sorriso em seu rosto
se desvaneceu. Sua Excelência suspirou para si
sabendo de que havia percebido a sua presença.
—Papai! —Pamela o olhou zangada, esquecendo-se
de sua risada fazia uns instantes—. Mamãe prometeu
que me avisaria para o chá. A tata me vestiu, mas
mamãe não me chamou, e a senhorita Hamilton se
empenhou em que ficássemos aqui.
O duque olhou a Fleur, que observava como o
cachorrinho tentava comer erva.
—Não a mandaram a procurar — comentou a
governanta—. Expliquei-lhe que todos os convidados
deviam estar cansados e que Sua Excelência a duquesa
deve ter decidido esperar a outro dia. Trouxe-a aqui
esperando que se esquecesse de sua decepção.
—Mas o prometeu, papai — protestou a menina—. E
a senhorita Hamilton não me deixou ir. A tata me teria
deixado.
—Não acredito — a cortou seu pai—. E sem dúvida a
senhorita Hamilton tem razão. Mamãe deve ter decidido
que será melhor outro dia, Pamela. O recordarei.
—É horrível! —gritou a menina—. Os dois são
horríveis. Mamãe há dito que podia. O vou dizer a
mamãe.
Saltou do alto da cerca ao exterior do cercado,
arregaçou-se a saia e deu a volta à esquina do estábulo
a toda pressa até que desapareceu de sua vista.
—Vou alcançar ela — decidiu Fleur.
—Deixe-a partir — freou o duque—. Não lhe
acontecerá nada, e às vezes é melhor estar sozinho
quando a um dá uma petulância.
A porta do cercado estava fechada com cadeias.
Fleur devia ter entrado saltando a cerca. O duque viu
como se ruborizava ao olhar para a porta. Fleur se
levantou a saia com cuidado ao pôr o pé na travessa
inferior da cerca e passar a outra perna por cima. O
duque manteve as mãos detrás das costas. Sabia que
sua ajuda não seria bem-vinda.
Mas a saia lhe enganchou na madeira rugosa da
travessa debaixo e detrás dela, e ficou apanhada. Adam
se dirigiu para a garota, inclinou-se para soltar o tecido,
agarrou-a pela cintura, levantou-a e a deixou no chão.
Não recordava sua doce fragrância da primeira vez
que estiveram juntos. Mas então só devia ter água com a
que lavar o corpo e o cabelo. O sol formava um halo
brilhante de ouro brunido ao redor de seu cabelo. E sua
estreita cintura era feita de carne cálida e branda.
Fleur se estremeceu e se separou dele sem olhá-lo.
Emitiu um ruído gutural, similar ao que Adam recordava
que tinha feito quando a penetrou. Fleur levantou uma
mão trêmula para tapar a boca e a manteve ali, fechando
a seguir os olhos.
O duque não sabia o que dizer e estava paralisado.
Fleur abriu os olhos e apartou a mão. Abriu a boca
como se fora a falar, mordeu-se o lábio o inferior, e virou
a cabeça a um lado. Agachou-se a toda pressa para
recolher o cachorrinho, que tinha saído brincando de
correr pela parte inferior da cerca.
—Tenho que levá-la outra vez aos estábulos —
assinalou Fleur.
—Sim.
O duque ficou a um lado e a olhou enquanto se ia,
com a cabeça dourada inclinada para o cachorrinho.
Caminhava rapidamente e muito coibida. E Adam sentiu
um forte pesar.
Mas por quê? Tinha uma governanta, uma prostituta
convertida em governanta, que se estremecia e quase
vomitava quando a tocava. Havia uma convidada em sua
casa, a viúva de um baronet, que acessaria gratamente a
que a tocasse e inclusive ao ter em sua cama, uma
mulher que pensava que a cicatriz de seu rosto era
excitante e que possivelmente nem sequer se alteraria
se despisse e visse as outras cicatrizes.
Por que se deprimia? Possivelmente deveria respirar
a Lady Underwood. Possivelmente se converteria no
bálsamo que necessitava para sua auto-estima ferida.
Possivelmente deveria convertê-la em sua amante
enquanto se alojasse em sua casa, saciar-se com uma
mulher que o desejava.
Só que ao fazê-lo obteria exatamente o que tinha
querido evitar que fizesse Sybil: converter Willoughby em
um lugar de libertinagem, e deixar de merecer o privilégio
de ser o dono de todo aquilo.
O duque continuava de pé, apoiado contra a cerca,
quando Fleur saiu dos estábulos com os braços vazios.
Olhou em direção a ele, apartou a cabeça bruscamente,
e partiu a toda pressa em direção a casa.
Que bom.
Em que demônios estava pensando quando decidiu
enviá-la ali? É certo que naquele momento não tinha
previsto voltar tão logo, mas mesmo assim sabia que
mais tarde ou mais cedo voltaria para o Willoughby. Não
podia estar ausente mais que uns poucos meses.
Por que tinha feito que a mandassem ali? Havia
muitos outros lugares aos que poderia havê-la mandado.
Ou poderia lhe haver encontrado um emprego com um
de seus conhecidos. Em qualquer caso, não precisava
voltar a vê-la outra vez.
Por que lhe tinha ordenado ao Houghton que a
mandasse ali?
Claro que tampouco era muito tarde para mandá-la a
outra parte. Sybil estaria encantada, a babá estaria
pletórica, a Pamela tampouco importaria tanto, e a
própria Fleur se sentiria enormemente aliviada.
E ele?
Voltou-se para apartar-se da casa e dirigir-se para
um bosque e às ruínas artificiais de uma torre, que
gostava especialmente a seu avô. Já o pensaria em
outra ocasião. Só levava três dias em casa. Não era o
momento de tomar decisões precipitadas.
Preferia pensar que, com o tempo, Fleur resultaria
adequada para Pamela.
Além disso, ela necessitava o pianoforte na sala de
música. Não tinha nenhum outro instrumento que se
pudesse comparar com ele em nenhuma de suas outras
propriedades.
Aquela idéia o consolou. Tinha que recordar aos
jardineiros que teriam que recolher os ramos mortos das
árvores.

Capítulo 8

Além de um passeio pelo parque o dia depois de sua


chegada, os convidados não se exercitaram muito. Tudo
se estava preparando para o grande baile daquela noite.
Com toda probabilidade o evento se celebraria ao ar
livre. O tempo quente e seco se prolongou durante toda
a jornada.
Os criados estiveram muito ocupados desde primeira
hora da manhã para satisfazer as necessidades e os
desejos de dezesseis convidados recém chegados. Os
cozinheiros guisavam um grande banquete para eles
para aquela noite. Os jardineiros decoravam a zona que
rodeava o lago e outros serventes preparavam os
refrigérios.
Lady Pamela saltava desejosa de observar os
preparativos, e estava convencida de que sua mãe lhe
permitiria ver todas as damas com seus melhores
ornamentos noturnos. Fleur não estava tão convencida
disso. A duquesa não foi ver sua filha em todo o dia, e
parecia mais que provável que se esqueceria dela até o
dia seguinte.
Fleur decidiu que faria o que pudesse para lhe dar
uma alegria à menina. Depois de uma manhã de aulas
fáceis, que não exigiam muita concentração por parte de
sua aluna, levou-a fora, e se dirigiram ao lugar do que
tinham ido pintar o pavilhão uns dias atrás. De ali
poderiam observar os preparativos sem interpor-se no
caminho dos criados ocupados.
—Ah, as luminárias! —exclamou Lady Pamela um
pouco intimidado, enquanto olhava para as centenas de
luminárias que se estavam penduradas nas árvores que
rodeavam o lago e na ilha e nos principais caminhos que
saíam da casa—. Esta noite parece mágica, senhorita
Hamilton.
A orquestra tinha chegado e estava descansando e
refrescando-se em alguma parte da casa. Transportavam
seus instrumentos à ilha em barco. Em uma parcela de
grama plana ao oeste do lago, que estava mais perto da
casa, instalaram um grande chão de madeira para o
baile. Estavam colocando mesas com toalhas brancas no
lado norte, justo debaixo de onde se encontrava Fleur
com a Lady Pamela.
A senhora Laycock lhe tinha contado a Fleur que
toda a pequena nobreza das cercanias e da localidade
do Wollaston iria ao baile. E todos os criados teriam
permissão para assistir, sempre e quando não
estivessem de serviço.
No Heron House se celebraram alguns bailes. Fleur
sempre os tinha desfrutado. Ficar elegante, ver os
conhecidos também elegantes e uma sala de baile
decorada com flores e cheia de música resultava
maravilhosamente excitante. Dançar produzia uma
excitação incrível.
Mas estava bastante segura de que aquelas danças
não poderiam comparar-se em esplendor com o baile
daquela tarde.
Fleur só era uma criada, claro está. Não tinha um
bom vestido para o baile nem jóias que ficar. E era
improvável que alguém pedisse que dançasse com ela.
Mas claro que sim! A agitação dos últimos dias, somada
ao feito de descobrir quem era o duque de Ridgeway e
ao medo de que possivelmente, por alguma estranha
coincidência, algum dos convidados fosse alguém a
quem conhecesse quase lhe tinha feito esquecer-se
disso… quase se esqueceu do senhor Chamberlain e de
que esperava que dançasse com ele.
Esperava que não lhe tivesse esquecido. Ansiava-o
com todo seu coração. Esperava voltar a vê-lo outra vez.
E desejava que chegasse a noite como uma menina a
que concedem algo pouco habitual.
—Mamãe me deixará ver as damas, verdade? —
suspirou Lady Pamela a seu lado.
—Não sei, querida — respondeu Fleur, lhe apertando
a mão à menina e lamentado que sim que sabia que não
ia ser assim—. Vamos ver como está Pequenina hoje?
Deve sentir-se sozinha. Ainda não brincou com ela.
—Sim — respondeu Lady Pamela, apartando
reticente a vista dos preparativos do baile—. Teria que
haver o perguntado a papai quando veio esta manhã a
sentar-se conosco no quarto de estudo. Igual haveria dito
que sim.
—Verei o que posso fazer — comentou Fleur.
Os criados comeram cedo aquela noite. Fleur voltou
a subir antes que à menina chegasse a hora de deitar-se
e viu que ainda havia luz no quarto de brincar. Chamou e
entrou.
A expressão ansiosa da Lady Pamela se
desvaneceu.
—Ah, pensava que era mamãe…
—Mamãe está ocupada, querida — explicou a
senhorita Clement—. Deverá passar um momento longo
com você manhã. Sabe que sua mamãe a quer.
—Possivelmente — interveio Fleur, olhando à babá
—, se ficar uma capa abrigada, pode sair comigo agora
para ver como se acendem as luminárias. As damas e os
cavalheiros ainda estão jantando.
—Ahhh, posso? Posso, tata? —Lady Pamela olhou
suplicante à babá.
—Mantê-la-ei se separada dos convidados —
acrescentou Fleur.
—Provavelmente se esfriará — protestou a senhora
Clement—. E sem dúvida Sua Excelência a duquesa se
zangará se vê a sua filha fora do quarto de brincar
depois de jantar, senhorita Hamilton. Mas lembre-se que
Sua Excelência o duque há dito que agora manda você.
Faça o que lhe agrade.
O tom da babá era hostil, mas Fleur sorriu à senhora
Clement e a Lady Pamela, que tinha ido correndo a
procurar a capa. Quando saíram cinco minutos mais
tarde, Fleur pensou que em realidade não necessitava a
capa. O ar ainda era quente. E desgraçadamente só
acabava de começar a anoitecer, assim que as
luminárias não luziriam em todo seu esplendor embora já
estivessem acesas. Mas faria tudo o que estivesse em
sua mão.
Ficaram fora mais momento do que tinha previsto
para que Lady Pamela pudesse ver o lago e seus
arredores inundados na magia da escuridão e a luz das
luminárias. E a orquestra estava afinando os
instrumentos dentro do pavilhão, com as portas abertas
de modo que a música flutuava por cima da água.
Começaram a chegar pessoas que não tinham sido
convidadas ao banquete, e a menina contemplou
entusiasmada o esplendor dos vestidos das damas e as
jaquetas de ornamento dos cavalheiros, assim como as
jóias que reluziam nas múltiplas cores das luminárias.
E finalmente, quando já estavam voltando para a
casa, os convidados ao banquete se aproximavam do
terraço todos juntos formando um grupo. Fleur levou a
Lady Pamela à sombra de uma árvore.
—Olharemos, querida — assinalou—. Não diga
nada. Pode ser que mamãe se zangue se a vê na
escuridão.
Mas não tinha por que preocupar-se. A menina
parecia bastante satisfeita sendo uma espectadora
silenciosa. Observou maravilhada como sua mãe
chegava do braço de um cavalheiro, rindo e olhando ele
adorado. O duque ia mais atrás ao grupo, com outra
dama do braço.
—OH! —exclamou a menina—. Mamãe é a dama
mais bonita que existe. Não é assim, senhorita Hamilton?
É a dama mais bonita que há.
—Sim, assim é — deu a razão Fleur. E parecia que
não mentia.
A menina estava muito cansada para quando
voltaram para quarto de brincar e bastante disposta a
que a babá se ocupasse dela.
Fleur foi correndo a seu quarto para trocar-se e vestir
seu melhor vestido: um traje singelo, de musselina azul,
uma compra algo extravagante que tinha pagado com o
dinheiro que o senhor Houghton lhe tinha dado em
Londres. Agora lhe resultava muito ordinário em
comparação com os vestidos que tinha visto fora.
Mas não importava. Afinal de contas, só era uma
criada. E nada poderia fazer que diminuísse a sua
excitação aquela noite. Arrumou o cabelo
cuidadosamente, deixando o coque que se fazia na nuca
um pouco mais solto que de costume e se permitiu que
uns poucos cabelos lhe caíssem pelas orelhas e o
pescoço.
Enquanto baixava correndo as escadas e cruzava a
entrada para o exterior estava convencida de que devia
estar tão nervosa como uma moça em seu baile de posta
de comprimento. Havia luz, música e risadas
procedentes de lago. Claro que ela nunca tinha assistido
a uma posta de comprimento.

O duque de Ridgeway pensou que se tivessem


podido planejar o tempo de maneira tão meticulosa como
se planejaram os outros detalhes daquela noite, não
poderiam havê-lo feito muito melhor. Inclusive à medida
que avançava a noite havia algo quente no ar, embora o
frescor que corria de fundo era, é obvio, perfeito para os
que dançavam cada série. E a brisa bastava para fazer
que as luminárias balançassem nas árvores, para que as
sedas ondeassem com elegância e para refrescar as
faces acaloradas sem risco de danificar os elaborados
penteados das damas.
Sempre tinha desfrutado de do mais elaborado dos
entretenimentos pelo que Willoughby era famoso. E
aquela ocasião não era nenhuma exceção. Era certo
que, durante grande parte do dia, a conversação com
suas hóspedes lhe tinha resultado um tanto insossa, mas
agora, de noite, também tinham vindo seus vizinhos. E
sempre se preocupou por mostrar-se amigável com os
vizinhos. Inaugurou o baile com sua esposa, que devia
ser a dama mais encantada de todas as que tinham
assistido, e o pensou sem parcialidade alguma.
Evidentemente ela se deu conta de que um vestido de
seda e encaixe branco muito fino apanharia as cores das
luminárias e brilharia na brisa. Sybil sempre se vestia
para provocar o maior impacto possível.
Adam dançou com algumas de suas convidadas e
algumas das vizinhas e falou com diversos homens.
Quando pediu a Lady Underwood que dançasse com ele
permitiu que o convencesse para que, em vez de dançar,
levasse-a a outro lado da ilha em barco e se
passeassem pelo pavilhão e entre as árvores, como
estavam fazendo alguns dos outros hóspedes, resistindo
a suas insinuações muito diretas de que a beijasse entre
as árvores.
E observou como os criados dançavam e se serviam
e desfrutavam em geral. Preocupou-se em falar com
tantos criados como foi possível.
E se manteve afastado de Fleur Hamilton. Estava
encantadora. A simplicidade de seu vestido e seu cabelo
obtiveram que todas as demais damas parecessem
muito arrumadas. O cabelo brilhava como o ouro à luz
das luminárias.
E se sua esposa brilhava, então Fleur resplandeceu
quando dançou com o Houghton, com o vigário, com o
Ned Driscoll, com o Chesterton, com o Shaw, e com o
Chamberlain… duas vezes.
O duque decidiu manter-se afastado dela, porque se
algo tinha aprendido sobre a garota desde que tinha
voltado para o Willoughby era que lhe temia e lhe
repugnava. E seus sentimentos eram compreensíveis.
Só ele podia pô-la em evidencia pelo que tinha sido tão
somente em uma breve ocasião. E as lembranças que
guardava Fleur daquela ocasião e do papel que tinha
jogado ele deviam lhe resultar muito pouco agradáveis,
por não dizer mais.
Dirigiu-se às mesas para falar com o Duncan
Chamberlain durante uma pausa do baile. De meninos
nunca tinham sido amigos íntimos, já que Chamberlain
tinha quase dez anos mais que ele. Mas tinham se
tornado amigos nos últimos anos, sobre tudo desde que
o duque havia tornado da Bélgica.
—Todos nos temíamos que não voltasse a tempo
para as celebrações — comentou seu vizinho, alargando
a mão direita—. Isto não teria sido o mesmo sem ti,
Adam.
—Perdi-me alguma vez um de meus próprios bailes?
—perguntou o duque—. Como está, Duncan? Está a
senhorita Chamberlain por aqui? Não a vi.
—Ah, sim, e dançou todas as séries.
—Pensei que possivelmente a teria deixado em casa
com os meninos. Estão todos bem?
—Se destroçar um jornal de jogos, esgotar a uma
pobre babá e nos torturar os ouvidos a cada momento do
dia com gritos e chiados é um sinal de que estão bem,
então teria que dizer que desfrutam de uma saúde
excelente, Adam.
O duque sorriu.
—Lembrança que o ano passado, quando sua outra
irmã os levou um mês, estava como o famoso peixe, mas
fora da água.
O vizinho sorriu timidamente.
—Sim, bom. Suponho que nossos antepassados
também jogaram bastante de menos aos vikings quando
cessaram seus assaltos. Onde encontraste a
governanta?
O duque recordou por um instante a imagem de Fleur
de pé e em silencio nas sombras, fora do teatro Drury
Lane.
—Em Londres — explicou—. Houghton a contratou.
Esse homem vale seu peso em ouro. Estou contente
com ela. Acredito que é boa para Pamela.
—Sei — assentiu o senhor Chamberlain—. Trouxe
para sua filha de visita quando a duquesa estava doente,
e nem sequer se alterou quando lhe disse que os cães
deviam estar saltando em cima dos meninos. Claro que
então ainda não tinha visto os cães para saber que se
parecem mais aos cavalos jovens que aos seus
companheiros de raça.
—Levou a Pamela? Alegro-me.
—E eu também — sorriu o senhor Chamberlain—.
Pode mandá-la quando quiser, Adam. Não tem nem que
mandar a Lady Pamela de carabina a não ser que
queira.
—Ah, de maneira que esses temos?
—Emily diz que necessito uma nova esposa. Não
estou nada seguro de que tenha razão, e certamente não
estou seguro de que pudesse encontrar a alguma mulher
o bastante paciente nem o bastante louca para ficar
comigo e com meu trio incluído no pacote. Mas me estou
expondo isso. É uma idéia interessante.
—Se perdesse a uma boa governanta não me
tomaria bem —comentou Sua Excelência.
—Ah, mas pelo bem da amizade se que faria o
sacrifício —comentou seu amigo—. Perdoe-me. A
orquestra voltou para a carga, e tenho que voltar a pedir
que dancemos.
—Pela terceira vez, Duncan? —O duque levantou as
sobrancelhas.
—Está-as contando, não? —perguntou seu vizinho
—. Isto não é um baile de Londres, Adam. Acredito que a
reputação da senhorita Hamilton poderá sobreviver a
dançar três vezes com o mesmo companheiro. E agora
vamos dançar uma valsa.
O duque ficou onde estava e se serviu um pouco de
comida. Não se via nenhuma dama sem casal de baile,
assim decidiu tomar um descanso.
Fleur Hamilton e Duncan Chamberlain. Duncan era
bastante atraente: seguia sendo esbelto, e seu cabelo
escuro só estava encanecendo nas têmporas. Formavam
um casal atraente. O duque se perguntava o que
pensava a garota de seu casal, mas Fleur tinha aceitado
um terceiro baile com ele. E estava sorrindo com um
brilho que resultava muito mais genuíno que o de Sybil.
Perguntava-se como se tomaria uma proposta de
matrimônio do Duncan. Contar-lhe-ia toda a verdade? Ou
encontraria outro modo de explicar que tinha perdido a
virgindade?
O duque se voltou. Lamentava mais do que era
capaz de expressar não haver-se informado bem antes
de fazer entendimentos com ela aquela noite. Teria que
haver-se precavido por seu aspecto e pelo modo discreto
no que o tinha abordado — ou precisamente por como
não o tinha feito— de que não era uma prostituta
experimentada. Teria que haver-se dado conta do que
ocorria por como tinha permanecido de pé na habitação,
sem mover-se até que lhe ordenou o que fazer, e pelo
modo discreto e delicado que tirou logo a roupa, sem
tentar em nenhum momento excitá-lo enquanto o fazia.
Poderia havê-la salvado antes que sua reputação e
seu futuro ficassem feitos migalhas.
Ficou a olhá-los enquanto dançavam —a olhá-la a
ela, melhor dizendo—, maravilhando-se de que pudesse
ser a mesma mulher que a prostituta fraca e sem brilho
cujos serviços tinha solicitado e utilizado fazia pouco
mais de um mês.
Por Deus! Voltou-se outra vez, em busca de uma
bebida.

Fleur estava desfrutando enormemente. Havia algo


incrivelmente romântico em estar ao ar livre de noite, nas
luminárias de cores que se balançavam nas árvores e se
refletiam junto à água escura, nas pessoas vestidas de
maneira elegante, conversando e rindo alegremente, na
música que obrigava aos pés a sapatear e aos quadris a
menear-se.
Tinha decidido que desfrutaria de do baile, e o estava
fazendo. A vida tinha resultado um pesadelo tremendo
durante seis semanas, e a ameaça de que poderia voltar
a ser assim —ou inclusive pior— ainda planejava por
cima de sua cabeça e o seguiria fazendo para sempre.
Mas por agora tinha recebido um precioso presente de
paz: pode que não para sempre, pode que só durante
uma semana ou um dia, mas não queria pensar na
eternidade. Só queria pensar naquela noite.
Esperava dançar. A fim de contas, o senhor
Chamberlain o tinha pedido mais ou menos adiantado.
Mas não esperava dançar cada série de peças aquela
noite, e além com diversos casais. Inclusive alguns dos
convidados ao baile que não se hospedavam na casa
dançaram com ela e souberam que era a governanta.
O senhor Chamberlain dançou com ela quatro vezes
em total, e falou com ela cada vez que as figuras da
dança não os separavam. Tinha uma conversação
ligeira, entretida, apropriada para a ocasião. Levou a
mão aos lábios depois da quarta vez, e indicou sorrindo
e piscando os olhos que tinha que conter-se e não
dançar com ela de novo para não privar a outros
cavalheiros da dama mais encantada que existia, depois
do qual a conduziu a um lugar um pouco afastado da
zona de baile onde se encontrava o duque de Ridgeway
de pé falando com uma dama mais velha.
Fleur desejava que a tivesse levado a qualquer outro
lugar. A única sombra daquela noite, o único detalhe que
sem dúvida tinha ameaçado arruinando sua alegria era a
presença constante de Sua Excelência. Não o tinha
cuidadoso nenhuma só vez, mas mesmo assim tinha
descoberto que a cada momento sabia onde estava e
com quem dançava ou falava.
Parecia um tanto distinto dos outros cavalheiros,
vestido com um traje noturno de cor negra e linho branco
como a neve que brilhava a luz do farol. E é obvio sua
altura e sua cor de pele e de cabelo enfatizavam seu
mistério.
A Fleur pareceu que devia estar esplêndido, se só se
via o lado direito de sua face e não a cicatriz aterradora
do lado esquerdo. Embora não sabia por que lhe
aterrorizava uma ferida que tinham infringido na batalha,
quando lutava por seu país. Poderia que inclusive com a
cicatriz resultasse esplêndida a alguém que não o
tivesse visto aproximar-se nas sombras do teatro Drury
Lane, alto, moreno e ameaçador com sua capa noturna e
seu chapéu, para lhe perguntar se procurava trabalho
por uma noite.
Fleur tratou de não aferrar-se muito ao braço do
senhor Chamberlain, e de manter intacto seu sorriso.
—Senhora Kendall — interveio o senhor Chamberlain
na conversação do duque—, conhece a senhorita
Hamilton, a governanta de Adam? Ou suponho que
deveria dizer da Lady Pamela.
Fleur sorriu à senhora Kendall quando as
apresentaram.
—É uma noite esplêndida, Adam — comentou o
senhor Chamberlain—. Não recordo um baile em
Willoughby que fora melhor que este. Ah, uma valsa,
senhora? —Fez uma reverência e estendeu uma mão à
senhora Kendall.
Partiram antes que a mente de Fleur pudesse
manifestar sua consternação.
—Senhorita Hamilton? —Fleur viu que os olhos do
duque brilhavam em direção aos seus—. Gostaria de
dançar?
Ela o olhou fixamente, e ele estendeu a mão para
tomar a sua, aquela mão bonita e de dedos largos. E o
pesadelo voltou. Nem sequer aquela noite poderia
desfrutar.
Fleur observou como o duque retirava a mão.
—Melhor vamos dar um passeio — indicou o duque
em voz baixa, e ficou com as mãos juntas detrás das
costas. Dirigiu-se para o caminho que circundava o lago,
e esperou a que ela acomodasse seu passo ao dele—.
Está desfrutando da noite? —perguntou. Seguia a borda
sul, menos freqüentada e mais boscosa que a outra,
embora houvesse uma fileira de luminárias ao longo do
caminho.
—Sim, obrigado, Sua Excelência.
—Willoughby sempre foi famoso por suas grandes
festas. E eu sempre estive orgulhoso dessa reputação.
Quando a um lhe concede o privilégio de herdar tudo
isto, parece apropriado compartilhá-lo um pouco com
outros, verdade?
Ninguém mais seguia esse caminho em particular.
Os caminhos mais largos e as zonas de grama mais
abertas do norte e o oeste estavam repletos de
convidados. Fleur sentia muito mais medo de que havia
sentido quando caminhou junto a ele à saída do teatro
Drury Lane. Naquele momento não havia sentido nada
de medo, só resignação ante o que tinha que ser.
—Dança bem — comentou o duque—. A observei
várias vezes. Praticou?
—Um pouco, Sua Excelência.
—Mas alguma vez esteve em Londres para a
temporada, verdade? Nunca a vi por ali.
Fleur pensou que só em uma ocasião, quando
obviamente não formava parte da agitação da vida social
da temporada.
—Não, Sua Excelência.
Era consciente de que a olhava enquanto
caminhavam, e tinha que concentrar todos os esforços
de sua vontade em pôr um pé antes que o outro. Se via
obrigada a gritar, ouviria alguém? Os sons alegres
procedentes da zona de baile e as mesas com refrigérios
seguiam ouvindo-se forte ao outro lado da água.
—Onde aprendeu a dançar?
—Na escola. Tínhamos um professor de baile
francês. As garotas estavam acostumadas rir dele
porque gostava de agitar os braços, sempre com um
lenço em uma mão. E movia os pés com maior
delicadeza que qualquer de nós. —Sorriu ao recordá-lo
—. Mas sabia dançar! Sempre me encantou dançar.
Sempre me encantou expressar música, seja com os
dedos no teclado ou com os pés em uma pista de baile…
—Ambas as coisas lhe dão bem.
—Às vezes… — Fleur olhava em direção à parte
traseira do pavilhão e para os reflexos brilhantes de
centenas de luminárias—. Às vezes penso que sem
música, a vida não teria nenhum encanto nem beleza.
A música de valsa procedente do pavilhão formava
parte da noite, a beleza e a esperança. Por um momento
tinha esquecido seu medo e quem era seu
acompanhante.
—Dancemos aqui — assinalou ele, e Fleur voltou de
repente para a realidade ao girar para ficar frente a ele.
O duque tinha deixado de caminhar. Tinha a mão
aberta em direção à sua. Seu rosto estava submerso na
escuridão, e a fileira de luminárias ficava detrás dele.
O braço direito de Fleur parecia pesar como o
chumbo quando o levantou e colocou sua mão na dele. A
governanta tragou saliva ao observar e sentir os dedos
do duque fechando-se em torno de sua mão e sentiu que
o coração lhe pulsava com uma força terrível contra as
costelas e os tímpanos. O duque colocou a outra mão
detrás da cintura dela, firme e cálida. Fleur levantou a
mão esquerda à altura do ombro dele, que tal e como
recordava era largo e musculoso.
A garota fechou os olhos enquanto dançavam,
primeiro lentamente, e logo começou a sentir o ritmo da
música e se entregou a ele. O homem com o que
dançava levava bem. Ia ao ritmo da música e lhe fez
inundar-se em seu fluxo e dar voltas, lhe agarrando com
tanta firmeza a cintura que em um determinado momento
seus mamilos roçaram contra a jaqueta dele. Até que
não terminou não recordou com quem tinha dançado.
Aquele homem se converteu em parte da música com
ela. Mas tinham caminhado vários minutos antes de
dançar, e a orquestra estava terminando sua
interpretação: finalmente terminou, embora muito cedo.
—Tem a música no mais profundo de sua alma, Fleur
Hamilton — sussurrou uma voz tranqüila e profunda.
E a garota voltou a ser consciente de que lhe
agarrava a mão e a sujeitava pelas costas. Voltou a ser
consciente do ombro largo que se encontrava sob sua
outra mão e de seu calidez e seu perfume. Abriu os
olhos e deu um passo para trás, soltando os braços aos
lados.
—É mais rápido voltar pelo mesmo caminho que
percorrer todo o lago — comentou ele—. Voltamos? Tem
fome?
—Não. Obrigado, Sua Excelência.
—Tenho entendido que levou a Pamela a visitar os
Chamberlain. Foi muito amável por sua parte. Vê muito
pouco a outros meninos.
—Acredito que desfrutou da saída, Sua Excelência.
—Com certeza que sim. Dançou com o Chamberlain
várias vezes esta noite. Acredito que gosta.
Fleur se voltou fria como o gelo. Mas não fazia falta
que o advertisse. Era bastante capaz de dar-se conta por
si mesmo.
—Mostrou-se amável, como vários dos outros
cavalheiros, Sua Excelência — comentou Fleur.
—Amável… sim. Vejo que a senhorita Chamberlain
está junto ao ponche. Gostaria de ir com ela?
—Sim, de acordo. Obrigado.
Um minuto depois, quando chegou junto ao Emily
Chamberlain e o duque se afastou, viu-se obrigada a
sorrir ao lacaio que estava atrás do ponche e lhe
assegurar que não tinha sede, embora em realidade
estivesse sedenta. Temia que as mãos lhe tremessem
muito para agarrar o copo.
—Não lhe parece uma noite maravilhosa, senhorita
Hamilton? —perguntou seu acompanhante—. Estou tão
contente de que o tempo tenha agüentado para a
ocasião.
Capítulo 9

Desde que tinha voltado para casa, o duque de


Ridgeway se acostumou a passar parte das manhãs no
quarto de estudo, observando em silêncio as aulas que
se repartiam. Freqüentemente, depois se levava a
Pamela aos estábulos a jogar com seu cachorrinho antes
de comer. Fleur se tinha obrigado a si mesmo a aceitar a
situação.
Não houve aulas a manhã depois do baile, já que
Lady Pamela se deitou tarde. Pela tarde, Fleur
acompanhou à menina pelo corredor superior antes de
entrar no quarto de estudo, dedicando-se a lhe mostrar
alguns quadros e a lhe assinalar alguns detalhes
importantes. Mas o que em conjunto esperava era que
Lady Pamela assimilasse a beleza e a perfeição das
pinturas sem ver-se afligida por muitos detalhes técnicos,
e queria esforçar-se mais com as suas próprias. Tinha
olho para a forma e a cor, embora sua impaciência
natural o fazia precipitar-se muito quando pintava.
O duque apareceu no alto da escada e se dirigiu para
elas quando terminaram. Fleur suspirou para seus
adentros. Tinha albergado a esperança de evitá-lo
durante todo o dia, já que sabia que Sua excelência a
duquesa e a maioria de seus convidados tinham saído a
passear pelo parque. Não suportava recordar o encontro
da noite anterior com ele, o terror que sentiu ao caminhar
a seu lado pelo caminho deserto, as náuseas que tinha
experiente quando se viu obrigada a tocá-lo e lhe
permitiu que a tocasse, a estranha e inesperada magia
ao dançar com ele no caminho, com os olhos totalmente
fechados, tratando de não pensar que estava dançando
com ele.
Embora o tivesse tentado durante toda a noite, não
tinha podido evitar recordar esse baile de entre todos os
momentos mágicos daquela noite, até que ficou
adormecida e voltou a vê-lo inclinando-se sobre ela, lhe
fazendo dano e lhe dizendo que o fazia porque o
desfrutava.
Lady Pamela sorriu, agarrou a seu pai da mão, e
levantou o rosto para que a beijasse.
—A semana que vem é o aniversário do Timothy
Chamberlain, papai — explicou—. Convidaram-me com
a senhorita Hamilton. Chegou uma carta esta manhã.
Mamãe me deixará ir? Virá você também?
—Que prazer tão singular — comentou o duque,
enquanto Fleur se voltava e entrava no quarto de estudo
—. Não estou seguro de se poderei ir, Pamela, já que
temos convidados. Verei o que posso fazer.
Permaneceu sentado em silencio durante as aulas da
tarde até que Fleur deixou sair a Lady Pamela cedo.
Então o duque ficou em pé.
—Vai com a babá ao quarto de brincar? —perguntou
a sua filha.
— Vai lavar o meu cabelo —explicou a menina,
pondo má cara—. Preferiria ir ver a Pequenina contigo,
papai.
—Já fomos antes de comer. Se a babá disser que
tem que lavar o cabelo, seguro que é assim. Vamos.
E Pamela ficou no caminho arrastando os pés.
Fleur se entreteve guardando livros e ordenando-os
na estante. Pensava que o duque ia-se com sua filha,
como estava acostumado a fazer.
—No piso de acima há poucas pinturas e tratam
poucos temas — comentou—. Deveria mostrar a Pamela
as pinturas de abaixo se parecer que está interessada.
Fleur não disse nada.
—Viu a galeria alargada? —perguntou ele.
—Sim, com a senhora Laycock, Sua Excelência.
—Ah, com a senhora Laycock. Ela é primeira em
reconhecer que não sabe muito sobre as obras de arte
do Willoughby. Seu talento se concentra em assuntos
mais práticos. Os retratos da galeria lhe serviriam de
material para uma série completa de aulas de história. E
uma menina nunca é muito pequena para aprender
sobre sua família. Tem um momento?
Fleur se limitou a dá-la volta. Já não podia seguir
fingindo que a estante estava desordenada.
—Vamos ver a agora — propôs o duque—.
Apresentarei a meus antepassados.
A governanta caminhou em silêncio junto ao duque
pelo corredor, escada abaixo e através da entrada
principal. Passaram por diante dos lacaios imóveis —
exceto um que deu um salto para diante quando o duque
o saudou com a cabeça—, e através das portas até uma
asa alargada onde se encontrava a galeria, banhada
pela luz do entardecer.
—Eu adoro esta habitação — exclamou o duque,
detendo-se justo depois de atravessar a soleira da porta
—. Acredito que eu adoraria embora não houvesse
nenhuma só pintura nela.
Fleur seguiu o olhar do duque até os círculos de
folhas e frutas esculpidas de maneira sofisticada no teto.
—Resulta uma habitação muito útil quando chove
sem cessar — continuou—. Ao menos se pode fazer um
pouco de exercício passeando-se por aqui. Meu irmão e
eu passamos horas aqui, de meninos. Parece-me que
ainda há cordas, peões e jogos de palitos e damas nos
armários inferiores. Minha esposa e a babá sempre
preferiram que Pamela estivesse no piso de acima. Pode
que desfrute se a trouxer aqui de vez em quando.
Dirigiram-se até o outro extremo da galeria, e o
duque passou a hora seguinte descrevendo as pinturas,
nomeando aos pintores, e explicando um pouco a
história de cada antepassado pintado. Falava com
conhecimento, orgulho e certo senso de humor.
—Há algo especial em saber que alguém descende
de uma linhagem semelhante. Produz certa sensação de
calidez, de segurança possivelmente. Há algo especial
em poder-se chamar o oitavo duque em vez do primeiro.
Meu nariz já existia com o quarto duque, vê-o? Assim
não lhe posso jogar a culpa a minha mãe.
Mas o quarto duque levava uma peruca larga e
frisada.
Sua Excelência olhava a governanta. Fleur sentia
seus olhos fixos nela e tinha que esforçar-se por não
ficar tensa respirando de maneira lenta e regular.
—E sua família? —perguntou o duque—. É de
linhagem?
Estavam seus pais. E seus avós, aos que nunca
tinha conhecido. Havia uns poucos retratos no Heron
House, que ninguém parecia ser capaz de identificar com
segurança. Criou-se se sentindo desarraigada, com
ânsias de saber. Pensava que se mamãe e papai
tivessem sabido o logo que foram abandoná-la seguro
que lhe teriam ensinado desde pequena, teriam contado
algo sobre si mesmos, sobre sua infância, sobre seus
próprios pais e avós. Ou possivelmente o tinham feito,
mas era muito pequena ou emprestava muita pouca
atenção, ignorando que chegaria o momento no que
arderia em desejos de saber tais coisas.
—De onde vem? —perguntou ele em voz baixa—.
Quem foi seu pai? Quem é você?
—Fleur Hamilton — respondeu, desejando que se
concentrassem no seguinte retrato. Mas Hamilton era o
sobrenome de sua avó, verdade? E como sabia? Alguém
devia haver-lhe dito—. A governanta de sua filha, Sua
Excelência.
E uma vez, sua puta, é obvio.
—Teve uma infância infeliz? —insistiu o duque, sem
deixar de olhá-la—. Foi cruel seu pai com você?
—Não! —os olhos de Fleur cintilaram um instante em
direção aos do duque—. Fui muito feliz até que
morreram quando eu tinha oito anos.
—Seu pai e sua mãe de uma vez?
—Sim. —E se mordeu a língua. Nunca lhe tinha dado
bem mentir. Supunha-se que seu pai tinha morrido
endividado fazia pouco.
Finalmente se deslocaram e o duque reatou sua
descrição dos retratos. Fleur apenas se fixou no do
próprio duque ao final da fila quando tinha estado com a
senhora Laycock. Pediu que a ama de chaves estivesse
falando de outra coisa nesse momento.
O teria reconhecido então, antes que voltasse, se o
tivesse cuidadoso atentamente? Poderia ter tido uma
advertência prévia? Olhou-o atentamente nesse
momento. Era um homem jovem e esbelto, muito jovem,
vestido com roupa de montar, com uma vara em uma
mão e um spaniel ao lado. Um homem jovem, bonito e
despreocupado com a cabeça erguida e o rosto intacto.
Não, não o teria reconhecido.
Por algum motivo que não podia explicar-se a si
mesmo, entraram vontade de chorar.
—Foram meus dias anteriores ao Waterloo —
explicou o duque—. Quando pensava que o mundo era
uma ostra com uma pérola de valor incalculável em seu
interior. Suponho que todos nós pensamos isso quando
somos muito jovens. Você também?
—Não — respondeu. Embora tivesse tido ao Daniel e
seu amor por ele e a perspectiva de um futuro
interminável no que seria desejada, no que se sentiria
necessitada—. Ah, pode que uma vez, faz muito tempo.
Acaso não tinha sido só uns meses atrás, e não fazia
uma vida?
—Ontem tresnoitou e teve uma tarde ocupada —
interveio ele de repente—. Quererá voltar para seu
quarto para descansar um pouco.
O duque abriu a porta e a deixou passar à entrada
principal antes que ele. Mas chegaram ao momento justo
no que se abriam as portas da entrada para deixar
passar a uma grande quantidade de convidados que
voltavam de seu passeio.
Fleur teria entrado outra vez na galeria, mas Sua
Excelência estava na soleira da porta justo detrás dela.
—Ah, Ridgeway — exclamou Sir Philip Shaw—, e a
deliciosa senhorita Hamilton.
—Ridgeway, canalha — espetou um cavalheiro jovial
e com o rosto corado—. Enquanto outros nos assávamos
ao sol você estava te divertindo com a governanta
dentro, onde se está fresco.
—Às vezes — interveio Sir Hector Chesterton—,
quase desejaria ter filhas próprias.
—Posso apresentar à senhorita Hamilton aos que
não a conheceram ontem à noite? —perguntou Sua
Excelência, com uma mão nas costas de Fleur—. A
senhorita Hamilton é a governanta de Pamela.
—Pode retirar-se, senhorita Hamilton. Sirva o chá no
salão imediatamente, Jarvis — ouviu que dizia a voz
suave e doce da duquesa.
Fleur se voltou e partiu sem mais preâmbulos,
subindo as escadas e atravessando o corredor até seu
quarto quase correndo. Que situação mais embaraçosa!
Ficou de pé junto à janela aberta, desfrutando da
brisa, resistindo a virar-se em que pese a estar cansada.
O sonho só lhe devolveria os pesadelos.
Tinha sido um homem jovem, bonito e
despreocupado. Acreditava que o mundo era sua ostra, e
a vida uma pérola de valor incalculável. Nos dias
anteriores ao Waterloo, que era como os tinha chamado.
Mas tinha falado com tristeza, como se aqueles sonhos
se revelaram vazios, sem valor algum. Fleur se
perguntou por que o duque de Ridgeway não estava
satisfeito com a vida. Tinha-o tudo.
De repente, Fleur se precaveu de que ainda sentia
desejos de chorar. O peito e a garganta lhe doíam de um
modo indescritível que o fazia sentir-se terrivelmente
triste.

—Maldita seja! —exclamou o duque—. Não vou a um


banquete real, Sydney.
—Terminarei em um abrir e fechar de olhos se deixar
de mover a mandíbula —tranqüilizou seu ajudante de
quarto, dando os últimos toques ao lenço de Sua
Excelência—. A fim de contas tem convidados para
jantar, senhor.
—És insolente! —protestou Sua Excelência—. Já
terminaste?
—Sim, senhor, graças a Deus — comentou Sidney
—. Separar-me-ei de seu mal gênio assim que tenha
recolhido tudo isto.
—Não teria que estar perto dele se aquele projétil
tivesse ricocheteado sete centímetros mais perto de ti no
Waterloo — espetou o duque.
—Pois não, não teria — concedeu o ajudante de
quarto, apartando-se para recolher a roupa e as escovas
dispersadas—. Mas você tampouco teria que vestir-se
para seus convidados se o projétil tivesse ricocheteado
um centímetro mais perto de você.
Sabiamente, Sidney ignorou a réplica de seu senhor.
Tornou-se imune a blasfêmias e obscenidades muito
piores durante os anos que tinha passado no exército
britânico.
Sua Excelência olhava irritado seu reflexo e o lenço
habilmente atado que ia mostrar aos convidados de sua
esposa para que o admirassem. Odiava ser um dandy,
em qualquer momento e lugar. Mas ainda mais em sua
própria casa! E durante duas noites seguidas. Com o
baile da noite anterior já tinha acumulado etiqueta
suficiente para um mês.
Tinha desatendido aos convidados durante o dia.
Muitos deles não se levantaram antes de meio-dia, e se
tinha desculpado dizendo que uns assuntos o manteriam
ocupado em casa durante a tarde em vez de
acompanhá-los em seu passeio. Maldita seja, tinha
direito a ter um pouco de intimidade.
Mas eram seus convidados.
E também lhe devia algo a Pamela. Era uma menina
e tinha direito a desfrutar de seu tempo e de sua
companhia. Tinha-lhe dado ambas as coisas enquanto
Sybil estava preocupada com entreter aos convidados e
passar-lhe bem. Ao menos, isso era o que se havia dito a
si mesmo antes.
Teria que passar mais tempo afastado dela, ou do
contrário teria que tirá-la mais: já era hora de que
aprendesse a montar, embora sempre se mostrasse
reticente a fazê-lo.
O que realmente tinha que fazer era manter-se
afastado do quarto de estudo. Se era totalmente sincero
consigo mesmo, não era Pamela, nem como motivação
única nem como motivação principal, o que o atraía até
ali ou à biblioteca cada manhã ao amanhecer, a não ser
que chegasse muito tarde e a perdesse.
Sidney só lhe tinha feito um comentário aquela
manhã, quando o duque se levantou da cama bocejando
detrás ter tresnoitado. Havia-lhe dito que devia estar mal
da cabeça para levantar-se tão cedo. Poderia que Sidney
tivesse razão.
E o duque despertou de repente durante a noite e se
precaveu de que sonhava com que dançava em um
caminho deserto com uma mulher com os olhos
fechados e cujo cabelo dourado como o fogo estava
solto e estendido como uma cortina de seda sobre seu
braço.
Não funcionaria. Simplesmente não funcionaria. Teria
que ter feito que Houghton a mandasse a outro lugar.
Tinha sido uma loucura ordenar que a mandassem ao
Willoughby.
A porta do vestidor se abriu de repente, sem prévio
aviso, e apareceu a duquesa sujeitando ainda o pomo.
Estava preciosa com um vestido de encaixe de cor rosa
e parecia grandemente mais jovem dos vinte e seis anos
que tinha.
—Ah, segue ocupado? Pode partir já Sidney? —
comentou com sua doçura habitual.
O ajudante de quarto olhou a seu senhor levantando
as sobrancelhas, e o duque assentiu.
—Por favor, Sidney — pediu o duque, ficando em pé
—. O que posso fazer por ti, Sybil?
Ela esperou a que se fechasse a porta.
—Nunca me tinham humilhado tanto na vida! —
começou ela, olhando-o com os olhos muito abertos e
afligidos—. Adam, como pode me fazer isto, e diante de
nossos convidados, além disso?
Ele a olhou fixamente.
—Imagino que te refere ao incidente com a senhorita
Hamilton.
—Por que a trouxe aqui? —perguntou, juntando suas
mãos esbeltas e brancas no peito—. Foi me ferir até que
não possa mais? Nunca protestei por suas largas
ausências em Londres, Adam. E sempre soube por que
tem que ir ali. Agüentei a humilhação sem recriminações.
Mas agora tenho que agüentar o ter a uma de suas
concubinas nesta casa? E em estreito contato com
minha filha? Pede-me muito. Não posso suportá-lo.
—É uma pena que não tenha outro público que não
eu seja — comentou ele, sem deixar de olhá-la—. Suas
palavras são muito comovedoras, Sybil. Quase parece
que te importe. Vínhamos da galeria alargada em direção
à entrada principal. Não te parece estranho que
escolhêssemos um lugar à vista de todos para uma
entrevista clandestina?
— Você adora usar o sarcasmo, e pisotear meus
sentimentos. Suponho que também você adora mentir.
Nega ter uma aventura com a senhorita Hamilton?
—Sim. Mas já decidiste que sou um mentiroso, Sybil,
assim que sua pergunta não tem muito sentido, não te
parece? Tanto te surpreenderia se me buscasse uma
amante?
—É o que aprendi a esperar e a aceitar de ti. Mas
embora seu amor por mim esteja morto, Adam, pensava
que ficaria um pouco de respeito pelo fato de que sou
sua esposa.
—Minha esposa… —Adam riu em voz baixa e deu
dois passos para ela—. Não necessitaria uma amante se
tivesse uma esposa, Sybil. Possivelmente você gostaria
de proteger seus interesses de maneira mais ativa.
Pôs uma mão sob o queixo de Sybil e a beijou nos
lábios. Mas ela virou a cabeça bruscamente a um lado.
—Não, não o faça — suplicou.
—Já me parecia que essa idéia não te ia resultar
muito atrativa — comentou o duque—. Não se preocupe,
Sybil. Nunca te forcei e é pouco provável que comece a
fazê-lo agora.
—Não me encontro bem. Ainda não me recuperei de
tudo desse resfriado.
—Sim, já vejo. E perdeste peso, não é assim? Tinha
algum outro motivo para me visitar?
—Não — respondeu ela. Sua voz suave e doce
tremia—. Mas sei que está mentindo, Adam. Sei que
estiveste com a governanta de Pamela. Por muito que o
negue, sei que é verdade.
De maneira repentina e não desejada, ao Adam veio
à mente uma imagem de sangue, do sangue nas coxas
de Fleur e no lençol em que se deitou.
—Parece que estamos preparados para ir ao salão e
nos fazer os simpáticos com nossos convidados —
comentou ele olhando fixamente a sua esposa—. Vamos
juntos? —E lhe estendeu um braço para que ela pusesse
em cima a mão.
Sybil colocou uma mão em sua manga sem agarrá-lo
por braço, e ficou a caminhar a seu lado em silêncio. Era
uma mulher pequena, frágil e bonita que parecia tão
inocente como uma moça.
Sua Excelência pensou que às vezes resultava difícil
aceitar o fato de que aquele era seu presente e seu
futuro, o matrimônio com o que tinha sonhado de jovem.
Só que todos os sonhos se extinguiram e que agora já
não poderia haver outros que ocupassem seu lugar…
pode que só houvesse sonhos inesperados pelas noites.
Adam voltou a pensar no Fleur, na primeira vez que a
viu, de pé e em silêncio, nas sombras que se formavam
à saída do teatro Drury Lane, e na maneira inesperada
em que a tinha necessitado. A necessidade de passar
uma noite coberto nos braços e o corpo de uma mulher
que o aceitasse sem questionar nada. A necessidade de
dormir com a cabeça recostada no peito de uma mulher.
A necessidade de ter um pouco de paz. A necessidade
de aliviar sua solidão.
E pensou outra vez no sangue e na mão dela, que
lhe tremia tanto depois de que a violou que teve que
sujeitá-la enquanto lhe punha o pano úmido nela. E na
fome que sentia e na disciplina que a fez conter-se e não
engolir a comida que tinha diante. E na humilhação que
havia sentido a garota quando lhe tinha posto as moedas
na mão, o pagamento pelos serviços emprestados.
Deteve-se um instante ao chegar às portas do salão
enquanto um lacaio as abria, e entrou com sua esposa
do braço. Sorriu e se fixou em como Sybil olhava
radiante aos hóspedes que já se reuniram ali.

À manhã seguinte, Fleur praticava na sala de música


desfrutando de uma intimidade total. A porta que havia
entre essa sala e a biblioteca permanecia fechada.
E se sentiu muito mais coibida que nenhuma outra
manhã. Acaso estava ele ali? Espreitava detrás da porta
fechada, escutando? Estava a ponto de abrir a de um
golpe, em qualquer momento, para criticar qualquer
engano que tivesse cometido tocando ou para lhe dizer
que já não podia seguir utilizando aquela sala? Ou acaso
não se encontrava ali? Estava realmente tão só como
parecia?
Não podia concentrar-se nas peças que estava
ensaiando. Não conseguia deixar-se levar pela música
que já conhecia e sabia tocar com os olhos fechados.
Tinha os dedos duros e pouco dispostos a colaborar.
Sorriu para si pensativa ao sair da sala cinco minutos
antes que a hora tocasse a seu fim. Acaso podia relaxar-
se mais sabendo que ele estava perto que quando
estava ausente, quando se encontrava a aquele homem
escuro e de feições duras que a aterrorizava mais que
ninguém que tivesse conhecido jamais, Matthew incluído,
e cuja proximidade física sempre provocava que lhe
entrassem vontades de voltar-se e sair correndo presa
do pânico?
Enquanto ensinava distintos tema a Lady Pamela,
passou-se a manhã pendente de ver se ouvia o som de
uns passos firmes aproximando-se da porta e do pomo
girando.
Mas o duque as deixou em paz. E parecia uma
manhã tranqüila: Lady Pamela estava tranqüila e dócil de
um modo pouco habitual nela até que de repente,
enquanto bordavam, agarrou as tesouras e cortou
primeiro o fio de seda com o que tinha estado costurando
e logo, a pedaços, o lenço de maneira deliberadamente
violenta.
Fleur a olhou assombrada. Sua própria agulha ficou
suspensa no ar. Estava lhe contando um conto.
—Disse que poderia baixar! —gritou Lady Pamela—.
O disse! E ele também, em outro momento. Disse que o
recordaria. Disse-o faz muito tempo. Nunca me deixarão
baixar. E não me importa. Não quero baixar.
Fleur deixou o bordado lentamente a um lado e ficou
em pé.
—E agora lhes dirá que fui malote — gritou a menina,
fazendo um corte mais com as tesouras—, e virão à
habitação e me arreganharão! Mamãe chorará porque fui
má. Mas não me importa. Não me importa!
Fleur agarrou as tesouras e o lenço quebrado de
suas mãozinhas e se agachou diante da menina.
—E tudo é culpa dela! —chiou Pamela—. Mamãe me
disse que podia baixar, e você não me deixou. A odeio, e
vou dizer a mamãe que a mande longe. O vou dizer a
papai.
Fleur agarrou à menina entre seus braços e a
abraçou forte. Mas Lady Pamela se desembaraçou dela
com o braço que ficava livre e esperneou com ambos os
pés. Lançou uns chiados muito retumbantes quando
Fleur a agarrou entre seus braços e se sentou com ela
junto à janela, balançando-a, embalando-a, lhe cantando
brandamente.
Abriu-se a porta e entrou a senhora Clement.
—O que lhe tem feito a pobre menina? —espetou a
Fleur, com o olhar aceso—. O que ocorre, senhorita?
Estendeu os braços para agarrar a Lady Pamela.
Mas então a menina gritou ainda mais alto e se aferrou a
Fleur, com a face escondida em seu peito. A senhora
Clement voltou a desaparecer.
Lady Pamela estava chorando em voz baixa quando
voltou a abrir a porta vários minutos mais tarde. O duque
de Ridgeway a fechou detrás de si sem fazer ruído e
ficou de pé olhando uns instantes. Fleur tinha uma face
apoiada contra a frente da menina. Não levantou a vista.
—O que está ocorrendo? —perguntou ele,
atravessando a habitação—. Pamela?
Mas ela continuou chorando em vez de descer dos
braços de Fleur.
—Senhorita Hamilton?
Fleur levantou a cabeça para olhá-lo.
—Promessas rotas — respondeu sem elevar a voz.
Ele permaneceu uns segundos mais de pé e a seguir se
desabou no assento da janela. Tornou-se parcialmente
para elas, e um de seus joelhos roçava contra a de Fleur.
O duque passou um dedo pelo braço nu de sua filha que
rodeava o pescoço da governanta.
E Fleur o olhou e viu que lhe devolvia um olhar
sombrio. A cicatriz em seu rosto esgotado resultava
visível de maneira descarnada devido à luz que entrava
pela janela. Recordando seu retrato, Fleur pensou que
no passado tinha sido um homem muito atraente, face ao
negro de seu cabelo e seus olhos e ao seu nariz
proeminente, ou possivelmente precisamente devido a
esses traços. Mas seguia sendo atraente. De algum
modo, a cicatriz ressaltava em vez de desmerecer a
força de suas feições.
Se não o tivesse conhecido em umas circunstâncias
tão espantosas, se pudesse liberar a seus pesadelos da
imagem daquele rosto inclinado sobre enquanto o fazia
coisas dolorosas e humilhantes a seu corpo,
possivelmente o teria considerado um homem atraente.
O duque desviou seu olhar para sua filha.
—O que posso fazer, Pamela? —perguntou—. O que
posso fazer para arrumar as coisas?
Estremecendo-se para seus adentros, Fleur sentiu
como se o dissesse a ela.
—Nada — respondeu a menina, deixando de chorar
um momento—. Parte!
—Mamãe prometeu que algum dia poderia conhecer
as damas, verdade? E eu prometi falar com ela e
recordar-lhe, mas ainda não o tenho feito. Sinto muito,
Pamela. Perdoar-me-á?
—Não! —exclamou sem soltar do peito de Fleur.
Ele suspirou e colocou a mão na nuca de sua filha.
—Dar-me-á a oportunidade de arrumá-lo? Vai haver
um picnic nas ruínas esta tarde. Quer que me
encarregue de que você venha também?
—Não. Quero ficar com a senhorita Hamilton e
aprender francês.
—Por favor, Pamela, E se convencermos à senhorita
Hamilton de deixe a aula até manhã?
Fleur beijou a têmpora quente da menina.
—Aprenderemos francês manhã, de acordo? —
propôs—. Faz um dia maravilhoso para ir ao picnic.
Acredito que todas as damas irão vestidas de musselina
e levarão bonitos chapéus e sombrinhas.
—E tenho entendido que haverá empanados de
crustáceo — acrescentou o duque—. Virá, Pamela?
—Se vier também a senhorita Hamilton — respondeu
Lady Pamela de improviso.
Fleur e o duque se olharam.
—Mas mamãe e papai quererão estar contigo —
explicou Fleur.
—À senhorita Hamilton agradará ter uma tarde livre
—acrescentou Sua Excelência—. Não tem muitas.
—Então não irei — afirmou a menina, zangada.
O duque elevou as sobrancelhas e Fleur fechou os
olhos.
—Gosta dos empanados de crustáceo marinho,
senhorita Hamilton? —perguntou em voz baixa.
—Sempre foram minha comida favorita nos picnics.
Lady Pamela desceu de um salto de seu regaço e se
apartou uns cabelos enredados do rosto avermelhado e
inchado.
—Vou procurar à tata. Vou dizer lhe que me ponha o
vestido rosa a Pamela.
—Peça-lhe Pamela — recordou Sua Excelência—. É
melhor que ordenar.
—Farei os preparativos para esta tarde —comentou o
duque—.
O duque ficou em pé enquanto sua filha saía
rapidamente da habitação, e olhou a Fleur.
—Sinto-o — comentou o duque—. Sinto que tenha
que enfrentar-se a isto sozinha. A babá mandou ao
Houghton para me buscar a toda pressa dizendo que
Pamela estava gritando e que você a estava
estrangulando. Equivoquei-me ao esperar que
esquecesse seu desejo de encontrar-se com as damas.
Se lhe servir de consolo, senhorita Hamilton, diria que
sua aluna começa a lhe agarrar carinho.
Fleur não disse nada e se limitou a recolher os
farrapos do lenço.
Ao sair do quarto de estudo, Fleur pensou com
certa inquietação que não queria ir ao picnic. Faria quase
algo para livrar-se de ir, exceto romper uma promessa
que tinha feito a Lady Pamela. Assim tinha que ir.
Sentia uma nostalgia considerável por volta de suas
duas primeiras semanas de vida em Willoughby, quando
era feliz em que pese a não contar com a aprovação da
duquesa e da senhora Clement.
Quanto desejava que o duque de Ridgeway não
tivesse resultado ser quem era. Mas já se precaveu de
que não teria seu emprego se não o tivesse conhecido.
Estaria em Londres, vivendo em uma humilde habitação,
e para então já seria uma prostituta experimentada.
Pensava que, depois de tudo, devia-lhe certa
gratidão. E se fosse verdade que Lady Pamela estava
começando a criar carinho — embora não estivesse
nada convencida disso—, então era igualmente certo
que ela começava a criar carinho à menina. Por muito
caprichosa e teimosa que pudesse ser, Lady Pamela
tinha sentimentos e necessidades muito reais. E
necessitava a Fleur, embora não queria admiti-lo. Era
agradável sentir que a necessitavam.
Assim, conforme parecia, aquela tarde teria que
preparar-se para um picnic.

Capítulo 10

—É aí. —Assinalou inclinando-se para a janela da


carruagem o cavalheiro atraente e moreno a seu
acompanhante, quando cruzaram a ponte e deixaram
atrás o bosque de limas em direção à casa que aparecia
ante seus olhos—. Não diria que é impressionante?
O cavalheiro loiro que viajava com ele olhou na
mesma direção.
—Muito — respondeu o outro—. Já vejo por que está
acostumado a ser tão admirado. E foi seu durante uns
poucos meses, Kent.
—Foi uma experiência entretida — comentou Lorde
Thomas Kent—. De repente me converti em propriedade
de todo o mundo porque eu era o proprietário de tudo.
Quase como se eu pertencesse a propriedade em vez do
reverso. Pensei que nunca voltaria a vê-lo.
—Pode estar seguro — o tranqüilizou Lorde
Brockehurst—, de que seu irmão lhe proibiu voltar em
um momento de exaltação. Recebê-lo-á com os braços
abertos.
A idéia parecia resultar graciosa ao Lorde Thomas.
—Não sei, não sei — disse Kent—, mas não lamento
que me convencesse para vir, Bradshaw. Ver suas caras
resultará impagável: a de Ridgeway, a dos criados. E
será interessante ver minha cunhada uma vez mais.
Quando me parti não estavam casados, já sabe.
—Esplêndido! —exclamou Lorde Brockehurst
enquanto a carruagem se detinha, e observava as
enormes colunas corintianas e o grande frontão, que
ocultava à vista a cúpula desde aquele ponto estratégico
—. É esplêndido. Alegro-me de que me convencesse
para acompanhá-lo.
Lorde Thomas pôs-se a rir.
—Dado que foi você o que me convenceu para que
voltasse, pareceu-me justo que fora testemunha da
comovedora reunião.
A expressão no rosto do mordomo ao sair aos
degraus em forma de ferradura para dar a bem-vinda aos
inesperados visitantes deveu ser o que Lorde Thomas
esperava. A rigidez o abandonou durante três segundos
inteiros enquanto observava como o irmão mais novo de
Sua Excelência descia da carruagem e o olhava
sorrindo.
—Jarvis! —exclamou—. Assim ao final lhe
ascenderam. Vais ficar aí boquiaberto, ou vais chamar a
alguém para que meta nossos baús na casa? Está meu
irmão por aqui perto?
Jarvis se controlava. Fez uma reverência formal da
cintura para baixo.
—Sua Excelência está nas ruínas com a duquesa e
seus convidados, senhor. Farei que se encarreguem de
sua carruagem e sua bagagem se fizerem o favor de
entrar comigo.
—Não tenho nenhuma intenção de ficar aqui fora de
pé até que Sua Augusta Excelência me deixe entrar —
afirmou Lorde Thomas entre risadas, voltando-se para
Lorde Brockehurst e conduzindo-o escada acima—.
Sirva-nos bebidas na sala, por favor, Jarvis. Que diabos
estão fazendo nas ruínas?
—Tenho entendido que estão fazendo um picnic,
senhor —explicou Jarvis, lhes indicando aos convidados
o caminho à sala com uma reverência.
—Quanto momento faz que se partiram? —
perguntou Lorde Thomas, olhando a seu redor—. Vejo
que nada mudou.
—Fará uma hora, senhor — respondeu o mordomo.
—Uma hora? —Lorde Thomas franziu o cenho—.
Então terei tempo de fazer as honras e lhe mostrar os
salões, Bradshaw, depois de que nos tenhamos
refrescado com uma bebida e nos tenhamos trocado de
roupa, claro. Faz que me preparem meu antigo quarto,
Jarvis, e que a ama de chaves prepare outro quarto para
Lorde Brockehurst. Ainda está a senhora Laycock?
Jarvis fez uma reverência.
—Já pode te retirar — ordenou Lorde Thomas—.
Mas primeiro traz as bebidas.
»Assim vamos esperar aqui impaciente umas
quantas horas e sentir como cresce a incerteza.
Pergunto-me se Ridgeway se engasgaria com o osso do
frango e o vinho se soubesse que estou no centro da
sala neste mesmo instante — riu Lorde Thomas.
—Alegro-me de estar aqui de todos os modos —
comentou Lorde Brockehurst—. Faz um tempo que
queria vir ao Willoughby Hall.

O duque de Ridgeway observou a sua filha separar


do grupo com sua governanta e dirigir-se aos estábulos a
ver sua cachorrinha. E desejou poder ir com elas, tirar a
cachorrinha ao ar livre, e pular com ela e com elas
durante meia hora.
Mas levava a Lady Underwood de braço, e os
Grantsham queriam cercar conversação com eles.
Pensou que o picnic tinha ido bastante bem. Sybil
tinha alarmado ao anunciar que ia levar a Pamela, e o
tinha cuidadoso desafiante quando Adam recordou que
tinha quebrado sua promessa de permitir à menina
baixar a ver as damas o dia em que chegassem.
Mas também havia dito que não teria que preocupar-
se com cuidar de Pamela. Já o faria sua governanta, tal
e como tinha pedido Pamela.
A menina estava de muito bom humor e todas as
damas e alguns cavalheiros tinham emprestado muita
atenção. Quando chegaram às ruínas estava vermelha e
se pôs a chiar, mas Fleur a tinha pego discretamente da
mão, tinha-lhe sussurrado algo ao ouvido, e a tinha
levado dentro a ver a torre. Sir Ambrose Marvell as tinha
seguido até ali.
A própria Fleur tinha conseguido manter-se em um
segundo plano durante toda a tarde e tinha ajudado a
servir a comida do picnic a pedido da duquesa. Não tinha
posto nenhuma objeção a ser tratada como uma criada
de baixa categoria. De fato, o duque pensava que
provavelmente devia estar contente de ter algo que
fazer.
Ao chegar a casa, o duque acreditou que com um
pouco de sorte ainda teria umas poucas horas tranqüilas
para si mesmo antes de jantar, a não ser que Lady
Underwood as engenhasse para mantê-lo ao seu lado.
Entraram fazendo bastante ruído. Jarvis os estava
esperando ali e lhes fez uma reverência.
—Tem visitas na sala, Sua Excelência — anunciou.
O duque suspirou para seus adentros. Quem se
apresentava a essa hora da tarde? Esperava que não
fora ninguém que ficasse muito momento. Voltou-se para
apresentar suas desculpas a Lady Underwood e se
dirigiu à sala.
—Visitas? —ouviu que dizia sua esposa com sua voz
suave e agradável. Tinha passado uma tarde excelente,
já que Shaw lhe emprestava atenção em todo momento.
O duque se deteve na soleira da porta e entrecruzou
as mãos nas costas. Por estranho que parecesse, não
estava especialmente surpreso de ver a pele bronzeada
de seu irmão, sua roupa na moda, seu sorriso. Sempre
tinha sabido que Thomas voltaria.
—Parece como se te fosses cair de costas, Adam —
comentou Lorde Thomas Kent—. Não vai dar as boas
vindas?
—Thomas. —O duque estendeu a mão e se dirigiu
para seu meio irmão—. Bem-vindo a casa.
Lorde Thomas sorria, mas ao lhe dar a mão seus
olhos se fixaram em uma pessoa a costas do duque.
—Thomas… —a palavra foi pronunciada como um
suspiro, mas encheu a sala.
Lorde Thomas soltou a mão de Sua Excelência e seu
olhar se fixou na figura que tinha aparecido na entrada.
—Sybil! —exclamou, e seu olhar e sua voz se
adoçaram. deslocou-se para ela, estendendo ambas as
mãos—. Que bonita está.
—Thomas… — voltou a suspirar ela, e suas mãos
pequenas e brancas desapareceram nas mãos
bronzeadas dele.
—Sybil — repetiu Lorde Thomas em voz baixa—.
Voltei para casa. —E a seguir virou a cabeça, sorrindo—.
Conhece o Bradshaw? —perguntou a seu irmão—.
Matthew Bradshaw, Lorde Brockehurst, do Heron House
no Wiltshire. Foi o primeiro amigo que me chamou
depois de que voltasse da Índia. E me convenceu de que
devia voltar para casa. Trouxe-me isso para passar umas
quantas semanas.
Sua Excelência deu a mão ao Lorde Brockehurst.
—Bem-vindo. Alegro-me de lhe conhecer,
Brockehurst.
—A Índia? —estava dizendo a duquesa. Seus
grandes olhos azuis estavam fixos em seu cunhado, e
ele continuava lhe agarrando as mãos—. Estiveste na
Índia, Thomas?
—Sim. Com a Companhia das Índias Orientais.
Tornei para ver se a velha e querida Inglaterra seguia
estando no mesmo lugar. Assim ao final te converteste
na duquesa de Ridgeway, Sybil? —Thomas lhe apertou
as mãos antes de soltar-lhe — —Na Índia —
repetiu a duquesa—. Todo este tempo? —E começou a
tossir.
—Acompanharei a seu quarto, Sybil — comentou
Sua Excelência, notando-se em quão pálida estava e as
manchas de cor que tinha na parte superior das faces—.
A saída desta tarde foi exaustiva para ti.
Surpreendentemente, ela o agarrou do braço sem
protestar e partiu com ele depois de que o duque desse
instruções a seu meio irmão de que entretivera a seus
convidados até o jantar.
Sybil não disse nada quando a conduziu pelos
corredores até sua sala e chamou para que viesse a
donzela. Limitou-se a jogar os ombros para trás e olhou
para diante adotando uma expressão ausente, e tossindo
de vez em quando.
—Armitage — chamou quando a donzela entrou na
habitação—, quero que me dispa e me escove o cabelo.
Quero me deitar.
Soava como uma menina cansada e desconcertada.
Ao fechar a porta sem fazer ruído detrás de si, o
duque de Ridgeway não conseguiu recordar um
momento na vida no que se houvesse sentido mais
furioso.

Lorde Thomas Kent estava assobiando. Era


agradável ter voltado. Embora tivesse partido jurando
que não voltaria com a mesma veemência com a que
seu irmão tinha ordenado que não voltasse, afinal de
contas se tratava de Willoughby, o lar de sua infância, o
lar de seu pai. E o seu próprio durante os meses nos que
se acreditou que Adam havia falecido em combate.
Sim, era agradável. E tudo aquilo havia valido a pena
para ver o rosto de Adam. Claro que a boa educação o
tinha proporcionado uma máscara quase adequada.
Provavelmente, Brockehurst não devia haver-se
precavido de que as boas vindas que tinha dispensado o
duque a seu irmão não era para nada cordial, mas sim
Adam estava totalmente furioso. Lorde Thomas conhecia
o bastante bem a seu irmão para desmascarar qualquer
dissimulação.
Ainda faltava muito tempo para descer ao jantar.
Thomas ainda levava sua camisa de seda aberta pelo
pescoço. Seu lacaio estava escovando seu casaco de
veludo, e se deteve em sua tarefa para responder
quando bateram na porta.
—Pode ir, Winthrop — assinalou Lorde Thomas,
sorrindo com a sua visita—. Chamarei quando queira
que volte.
O homem fez uma reverência e saiu da habitação.
—Enfim, Sybil — sussurrou Lorde Thomas, sorrindo
ainda.
—Thomas… — começou ela. Tinha um aspecto frágil
e encantador com seu vestido de seda azul céu e o
cabelo solto nas costas—. Voltaste para casa.
—Como pode ver.
—Tiveste a valentia de voltar… embora ele tivesse o
obrigado a partir.
Thomas lhe sorriu.
—OH, Thomas, tornaste!
Mostrou-lhe as palmas das mãos e ela proferiu um
chiado e se precipitou em seus braços.
—Acreditava que iria para sempre? —perguntou
Thomas com a cabeça apoiada contra seu cabelo.
—Sim. Pensei que teria que te manter afastado
porque ele o tinha ordenado isso. Pensei que não
poderia voltar nunca, Thomas — gemeu, olhando-o
horrorizada e com os olhos cheios de lágrimas—. Casei-
me com ele!
—Sei, amor. —E uniu sua boca com a dele,
explorando-a com a língua enquanto rodeava seu corpo
pequeno e flexível com seus braços—. OH, é tão bonita!
Está mais encantada que nunca, Sybil. Como poderia me
haver mantido afastado de ti para sempre?
—Não soube viver sem ti — explicou ela. Tinha a voz
aguda devido à emoção—. Thomas, estive meio morta
sem ti. Foi para a Índia? Não tinha nem idéia. Não sabia
onde estava ou nem sequer se seguia vivo. E tampouco
acredito que ele soubesse, e se o tivesse sabido, não me
haveria isso dito. Por que não escreveu? Ah, por que não
me deu algum sinal?
—Não teria servido. Já sabe, Sybil. Era melhor que
pensasse que me tinha ido para sempre. Inclusive que
estava morto. estiveste meio morta sem mim? —
Agarrou-lhe a face com as mãos e a olhou aos olhos
grandes e azuis—. Mas ao final te casou com ele, Sybil.
Não esperava isso de ti. Pensava que teria permanecido
fiel a minha lembrança. Pensava que de todos os modos
o teria rechaçado, de entre todos os homens.
—Não tive escolha quando você partiu. OH, Thomas!
—E escondeu a face contra seu peito, abraçando-se
ainda mais a ele—. Tinha ido. Não tinha escolha. Pensei
que morreria. Queria morrer. Mas ele veio um dia atrás
de outro a me suplicar. E ao te haver partido já não me
importava. Casei-me com ele. Odiava-o, mas me casei
com ele.
—Shh, shh, agora voltei, amor. —Thomas fez que se
calasse e a beijou outra vez com delicadeza, e logo mais
intensamente—. Voltei para o lugar ao que pertenço, e
tudo sairá bem, já verá. Já é hora de jantar?
—Ainda falta um momento. Fica tempo.
—Seriamente?
Thomas se separou dela e sorriu. E ela o entendeu,
mordeu-se a língua, e levantou as mãos trementes para
os botões de sua camisa. Ele a olhou aos olhos
adotando uma expressão séria, enquanto deslizava a
seda azul por seus ombros, por seus braços, e tocava os
seios nus.
—Como te trata Adam?
—Não o faz. —Ela o olhou angustiada—. Thomas,
não fale dele. Por favor, não o faça. Não deveria estar
aqui. Deveria ir. Só queria falar contigo em privado.
Ele riu em voz baixa.
—Existe mais de uma maneira de falar. E eu te
desejei desesperadamente, Sybil. Não me deixe agora.
Não virá a te buscar?
—Não, não o fará. Thomas. Não fazemos nada mal,
verdade? —Afundou a face em seu ombro enquanto ele
a levantava em seus braços—. Só quis a ti. Acredita,
verdade?
—E eu só quis a ti — respondeu ele, jogando-a na
cama e tirando a roupa—. Por que acredita que voltei
para casa?
—Por mim? Vieste por mim?
—Mmmm — gemeu ele, deitando-se em cima dela e
esfregando-se contra sua suave carne—. Deus, que
bonita é, Sybil. Como pôde pensar que não voltaria a
ver-te?
Além de seu desejo crescente, Thomas pensou que
as portas de seu vestidor e de seu dormitório estavam
sem fechar, e se perguntou com certo regozijo que
ocorreria se seu irmão entrasse em qualquer das duas
habitações.
—Ah! —exclamou com a boca pega a dela enquanto
a penetrava. Sim, seriamente, era realmente agradável
voltar a estar em casa.

O duque de Ridgeway não tinha falado com seu


irmão além de trocar simples cortesias. Quando o
cavalheiro se uniu às damas no salão depois de jantar,
percebeu que sua esposa estava ainda mais feliz e
animada do que o tinha estado desde que chegaram
seus convidados, e a ira voltou a marcar-se em seu
queixo.
Pensou em fazer uma visita à habitação de seu irmão
antes de jantar, mas se deteve no último momento. Os
anos que tinha dedicado a responsabilizar do bem-estar
de outros e os que tinha passado de oficial o tinham
ensinado que, quando fora possível, era melhor deixar
esfriar a raiva antes de fazer algo.
Tinha decidido que esperaria ao dia seguinte para
enfrentar ao Thomas e exigir uma explicação, e antes de
decidir o que devia fazer, se é que fazia algo.
—Mandei procurar Pamela — estava explicando a
duquesa à senhora Grantsham e a Lady Mayberry, com
voz ansiosa e uma expressão luminosa no rosto. Incluiu
a seu marido no sorriso que mostrou quando notou de
que podia ouvi-la—. Deve chegar a qualquer momento.
—A Pamela? —interveio Adam franzindo o cenho—.
Não estará na cama, Sybil? Não está muito cansada
depois desta tarde?
—Mandei uma mensagem a tata para que a
mantivesse acordada e a preparasse — explicou a
duquesa—. Quero que conheça seu tio. Como poderia
privar a minha querida menina do prazer de compartilhar
sua volta? —E sorriu resplandecente ao duque.
Claro que sim! Adam apertou os dentes e ficou muito
quieto.
—Então tem que lhe dizer à babá que volte a levar a
cama quando transcorrerem cinco minutos.
—Ah, mas é a senhorita Hamilton quem a vai trazer,
Adam.
O que estava tramando? O duque franziu o cenho.
Não teve que esperar muito. Vestida com volantes e
laços, e com o cabelo penteado em múltiplos cachos, as
faces rosadas e os olhos brilhantes de excitação e
esgotamento, apareceu Pamela na sala de mão dada a
Fleur, que fez uma reverência e ficou em silencio junto à
porta.
A duquesa agarrou a sua filha na mão enquanto as
damas a tocavam como tinham feito aquela tarde.
—Queria ver as damas vestidas para a noite,
querida. —A duquesa se agachou e sorriu—. Bom, pois
aqui estão. O que te parece?
Lady Pamela devolveu o sorriso, e a duquesa a
abraçou.
—Quero que conheça alguém — explicou—. Alguém
a quem não viu antes, embora tenha falado muito dele, e
me atreveria a dizer que papai também. Um cavalheiro
muito importante. —Conduziu a Pamela até Lorde
Thomas, que sorria ironicamente—. Este é seu tio,
carinho. Faça uma reverência.
Lady Pamela fez o que lhe pediu e contemplou com
curiosidade o rosto de seu tio, que se parecia muito a
seu pai excetuando o fato de que suas feições
resultavam mais atraentes e despreocupadas.
—Então você é Pamela — disse ele, sujeitando com
um dedo o queixo levantado da menina—. Não te parece
muito a sua mamãe, verdade? É igual ao seu pai.
O duque se voltou, incapaz de olhar. E seus olhos se
centraram em Fleur, que continuava de pé junto à porta.
Mas já não estava tão tranqüila e destemida. Tinha a
face tão pálida que os lábios pareciam azuis. Adam
estava a ponto de aproximar-se a toda pressa a seu lado
quando a mão da garota ficou a tremer quase com tanta
intensidade como aquela primeira vez e ontem à noite,
apalpou o pomo da porta sem olhar e o fez girar
torpemente.
Fleur saiu deixando a porta entreaberta. O duque
ficou olhando em direção ao lugar onde tinha estado ela.
Mas não era a primeira vez que se encontrava em
companhia de seus convidados. Tinha estado no baile
duas noites atrás e no picnic aquela tarde. Por que esse
repentino ataque de nervos? Era pela presença do
Thomas? Conhecia-o de antes? De Londres,
possivelmente?
Tinha sido Thomas outro de seus clientes? Adam
sabia que ele tinha sido o primeiro, mas freqüentemente
se perguntou se também tinha sido o último. Afinal de
contas, tinha havido um lapso de cinco dias desde seu
encontro com ela e o momento no que Houghton a
contratou como governanta de Pamela.
Por alguma estranha coincidência, haveria a
possuído também Thomas? Sentiu uma fúria terrível ao
pensá-lo.
Ou possivelmente era pelo Brockehurst? Tampouco
o tinha visto até aquela noite. Acaso Brockehurst tinha
sido cliente dela e ao vê-lo tinha perdido o controle?
O duque fechou os olhos um instante.
—Onde está a senhorita Hamilton? —estava
perguntando alegremente a duquesa—. Não se deu
conta de que tinha que esperar a Pamela?
—Dei-lhe permissão para partir – afirmou o duque—.
Disse-lhe que eu mesmo levaria outra vez a Pamela ao
quarto de brincar.
A duquesa o lançou um olhar de recriminação.
—Mas tinha pensado apresentar a governanta de
minha filha ao Thomas, e ao Lorde Brockehurst, é obvio.
Enfim, outra vez será. —A duquesa se encolheu de
ombros—. Vai à cama, carinho, com papai.
Voltou-se para Lorde Thomas enquanto Lady Pamela
dava a mão a seu pai e saía da habitação com ele.
—Era ela — sussurrou Sua Excelência a duquesa—,
a amante de Adam. Queria que a visse, Thomas, e
soubesse da humilhação que me faz passar.
—Já não seguirá fazendo-o. —Thomas levou a mão
de Sybil a seus lábios—. Já não deixarei que te faça mal,
Sybil.

Fleur pensava que o dia já tinha terminado. A


senhora Laycock estava cansada depois de passar
vários dias atarefada e não tinha convidado a governanta
a passar a noite em sua sala como estava acostumada.
Fleur suspirou quando a senhora Clement a mandou
chamar para que fosse ao quarto de brincar e informou
secamente de que Sua Excelência a duquesa tinha
pedido que levasse Lady Pamela ao salão depois de
jantar.
—Mas isso não será mais tarde que a hora a que
Lady Pamela tem que se deitar? —perguntou.
—Chegou Lorde Thomas — explicou a senhora
Clement—. A duquesa quer que Lady Pamela conheça
seu tio.
Fleur pensou que também poderiam ter levado ao
Lorde Thomas Kent ao quarto de brincar à manhã
seguinte, mas não disse nada. Voltou para seu quarto
para colocar seu melhor vestido e voltar a fazer um
coque.
Não se sentiu cômoda quando levou a sua aluna à
sala. Lorde Thomas tinha sido amigo do Matthew. Era
impossível que a conhecesse, mas sua presença em
Willoughby a recordava a ameaça constante para sua
segurança e sua felicidade. Ficou junto à porta, com a
cabeça baixa, esperando que ninguém tivesse que fixar-
se nela. Esperava que Lady Pamela não ficasse muito
tempo. A menina estava muito excitada e muito cansada.
Levantou a vista quando a duquesa conduziu a sua
filha ao outro extremo da habitação, e olhou ao Lorde
Thomas Kent. Sabia que era meio irmão do duque. Mas
qualquer poderia haver-se pensado que eram irmãos de
tudo. Eram muito parecidos, excetuando o fato de que
Lorde Thomas não era igualmente alto ou que seu rosto
não tinha uma expressão tão dura e séria.
Fleur olhou a seguir ao duque para observar o
contraste entre os dois e viu que contemplava a seu
irmão falando com a Lady Pamela com aquela expressão
sombria tão característica dele. A governanta se
estremeceu. Como podiam parecer-se tanto dois homens
e ao mesmo tempo ser tão diferentes?
E o olhar de Fleur alcançou além da figura do duque
até posar-se em outro cavalheiro, também mais baixo
que o duque, com o cabelo loiro, e mais forte. Olhava
diretamente para ela, e um brilho de que? Prazer?
Diversão? Triunfo? Cintilava em seu olhar.
Fleur olhou rapidamente em direção ao tapete que
havia sob seus pés e sentiu que o coração e cada
pulsada bombeavam o sangue a toda velocidade por seu
corpo. A habitação em que se encontrava, o estrondo
das vozes e as risadas, o motivo pelo que estava ali…
deixou de pensar em todas aquelas coisas e se
concentrou exclusivamente em uma rosa de um tom
vermelho forte estampado no tapete. Tinha o caule verde
escuro e espinhos marrons.
O ambiente da sala era irrespirável. Tinha as mãos
pesadas e trementes, como se o sangue não pudesse
circular até elas. Estava perdendo o controle das mãos.
Sentia que se sufocava.
Mas ao seu lado havia uma porta. Alargou a mão
para girar o pomo, não o encontrou, golpeou-o com os
nódulos, agarrou-o, não conseguiu agarrá-lo, e a seguir,
felizmente, pôde abrir a porta de repente.
Fugiu pelo corredor, e detrás duvidar quando chegou
à escada, dirigiu-se a toda pressa à entrada principal,
abriu uma das portas sem olhar sequer aos lacaios, e
baixou apressadamente os degraus em forma de
ferradura.
Ar livre. Escuridão. Espaço.
Correu.
Já se encontrava entre as limas quando a dor e as
dificuldades para respirar a obrigaram a parar. Agarrou-
se ao tronco de uma árvore com ambas as mãos
enquanto o ar entrava em seus pulmões, e se dobrou
pela dor que sentia no flanco.
«Deus, OH, por favor, Meu Deus, que não seja
assim. Por favor, Deus.»
Matthew a tinha encontrado. Tinha vindo para levá-la.
Começava a assimilá-lo. Quando tinha chegado? Por
que não a tinham chamado e detido imediatamente? Por
que não se tornaram todos a olhá-la adotando uma
expressão acusadora quando tinha levado a Lady
Pamela ao salão? A que estava esperando Matthew, a
que jogava?
Fleur se apoiou contra outra árvore, com a face pega
a sua áspera casca, e o abraçou com ambos os braços.
O que ocorreria? A levaria sozinho, ou haveria
alguém mais para custodiá-la? Iria atada? Encadeada?
Não tinha nem idéia de como se faziam essas coisas.
Quanto tempo passaria na prisão antes que a levassem
a julgamento? Quanto tempo passaria na prisão depois
do julgamento, antes de…?
«OH, por favor, Meu Deus, Meu Deus.»
Não tinha sentido seguir correndo. Já a tinha
localizado. Não poderia seguir escapando. Não tinha
sentido correr.
Ficou onde estava durante muito momento antes de
apartar-se cansativamente da árvore e ficar a caminhar
lentamente de volta à ponte. E permaneceu apoiada
contra o parapeito, olhando sem ver nada realmente em
direção às cascatas iluminadas pela lua, escutando sem
ouvir como corria e salpicava a água.
Durante vários minutos soube que se aproximava
alguém, embora não tivesse virado a cabeça para olhar.
Matthew. Seria Matthew. Esperando que voltasse a
enfrentar-se a ele? Que tentasse voltar a fugir?
Surpreendia que estivesse sozinho. A última vez não
tinha estado sozinho. E então ela tinha matado a seu
companheiro.
Ou possivelmente tinha visto pela expressão de Fleur
no salão que já não ficava um ápice de luta em seu
interior. Estava cansada de lutar, cansada de correr.
Cansada de viver.
O homem se deteve o final de ponte.
—O que ocorre? —perguntou a Fleur.
Depois de tudo não era Matthew. Era ele. Fleur
pensou que em quase todas as circunstâncias a teria
aterrorizado, tal e como tinha ocorrido duas noites atrás
quando ficou a sós a com ele da mesma maneira em
plena noite, longe da casa. Mas não havia motivo para
sentir terror. Só o final inevitável poderia seguir
aterrorizando-a.
—Nada. Queria tomar um pouco o ar.
—E abandonar a Pamela na sala?
Ela se voltou para olhá-lo.
—Sinto muito. Não pensei.
—O que ocorre? —perguntou outra vez—. Foi por
meu irmão? Conhece-o?
—Não.
—Então por Lorde Brockehurst?
—Não.
O duque percorreu lentamente a ponte em direção a
ela.
—Foi algum dos dois cliente seu?
—Não. —Fleur abriu os olhos horrorizada.
—Então sou o único homem que teme nesse
sentido?
Ela se voltou e ficou a olhar em direção à água que
formava espuma.
—Então foi por mim? —insistiu ele—. É a mim a
quem teme? Tinha medo de que me arrumasse isso para
provocar um encontro como este? Tinha medo de que se
repetisse o de aconteceu a duas noites?
—Não tinha medo. Só estava cansada e enjoada.
Necessitava ar.
Ele apoiou um cotovelo no parapeito que havia junto
à garota e ficou a olhá-la.
—Você é um mistério — sussurrou o duque—. Não a
conheço absolutamente, senhorita Hamilton, verdade?
Fleur sentia tanto dor que notava uma opressão no
peito.
—Não tem que me conhecer, Sua Excelência. —O
duque notou como lhe tremia a voz—. Fui sua puta e
agora sou a governanta de sua filha. Não tem que me
conhecer em nenhum sentido. Só existo para
proporcionar um serviço.
—Eu gostaria que soubesse que não sou seu
inimigo. Acredito que necessita de um amigo.
—Os homens não são amigos de suas putas e seus
criados.
—Se você for uma puta, então eu sou um adúltero.
Somos pecadores por igual. Mas ao menos você teve um
bom motivo para fazer o que fez. Foi prostituta por uma
noite. Que não a arruinou a vida inteira. Sobreviveu. Isso
é o que importa.
—Sim — afirmou ela amargamente—. A
sobrevivência é tudo.
Fleur sentiu como o duque apoiava as pontas dos
dedos no dorso de sua mão no parapeito. O asco lhe
subiu pelo braço e até a garganta. O primeiro impulso de
Fleur foi apartar a mão e apartar-se dele. Mas estava
muito sozinha, muito desesperada, ao bordo do
desespero total.
A garota deixou a mão onde estava, embora
soubesse que estava tremendo sob os dedos do duque.
Desejava que fosse qualquer outra pessoa em vez dele.
Desejava poder dar os dois passos que os separam e
apoiar seu corpo contra o seu, e sua cabeça contra o
amplo peito do cavalheiro. Ah, desejava-o e lamentava
sua debilidade. Sempre tinha agüentado sozinha, desde
a morte de seus pais: e desde que se precaveu de que
quão estranhos tinham ido viver a sua casa não a
queriam. Sempre se tinha mostrado orgulhosa de ser
independente e nunca tinha permitido que a compaixão
por si mesmo fizesse pedacinhos qualquer possibilidade
de ser feliz que lhe pudesse apresentar.
Queria ao Daniel, e ao pensá-lo fechou os olhos.
O duque deslizou os dedos por sua mão e os fechou
em seu interior. Sustentou a mão da garota com afeto,
com aqueles dedos largos que a haviam tocado e
sujeitado antes. A governanta não pôde reprimir um
calafrio profundo, mas mesmo assim não se apartou.
Apoiou-se contra o parapeito e manteve os olhos
fechados tal e como tinha feito quando dançaram juntos.
E lhe levantou a mão até que Fleur sentiu os lábios
do duque, quentes e quietos, roçando o dorso.
«Deus, OH, Meu Deus.»
Uns instantes depois ele deu a volta à mão da garota
e sustentou a palma, primeiro contra sua boca e logo
contra sua face, contra a que não estava marcada.
—Sei que sou a última pessoa do mundo capaz de
consolá-la. Sei que o que lhe fiz e meu aspecto faz com
que lhe resulte profundamente repulsivo. Mas se
chegasse a acontecer, Fleur, se alguma vez se encontrar
com que não tem a ninguém mais a quem recorrer, então
dirija-se a mim. Fará?
—Posso agüentar sozinha. Sempre o tenho feito.
—Seriamente, Fleur? Desde o falecimento de seus
pais quando tinha oito anos?
Ficou em silêncio. E sentiu dor ao ouvir seu nome.
Era a primeira vez que alguém a chamava Fleur desde
que seus pais a tinham chamado assim.
—Volte para casa. Está gelada.
E Fleur permitiu que a levasse do braço e a
conduzisse lenta e silenciosamente pelo longo caminho
de volta. E ela desejou uma e outra vez que fosse
alguém distinto. Desejava apoiar a cabeça contra o
ombro largo que estava junto a ela, cair em seus braços,
suplicar que não a deixasse sozinha aquela noite, sua
última noite de liberdade. Se tivesse sido Daniel…
E pensou entristecida em como reagiria Daniel a um
convite semelhante. Ficaria surpreso, doido e pesaroso.
O duque se deteve quando chegaram ao terraço
superior, ao pé das escadas em forma de ferradura.
—Pense em tudo o que —reiterou, pondo uma mão
em cima da que a garota tinha sobre seu braço—.
Enfureci-me por minha debilidade naquela noite, Fleur, e
a utilizei de um modo grosseiro e cruel. Tenho muito que
espiar. Eu gostaria de ajudá-la.
—Já o fez. Alimentou-me e me pagou mais do que
tinha ganhado, e me deu este emprego.
Ele não disse nada mais, mas sim se limitou a olhá-la
aos olhos durante um longo instante silencioso na
escuridão até que Fleur voltou a sentir que o terror
crescia em seu interior.
Mas então recordou o horror que a esperava dentro a
casa e se soltou de Sua Excelência para subir os
degraus sem ajuda. Pensou que tinha a esperança de
que não a encadeassem, e começou a correr. Esperava
que não a prendessem na casa ao dia seguinte,
caminhado ou arrasta. E esperava…
Abriu uma das portas sem esperar a que o duque
subisse junto a ela. E atravessou a toda pressa a entrada
e o arco até a escada como se todos os sabujos do
inferno a estivessem perseguindo.
Capítulo 11

O duque de Ridgeway viu que partia e se manteve


impassível para não chamar a atenção dos lacaios da
entrada.
Era dele de quem fugia? Mas mesmo assim, embora
tivesse notado que se estremecia quando a havia
tocado, Fleur tinha lutado contra a repulsão que ele lhe
provocava e a tinha controlado ao igual a quando
dançaram. Temeu o que lhe proporia levá-la a seu quarto
ou a dele?
Mas não, tinha que saber que não tinha pensado
seduzi-la, que estava profundamente preocupado por
ela.
Qual era aquele terror desconhecido que tinha
provocado que primeiro saísse fugindo da casa e logo
voltasse a entrar nela?
Sentia-se muito responsável por ela, ao igual a de
todos os criados e todos o que estavam sob seu cuidado.
Mas ainda no caso dela. Era o responsável por lhe haver
mudado a vida de maneira irrevogável, e de um modo
que a aterrorizaria para sempre.
Não a tinha beijado nem acariciado. Limitou-se a
sentar-se e tinha ordenado que tirasse a roupa, e tinha
dedicado a observar cada um de seus movimentos. E
tinha ordenado que se virasse enquanto se despia diante
dela. Enquanto a vela ardia ainda no spot da parede,
tinha-a colocado na posição que tinha desejado, a
posição em que podia demonstrar como a dominava e a
todas as mulheres, e logo tinha demonstrado seu
domínio sem sutileza nem amabilidade.
Mas a tinha levado a aquela estalagem desejando
consolar-se com a compaixão e a calidez feminina. O
silêncio e o autocontrole de Fleur o tinham deixado
possesso e zangado. Tinha desejado que fosse como
ninguém o tinha feito fazia muitos anos, e ela o tinha
cuidadosamente aceitando o que devia fazer para
ganhar a vida.
O duque amaldiçoou em voz baixa e voltou a unir-se
a sua esposa e seus convidados no salão. E ficou a olhar
com curiosidade ao Lorde Brockehurst, que estava
conversando tranqüila e amigavelmente com um grupo
pequeno. O duque se uniu ao grupo.
—Sim, está dormindo — assegurou a Lady Mayberry,
que perguntou por Pamela.
Passou uma hora antes de encontrar-se quase a sós
com Lorde Brockehurst, e sem saber se tinha sido ele ou
o outro homem quem tinha provocado o encontro.
—Tem uma boa filha, Sua Excelência — comentou
Lorde Brockehurst sorrindo.
—Sim, assim é — respondeu o duque—. Minha
esposa e eu a queremos muito.
—A idéia do matrimônio resulta atrativa quando a
gente pensa ter uma família com meninos tão bonitos
como a sua — acrescentou Lorde Brockehurst.
—Sim, claro. Está você prometido?
—Não, ainda não — respondeu Lorde Brockehurst
rindo—. Claro que ter meninos supõe uma preocupação
e a responsabilidade de lhes dar o melhor. Como se
escolhe a uma boa governanta ou professora, por
exemplo? Sua governanta parece uma dama jovem e
tranqüila. Leva muito tempo com vocês?
—De fato a contratamos recentemente. Estamos
satisfeitos com seu trabalho.
—Deve ser exaustivo comprovar as referências
desses empregados — comentou Lorde Brockehurst—,
para assegurar-se de que a um não enganam em
nenhum sentido.
—Pode ser. Ponho a um secretário contratado para
tal propósito. Conhece a senhorita Hamilton?
—Ah, não, não, embora o nome me resulte familiar.
E a face um pouco também, agora que o menciona.
Acredito que conheço sua família. Parece-me que me
apresentaram isso uma vez.
—Ah, vejo que a senhorita Dobbin vai tocar o
pianoforte. Aproximar-me-ei. Desculpa-me, Brockehurst?
O duque atravessou a habitação para sentar-se
detrás da senhorita Dobbin, pensando que a agitação de
Fleur era provocada pelo Brockehurst. E o homem se
mostrava muito hermético em relação à conexão que
compartilhavam como a própria Fleur.
Ou possivelmente ele mesmo lhe estava dando uma
importância exagerada? E se quão único ocorria era que
ela se envergonhou e preocupado ao ver um homem que
podia reconhecê-la e vê-la no humilde posto de
governanta?
Quem era ela? Quem e o que tinha sido? Ao
princípio não havia sentido um interesse especial pela
garota. Sua história lhe tinha resultado bastante
convincente. Mas se tinha mentido sobre seus pais. Se
seu pai tinha morrido endividado, estava claro que não
tinha sido recentemente. Mas algo tinha ocorrido
recentemente.
E por que lhe importava não sabê-lo? Perguntou-se
alguma vez sobre o passado do Houghton ou de
qualquer de seus outros criados? O passado de Fleur
Hamilton era assunto dela.
Mas por que tinha mentido a respeito de seu pai? Por
que tinha mentido dizendo que não conhecia o
Brockehurst? E o que resultava igual de intrigante, por
que tinha mentido ele dizendo que não a conhecia?
Sem olhar, o duque soube que sua esposa estava
flertando com o Shaw e Thomas.

À manhã seguinte, cedo, Fleur se encontrava na sala


de música tocando Beethoven, mas não o fazia nada
bem. Aquela manhã não tinha tentado nada novo, mas
sim se tinha limitado a tentar acalmar-se, a perder-se no
antigo. Mas a magia a tinha abandonado. Entupia-se,
equivocava-se de nota, perdia-se.
Teria golpeado com as mãos no teclado para
expressar sua frustração se a porta que dava à biblioteca
não se abriu antes, como ocorria de costume — embora
não na manhã anterior—, mostrando durante um instante
a figura de Sua Excelência.
Fleur não tinha dormido em toda a noite. Embora
devesse ter adormecido em algum momento, ou não
teria recordado os pesadelos: o rosto morto e o olhar fixo
do Hobson, o desconforto de viajar em um carro de
cavalos com os punhos atados com cadeias oxidadas
nas costas, a escotilha e saber que debaixo dela estava
o vazio e o ataúde que a esperava, o rosto duro e
marcado em cima dela e as mãos de dedos largos sob
seu traseiro para sujeitá-la, Matthew com uma rosa de
cor fresa atravessando seu rosto morto, o sangue que
brotava da espetada provocada pelo espinho.
Sim, deveria ter adormecido.
Quanto tempo duraria? Quanto tempo mais ficava?
Estava tocando ao Beethoven ou ao Mozart?
Ouviu que se abria a porta do corredor, embora logo
que fez ruído e a porta estava detrás dela. Apartou as
mãos do teclado e as apoiou juntas no regaço. Sabia
quem era. Não teve que voltar-se para olhar.
—Ah, Isabella — ouviu uma voz familiar—. Não,
perdoe-me. Fleur, não é assim?
Ela se levantou e se voltou a olhá-lo. Estava sorrindo,
como estava acostumado a fazer Matthew. Fleur levou
um dedo aos lábios e assinalou em direção à porta
aberta para a biblioteca. Ele assentiu indicando que o
entendia, e a garota foi primeira em sair da habitação.
—Vamos à grama da parte traseira da casa —
assinalou—. Acredito que deixou de chover.
Parecia apropriado que o longo período de tempo
quente e ensolarado se interrompeu em algum momento
da noite. Ao jogar uma olhada pela janela um momento
antes, Fleur tinha visto que havia nuvens baixas e
escuras e a erva brilhava com a garoa que tinha cansado
sobre ela.
E agora resultava estranho ouvir sua própria voz e
notar que soava como de costume.
—Umas poucas perguntas me serviram para
conhecer seus hábitos matutinos — comentou ele.
—Sim. Não são nenhum segredo.
Ela o conduziu à entrada traseira, evitando passar
pelo salão. Não foi procurar uma capa, embora fizesse
frio. Apenas se deu conta.
—Sairei discretamente — disse ela. Passou por
diante dele, atravessou os jardins da cozinha e avançou
um pouco mais, para que Lorde Brockehurst a
alcançasse enquanto caminhava—. Não sei se trouxe
ajuda. Ignoro se tem planejado me prender. Desconheço
a lei. Mas não lhe farão falta. Sairei discretamente.
Inclusive as nuvens eram bonitas. Inclusive a erva
molhada que umedecia os sapatos resultava
maravilhosa. E Fleur recordou a primeira vez que viu
Willoughby e as primeiras semanas que passou ali.
Recordou a sensação otimista de esperança e felicidade
que tinha experiente. Recordou a visita aos Chamberlain
e quando eles a devolveram. Recordou ter passeado por
aquela mesma grama com o senhor Chamberlain,
enquanto os meninos se adiantavam com uma bola.
Recordou os jogos com o cachorrinho no cercado. E
recordou que tinha dançado em um caminho iluminado
por luminárias.
—O assassinato se castiga com a forca, Isabella —
explicou ele.
—Sei. —Sem que fosse consciente, seu passo se
acelerou—. E também sei, ao igual a você, que não sou
uma assassina. O que ocorreu foi um acidente, e se
produziu porque atuei em defesa própria. Mas claro que
isso resultará irrelevante quando falarmos ante o tribunal.
—Pobre Hobson. Só deu um passo adiante detrás de
ti para evitar que te caísse na chaminé, Isabella. Que
desgraça que estivesse furiosa porque me tivesse visto
obrigado a te repreender por seu próprio bem. Agora
estaria vivo.
—Sim. Inclusive agora soa convincente, Matthew. E
fui o bastante estúpida para me deixar levar pelo pânico
e sair fugindo, o qual são ações próprias de uma pessoa
culpada. Qual é o procedimento a seguir? Vão me
prender?
Ele riu.
—Parece que arrumaste isso muito bem por sua
conta, mas poderia ter vindo para casa, Isabella. Não era
necessário que te rebaixasse a ser governanta. Embora
Sua Excelência parece satisfeito com seus serviços. E
deveria está-lo, se foi capaz de pagar a seu homem para
que passasse quatro dias sentado em uma determinada
agência de emprego até encontrar a uma candidata
apropriada.
Ela o olhou pela primeira vez. Matthew continuava
sorrindo.
—É sua amante? Realmente o parecia, Isabella.
—Sou a governanta de sua filha. Ou ao menos o era.
Agora suponho que sou sua prisioneira.
—Mas me romperia o coração se visse seu
encantador pescoço com uma corda ao redor, Isabella. E
possivelmente seja certo e você interpretou mal a
situação e pensou que precisava te defender. Quem sou
eu para julgar seus motivos? Pode ser que afinal tenha
sido um desgraçado acidente.
—O que está dizendo?
Fleur tinha deixado de caminhar e o olhava
diretamente.
—Nada mais que a verdade. Quero te dar o benefício
da dúvida se puder. Sabe que eu te amo, Isabella.
—Poderia jogar a este jogo até o final, mas acredito
que te entendo muito bem, Matthew. Dirá que a morte do
Hobson foi um acidente se aceitar a ser sua amante.
Equivoco-me?
Lorde Brockehurst pôs os braços em jarras.
—Por que adota esse tom tão duro? Vê que levo
pistola? —perguntou o cavalheiro—. Algemas? Cordas?
Vê um agente de polícia ou a um guarda espreitando a
minhas costas? Acredita que te procurei todo este tempo
só para ver como lhe executam? Tão pouco me conhece,
Isabella?
—Fale-me claro — exigiu ela—. Por uma vez na vida,
Matthew, fala clara. Se me negar a ser sua amante,
então o que? Responda-me diretamente.
—Isabella — começou—, eu estou aqui como
convidado. Vim com um velho amigo, Lorde Thomas
Kent, a passar umas semanas em um imóvel que
sempre tinha desejado visitar. Resulta esplêndido,
verdade? E você aqui é governanta. Uma feliz
coincidência. E é obvio temos que falar da desventurada
morte, cujo mistério ainda não se esclareceu porque
fugiu imediatamente depois. Mas não faz falta dizer tudo
o que temos que nos dizer neste preciso momento,
verdade? Não vai a nenhum lugar nas próximas
semanas, e eu tampouco.
—Não. Já sabia que não te convenceria para que
falasse claro. Mas entendo muito bem o que quer dizer.
Afinal de contas, conheço-te quase sempre. Vou viver
com uma ameaça sobre minha cabeça. Pendurar-me-á
como uma marionete de cordas.
—Suponho que já te terá informado de que o
reverendo Booth ficou… mmm… decepcionado contigo?
Acredito que agora a velha senhorita Hailsham é a
afortunada destinatária de seus sorrisos.
Daniel! Fleur levantou o queixo.
—Quando em seu devido momento nos partamos,
Isabella, acredito que estaria bem fazê-lo sem arejar
nossos trapos sujos, por chamá-los assim, ante o duque
e a duquesa, não te parece? E também estou bastante
seguro de que não quererá provocar uma decepção
desnecessária a Sua Excelência quando partir deixando
que albergue falsas esperanças nas semanas que ficam,
verdade? Voltará para casa, claro está, aonde pertence.
—Não se preocupe, Matthew. Não tenho que pôr fim
a nenhuma aventura.
Ele sorriu.
—Então é que o duque tem por costume passear
pela grama da parte de atrás a primeira hora da manhã?
Fleur virou a cabeça bruscamente e se encontrou
com que realmente Sua Excelência estava caminhando
em direção a eles.
— Bom dia — saudou Lorde Brockehurst—. Acredito
que seu parque possui umas vistas magníficas tanto
detrás da casa como diante dela.
Sua Excelência levava uma capa sob o braço. Abriu-
a e a pôs a Fleur nos ombros sem lhe dizer uma palavra.
—Meu avô contratou aos melhores jardineiros de
paisagens — explicou o duque—. Confio em que terá
dormido bem, Brockehurst.
—Seriamente, sim, obrigado. E como deve ter
adivinhado, Sua Excelência, ontem à noite estava no
certo. A senhorita Hamilton e eu nos conhecemos um
pouco e nos dedicamos a nos perguntar sobre a saúde
de nossos respectivos parentes.
—Senhorita Hamilton. —Sua Excelência se voltou
para ela—. Vou dar a seu Pamela primeira lição de
equitação esta manhã, depois do café da manhã. Leve-a
aos estábulos, por favor. Pode retirar-se.
—Sim, Sua Excelência. —A governanta fez uma
reverência sem olhar a nenhum dos dois e voltou
apressadamente para a casa.
Então é que haveria uma espécie de indulto. As
coisas não seriam tão ruins com temeu toda a noite e
durante os meses anteriores. Matthew lhe daria a
liberdade em troca do que tinha desejado os três anos
anteriores. Mas no passado tinha conseguido desdenhar
seus cuidados. Agora devia sentir que a tinha apanhado.
E quem era ela para dizer que não era assim?
Aliviada ao saber que não pensava acusá-la esse dia,
resultava-lhe muito fácil afirmar para seus adentros que
lhe arrojaria sua oferta à cara quando dissesse que já
tinha chegado a hora de que partissem. Conseguia
imaginar-se a si mesmo jogando a cabeça para trás,
olhando-o com desprezo e lhe dizendo que preferia
aceitar a corda antes que a ele.
Mas o faria quando chegasse a hora?
E além disso era uma atuação bastante própria do
Matthew. Assombrava-lhe não haver-se exposto essa
possibilidade antes. Tinha desejado a Fleur muito
intensamente. Era provável que estivesse mais disposto
a enviar à forca do que cedê-la ao Daniel?
Claro. Era estúpida por não ter pensado nisso.
Desabotoou-se a capa distraidamente enquanto
subia as escadas do interior da casa. E a seguir a olhou
dando-se conta de que era sua própria capa. Estava
pendurada em seu armário.
Devia ter mandado a uma criada a procurá-la. Havia-
A trazido e a tinha colocado nos ombros.
E tinha ordenado que levasse a Lady Pamela aos
estábulos com ele depois de tomar o café da manhã.
Assim transcorreria outro dia. Nada de algemas nem
de uma longa viagem de carruagem e uma escura cela
da prisão ao final da jornada. Ao menos ainda não.
Fleur aliviou e acelerou o passo. Transcorreria outro
dia.

Ainda era muito cedo para tomar o café da manhã


quando o duque de Ridgeway entrou com Lorde
Brockehurst. Ainda ficava tempo para fazer uma coisa
mais antes de tomar o café da manhã e sair com
Pamela.
Mandou a um criado a que citasse ao Lorde Thomas
Kent na biblioteca se estava acordado. Devia falar com
seu irmão. Por algum motivo, não era capaz de fugir
como um covarde e não dizer nada.
Recordou a noite anterior adotando uma expressão
séria. Como tampouco podia dormir, fazia algo que
estranha vez fazia. Tinha entrado na habitação de sua
esposa muito tarde. Quase se esperava que a habitação
estivesse vazia e não houvesse ninguém dormindo nela.
Mas ela se encontrava ali e estava acordada. Tinha
febre e tossia, e o observou languidamente quando se
aproximou da cama.
—Não está bem? —tinha-lhe perguntado, tocando a
sua face e vendo que estava seca e ardendo. Tinha-lhe
levado um trapo úmido do lavabo, tinha-o dobrado e o
tinha posto na frente.
—Não é nada — havia dito ela, apartando a face.
O duque ficou olhando-a em silêncio.
—Sybil, quer que parta? Será menos doloroso para ti
se eu for? —tinha-lhe perguntado em voz baixa.
Sybil tinha os olhos abertos. Mantinha o olhar se
separada dele, mas tinha visto que lhe deslizava uma
lágrima pela face e o nariz e lhe caía no lençol.
—Não — havia dito ela.
Nada mais. Só aquela palavra. Ao cabo de um
momento ele partiu da habitação.
A donzela de sua esposa tinha informado aquela
manhã de que Sua Excelência a duquesa se recuperou
da febre.
O duque esperava que depois de uma viagem de
vários dias seu irmão continuasse dormindo. Mas chegou
passeando a biblioteca quinze minutos depois de que o
mandou chamar, com sua habitual expressão sorridente
nos lábios.
—Isto me traz lembranças — comentou, olhando ao
redor—. Muitas vezes viemos aqui, Adam, para fazer
travessuras —riu—. A mim mais vezes que a ti, tenho
que confessá-lo. É por isso pelo que me mandaste
chamar esta manhã?
—Por que voltou? —perguntou o duque.
—Terá que matar ao bezerro para que volte o filho
pródigo —respondeu Lorde Thomas rindo—. Não
aprendeu bem as lições da Bíblia, Adam.
—Por que voltou?
Lorde Thomas encolheu os ombros.
—Suponho que é minha casa. Quando estava na
Índia, Inglaterra era meu lar. E quando voltei para a
Inglaterra, então Willoughby volta a ser meu lar, inclusive
se não for bem-vindo aqui. Às vezes não é bom ser só
meio irmão.
—Sabe que isso não tem nada que ver — Sua
Excelência falou com dureza—. Logo que fomos
conscientes do parentesco de meninos. Simplesmente
somos irmãos.
—Mas naquela época um dos dois não era duque e
temia que o outro esbanjasse parte de sua enorme
fortuna.
—Sabe que isso tampouco me preocupava. Tratei de
te convencer de que ficasse. Queria que ficasse. Queria
compartilhar Willoughby contigo. Pertencia a este lugar.
Foi meu irmão. Mas quando insistiu em partir, disse-te
que não voltasse nunca. E queria dizer nunca.
—Nunca é um tempo muito longo —interveio Lorde
Thomas, dirigindo-se até a chaminé e examinando o
mosaico de leão que havia em cima do suporte—.
Resulta estranho que não fosse capaz de recordar
completamente esta sala quando estava na Índia. Mas
agora me volta tudo. Nada mudou alguma vez em
Willoughby, verdade?
—Não podia deixá-la em paz, não? —espetou o
duque.
—Em paz? —Lorde Thomas se voltou, rindo outra
vez—. Acredita que esteve em paz casada contigo os
últimos cinco anos e meio? Não me parece que seja uma
mulher que desfrute da felicidade conjugal, Adam. É que
não o viu? Segue louco por ela?
—Tinha aceitado o fato de que você tinha ido —
continuou o duque—, de que não voltaria nunca.
—Bom. —Seu irmão se afundou em uma poltrona de
couro e se acomodou colocando uma perna sobre um
braço—. Tampouco parece que esteja muito triste
porque voltei. Não se mostra tão mesquinha ao me dar a
bem-vinda como você.
—E o que vai fazer quando voltar a partir?
—Acaso hei dito que vou partir? —Lorde Thomas
estendeu as mãos—. Pode ser que esta vez fique. Pode
ser que ela não tenha que fazer nada.
—É muito tarde para que fique. Está casada comigo.
—Sim — riu Lorde Thomas—. O está, não é assim?
Pobre Adam. Pode ser que lhe tire isso.
—Não. Isso nunca. Duvido que isso te sirva de nada,
Thomas. Limitará a lhe roubar o coração outra vez.
Voltará a convencer de que a amas, de que para ti o sol
sai e fica nela. E logo, quando te cansar do jogo, a
deixará. Não protegerá a seu coração desse final porque
te acreditará como fez antes e como acreditou desde que
partiu.
—Vejo que assumiste o papel de valente e te jogaste
toda a culpa no assunto. —Lorde Thomas se estava
rindo outra vez—. Não me jogou a cavalaria como quase
me esperava que fizesse. É um idiota, Adam.
—Resulta que a queria muitíssimo — murmurou o
duque—. Teria dado minha vida para aliviá-la da dor.
Sabia que já não poderia me amar, se é que me tinha
amado alguma vez, assim permiti que pensasse que eu
era o vilão. Mas pode ser que já pensasse que o era.
Afinal de contas, voltei vivo e o danifiquei tudo.
—E também se casou com ela — acrescentou Lorde
Thomas—. Suponho que teve bastante sorte de que
Pamela não nascesse com o cabelo vermelho de minha
mãe. Teria sido o bobo de todos. Imagino que agora as
pessoas sorriem a suas costas pensando que voltou
para casa como um garanhão impaciente para montá-la
no estábulo sem se deter sequer a trocar a roupa com a
que tinha viajado ou a te tirar as botas.
—Sim, casei-me com ela — afirmou o duque—. Você
não o teria feito, assim o fiz eu. Não acredito que tivesse
sido capaz de vê-la viver semelhante vergonha embora
para então já não a tivesse querido. Mas nem sequer
teve honra suficiente para te manter afastado dela.
Possivelmente teria que ter insistido em lhe contar a
verdade. Seria mais capaz de proteger-se contra ti.
—Bom. —Lorde Thomas ficou em pé outra vez—,
não o fez porque sempre foste Sir Galahad, Adam. Não
te teria ido à guerra se não o tivesse sido. Pode ser que
faça outro filho a Sybil antes de voltar a partir, se é que
partirei. Possivelmente ele também tenha sorte e não
tenha o cabelo vermelho. Parece um tanto incapaz de
engendrar ao seu próprio herdeiro. Ou deveria me fixar
na silueta da governanta?
O duque deu dois passos adiante, e pôs ao Lorde
Thomas nas pontas dos pés, agarrando-o por lenço e a
parte dianteira da camisa com tanta força que quase
podia estrangulá-lo.
—Poderia te expulsar de minha propriedade —
ameaçou o duque—. Muitos diriam que sou estúpido e
débil por não havê-lo feito. Mas é meu irmão e esta é sua
casa. E fica suficiente carinho pelo Sybil como para não
te apartar de seu lado antes que faça as pazes com ela.
Mas recorda, Thomas. É minha esposa e Pamela é
minha filha, e defenderei o que é minha da vergonha e a
dor desnecessária. E também deveria saber que meus
criados, incluída a governanta de Pamela, estão sob meu
amparo, e os protegerei de qualquer modo que considere
necessário.
Quando o soltou, seu irmão meneou a cabeça para
afrouxar o pescoço da camisa, e se arrumou o lenço
enrugado tremendo um pouco.
—Vim porque passei mais de cinco anos longe da
Inglaterra e do Willoughby —afirmou Lorde Thomas—.
Sentia falta de meu lar. Deveria recordar o que é isso,
Adam. Pensava que teria esquecido e perdoado. Parece
que me equivocava. Possivelmente deveria partir sem
mais demora.
Seu irmão o observava intensamente, com os lábios
apertados.
Lorde Thomas riu.
—Mas me esquecia que trouxe o Bradshaw. Seria de
muito má educação arrastar o de volta sem que tenha
transcorrido nem sequer um dia desde nossa chegada,
não te parece? Ficarei um tempo. —Fez uma reverência
descuidada a seu irmão e saiu da habitação.
Sua Excelência se afundou na poltrona que havia
detrás da mesa de mogno, apoiou os cotovelos nos
braços do assento, e juntou as gemas dos dedos sob o
queixo.
Já sabia que falar com o Thomas não serviria de
nada. Mas albergava a esperança de poder apelar a um
certo sentido da honra do que não tinha carecido quando
eram jovens. Embora se levassem cinco anos sempre
tinham sido bons amigos. E se poderia ter esperado que
a egoísta ausência de sentido da responsabilidade da
que sempre se queixava seu pai desaparecesse ao
chegar à idade adulta e alcançar a maturidade. Em
qualquer caso, já era muito tarde para que seu irmão se
limitasse a dar a volta e partir. Era muito tarde para Sybil.
Havia tornado a vê-lo, e todas as velhas feridas deviam
estar abertas e em carne viva de novo.
O duque era plenamente conscientemente de que
Sybil nunca tinha deixado de amar ao Thomas. Nunca
havia sentido nada por seu marido nem pelos amantes
ocasionais que procurou desde que se casaram. Thomas
era o amor de sua vida.
Adam não sabia nem o suspeitava sequer durante
aqueles meses, quando voltou da Espanha, apaixonou-
se por ela e se prometeram. Parecia bastante disposta.
Mais ainda, parecia inclusive desejosa e havia dito que o
amava. Tinha-lhe permitido que a beijasse e a
acariciasse.
Mas era o duque de Ridgeway e já tinha a reputação
de ser uma espécie de herói. E os pais de Sybil tinham
ambições postas em sua filha: sempre tinham pensado
que seria para ele.
O duque não suspeitou, embora ela o dissesse mais
adiante, em uma das múltiplas ocasiões nas que tinha
querido lhe ferir, que já então amava ao Thomas, e o
amava desde dia em que o conheceu.
Só soube quando voltou o ano depois do Waterloo,
quando a encontrou prometida ao Thomas e ficou
horrorizada ao vê-lo. Teria se casado com o Thomas
embora já não fosse o duque ou o dono do Willoughby.
Amava-o loucamente.
Mas Thomas, que se teria casado com ela se tivesse
sido o duque de Ridgeway, como parte dos troféus que
tinha herdado inesperadamente de seu irmão
assassinado, já não quis fazê-lo quando voltou a ser
Lorde Thomas Kent.
Mas não o disse ao Sybil. Converteu-se em seu
amante e lhe jurou amor eterno. Deixou-a grávida. E
partiu apressadamente depois que ela o disse.
Thomas disse a seu irmão que se ia e seu motivo
para fazê-lo. Não o disse ao Sybil.
«Que Deus dele tenha piedade», pensou o duque,
fechando os olhos e apoiando a frente contra as gemas
dos dedos juntas. Fez tudo o que pôde para convencer
ao Thomas de que ficasse. Amava tanto ao Sybil que era
incapaz de suportar a só idéia da dor que sentiria quando
Thomas a abandonasse e do apuro no que se
encontraria. Mas Thomas partiu.
Quando Sybil se apresentou com seu pai dois dias
mais tarde, o duque disse que Thomas havia ido embora.
Não deu nenhum motivo. E quando ela o acusou de
expulsar a seu irmão porque não havia lugar para os dois
em Willoughby, ele se limitou a menear a cabeça e não
apresentou nenhum outro argumento em sua defesa.
Sentia-o muitíssimo por ela. E desse modo Sybil chegou
a acreditar em sua própria teoria.
Uma semana mais tarde, Adam visitou o Sybil e lhe
propôs matrimônio. Repetiu a visita três dias até que ela
o aceitou, com o rosto lívido e o olhar mortiço.
Estava grávida de três meses quando se casaram. E
já então Adam soube que tinha feito errado, que deveria
ter contado toda a verdade, e haver obrigado a escutá-la,
por mais doloroso que fosse para ela. Tinha direito de
saber a verdade. E só a verdade poderia ter devotado a
seu matrimônio alguma possibilidade de êxito. Mas
naquela época estava totalmente apaixonado por Sybil, e
sentia muita compaixão por ela. Teria preferido morrer
antes que a provocasse uma dor desnecessária.
E agora tinha permitido que Thomas voltasse, a sua
vida e a de Sybil.
Acaso estava louco?
Bruscamente, apartou a poltrona de seu escritório e
ficou em pé. Devia ser a hora de tomar o café da manhã.
Teria que entreter aos convidados, dar a aula de
equitação a Pamela e superar outro dia mais.
Não conseguiria absolutamente nada ficando
sentado e amargurando-se.

Capítulo 12

Fleur viu que Sua Excelência a olhava mudo e


impaciente quando levou a uma reticente Lady Pamela
aos estábulos depois de tomar o café da manhã. O
duque tinha a bota apoiada na travessa interior do
cercado, e se golpeava ritmicamente na perna com a
vara. Levava a cabeça descoberta e tinha um aspecto
muito sombrio e sério com seu casaco de montar negro.
—Ah, por fim chegaste — exclamou, baixando o pé
ao chão.
Fleur fez uma reverência e soltou a mão de lady
Pamela, depois do qual se voltou outra vez para a casa.
—Posso montar contigo ao Aníbal, papai? —
pergunto a menina.
—Tolices — respondeu ele impaciente—. Desse
modo nunca aprenderá a montar, Pamela. Tem cinco
anos já é hora de que montes sozinha. Aonde vai,
senhorita Hamilton?
— A casa, Sua Excelência —respondeu a
governanta, voltando-se outra vez—. Deseja que faça
algo mais?
O duque a olhava molesto.
—Onde está sua roupa de montar? —perguntou
olhando a capa e o vestido de algodão verde claro que
levava debaixo.
—Não tenho, senhor.
—Botas?
—Não, Sua Excelência.
—Então por hoje terá que arrumar-se como está
vestida —explicou ele—. Apresente-se no escritório do
Houghton amanhã pela manhã. Fará os preparativos
para que tomem medidas no Wollaston para o traje e as
botas.
Olhando por cima do ombro do senhor, Fleur viu que
havia dois cavalos e um pônei, todos selados, trotando
pelo cercado sob o cuidado de um moço. E ela também
poderia montar? De repente o dia de seu indulto
temporário se converteu em algo novo e maravilhoso. De
repente parecia que o sol tinha saído de entre as nuvens.
—Não me diga que também lhe dão medo os
cavalos. —O duque mantinha a expressão carrancuda.
—Não, Sua Excelência. —Fleur não pôde reprimir
um sorriso. Levantou a vista para as nuvens e sentiu que
a banhava a luz do sol. Teria dado um giro de alegria se
tivesse estado sozinha—. Não, não tenho medo dos
cavalos.
—Montarei com você, senhorita Hamilton —
anunciou Lady Pamela.
—Montará sozinha — afirmou seu pai—. Esse pônei
é muito submisso e afável para te derrubar, até no caso
de que lhe passasse pela cabeça. Montará a meu lado e
eu sujeitarei a rédea principal. A senhorita montará ao
outro lado. Estará tão segura como em sua própria
cama.
Fleur se agachou e pôs as mãos frias da menina nas
suas.
—Montar a cavalo é a sensação mais maravilhosa do
mundo — explicou—. Estar no alto do lombo de um
animal que se move de maneira muito mais segura e
rápida que nós… Não existe uma sensação mais forte de
liberdade e alegria.
—Mas mamãe diz que poderia me romper o pescoço
—gemeu Lady Pamela—. Quero ficar aqui com a
Pequenina.
—Pode romper o pescoço se subir de um modo
temerário —explicou Fleur—. Por isso seu pai vai estar
com você, para lhe ensinar a montar como Deus manda.
Ele não deixará que caia, verdade? E eu tampouco,
verdade?
Lady Pamela seguia tendo reservas, mas permitiu ao
duque que a levasse em braços ao cercado e a sentasse
na cela no lombo do pônei. Fleur fez um gesto ao moço
para que lhe ajudasse a subir ao lombo da égua marrom
de cabelo murcho e brilhante.
Os três começaram a deslocar-se lentamente pela
zona de grama de atrás durante quase meia hora. Lady
Pamela ia flanqueada pelo duque em um lado e Fleur no
outro. O terror foi desaparecendo gradualmente do rosto
da menina. Para quando voltaram para os estábulos,
estava extremamente contente pela sensação de triunfo,
e em voz alta quis saber se a moço ao que seu pai tinha
chamado a tinha visto.
—Assim é, senhorita — afirmou o moço, levantando-
a e deixando-a no chão—. Antes de nos darmos conta já
montará para uma caçada.
—Na próxima vez quero um cavalo de verdade —
pediu a menina, levantando a vista para seu pai.
—Deixe que Lady Pamela brinque com o cão um
momento, Prewett — ordenou o duque—, e logo
acompanhe a casa e leve-a para sua babá. —voltou-se
para o Fleur e fez um contundente gesto afirmativo com
a cabeça—. Vamos cavalgar.
Fleur abriu os olhos. Não só o fato de que ele fora a
ser seu acompanhante podia arruinar a beleza e a
maravilha inesperada daquela manhã. Com a filha e o
pai ia muito devagar. Agora podia cavalgar livremente?

Enquanto levava a seu cavalo ao meio galope e


ouvia que a égua acelerava o passo, o duque de
Ridgeway se perguntou se tinham acontecido só duas
noites desde que decidiu deixar de vê-la.
Uns quantos cavalheiros se foram a pescar. Muitas
damas se foram ao Wollaston. Havia-lhes dito ao
Treadwell e Grantsham que provavelmente os
acompanharia na sala de bilhar depois de lhe dar a sua
filha uma lição de equitação.
Que estúpido tinha sido por sua parte esperar que
chegasse aos estábulos com a roupa de montar e as
botas. Quando a contratou, tinha dado instruções ao
Houghton para que a desse dinheiro suficiente para que
comprasse o vestuário básico. Houghton teria
encarregado de que houvesse dinheiro suficiente só para
isso. Não teria dado nenhum extra para roupa de montar
ou botas.
Custava-lhe adaptar seu pensamento a algumas das
circunstâncias da pobreza.
O duque se perguntou se teria permitido essa hora
mais se não lhe tivesse sorrido. Claro que em realidade
não tinha sorrido para ele, a não ser ante a perspectiva
de montar. Estava claro que antes o tinha entendido mal
e tinha assumido que quão único tinha que fazer era
levar a Pamela aos estábulos.
Era a primeira vez que tinha visto que lhe sorria
quase diretamente. E tinha sido um sorriso completo,
que lhe iluminava a face, e que convertia sua beleza em
algo deslumbrante. Teria jurado que todos os raios do sol
se dirigiram a seu rosto quando o tinha elevado em
direção ao céu, embora as nuvens ainda fossem baixas
e escuras.
Ficou-se deslumbrado, simples e sinceramente, E
enquanto conduziam a Pamela lentamente por uma das
zonas de grama que ficavam entre eles, tinha decidido
que se tanto gostava de montar a governanta, ele a
levaria a montar.
O duque voltou a olhar por cima do ombro e viu que
a garota não estava nada alterada pelo ritmo que ele
tinha marcado. Era evidente que aquela mulher tinha
nascido para ser amazona. Adam esporeou ao Aníbal
para que fosse a todo galope.
Sybil odiava montar. Sempre dizia que preferia que a
transportassem de forma segura de um lugar a outro. Ele
estava acostumado a montar sozinho.
Fleur o alcançou, e o duque percebeu de repente,
surpreso, mas animado, de que o estava desafiando
para uma corrida. Fleur voltou a mostrar um sorriso
deslumbrante, e essa vez o dirigiu diretamente a ele. O
duque aceitou o desafio.
Correram de maneira temerária pela plaina extensão
do parque. Claro que a égua não podia comparar-se com
o Aníbal, mas às vezes permitia ficar ao seu nível e
adiantar-se antes de voltar a liderar a corrida. Ela
conhecia muito bem seu jogo, mas não se rendia. Estava
rindo.
De repente, o duque girou a sua esquerda, dirigindo-
se diretamente para o muro coberto de hera que
separava o extremo sul do parque de um prado. Sim, aí
estava a porta. Era um jogo perigoso. Já sabia quando
fez saltar a seu próprio cavalo e ao de Fleur por cima
dela, mas se deixou levar pela intensidade insensata da
corrida.
Voltou a afrouxar as rédeas do Aníbal logo que
transpassou a porta e viu que a égua saltava com passo
firme. Fleur se inclinou sobre o pescoço do animal. Já
não estava rindo quando com mãos peritas fez diminuir o
passo da égua e a levou junto ao Aníbal, inclinando-se
para frente para lhe dar umas tapinhas no pescoço. Mas
seu rosto brilhava de uma maneira tão bonita e animada
que fez que a respiração do duque cortasse na garganta.
Fleur não levava chapéu. Muitos dos alfinetes que lhe
sustentavam o cabelo no coque de sempre pareciam
haver-se caído pelo caminho. A cabeça de Fleur parecia
rodeada de um halo dourado.
—Sofreu uma derrota ignominiosa, admita-o —
comentou o duque.
—Mas você escolheu meus arreios — protestou ela
—, e escolheu deliberadamente uma coxa de três patas.
Admita-o.
— Estou tocado! —exclamou ele, rindo—. Devemos
suspender as hostilidades. Subiu esplendidamente.
Montou em caçadas?
—Não. Sempre me deu muita pena a raposa ou o
cervo. Só monto por prazer. Há muito campo aberto ao
redor do Her… — se deteve bruscamente—. Ao redor do
lugar onde vivia antes.
—Isabella… — murmurou ele.
Os olhos dela se dirigiram de repente a seu rosto, e o
duque desejou nesse mesmo instante poder retirar
aquela palavra. Era como se fechasse uma porta diante
do rosto dela. A magia, a magia amalucada da passada
meia hora, tinha desaparecido.
—Meu nome é Fleur — o corrigiu.
—Hamilton? Isso também é discutível? —Ele a
olhava com os olhos entrecerrados.
—Meu nome é Fleur — repetiu ela.
—Dado que conhece muito pouco ao Lorde
Brockehurst, é compreensível que ele não recordasse
bem seu nome.
—Sim…
—E bastante surpreendente que o utilizasse… se
conheciam tão pouco.
O olhar dela refletia angústia, ao igual à noite anterior
quando lhe tinha aproximado na ponte. E o duque ficou
furioso consigo mesmo pelo que estava fazendo. Acaso
era assunto dele? Embora tivesse um passado
misterioso, embora vivesse sob um nome falso, era
assunto dele? Estava fazendo um trabalho excelente
como governanta e parecia preocupar-se com Pamela.
Mas e o da Isabella? Não queria pensar nela como
em outra pessoa que não fora Fleur.
Os cavalos foram lentamente ao passo seguindo o
muro, e giraram quando este discorreu em paralelo ao
lago situado a menos de dois quilômetros ao norte.
—Conhece-o muito bem, não é assim? —insistiu o
duque.
—Apenas. Não o reconheci até que se apresentou
esta manhã.
—Acossou-a no passado? Tem medo dele?
—Não!
—Não tem por que. Está em minha propriedade, é
minha empregada e está sob meu amparo. Se a acossou
ou ameaçou, diga-me isso agora, Fleur, e partirá antes
que chegue a noite.
—Apenas o conheço — repetiu ela.
Tinham chegado a outra porta do muro. O duque
desceu de seu cavalo e a abriu. Fechou-a de novo detrás
deles quando voltaram a entrar no parque, entre as
árvores que se estendiam até a borda sul do lago.
—Viu os caprichos daqui? —perguntou ele.
—Não.
O duque os assinalou ao passar por diante: um arco
de triunfo que não conduzia a nenhuma parte, uma gruta
nemorosa que nunca tinha albergado nem ninfas nem
pastores, um templo em ruínas…
—Todos eles oferecem uma vista pitoresca do lago
quando se aproxima deles — comentou o duque—. O
senhor William Kent sabia como obter um efeito
espetacular.
Enquanto se dirigiam lentamente para a casa do
lago, ele ficou a lhe falar da Espanha e do exército que
cruzou os Pirineos para o sul da França. O fazia
pergunta discretas e inteligentes. Ele não estava seguro
de como tinha saído o tema.
O duque lamentava mais do que era capaz de
expressar que esses momentos mágicos fossem tão
breves. Desejava ter reprimido sua curiosidade sobre a
identidade e a história da garota, ou ao menos havê-lo
deixado para outra ocasião.
Durante essa meia hora se havia sentido mais feliz e
despreocupado do que se sentiu em anos. E ela
resultava mais bonita e desejável que qualquer outra
mulher que tivesse conhecido jamais. Brilhava-lhe a face,
o cabelo avermelhado despenteado lhe enquadrava o
rosto e caía parcialmente pelas costas. E todos os seus
olhares e seus sorrisos tinham sido para ele.
Enquanto entravam em estábulo e se apressava a
chamar um moço para que a baixasse ao chão, pensou
melhor que a manhã se desenvolveu tal e como o tinha
feito. Tinham obrado mal e tinham feito algo perigoso.
Sentia-se tentado como já se havia sentido a primeira
vez que a viu fora do Drury Lane.
Agora era a governanta de Pamela, sua criada.
Como havia dito antes, estava sob seu amparo. Era seu
dever proteger a da lascívia, não dirigir ele mesmo o
ataque.
—Diria que Pamela desfrutou de suas breves férias
—comentou o duque.
—Sim — afirmou Fleur—. Temos que começar com
as aulas cedo pela tarde.
Ficou de pé com ar vacilante, observando-o.
—Tenho que comentar alguns temas com o moço
principal — mentiu ele—. Pode voltar para a casa,
senhorita Hamilton.
—Sim, Sua Excelência. —Fleur fez uma reverência e
se voltou para partir.
O duque ficou olhando-a enquanto partia,
perguntando-se se a vida oferecia alguma vez a
felicidade em algo mais que em pequenas e muito
breves doses.

A aula de francês tinha ido muito bem, igual a aula de


história, ou melhor dizendo a história de história. Quando
Fleur agarrou o globo terrestre grande de sua prateleira
para a aula de geografia, Lady Pamela queria saber
onde estava a Índia.
—Meu tio Thomas esteve ali — afirmou a menina, e
marcou com o dedo seguindo as indicações de Fleur a
larga rota marítima que seu tio devia ter tomado para
voltar para a Inglaterra.
»Eu não gosto de meu tio Thomas — acrescentou
Pamela com franqueza.
—Por quê? —Fleur deu a volta ao globo para que a
Índia voltasse a ficar diante delas—. Só o conhece de um
dia, e estava cansada.
—Não gostou dele — insistiu a menina—. Ri de mim.
—Isso deve ser porque não está acostumado às
meninas —explicou Fleur—. Algumas pessoas não
sabem como falar com os meninos. Dão-lhes um pouco
de medo.
—Disse que não me parecia com mamãe. Que era
igual a papai. Eu gostaria de me parecer com mamãe.
Todo mundo gosta da mamãe.
—E acredita que não a quer todo mundo porque é
morena como seu papai? —perguntou Fleur—. Acredito
que se equivoca. As pessoas morenas são muito
atraentes. Sua ta tara ta tara avó era muito morena e
muito bonita. Recordou a você quando vi seu retrato no
piso de abaixo faz uns dias.
Os olhos escuros a olharam adotando uma
expressão crítica.
—Isso o diz você — protestou Lady Pamela.
—Igual deveria vê-lo por si mesma — sugeriu Fleur
—. E possivelmente deveria começar a familiarizar-se
com a família de seu papai. Remonta a centenas de
anos, muito antes que seu papai ou você existissem
sequer.
Fleur sabia que a maioria das damas, incluída a
duquesa, seguiam no Wollaston. Sua Excelência o
duque tinha saído a cavalo com vários cavalheiros para
ver suas granjas, embora fizesse uma hora que se pôs a
garoar outra vez. Seguro que não havia nenhum
problema em levar a Lady Pamela à galeria alargada, tal
e como Sua Excelência tinha desejado que fizesse em
alguma ocasião.
Primeiro observaram o retrato de Vão Dyck da dama
morena que tinha sido duquesa de Ridgeway, rodeada
por sua família, incluído o duque, e pelos cães da família.
—É muito bonita — exclamou Pamela, aferrando-se
à mão de Fleur—. De verdade me pareço com ela?
—Sim. Acredito que se parecerá muito a ela quando
for maior.
—Por que usam os homens um cabelo tão estranho?
—perguntou a menina.
Examinaram o cabelo, as barbas e as roupas de
seus antepassados para fixar-se no muito que tinham
mudado as modas com o passar dos anos. Lady Pamela
riu quando Fleur explicou que até a poucos anos, os
homens estavam acostumados a usar peruca.
—E as damas também — acrescentou a governanta
—. A avó de seu papai usava uma peruca grande e a
empoeirava até que ficava branca.
Deslocaram-se pela galeria para fixar-se no retrato
feito pelo Reynolds de um antepassado muito mais
recente e demonstrar assim o que estava explicando.
Era uma classe informal sem nenhum plano nem
objetivo particular, mas sem dúvida a menina estava
interessada. Fleur o notava. Devia levá-la cada vez que
soubesse que não as foram interromper. Esforçar-se-ia
em obter que Lady Pamela não se criasse com uns
conhecimentos tão escassos do passado como os que
tinha ela mesma.
Mas a menina se cansou em seguida de examinar
quadros antigos.
—O que há nesses armários? —perguntou,
assinalando.
—Acredito que seu pai comentou que havia
brinquedos antigos e jogos aos que seu tio Thomas e ele
jogavam nos dias de chuva.
—Como hoje. —Lady Pamela se agachou para abrir
uma das portas. Tirou um peão e duas cordas, e voltou a
guardar o peão. Já tinha um no quarto. Agarrou uma das
cordas e a desenroscou de suas pesadas alças de
madeira—. O que se faz com isto?
Fleur se sentiu um pouco incômoda. Tinham-lhe
permitido levar a Lady Pamela a ver as pinturas, mas
não se havia dito nada respeito para permitir brincar ali.
Mas já tinha chegado a hora de terminar as aulas do dia,
e não podiam sair outra vez devido ao mal tempo.
—Pula-se com elas —explicou Fleur—. Sujeitas cada
extremo em uma mão e dá voltas à corda por cima da
cabeça. Tem que pular por cima quando tocar o chão.
—Ensine-me — exigiu Lady Pamela, entregando
uma das cordas.
—Por favor — disse Fleur automaticamente.
—Por favor, boba — repetiu a menina.
Lady Pamela demorou um momento em captar a
idéia de girar as mangas em vez de deter-se cada vez
que conseguia saltar a corda. Mas finalmente conseguiu
saltar três vezes seguidas antes que lhe enredasse a
corda nos pés.
—Como pode fazê-lo tantas vezes? —perguntou- a
menina a Fleur zangada.
Fleur riu.
—É questão de prática. Igual a com o pianoforte.
Embora, rindo outra vez, deu-se conta de que era
uma resposta ridícula. Deviam ter acontecido quinze
anos da última vez que saltou à corda.
—Encantador — ouviu uma voz lânguida procedente
da soleira da porta, tão afastado que nem Fleur nem
Lady Pamela tinham ouvido abri-las portas—. Duas
meninas felizes, não lhe parece, Kent? Ah, mas não,
uma delas se transforma na senhorita Hamilton, agora
que me pus o monóculo.
Fleur sentiu que se ruborizava. Lorde Thomas Kent e
Sir Philip Shaw se dirigiam para elas pela galeria. Sir
Philip levava o monóculo pego ao olho. Fleur enrolou
apressadamente a corda.
—Estou pulando — anunciou Lady Pamela.
—Já o vejo. —Lorde Thomas as observou com uma
expressão zombadora no olhar e piscou os olhos para
Fleur—. Como está minha sobrinha favorita hoje? Pode
saltar por toda a galeria?
—Não acredito — respondeu Lady Pamela.
Ele tirou uma moeda do bolso e se agachou diante
dela.
—Isto é teu se o conseguir.
Lady Pamela respirou fundo e se foi deslocando a
toda velocidade pela galeria, tropeçando com a corda
cada poucos passos. Ambos os cavalheiros riram
enquanto a viam saltar.
—Esqueceu de lhe dizer que tem que fazê-lo sem
tropeçar nenhuma vez — assinalou Lorde Thomas, e se
aproximou, rindo, a ela.
—Que imagem mais encantada — comentou Sir
Philip a Fleur—. Lamento profundamente me haver
precipitado. Fazia muito tempo que não via um par de
tornozelos tão estilizados.
Fleur se agachou sem responder e voltou a guardar a
corda no armário. Tinha parecido que o cavalheiro se
insinuava quando tinha dançado com ele a noite do baile.
Quando se levantou, Sir Philip se encontrava diante dela,
com uma mão apoiada na parede e olhando-a
intensamente.
—Onde se esconde quando não está com a menina,
querida? —perguntou Sir Philip—. Acima?
Fleur sorriu um instante e fez que Lady Pamela
voltasse dando saltos outra vez pela galeria.
—Deve sentir-se só aí acima — sussurrou ele, e se
inclinou para lhe beijar o lado do pescoço.
—Não o faça — afirmou Fleur.
Mas a esperada interrupção chegou de um modo
inesperado. Duas damas tinham entrado pelas portas
abertas da galeria. Uma delas era a duquesa.
—Ah, querida — exclamou, agachando-se para beijar
a sua filha enquanto Sir Philip se deslocava para
examinar uma das pinturas—. Com que te está fazendo
amiga do tio Thomas, verdade?
—Vê, mamãe? —Lady Pamela levantou a moeda—.
Posso pular. Ensinar-lhe-ei isso.
—Em outro momento, querida — a freou Sua
Excelência, endireitando-se—. Senhorita Hamilton, pode
fazer o favor de levar a minha filha ao piso de acima com
sua babá, e logo me esperar em minha sala?
—Temo-me que o dragão se zangou — murmurou
Sir Philip sem deixar de olhar o quadro—. Quando sorri e
fala tão docemente é quando mais furiosa fica. Minhas
desculpas mais abjetas, querida. O compensarei em
outra ocasião.
Fleur percorreu a metade da galeria com o queixo
alto, mas olhava ao chão. Fez uma reverência, tirou- a
corda de Lady Pamela, agarrou-lhe uma das mãos e a
tirou da sala.
—Mas mamãe! —gemeu a menina—. Quero lhe
ensinar isso. —Era um jogo proibido, Sybil? —a voz
zombadora de Lorde Thomas começou a falar quando
Fleur já não podia ouvi-lo—. Que escândalo.

Fleur ficou de pé em silencio detrás da porta da sala


da duquesa durante meia hora, na qual passou cinco
minutos ouvindo tosses no vestidor do lado. Finalmente a
porta se abriu e entrou Sua Excelência. Atravessou a
habitação até um pequeno escritório sem nem sequer
olhar em direção a Fleur e agarrou uma carta que havia
nele. Fleur permaneceu de pé cinco minutos inteiros
mais enquanto a lia. Então a duquesa deixou a carta e se
voltou a olhar lentamente a Fleur de acima a abaixo.
—Fulana — sussurrou brandamente.
Fleur a olhou sem perder a calma.
—Quem a autorizou a estar na galeria? —perguntou
a duquesa.
—Sua Excelência.
—Desculpe? —sua voz seguia sendo suave, seu
rosto parecia delicado e surpreso.
—Sua Excelência o duque, Sua Excelência.
—E quem autorizou a minha filha a brincar com os
brinquedos que havia ali?
—Eu, Excelência.
—Já vejo. —A duquesa agarrou um livro de um
tamborete e se sentou com elegância no divã.
Fleur ficou de pé e em silêncio vários minutos mais
enquanto Sua Excelência passava as páginas.
—Tem por costume deixar que a toque qualquer
homem que conheça? —perguntou a duquesa, olhando-
a finalmente. Sua voz doce expressava curiosidade.
—Não, Sua Excelência.
—Não está satisfeita com o salário que lhe paga?
—Sim, obrigado, Sua Excelência — afirmou Fleur—.
Estou muito satisfeita.
—Pensava que possivelmente era pelo dinheiro —
continuou a duquesa—. Entendo que para algumas
criadas deve resultar tentador incrementar o salário
dessa maneira. Em seu caso parece que simplesmente é
você uma fulana.
Fleur não disse nada.
—Não lhe desejo nenhum mal — esclareceu
duquesa—. Você é o que é, senhorita Hamilton.
Possivelmente tenha tido má sorte ao ter a uma senhora
tão sensível. Mas não posso suportar pensar que está
perto de minha filha e lhe influa. Espero que manhã pela
manhã cedo o senhor Houghton me relate que lhe
entregou sua demissão. Lamento ter que fazer
semelhante petição. Pode partir.
—As cuidados do Sir Philip Shaw não foram
solicitados nem desejados — explicou Fleur—. Não
acredito que tenha motivos para suspeitar de mim com
nenhuma outra pessoa.
A duquesa deixou cuidadosamente o livro a um lado
e jogou uma lenta olhada pela sala, levantando as
sobrancelhas.
—Rogo me desculpe — começou com uma leve
risada—, mas há alguém mais nesta sala?
—Falo com você, Sua Excelência.
—Comigo? —A duquesa a olhou e sorriu—. Tem a
mania de não identificar à pessoa com a que fala,
senhorita Hamilton. Informei-lhe que podia retirar-se, não
é assim?
Mas a porta do vestidor se abriu antes que Fleur
pudesse voltar-se, e Lorde Thomas Kent entrou.
—Segue aqui, senhorita Hamilton? — comentou ele
—. Deve estar a ponto de cair. Não a ofereceste assento,
Sybil? Que descortês por sua parte.
Seu olhar seguia sendo zombador.
—Pode partir, senhorita Hamilton — repetiu Sua
Excelência.
—Da sala? —perguntou Lorde Thomas—. É obvio.
Mas não da casa, espero. Minha cunhada tem um
caráter muito volátil, senhorita Hamilton. Mas não é
vingativa uma vez que se acalmou. Acredito que seguirá
tendo trabalho ao final do dia. Mais vale que se mova
agora antes de cair. Acredito que leva quase toda a hora
de pé no mesmo lugar.
Lorde Thomas sorriu enquanto se voltava e saía da
sala.
Fleur pensou que possivelmente deveria se demitir,
assumindo que de todos os modos tivesse alguma
possibilidade de eleição nesse assunto. Talvez devesse
partir antes inclusive da manhã. Antes inclusive de jantar.
Mas se partisse, Matthew pensaria que estava
fugindo dele. E essa vez iria atrás dela e a prenderia e a
levaria a prisão. O indulto temporário resultaria ser
realmente temporário.
Além disso, inclusive se obtinha que não a
apanhassem, o que faria? Não tinha dinheiro nem
referências. Encontrar-se-ia em uma situação
terrivelmente familiar, só que esta vez saberia como
devia terminar.
Fechou a porta do quarto com chave e se deitou de
barriga para baixo na cama.
Estava tão eufórica fazia só umas horas! Havia
sentido o ar fresco, o espaço aberto e a maravilhosa,
maravilhosa liberdade. E logo o passeio a cavalo e a
absurda felicidade que tinha experimentado pela
amalucada e perigosa corrida. Apesar de que ele a
acompanhava, tinha sido mais feliz do que podia
recordar em anos. Inclusive mais feliz que no baile. Sua
felicidade com o Daniel tinha sido mais tranqüila e menos
vibrante.
Daniel! Não devia pensar nele. A dor da
desesperança reprimida voltaria insuportável se permitia
pensar nele.

—Thomas! —exclamou a duquesa de Ridgeway


indignada—. Isso foi intolerável! Minaste minha
autoridade, e as pessoas não estão acostumadas a me
levar a sério de todas as maneiras porque sou pequena
e delicada.
—Está zangada comigo? —Ele se inclinou e a beijou,
deslizando a língua em sua boca e jogando-a para trás e
pondo a de lado até que ficou tendida no divã—. Quer
brigar comigo? Pegar-me? Venha, vamos—-riu dela.
—Digo-o a sério — protestou ela, e levantou uma
mão para desenhar a linha de sua mandíbula—. Armei-
me com cuidado para ser estrita, e arruinaste totalmente
o efeito.
—O que tem feito a pobre garota? Permitir a um
convidado aborrecido que provasse seus lábios? Parece-
me que Shaw já é bastante lascivo por si, Sybil. Sem
dúvida ele foi o sedutor e ela a seduzida, embora
desfrutasse do que estava recebendo. E as pessoas não
podem reprovar seu gosto. É uma garota bonita. —
Thomas riu ao ver a face que punha Sybil—. Ou o seria
para um homem que não estivesse louco por ti, claro.
—Está-o? —perguntou ela, passando um braço pelo
pescoço.
—Louco por ti? —A expressão zombadora se
desvaneceu de seu olhar—. Sabe que não houve outra
que não fosse você, Sybil, e nunca a haverá. —E a
seguir a beijou larga e profundamente.
—É uma mulher de moral dissoluta — insistiu Sybil
—. De verdade que tem que ir-se. Afligia-me ter que
despedi-la, mas tenho feito o que sabia que tinha que
fazer.
—Não me há dito que é de Adam? —sorriu Lorde
Thomas ao lhe afrouxar o vestido por um ombro—. Deixe
que se divirta com ela, Sybil. Eu posso te consolar. Ou é
que está ciumenta?
—De Adam? —Sybil o olhou surpreendida —. E de
uma governanta? Acredito que posso ser algo melhor
que uma mulher ciumenta, Thomas. Mas não me parece
bem que pratique sua libertinagem aqui.
—Deixa-os em paz. E deixa ao Shaw que tome
também se o desejar. E ao Brockehurst. Esses dois
estavam passeando pela grama da parte traseira esta
manhã cedo e pareciam enfrascados em uma
conversação. Adam interrompeu seu flerte. —Lorde
Thomas riu—. Deixa que Adam se preocupe de proteger
sua pequena propriedade. E eu me preocuparei de
proteger a ti.
—OH, Thomas! —exclamou ela, jogando os dois
braços ao redor do pescoço e fazendo que baixasse a
cabeça até seu ombro—. Não tem graça. Isto não tem
nada de divertido. O que vamos fazer?
—Paciência — a tranqüilizou—. Algo acontecerá.
—Mas o que? Estou casada com ele. Isso não
mudará alguma vez. Ah, por que não me levou contigo
quando foi? Teria ido aos limites da terra contigo. Teria
que havê-lo sabido. Não me teria importado.
—Não podia — explicou ele com delicadeza—. Não
poderia te haver levado a incerteza de meu futuro, Sybil,
especialmente em seu delicado estado. Não podia te
fazer isso. Teria sido muito cruel.
—E acaso não foi cruel me deixar tal e como estava?
—perguntou.
—Sshh —a conteve—. Tudo sairá bem, já o verá.
Alguma vez passa alguém por alguma destas portas
abertas sem prévio aviso?
—Não. Mas não o faça, Thomas. Tenho medo.
—Não o tenha. —ficou em pé e a olhou—.
Parecemos o um para o outro, Sybil, e sabe. Fecharei as
portas e então pode ser que se sinta segura.
Uma vez realizada essa tarefa, deitou-se junto a ela
no estreito divã e a beijou, levantando a saia de
musselina de seu vestido com uma mão enquanto o
fazia.
—Thomas! —gemeu ela, com os dedos enroscados
no cabelo dele—. OH, Thomas, passou tanto tempo!
Quero-te tanto!
Ele a voltou a beijar sem responder.
Capítulo 13

Mais tarde, aquela mesma noite, o duque se fixou em


que a sua esposa brilhava o olhar e parecia ter febre,
embora estivesse jogando às charadas rindo e
entusiasmada. O jogo tinha ido subindo de tom à medida
que avançava.
A excursão ao Wollaston e a atividade constante dos
últimos dias, incluído o baile e a excitação pelo retorno
de seu irmão, estavam resultando muito para a duquesa,
embora não o admitisse nem sequer para si mesma. Mas
Adam a conhecia o bastante bem para saber que sua
delicada saúde não poderia suportar um ritmo tão
exaustivo muito tempo mais sem paralisar-se.
O duque se perguntava se resultava evidente para
seus convidados que Sybil e Thomas tinham uma
relação muito mais estreita do que cabia esperar entre
cunhados. Imaginava que sim. Certamente, Shaw tinha
deixado de a emprestar atenção e aquela noite dedicava
seus galanteios a Vitória Underwood.
O duque pensou, que, embora se dessem conta,
ninguém se escandalizaria especialmente. Como já
suspeitava antes de voltar para casa procedente de
Londres, os convidados de sua esposa não eram um
grupo caracterizado pelo decoro e a compostura. Sidney
tinha comentado que uma pobre donzela ficou perplexa
ao encontrar-se a Lady Mayberry na cama do Grantsham
aquela manhã, e à senhora Grantsham na cama do
Mayberry.
Adam observava a cena que o rodeava bastante
sério. A boa educação o obrigava a continuar
comportando-se como um anfitrião cortês e afável em
que pese a tudo o que ocorresse. Não podia fazer o que
tinha tanta vontade fazer: ficar de pé e anunciar
publicamente que a reunião terminaria à manhã
seguinte.
Ao pensar nisso experimentou o único momento de
diversão de toda a noite.
Às vezes — só às vezes— desejava não ter nascido
em uma classe privilegiada e decadente. Mas se
perguntava se acaso alguma classe seria radicalmente
distinta se as pessoas soubessem realmente como são.
Poderia ser as pessoas fossem iguais olhando para onde
olhasse.
A duquesa, acalorada e rindo ainda, sentou-se em
um sofá.
—Sempre lhe deram muito bem as charadas,
Thomas —comentou, sorrindo até que ele se sentou a
seu lado—. Estou muito contente de ter estado em sua
equipe. Agora necessitamos algo tranqüilo e relaxante
para nos acalmar.
—Me ocorre algo sem pensá-lo muito — interveio Sir
Hector Chesterton.
Sua Excelência a duquesa lhe deu um golpe brusco
no ombro com o leque.
—Hei dito algo tranqüilo e relaxante, pícaro — brigou
—. Quem sabe cantar? Walter?
—Estou sem fôlego, asseguro-lhe isso, Sybil —
respondeu o cavalheiro—. Que uma das damas nos
toque uma sonata.
—Eu não — comentou a senhora Runstable—. Estou
esgotada.
—Tenho como norma ter perdido a prática quando
não estou em casa — comentou Lady Mayberry.
Suas palavras provocaram a risada de outros.
—Pode ser que minha sugestão não seja tão
estúpida depois de tudo — voltou a falar Sir Hector,
sentando-se no braço da poltrona ocupada pela senhora
Runstable.
—A música é a alma do amor — afirmou a duquesa,
sorrindo e elevando um braço delicado ao ar—. Dêem-
me música, vamos.
—Como desejaria saber cantar — suspirou Lorde
Thomas, agarrando-lhe a mão e levando-as aos lábios.
—Conheço alguém que touca como um anjo — falou
Lorde Brockehurst—, e que não está cansada de jogar
às charadas toda a noite.
Sua Excelência o duque se sentiu incômodo ao
pressentir o que ia dizer e se removeu em sua cadeira
enquanto Sir Philip Shaw bocejava delicadamente
tampando-a boca com a mão.
—E quem é esse modelo de energia inesgotável? —
perguntou.
—A senhorita Hamilton, a governanta — respondeu
Lorde Brockehurst.
—Ah. —Sir Philip o olhou languidamente—. Assim já
conhecia a rapariga, verdade, Brockehurst? Que sorte
tem! E inclusive conseguiu descobrir que touca como um
anjo? Ah, suponho que se refere ao pianoforte. Façamos
que baixe, é obvio, Sybil.
—É tarde — interveio o duque—. A senhorita
Hamilton deve estar na cama.
—Está-o? Diabo! —protestou Sir Philip—. Sua
sugestão resulta mais atrativa a cada minuto que passa,
Chesterton.
—Nós não gostamos de manter ocupados a nossos
criados além das horas de trabalho — comentou a
duquesa.
—Mas Sybil, Sybil! —Lorde Thomas voltou a lhe
agarrar a mão—. Se a senhorita Hamilton tocar como um
anjo e ao Bradshaw gostaria de ouvi-la tocar, deveria
fazer caso a sua hóspede. E se estiver já na cama,
Adam, cancela as aulas matutinas de Pamela e permite
a sua governanta que recupere o sonho. Não poderia ser
mais fácil. Bradshaw, aí ao lado tem o sino para chamá-
la, meu querido amigo. Que vão procurar a governanta.
Enquanto os aplausos contidos celebravam a idéia
de seu irmão, o duque pensou que devia ser perto da
meia-noite. Possivelmente deveria ter protestado com
maior firmeza. Mas já era muito tarde. Thomas estava
dando instruções ao Jarvis.
Passaram quinze minutos antes que voltassem a
abri-las portas e entrasse Fleur. Que tivesse demorado
tanto tempo indicava que realmente devia estar na cama.
Sua Excelência o duque ficou em pé ao mesmo
tempo em que seu irmão, e atravessou a habitação até
onde estava ela.
—Senhorita Hamilton, minhas hóspedes me pediram
que tocasse o pianoforte para nós uma meia hora.
O rosto de Fleur tinha uma expressão sonolenta e o
olhar tranqüilo. Tinha uma face muito similar a que pôs
na habitação do Touro e o Corno, só que agora estava
saudável e bonita. Então o duque não se deu conta,
como sim se dava conta agora, de que freqüentemente
ficava uma máscara para ocultar à autêntica e vital Fleur
Hamilton.
E de repente também se precaveu de que devia
pensar que ele a tinha traído, que lhe tinha concedido o
direito a tocar o instrumento na sala de música e a
escutava cada manhã só para poder usar seu talento em
uma ocasião como aquela.
—Fará-o, por favor? —perguntou-lhe.
—Hão-nos dito que touca como um anjo — comentou
Sir Philip Shaw.
«Mas isso não é o que hei dito eu», disse o duque a
Fleur com um olhar intenso que contrastava com a frieza
dela. Fleur tinha a mesma expressão que zangada
naquela primeira ocasião e que tinha trocado o curso de
seu encontro com ela.
—É tímida — comentou Lorde Thomas, fazendo uma
reverência—. Senhorita Hamilton, far-nos-ia a honra de
tocá-lo?
O duque lhe estendeu a mão, mas ela estava
olhando ao Lorde Thomas. Fleur passou por diante dele
e atravessou a habitação em direção ao pianoforte sem
voltar-se para olhá-lo.
Sentou-se no tamborete, com as costas muito retas,
e olhou friamente ao Lorde Thomas.
—Gostaria de alguma música em particular, milord?
—perguntou-lhe.
Ele continuou sorrindo.
—Algo tranqüilo e relaxante, por favor senhorita
Hamilton —respondeu—. Uma canção de berço, pelo
menos. Algo que faça que nos dê vontade de…dormir…
senhorita Hamilton.
O duque permaneceu onde estava, junto à soleira da
porta, observando-a. Ela se sentou olhando-as mãos
unidas no regaço uns instantes, totalmente acalmada,
totalmente serena. E a seguir começou a tocar a sonata
Claro de lua do Beethoven. Não tinha partitura.
Tocou impecavelmente, muito bem inclusive. Se
estava perdendo parte da magia das atuações matutinas,
provavelmente só ele saberia.
E enquanto o murmúrio da conversação começou a
estender-se a seu redor, o duque pensou que se
permanecia onde estava ia chamar a atenção. Foi sentar
se junto a uma das damas que estava escutando a
música e observou como Brockehurst se deslocava até
ficar atrás do tamborete.
Tocava como um anjo? Se não o fazia, ao menos
estava seguro de que o parecia. A simplicidade sem
adornos de seu vestido azul claro, o mesmo que tinha
levado a baile, a suavidade e naturalidade de seu cabelo
avermelhado e dourado, a beleza serena de seu rosto…
todo aquilo a distinguia de qualquer das outras damas
pressente. Sim, parecia um anjo.
Mas quem era ela? Isabella? De sobrenome
desconhecido? «Her…» tinha começado a chamar a seu
antigo lar. Brockehurst vivia no Heron House, no
Wiltshire.
Adam pensou que ficaria em pé quando terminasse a
música e a acompanharia à porta. Assim poderia voltar
para sua cama e a dormir.
Mas seu irmão interveio antes que pudesse fazê-lo.
—Bravo, senhorita Hamilton! —exclamou—. A
verdade é que possui uma habilidade superior. Conhece
lorde Brockehurst? Estou seguro de que falo em nome
de todos se disser que agora pode retirar-se com nosso
agradecimento. De fato, ambos podem retirar-se.
Bradshaw?
Lorde Brockehurst fez uma reverência quando ela fez
gesto de voltar-se.
—Esperava poder dar um passeio com a senhorita
Hamilton pela galeria alargada — comentou—. Dá-me
sua permissão, Sua Excelência? —E se voltou para fazer
uma reverência à duquesa.
—Tem minha permissão, senhorita Hamilton —
assinalou a duquesa, sorrindo—, e por agora pode
esquecer-se da tarefa que lhe tinha encarregado para
amanhã pela manhã.
O duque voltou para seu assento e contemplou a
Fleur enquanto partia tão tranqüilamente como tinha
entrado. Lorde Brockehurst ia uns poucos passos por
detrás dela. Fleur só lhe dedicou um breve olhar
inexpressivo ao passar por diante dele.
—Bom, vou à cama — bocejou Sir Philip—. Posso
acompanhá-la até a porta, Vitória?
—Acredito que todo mundo quer ir-se à cama —
comentou a duquesa—. Na vida me havia sentido tão
cansada.
O duque ficou em pé para lhe oferecer o braço. E se
perguntou se ao trazer Fleur à sala tão tarde e obrigá-la
a ter um encontro com o Brockehurst tinha sido uma
artimanha deliberada tanto por parte dela como de seu
irmão.

—Voltou a ter febre — indicou a sua mulher, quando


lhe tocou uma das mãos ao deter-se na porta de seu
vestidor minutos mais tarde—. Precisa descansar, Sybil.
Por que não fica na cama até manhã ao meio dia? Eu
me ocuparei de entreter aos convidados.
—Estarei melhor pela manhã — replicou ela—. Só
estou cansada. E como posso me perder um só minuto
com meus convidados? A vida resulta tão aborrecida
quando não estão aqui. E você ou não está ou te passa
o dia te dedicando a seus assuntos em alguma outra
parte.
—Não teria que ser assim — lamentou ele—.
Poderíamos ter feito que fora um matrimônio, Sybil.
Poderíamos ter sido um pouco amáveis o um com o
outro, ao menos.
—Não, não teria por que ser assim — lamentou ela,
olhando-o febril e com os olhos brilhantes—. Eu poderia
ter sido feliz… Ele não me teria rechaçado, Adam. Ele
não me teria abandonado durante vários meses seguidos
e logo se teria queixado de que convidasse as pessoas
para aliviar meu aborrecimento e minha solidão. Mas
claro, com ele não teria necessitado convidados. Não
teria estado nem só nem aborrecida. —A duquesa tinha
as faces muito vermelhas.
Adam abriu a porta.
—Se continua tendo febre pela manhã farei que
venha o médico, e que venha outro médico de Londres
se não nos disser nada melhor do que nos disseram no
inverno quando esteve muito doente.
—Só necessito ao doutor Hartley — protestou ela—.
Por que obrigou ao Thomas a partir, Adam? Nunca lhe
perdoarei isso, já sabe. E estou contente de que haja
tornado. Estou contente!
Sybil se meteu a toda pressa no quarto e fechou a
porta precipitadamente. O duque ouviu que sua mulher
tossia no interior.
E voltou suspirando às habitações de dia.

Ao princípio, Fleur não tinha lamentado que


despertasse. O rosto inclinado sobre ela, o corpo que lhe
estava causando uma dor dilaceradora e uma
humilhação persistente, eram os do Daniel. Seus rasgos
bonitos e agradáveis se viam distorcidos pela crua
luxúria carnal, de modo que apenas os reconhecia. Mas
sabia que eram os do Daniel.
Sonhou que a chamava puta enquanto a feria uma e
outra vez.
A criada a que tinham enviado a seu quarto havia
dito, com uma expressão de surpresa no olhar, que tinha
que vestir-se imediatamente e apresentar-se ante o
grupo que se encontrava no salão.
Enquanto se vestia a toda pressa e com mãos
trementes, Fleur pensou que ele o havia dito a todo
mundo, que tinha decidido contar-lhe a todos, e que
agora faria que reconhecesse seu crime frente a todo o
grupo, para que todos se divertissem.
Seu dia de indulto estava a ponto de finalizar.
Realmente a tinha como uma marionete da que atirava
com umas cordas, e assim estaria até o fim de seus dias.
Quando um lacaio abriu as portas que davam ao
salão estava tão cansada que lhe doíam até os ossos.
Entrou sozinha e se encontrou com a luz, o ruído e a
presença de um grupo numeroso de gente. Mas não
deixou que se notasse. Se era quão último poderia fazer,
queria agüentá-lo com dignidade. Nem Matthew nem
nenhum outro teriam a satisfação de vê-la arrastar-se,
suplicar, afundar-se ou chorar.
E logo Sua Excelência o duque ficou frente a ela e
lhe informou brevemente que o motivo pelo que a tinham
feito sair da cama a meia-noite era que desejava mostrar
seu talento ante seus convidados. Agora pagaria pelo
privilégio de praticar sozinha cada dia na sala de música,
ou assim tinha interpretado as poucas palavras que tinha
pronunciado o duque.
Olhou seu rosto severo e carrancudo, contemplou a
cicatriz que o desfigurava, e sentiu que o odiava. Não só
tinha medo e o fugia fisicamente. Odiava-o. Odiava que
pudesse lhe conceder o que pareciam ser favores
gratuitos e logo pedisse que lhe pagasse por eles para
seu próprio desfrute. Odiava-o por afirmar que se
preocupava com seus criados e os protegia enquanto os
usava como escravos para satisfazer seus caprichos.
Recordava sua excursão a cavalo, a euforia da
corrida, a visão esplêndida do duque galopando junto a
ela em seu garanhão negro, adiantando-a, saltando por
cima da porta do muro, rindo de Fleur ao chegar depois
dele. Recordava sua própria risada, sua própria
felicidade, sua estranha capacidade de esquecer, ao
igual a tinha ocorrido quando tinha dançado com ele. E o
odiava.
Só falou com Lorde Thomas Kent, que sempre lhe
sorria aberta e cordialmente, e que tinha falado a seu
favor à duquesa aquela tarde na sala. Tocaria para ele,
já que o tinha pedido e já que de todos os modos não
tinha nenhuma outra alternativa.
Sua Excelência o duque permaneceu na porta um
momento e logo se sentou. Tinha-a traído. Tinha-o dado
tudo enquanto ele a escutava uma manhã atrás de outra
e nunca a tinha incomodado. Sempre tinha dado a
impressão de que a escutava, mas que respeitava sua
necessidade de estar sozinha com sua alma. Mas agora
havia a trazido para que tocasse como um macaco de
feira para pessoas que tinha bebido muito e a que de
todas as maneiras não lhe interessava realmente a
música.
Algo especial daquelas manhãs, algo no que não
havia pensando ou que não tinha identificado antes,
desvaneceu-se. Era muito consciente de que o duque
estava sentado junto à senhorita Woodward, calado,
quieto, sombrio e taciturno. Escutando-a. Observando a
sua pulseira amestrada.
Odiava-o. E lhe surpreendia a força de seu ódio.
Antes somente o temia.
Não tinha percebido que Matthew se pôs detrás dela.
Por incrível que possa parecer, não tinha percebido. Mas
estava ali. Sentiu sua presença assim que terminou de
tocar e Sua Excelência o duque ficou em pé.
Mas de repente, seu único amigo se converteu em
seu maior inimigo: Lorde Thomas tinha interpretado mal
a situação, e, pensando que o fazia um favor, insinuou
que lhe permitisse escapar da sala com seu conhecido,
Matthew.
E a duquesa se mostrou de acordo com ele e
rescindiu a ordem daquela tarde de que Fleur entregasse
sua demissão ao senhor Houghton à manhã seguinte.
E assim a puseram em uma situação que de todos os
modos era inevitável. Mas teria querido que não fora tão
tarde, não estar tão cansada e abatida. Teria querido
mais tempo.
Mas o tempo se esgotou.
Dois lacaios estavam acendendo algumas das velas
nos spots da parede ao longo da galeria alargada.
—Agarre-me o braço, Isabella — ordenou Matthew
—. Se formos passear, façamos o de um modo
civilizado.
Os dois lacaios fecharam as portas detrás de si ao
partir.
—Como conseguiste estar tão bonita inclusive
vestida de um modo tão singelo? —perguntou ele.
Soltou-lhe o braço.
—O que quer, Matthew? Se não vai partir
imediatamente, se não vai me arrastar ao cárcere, o que
quer? Quer que me deite contigo aqui, em Willoughby,
que me converta em sua amante aqui? Pois não o farei.
Ele suspirou.
—Faz que pareça tão primitivo, Isabella… foi tua
idéia, não minha.
—Então me diga o que quer, e deixa de jogar
comigo.
—Eu te amo. Eu te amo há muito tempo, muito
tempo. Acaso resulta tão censurável?
—E faz muito, muito tempo que te venho dizendo que
não estou interessada em suas declarações de amor —
replicou ela—. Se me tivesse querido como sempre
afirmaste que me queria, Matthew, teria respeitado meus
sentimentos. Não te teria intrometido entre o Daniel e eu.
—Daniel Booth — burlou Matthew—. Uma criada
sorridente e delicada. Não te teria feito feliz, Isabella.
—Pode ser que não. Mas teria que havê-lo decidido
eu. Por que fez que as coisas fossem desse modo?
—De que modo? —Ele elevou as sobrancelhas em
atitude inquisitiva.
—Sua mãe e Amelia partiram a Londres e me
deixaram a sós contigo. Foi tão impróprio, e elas tinham
que sabê-lo, e teriam feito algo a respeito se sentissem
algo por mim. E logo te negou a que me partisse e
ficasse com a irmã do Daniel quando me pediu isso, e te
negou a que me casasse com o Daniel com uma
permissão especial. Planejou-o assim, verdade? Para
que ao haver ficado sem alternativas e tendo arruinado
minha reputação, não ficasse outra opção salvo me
converter em sua amante. E assim teria a oportunidade
de me dominar embora me negasse.
Ele se deteve e a agarrou das mãos, embora Fleur
tratasse de escapar dele.
—Já tinha chegado a hora de que Amelia fosse à
cidade para sua posta de comprimento —explicou ele—.
E é obvio minha mãe queria ir com ela. Teria resultado
cruel te enviar com elas, Isabella. Vocês três nunca se
punham de acordo.
—Resulta difícil estar de acordo ou em desacordo
com alguém quando te ignora quase completamente
desde os oito anos — afirmou ela amargamente—,
exceto quando lhe criticam e se burlam de ti.
—Fora como fosse, pensei que era melhor que
ficasse em casa, no lugar que te correspondia, Isabella.
E nunca foi idéia minha ser seu guardião, e sabe. Foi a
vontade de seu pai e a morte do meu o que fez que
fosse assim, até que te casasse ou até que tivesse vinte
e cinco anos. Eu não marquei essas condições.
—Até que me casasse! —exclamou Fleur—. Poderia
ter casado com o Daniel. Poderia te haver liberado de
uma responsabilidade muito pesada.
—Não era pesada. Mas, sinceramente, não podia
deixar que te casasse com semelhante galinha, Isabella.
—Era melhor me converter em sua amante.
—Você é quão única usou essa palavra.
Ela riu.
—Suponho que queria te casar comigo —
acrescentou Fleur.
—Não fale no passado — a corrigiu ele, apertando as
suas mãos com maior força—. É uma dama, Isabella,
filha de um barão. Como pode insinuar que pretendia te
forçar?
Ela voltou a rir.
—É estranho que se esquecesse de mencionar quão
honestas eram suas intenções — comentou a garota—.
Sua mãe estaria encantada, Matthew. E suponho que a
sedução daquela noite servia para indicar que era tua
antes da cerimônia.
—A sedução?
—Eu ia partir de casa, em que pese que fosse tarde
e fosse uma noite fria. Meu baú estava na charrete.
Miriam estava esperando na reitoria. Mas não me queria
deixar ir e me repreendia por te desobedecer. E não
foste mandar-me ao meu quarto minha habitação,
Matthew. Estava a ponto de me levar a tua. Ou
possivelmente nem sequer isso. Hobson tinha que me
reter, verdade? Na biblioteca mesmo, enquanto me
violava.
Soltou-lhe uma das mãos para passar uma mão pela
frente.
—Que idéias mais estranhas tem, Isabella. Gritava-
me e brigava como uma criatura demente porque não
queria deixar que te escapasse com um homem com o
que, acredito que com bastante tino, negava-me a que te
casasse. Hobson deu um passo adiante detrás de ti para
evitar que te caísse na chaminé e te fizesse mal. E você
se voltou e o atacou a ele também e perdeu o equilíbrio.
Foi um crime passional, simples e sinceramente.
—Sim. Suponho que um juiz também acreditaria…
uma vez que você o tivesse explicado.
—É uma pena que as jóias fizessem que tudo
parecesse bastante premeditado. Embora sem dúvida eu
ia ser sua vítima.
—As jóias? —Fleur se tinha ficado muito quieta.
—Essas que eram muito valiosas para que minha
mãe as levasse a Londres. Encontraram-nas em seu baú
depois de que fugisse presa do pânico.
Ela o olhou fixamente.
—E as encontrou outra pessoa que não foi você,
suponho —disse finalmente.
—Sua donzela.
Fleur sorriu.
—Mas deve ter feito tudo impulsivamente —
continuou ele—. Deve ter ser duro para ti, Isabella,
perder a seus pais tão jovem, ver que meu pai e nós
vínhamos a sua casa e ficávamos com a propriedade e
as posses que tinha chegado a acreditar que eram tuas.
Mas podem voltar a ser tuas também, e de seus filhos.
—Nossos filhos — corrigiu ela—. Fala a sério de te
casar comigo, Matthew?
—Quero-te. Não pode imaginar quanto sofri nos
últimos dois meses e meio, Isabella, sem saber se
voltaria a ver-te alguma vez. Deve te casar comigo.
—Dever é a palavra chave, já o entendo.
—Nunca te teria forçado. Tem que saber que te
equivocou nisso.
—Minha resposta é não.
—Mudará de opinião.
—Não, não o farei. Quando partir daqui, partirá
sozinho, Matthew.
Ele elevou as mãos e as pôs sem apertar ao redor do
pescoço da garota, subiu-as até o queixo de Fleur,
apertou ligeiramente e o levantou.
—Ouvi falar de homens muito hábeis que podem
fazer seu trabalho de tal modo que a morte resulte como
um fato instantâneo e doloroso — comentou—.
Desgraçadamente, nem todos são tão hábeis.
O sorriso da garota se desvaneceu.
—Obrigado — disse finalmente Fleur—. Por fim me
deste a resposta. Ou me caso contigo, Matthew, ou me
penduram. Quanto tempo tenho para me decidir?
Mas não teve oportunidade de responder. As portas
ao final da galeria alargada se abriram e entrou o duque
de Ridgeway.
—Seguem aqui — comentou—. Resulta fácil perder a
noção do tempo entre tantas pinturas, não é assim? Mas
a governanta de minha filha tem que dormir, Brockehurst.
Possivelmente possam continuar a visita em outro
momento. Pode voltar para seu quarto, senhorita
Hamilton.
Mas Matthew ficou a caminhar pela galeria com ela,
de modo que em seguida os três se encontraram junto à
porta. O duque esquadrinhou ao Matthew e ofereceu o
braço a Fleur.
—Acompanhá-la-ei até acima — propôs. Fleur
apoiou a mão em seu braço e não olhou atrás para ver
que fazia Matthew. Tirou a mão assim que passaram por
debaixo do arco que levava a escada, e ficou a subir as
escadas tão perto da parede interior como foi possível.
Ele não se voltou no alto das escadas tal e como
Fleur tinha esperado, mas sim percorreu o corredor até o
quarto dela. E pôs a mão no pomo. A garota observou a
bonita mão de dedos largos que tanto temia.
—Sinto muito, senhorita Hamilton — murmurou ele.
—Que o sente? —Ela dirigiu o olhar a seu rosto
moreno, duro e angular fracamente iluminado no
corredor.
—Tudo isto… havê-la tirado da cama… ter permitido
que a convertessem em um peão. Não deixarei que
ocorra outra vez.
Ela não apartava o olhar do duque.
—Tem-lhe feito mal? —insistiu ele—. Ou a acossou
em algum sentido?
—Não é ele quem me tem feito mal.
O duque abriu a boca para dizer algo, e a voltou a
fechar. Olhou-a com os lábios rígidos e as mandíbulas
muito apertadas. E ela se perguntou, muito cansada para
assustar-se nesse preciso instante, se logo abriria a
porta, faria-a entrar e lhe ordenaria que se tirasse a
roupa outra vez.
E se perguntou se lhe obedeceria.
—Sinto-o — repetiu Adam, e ela observou
horrorizada e fascinada ao mesmo tempo em que os
olhos dele se dirigiam a seus lábios e aproximava a
cabeça.
De repente o duque abriu a porta e a fez entrar.
—Não! —Fleur ficou onde estava e meneou a cabeça
lentamente—. Não, por favor, não! Ah, por favor, não!
—Pelo amor de Deus! —Adam cruzou a soleira e a
agarrou pelos ombros com uma força tal que lhe fez mal
—. Mas que idéia tem de mim? Acredita que pensava
entrar com você? Pensava que poderia lhe pedir
desculpas um momento e seduzi-la ao momento
seguinte?
Ela se mordeu o lábio inferior e o olhou fixamente.
—Fleur… — começou o duque. Afrouxou as mãos—.
Fleur, aquela vez não tomei contra sua vontade. Nunca
tomaria contra sua vontade. Nem tampouco tomaria
embora você quisesse. Sou um homem casado que teve
um deslize em cinco anos e meio de matrimônio. Não
quero que siga temendo por sua segurança estando
comigo.
Do interior do lábio superior de Fleur brotava sangue.
Ele olhou seu rosto, olhou seus olhos tensos e
horrorizados, emitiu um gemido de impaciência e a atraiu
para seus braços. Sujeitou-a com força, até que deixou
de tremer e se inclinou para diante. E ela virou a cabeça
e a apoiou contra o coração do duque, que pulsava a um
ritmo constante, e fechou os olhos.
—Não deve temer por sua segurança estando
comigo — sussurrou ao ouvido. Acariciava-lhe
delicadamente a nunca com os dedos—. Você é a última
pessoa na terra a quem quereria fazer mal, Fleur. Por
Deus, me diga que já não pensa o que acaba de pensar.
—Já não. —apartou-se cansativamente dele. Acaso
o dia tinha sido tão largo como tinha parecido?
—Pois bem. —Ele a soltou e deu um passo a um
lado, olhando-a vacilante—. Boa noite.
—Boa noite, Sua Excelência.
Ela entrou em seu quarto e fechou a porta. Apoiou a
testa contra ela e respirou fundo várias vezes
consecutivas. Não tinha nada que temer. O duque tinha
estado a sós com ela e poderia havê-la tomado
facilmente. Poderia ter afogado seus gritos de modo que
nem sequer a senhora Clement a tivesse ouvido. Não a
tinha tomado.
Havia-lhe dito que não o teria feito contra sua
vontade, e nem sequer embora quisesse.
Não tinha nada que temer. Mas sentiu como os
braços do duque atiravam dela para apertá-la contra seu
corpo musculoso. E sentiu como a acariciava com os
dedos na nuca. Ouviu como pulsava seu coração, e
sentiu como se inclinava para ele, rendendo-se a sua
força e calidez, à ilusão de consolo.
Fleur pensou conscientemente em quem era ele e o
que lhe tinha feito, em seu potente corpo masculino e em
suas cicatrizes. Em suas mãos.
E sentiu medo. Medo porque quando finalmente a
havia tocado, tinha esquecido a repulsão que sentia, ao
igual a quando tinha dançado e cavalgado com ele.

Capítulo 14

Ao entrar em seu escritório à manhã seguinte —


cinco minutos tarde, por desgraça—, Peter Houghton se
precaveu de que seu senhor estava outra vez de mal
humor. O duque estava de pé olhando pela janela, firme
como um militar, e tamborilava com os dedos de uma
mão no batente.
Devia ser certo então o que se comentava abaixo
sobre Sua Excelência a duquesa e Lorde Thomas,
embora de todas as maneiras todos sabiam que as
coisas não iam bem no matrimônio de Sua Excelência. E
logo, claro, estava o rumor de que a amante do duque
esteve passeando depois de meia-noite pela galeria com
Lorde Brockehurst no dia anterior.
Embora desde que tinha voltado para o Willoughby
Hall Houghton se perguntava se a governanta era
realmente a amante de seu senhor. Gostava daquela
mulher, em que pese a estar predisposto a que não fora
assim. Sempre se mostrava discretamente educada no
piso de abaixo e não se dava ares na mesa da senhora
Laycock, embora cada palavra e gesto assinalavam que
tinha nascido e se criou como uma dama.
—Onde diabos estiveste? —arreganhou-lhe Sua
Excelência, confirmando as suspeitas de seu secretário.
—Ajudando à senhora Laycock com um pequeno
problema ao quadrar as contas da casa, Sua Excelência
— comentou.
—O que te pareceria ter férias? —perguntou o
duque.
Houghton o olhou desconfiado. Estava a ponto de lhe
conceder umas férias permanentes? Por chegar cinco
minutos tarde a seu escritório?
—Vai ao Wiltshire por mim — informou o duque—.
Ao Heron House. Não estou muito seguro onde fica, mas
sem dúvida o averiguará.
—A casa de Lorde Brockehurst, Sua Excelência? —
Seu secretário franziu o cenho.
—O mesmo. Quero saber algo que possa averiguar
de uma tal Isabella que viveu ali até muito recentemente.
—Isabella? —Houghton o olhou inquisitivo—. De
sobrenome, Sua Excelência?
—Desconhecido. E vais ser invisível e mudo
enquanto averigua as respostas. Entende-o?
—Só Isabella, Sua Excelência? Não tem nenhuma
outra descrição?
—Digamos que se parece muito à senhorita
Hamilton.
Peter Houghton o olhou fixamente.
—Posso confiar em sua discrição, Houghton? —
perguntou Sua Excelência—. Em que vai a uma
merecida e longa temporada de férias?
—A visitar meu primo Tom — acrescentou seu
secretário, com uma expressão impassível no rosto—, e
a sua esposa, a que ainda não conheço. E ao seu novo
filho, de quem vou ser o padrinho.
—Não necessito um histórico familiar — o duque lhe
cortou—. Mais vale que te parta hoje, Houghton, ou te
perderá o batismo.
—O agradeço muito, Sua Excelência — comentou
Houghton enquanto seu senhor se voltava e atravessava
a habitação—. Não esquecerei este favor que me tem
feito.
—Ocupar-te-á do outro assunto antes de partir? —
pediu-lhe o duque, olhando para trás da soleira da porta
—. Deixei instruções de que ia ao Wollaston esta manhã.
—Encarregar-me-ei disso, senhor — afirmou
Houghton, eficiente.
O secretário pensou que seu senhor devia ser muito
mais discreto que a senhora. Não tinha surto nem o mais
leve rumor de escândalo no piso de abaixo sobre sua
relação com a governanta, a prostituta de Londres.
Embora fosse obvio ao moço que tinha afirmado que os
dois passaram uma hora cavalgando juntos na manhã
anterior, uma afirmação que parecia confirmar-se pelo
fato de que lhe tinham encarregado que equipasse a
governanta com roupa de montar e botas.
Assim ao final resultava que era sua amante. E Sua
Excelência devia estar realmente apaixonado se
pensava farejar no passado da pobre garota. Vivia com
um nome falso, verdade?
Mas apenas se podia culpar ao duque quando a
duquesa não fazia absolutamente nada por ocultar sua
preferência por Lorde Thomas.

Fazia uma manhã úmida. Fleur lamentava que não


existisse a mais mínima possibilidade de dar um breve
passeio fora depois de seus exercícios musicais. Nem
tampouco de que Lady Pamela pudesse receber outra
lição de equitação.
Mas seu pesar se viu atenuado pelas lembranças do
passeio a cavalo de na manhã anterior e do modo em
que se desenvolveu. E as lembranças da noite anterior e
do terror que a tinha levado a fazer uma hipótese da
mais embaraçosa. E a lembrança dos braços dele
rodeando-a e do coração do duque pulsando contra seu
ouvido e do aroma de seu perfume.
Depois de tudo, alegrava-se de que estivesse
chovendo.
Enquanto observava a Lady Pamela pintar filas de
letras e logo lhe contava um episódio de história
enquanto ambas bordavam, começou a albergar a
esperança de que possivelmente Sua Excelência o
duque não fosse ao quarto de estudo aquela manhã. E
se manteve atenta a ver se o ouvia chegar, e cada som a
sobressaltava.
Estavam examinando o globo outra vez quando ele
chegou. Mas em vez de sentar-se em uma esquina como
estava acostumado a fazer detrás beijar a sua filha e
lhes desejar a ambas bom dia, ficou de pé e entregou
uma carta a Fleur.
—Chegou esta manhã, junto com outra para mim do
mesmo punho e letra. Tem minha permissão para aceitar
o convite, senhorita Hamilton. E acredito que Houghton
está esperando-a no piso de abaixo em seu escritório.
Esqueceu-se do que tinha que fazer esta manhã?
Fleur não se esqueceu. Mas pensava que
provavelmente ele teria esquecido, e não tinha querido
mencionar o assunto ao senhor Houghton durante o café
da manhã.
—Farei que lhe tragam uma carruagem dentro de
meia hora —comentou o duque—. Pamela, você e eu
brincaremos com a Pequenina um momento até que me
reúna com uns cavalheiros. Esta tarde pode ir com
mamãe e comigo à reitoria. Alguns de nossos
convidados querem ver a igreja. Pode jogar com os
meninos enquanto o fazemos.
—Sim, sim! —Pamela ficou a dar saltos.
—Vamos, vêem — estendeu a mão para agarrar a da
menina—. Que tenha um bom dia, senhorita Hamilton.
O senhor Chamberlain a convidava a ir com sua
irmã, Sir Cecil Hayward e ele mesmo para jantar e a
visitar o teatro do Wollaston aquela noite. Ia se
apresentar uma companhia itinerante de atores.
Dobrou o papel e o levou aos lábios. E sentiu uma
tristeza enorme pela vida que poderia ter vivido em
Willoughby. Tinha um trabalho que começava a lhe
resultar bastante agradável, suficiente vida social para
manter-se ativa e motivada, e a amizade de um
cavalheiro atraente que o fazia sentir-se como uma
mulher.
Claro que nunca poderia ter levado essa relação
além da amizade. Fleur sabia e o aceitava. Não pedia
muito: só que a vida fora como as duas primeiras
semanas que tinha passado ali.
Oxalá o duque de Ridgeway se manteve afastado de
casa. E oxalá Matthew não lhe tivesse seguido a pista
até ali.
Sua Excelência lhe havia dito que a carruagem
estaria esperando-a em trinta minutos. Fleur foi correndo
até seu quarto para preparar-se e para escrever uma
aceitação do convite.
Peter Houghton lhe deu uma carta que tinha que
apresentar no Wollaston para que as faturas pela roupa
de montar pudessem enviar-se a casa. Também pagou o
primeiro mês de salário, embora não levasse ainda um
mês, já que explicou que dentro de uma hora partiria
para o batismo do filho de seu primo, e que
possivelmente demoraria uma semana ou mais em
voltar.
Fleur desfrutou das horas seguintes. Depois de suas
experiências fazia tão somente um par de meses,
resultava muito agradável ir vestida de uma maneira
respeitável, montar em uma carruagem elegante, ser
tratada com deferência porque a carruagem levava o
emblema do duque de Ridgeway, ter um pouco de
dinheiro para gastar-se em umas meias de seda que
realmente não necessitava escolher tecidos de veludo
suntuoso para a roupa de montar e couro suave para as
botas. E mais tarde pensou que voltar para o Willoughby
Hall era como voltar para casa, face à chuva e às nuvens
pesadas. A carruagem passou estralando pela ponte e
Fleur voltou a vista para a casa e sentiu um forte amor
por ela. E uma grande tristeza porque não seria seu lar
durante muito mais tempo.
Sorriu ao chofer quando a ajudou a descer da
carruagem, e teria atravessado correndo as portas até as
habitações de quão criados ficavam sob os degraus em
forma de ferradura se alguém não a tivesse chamado.
Matthew se aproximava a toda pressa procedente dos
estábulos.
—Subi depois de almoçar para te fazer uma vista —
explicou enquanto a carruagem se afastava outra vez—.
A babá me há dito que te tinha ido ao Wollaston.
Sozinha, Isabella? Por que não me tem feito isso saber?
Teria ido contigo.
Ela ficou de pé sob a chuva olhando-o.
—Tenho-me que ir a uma visita infernal a uma igreja
normanda dentro de pouco — continuou ele—, mas esta
noite tenho que ver-te. Onde? Em seu quarto? Ou em
algum rincão do piso de abaixo?
—Tenho outros planos para esta noite — respondeu
ela.
—O que? —Matthew franziu o cenho. A água lhe
caía formando uma corrente regular da asa de seu
chapéu.
—Convidaram-me para jantar e ao teatro — explicou
—. Uns vizinhos.
—Quem é ele? —perguntou Matthew—. Será melhor
que não o anime, Isabella. Eu não gostaria de nada.
—É que não pode conceber uma relação de simples
amizade, Matthew? —repreendeu-lhe. Um regue iro de
gotas de água fria se estava abrindo caminho por suas
costas até o interior de sua capa.
—Não no que te diz respeito. Não se tiver em conta
seu aspecto, Isabella. Ficaremos aqui umas semanas.
Mas espero passar muito tempo contigo. E espero que
não haja nenhuma oposição a respeito. E isso inclui o
duque. Espero que não tenha ficado contigo ontem à
noite. Por seu bem, espero que não.
—Estou molhada e o frio me impregna até os ossos,
Matthew. Vou entrar, se me perdoar…
Fez-lhe uma breve reverencia e se voltou para subir
pelos degraus de mármore.
Fleur se pôs a tremer ao entrar pelas portas dos
criados. Sim, sempre ficava aquilo… a decisão última
que teria que tomar: ou casar-se com o Matthew, se é
que realmente queria casar-se, ou enfrentar-se a um
julgamento por assassinato e roubo no que a única
testemunha era o próprio Matthew.
A carruagem do senhor Chamberlain passou a
procurar o Fleur assim que começou a anoitecer. Fleur
olhou com pesar o vestido de musselina azul que levava,
já que desejava ter algo mais para usar. Mas não
deixaria que nada estragasse a noite. Tinha decidido que
desfrutaria, sobre tudo depois de seu bate-papo com o
Matthew. Se não tivesse tido que cumprir com aquele
convite se teria visto obrigada a passar a noite com ele.
Claro que ficava o dia seguinte de noite e a noite
seguinte, mas já pensaria nisso quando chegasse o
momento.
Sir Cecil Hayward, um cavalheiro que Fleur
recordava ter visto no baile, não sabia falar de outra
coisa que não fora o relacionado com os cavalos, os
sabujos e a caça. Mas tanto a senhorita Chamberlain
como seu irmão eram animados conversadores, e Fleur
desfrutou muito durante o jantar.
Nunca em sua vida tinha ido ao teatro, o qual lhe
resultou muito divertido ao senhor Chamberlain.
—Alguma vez foi ao teatro, senhorita Hamilton?
Incrível! —exclamou ele—. Como sobreviveriam os
Shakespeare de nosso mundo se todas as pessoas
fossem como você?
—Mas não digo que não tenha ido porque não me
interessasse, senhor — riu ela, recordando uma ocasião
em que realmente tinha estado perto de um teatro.
—Isto será como tirar os meninos, Emily —
comentou o senhor Chamberlain, sorrindo a sua irmã—.
Suponho que a senhorita Hamilton estará emocionada e
se dedicará a dar saltos de entusiasmo.
—Ao menos prometo não gritar e chiar — brincou
Fleur.
—Ah, bom, então suponho que podemos seguir
adiante. Está disposto a prescindir do porto esta noite,
Hayward?
O teatro era muito menor do que Fleur tinha
esperado, e a relação entre o público e os atores muito
íntima. O público assobiou a um cantor um pouco
desafinado, assobiava cada vez que aparecia uma atriz
com um busto particularmente atraente, animava ao
vilão, vaiava ao herói quando se comportava mal com
um amor não desejado, e aplaudiu e assobiou
insistentemente na cena de amor final.
Fleur desfrutou de cada instante da experiência,
tanto da ação como do público.
—São todos uns falcões —sussurrou o senhor
Chamberlain ao ouvido—. Não vieram para que os
entretenham, a não ser para entreterem-se a si mesmos.
Claro que terá que admitir que haja atores melhores
neste país. Espero que esta experiência não lhe faça
repudiar permanentemente o teatro, senhorita Hamilton.
—É obvio que não. Foi uma noite encantadora.
A senhorita Chamberlain não parecia estar de
acordo. O calor e o ruído constante do teatro lhe tinham
provocada dor de cabeça. Assim depois de deixar ao Sir
Cecil em sua casa, perto do Wollaston, a carruagem
levou a senhorita Chamberlain a casa antes de continuar
até o Willoughby Hall. O senhor Chamberlain insistiu em
acompanhar a Fleur até ali ao tratar-se de uma hora
avançada da noite.
—Não incomodou ao Adam que a levasse de sua
casa uma noite inteira? —perguntou a governanta.
—Há-me dito que podia aceitar o convite.
—Algumas pessoas parecem pensar que seus
empregados são suas posses pessoais e que não têm
direito a ter tempo livre — comentou o senhor
Chamberlain—, já não digamos, Deus queira que não,
certa vida social. Embora soubesse que Adam se
mostraria mais inteligente a esse respeito. Nunca
conheci a ninguém que tenha conseguido levar-se a
nenhum de seus criados, embora conheça a alguns que
o tentaram. Conforme parece ele os trata mais como
familiares que como empregados.
—Sempre é amável — comentou Fleur.
—Produziu-se um regozijo generalizado nesta parte
do mundo quando voltou para casa de maneira tão
inesperada, depois de um ano no que se acreditou que
estava morto —explicou ele—. Thomas deve ser o único
que ficou decepcionado ao descobrir que já não era
duque.
—Mas é um cavalheiro muito agradável.
—Ah sim, claro. —O senhor Chamberlain lhe sorriu
na escuridão da carruagem—. Vai vir à festa de
aniversário do Timmy?
Passaram um momento mais conversando
relaxadamente antes de inundar-se em um cômodo
silêncio.
O senhor Chamberlain se voltou para ela quando sua
carruagem cruzou a ponte ao final do bosque de limas.
—Zangar-me-ei comigo mesmo por ser um covarde,
um imbecil e um torpe se não tentar beijá-la ao menos
antes que se detenha a carruagem. Posso, senhorita
Hamilton?
O que podia dizer ante semelhante petição? Não, se
a uma não gostava do cavalheiro. Mas o senhor
Chamberlain não lhe desagradava.
—Vejo que minha audácia lhe tem feito calar. E
suponho que resulta difícil responder um educado «Sim,
senhor» ante semelhante pergunta. Suponho que não
resultaria tão difícil dizer «Não, senhor», se fosse isso o
que queria dizer.
Ela o viu sorrir na escuridão antes de lhe passar um
braço pelos ombros, levantar o queixo com a mão livre e
baixar sua boca até a de Fleur.
Foi um beijo quente, firme, agradável. O senhor
Chamberlain não prolongou o abraço.
—Espero docilmente a que me dê uma contundente
bofetada na face — disse ele retirando o braço e a mão e
endireitando-se outra vez—. Não? Espero não havê-la
ofendido. Tenho-o feito?
—Não.
—Então espero voltar a vê-la dentro de uns dias —
continuou o cavalheiro—. Pode que inclusive possamos
trocar umas palavras por cima da gritaria dos meninos.
Os aniversários sempre provocam mais ruído que duas
ou três celebrações juntas. Notou isso?
Ele esperou que seu chofer colocasse os degraus
antes de descer ao terraço úmido para ajudá-la a
descender. Acompanhou-a escadas atraca até as portas
principais, chamou e se inclinou sobre sua mão, levando-
lhe aos lábios antes de voltar-se para partir.
—Obrigado por sua companhia, senhorita Hamilton.
Desfrutei da noite mais do que posso expressar.
—E eu também. Boa noite, senhor.
Fleur olhou a seu redor ao fechá-las portas,
esperando em parte que Matthew ou o duque saíssem
de entre as sombras. Mas não havia ninguém salvo o
lacaio solitário que tinha aberto a porta.
Fleur subiu correndo as escadas até seu quarto,
despiu-se rapidamente e se meteu na cama, subindo-as
mantas até as orelhas.
Só queria pensar naquela noite. Ao menos durante
uma noite dormiria feliz. Pensou no senhor Chamberlain
e em seu agradável senso de humor. E no beijo. E
desejou que a vida pudesse ter começado fazia menos
de um mês. Desejou que não tivesse existido nenhum
Matthew nem o corpo do Hobson jazesse
clandestinamente em algum lugar perto do Heron House.
Desejou que não tivesse existido Londres, nem a
necessidade de sobreviver ali. Que não tivesse existido o
duque de Ridgeway. Inclusive desejou de algum modo
estranho que não tivesse existido Daniel.
Desejou que só tivessem existido Willoughby Hall e o
senhor Chamberlain.
Voltou a pensar no beijo, que não devia permitir que
se repetisse. E em seus cuidados, as quais não devia
respirar.
E recordou os braços quentes e fortes que a
rodearam, o peito musculoso contra sua face, e o
coração que pulsava com força contra seu ouvido. E
pensou em dançar com um companheiro que lhe fizesse
dar voltas com uma mão firmemente sujeita na cintura e
cuja colônia tivesse formado parte da beleza da noite.
E enterrou ainda mais a cabeça sob as mantas.

O dia seguinte continuou sendo chuvoso. O duque


saiu a montar pela tarde com duas de suas hóspedes
mais atrevidos para visitar alguns de seus inquilinos.
Quando voltaram, muito tarde para tomar o chá,
descobriram que já haviam decidido qual ia ser o
entretenimento da noite. Lady Underwood saiu a recebê-
los à entrada principal e lhes informou que todo mundo
estava cansado das charadas. Dançariam no salão.
—De verdade? —perguntou ele—. E quem vai tocar
para nós? A senhorita Dobbin?
—Está bastante disposta a fazê-lo — respondeu
Lady Underwood—, mas Walter insiste em que fique livre
para dançar ao menos uma parte do tempo. Acaso não
percebeu que não estou muito entusiasmada com o
Philip, mas tenho que agüentá-lo para não morrer de
aborrecimento, homenzinho pesado?
—Bom, parece que esta noite se entreterá com o
baile. Quem vai tocar quando a senhorita Dobbin estiver
dançando?
—Ah, a governanta. Já está tudo preparado.
—Ah sim? E de quem foi a idéia, se pode saber?
—Do Matthew, é obvio. Diz que conhece um pouco à
senhorita. Acredito que a conhece bastante mais, mas só
o tempo demonstrará se estiver ou não no certo. Em
todo caso, ela vai tocar. Diga-me que dançará todas as
valsas comigo, Adam. Fá-lo tão divinamente…
—Sentir-me-ei muito honrado de dançar a primeira
com você. Desculpe-me, senhorita. Tenho que me trocar
esta roupa molhada.
Perguntou-se se Fleur saberia como lhe tinham
organizado a noite. Tinham-lhe consultado? Tinham-na
avisado ou o tinham pedido? E voltaria a acreditar que
ele era o responsável por ter que utilizar seu talento?
Estremeceu ao expor que pudesse ser assim. Tinha-a
contratado como governanta de Pamela, não para
entreter a seus convidados.
Perguntou-se se alguém teria pensado em detalhes
como ter que apartar os móveis do salão e enrolar o
tapete e trazer as partituras da sala de música. Estava
seguro de que ninguém o tinha feito.

Fleur esperava passar uma noite tranqüila com seus


bordados na sala da senhora Laycock. Mas justo depois
de que acabassem as aulas pela tarde lhe tinham
entregado uma nota rabiscada a toda pressa de Sua
Excelência a duquesa, onde a convocavam a tocar o
pianoforte para um baile aquela noite.
Não estava especialmente desgostada. Esperava
que possivelmente Matthew a citasse, e embora pudesse
ser o caso, ao menos estaria na sala com todos os
convidados. Não estaria a sós com ele.
Ainda havia uma fila de lacaios ocupados em enrolar
o tapete quando chegou à sala. Retrocedeu até a
entrada para esperar até que estivesse tudo preparado
para ela. E olhou a seu redor, contemplando a
magnificência do lugar.
Levantou a vista para a cúpula, obscurecida pelo
anoitecer que se aproximava, e para algumas das
cortinas douradas que havia nas paredes entre as
colunas, e que representavam querubins alados que
sopravam finas flautas com as faces inchadas, e violinos
cruzados com flautas.
—Desenharam-no para que fora um lugar para a
música —comentou o duque a suas costas—. A galeria
se concebeu para que a utilizasse uma orquestra.
Desgraçadamente faz mais de um ano que não temos
um grande concerto ou um baile por aqui.
Fleur se voltou para ele. O rosto do duque se via
escurecido pelas sombras da entrada: tinha os olhos
mais negros, o nariz mais aquilino, a cicatriz mais
pronunciada que sob a luz. Estava perto dela, com as
mãos agarradas por detrás. Fleur sentiu que ficava sem
fôlego e se percebeu que tinha uma sólida coluna
corintiana detrás dela.
—Aceitou tocar para nós esta noite? —perguntou ele.
—Sim, Sua Excelência.
—Diga-me: o pediram?
—Sua Excelência a duquesa me mandou uma nota.
Ele fez uma careta.
—Prometi que isto não voltaria a ocorrer, verdade?
Esta tarde não estive em casa, senhorita Hamilton,
conceder-nos-ia a honra de tocar? É livre de negar-se se
quiser. Isto não forma parte de suas obrigações como
governanta.
—Fá-lo-ei com muito prazer, Sua Excelência.
«Trata mais a seus empregados como familiares que
como criados», havia-lhe dito o senhor Chamberlain do
duque a noite anterior. A duquesa tinha exigido que
viesse, mas ele o tinha pedido.
—Pode dançar quando não estiver tocando —
sugeriu o duque—. Acredito que vários dos cavalheiros
se alegrarão se o faz.
—Não. Obrigado mas não, Sua Excelência.
—Mas parece que desfrutou de do baile faz umas
poucas noites.
—Isso foi muito distinto.
—Permita-me que a acompanhe ao salão — propôs
o duque, mas não lhe ofereceu o braço.
De algum jeito, o salão parecia maior e magnífico
com o tapete enrolado e as cadeiras brancas e douradas
de seda estampada retiradas contra as paredes.
Também tinham deslocado o pianoforte até uma
esquina.
Olhando ao seu redor e sem coibir-se, pois nenhum
dos convidados tinha chegado ainda, Fleur pensou que
se tratava de uma das habitações mais esplêndidas da
casa. As paredes eram de cor azul, e o teto com
molduras côncavas era azul, branco e dourado. Os
grandes cristais faziam que a habitação parecesse maior
do que era e multiplicavam o efeito da aranha de cristal.
—Os quadros são da Europa — explicou Sua
Excelência, ao vê-la interessada—, embora haja tentado
recolher obras de nossos artistas nativos em algumas
das outras habitações. Estes são de Philipp Hackert e
Angelica Kauffmann. Gostaria de estudar as partituras?
Fleur se acomodou no pianoforte e folheou a pilha
que deviam ter encarregado a alguém que trouxesse da
sala de música. Toda a música era adequada para
dançar. Muitas das peças eram valsas.
Durante as duas horas seguintes, a governanta foi
relaxando cada vez mais na tarefa que lhe tinham
encarregado. Excetuando ao Sir Philip Shaw, que se
aproximou do pianoforte e lhe beijou a mão ao entrar na
sala, todos outros lhe emprestaram muito pouca atenção,
e só se dirigiam a ela quando queriam uma canção ou
um tipo de baile em particular. A valsa era a favorita da
entristecedora maioria. A senhorita Dobbin pareceu
esquecer-se de que ia tocar parte da noite, e Fleur não o
recordou.
Mas chegou o momento inevitável no que levantou a
vista entre baile e baile e descobriu que Matthew
acompanhava à senhorita Dobbin aonde se encontrava
ela.
—Senhorita Hamilton, que bem toca! —exclamou a
senhorita Dobbin—. Agora desejaria haver tocado antes
que você para não ter que ir a seguir.
Fleur disse que não era obrigatório que tocasse, mas
a senhorita Dobbin insistiu em que dançar não era sua
atividade favorita e que já o tinha feito bastante durante a
noite do baile e às duas horas anteriores para ter
suficiente para um mês.
—Além disso, senhorita Hamilton — acrescentou
Matthew fazendo uma reverência—, como vou dançar
com você se for passar toda a noite sentada ao
pianoforte?
—Não vim dançar, milord — respondeu Fleur—, a
não ser para oferecer acompanhamento.
—Ah, mas dançará — insistiu ele, sorrindo a
governanta—. Por favor, senhorita. Porque eu o peço.
Fleur se perguntou o que faria Matthew se negava.
Voltaria para o grupo e a denunciaria em voz alta? A
desmascaria e falaria que era uma assassina e uma
ladra de jóias? Pensava que não. Ficaria ridículo com
semelhante exibição, e não lhe serviria para obter seu
objetivo. Mas se tratava de uma colocação puramente
teórica. A verdade é que não queria pô-lo a prova, e
Matthew devia conhecê-la o bastante bem para saber
que não o faria.
—Uma valsa, por favor, senhorita Dobbin? —pediu
Matthew, estendendo uma mão para Fleur.
Matthew dançava razoavelmente bem. Mas Fleur não
era capaz de entregar-se ao desfrute da dança. Naquela
casa era uma simples criada, e as faces ardiam por quão
inapropriado resultava que dançasse com os convidados
no salão, pese à permissão que lhe tinha concedido
anteriormente Sua Excelência. Olhou ao seu redor
nervosa para ver como reagia a duquesa ao vê-la, mas a
duquesa não se encontrava na habitação.
E é obvio não podia esquecer a última vez que tinha
dançado, em um caminho deserto ao sul do lago, com os
olhos totalmente fechados. De soslaio viu que Sua
Excelência o duque estava dançando com a Lady
Underwood.
A música finalizou, mas Fleur não teve oportunidade
de sentar-se atrás do pianoforte tal e como tinha
planejado. Sir Philip Shaw ficou a fazer reverências para
sua mão.
—Ah, mas a senhorita Hamilton está esgotada pelos
esforços realizados ante o pianoforte — comentou
Matthew sorrindo—. Ia levá-la à entrada, Shaw, para que
tomasse um pouco o ar.
—Pequena fantasia de diabo afortunado é você,
Brockehurst — murmurou Sir Philip, olhando
languidamente a Fleur de acima a abaixo—. Suponho
que não posso recordar que também me conhece de
antes, verdade, senhorita Hamilton?
Fleur pôs uma mão no braço do Matthew e levantou
o queixo. Ele a levou a entrada e até a elevada galeria
sob a cúpula. Devia ter encontrado a escada durante o
dia. Fleur nunca tinha estado ali antes.
Pareciam estar muito mais acima do que parecia
encontrá-la galeria de abaixo, embora aparentemente a
cúpula seguia ficando muito por cima. Mas não estavam
ali para contemplar as vistas. Matthew a apoiou contra a
parede interior com seu corpo e a beijou: beijou seu
rosto, sua garganta e seus seios através do tecido do
vestido. Acariciou-lhe os seios com as mãos, e pôs um
joelho entre suas pernas. A seguir abriu a boca por cima
da jovem e abriu caminho entre seus lábios fechados
com a língua. Ela permaneceu quieta e passiva.
—Nunca me deste uma só oportunidade, Isabella —
sussurrou—. Nunca te gostei só porque minha mãe e
minha irmã sempre lhe trataram mal, e possivelmente
porque meu pai foi muito vago para intervir. E porque
não me fixei em ti quando foi uma moça. Mas nunca me
levei abertamente mal contigo. Fi-lo?
—Não até os últimos anos.
—Quando me levei mal? —perguntou—. Ah,
suponho que voltará a me reprovar sobre do Booth. Não
quer reconhecer que te estava fazendo um favor,
Isabella. Esse homem não é para ti.
—E você sim?
—Sim, sou-o. Quero-te, Isabella. Adoro-te. E poderia
te ensinar a me amar se me desse a oportunidade, se
não te fechasse à idéia de estar comigo.
—Possivelmente poderia haver eu gostado —
começou ela—, e poderia te haver respeitado se me
tivesse mostrado um pouco de respeito, Matthew. Mas
sempre foste assim, sempre te dedicaste a me agarrar e
a declarar seu amor por mim. Claro que no passado,
sempre pude enfrentar a ti. Agora já não sou livre. Não
posso fazer uma cena nesta casa e gritar, como eu
gostaria de fazer. Sou uma criada e você é um
convidado. E não posso te pedir que me deixe em paz.
Não tenho nenhum desejo especial de que me
pendurem. Mas se me quisesse, não jogaria a este jogo
cruel comigo. E não me dedicaria cuidados que sabe que
não são bem-vindas.
—Isso é porque não me dá uma oportunidade…
Mas Matthew olhou detrás dele naquele momento e
lhe tampou a boca com toda a palma da mão. Ouviram-
se passos abaixo, e ambos viram sua Excelência o
duque cruzar a entrada lentamente, olhando a seu redor.
Deve ter passar muitos minutos ali antes de entrar na
galeria alargada e atravessar suas portas.
—Busca a ti? —perguntou Lorde Brockehurst,
voltando-se para o Fleur e apartando a mão—. É como
se fosse seu cão guardião, não é certo, Isabella? O qual
resulta bastante estranho em um duque em relação a
uma humilde governanta, não te parece? Acaso lhe
entrega o que me nega? Tome cuidado se o faz. Se
descobrir que é assim, pendurarão seu pescoço até que
esteja morta. Prometo-te que assim será.
—Isso sim que são palavras de amor…
Ele a beijou agressivamente, de modo que Fleur se
fez mal no interior da boca com seus próprios dentes.
—São as palavras de um amante ciumento e
frustrado —afirmou ele—. Eu te amo, Isabella.
Fleur se teria ido a seu quarto quando finalmente ele
a levou outra vez até a galeria. Tinha a boca torcida e o
cabelo emaranhado. Sentia-se suja. Mas Matthew a
agarrava por cotovelo. E ela tinha acessado a tocar em
um baile durante a noite, durasse o que durasse. Ao
voltar para salão, sentiu-se aliviada a ver que o senhor
Walter Penny a requeria com certo entusiasmo: esperava
dançar com a senhorita Dobbin, que se mostrava
reticente.
Fleur se sentou no pianoforte e continuou tocando.
Perguntou-se quão tarde devia ser. Dava a sensação de
que o amanhecer devia estar iluminando as janelas. Mas
não era assim.

Capítulo 15

O duque de Ridgeway pensou que o baile tinha sido


uma boa idéia. A maioria dos convidados pareciam estar
passando bem, e certamente era preferível a outra noite
de charadas. A música era animada. A senhorita Dobbin
tocava de uma maneira aceitável e Fleur Hamilton tocava
bem. E esta última não parecia ter lamentado
absolutamente que lhe pedissem que tocasse.
Teria sido uma boa noite se todo mundo se ficou no
salão para desfrutar de do baile e da companhia de
outros. Mas como sempre parecia ocorrer nos bailes e
danças, por informais que fossem, acabavam
desaparecendo casais.
Ele não queria preocupar-se com o fato de que
Mayberry se retirou com a senhora Grantsham, embora
lhe incomodasse que as pessoas pudessem comportar-
se com semelhante falta de decoro nas casas de outros
e sob o olhar de cumplicidade dos criados dos outros.
Mas se preocupava com o Sybil e Thomas, e também
pelo Fleur e Brockehurst.
Sybil e Thomas tinham desaparecido a meia hora. E
o duque se encontrava dividido entre o desejo de ficar no
salão para falar e sorrir a seus convidados e dançar com
as damas e a necessidade de ir em sua busca e trazê-
los outra vez ao salão antes que indevidamente se
começasse a murmurar sobre eles.
Mas pode ser que já tivesse ocorrido. Não ocultavam
sua mútua preferência. E aquela era sua preocupação
principal, a fofoca? Estava disposto a observar tudo os
sinais de que se reatou a aventura entre sua mulher e
seu irmão a condição de que fossem discretos?
E logo Fleur Hamilton saiu da habitação com o
Brockehurst, e sua preocupação aumentou. O duque
tinha prometido que em sua propriedade e sob seu
amparo estaria seguro. Mas acaso a estavam
acossando? Sorria quando saiu da habitação, e não
tinha havido provas de que a estivessem coagindo. Pode
ser que estivesse desfrutando do fato de poder mesclar-
se com os convidados, de dançar com um deles, de que
a tivessem eleito e estivesse recebendo mais cuidados
pessoais ainda.
Mas também recordava o terror que tinha mostrado a
primeira noite que se fixou no Brockehurst. O fato de que
ambos afirmavam que só se conheciam um pouco, mas
ele a tinha chamado Isabella. E o fato de que ele era o
proprietário do Heron House e ela tinha vivido em um
lugar chamado «Her…»
O duque observou aos cavalheiros escolher casal
para formar uma equipe, assegurou-se de que nenhuma
dama que parecesse desejosa de dançar ficasse sem
acompanhante, e saiu sigilosamente da habitação.
Não havia ninguém na entrada principal. Os lacaios
se retiraram. Mas ouviu vozes ao entrar. Vinham de
detrás de uma das colunas? Dos arcos que conduziam
às escadas? Passeou-se em silêncio, mas não se via
ninguém. E as vozes cessaram. Pode que as tivesse
imaginado. As portas que conduziam ao salão e à galeria
alargada estavam fechadas.
Mas por fim caiu na conta do lugar de onde
procediam, e permaneceu em metade da entrada
resistindo o impulso de olhar para cima: vinham do velho
esconderijo que Thomas e ele tinham utilizado
incontáveis vezes quando meninos. Dedicavam-se a
deitar-se no chão para observar aos que chegavam,
burlavam-se das conversações dos lacaios quando
acreditavam que estavam sozinhos e imitavam os sons
dos mochos tentando assustar a esses mesmos lacaios.
Deviam ser Thomas e Sybil. Deveria olhar para
cima?
O enfrentamento teria que ter lugar. Mas preferiria
postergá-lo até um momento no que não tivesse que
voltar a entreter a seus convidados imediatamente
depois.
E o que ocorria com o Fleur Hamilton e Brockehurst?
Tinham ido à galeria alargada a última vez que tinham
estado juntos, aquela noite que tinha terminado de um
modo muito dramático. Cruzou a entrada até a galeria,
abriu a porta e entrou.
Um dos candelabros que se encontrava em metade
da galeria alargada estava aceso, mas a habitação
estava quase às escuras; umas sombras densas se
estendiam para fora da fonte central de luz.
Estavam no extremo mais afastado da galeria,
fundidos em um estreito abraço. Não o tinham ouvido
entrar. E naquele mesmo instante ele teve que decidir se
partia tão silenciosamente como tinha chegado ou dar a
conhecer sua presença. Ela não opunha resistência.
Poderia ser que lamentasse sua intrusão em um
momento romântico. Ou possivelmente o necessitava.
O duque caminhou lentamente pela galeria, sem
tentar esconder-se nas sombras ou amortecer o som de
seus passos. E quando só tinha percorrido meio
caminho, separaram-se e se voltaram para olhá-lo.
Eram Sybil e Thomas.
A duquesa apartou bruscamente a vista para olhar
pela janela para a escuridão. Lorde Thomas olhou aos
olhos de seu irmão na penumbra e sorriu.
—Invadiu-me a necessidade de renovar o
conhecimento de meus ancestrais — comentou Thomas
—. Mas ai, este não é exatamente o melhor momento do
dia para olhar quadros. Terei que fazê-lo outra vez à luz
do dia.
—Sim — interveio o duque—. Também quero ter
umas palavras contigo pela manhã, Thomas. Mas agora
não. Agora há damas no salão que agradeceriam sua
oferta das acompanhar em um baile. Sybil e eu lhe
veremos ali breve.
Lorde Thomas se voltou para dirigir-se à duquesa.
—Quer voltar comigo, Sybil, ou com o Adam?
—Voltará comigo — murmurou Sua Excelência. A
duquesa não disse nada. Lorde Thomas se encolheu de
ombros.
—Enfim… Sei que quando baixas tanto a voz, Adam,
os murros não demoram para chegar se me ponho a
discutir. E não esta bem que nossos convidados nos
vejam com os narizes sangrantes, verdade? —Tocou-lhe
o ombro à duquesa—. Estará bem, Sybil?
Mas a duquesa tampouco disse nada esta vez. Lorde
Thomas voltou a encolher-se de ombros e começou a
percorrer a galeria.
O duque esperou muito momento, até que finalmente
ouviu que se fechava a porta ao partir seu irmão.
—Bom, Sybil… —murmurou.
Sybil se voltou para ele. A débil luz procedente das
velas fazia resplandecer seu cabelo loiro. Mas o rosto da
duquesa estava escurecido.
—Bom, Adam — começou ela. A doce voz lhe tremia
um pouco—. O que vais fazer a respeito?
—O que quer que faça? —perguntou-lhe—. Quão
longe chegou? Suponho que volta a amá-lo o qual em
realidade significa que alguma vez deixou de fazê-lo…
verdade? São amantes?
Ela riu um momento.
—Divorciar-te-ia de mim se dissesse que sim? —
perguntou a duquesa—. O faria, Adam? Seria um
escândalo incrível, não te parece? —A voz lhe tremia de
maneira quase descontrolada.
—Não — respondeu ele—. Nunca me divorciaria de
ti. Acredito que já sabe. Mas quando nos casamos
fizeram algumas promessas. Parece-me que nos deve
isso dois e a Pamela e a todos os que dependem de que
nós cumpramos essas promessas. Thomas forma parte
de seu passado, e isso não se pode mudar. Converteu-
se em algo irrevogável quando te casou comigo.
—Que escolha tinha? —gritou ela apaixonadamente
—. Que escolha tinha? Teria arruinado minha reputação
para sempre, e você tinha feito que ele partisse e que
não voltasse jamais. E não deixava de vir e insistia em
que aceitasse seu amparo antes que papai descobrisse
a verdade. Não tive nenhuma alternativa. É um homem
malvado, Adam.
—Pode ser. Mas você tampouco foste exatamente a
companheira ideal, Sybil. Tiramos toda a partida que
podemos ao que temos feito com nossas vidas.
—Não me culpe por não querer que me toque —
gemeu ela, olhando-o com profunda repugnância—.
Essas pessoas teriam sido melhores contigo se lhe
tivessem deixado morrer. Só é meio homem.
—Será melhor que voltemos com nossos
convidados.
—E falas de que eu tenho que cumprir promessas —
continuou Sybil, com o mesmo tom de voz irascível
habitual durante suas brigas—. Pode afirmar
sinceramente que você cumpriste as tuas, Adam? Pode
afirmar que alguma vez me foste infiel?
Ele a olhou sem responder.
—Acredita que não conheço o motivo de suas
freqüentes viagens a Londres? Acredita que não sei por
que de repente, esta vez pensou que Pamela
necessitava uma governanta? Não me fale de votos
maritais. Se tiver cedido a meu amor pelo Thomas, é
porque me vi empurrada por sua dissipação e sua
crueldade. —Procurou um lenço a seu redor e finalmente
agarrou o que lhe tendia.
—Vamos, isso são tolices, como você bem sabe —
protestou o duque—. Seque os olhos, Sybil, e assue o
nariz. Já levamos muito tempo separados dos
convidados.
Ela se voltou em silêncio e começou a caminhar pela
galeria. Quando chegaram às portas, ele as abriu,
agarrou o lenço da mão dela e passou o braço pelo da
duquesa. Olhando o bonito rosto de sua esposa, com o
olhar azul agora cabisbaixo e o cabelo loiro platino, o
duque pensou que por muito desagradável e hipócrita
que pudesse parecer ainda terei que guardar certas
aparências.
E Sybil, é obvio, também se precaveu disso. Voltou a
iluminar-se assim que entraram no salão. Quase todo
mundo estava dançando. Fleur Hamilton estava tocando
o pianoforte.

Fleur foi a última em partir do salão. Todos os que


tinham dançado já se foram partindo à cama, e uns
poucos criados tinham entrado para desenrolar o tapete
e voltar a ordenar a habitação. Fleur revisou as partituras
e decidiu as devolver à sala de música antes de ir-se
também a dormir.
Era muito tarde. Estava cansada. Mas não queria ir-
se à cama. Preferia seus pensamentos quando podia
controlá-los de algum modo. Não queria ter os pesadelos
que tão freqüentemente lhe perturbavam o sonho.
Colocou o candelabro que havia trazido em cima do
pianoforte da sala de música, guardou cuidadosamente
as partituras e alargou outra vez a mão para agarrar o
candelabro.
Mas o pianoforte, muito maior e de tom mais
melodioso que o do salão, atraiu-a como um ímã. Posou
os dedos delicadamente sobre as teclas, sem as apertar.
E tocou lenta e delicadamente uma escala.
Sentou-se no tamborete e tocou uma peça do Bach,
uma sonata rápida e enérgica, com os olhos fechados.
Tocou bastante energicamente. Possivelmente se
concentrava com suficiente intensidade, se tocava com
suficiente energia, poderia afogar seus pensamentos.
Possivelmente poderia afogar ao Matthew.
Mas a música chegou indevidamente a seu fim.
Devia abrir os olhos e meter-se na cama e aceitar o que
lhe proporcionasse o resto da noite. Fleur suspirou.
Parecia que tivesse passado muito tempo da noite
anterior com o senhor Chamberlain.
—Oxalá dominasse o suficiente o teclado para poder
arejar minhas frustrações dessa maneira — disse uma
voz procedente de detrás dela.
O duque de Ridgeway! Fleur ficou em pé de um
salto.
—Não pretendia assustá-la. Não pude resistir a me
aproximar um pouco mais para ouvir a música.
—Sinto muito, Sua Excelência. Hei devolvido as
partituras. Não pude resistir a tocar uma só peça mais.
—Depois de tocar toda a noite? —perguntou o duque
sorrindo—. Tenho que lhe agradecer por isso, senhorita
Hamilton. Estou muito agradecido.
—O prazer foi meu, Sua Excelência.
O duque deu uns poucos passos mais em direção a
ela.
—Era você a que estava ali acima na galeria? Com o
Brockehurst?
Fleur sentiu que lhe entravam calafrios.
—Sim, Sua Excelência.
—Foi você com ele livremente? Obrigou-a?
—Não, Sua Excelência. —ela o olhou aos olhos
escuros. Acaso estava a ponto de despedi-la?
—Mas como. —Assinalou seu lábio superior,
ligeiramente inchado—. Cortou-se?
Ela não respondeu.
—Tem-no feito com seu consentimento?
—Sim. —Ela se esclareceu voz ao não conseguir
emitir nenhum som—. Sim, Sua Excelência.
O duque apertou os lábios ao olhá-la aos olhos. E se
passou uma mão pela frente e meneou a cabeça.
—Venha à biblioteca comigo — propôs—, para tomar
uma taça antes de ir dormir.
Ele se dirigiu para a porta da biblioteca sem voltar-se
para olhar se ela o seguia. Mas sim que se virou quando
abriu a porta, levantando as sobrancelhas. Fleur
atravessou a habitação e entrou antes que ele na
biblioteca, onde as velas estavam acesas.
O duque serve um pouco de xerez, e escolheu
brandy para ele. Assinalou a Fleur a cômoda poltrona de
couro que se encontrava a um lado da chaminé e lhe
entregou sua taça antes de agarrar uma cadeira e
instalar-se ao outro lado.
—Pela boa saúde, Fleur Hamilton — brindou,
levantando sua taça para ela— e pela felicidade. Isto
último é algo esquivo, não lhe parece? —E bebeu de sua
taça.
Fleur sorveu seu xerez e não respondeu. Ele se tinha
acomodada na cadeira, relaxado, cômodo, informal. Ela
se sentou com as costas retas e tensas na sua.
—Fale-me de você —pediu o duque—. Ah, mas sem
descobrir nada do mistério do que gosta de rodear-se.
Quem lhe ensinou a tocar?
—Minha mãe. Quando era muito jovem. Meu tutor
contratou a uma professora de música para seus
próprios filhos e para mim mais adiante. E na escola.
—Na escola… aonde foi? Não, isso não me
responderá isso, suponho. Quanto tempo esteve ali?
—Cinco anos. Broadridge School. Já o disse ao
senhor Houghton.
Ele assentiu.
—Muito tempo… gostou, além da música e as lições
de baile?
—Acredito que tive uma boa educação. Mas era uma
disciplina estrita e sem humor. Ali não havia muito
carinho.
—Mas passou vários anos ali… havia carinho em sua
casa?
Ela baixou a vista para sua taça de xerez.
—Fomos uma família muito feliz enquanto meus pais
viveram — explicou—. Nada podia resultar muito
carinhoso quando eles morreram. Eu era muito jovem, e
diria que era de trato difícil.
—Você foi a órfã rechaçada, já o entendo. E não
tentaram casá-la jovem?
Fleur pensou nos dois granjeiros, ambos de mais de
cinqüenta anos, que lhe tinham devotado antes que
tivesse nem sequer dezenove anos, e na fúria da prima
Caroline quando os rechaçou a ambos.
—Sim.
—Mas você resistiu. Suspeito que é você muito dura,
senhorita Hamilton. Teimosa em extremo. É assim como
a descreveu seu tutor e sua família?
—Às vezes.
—Imagino que freqüentemente. Alguma vez
conheceu a ninguém com quem desejasse casar-se?
—Não — respondeu rapidamente. E pensou em
como se apresentou ultimamente Daniel em seus
pesadelos, de maneira que sua imagem aparecia e
desaparecia mesclando-se com a do duque.
—E ele também queria casar-se com você? —
perguntou-lhe.
De repente ela o olhou e voltou a olhar no interior de
sua taça outra vez.
—Não estava disponível?
—Não — respondeu ela sem ânimo.
—Então foi uma maldade? Não lhe permitiram casar-
se com ele? Você tem dote?
—Sim.
—Mas suponho que não poderá dispor dele até que
se case ou chegue a uma certa idade —continuou o
duque—, e seu tutor deve ser malvado. Por que fugiu,
Fleur? Não quis fugir seu pretendente com você? O
dinheiro era mais importante para ele que você mesma?
—Não! —protestou ela, olhando-o com ferocidade—.
Minha fortuna não interessava absolutamente ao Daniel.
—Daniel… — murmurou ele.
Fleur ficou a dar voltas ao líquido escuro de sua taça.
Não pensava que fosse capaz de levar-lhe aos lábios.
—Amava-o? —perguntou-lhe—. O ama?
—Não — respondeu ela—. Disso faz muito, muito
tempo. —E realmente parecia como se tivesse
pertencido a outra vida.
Ele bebeu o brandy que ficava na taça e ficou em pé.
—Beba o insistiu a governanta, e alargou a mão para
agarrar a taça dela—. É hora de para a cama.
Ela tomou outro sorvo mais e entregou a taça meio
vazia. Colocou-a junto à sua em uma mesa que ficava ao
lado da cadeira e lhe estendeu a mão. Fleur olhou os
dedos largos, bonitos e bem cuidados e, decidida, pôs
sua mão no interior da palma dele. Observou como os
dedos do duque se fechavam em torno dos seus e ficou
em pé.
O duque não se moveu.
—Não confia em mim? —perguntou—. Não quer me
deixar que a ajude? Não foi porque você quisesse,
verdade? Não o consentiu absolutamente, verdade? —E
passou delicadamente um dedo pelo lábio superior da
garota.
Ele procurou seu pulso e a agarrou com força.
—Não há nada que confiar. Não há nenhum mistério.
—E não obstante, preferia sua vida tal e como se
tornou em Londres a que tinha deixado atrás? E seu
Daniel não foi atrás para resgatá-la?
—Ele não sabia que eu ia — explicou a garota,
agarrando-o ainda os pulsos—. Não soube aonde ia.
—Fleur, se eu a amasse, e soubesse que você me
ama, removeria céu e terra para encontrá-la se
desaparecesse.
Os olhos dela percorreram sua cicatriz do queixo à
boca, subindo pela face até o olho. E o olhou aos olhos.
—Não. Ninguém ama tanto — protestou ela—. É um
mito. O amor pode ser prazenteiro e tenro. Pode ser
egoísta e cruel. Mas não é a paixão devoradora da
poesia. O amor não pode mover montanhas, nem
desejaria fazê-lo. Não culpo ao Daniel. O amor não é
assim.
—Mas mesmo assim — continuou ele, com o olhar
escuro cravado no dela—, se eu a amasse, Fleur,
moveria montanhas com minhas próprias mãos se me
mantivessem afastado de você.
Ela riu um tanto insegura.
—Se eu fosse, se eu fosse… isso é um jogo de
meninos. É muito fácil viver imaginando-se situações.
Mas a vida real é distinta.
Fleur soube que a ia beijar vários instantes antes que
seus lábios tocassem os seus. Mais tarde, imaginou que
poderia havê-lo evitado. O duque não a aprisionou entre
seus braços nem a empurrou contra a parede. Mas não
fez nada para evitá-lo. Estava rígida do susto, e lhe
seguia sujeitando os pulsos como um torno. E também
sentia uma certa fascinação por ver o rosto duro e
escuro, que não se abatia sobre ela como em seus
pesadelos, mas sim se inclinou para seu rosto até que se
viu obrigada a fechar os olhos.
E para sua surpresa, seu beijo resultou tão distinto
do Matthew ou o do senhor Chamberlain que no
momento não pensou em apartar-se. Não se produziu a
opressão em lábios e dentes que se produziu
anteriormente na galeria, nem a pressão firme da noite
anterior, a não ser uma calidez ligeira e delicada, um
movimento vivo sobre seus próprios lábios que lhe fez
abri-los de modo que terminaram inundados em uma
calidez úmida e com sabor a brandy.
Era só o terceiro homem ao que tinha beijado em sua
vida, o qual resultava estranho, tendo em conta que lhe
tinha feito todas aquelas coisas fazia mais de um mês.
Mas não o tinha acompanhado de nenhum beijo.
A seguir lhe entrou o pânico e jogou a cabeça para
trás para apartar-se dele.
Captou a expressão do rosto do duque antes que a
rodeasse com um dos braços e lhe acontecesse o outro
detrás da cabeça para apertá-la contra as dobras de seu
lenço. O homem parecia perdido, aflito, e também o
percebeu em sua voz quando falou.
—Não me rechace, Fleur. Por favor. Só durante uns
instantes não me rechace. Não tenha medo de mim.
Mas cada parte do corpo dela estava apoiada contra
ele e recordou o que sentiu ao vê-lo: recordou que era
viril e o bastante forte para lhe arrebatar a vida com suas
próprias mãos, e que tinha umas terríveis cicatrize
moradas de feridas que lhe desciam pelo flanco e a
perna esquerda. E recordou seu tato, suas mãos, seus
polegares, os joelhos lhe separando as pernas. E o que
sentiu quando se meteu em seu interior, quando a
rasgou, e os empurrões e retiradas sucessivas até que
terminou e parecia que a tinha esvaziado de tudo.
Mas também recordou a amabilidade de haver pago
mais e o fato de lhe dar aquele emprego, a preocupação
por seu bem-estar, a surpreendente calidez e suavidade
de seu beijo, a vulnerabilidade de seu rosto e em sua
voz. E a terrível solidão de Fleur.
E resultava difícil agarrar aquela lembrança e a
realidade presente e combiná-los na mente. Resultava
difícil de acreditar que fora o mesmo homem. Resultava-
lhe difícil sentir com o corpo a repugnância que sua
mente lhe ordenava sentir.
Apoiada ainda contra ele, Fleur se obrigou a relaxar-
se, a sentir o corpo do duque contra o seu sem retrair-se.
E depois de tudo não o resultou tão difícil de fazer.
—Só estes momentos — murmurou ele. Estava
esfregando delicadamente a face contra a testa da
garota.
Fleur não sentiu que levantou a cabeça
conscientemente. Mas deveu fazê-lo porque voltou a
olhá-lo aos olhos e levantou a cabeça em busca de seu
beijo. E de novo os quentes lábios dele se posaram
delicadamente sobre os seus e se deslocaram por cima,
e os percorreu brandamente com a ponta da língua até
que os abriu e abriu a boca, lhe concedendo o que
Matthew lhe tinha pedido antes e não lhe tinha dado.
O duque esfregou sua língua contra a dela, rodeou-a,
explorou a branda carne no interior de sua boca e a
carne sensível no paladar.
Fleur se ouviu choramingar, e apaziguou tanto ao
seu corpo como a sua mente para que não pensassem
no que estava fazendo e com quem o estava fazendo.
Não deixaria que seus pesadelos interferissem naquele
instante de vigília. E só era um instante. Só aquele
instante. Ao abraçar ao duque, notou que tinha os
ombros largos e firmes, e o cabelo grosso e sedoso ficou
enredado em seus dedos.
O duque separou seus lábios dos da garota para lhe
beijar a face, os olhos e as têmporas. E a envolveu com
ambos os braços, sustentou-a arqueada contra ele e
apoiou a face contra sua testa.
—Deus! —suspirou—. OH, Meu Deus! —Seus
braços se aferraram como tiras de ferro ao redor de Fleur
—. Meu Deus!
Fleur sentiu seu fôlego entrecortado, e ele a soltou.
Ficaram olhando o um ao outro.
—Fleur… — murmurou ele. Levantou uma mão, e ela
a olhou e voltou a recordar a quem pertencia e o que lhe
tinha feito. Pôs-se a tremer quando lhe sustentou uma
das faces com ela—. Oxalá pudesse dizer que o sinto.
Deus, como eu gostaria. Amanhã lhe pedirei desculpas.
Esta noite não posso me sentir culpado. Que Deus tenha
piedade de mim. Vá-se à cama. Esta noite não posso
acompanhá-la. Não seria capaz de me deter na porta.
Fleur se dirigiu precipitadamente para a porta,
procurou provas o pomo e saiu a toda pressa, subiu
ruidosamente as escadas e correu pelo corredor até seu
quarto como se pensasse que ainda a seguia.
Mas não era dele de quem fugia. A pessoa de quem
fugia estava na habitação com ela face à velocidade com
a que tinha fugido, e em que pese a ter fechado a porta a
toda velocidade com dedos trementes.
O que tinha feito? O que tinha permitido que
acontecesse? Tinha os mamilos excitados e sensíveis.
Sentia uma forte vibração no lugar onde lhe tinha
causado uma dor tremenda a vez anterior. Notava o
sabor de seu brandy. Seu corpo era um torvelinho de
sensações. E sua mente lhe estava dizendo de maneira
desapaixonada quem era e a maneira precisa em que a
tinha convertido em uma puta e quanto dinheiro lhe tinha
posto depois na palma da mão. Era um homem que
pagava às mulheres para obter favores sexuais. Tinha-
lhe pago.
Uma vez lhe havia dito que só lhe tinha sido infiel a
sua mulher em uma ocasião. E quase se havia sentido
inclinada a acreditar. Agora se sentia inclinada a
acreditar que tinha conseguido ver a vulnerabilidade em
seu rosto e a tinha percebido em sua voz. Queria
enganar-se. Não queria interpretar seu escarcéu como o
fato sórdido que tinha sido em realidade. Tinha permitido
a um homem casado, a seu senhor, que se tomasse
umas liberdades incríveis com sua pessoa. E não tinha
sido só por parte dele: ela também o desejava.
Era dela mesma de quem fugia. Mas estava consigo
mesma detrás da porta fechada.

Capítulo 16

O duque de Ridgeway não tinha nem idéia de se


Fleur tinha ido à sala de música à manhã seguinte para
seus exercícios matutinos. Saiu a galopar um bom
momento e sentindo-se intranqüilo no lombo de Aníbal.
Expôs-se seriamente não voltar para a casa. Tinha
muitas coisas que fazer em suas outras propriedades,
assuntos que tinha descuidado um tanto por ter que
entreter a seus convidados. Precisava comprovar o
estado das colheitas e examinar o gado recém-nascido.
E é obvio sempre havia inquilinos e camponeses com os
que falar, aos que tinha que convencer de que lhe
interessava seu bem-estar e lhe preocupavam seus
queixa.
Ou poderia cavalgar além de suas terras. Poderia
passá-la manhã com o Chamberlain. Logo que tinha
falado com seu amigo desde que havia tornado de
Londres. Os convidados que se alojavam em casa
tendiam a isolar o de seus vizinhos e seus hábitos
correntes.
Mas resistiu ambas as tentações. Tinha dois
assuntos importantes aos que enfrentar-se em casa,
ambos igualmente desagradáveis.
Baixou coxeando e gritou a seu ajudante de quarto
que o fora a procurar roupa decente para não ter que ir
tomar o café da manhã cheirando como um cavalo.
—Espero que não tenha castigado ao pobre Aníbal
tanto como se castigou a si mesmo — comentou Sidney
—, ou se encontrará com os moços descontentes a
próxima vez que vá aos estábulos. Ajudar-lhe-ei a tirá-la
roupa de montar, senhor, e lhe darei uma massagem
rápida antes de me preocupar com a outra roupa. Deite-
se.
—Guarde a sua maldita insolência — espetou Sua
Excelência—. Não tenho tempo para massagens.
—Se passar todo o dia com essa dor —insistiu
Sidney, imperturbável—, ladrará a todos os criados, não
só a mim, senhor, e além todos me jogarão a culpa
disso, como fazem sempre. Deite-se.
—Maldito seja! —protestou o duque—. Sempre trato
a meus criados com cortesia.
Sidney lançou um olhar eloqüente e Sua Excelência
se deitou. Grunhiu quando o homem colocou as mãos
em seu lado dolorido. E lhe massageou o olho esquerdo.
—Aí — indicou Sidney como se falasse para
tranqüilizar a um menino. O duque não pôde evitar sorrir
—. Encontrar-se-á melhor dentro de um minuto. Está
tenso como um mole, senhor.
Fleur não estava no quarto de estudo. E quando foi
até ali o duque descobriu que tampouco estava no quarto
de brincar. Mas Pamela estava acordado e
entusiasmado ante o prazer inesperado de que a
acompanhasse enquanto tomava o café da manhã.
Dava-lhe as cascas do pão a cachorrinha, que estava no
chão junto a ela, ofegando e com uma expressão
esperançada. Por fim no dia anterior tinham declarado
que o cão podia entrar na casa e permanecer dentro
dela, em determinadas condições estritas.
—Pensava que tínhamos acordado que Pequenina
não comeria comida da mesa — brigou seu pai—. Tem
sua própria comida especial, verdade?
—Mas não lhe dou comida boa, papai — protestou a
filha, e baixou a voz—. A tata está furiosa esta manhã.
Pequenina molhou a cama.
O duque fechou os olhos um instante.
—Pensava que também tínhamos acordado que
Pequenina não dormiria na cama, a não ser ao lado ou
debaixo.
—Mas papai, não deixava de chorar e de morder as
mantas com seus dentinhos! Teria sido cruel fazer que
ficasse abaixo.
—Uma só queixa da tata a mamãe — ameaçou o
duque—, e Pequenina voltará para os estábulos.
Entende-o, não?
—A tata não se queixará. Limpei o local molhado
com meu próprio lenço. E elogiei a nova touca da tata.
O duque voltou a fechar os olhos. Mas ouviu que a
senhora Clement já se aproximava do outro lado da
habitação.
—Quero falar com a senhorita Hamilton antes que
comecem as aulas da manhã, senhora Clement —
exigiu, ficando em pé—. Ficará aqui com Pamela até que
a mande a procurar?
—Certamente, Sua Excelência — respondeu ela,
fazendo uma reverência—. Ontem à noite tivemos um
pequeno acidente com o cão. O contou Lady Pamela?
—Sim, tem-no feito. E acredito que decidimos que
não voltará a ocorrer.
Fleur não tinha chegado ainda ao quarto de estudo.
O duque ficou a dar voltas ao globo com dedos nervosos
e tocou com um dedo no piano. Olhou uma pintura que
tinha feito Pamela de um dos caprichos e uma que tinha
pintado a própria Fleur. Agarrou-a e pensou que também
tinha talento como pintora.
Deixou-a quando se abriu a porta detrás dele, e
desejou ter ensaiado alguma classe de discurso, mas
não o tinha feito a propósito: odiava os discursos
ensaiados. Só lhe serviam para que lhe travasse a
língua.
Voltou-se para olhá-la. Ainda tinha o lábio um pouco
inchado. As olheiras indicavam que não tinha dormido
bem. Mas ia preciosa com seu vestido verde, e como de
costume levava o cabelo recolhido em um coque no
pescoço. Permanecia muito reta, e a via alta e esbelta,
com agradáveis curvas femininas. Tratava-se da mulher
mais bonita que tinha conhecido.
Custava-lhe recordar a primeira impressão que tinha
tido dela: a de que se tratava de uma prostituta fraca
com o cabelo sem brilho, a pele pálida, as olheiras
marcadas sob os olhos e os lábios secos e partidos. E
com aquele vestido de seda azul com um tom apagado e
enrugado. Custava-lhe precaver-se de que era a mesma
pessoa.
—Senhorita Hamilton. Devo-lhe uma desculpa.
—Não — interveio ela, ficando onde estava, junto à
porta—. Não é necessário.
—Por quê?
—Ontem à noite me disse que não o lamentava.
Disse-me que hoje me pediria desculpas. Seriam
palavras vazias, Sua Excelência.
Ele a olhou e soube que tinha razão. Não o
lamentava. Ao menos, não em certo sentido. Aqueles
momentos lhe tinham permitido voltar a provar a
felicidade, como os minutos de sua louca corrida a
cavalo juntos. E ele sabia que, por muito equivocado que
estivesse, viveria da lembrança daquele abraço durante
muito tempo.
—Lamento a falta de respeito que lhe mostrei,
senhorita Hamilton, e a aflição que devo lhe haver
causado. E lamento ter desonrado a minha esposa e
meu matrimônio. Rogo-lhe que aceite minhas desculpas.
Fleur tinha o queixo levantado, e uma expressão de
serenidade em seu rosto. Olhou-o como o tinha
cuidadoso quando se sentou e lhe ordenou que se
tirasse a roupa, e ela a tirou fazendo ornamento de uma
dignidade tranqüila, dobrando-a cuidadosamente e
colocando-a a seu lado.
Fleur!
O duque fechou os olhos um instante.
—Fará-o?
Ela duvidou.
—Sim, Sua Excelência — disse finalmente.
«Adam», queria que dissesse ela. «Meu nome é
Adam.» Queria ouvir o dizer.
—Não a quero entreter —comentou, cruzando a
habitação para o Fleur—. Farei que lhe tragam para
Pamela.
Ela se fez a um lado, longe da porta.
—Obrigado, Sua Excelência.
Fleur baixou a vista. O duque se precaveu de que
ainda coxeava. Fechou a porta do quarto de estudo sem
fazer ruído detrás dele. Esse maldito Sydney! Estava
perdendo o sentido do tato? O flanco e a perna lhe
ardiam como uma lacerante dor de dente. Fez esforços
por controlar sua dor ao apresentar-se na habitação de
jogos e inclinar-se para beijar a sua filha, e ao baixar
para cumprir com outra entrevista.
Lorde Thomas Kent já se encontrava na biblioteca,
sentado com uma taça na mão face ao cedo que era, e
com um pé cruzado sobre o outro joelho.
—Isso também estava acostumado a fazê-lo papai —
comentou sorrindo, levantando sua taça a modo de
brinde quando seu irmão entrou na habitação—. Lembra-
se, Adam? Citava-nos aqui e logo nos deixava
esperando-o como uma hora. Não nos atrevíamos a
esperá-lo em outro lugar que não fosse diretamente
diante de seu escritório, e não nos atrevíamos a mover
um músculo nem a falar o um com o outro porque nunca
sabíamos em que momento exato se abriria a porta. Era
quase pior que as surras que sabíamos que chegariam
ao final, verdade? —riu.
O duque foi sentar se atrás do mesmo escritório que
aterrorizava ao Thomas e a ele quando eram meninos.
—Diga-me —começou Lorde Thomas—, vais fazer
que me incline sobre o escritório, Adam? Vais utilizar um
fortificação?
—Está apaixonada por ti — respondeu Sua
Excelência, olhando por volta da mesa—. Sempre o
esteve. Teve a sua filha, Thomas. E agora tem que voltar
para brincar com ela e comigo?
—Ah! —exclamou seu irmão, levantado a taça à
altura do olho—. Isto não vai ser um castigo, a não ser
um sermão. O que aborrecido. E ainda a adora, Adam?
—Casei-me com ela. É minha esposa. Devo-lhe
meus cuidados e meu amparo.
Lorde Thomas riu.
—Ela te odeia. Já sabe, verdade?
—Está-te deitando com ela? —perguntou Sua
Excelência olhando diretamente a seu irmão.
—Com a mulher de meu irmão? —Lorde Thomas
elevou as sobrancelhas—. Não pode ser que me creia
capaz de semelhante perfídia e de tão mal gosto,
verdade, Adam?
—Está-o fazendo?
Seu irmão se encolheu de ombros.
—Está apaixonado por ela?
—O que pergunta mais tola — respondeu Lorde
Thomas, ficando em pé e examinando o mosaico em
cima do suporte da chaminé—. Como posso estar
apaixonado pela mulher de meu irmão?
—Se o estiver, possivelmente possa começar a te
perdoar. Possivelmente esteve tão mal que te partisse
faz mais de cinco anos quanto eu não insistisse em que
Sybil soubesse a verdade. Às vezes atuamos de um
modo precipitado e temos que viver para sempre com as
conseqüências. Mas de todos os modos, nada é para
sempre.
Seu irmão se voltou surpreso e lhe sorriu.
—Está-te oferecendo a te trocar de habitação por
mim enquanto dure minha estadia? Tenho que dizer que
é muito amável de sua parte, Adam.
—Se a amas realmente como ela te ama — o duque
ignorou o tom de seu irmão—, então terá que fazer algo.
—Está-te expondo o divórcio? —Lorde Thomas
continuou sorrindo—. Imagina o escândalo, Adam.
Poderia viver com ele?
—Não deve sair o tema do divórcio — respondeu
Sua Excelência—. Não faria isso a Sybil. —Fez uma
pausa e respirou fundo—. Poderia existir a possibilidade
da anulação. Teria que fazer averiguações.
Thomas cruzou a habitação para colocar ambas as
mãos no escritório e apoiar-se nele. Olhou atentamente
ao duque.
—Uma anulação? Tenho entendido que só existe
uma colocação realmente viável para a anulação…
—Sim…
—Devo entender…? —O sorriso voltou a aparecer no
rosto de Lorde Thomas—. Devo entender que durante
mais de cinco anos não desfrutaste alguma vez dos
favores de Sybil, Adam? —pôs-se a rir—. É certo, não é
assim? Pelo amor de Deus. Interpretou o papel de
amante nobre até ao final enquanto ela suspirava por
mim? Ou é que ela te rechaçou? Não foi o bastante
insensato para lhe mostrar suas feridas, verdade? —
Voltou a rir.
—A amas? —insistiu o duque.
—Sempre tive debilidade por Sybil —comentou Lorde
Thomas—. É mais encantada que quase qualquer outra
mulher em que tenha posto os olhos.
—Isso não é o que te perguntei. Casar-te-ia com ela
se tivesse oportunidade de fazê-lo?
Lorde Thomas ficou em pé e olhou a seu irmão
atentamente.
—Faria-o por ela? —perguntou—. Ou por ti mesmo?
—Faria-o, ou ao menos me expor fazê-lo, se
estivesse convencido de que Sybil teria a felicidade da
que você e eu lhe privamos.
—E Pamela? —perguntou Lorde Thomas—. Se
houvesse uma anulação, o mundo saberia que Pamela
não é sua filha.
Sua Excelência estendeu as mãos com as palmas
voltas no escritório e as olhou.
—Sim. Poderia me responder?
—Isto resulta repentino. —Lorde Thomas voltou para
a chaminé e continuou examinando o mosaico do leão—.
Necessitarei um pouco de tempo para considerá-lo.
—Claro. Tome o mais rápido enquanto esteja nesta
casa nas circunstâncias atuais, Thomas, Sybil é minha
esposa e castigarei qualquer comportamento
desrespeitoso para ela.
—Depois de tudo quer me ver inclinado no escritório
com um bastão no traseiro? —comentou sarcástico
Lorde Thomas—.Aperfeiçoaste a arte de agitá-lo no ar
antes de golpear com ele em um branco, Adam? Aquilo
lhe provocava que quase perdesse o controle da bexiga.
—Espero sua resposta para na próxima semana —
pediu o duque—. Se é que não, espero que te parta
imediatamente… e para sempre.
—Assumo que posso me retirar — disse Lorde
Thomas, voltando-se para olhar outra vez a seu irmão
com expressão sorridente—. Muito bem, Adam, separar-
me-ei de sua presença. De todos os modos acredito que
me esperam para uma excursão em um barco.
O duque continuou olhando as mãos depois de que
se fechasse a porta ao sair seu irmão. E uns poucos
minutos depois pensou que se estava deixando seduzir
por seu próprio farol.
Sua imaginação elaborou a seqüência de eventos
que as palavras de seu irmão faziam que parecesse
possível: uma anulação rápida, a marcha de Sybil, ele
mesmo livre… Livre para explorar sua atração por Fleur.
Fechou os olhos e apertou as mãos no escritório.
Tinha sido um farol, simples e sinceramente. Nem
em um milhão de anos acessaria Thomas a casar-se
com o Sybil. Claro que se por um instante tivesse
acreditado que Thomas poderia fazê-lo, não haveria nem
sequer exposto a amalucada sugestão que acabava de
fazer. Porque embora um acerto tal seria sem dúvida tão
satisfatório para o Sybil como para ele mesmo, terei que
pensar em Pamela. E Pamela sempre devia ir em
primeiro lugar, antes da felicidade de sua mãe e da sua
própria. Era uma menina inocente e indefesa.
Não, já conhecia bem ao Thomas. Gostava quando
eram jovens, quando o comportamento travesso de seu
irmão e a alegre falta de princípios não haviam trazido
consigo conseqüências mais drásticas que um castigo ou
um sermão. Mas Thomas não tinha crescido jamais.
Nunca tinha superado a irresponsabilidade da juventude.
Em seu único ano como suposto duque de Ridgeway
tinha exaurido os consideráveis recursos do Willoughby
até tal ponto que se tivesse contínuo sendo seu dono a
estas alturas poderia havê-los perdido.
Estava convencido de que Thomas era incapaz de
ter sentimentos profundos. Sem dúvida se teria casado
com o Sybil se tivesse seguido sendo duque, e
possivelmente teria sido um matrimônio razoavelmente
satisfatório, mas nunca a teria querido como ela a ele. Se
a tivesse amado, embora fora só um pouco, não a teria
abandonado quando se inteirou de que estava grávida.
O duque sabia que Thomas continuaria acossando
ao Sybil e divertindo-se com ela o tempo que gostasse
de fazê-lo. E poderia ser muito tempo. O único modo de
assustá-lo era fingir que se podia ficar apanhado com
seu brinquedo o resto de sua vida.
Thomas teria partido para quando terminasse a
semana. O duque estava bastante seguro disso. Tão
seguro que tinha arriscado o futuro de Pamela em um
farol.
Mas, Por Deus, resultava uma idéia doce, sedutora.
Ficou em pé e olhou em direção à chaminé e para a
poltrona que ficava ao seu lado, onde tinha estado
sentada Fleur a noite anterior. Tinha estado justo aí.
Ela deixou de tremer quando ele o pediu. Rodeou-a
com seus braços e seus dedos jogaram com o cabelo
dele.
Ao menos se esqueceu do medo que lhe inspirava
durante uns minutos. Tinha-o desejado ao igual a tinha
desejado o duque. Que a desejava.
A culpa o atormentava. Indignou-se ante a falta de
decoro do abraço que Sybil e Thomas tinham
compartilhado na galeria alargada, mas ele tinha feito o
próprio menos de duas horas mais tarde com a
governanta.
Fleur. Estava começando a dominar seus
pensamentos de dia e a persegui-lo em sonhos de noite.
Estava começando a viver para os instantes nos que
poderia vê-la, escutar sua música, ouvir sua voz, ver
como o olhava. Fleur estava começando a dar luz e
sentido aos seus dias.
Nela estava começando a espionar a pérola preciosa
que em uma época tinha esperado da vida.
O duque se entregou a uma vida difícil, a uma vida
de celibato durante os últimos seis anos, com a só
exceção de uma relação breve e desapaixonada em
Londres… com o Fleur. Com uma puta fraca e pálida que
tinha resultado ser virgem, que tinha obedecido
tranqüilamente todas suas ordens e tinha sofrido a
penetração de seu corpo emitindo somente um pequeno
som gutural e mordendo-os lábios. Inclusive em uma
situação tão sórdida como aquela se comportou com
dignidade. Tinha sido uma vítima que se afundou até o
mais fundo, mas que se negou a que seu espírito se
quebrasse.
E não devia voltar a abraçá-la. Nem voltar a beijá-la.
O que tinha ocorrido a noite anterior tinha sido um
instante único, algo que não tinha planejado. Agora que
sabia que era possível, teria que evitar que voltasse a
ocorrer. Porque embora seu matrimônio lhe resultasse
uma carga muito pesada, não obstante era um contrato
que tinha aceitado livremente, um contrato ao que
permaneceria fiel na medida em que o permitisse a
fragilidade humana.
Pensou que teria que transladar a Fleur a outro posto
em outra parte. Não estava seguro de que fora possível
viver em uma casa com uma mulher a que desejava
mais que quase qualquer outra coisa na vida e com sua
esposa, a que antes tinha amado e com a que nunca se
deitou.
Rechaçou-o na noite de bodas, gritando que saísse
da habitação. Tinha-lhe falado de suas feridas, e é obvio
a desfiguração de seu rosto estava à vista de todos.
Deixou-a e não tentou de novo estar com ela até que
nasceu Pamela. Tentou ganhar sua amizade.
Mas, é obvio, ela acreditava que era o vilão que tinha
expulsado a seu amante e logo a tinha obrigado a casar-
se com ele. Foi uma estupidez acreditar que poderia
obter que o quisesse.
O mesmo ocorreu quando foi vê-la dois meses
depois do nascimento de Pamela. Produziu-se a mesma
histeria e o mesmo olhar de repugnância profunda. O
duque tentou falar disso ao dia seguinte e lhe disse, com
sua habitual voz doce e entrecortada e as lágrimas que
lhe corriam por seus grandes olhos azuis, que se voltava
a tentar tocá-la alguma vez voltaria para casa de seu pai.
Provavelmente foi naquele momento quando seu
amor por ela começou a morrer rapidamente. Por fim
tinha visto e admitia a verdade do que tinha visto: o
egoísmo frio escondido detrás de sua aparência
angélica.
Depois de que seu amor morrera só ficou um
profundo sentimento de pena por ela. Porque estava
claro que seu amor pelo Thomas tinha sido uma paixão
monumental que não podia suprimir embora o tentasse.
E é obvio Sybil não tinha aceitado a verdade, e
acreditava que só a crueldade de Adam a tinha separado
do homem que a amava tanto como ela a ele.
O duque suspirou e se voltou para a porta. Pensou
que por fim poderia continuar com a jornada que tinha
planejado. Por fim poderia deixar atrás seus problemas
durante um breve período de tempo e centrar-se em
escutar os de outras pessoas.
Quando se dirigia aos estábulos caiu na conta de que
não tinha tomado o café da manhã.
E não se precaveu até muito mais tarde que se o que
precisava era esquecer não devia ir visitar o Duncan
Chamberlain. Já que Duncan lhe tinha perguntado o que
lhe pareceria perder a sua governanta se pudesse
convencê-la para aceitar uma proposta de matrimônio, e
se tinha visto obrigado a sorrir a seu amigo e lhe dar a
mão e lhe assegurar que o assunto ficava
exclusivamente em mãos da senhorita Hamilton e dele.
Perguntava-se como se sentiria Chamberlain se
soubesse o perigosamente perto que tinha estado de
que lhe desse um murro entre sobrancelha e
sobrancelha.

Peter Houghton voltou de suas férias três dias mais


tarde e obsequiou à senhora Laycock, ao Jarvis, a Fleur
e aos outros criados do piso de acima com anedotas do
batismo quando se sentaram para almoçar.
—Com a cabeça cheia de cachos aos dois meses?
—perguntou Jarvis, interrompendo ao senhor Houghton
—. Não lhe parece estranho, senhor Houghton?
—Sim, a verdade. A esposa de meu primo diz que
vem de sua família.
—Dentes? —A senhora Laycock franziu o cenho um
minuto mais tarde—. À idade de dois meses, senhor
Houghton?
—Sim. Não lhe parece incomum, senhora?
—Como era a roupa do batismo, senhor Houghton?
—perguntou a senhorita Armitage, a donzela pessoal da
duquesa.
O secretário do duque decidiu que seria
recomendável cortar a comida pese ao feito de que Sua
Excelência o duque não estava em casa. Embora
lamentasse ter que perder a sobremesa, murmurou que
devia haver grande quantidade de trabalho acumulado
em seu escritório. O duque tinha passado quase todo o
dia fora de casa. Tinha levado aos cavalheiros
convidados a montar por uma de suas granjas pela
manhã antes de lhe dar a sua filha outra lição de
equitação, e a tinha levado a visitar a reitoria justo depois
de comer.
Voltaram para última hora da tarde, e Pamela lhe
adiantou e subiu correndo ao piso de acima, desejosa de
lhe falar com o Fleur do cavalinho de balanço da reitoria,
que estava quebrado a última vez que tinha visitado o
lugar. Tirando o chapéu e as luvas na entrada e
entregando-lhe a um lacaio, o duque pensou que era
interessante assinalar que era sua governanta, e não sua
babá, quem se convertia na destinatária das confidências
de Pamela.
—O senhor Houghton tornou, Sua Excelência —
informou Jarvis, fazendo uma reverência muito formal da
cintura.
—Bem. Está em seu escritório?
—Acredito que sim, Sua Excelência.
O duque se dirigiu ao despacho de seu secretário.
—Bom, tomaste-te seu tempo para voltar…—
comentou, apoiado na soleira da porta.
—Os batismos, os bebês e os parentes se
empenhavam em me entreter. Já se pode imaginar como
foi, Sua Excelência —explicou Houghton.
O duque entrou e fechou a porta.
—Agora só estamos você e eu, Houghton. E já tive
muitas charadas pelas noites. E bem?
—A dama em questão é a senhorita Isabella Fleur
Bradshaw, Sua Excelência — começou o secretário—,
filha do anterior Lorde Brockehurst, que faleceu junto
com sua esposa, a mãe da senhorita Bradshaw.
— E a sucessão do atual Lorde Brockehurst? —
perguntou Sua Excelência.
—Por seu pai, Sua Excelência. Sua senhoria faleceu
faz cinco anos deixando esposa, um filho e uma filha
para chorá-lo.
—E sua relação com a senhorita Ham… com o pai
da senhorita Bradshaw?
—O barão falecido era seu primo irmão, Sua
Excelência —explicou Houghton.
—O falecido e o atual Lorde Brockehurst foram e são
seus tutores? —perguntou Sua Excelência entrecerrando
os olhos—. Quais são os términos de sua tutela? Ela
deve ter mais de vinte e um anos.
—Resulta difícil conseguir essa informação quando a
gente finge mera curiosidade, Sua Excelência —
respondeu seu secretário friamente.
—Mas estou bastante seguro de que a conseguiu de
todos os modos… sim, sei que deve ter sido difícil,
Houghton. Valoro muito suas habilidades sem
necessidade de que me destaque isso. Por que acredita
que o contratei? Porque eu gosto de seu aspecto?
Peter Houghton tossiu.
—Herdará seu dote e a fortuna de sua mãe quando
tiver vinte e cinco anos, Sua Excelência, ou quando se
casar, sempre e quando seu tutor aprove sua eleição. Se
não o fizer, tem que esperar até cumprir trinta para
herdar.
—E quantos anos tem agora?
—Vinte e três, Sua Excelência.
O duque olhou a seu secretário em atitude reflexiva.
—De acordo, Houghton. Isso são os fatos, e devo te
elogiar por havê-los descoberto. Agora me conte o resto.
Tudo. Vejo pela expressão de sua face que morre de
vontades de contá-lo. Solta-o, sem esperar a que lhe
peça isso.
—Pode ser que não goste, Sua Excelência.
—Já o julgarei eu.
—E pode repercutir no fato de que eu a contratei —
continuou Houghton—. Embora — voltou a tossir—,
falamos da senhorita Bradshaw, verdade, Sua
Excelência? E não da senhorita Hamilton.
—Houghton. —Os olhos de Sua Excelência se
estreitaram perigosamente—. Se prefere me contar a
história com minha mão em sua traquéia, me dá igual.
Mas acredito que estará mais cômodo como está agora.
—Sim, Sua Excelência — afirmou Houghton,
tossindo outra vez. Mas, ao começar a falar, pensou que
a mão na traquéia seria algo leve em comparação com o
que poderia acontecer depois de que lhe tivesse contado
ao duque todo sobre sua amante.
O duque só tinha um pensamento na cabeça. Deu-se
conta de que se alegrava de que Fleur fora seu nome
autêntico. Resultaria difícil ter que começar a pensar nela
como na Isabella. Não tinha aspecto da Isabella.
O duque permaneceu de pé junto à janela, dando as
costas à habitação, escutando.
—Tem uma só fonte de todos esses detalhes? —
perguntou chegado um determinado ponto.
—Um criado do Heron House, Sua Excelência —
explicou Houghton—, um cavalheiro ao que gostava de
freqüentar o bar da estalagem onde me hospedei, e o
padre e sua irmã. Deduzo que era amiga da senhorita
Bradshaw. O irmão se mostrou mais reticente.
—Então tinha uma amiga… — disse o duque, mais
para si mesmo que para seu secretário.
E mais adiante perguntou:
—Qual era o nome do cavalheiro?Do cavalheiro do
bar, quero dizer?
—O senhor Tweedsmuir, Sua Excelência.
—De nome?
—Horace, Sua Excelência.
—Ah — exclamou o duque—. Conheceu algum
cavalheiro chamado Daniel?
—Sim, Sua Excelência.
—E bem? —O duque se voltou impaciente a olhar a
seu secretário.
—O padre, Sua Excelência. O reverendo Daniel
Booth.
—Um padre…—murmurou o duque—. Então é um
homem jovem?
—Sim, Sua Excelência. E é um dos filhos mais novos
do Sir Richard Booth do Hampshire.
—Sua investigação é tão detalhada que resulta
admirável —comentou Sua Excelência—. Esqueceu de
algo?
—Não, Sua Excelência — respondeu Houghton
depois de fazer uma pausa para refletir—. Acredito que o
recordei tudo. Quer que me encarregue de que se
despeçam da senhorita Hamilton?
—À senhorita Hamilton? —O duque franziu o cenho
—. Que diabos tem que ver tudo isto com a senhorita
Hamilton?
Peter Houghton revolveu os papéis de seu escritório
com mãos nervosas.
—Nada, Sua Excelência — respondeu.
—Então sua pergunta não tem muito sentido —
espetou Sua Excelência—. Deixei-te suficiente trabalho
no escritório para te entreter o resto da tarde, Houghton?
—Sim, a verdade é que sim, Sua Excelência.
Encarregar-me-ei de tudo antes de partir.
—Se fosse você, não gastaria todos meus cartuchos
—comentou Sua Excelência, abrindo a porta para a
entrada—. Estou seguro de que desejará ter uma noite
livre para entreter a senhora Laycock e a uns poucos
escolhidos mais com a narração do batismo no que
acaba de ser padrinho.
Peter Houghton o contemplou enquanto partia. Não
pensava se despedir de sua amante depois de tudo o
que acabava de lhe contar? Sua Excelência devia estar
realmente louco por ela.
E que diabos estava fazendo Brockehurst em sua
casa se não pensava prendê-la? Houghton meneou a
cabeça e centrou sua atenção nos montões de papéis de
seu escritório.

Capítulo 17

Fleur esperava que chegasse o aniversário do


Timothy Chamberlain por diversos motivos. Lady Pamela
estava emocionado com isso, e sempre era um prazer
ver a menina feliz. Lady Pamela esperava que sua mãe a
acompanhasse, mas como de costume Sua Excelência a
duquesa estava muito ocupada com seus convidados
para dedicar uma tarde inteira a sua filha. A menina
ainda esperava que fosse seu pai. Fleur não
compartilhava essa mesma esperança.
A governanta pensou que seria agradável passar
uma tarde inteira separada do Willoughby. Separada
dele. Tampouco é que o tivesse visto muito da manhã
em que lhe tinha pedido desculpas. Não tinha ido sentar
no quarto de estudo nenhuma só vez. Só tinha aparecido
brevemente na porta da biblioteca pelas manhãs quando
Fleur praticava na sala de música. Tinham-lhe pedido
que o acompanhasse quando o duque deu a Lady
Pamela outra lição de equitação uma manhã em que não
chovia, mas posteriormente não saiu a montar. Além
daquilo, não o tinha visto.
Mas sempre existia a possibilidade de vê-lo. Embora
não quisesse, e embora sempre esperava que não fosse,
estava atenta a ver se ouvia seus passos fora do quarto
de estudo.
E sonhava com ele. Mas os sonhos já não eram o
pesadelo de antes. Eram novos, já que nestes sonhos a
beijava profundamente, como tinha feito na realidade, e
ela também o beijava, tal e como tinha feito então, e
passava as palmas das mãos pelos fortes músculos dos
ombros e lhe desabotoava os botões do colete e a
camisa para tocar o cabelo escuro que sabia que tinha
debaixo. Em seu sonho o desejava como tinha ocorrido
em uma ocasião, mas com ternura, com seu corpo em
cima e dentro dela, e sua boca sobre a sua.
Sempre despertava suando e se escondia ainda mais
sob as mantas. E sempre sentia muita vergonha.
Tinha muita vontade de passar uma tarde fora, em
companhia dos meninos e do tranqüilo e divertido senhor
Chamberlain. E esperava ardentemente que o duque de
Ridgeway não estivesse ali, e se sentia culpado ao
pensá-lo porque sua presença o seria tudo para a Lady
Pamela: significaria que lhe importava o bastante para
desejar compartilhar seus prazeres.
E desejava que chegasse à tarde porque passaria
várias horas livre do Matthew. Falava a sério quando lhe
havia dito que esperava passar muito tempo livre com
ela. Se passeava pelo exterior da casa pelas manhãs ou
a primeira hora da noite, ele a acompanhava. Uma vez,
quando levou a Lady Pamela à ponte a pintar, ele se
apresentou ali e foi agradável com ambas durante uma
hora inteira. E na tarde anterior ao aniversário, o dia em
que o senhor Houghton voltou para casa de suas férias e
Sua Excelência tinha saído com sua filha, a duquesa
acessou a que a convidasse a um passeio pelo lago que
foram fazer vários dos convidados.
—Matthew — murmurou ela nervosa quando a
chamaram para que se apresentassem na entrada e o
encontrou esperando-a ali—, não posso ir passear com a
duquesa e alguns de seus convidados. Aqui sou uma
criada.
—Mas todo mundo sabe que também é uma dama, e
conhecida minha. E eu aqui sou um convidado, Isabella,
e, portanto me têm que seguir a corrente. Olhe, faz um
dia maravilhoso, para variar, e tem a tarde livre. Que
melhor maneira de passá-la que dando um passeio até o
lago?
Fleur sabia que não havia nenhuma alternativa,
assim voltou para seu quarto a procurar um chapéu. E
enquanto caminhavam um pouco atrasados em relação
aos outros casais, perguntou-se onde terminaria tudo,
quando poria fim Matthew a toda aquela farsa.
—Quanto tempo mais tem pensado ficar aqui? —
perguntou ela.
—Quanto tempo vamos ficar aqui? —corrigiu-a—.
Não sei, Isabella. Não tenho pressa, e pensava que
preferiria chegar a me conhecer outra vez aqui, onde há
pessoas distintas das de casa, onde só estivéssemos
você e eu. Faz uns meses parecia que pensava que era
algo indecente, embora sejamos segundos primos.
Fleur pensou que nisso levava razão.
—Eu gostaria de anunciar nosso compromisso antes
de partir —afirmou Matthew.
—Não! —exclamou ela repentinamente—. Isso não,
Matthew!
A maioria dos casais não mostraram nenhuma
inclinação a permanecer juntos uma vez chegaram ao
lago. Lorde Thomas Kent e a duquesa subiram em uma
dos barcos para remar até a ilha. Philip Shaw e Lady
Underwood percorreram o caminho que seguia a borda
norte; a senhorita Dobbin e o senhor Penny subiram pelo
aterro e desapareceram entre as árvores.
Lorde Brockehurst conduziu a Fleur até a borda sul
do lago e entre as árvores mais entupidas até um dos
caprichos pelos que tinha passado a cavalo com Sua
Excelência. Tinha a forma de um templo com um assento
semicircular em seu interior, e olhava para o lago.
—Sentemos —disse ele.
Fleur se sentou, mas apartou bruscamente a cabeça
quando ele quis beijá-la.
—Dê-me uma oportunidade, Isabella. É tão bonita…
—Matthew tocou o cabelo que lhe caía pelo pescoço
com delicadeza—. E não quero fazer nada desonroso.
Heron House era de seu pai. E sua mãe era a baronesa.
Poderia voltar ao ter tudo. Enviaria a minha mãe e a
Amelia a viver a outra parte se não quiser viver com elas.
Dê-me uma oportunidade.
—Matthew — começou ela, voltando-se para olhá-lo
—, é que não o entende? Não te amo. Não sinto por ti o
tipo de carinho necessário para ser a esposa que
necessita. Por que não podemos simplesmente voltar e
contar a verdade do que ocorreu e seguir sendo primos
segundos a certa distância um do outro? Por que não
pode me ensinar a te respeitar embora não possa te
amar?
—O amor pode surgir. Dê-me uma oportunidade.
Ela meneou a cabeça.
Ele pôs as mãos em seu pescoço sem apertar, como
tinha feito antes, apertou-as um pouco por debaixo do
queixo, e puxou para cima. A seguir baixou sua boca até
a da garota.
Fleur esperou a que terminasse antes de ficar em pé
e sair do templo para ficar a olhar para o lago. E pela
primeira vez sentiu uma raiva similar ao terror habitual, a
sensação de estar totalmente cansada de ser uma
marionete de que Matthew atirava, de não controlar sua
própria vida.
—Não me casarei contigo, Matthew — afirmou—,
nem serei sua amante. E não passarei mais tempo
contigo aqui em Willoughby Hall. Faz o que queira, mas
essa é minha decisão.
E fechou os olhos e recordou suas mãos ao redor de
sua garganta, como as estreitava e atirava acima, e lhe
acelerou a respiração.
«Mas se chegasse acontecer — havia dito ele, isso,
Sua Excelência—, se alguma vez se encontrar com que
não tem a ninguém mais a quem recorrer, então dirija-se
a mim. Fará-o?»
Fleur sentia precisamente esse desejo, o desejo de
contar-lhe de sentir seus fortes braços rodeando-a uma
vez mais, de escutar os batimentos do coração regulares
de seu coração uma vez mais, de descarregar todos
seus pesares em outra pessoa.
Mas logo via seu olhar de desdém, de repugnância,
de condenação, e voltava a estar sozinha outra vez,
como sempre tinha estado desde que morreram seus
pais. A idéia de que houvesse alguém a quem lhe
importasse e que lhe ajudasse era uma ilusão. Sabia que
não podia recorrer ao Daniel, e agora sabia que não
podia recorrer ao duque de Ridgeway. Já era o bastante
maior, tinha vivido o suficiente para sabê-lo.
As mãos do Matthew sujeitaram firmemente os
ombros de Fleur.
—Mudará de opinião — insistiu ele—. Tomaremos
uns quantos dias mais, Isabella.
Esteve a ponto de responder, mas mordeu a língua.
Faria-o? Mudaria de opinião? A alternativa resultava
terrível.
—Deveríamos voltar para a casa — sugeriu Matthew
—. Tem que refletir um pouco, não?
Quando um momento depois entraram na casa pelos
degraus em forma de ferradura, resultou que Sua
Excelência passava por ali. O duque olhou a Fleur e
Matthew sem dizer uma palavra.
—Senhorita Hamilton? —interveio finalmente—.
Pensava que estava acima com minha filha.
—Estive passeando com Lorde Brockehurst, Sua
Excelência.
O duque assentiu rapidamente.
—A menina deseja falar com você. Mais vale que
suba sem mais demora.
—Sim, Sua Excelência. —A governanta fez uma
reverência e partiu a toda pressa ao quarto de brincar.
As faces lhe ardiam pela expressão de desaprovação
que se refletia no rosto do duque. E se perguntou se
Matthew explicaria que a tinha convidado com a
permissão da duquesa.
Fleur ardia em desejos de que chegasse o dia
seguinte e de poder acontecer uma tarde inteira longe do
Willoughby.

Timothy Chamberlain celebrava seu sétimo


aniversário com seu irmão e sua irmã, Lady Pamela Kent
do Willoughby Hall, e cinco meninos mais da zona,
incluídos os dois do pároco. O senhor Chamberlain
comentou a Fleur quando chegou com a menina que,
pelo bem de sua prudência, o tempo se pôs de sua
parte.
Sairiam fora uma vez que Timmy tivesse ensinado
aos meninos o local onde brincava, embora todos a
tinham visto antes, e o saca de cubos de construção de
madeira de cores que lhe tinham agradável.
A senhorita Chamberlain recebeu a Fleur com um
sorriso.
—Falando com o Duncan alguma vez adivinharia que
a idéia da festa foi dele, verdade, senhorita Hamilton? —
comentou sua irmã—. Desfruta de tais ocasiões.
O senhor Chamberlain fez uma careta quando Fleur
riu. Já tinha observado que adorava a seus filhos o
mesmo dia que o conheceu.
Fleur se sentia muito feliz. Lady Pamela e ela tinham
saído pouco depois de comer e não voltariam até quase
a hora de jantar. E Sua Excelência o duque não iria.
—Timothy tem cubos. Pedirei a papai que me
compre uns —anunciou Lady Pamela a Fleur gritando
quando os meninos baixaram a toda velocidade exigindo
que os tirassem fora.
Brincaram de esconde esconde, à safada safada e
bola nos grandes jardins que havia detrás da casa, e o
senhor Chamberlain organizou corridas de vários tipos
até que vários meninos caíram na erva, ofegando,
enquanto outros gritavam mais alto que nunca.
A senhorita Chamberlain fez formar um grande
círculo para brincar a alguns jogos com canções, «para
tranqüilizá-los», explicou a Fleur, que tinha ajudado com
as corridas.
—Duncan não se dá conta de que esgotar aos
meninos não implica necessariamente que se acalmem,
mas sim freqüentemente produz o efeito contrário —
apontou sua irmã.
—Bom — interveio o senhor Chamberlain, ignorando
a mão que lhe tendia uma menina com um laço quase
tão grande como sua cabeça, e lhe beliscando a face—,
o de dançar e cantar em círculo é algo que me supera. A
senhorita Hamilton e eu lhe vamos deixar com isso,
Emily, e depois todos tomaremos o chá. Senhorita? —o
cavalheiro tendeu um braço a Fleur.
»A humilhação que estou disposto a suportar tem
seus limites —explicou a governanta, passeando com ela
em direção a pérgula coberta de flores que ficava junto à
casa—. E «A corrida da batata» supera esse limite.
—Acredito que seu filho o está passando
maravilhosamente.
—Sim — reconheceu ele —. Suponho que só se
cumprem os sete uma vez. Amanhã voltará a ser
escandaloso como sempre. A histeria terá passado.
Fleur riu.
Estavam dentro da pérgula, rodeados do perfume
embriagador das rosas. Soltou-lhe o braço, sustentou-lhe
o rosto com as mãos, e a beijou breve e docemente nos
lábios.
— Senti sua falta.
Ela sorriu.
—Se não fosse governanta, e não tivesse que fazer
tarefas cotidianas, provavelmente me teria dedicado a
rondar Willoughby Hall nos dias posteriores a nossa
visita ao teatro —disse o senhor Chamberlain e lhe tocou
os lábios com os polegares.
Fleur o olhou aos olhos e se lamentou, já que sabia
que ela também tinha limites que não se atrevia a
transbordar.
—Não o faça — o deteve, enquanto ele tomava ar
para voltar a falar, e baixou o olhar até seu queixo—. Por
favor, não o faça.
—Não lhe é grato o que estou a ponto de lhe dizer?
Ela duvidou.
—Não posso.
—Porque não o deseja? Ocorre algo comigo? Ou
com meus filhos?
Ela meneou a cabeça e se mordeu a língua.
—Existe algum obstáculo?
Fleur baixou a vista até o lenço do cavalheiro. Pois
sim. Estavam os cargos de roubo e assassinato que
pendiam sobre sua cabeça. O fato de que tinha perdido a
virgindade. E a profissão que tinha tentado brevemente
exercer antes de converter-se em governanta.
A garota assentiu.
—Intransponível?
—Sim. —Fleur voltou a olhá-lo aos olhos e detectou
sua tristeza e seu pesar—. Bastante intransponível,
senhor.
—Pois bom. —Ele sorriu, baixou as mãos até seus
braços, e se inclinou para diante para beijá-la uma vez
mais. A seguir lhe deu umas tapinhas nos braços—. Já
basta. Esta pérgula era o orgulho e a alegria de minha
esposa. O explicou Emily? Eu adoro me sentar aqui a ler,
quando os meninos estão dentro a boa cobrança, com
suas aulas e seus jogos. Voltamos para tomar o chá?
—Sim, obrigado.
Todo o prazer da tarde se desvaneceu. Fleur não se
precaveu de que o senhor Chamberlain estava a ponto
de declarar-se, mas o tinha começado a intuir na pérgula
rodeada de rosas. E sentiu que lhe tinha feito mal e
temeu que face ao que lhe havia dito, pensasse que ela
se negou por algum defeito que ele tinha.
Quando voltaram da pérgula até a grama da parte de
atrás, apenas lhe surpreendeu ver o duque de Ridgeway
com sua filha ascensão a um de seus ombros, falando
com a senhorita Chamberlain.
—Ah! —exclamou, voltando-se, sorrindo e
observando-os atentamente—. Duncan? Senhorita
Hamilton?
—Teria que haver imaginado que seria o bastante
ardiloso para pular os jogos e chegar bem a tempo para
o chá —comentou o senhor Chamberlain, e estendeu a
mão direita—. Bem vindo à festa de aniversário do
Timmy, Adam.
—Fiquei em segundo na carreira das garotas, papai
—gritava Lady Pamela—, e teríamos ganho a carreira de
três patas se William não se cansado.
Fleur ajudou à senhorita Chamberlain a colocar aos
meninos em casa para o chá.

O duque de Ridgeway voltou a cavalo ao Willoughby


Hall um momento depois, sujeitando a sua filha com um
braço por diante na cadeira enquanto escutava distraído
seu bate-papo excitado. Desejou que Fleur fosse com
eles, mas apartou esse pensamento de sua mente. Era
melhor que voltasse para casa em sua carruagem.
Realmente Fleur o para bem a Pamela. O duque
sempre tinha conseguido despertar a excitação infantil
de sua filha e sempre tinha tentado, quando estava em
casa, levá-la a visitar outros meninos tão freqüentemente
como fora possível. Mas passava largos períodos de
tempo fora de casa e sempre se sentia culpado ao
abandoná-la. Adam pensou que não a teria amado mais
se fosse realmente sua filha.
Fleur ajudava a Pamela a seguir sendo uma menina.
Entre o Sybil e a senhora Clement a protegiam muito. E
nas escassas ocasiões nas que Sybil a levava, o fazia
para visitar adultos, para que tivesse que ficar sentada
em silêncio e pudessem lhe fazer cumpridos sobre o que
bem que se comportava sua filha.
Fleur o fazia bem. Deveria ter filhos próprios.
Pamela estava assinalando a cicatriz do duque com
um dedinho e cantando em voz baixa.
—Como salvou o olho, papai? —perguntou-lhe.
—Alguém cuidou de mim.
—Deus?
—Sim, Deus.
—E te fez mal?
—Sim, suponho que sim. Não recordo muito.
Continuou cantando em voz baixa enquanto lhe
passou outra vez o dedo pela cicatriz.
Adam se sentia culpado. Duncan tinha falado
brevemente com ele quando partia.
—Parece que ao final não existe o perigo iminente de
que perca a sua governanta, Adam — comentou.
Desde que tinha chegado, Sua Excelência não tinha
deixado de procurar algum sinal do que tinha ocorrido.
Tinham estado sozinhos em algum lugar justo antes que
chegasse, mas suas expressões e seu comportamento
não tinham deixado transparecer nada durante o chá.
—Mudou de opinião? —perguntou-lhe o duque.
Seu amigo fez uma careta.
—Rechaçaram-me — respondeu.
Duncan Chamberlain era seu amigo. Desejava que
fosse feliz. Quatro anos atrás tinha perdido a uma
esposa a que queria muito. Fleur seria a perfeita esposa
para ele e uma boa madrasta para seus filhos. Teria que
haver-se entristecido ao inteirar-se de que tinha
rechaçado ao Duncan.
Mas o que se sentia era culpa: tinha experimentado
um arrebatamento de euforia. E logo mais culpa. Havia-
se sentido obrigada a rechaçá-lo pelo que Adam lhe
tinha feito e por aquilo no que a tinha convertido? É obvio
que sim.
Mas também havia algo mais: tinha que falar com
ela. O teria feito aquela manhã, mas não tinha querido
arriscar-se a fazer nada que danificasse um dia tão
esperado para Pamela. Tinha que falar com ela ao dia
seguinte.
—Matou a alguém, papai? —perguntou a menina.
—Nas guerras? Sim, temo-me que sim. Mas não
estou orgulhoso disso. Não posso evitar pensar que
esses homens tinham mamães e possivelmente esposa
e filhos. A guerra é algo horrível, Pamela.
A menina apoiou a cabeça contra seu peito.
—Me alegro de que ninguém te matou, papai.
O duque a aferrou a ele com um braço.
A carruagem estava detendo no terraço quando
Pamela e ele voltaram dos estábulos.
—Senhorita Hamilton! —chamou-a Adam quando
estava a ponto de desaparecer através das portas dos
criados.
Ela se deteve e o olhou inquisitiva.
—Faça-me o favor de me esperar na biblioteca
amanhã imediatamente depois de tomar o café da
manhã.
—Sim, Sua Excelência. —Fleur fez uma reverência e
continuou seu caminho.
Olhando para a porta fechada dos criados, o duque
pensou que não deveria lhe haver dito nada.
Possivelmente teria que haver-se limitado a chamá-la
quando o fora bem. Provavelmente se passaria toda a
noite preocupada perguntando-se o que tinha feito mal.
—Pequenina ficará triste… — comentou Pamela, lhe
atirando da mão—. Passou toda a tarde sem mim.
- Vamos ver o contente que ficará ao ver-te — propôs
o duque, sorrindo.

A duquesa se colocou na cama no meio da tarde


depois de um acesso de tosse prolongado, com dores no
peito e febre. Jogava a culpa ao feito de ter ido montar
aquela manhã com vários de seus convidados. Não
montava muito freqüentemente, já que lhe parecia uma
atividade perigosa e em geral pouco saudável.
Lorde Thomas Kent se meteu em seu quarto uma
hora antes de jantar e fez sair à donzela. Sentou-se no
bordo a cama e agarrou a mão da duquesa.
—Como te encontra, Sybil?
—Ah, melhor — respondeu ela, sorrindo—. Só que
me dá preguiça me levantar. Irei ao salão depois de
jantar.
Ele se levou sua mão aos lábios.
—É tão bonita e delicada… — suspirou—. Não
parece ter envelhecido um só dia desde que nos
prometemos. Pergunto-me se estará igual de jovem a
próxima vez que te veja.
De repente, a duquesa o olhou à cara.
—A próxima vez? Não irá, verdade Thomas? Ah,
não! Tem que ficar aqui. Não pode voltar a partir.
—O prometi ao Adam —disse, beijando outra vez a
mão e sorrindo docemente.
—O prometeste ao Adam? - agarrou a mão—. O que
lhe prometeste?
—Que me partirei esta semana. Não posso culpá-lo,
Sybil. Não é como a última vez. A fim de contas, é sua
esposa.
—Sua esposa! —exclamou ela com desdém,
incorporando-se e olhando-o diretamente aos olhos—.
Só de nome, Thomas. Nunca deixei que me tocasse.
Juro-te que não. Sou tua. Só tua.
—Mas ante a lei é dela. E terá que ter em conta a
Pamela. Não deve saber nunca a verdade. Seria muito
duro e não o suportaria. Ordenaram-me que me parta,
Sybil, e devo partir. Sinceramente, devo partir.
—Não! —gritou ela, lhe agarrando a mão com mais
força ainda. Voltou a cabeça para tossir—. Ou se te tiver
que ir, me leve contigo. Deixá-lo-ei, Thomas. Não posso
voltar a estar separada de ti. Irei contigo.
Thomas a separou dele e a beijou nos lábios.
—Não posso te levar — sussurrou ao ouvido—. Não
posso te expor a essa classe de escândalo, Sybil. E não
poderia deixar a Pamela sem nenhum de seus pais. Tem
que ser valente.
Passou os braços pelo pescoço.
—Não me importa. Só me importa você, Thomas.
Nada mais me importa. Vou contigo.
—Sssh — sussurrou, embalando-a entre seus braços
—. Sssh, agora.
E enquanto se tranqüilizava a beijou outra vez e
acariciou seus seios através do cetim de sua camisola.
—Thomas! —gemeu, afundando-se outra vez nos
travesseiros—. Eu amo você.
—E eu a ti — disse ele, lhe deslizando a camisola
pelos ombros baixando a cabeça para lhe beijar a
garganta, mas se levantou quando bateram na porta e a
abriram imediatamente: era o duque de Ridgeway, que
entrou e fechou sem fazer ruído.
—Encontra-te melhor? —perguntou, olhando a sua
esposa—. Armitage acaba de dizer que esta tarde voltou
a ficar a doente.
—Sim, obrigado — respondeu ela bruscamente,
virando a face.
—Quererá te vestir para jantar, Thomas —indicou o
duque—. Corre o risco de chegar tarde.
Seu irmão lhe sorriu e saiu da sala sem dizer nada
mais.
—Ordenei que chamem o doutor Hartley para que te
visite amanhã pela manhã —explicou o duque a sua
mulher—. Posso mandar que o chamem imediatamente
se o desejar.
—Não necessito nenhum médico — protestou ela,
sem olhá-lo ainda.
—Deve vê-lo de todos os modos. Possivelmente te
possa dar algum remédio novo que te cure essa molesta
tosse de uma vez por todas.
Ela virou a cabeça de repente para olhá-lo.
—Odeio-te, Adam — afirmou com veemência—.
Quanto te odeio!
—Por me preocupar com sua saúde?
—Por não preocupar-se absolutamente de mim. Por
ordenar ao Thomas que parta outra vez. Sabe que nos
queremos. Sabe que sempre foi assim. Odeio-te por
arruinar nossas vidas.
—Há-te dito que lhe ordenei que partisse?
—Acaso o nega? —perguntou-lhe a duquesa com
dureza.
O duque a olhou durante muito momento. Olhou à
mulher a que em uma ocasião tinha amado de maneira
totalmente apaixonada e a que agora só conseguia
compadecer.
—Suponho que isso foi o que significaram minhas
palavras para ele.
Ela voltou a apartar a cabeça.
—Vou com ele. Deixo-te, Adam.
—Duvido que te leve com ele.
—Conhece-o bem. Sabe que por nada do mundo me
faria mal. Mas me levará quando o tiver convencido de
que serei muito menos feliz conservando a decência
contigo.
—Duvido que te leve com ele — repetiu o duque—.
Acredito que está vez terá que confrontar a verdade,
Sybil. Sinto muito. Apresentarei suas desculpas aos
convidados para esta noite. Virei mais tarde a ver como
está.
—Não o faça. Não quero ver-te, Adam, nem esta
noite nem nunca.
Ele puxou o sino junto à cama e esperou em silêncio
até que apareceu a donzela da duquesa.
—Sua Excelência a necessitará, Armitage —
comentou, e saiu do quarto.

Capítulo 18

Fleur entrou na biblioteca quando um lacaio lhe abriu


as portas sem chamar nem anunciá-la. O homem fechou
a porta sem fazer ruído detrás dela.
Sua Excelência estava escrevendo em sua mesa,
mas deixou imediatamente sua pluma quando ela entrou,
secou com cuidado o que tinha escrito e ficou em pé.
Olhou-a desse modo escuro e penetrante que a Fleur
sempre resultava muito desconcertante.
A garota ficou muito quieta, com o queixo levantado e
os ombros jogados para trás. E se perguntou, ao igual a
se esteve perguntando durante toda a noite em que logo
que tinha podido dormir, se o único que ia fazer era
repreendê-la por algum engano desconhecido. Mas
então, por que tinha que convocá-la formalmente na
biblioteca? Ou possivelmente ia despedir a ou a tentar
seduzi-la outra vez. Ou possivelmente aquela ocasião
não tinha nada de especial. Fleur esperou.
—A Honorável Senhorita Isabella Fleur Bradshaw —
murmurou o duque—, do Heron House, no Wiltshire.
Depois de tudo, Matthew a tinha tomado a sério dois
dias antes. O tinha contado tudo. Fleur levantou um
pouco mais o queixo.
— Ladra de jóias e assassina —continuou ele—, ou
isso é o que se suspeita. Claro que qualquer suspeito de
um crime é inocente até que se demonstre o contrário.
Ela não apartou a vista.
—É-o? —perguntou Sua Excelência—. Uma ladra e
uma assassina, quero dizer.
—Não, Sua Excelência.
—Nenhuma das duas coisas?
—Não, Sua Excelência.
—Mas as jóias mais caras de sua prima se
encontraram no baú que pensava levar-se, se tivesse
podido partir tal e como tinha planejado.
—Sim, Sua Excelência.
—E houve uma morte.
—Sim, Sua Excelência.
—Você fugiu quando seu primo a surpreendeu
cometendo o assassinato. Fugiu a Londres sem nada,
exceto a roupa que levava posta. Um vestido de noite de
seda azul e uma capa cinza. E em Londres se escondeu
e sobreviveu como pôde.
—Sim, Sua Excelência.
—Mas ali não roubou? Ou nem sequer mendigou?
—Só vendia o que podia vender de si mesmo.
—Sim.
O duque deu a volta ao escritório e atravessou a
habitação para ficar a poucos centímetros dela.
—Por que não me conta o que ocorreu? Podemo-nos
passar o dia inteiro aqui se me dedicar a lhe fazer
perguntas e você me responde com monossílabos.
Ela continuou olhando-o fixamente.
—Por que não? —perguntou-lhe.
—Não me acreditarão. Quando contar tudo isto em
um tribunal de justiça, Lorde Brockehurst explicará a
versão que lhe contou, e acreditarão, ao igual ao
acreditou você. É um homem, e é barão. Eu sou mulher
e governanta… e prostituta. Não vale a pena que gaste
saliva inutilmente.
—Brockehurst não me contou nada — explicou o
duque—. Inteirei-me que tudo o que sei por minha conta.
Ouvi que a chamava Isabella. Você mesma chamou a
seu antigo lar «Her…». Enviei ao Houghton ao Heron
House para averiguar o que pudesse sobre uma tal
Isabella.
—Por quê? —sussurrou ela.
Ele se encolheu de ombros.
—Porque seu passado sempre esteve rodeado de
mistério. Porque descobri, temo-me que muito tarde, que
só umas circunstâncias extremas poderiam havê-la
obrigado a converter-se no que se converteu em Londres
comigo. Porque vi o terror refletido em seu rosto a
primeira vez que viu o Brockehurst em meu salão.
Porque está claro que ambos mentiram sobre quanto se
conheciam. Porque me importa.
—Possivelmente seja melhor assim. Tentou
converter a uma mentirosa, ladra e assassina em sua
amante.
—É isso o que pensa de mim, Fleur?
—Sim.
—Embora aquela noite a enviei à cama em vez de
acompanhá-la a seu quarto por medo a não ser capaz de
deixá-la partir? —comentou—. Embora não me aproxime
de você após, exceto para pedir desculpas? —passou-se
uma mão pela testa e suspirou—. Aproxime-se e sinta-
se.
—Não.
—Fleur, poderia dá-la voltar e abrir a porta?
Ela o olhou receosa e fez o que lhe havia dito.
—Volte-a para fechar. O que viu?
—Ao lacaio que me tem feito entrar.
—Conhece-o?
—Sim. É Jeremy.
—Conhece-o bem? Gosta?
—Sempre é amável e cortês.
—Seu trabalho é estar aqui de pé, até que você saia
ou até que o chamem ou até que lhe diga que parta. Se
você gritasse, entraria rapidamente a resgatá-la.
Aproxime-se e sente-se.
Fleur passou por diante do duque muito tensa,
dirigindo-se por volta de duas poltronas de respaldo
vertical que estavam perto da janela e sentando-se em
uma delas. Ao fazê-lo juntou as mãos no regaço.
—O homem que morreu era o ajudante de quarto de
seu primo? —perguntou ele, sentando-se na outra
cadeira. Mas não esperou a que respondesse—. Teve
algo que ver com sua morte?
—Sim. Matei-o.
—Mas você não se considera uma assassina. Por
quê?
—Era um homem muito forte. Pretendia me sujeitar
enquanto Matthew me violava. Empurrei-o quando me
aproximou por detrás. Deve ter perdido o equilibro, já
que estávamos muito perto da chaminé. Caiu e bateu
com a cabeça.
—E morreu?
—Sim. Morreu imediatamente.
—E seu primo tinha expressado suas intenções?
—Disse antes que se voltasse a partir de casa
nenhum outro homem me quereria jamais. Acredito que
eu gritava e brigava. Vi que fazia um sinal com a cabeça
ao Hobson.
—Seu ajudante de quarto?
—Sim. E logo ficou detrás de mim. —Fleur olhou as
mãos, que estava retorcendo no colo.
—A mãe e a irmã do Brockehurst se foram a
Londres? —perguntou o duque—. Por que a deixaram
sem acompanhante?
—Não se importam.
—Você se dirigia à reitoria para alojar-se com a
senhorita Booth. Por que o postergou até a noite?
—Está muito bem informado. Parece que sabe tudo.
—Houghton é um bom homem. Mas os porquês me
seguem desconcertando.
—Matthew esperava convidados. Foram jogar às
cartas e a embebedar-se. Poderia me haver escapulido
sem que se precavessem. Mas não vieram. Foi o dia no
que partiram sua mãe e sua irmã. Suponho que tinha
pensado acontecer uma noite a sós comigo.
—Mas você tratou de partir de todos os modos?
—Sim. Apanho-me. Acredito que sabia e me estava
esperando.
—E não roubo as jóias?
—Não. Não soube nada delas até que me mencionou
isso aqui.
—E assim você fugiu só com o posto. Sem dinheiro?
—Tinha um pouco no bolso da capa. Muito pouco.
—Por que não foi ao reverendo Daniel Booth?
Ela o olhou e se mordeu a língua.
—Ao Daniel? Teriam ido a por mim imediatamente.
Além disso, não teria escondido a uma assassina.
—Nem sequer se a amasse?
Fleur tragou saliva.
—Quanto demorou para chegar a Londres? —
continuou ele.
—Uma semana, pode ser que um pouco mais.
O duque ficou em pé e ficou olhando pela janela
vários minutos, lhe dando as costas.
—Apostaria a que Brockehurst está disposto a fazer
uma troca. Sua vida em troca de seu corpo. Tenho
razão?
—Sim.
—E o que decidiu? Tomou uma decisão?
—Resulta fácil ser heróico na imaginação. Não estou
tão segura de poder me comportar como uma heroína
quando chegar o momento. Faz dois dias lhe disse que
não me casaria com ele nem seria sua amante nem teria
nada mais que ver com ele, e embora me deu uns
quantos dias mais para tomar a decisão final, não tive o
valor de repetir o que acabava de dizer.
—Embora — repetiu ele, voltando-se para olhá-la por
cima do ombro—, você tem muita coragem, Fleur. Fui
testemunha disso, se o recordar… em um certo quarto
de uma estalagem de Londres.
Fleur sentiu que se ruborizava.
—Poderia me haver pedido ajuda, já sabe. A teria
dado. E embora houvesse dito que não, não poderia
havê-la prejudicado mais do que o fiz. Mas você teve o
orgulho e a coragem, e a insensatez, de vender o que
era sua em vez de mendigar.
Fleur baixou o olhar.
—Não é sempre assim, já sabe — continuou o duque
em voz baixa—. Quando vai junto com o amor, pode ser
uma experiência bonita, Fleur, para o homem ao igual a
para a mulher. Não tema a todos os homens como sei
que me teme.
A garota só se precaveu de que se estava mordendo
o lábio inferior quando notou o sabor do sangue.
—Enfim, o que vamos fazer respeito a sua situação?
Não é tão se desesperada como você parece acreditar.
Podem apresentar-se vários alegações por escrito.
Ela riu.
—Permitir-me-á que a ajude? —insistiu o duque.
—Não há testemunhas, exceto Matthew e eu —
respondeu a governanta—. E minha donzela foi a que
descobriu as jóias em meu baú. A única defesa possível
é a verdade, Sua Excelência, e a verdade soará
terrivelmente falsa quando se comparar com a palavra
do barão Brockehurst.
De repente, ele se inclinou e lhe agarrou as duas
mãos. Fleur não se precaveu do frite que as tinha até
que se viram envoltas na calidez da mão do duque.
—Não vão enforcá-la, Fleur, nem vai apodrecer se na
prisão. O prometo. Leva semanas vivendo aterrorizada,
verdade? Por que não foi a mim antes? Mas claro, eu
sou a última pessoa a quem você recorreria, verdade?
Durante o dia de hoje e possivelmente amanhã quero
que fique com Pamela durante as aulas e com a senhora
Laycock o resto do tempo. Se Brockehurst tratar de falar
com você, ordeno-lhe como empregada que se
mantenha se separada dele. Entendido?
—Você não pode me ajudar…
O duque ficou de cócoras e a olhou à cara, lhe
sujeitando as mãos com maior firmeza.
—Sim posso, e o farei, embora saiba que não confia
em mim. Realmente acredita que a trouxe aqui para que
fosse minha amante?
—Não importa. —Fleur olhava as mãos dele
sujeitando as suas. E sentiu que devia soltar-se. E
desejou agarrar-se a elas ao igual a ele as sustentava. E
desejou inclinar a cabeça fazia diante até apoiá-la em
seu ombro. E desejou confiar nele e esquecer-se de todo
o resto.
Fleur levantou a vista e viu o rosto moreno, duro e
marcado que se havia peneirado sobre ela em seus
pesadelos durante semanas e que ultimamente se
dedicou a beijá-la em sonhos e a despertar seu desejo
de ternura e amor. Voltou a morder o lábio quando o
rosto dele começou a dar voltas ante seus olhos.
—Sim que importa. Fleur, nunca foi minha intenção
convertê-la em minha amante. O que ocorreu aqui entre
nós aconteceu que maneira inesperada e contra meus
desejos. Sou um homem casado e não posso cercar
uma relação com você. E se não estivesse casado, estou
seguro de que não quereria que fosse minha amante.
Voltou a brotar sangue do lábio de Fleur quando ele
se levou primeiro uma mão da garota e logo a outra aos
lábios, sem deixar de olhá-la em nenhum momento. E
lhe soltou uma das mãos para lhe limpar uma lágrima
que lhe tinha cansado pela face.
—Farei isto por você — continuou o duque—,
possivelmente para compensar em certa medida o dano
que lhe tenho feito. E logo a enviarei a outro lugar, Fleur.
Se tiver que esperar a receber sua fortuna, encontrar-
lhe-ei um bom emprego em uma casa que eu nunca
visite. Deixá-la-ei livre e nunca irei procurá-la. Pode ser
que com o tempo me creia e confie em mim.
Adam lhe soltou as mãos e Fleur se cobriu o rosto
com elas, enquanto respirava fundo para tranqüilizar-se.
—Farei que Jeremy a acompanhe até acima —
comentou ele, endireitando-se—. Descanse em seu
quarto esta manhã. Darei ordens de que não a incomode
ninguém. Levarei a Pamela.
Fleur ficou em pé.
—Isso não será necessário, Sua Excelência. Tenho
aulas previstas.
—Não obstante, fará o que eu lhe diga.
Fleur ficou direita, levantou o queixo e se voltou para
a porta.
—Não será necessário que Jeremy me acompanhe
— objetou ela—. Já posso ir sozinha, obrigado.
Ele sorriu fugazmente.
—Como desejo.
E assim se dirigiu sozinha ao piso de acima, até seu
quarto. E ficou na janela olhando para a grama da parte
de atrás, vazio a aquela hora da manhã.
O duque tinha a intenção de falar com Lorde
Brockehurst em seguida, mas uma série de sucessos
conspiraram em seu contrário e frustraram seus planos.
Quando chegou à biblioteca, Jarvis disse que o
médico estava com Sua Excelência a duquesa. Adam
decidiu que sua esposa e o médico deviam ir primeiro, e
fez retirar-se ao mordomo dizendo que queria ver o
doutor Hartley antes que partisse.
Quando apareceu na biblioteca um momento depois,
o médico comentou que um resfriado forte durante o
inverno tinha deixado à duquesa com uma debilidade no
peito. Sempre tinha tido uma saúde delicada, e
provavelmente isso não ia mudar.
—Recomendo-lhe uma vida mais tranqüila e sair
menos, Sua Excelência. Pode ser que um mês ou dois
em Bath tomando as águas provocassem uma mudança
importante na saúde da duquesa.
—Tosse todo o tempo — explicou o duque—. Tem
febre freqüentemente. Perdeu peso. E todo isso é o
resultado de um resfriado grave que simplesmente não
foi?
O doutor se encolheu de ombros de maneira muito
eloqüente.
—Algumas damas têm uma constituição delicada,
Sua Excelência. Por desgraça, sua esposa é uma delas.
Sua Excelência disse ao homem que podia partir e
ficou olhando pela janela um momento. Pensava que
teria que ter insistido em chamar um médico de Londres
mais qualificado. Mas Sybil sempre se mostrou inflexível
e se negou a lhe fazer caso nesse tema.
Adam tamborilou com os dedos no peitoril da janela e
se dirigiu ao dormitório de Sybil. A noite anterior se
negou a deixá-lo entrar, mas esta vez não esperou atrás
após dar uns golpes na porta de seu quarto. Entrou
como tinha feito, quando surpreendeu a seu irmão quase
a ponto de lhe fazer o amor, e detrás olhou a esta
donzela que fez uma reverência e se retirou ao vestidor.
—Bom dia, Sybil. Encontra-te melhor?
Sybil virou a cabeça a um lado no travesseiro quando
entrou seu marido, e não lhe respondeu. O duque se
aproximou um pouco mais.
—Tem febre? —perguntou-lhe, apoiando
delicadamente os dedos em uma de suas faces—. O
médico me sugeriu que vá ao Bath a tomar as águas.
Quereria que te levasse ali?
—Não quero nada de ti. Vou com o Thomas.
—Quer que te traga para Pamela uns minutos? Estou
seguro de que lhe está desejando contar isso tudo sobre
a festa de aniversário do Timothy Chamberlain de ontem.
—Estou muito doente.
—De verdade? —Apartou-lhe o cabelo loiro prateado
da face—. Então hoje me encarregarei eu de entreter a
nossos convidados. Deve ficar aqui tranqüila e não
preocupar-se. O médico te deu algum remédio novo?
Pode ser que manhã se sinta melhor.
Ela não disse nada, e ele atravessou o quarto até a
porta. Mas se deteve com a mão no pomo e ficou
olhando-a pensativo um bom momento.
—Você gostaria que mandasse vir ao Thomas?
Ela não virou a cabeça para ele nem respondeu.
Adam saiu silenciosamente do quarto.
As damas se dirigiam ao Wollaston com o Sir Hector
Chesterton e Lorde Brockehurst. Sua Excelência se
somou a alguns dos cavalheiros para jogar bilhar. Lorde
Mayberry, o senhor Treadwell e Lorde Thomas Kent se
foram a pescar.
Depois de comer, quando o duque sugeriu ir montar
e fazer um picnic nas ruínas, a maioria dos convidados
aceitou encantado. Não obstante, Lorde Brockehurst,
junto com o Sir Hector, expressou sua intenção de ficar
na casa, já que se tinham encontrado ao Sir Cecil
Hayward no Wollaston aquela manhã e este o tinha
convidado a visitá-lo pela tarde.
Antes de partir aos estábulos, Sua Excelência
encarregou ao lacaio Jeremy que vigiasse o corredor
superior do quarto de estudo e que acompanhasse à
senhorita Hamilton e a Lady Pamela aonde decidissem ir
ao longo da tarde.
E meia hora mais tarde teve um encontro que tinha
previsto pospor até o dia seguinte.
—Parece que você e eu estamos condenados a
montar juntos, Adam, já que outros já estão
emparelhados — comentou Lorde Thomas Kent—.
Possivelmente seja melhor assim. Provavelmente irei
amanhã ou passado.
—Sozinho?
Seu irmão o olhou e sorriu.
—Não me acredito que fosse a sério com o que
sugeriu o outro dia.
—Não o haveria dito se tivesse acreditado por um
instante que lhe tomaria a sério — disse o duque,
dirigindo o olhar para diante, para onde Sir Philip Shaw
estava flertando bastante descaradamente com a Lady
Underwood.
—Isso. Vê o que quero dizer? Claro que não podia
tomar o a sério, Adam. Como poderia me levar ao Sybil,
sabendo o escândalo ao que teria que enfrentar-se?
Esteve muito protegida em sua vida e não tem idéia do
que lhe esperaria. E além disso as mulheres são umas
românticas incuráveis. Nunca estão preparadas para a
dura realidade.
—Acredito que a deixou com uma boa dose de «dura
realidade» o outro dia.
Lorde Thomas se encolheu de ombros.
—Além disso, não se encontra bem. Não me
surpreenderia nada descobrir que está tísica.
Sua Excelência não disse nada.
—E a menina, claro, é minha principal preocupação
—continuou Lorde Thomas—. Como poderia apartar a
de ti e desta casa, Adam? E como poderia me levar ao
Sybil e à menina não? Ao Sybil lhe partiria o coração.
O duque continuou sem dizer nada.
—Sim — afirmou seu irmão—. Claro que a deixarei
em paz. Não tenho nenhuma outra eleição se quero
fazer o correto, verdade?
Sua Excelência virou a cabeça e o olhou friamente.
—A verdade é que é uma pena que ambos nos
apaixonássemos pela mesma mulher, isso é tudo —
comentou Lorde Thomas—. Tínhamos uma boa relação
até que Sybil apareceu em cena.
—Pode ser que seja uma lástima é que nenhum dos
dois se apaixonasse por ela. Eu poderia ter vivido sem
ela sabendo que era feliz contigo, Thomas. Ter-me-ia
recuperado porque a amava. Mas o que conseguiste é
destruir toda sua felicidade e todo meu amor. Sim,
tivemos uma boa relação… faz tempo.
Lorde Thomas continuou sorrindo.
—Deixei uma mensagem dizendo que irias ver a
quando voltasse de pescar esta manhã. Foste?
—Está doente — replicou Lorde Thomas—. Estou
seguro de que necessita tranqüilidade.
—Sim. Suponho que não merece a pena visitá-la se
não estar o bastante bem para deitar-se com ela.
Seu irmão se encolheu de ombros.
—Confio em que acabe dando-se conta da verdade
—comentou Sua Excelência— embora não a ouvirá de
meus lábios. Pode ser que depois de toda a dor se libere
finalmente de ti e seja capaz de fazer algo importante
com sua vida. Resulta fácil falar com posteridade. Agora
vejo que deveria ter insistido em que soubesse a
verdade desde o começo.
Lorde Thomas se encolheu de ombros uma vez mais
e esporeou a seu cavalo para cavalgar junto à senhorita
Woodward e Sir Ambrose Maxwell.
Justo antes de jantar aquela mesma noite, o duque
recebeu uma nota em que Lorde Brockehurst e Sir
Hector Chesterton lhe avisavam de que alargariam sua
visita ao Sir Cecil Hayward e ficariam para jantar e a
jogar às cartas.
Sua Excelência pensou que assim deixava
virtualmente atrás um dia bastante desagradável,
embora tivesse que pospor a principal ordem do dia até a
manhã seguinte. Deixou-lhe uma mensagem à ajudante
de quarto de Lorde Brockehurst no que dizia que Sua
Excelência estaria encantado de que sua senhoria o
acompanhasse em um cedo passeio matutino a cavalo
ao dia seguinte.

Era muito tarde. Fleur sabia que teria que haver-se


metido na cama muito antes, considerando sobre tudo
que teria que levantar-se antes inclusive de que
amanhecesse. Mas de todos os modos não confiava em
poder dormir. Contou o dinheiro uma vez mais e se
amaldiçoou novamente por ter comprado umas meias de
seda quando não tinham sido mais que uma
extravagância.
Não estava segura de ter suficiente. Não estava nada
segura. Mas se tivesse suficiente para o bilhete, não se
preocuparia com a comida. Podia passar uns quantos
dias sem comer. Já o tinha feito antes.
Claro que também podia pedir emprestada uma
pequena soma ao Ned Driscoll. Mas provavelmente não
voltaria a vê-lo nunca para lhe devolver o dinheiro, e
possivelmente nunca teria dinheiro suficiente para
devolver-lhe.
Além disso, Ned já estava fazendo um sacrifício por
ela. Tinha acessado a levá-la em sua charrete antes do
amanhecer até o Wollaston para agarrar a diligência.
Mostrou-se muito reticente a fazê-lo, e estava bastante
segura de que se lhe tivesse devotado dinheiro, se é que
tivesse tido dinheiro para lhe oferecer, o teria rechaçado
categoricamente.
Mas Fleur só contava com sua capacidade de
persuasão e com o fato de saber que tinha debilidade
por ela.
Pode ser que o despedissem por ajudá-la. Mas Fleur
não podia expor-lhe não podia suportar uma
preocupação mais. Não havia outro modo de chegar ao
Wollaston a tempo que não fosse roubando um cavalo. E
ela nunca tinha roubado nada.
Voltou a olhar o pequeno fardo de roupa que tinha
guardado dentro de sua velha capa cinza e se perguntou
se levá-la roupa que tinha comprado com o dinheiro de
Sua Excelência em Londres se podia considerar roubo.
Mas se estremeceu ao pensar em ficar o velho vestido
de seda e a capa cinza.
Partiria do Willoughby Hall. Tinha-o decidido no
transcurso do dia. Passou-se quase todo o dia sentindo-
se como um urso encadeado a um poste; de fato, tinha
tido essa mesma sensação a maior parte do tempo
durante os últimos três meses. Não podia suportá-lo
mais. Se ficasse um só dia mais perderia uma parte de si
mesmo, de seu ser mais íntimo, e ao fim e ao isso cabo
era tudo o que ficava.
Iria ao único lugar ao que podia ir conservando seu
orgulho e sua integridade. Iria para casa, ao Heron
House. Claro que ao fazê-lo só se dirigia a um desastre
seguro. Mas no transcurso de três meses tinha
descoberto que havia algumas coisas piores que a
perspectiva de enfrentar-se a uns cargos contra os que
não podia defender-se. Havia algumas coisas piores que
o medo ao castigo final.
Se a penduravam perderia a vida. Se ficava tal e
como estava se perderia a si mesmo.
Havia-lhe dito que podia ajudá-la. Que a ajudaria. Ao
igual a tinha feito Matthew? Salvaria-a do cárcere e da
morte em troca de certos favores? Ele o tinha negado
rotundamente e tinha acreditado… quase tinha
acreditado.
Mas como podia lhe acreditar? Como podia ajudá-la?
E por que quereria fazê-lo? Pode que para ele só fosse
uma puta que lhe dava lástima. Ou uma puta a que
esperava enrolar para ter uma relação mais duradoura.
Ela queria acreditar. Queria confiar nele. Mas como
podia fazê-lo? Levava muito tempo sozinha. Inclusive
Daniel, que era amável e devoto, não teria sido capaz de
ajudá-la em seu problema. Teria tido uma crise de
consciência se lhe tivesse pedido ajuda detrás
reconhecer que tinha matado ao Hobson, embora tivesse
sido em defesa própria.
Ansiava acreditar. Sentou-se no bordo da cama e
fechou os olhos. E se precaveu do que tinha acontecido
nas últimas semanas, de uma maneira tão gradual que
Fleur logo que tinha percebido a transição. Ele tinha
passado de ser seu pesadelo a converter-se em seu
sonho.
Porque tinha chegado a considerá-lo um homem que
merecia seu respeito, que lhe agradava, e pode que
inclusive… Não, não.
Porque ele o tinha planejado desse modo? Porque
tinha planejado uma sedução gradual seguindo
pacientemente uns passos, mais hábil que Matthew?
Fleur deixou cair a cabeça para diante até apoiar o
queixo no peito. Não sabia o que acreditar, mas sabia
que devia apartar-se dele ao igual a devia partir por
outros motivos. Era um homem casado e poderia ser
malvado.
Tinha uma imagem dele no jardim do senhor
Chamberlain, falando com a senhorita Chamberlain, com
a Lady Pamela ascensão a seu ombro gritando excitada
ao ouvido.
Fleur tinha sido sua prisioneira durante todo o dia.
Jeremy tinha passado a manhã fora da biblioteca e a
tarde fora do quarto de estudo. Tinha-a acompanhado
até abaixo para jantar e de volta a seu quarto depois de
passar um par de horas com a senhora Laycock.
Tinha sido sua prisioneira? Ou simplesmente se
dedicou a protegê-la? Jeremy tinha explicado que
Matthew tinha subido aquela tarde e se incomodou muito
ao lhe dizer que a senhorita Hamilton tinha recebido
ordens de Sua Excelência de trabalhar com sua aluna
toda a tarde sem interrupção.
Mas havia se sentido como uma prisioneira. Como
uma presa para ambos. Como um urso encadeado a
seus sabujos.
Tinha que partir. Tinha que ir para casa. Matthew a
seguiria até ali, e logo interpretariam a última cena da
obra que tinha começado quase três meses atrás.
Não havia nenhum mistério a respeito de como
concluiria. Mas não queria evitá-lo durante mais tempo.
Tinha que voltar e aceitar de algum jeito o que tinha feito
e as conseqüências que conduziria.
Melhor voltar livremente a que a tivessem preso. E
melhor voltar sozinha e independente que como a noiva
ou a amante do Matthew, despojada de sua integridade
para sempre.
Acabou apagando a vela e tornando-se totalmente
vestida em cima das mantas da cama, olhando para a
escuridão.
Capítulo 19

À manhã seguinte choveu outra vez. Enquanto


permanecia de pé junto à janela da biblioteca, o duque
de Ridgeway pensou que o período seco e quente
parecia lhes haver abandonado para sempre. Deveriam
enfrentar-se a um verão muito mais britânico do que
tinha sido a primavera.
E poderia ser que fosse melhor que chovesse. Tinha
tido tempo para planejar seu bate-papo com Lorde
Brockehurst com maior esmero do que o teria feito se
tivesse brilhado o sol. Dirigiu-se inquieto ao escritório,
olhou a carta inacabada que se encontrava em cima dele
e a guardou na gaveta. Resultava inútil tratar de
concentrar-se em escrever.
Ela não tinha baixado a praticar na sala de música
aquela manhã. Justo no dia no que mais tinha
necessitado o bálsamo calmante da música, não se tinha
apresentado.
E possivelmente também fora melhor assim. Logo a
enviaria a outro lugar. De fato, esse era o tema principal
da carta que estava escrevendo à duquesa viúva do
Hamm, uma velha amiga de seu pai. Uma vez que
falasse com o Brockehurst, faria as gestões restantes
para a garota, a não ser que por algum milagre pudesse
receber sua fortuna.
O duque se acariciava distraído o quadril dolorido
com a mão esquerda. Teria que viver sem sua música. E
sem vê-la cada dia. Teria que encontrar a outra pessoa
que fora tão boa para Pamela como o era Fleur.
Abriu e fechou a mão. Poderia ser que Sybil não se
opunha a que levasse a Pamela a Londres durante uns
quantos meses ou semanas. Não podia deixá-la durante
outro período longo; já o tinha decidido ao voltar para
casa a última vez. Mas como seria capaz de suportar a
solidão e as brigas constantes da vida do Willoughby?
Sobre tudo agora que ela tinha estado ali.
Vários convidados tinham expresso a noite anterior
sua intenção de partir em poucos dias.
Bateram na porta e Jeremy a abriu para deixar
passar ao Lorde Brockehurst.
—Lamento o do passeio a cavalo — comentou o
duque depois de dá-los bom dia—. Sente-se. Posso lhe
oferecer uma taça? —Olhou para a porta entreaberta
que conduzia à sala de música.
—Acabo de tomar o café da manhã — respondeu
Lorde Brockehurst, afundando-se na cadeira que tinha
ocupado Fleur umas poucas noites antes e rechaçando
com um gesto a oferta de tomar algo—. Faz um tempo
infernal, Ridgeway. As damas devem estar subindo pelas
paredes de aborrecimento. Adoram passear.
—Devem fazê-lo na galeria — disse Sua Excelência
—. Tenho entendido que está pensando em me privar de
minha governanta, Brockehurst.
O olhar de Matthew adotou uma expressão receosa,
e riu:
—A senhorita Hamilton é uma dama muito atrativa.
—Tenho entendido que vocês dois se
comprometeram de maneira não oficial. É você um
homem afortunado.
Lorde Brockehurst ficou um instante em silêncio.
—O contou ela?
O duque se sentou em frente de seu acompanhante
e sorriu.
—Espero que o fato de comentar-lhe não lhe cause
problemas com você, mas estou seguro de que não o
anunciou a todo mundo. Deve pensar que como
empregada devia me avisar de que partia. Imagino que
partirá com você.
Lorde Brockehurst se reclinou tranqüilamente na
cadeira e devolveu o sorriso ao duque.
—Não me zango absolutamente porque o tenha
contado. Queria anunciar nosso compromisso de
maneira oficial aqui, mas ela se mostrou reticente. O fato
de ser uma criada a coibiu.
—Ah, então é certo! —exclamou o duque, apoiando
os cotovelos nos braços da cadeira e juntando as gemas
dos dedos—. As felicitações são obrigadas. Quando se
celebrarão as núpcias?
—Obrigado — respondeu Lorde Brockehurst—.
Assim que seja possível depois de partir daqui. Espero
não estar lhe causando muitas moléstias, Ridgeway.
O duque se encolheu de ombros.
—A senhorita Bradshaw me avisou com uma semana
de tempo.
O outro assentiu, e a seguir o olhou com maior
interesse.
—Explicou que esteve vivendo com um nome falso?
O duque inclinou a cabeça.
—Se as bodas for se celebrar imediatamente, é que
deve ter decidido não apresentar cargos. Claro que
quando se trata de roubo e assassinato, não é algo que
deva decidir um juiz de paz. O que deve ter decidido é
que a morte não foi um assassinato e o fato de que se
levasse as jóias não foi um roubo. Estou certo?
—O que é o que lhe esteve contando Isabella? —
Lorde Brockehurst começou a incorporar-se agarrando
os braços da poltrona.
—Nada absolutamente — respondeu Sua
Excelência, cruzando uma perna embutida em uma bota
sobre a outra—. Nem sequer me há dito nada de que se
fora a casar com você. Tenho outra fonte de informação.
Lorde Brockehurst franziu o cenho.
—O que está acontecendo aqui, se pode saber?
—Parece que contratei a uma governanta que não é
quem diz ser, e que pode que seja uma assassina e que
pode que seja uma ladra. A segurança e o bem-estar de
minha filha estão em perigo. Quero que você me relate
sobre algumas coisas, Brockehurst, se me permitir isso.
Necessito sua ajuda.
O outro voltou a reclinar-se na cadeira.
—Depois de tudo me viria bem tomar essa taça.
O duque ficou em pé e atravessou a habitação.
—É a senhorita Bradshaw uma ladra? —perguntou.
—Não sei de onde tirou a informação — replicou
Lorde Brockehurst—, mas deve saber que se
encontraram algumas jóias de minha mãe em um baú
que Isabella estava a ponto de levar-se da casa. Eram as
jóias mais caras, as que não se levou a Londres.
—Dentro do baú — repetiu o duque—. E como as
roubou? Se eram tão caras, como é que não estavam
cuidadosamente guardadas sob chave? A quem confiou
sua mãe a chave quando partiu?
—A mim, é obvio. Mas Isabella viveu na casa toda a
vida. Devia saber onde se guardavam as jóias. É mais
que provável que tivesse uma chave.
—Então é que havia mais de uma?
Lorde Brockehurst se encolheu de ombros.
—Esteve a senhorita Bradshaw com seu baú até o
momento em que o descobriram? —perguntou Sua
Excelência.
—Abriu-se o baú e se encontraram as jóias depois de
que se foi.
—E onde esteve o baú enquanto falava com você e
depois de que fugisse, antes que alguém decidisse abri-
lo? —perguntou o duque.
—Estava na charrete que tinha previsto tomar, e logo
voltaram a levá-lo a seu quarto.
—Já vejo. —Sua Excelência lhe entregou a taça e
voltou a sentar-se. Ele não se serviu—. Quantas pessoas
poderiam acessar a esse baú da última vez que o viu a
senhorita Bradshaw? E por certo, estava fechado?
Lorde Brockehurst voltou a franzir o cenho.
—Isto se parece muito a um interrogatório, Ridgeway
—comentou.
—Meus criados devem ser irrepreensíveis —
explicou Sua Excelência—, e sobre tudo a governanta de
minha filha. Existe alguma possibilidade de que tivessem
posto as jóias ali?
—Mas quem teria um motivo para fazer algo
semelhante? —perguntou Lorde Brockehurst.
O duque se esfregou o queixo.
—Entendo o que quer dizer, mas a própria senhorita
Bradshaw tinha um motivo, claro. Acredito que se negou
a deixar que se casasse com o pároco da zona, e não ia
herdar sua fortuna até ao menos dois anos mais tarde.
Dispunha-se a empreender sua fuga sem um níquel.
—Sua fonte está bem informada — comentou Lorde
Brockehurst.
—Sim —concedeu Sua Excelência—. Meus fortes
revistam está-lo se as tenho em consideração. Fale-me
dessa morte. Foi assassinato?
—Ameaçou me matar — explicou Lorde Brockehurst
—. Estava furiosa, fora de si. Tanto minha ajudante de
quarto como eu estávamos preocupados com ela. Ele
tratou de evitar que se fizesse mal, mas lhe empurrou e o
matou. Não se teria cansado sozinho. Acredito que sua
ação constitui um assassinato.
—E não existe a possibilidade de que se
interpretassem mal suas ações? —perguntou Sua
Excelência—. Tenho entendido que estava sozinha na
casa com você, além dos criados. Nessa habitação em
concreto estava sozinha com dois homens. Poderia ter
pensado que você queria lhe fazer dano?
Lorde Brockehurst riu.
—Isabella viveu como membro de minha família
desde que era uma menina. É como uma filha para
minha mãe, e como uma irmã para mim. Só que chegou
a significar mais do que poderia significar uma irmã. Faz
tempo que sabe que lhe tenho afeto e que espero que
seja minha esposa. Não houve lugar a mal-entendidos.
Desgraçadamente sou seu tutor e aquele dia tive que me
dedicar à dolorosa tarefa de frustrar um desejo que a
teria levado a infelicidade.
—Já vejo. Então, se ameaçou matando-o, parece
que o assassinato foi premeditado, embora chegado o
momento matou ao homem equivocado. Sim, é
assassinato. Você tem razão. Um pecado capital. Parece
que a senhorita Bradshaw está destinada à forca.
Lorde Brockehurst tomou um sorvo de sua taça e não
disse nada.
—Assumo que veio aqui para levá-la ao cárcere, que
é onde deve estar — disse Sua Excelência—. Mas há
algo que me desconcerta. Se for uma assassina e
portanto uma criminosa perigosa, por que não a deteve
assim que chegou, ou por que não me advertiu que
estava dando refúgio a uma fugitiva se desesperada?
Lorde Brockehurst deixou sua taça cuidadosamente
na mesa junto a ele.
—Vim como convidado de seu irmão. Havia outros
convidados. Naturalmente, Ridgeway, não quis alarmar a
todo mundo. Esperava-me levar isso sem nenhum
alvoroço nem escândalo.
—E enquanto isso poderia ter assassinado minha
filha e haver matado a todos em nossas camas.
—Não acredito que esteja transtornada — replicou
Lorde Brockehurst.
—Só encurralada em uma esquina — corrigiu Sua
Excelência—, ao saber que a encontrou e que quão
único faz é esperar a que chegue o momento oportuno.
Apoiando-me em minha experiência na caça,
Brockehurst, teria que afirmar que um animal
encurralado é o animal mais perigoso que existe. Claro
que você deve acreditá-lo que diz. Não deve considerar
perigosa à senhorita Bradshaw se estiver disposto a
casar-se com ela depois de tudo. Pese ao feito de que
ameaçou lhe tirando a vida e logo matou a seu ajudante
de quarto.
—Nunca tive nenhuma intenção de me casar com
ela. Ao menos não desde que revelou ser como é.
O duque franziu o cenho.
—Perdoe-me. Acaso lhe ouvi mal faz uns minutos?
—Não sabia muito bem o que sabia ou o que tinha
descoberto — desculpou Lorde Brockehurst—. Pensei
que o mais sensato seria estar de acordo com o que
você dissesse até que soubesse exatamente o que
estava tentando me dizer. Mas como poderia me expor
seriamente me casar com uma mulher que roubou a
minha própria mãe e matou a meu criado porque estava
furiosa comigo?
—Como poderia, a verdade? —repetiu o duque—.
Mas não lhe parece que a um juiz resultaria bastante
estranho o acontecido nos dias passados e o que
reconheceu faz escassos minutos, Brockehurst? Não
acredita que lhe pareceria que ofereceu um trato à
senhorita Bradshaw… como trocar seu testemunho em
troca de seus favores?
Lorde Brockehurst ficou em pé.
—Essa sugestão resulta deplorável, Ridgeway.
Quando contar os fatos tal e como aconteceram, nenhum
juiz ou jurado duvidará em condená-la.
—E ficará a olhar a execução, claro. Desfrutará
vendo como lhe colocam a corda pela cabeça e a
apertam? Desfrutará vendo como cai pela última vez?
Lorde Brockehurst apertou os punhos nos flancos.
—Eu a amava. Suponho que ainda a amo.
Desgraçadamente, tem que fazer-se justiça.
—Ah, isso espero — comentou o duque,
entrecerrando os olhos—. Tenha por seguro que
atestarei no julgamento, Brockehurst.
—Entendo que é sua amante. Uma vez que tenha
ficado demonstrado, não acredito que seu testemunho
valha muito. Assim depois de tudo o que lhe preocupa
não é sua filha, Ridgeway, a não ser sua satisfação
pessoal. Teria que havê-lo adivinhado. E é pela garota
pelo que está disposto a inventar mentiras sobre minhas
intenções para ela.
—Houghton —chamou Sua Excelência, sem elevar
apenas a voz—, Trar-me-ia um brandy, querido amigo?
Dá-me preguiça voltar a me levantar outra vez.
Lorde Brockehurst ficou olhando sem dizer nada
quando o secretário do duque apareceu pela porta
entreaberta que conduzia à sala de música e procedeu a
servir uma taça para seu senhor.
—Confio em que terá tomado notas — comentou Sua
Excelência, agarrando sua bebida—. Embora possua
uma memória excelente inclusive sem tomar.
—Está tudo escrito, Sua Excelência — afirmou Peter
Houghton.
—Obrigado — disse o duque—. Não quero entretê-
lo, Houghton. Quererá voltar para sua cadeira.
O secretário voltou a sair da habitação.
—A chuva provoca que faça um dia completamente
sombrio — comentou Sua Excelência—. Mas em certo
sentido foi melhor assim: não teria sabido onde esconder
uma testemunha se tivéssemos dado esse passeio,
Brockehurst. Mas acredito que jogar com a justiça é um
delito, o qual é obvio resulta um modo muito educado de
dizer que sei que é um delito. O que vamos fazer a
respeito?
—Vamos? —Lorde Brockehurst parecia ter
recuperado a compostura—. O que vamos fazer a
respeito? Isabella é uma assassina. Levo-me isso para
que a julguem.
—Sim. Estou de acordo em que se podem formular
cargos em seu contrário. Empurrou a um homem e ele
morreu. Parece assassinato. E se encontraram jóias em
seu baú. Acredito que alguém tem que entregá-la para
que a julguem, Brockehurst. Mas não sozinha com você.
Vou assegurar-me que vá acompanhada como
corresponde. E eu mesmo assistirei ao julgamento.
Pedirei para testemunhar se o considerar necessário.
—Para poder jogar você também com a justiça? —
espetou-lhe Lorde Brockehurst, burlando-se pela
primeira vez—. Está tentando me chantagear,
Ridgeway?
—Absolutamente. Quero que diga toda a verdade do
que ocorreu. Mas se toda a verdade consiste em dizer
que a senhorita Bradshaw roubou as jóias de sua mãe e
matou deliberadamente a seu ajudante de quarto, então
acredito que o juiz e o jurado estarão muito interessados
em escutar os detalhes de como chegou aqui convidado
e passou algum tempo alternando com a mulher que
devia prender. Sem dúvida lhes interessará saber que
tinha planejado casar-se com ela «logo que fosse
possível». Acredito que essas foram suas palavras
exatas. Tenho razão, Houghton?
Houve uma breve pausa.
—Sim, Sua Excelência — respondeu Peter Houghton
do outro lado da porta que levava a sala de música.
—Pode ser que pendurem à senhorita Bradshaw.
Mas a você também podem ocorrer coisas terríveis,
Brockehurst. Não estou seguro do que, não sei tanto da
lei como suponho que deveria saber um juiz de paz. Sem
dúvida Houghton poderia averiguar qual será
provavelmente seu castigo. Resulta inestimável como…
mmm… fonte de informação. Gostaria que o averiguasse
por você?
Lorde Brockehurst franziu a boca.
—Claro que… — continuou o duque—, o juiz e o
jurado poderiam absolver à senhorita Hamilton,
apoiando-se em que o testemunho da única testemunha
do assassinato não é absolutamente de confiar. Poderia
ser que caísse você sozinho... vá, escolhi mal as
palavras. Não acredito que a pena por seu crime seja a
morte. Em realidade, diria que não o é. A deportação,
possivelmente? Mas enfim, só são conjeturas.
Deixaremos que o averigue Houghton.
—Partir-me-ei daqui imediatamente — disse Lorde
Brockehurst friamente—. Já não lhe incomodarei mais
com minha presença, Ridgeway.
—Sem a senhorita Bradshaw? —perguntou Sua
Excelência—. Quer que me encarregue de que a
entreguem à justiça? Realmente acredito que devo fazê-
lo. Acusou-a que dois delitos capitais. Para estar
tranqüila têm que condená-la ou absolvê-la. Ou você
deve fazer uma declaração pública explicando o engano
de suas acusações anteriores. É obvio ficou consternado
por sua desobediência e pela morte acidental de seu
ajudante de quarto. As pessoas tendem a exagerar em
circunstâncias semelhantes. As pessoas aplaudiram a
sua valentia ao aceitar um certo ridículo para arrumar as
coisas.
—Farei essa declaração — afirmou Lorde
Brockehurst entre dentes.
—Esplêndido — exclamou Sua Excelência, ficando
finalmente em pé. Não havia tocado nenhuma só gota de
brandy—. Esperarei um anúncio oficial de sua
declaração dentro de uma ou duas semanas. Está
apontando tudo isto, verdade, Houghton?
—Sim, Sua Excelência — disse a voz detrás da
porta.
—Depois de que se limpou o nome da senhorita
Bradshaw —continuou Sua Excelência—, voltarei a me
pôr em contato com você, Brockehurst, para ver o que
pode fazer-se para mantê-la até seu vigésimo quinto
aniversário. Mas não preciso entretê-lo com os
pormenores desse assunto por agora. Que tenha um
bom dia. E que tenha boa viagem. Irá para Heron
House?
—Ainda não o decidi e de todos os modos não me
parece necessário compartilhar meus planos com você,
Ridgeway — espetou Lorde Brockehurst, dirigindo-se
para a porta.
—Ah, de acordo — exclamou Sua Excelência. Ficou
junto à cadeira e observou como o outro partia.
O duque afundou visivelmente os ombros quando se
fechou a porta.
—Entra, Houghton. Conheceste alguma vez a um
tipo mais repugnante que esse?
Fechando a porta da sala de música detrás dele ao
entrar na biblioteca, Peter Houghton considerou que não
era necessário responder.
—Estava assustado — comentou Sua Excelência—,
e me temia que visse a solução a todas suas
dificuldades. Resultou tão evidente durante um minuto
inteiro que me parece incrível que não caísse na conta.
Imagino que você também o viu. De fato, seguro que
você o viu antes que eu.
—Poderia ter argumentado que os todos intentos por
conseguir que a senhorita Hamil isto… que a senhorita
Bradshaw se casasse com ele foram uma artimanha
para conseguir que partisse tranqüilamente e para evitar
escândalos na casa — opinou Houghton—. Sim, Sua
Excelência. Mantive os olhos fechados um minuto e meio
inteiro esperando que se desse conta. Ficará furioso
quando pensar e se dê conta de que poderia haver-se
liberado de sua armadilha.
—Conhecendo-te, Houghton, diria que as notas que
tomaste estão muito bem escritas e meticulosamente
organizadas. Mas as repasse, por favor. Não acredito
que vamos necessitar as nunca, mas quero que estejam
listas se por acaso se desse o caso.
—Sim, Sua Excelência.
—Enquanto isso — Sua Excelência sorriu—, acredito
que subirei a aliviar a mente de uma dama da pesada
carga que a esteve curvando os últimos três meses.
Peter Houghton não respondeu quando seu senhor
saiu da habitação caminhando com brio. Nem sorriu
divertido, nem o desdenhou. Meneou a cabeça bastante
triste. Era pior do que tinha pensado. Depois de tudo,
não era a amante de Sua Excelência. Era seu amor.
Mas Sua Excelência era um homem honorável.
Houghton sentiu uma pena profunda por seu senhor.

Fleur só tinha dinheiro para chegar até um povoado


situado a trinta e dois quilômetros do Heron House.
Trinta e dois quilômetros resultavam ainda um caminho
muito longo, sobre tudo com o tempo frio e instável que
fazia. E o fardo que parecia mais pesado a cada minuto
que passava e o estômago vazio não ajudavam a
melhorar a perspectiva de uma larga caminhada.
Mas não havia alternativa. Fleur se dispôs a
percorrer os trinta e dois quilômetros. Teve a sorte de
que a recolhesse um granjeiro que ia subido em uma
carreta incômoda e fedida e assim avançou cinco ou seis
quilômetros. E a onze quilômetros de casa a reconheceu
outro camponês que conduzia um carro e a levou
diretamente à porta do Heron House. Só pôde
agradecer-lhe e confiar em que não esperasse que lhe
pagasse.
Mas quando o homem fez girar a seus cavalos e
partiu rapidamente pensou, com um sorriso afligido, que
possivelmente se veria recompensado com a alegria de
ser quem desse no povo a notícia de que ela havia
tornado.
Quando entrou em casa, ficou claro que os criados
não sabiam o que fazer. Fleur respirou fundo e decidiu
tomar a iniciativa.
—Estou cansada, Chapman — disse ao mordomo,
como se acabasse de voltar de dar um passeio pela
tarde—. Que levem água quente ao meu quarto para me
tomar um banho, por favor, e que vá Annie.
—Sim, senhorita Bradshaw — assentiu o mordomo,
olhando-a, segundo a opinião de Fleur, como se tivesse
duas cabeças. Chapman voltou a falar quando ela se
voltou para subir as escadas—. Annie já não está
conosco, senhorita Isabella.
—Partiu-se? —perguntou a garota, voltando-se—.
Lorde Brockehurst a despediu?
—Ofereceram-lhe um trabalho no Norfolk, na casa
onde trabalha sua irmã, senhorita Isabella. Deu-lhe pena
ir-se.
—Então me envie a outra das criadas.
Enquanto subia as escadas restantes até seu quarto
e olhava todos os objetos familiares a seu redor que
tinham formado parte de sua identidade durante muitos
anos, Fleur pensou que esperava voltar a ver o Annie
outra vez. Resultou quase uma surpresa descobrir que
não tinham tirado nada de seu quarto. Inclusive a roupa
que tinha guardado em seu baú estava em um armário.
Depois de tudo não era necessário que se trouxesse
roupa nova do Willoughby Hall.
E desejava falar com Annie, que ao que parece tinha
sido a que tinha descoberto as jóias em seu baú. Estava
sozinha a criada quando as encontrou? Foi correndo a
contar-lhe ao Matthew? Tinha pensado Annie que era
culpada?
Provavelmente nunca poderia limpar essas
incógnitas. Annie tinha ido a Norfolk. Fleur não recordava
lhe haver ouvido mencionar que tivesse uma irmã
trabalhando ali. Provavelmente Matthew a tinha
despedido porque era a donzela de Fleur e já não a
necessitava na casa.
Resultava estranho ter voltado, encontrar-se com que
tudo era tão normal excetuando o fato de que a prima
Caroline, Amelia e Matthew não estavam em casa. Fleur
tinha fugido de sua vida só três meses atrás. E supunha
que logo voltaria a temer por ela. Alguém faria algo
assim que o impacto de vê-la voltar para casa se
dissipou. Alguém mandaria a procurar o Matthew ou faria
alguma outra coisa para detê-la.
Sem dúvida o próprio Matthew assim que a
sentissem falta de em Willoughby Hall. De fato, pode que
não o tivesse deixado muito atrás. Possivelmente não
teria nem sequer essa noite para si mesmo.
Mas estava no único lugar no que podia estar.
Fleur se banhou e lavou o cabelo quando lhe
trouxeram água, e ficou um de seus próprios vestidos.
Quase voltou para seu ser enquanto se escovava o
cabelo e o penteava sem a ajuda da donzela que lhe
tinham enviado.
Não queria pensar no retorno de Matthew. Tinha
umas quantas coisas que fazer antes que chegasse. E
não queria pensar absolutamente em seu passado mais
recente. Não queria pensar na Lady Pamela e nos dias
que tinham passado juntas. Não queria pensar na
magnífica casa que tinha chegado a considerar quase
dela. E não queria pensar nele. Não, não o faria.
Mas pensou em seu cabelo escuro e forte, em seus
rasgos duros, na cicatriz cruel que lhe atravessava o lado
esquerdo da face. Pensou em suas mãos de dedos
largos e cuidados, aquelas mãos que tanto tinha temido
porque a haviam tocado de um modo impessoal, mas no
mais íntimo de seu corpo, e que a tinham sujeito para lhe
infligir dor e degradação. Mas aquelas mesmas mãos a
tinham abraçado carinhosamente e lhe haviam
sustentado o rosto e afastado as lágrimas dele.
Não queria pensar nele. Ou se não podia evitá-lo,
recordaria-o dizendo que tirasse a roupa e sentando-se
para observar o espetáculo. Ou deitado sobre ela,
olhando-o enquanto lhe arrebatava sua virgindade. Ou
dizendo que era uma puta e que estava desfrutando do
que lhe estava fazendo… mas acaso havia dito alguma
dessas coisas? Ou somente tinham formado parte de
seus pesadelos?
Não queria pensar nele. Ou se tinha que fazê-lo,
recordaria que era um homem casado, que tinha uma
esposa bonita e uma filha a que queria muito.
Não queria pensar nele.
—Entra — respondeu quando alguém bateu na porta
de seu vestidor.
Era uma criada que lhe informava que tinha visita no
piso de abaixo.
Ficando em pé e endireitando-se pensou que parecia
que não ia ter nem sequer uma noite de paz. Já tinha
começado o drama. Pode que voltar para casa fosse o
mais estúpido que tinha feito em sua vida.
Mas tinha que voltar. Não ficava nenhuma outra
alternativa que não fora perder-se.
O mordomo lhe abriu a porta para o salão onde
recebiam as visitas e Fleur entrou nele.
—Isabella! —Miriam Booth, uma mulher pequena e
bastante gordinha que tinha o cabelo loiro e grosso, mal
penteado como de costume em um coque no alto da
cabeça, correu para ela estendendo os braços—. Ah,
Isabella, querida, acabamos de nos inteirar de que
estava em casa!
As lágrimas empanaram a visão de Fleur ao
envolver-se em um abraço com sua amiga, mas não sem
antes ver o Daniel de pé em silencio diante da chaminé,
alto, loiro e bonito com seu negro traje clerical.
—Miriam! —exclamou Fleur, com a voz afogada pela
emoção—. OH, quanto te senti sua falta!
Capítulo 20

O duque de Ridgeway beijou a sua filha e ao


cachorrinho quando a menina o levantou.
—Não tem aulas esta manhã, Pamela? —perguntou-
lhe—. Possivelmente tem festa porque está chovendo?
Ela riu.
—Vou dizer lhe à senhorita Hamilton que me leve a
galeria alargada para brincar com as cordas outra vez —
anunciou—, e a olhar à senhora morena do quadro que é
como eu.
—Tenta-o — sugeriu Sua Excelência—. É mais
provável que você consiga o que quer.
—A senhorita Hamilton teve que deitar-se muito tarde
—comentou a senhora Clement mostrando sua
desaprovação—. Ainda não saiu de seu quarto esta
manhã, Sua Excelência.
O duque franziu o cenho.
—E ninguém foi despertá-la?
—Bati na porta faz meia hora, Sua Excelência. Mas
despertar a governanta não é minha tarefa.
—Faça-o agora como um favor que lhe peço.
Pamela, quem há dito que Pequenina pode arrastar a
manta pelo chão?
Sua filha voltou a rir.
—A tata há dito que podia porque é velha —
respondeu—. Olhe, papai. —E puxou de um extremo da
manta enquanto o cachorrinho puxava do outro,
grunhindo da excitação. Lady Pamela riu.
A senhora Clement voltou afanosamente ao quarto
de brincar um par de minutos mais tarde.
—A senhorita Hamilton não está em seu quarto, Sua
Excelência. E a cama esta feita, embora nenhuma
donzela entrou nele esta manhã.
O duque olhou pela janela e em direção à chuva no
exterior.
—Deve haver-se atrasado no piso de abaixo —
opinou.
Uns minutos mais tarde, a consternação se apropriou
da cozinha quando o próprio duque entrou procedente
das escadas de serviço. Informaram-lhe que a senhora
Laycock estava ocupada com as contas da casa no
escritório que ficava junto a seu salão.
—Mas a senhorita Hamilton não baixou a tomar o
café da manhã esta manhã, Sua Excelência —
respondeu o ama em resposta a sua pergunta. Pôs-se
em pé ao entrar ele—. Dei por feito que estava comendo
no quarto de brincar com a Lady Pamela. Às vezes o faz.
—Venha comigo, senhora Laycock, por favor —pediu
o duque, e se dirigiu para as escadas de serviço
passando pelo piano nobile e até a planta do quarto de
brincar.
Bateu na porta de Fleur antes de abri-la e entrou.
—Veio alguma donzela a este quarto esta manhã? —
perguntou.
—Duvido-o muito, Sua Excelência — respondeu a
ama de chaves.
Não havia escovas na penteadeira. Nem forquilhas
nem perfumes nem nenhum dos outros objetos que
sempre abarrotavam o vestidor de sua esposa. Cruzou a
habitação até o armário e abriu a porta. Havia um traje
de montar novo de cor verde jade pendurando em seu
interior, e um vestido de seda azul descolorido e
enrugado. O duque tocou este último durante uns
instantes.
—Partiu — disse.
—Partido, Sua Excelência? —A senhora Laycock
abriu uma gaveta da penteadeira. Estava vazio—. Onde
poderia ter ido? E Por quê?
—Mulher estúpida — murmurou o duque, fechando
da porta do armário e ficando frente a ele—. Aonde foi?
Boa pergunta. E como partiu daqui? A pé? Demoraria
quase toda a noite para chegar ao Wollaston.
—Mas por que teria que partir? —A senhora Laycock
franziu o cenho, pensativa—. Parecia estar feliz aqui,
Sua Excelência, e a aprecia muito.
—Volte abaixo, senhora Laycock, por favor —
ordenou Sua Excelência—. Averigue o que possa dos
criados. Algo. Irei aos estábulos a perguntar aos moços.
—Sim, Sua Excelência. —A ama de chaves adotou
uma expressão de estranheza e saiu do quarto.
Nenhum dos moços sabia nada. O duque pensou
que a insensata devia ter fugido a pé. E se perguntou em
que momento da noite tinha começado a chover. E
aonde ia. A Londres, a perder-se outra vez? Esta vez
resultaria mais difícil encontrá-la. Sem dúvida se
manteria se separada das agências de emprego… e dos
teatros elegantes.
E se perguntou se Houghton já lhe teria pago.
—Driscoll — chamou, voltando-se para o moço mais
jovem, vá à casa do guarda, por favor. Quero saber se a
senhorita Hamilton passou pelas portas e quando o fez.
—Sim, Sua Excelência — disse a moço, mas ficou
onde estava em vez de ficar em marcha imediatamente.
O duque o olhou fixamente.
—Posso falar com você, Sua Excelência?
O duque saiu ao pátio do estábulo, fazendo caso
omisso da chuva. Ned Driscoll o seguiu.
—Levei a senhorita Hamilton ao Wollaston esta
manhã antes que amanhecesse, Sua Excelência, na
charrete — explicou, e acrescentou sem vir ao caso—.
Molhou-se.
—Com que propósito?
Nervoso, a moço retorceu a boina entre suas mãos.
—Para tomar a diligência, Sua Excelência —
respondeu.
O duque o olhou fixamente outra vez.
—E quem te ordenou agarrar a charrete?
Ned Driscoll não respondeu.
—Por que me mentiste faz uns minutos? —perguntou
duque.
De novo não houve resposta.
—Uma ou várias das outras moços devem saber que
saíste — comentou o duque.
—Sim, Sua Excelência.
—Assim que ele ou eles também mentiram.
Ned Driscoll olhava como sua boina dava voltas em
suas mãos.
—Deveste imaginar que lhe descobririam —
continuou o duque—. Que lhe despedirão.
—Sim, Sua Excelência.
—Pagou-te?
—Não, Sua Excelência — respondeu ao moço
indignado.
O duque olhou ao jovem moço, que estava de pé
com os pés firmemente apoiados nas pedras do pátio do
estábulo, com o olhar baixo, a boina que dava voltas e
mais voltas em suas mãos, o cabelo molhado pego à
cabeça e a camisa aos ombros e o peito. Recordou uma
manhã em que esse mesmo moço estava fora do
cercado rindo com o Fleur e admirando-a abertamente
enquanto acariciava ao cachorrinho com um dedo do pé.
—Quero que minha carruagem de viagem esteja
preparada frente à porta em uma hora. Informa a Shipley
de que se prepare para levar as rédeas. Você
acompanhará. Provavelmente passaremos vários dias
fora daqui. Terá que te preparar uma bagagem.
—Sim, Sua Excelência. —Ned Driscoll o olhou
receoso. Tinha-lhe cansado a boina das mãos.
—Se a perdemos e não a encontrarmos — ameaçou
Sua Excelência friamente antes de voltar-se—, far-te-ei
mingau na estrada, Driscoll, e te farei ir a pé junto a
Shipley na viagem de volta.
O duque voltou para a casa e comprovou aliviado
que sua esposa se levantou aquela manhã e parecia
estar grandemente melhor. Sentir-se-ia culpado se
partisse e ela continuasse indisposta. Sybil estava em
uma sala jogando às cartas.
—Sybil, posso falar contigo um momento, por favor?
—perguntou depois de permanecer de pé detrás de sua
cadeira até que terminou a mão que estava jogando.
—Jessica te substituirá — comentou o senhor Penny
—. Jessica?
O duque tirou sua esposa da habitação e se dirigiram
a sua sala.
—Tenho que partir uns dias por um assunto
inesperado. Está bastante bem para atender aos
convidados você sozinha?
—Se recordar bem, convidei-os quando não estava
em casa e não esperava sua volta, Adam. Aprendi a
estar sozinha e a não esperar ajuda de ti.
—Espero voltar dentro de uma semana.
—Não tenha pressa. Todos os convidados partirão
logo. De fato, avisaram ao Lorde Brockehurst e tem que
partir hoje. Provavelmente para quando voltar eu mesma
me terei ido, Adam. Partirei com o Thomas.
Ele abriu a porta que dava a sala de sua esposa e a
seguiu até dentro.
—Quando voltar — propôs ele—, levarei Pamela e a
ti a Bath umas quantas semanas. As águas e a mudança
de ares lhe farão bem, e Pamela desfrutará de algo
distinto. Possivelmente possamos começar outra vez,
Sybil, e converter nosso matrimônio em algo ao menos
viável.
—Vou ser feliz —comentou ela—. Antes que volte,
Adam, vou ser feliz e vou seguir sendo-o o resto de
minha vida.
—Sybil. —O duque a agarrou pelos ombros e olhou
em direção a seu rosto desdenhoso: era encantador,
frágil e juvenil—. Oxalá pudesse te evitar a dor. Oxalá
pudesse retroceder e fazê-lo tudo de um modo muito
distinto. Não te vai levar com ele.
Sybil lhe sorriu.
—Isso já o veremos — comentou.
Apertou-lhe os ombros e saiu do quarto.
Possivelmente não deveria partir. Deveria mandar ao
Houghton a procurar o Fleur e ficar com sua esposa.
Necessitaria a alguém nos próximos dias.
Mas ele era a última pessoa a quem necessitaria.
Quando Thomas partisse odiaria com intensidade
renovada. Provavelmente nunca poderia obter nada
parecido à paz entre ambos.
Baixou os degraus de dois em dois para despedir-se
de Pamela e assegurar que não passaria muito tempo
fora. Mesmo assim, deixou-a chorando depois de que a
menina lhe golpeasse o peito com os punhos e lhe
dissesse que o odiava e que não lhe importava se partia
para sempre.
—Quero à senhorita Hamilton — exigiu zangada.
E ele nem sequer podia lhe assegurar que voltaria a
trazer para o Fleur com ele. Passasse o que
acontecesse, não o podia garantir.
O duque partiu do Willoughby antes que Lorde
Brockehurst.
Na parada da diligência do Wollaston descobriu que
Fleur tinha comprado um bilhete para uma população
perto do Wiltshire, e se imaginou que não devia estar
muito longe do Heron House. Ao menos não se foi a
Londres.
Mas o certo é que de entre tudo o que se imaginou
nas últimas horas, obstinado-se com maior firmeza à
convicção de que se teria ido ao Heron House. Se não
tivesse encontrado nenhum rastro dela teria apostado
por ir ali. Já tinha fugido uma vez, e as conseqüências
tinham sido nefastas. Não voltaria a fazê-lo outra vez.
Fleur não. O duque pensou que estava começando a
entendê-la bastante bem.
Mulher estúpida!
Seguia sem confiar nele? Ainda acreditava que sua
intenção era convertê-la em sua amante? Não se tinha
precavido do esforço sobre-humano por conter-se que
tinha feito aquela noite na biblioteca para enviá-la só à
cama? Aquela vez em que a tinha desejado muitíssimo e
em que sabia que teria resultado fácil de seduzir?
Poderia-a ter tido aquela noite. Poderia ter
entesourado essa lembrança.
O duque se concentrou na chuva, a neblina e as
nuvens que havia ao outro lado da janela. Antes que a
carruagem percorresse nem sequer um quilômetro mais,
devia ter claro por que ia fazer essa viagem. O fazia para
lhe informar a uma moça e inocente de que podia deixar
de viver com pesadelos, de que era livre. Ia lhe preparar
um futuro provisório até que pudesse herdar sua fortuna
e viver de maneira independente.
Ia porque era, ou tinha sido, seu senhor, porque
dependia dele, e ele se preocupava de todos seus
criados.
Não ia porque a amasse.
Embora assim fosse.

—Onde estiveste? Estávamos tão preocupados com


ti! Mas é maravilhoso voltar a ver-te! —Miriam Booth pôs
as mãos nos ombros de sua amiga e se separou dela.
Fleur riu tremente e se tirou um lenço do bolso para
soá-la nariz.
—Estava assustada e me comportei como uma
estúpida — disse finalmente—. Mas me alegro de ter
voltado.
Jogou uma olhada pela habitação em direção à figura
silenciosa do reverendo Daniel Booth.
—Por que não veio para ver-me, Isabella? —
perguntou.
—Estava assustada. Matei ao Hobson.
—Mas estou seguro de que foi em acidente. Não
pensava matá-lo, verdade?
—Claro que não pensava matá-lo — interveio Miriam,
colocando um braço protetor ao redor dos ombros de sua
amiga, de maior estatura—. Sempre pensei que era a
idéia mais ridícula que ouvi em minha vida. Queriam
evitar que te fosses viver comigo, verdade, Isabella?
—Sim — respondeu Fleur. Fechou os olhos um
instante e os abriu para olhar ao reverendo Booth.
—Mas ao fugir, fez que parecesse que é culpada de
assassinato — comentou ele—. Oxalá tivesse ido ver-
me.
—E me teria ajudado?
—Meu trabalho consiste em ajudar às pessoas com
problemas — respondeu muito sério—. Em seu caso,
Isabella, teria sido mais que um trabalho.
—Ah, não sabia! —exclamou ela—. Pensava que me
teria chamado assassina e me teria entregue ao
Matthew.
—Acredito que o único pecado de que é culpado é do
de sentir uma paixão incontrolada — opinou o reverendo
Booth—. Isso não é exatamente assassinato.
—Paixão incontrolada! —burlou-se Miriam—. E o que
se supunha que ia fazer, Daniel? Lorde Brockehurst foi
muito pérfido ao esperar que Isabella ficasse na casa a
sós com ele. Se tivesse tentado me deter em tais
circunstâncias, eu provavelmente teria pego uma tocha e
me teria encarado com ele e com seu ajudante de
quarto.
—Miriam! —exclamou seu irmão em tom de
recriminação.
—Não roubei as jóias — continuou Fleur—. Nem
sequer sabia que me tinham acusado disso até que
Matthew me contou faz isso um par de semanas. Crie-
me, Daniel? —Deu uns poucos passos para ele.
—Claro que te acredito, se você o diz — respondeu
ele com doçura.
—Bom, eu te acredito inclusive sem que o diga —
acrescentou Miriam com veemência— A só idéia resulta
absurda! Viu ao Lorde Brockehurst, Isabella? E te
tornaste a escapar dele?
—É uma longa história — resumiu Fleur. Cobriu o
rosto com as mãos—. Ah, que agradável é voltar a estar
com amigos e não ter que esconder a verdade. Tinha
que voltar para ver outra vez onde tinha ocorrido tudo,
para preencher alguns ocos da memória, para fazer
algumas pergunta.
Miriam deu umas batidas tranqüilizadoras nas
costas.
—Ajudaremos você de qualquer modo que
possamos. Estávamos desejando fazê-lo. Verdade,
Daniel?
—Contarei tudo — disse Fleur, e voltou a levantar a
vista para o reverendo Booth—, mas, podem fazer algo
por mim primeiro?
—O que? —perguntou ele.
—Tenho que voltar a entrar na biblioteca. Tenho que
ver onde aconteceu tudo. Tenho medo de ir sozinha.
Miriam voltou a lhe passar o braço pelos ombros.
Mas o reverendo Booth se moveu e estava junto a ela,
lhe tendendo o braço. Fleur deslizou gostosamente o seu
redor do reverendo e olhou seu rosto sério.
—É de elogio sua disposição a te enfrentar a seu
passado —comentou o homem—. Apóie-te em mim,
Isabella, ajudarei você.
A biblioteca era, é obvio, nada mais que a biblioteca,
como tinha sido sempre. Nada tinha mudado. Não havia
sangue na chaminé, não havia sinais de luta, não havia
fantasmas espreitando detrás das cortinas ou entre os
livros. Era somente a biblioteca, uma habitação que
sempre tinha gostado.
Soltando-se dos braços de seus amigos e
esquecendo inclusive sua presença, Fleur pensou que
era ali onde tinha estado, a poucos centímetros do fogo,
olhando ao Matthew furiosa e acusando o de comportar-
se como um tutor medieval ao que só lhe faltava encerrá-
la para restringir sua liberdade.
E Matthew lhe havia dito que não lhe deixaria
rebaixar-se a viver com a Miriam Booth e que não se
casaria com o Daniel Booth nem com uma licença
especial nem fugindo e nem de nenhum outro modo. Não
iria dessa casa. Ficaria ali, já que aquele era seu lugar.
Face à fúria que sentia, Fleur tinha acabado
entendendo o olhar no rosto dele. E tinha entendido o
que queria dizer quando havia dito que para quando
partisse da casa nenhum outro homem a desejaria.
Matthew levava vários anos mostrando-se conflitivo e
tinha chegado a lhe desagradar totalmente pelos
cuidados não desejados que lhe emprestava. Mas nunca
lhe tinha temido. Nunca tinha temido por sua virtude.
Mas se imaginava que as circunstâncias o tinham
inflamado. Além dos criados, estava sozinha em casa.
Tinha visto em seu rosto que pensava tomá-la… aquela
noite e naquele mesmo quarto.
E tinha entendido que não era uma decisão
passageira por sua parte. Não era próprio dele que o
acompanhasse seu ajudante de quarto em uma
habitação do piso de abaixo. Fleur se tinha perguntado
por que estava Hobson ali, simulando que estava
ocupado com algo no outro extremo da habitação. Mas
finalmente o tinha compreendido.
E o medo se mesclou com a fúria. Tinha visto o olhar
que Matthew lhe tinha dirigido ao Hobson e havia
sentido, mais que ouvido, que o homem lhe aproximava
por detrás. E tinha sabido exatamente o que ia
acontecer.
Ainda não podia recordar o resto, embora estivesse
olhando em direção ao lugar onde tinha ocorrido tudo. Só
recordava que alguém tinha gritado e agitado os braços.
E ao Hobson desabado no chão, como sua cabeça se
deslizou na esquina da chaminé, o rosto lívido, e o olhar
dirigido para cima. E ao Matthew inclinando-se sobre ele,
ajoelhando-se junto a ele. E olhando-a.
«Espero que esteja satisfeita — havia dito Matthew
com um tom de voz estranho e tenso—. O
assassinaste.»
E o pânico se apoderou dela. E a pouca razão que
ficava advertiu que não podia recorrer nem ao Daniel,
nem a Miriam, nem a ninguém que conhecesse… porque
era uma fugitiva da lei, uma assassina a que
pendurariam se a apanhavam.
—Não foi a razão a não ser o diabo o que te
aconselhou isso, Isabella — disse a voz tranqüila do
Daniel a suas costas, e a garota se precaveu de que
tinha contado todas suas lembranças em voz alta.
—OH, Isabella! —exclamou Miriam cheia de angústia
—. Quanto sofreste! E o vilão é esse Lorde Brockehurst!
Sempre pensei que era culpado, mas só de ser um
tirano. É ele quem merece que o pendurem. Não, Daniel,
digo-o a sério. Totalmente. E logo pôs as jóias no baú da
Isabella se por acaso a acusação de assassinato não
fosse o bastante.
O reverendo Booth ofereceu o braço e voltaram para
salão. Fleur desejou que não se comportasse de um
modo tão correto. Sentia uma necessidade se
desesperada para que a abraçasse, de apoiar a cabeça
em seu ombro. Mas de todos os modos era uma idéia
inútil. Embora não acreditasse que fira culpado de
assassinato e roubo, agora havia outra coisa que o
separava dele para sempre.
Não tinha sentido seguir amando ao Daniel.
Contou-lhes tudo, omitindo somente o modo em que
tinha conhecido ao duque de Ridgeway e o autêntico
motivo pelo que Peter Houghton estava na agência de
emprego da senhorita Fleming.
—Assim voltei para casa — disse quando chegou ao
final de sua história—. Suponho que Matthew estará aqui
amanhã, ou pode que inclusive mais tarde, esta mesma
noite. Suponho que manhã a esta hora estarei
encarcerada em algum lugar.
—Tolices — afirmou Miriam—. Mas tem que vir à
reitoria esta noite, Isabella. Estará mais segura ali.
Fleur meneou a cabeça.
—Não. Fico aqui. Mas irei amanhã a primeira hora.
Quero ver a tumba do Hobson. Tenho que vê-la. Assistiu
muita gente a seu funeral, Daniel?
—Não se celebrou aqui. Enviaram seu corpo ao lugar
onde nasceu.
Fleur franziu o cenho.
—Mas onde? Ah, tenho que averiguá-lo. Tenho que
ver sua tumba. Acredito que não serei capaz de aceitar a
realidade de tudo isto até que o faça. Não queria matá-lo,
já sabem. Estava aterrorizada, e suponho que quis lhe
fazer dano para poder escapar. Mas nunca quis matá-lo.
—Fechou os olhos—. Pode averiguar aonde o levaram,
Daniel?
—Não sei como. De todos os modos acredito que é
melhor que te mantenha se separada do lugar, Isabella.
Se houver membros de sua família ali e lhe vêem e
averiguam quem é, sofrerão muito.
Fleur se olhou as mãos que tinha agarradas no
regaço. Miriam lhes deu umas batidas enérgicos.
—Já basta por esta noite. Deve estar esgotada,
pobre Isabella. E se não vir à reitoria, então viremos o
antes possível pela manhã para te ajudar a te enfrentar
ao Lorde Brockehurst quando chegar.
O reverendo Booth ficou em pé.
—Parece-me que é o melhor que podemos fazer, se
estiver segura de que não vem conosco. Dorme bem, e
tenta não preocupar-se. Eu mesmo falarei na corte se
tiver que fazê-lo, e falarei bem de ti. —levou-se um dos
dedos dela aos seus lábios—. Boa noite, Isabella.
—Boa noite, Daniel.
Miriam a beijou e a abraçou.
Pela primeira vez em muito tempo, Fleur dormiu
profundamente, sem que os sonhos ou os pesadelos lhe
incomodassem.

O duque de Ridgeway se alojou na estalagem do


povo durante a noite. Poderia ter contínuo até o Heron
House, mas teria chegado perto da meia-noite, e decidiu
esperar até a manhã seguinte, Fleur não corria perigo.
Sabia que se adiantou ao Lorde Brockehurst, embora o
cavalheiro tivesse decidido voltar para sua casa.
Além disso, não pensou que Brockehurst fora a
tentar nenhuma loucura no referente a Fleur Hamilton.
Fleur Bradshaw. Isabella Fleur Bradshaw.
Fleur.
Era quase na metade da amanhã quando sua
carruagem o conduziu pelo caminho lhe serpenteiem e
boscoso até a cuidada mansão paladiana de Heron
House. Estava flanqueada por estufas para cítricos e
outros frutos a um lado e estábulos no outro. Diante da
fachada havia vistosos jardins de desenho formal. O sol
tratava de abrir-se caminho através das nuvens quando
a carruagem se deteve ante os degraus de mármore que
conduziam às portas principais.
—A senhorita Bradshaw, por favor — disse ao
mordomo, entregando o chapéu e a fortificação.
—Temo-me que a senhorita Bradshaw está em
Londres com a senhora Brockehurst, senhor — disse o
mordomo, inclinando a cabeça.
—A senhorita Isabella Bradshaw —corrigiu Sua
Excelência.
—E a quem anunciou? —perguntou o homem.
—Não o diga — respondeu o duque de maneira
cortante—. Acompanhe-me até a habitação onde se
encontra, por favor.
A atitude do duque fez que o homem se desse a
volta e o conduzisse a esquerda por um corredor com
chão de ladrilhos até uma habitação na parte dianteira da
casa. O duque pensou que devia havê-lo ouvido chegar.
Devia havê-lo visto chegar.
Adiantou-se ao mordomo ao entrar na habitação que
obviamente era o salão de dia. A luz do sol se estava
filtrando por suas largas janelas. O duque pensou de
repente que por fim deviam haver partido as nuvens.
Ela estava de pé diante de uma cadeira da que
provavelmente se acabava de levantar, ao outro lado da
habitação. Estava muito reta, com o queixo levantado, e
as mãos agarradas sem as apertar no regaço. Levava
um precioso vestido de musselina estampado, e o cabelo
recolhido com cachos suaves ao redor do rosto.
Sua Excelência pensou que estava mais bonita do
que a tinha visto jamais, embora seus olhos detectassem
a palidez de seu rosto e a mandíbula apertada.
E a seguir a expressão da garota trocou e a tensão
quase desapareceu de sua face e seu corpo.
—Pensava que era Matthew. Que era a carruagem
do Matthew. Que tinha vindo.
Ele deu um passo para ela, pensando que estava a
ponto de deprimir-se. Mas em vez disso gemeu e
atravessou correndo a habitação para os braços que lhe
estendeu.
—Ah, pensava que era Matthew! —exclamou quando
os braços do duque se fecharam em torno de seu corpo
tenso e as janelas de seu nariz se encheram com a
suave fragrância de seu cabelo—. Pensava que era
Matthew!
—Não — sussurrou ele ao ouvido—. Sou eu, meu
amor. Não voltará a te fazer dano. Ninguém mais voltará
a te fazer dano.
Ela levantou a vista para ele, olhando-o aturdida, e
lhe tocou a cicatriz da face com as gemas dos dedos.
—Pensava que não voltaria a vê-lo — sussurrou.
Ele tragou saliva ao ver que os olhos da garota se
enchiam de lágrimas.
—Aqui estou. Não sente meus braços a seu redor?
Está a salvo, meu amor.
E baixou a cabeça e a beijou.
E ouviu como voltou a gemer.
Capítulo 21

Tinha sido uma manhã frustrante. Fleur tinha


despertado com energia e esperanças renovadas depois
de ter dormido bem. A chuva tinha cessado, embora o
céu seguia coberto de nuvens. E recordou a visita da
noite anterior e sorriu ao pensar que ainda tinha amigos.
Mas, ao baixar a tomar o café da manhã cedo, disse-
se a si mesmo que lhe devia ficar muito pouco tempo.
Matthew chegaria a casa em qualquer momento. Devia
ter adivinhado que voltaria para o Heron House antes
que a Londres. Ou não? Pode que tivesse pensado que
tinha fugido outra vez, esperando que não a
encontrassem jamais. Londres seria o destino evidente
se esse fosse o caso. Possivelmente a perseguiria até
ali.
A não ser que lhe ocorresse passar pelo escritório da
diligência para averiguar o destino do bilhete que tinha
comprado.
Annie se tinha ido, o qual lhe incomodava. Havia
muitas perguntas em relação às jóias que lhe teria
gostado de fazer a sua antiga donzela. Mas não ficava
tempo para lamentar-se.
—Chapman — perguntou ao mordomo no café da
manhã—, aonde levaram o corpo do Hobson para
enterrá-lo? —E se ruborizou ante a necessidade de falar
tão abertamente de um tema que devia ter sido a fofoca
das habitações do serviço.
—Não sei exatamente, senhorita Isabella.
—Então averigue quem sabe.
—Não estou seguro de que alguém saiba.
Chapman nunca tinha sido o homem mais falador do
mundo.
—Alguém teve que acompanhar o corpo. E
possivelmente alguém assistiu a seu funeral. Algum de
seus amigos? O próprio Lorde Brockehurst?
—Sua senhoria, sim, senhorita. Flynn conduziu a
carruagem. Agora está com sua senhoria.
—O corpo deve ir separado —especulou ela—. Em
carro, suponho. Quem o conduziu?
—Yardley, senhorita.
—Então me traga para o Yardley, por favor.
—Foi-se, senhorita Isabella. Ao Yorkshire, acredito.
Conseguiu um novo emprego ali.
—Já vejo. Suponho que se queria falar com a pessoa
que amortalhou o corpo do Hobson e o colocou no
ataúde, essa pessoa também se teria ido.
—Foi Yardley, senhorita, com sua senhoria. Sua
senhoria estava bastante afetado pelo que tinha
acontecido.
Fleur deixou o guardanapo na mesa. Tinha perdido o
apetite.
Nos estábulos escutou a mesma história. Ninguém
sabia aonde tinham levado ao Hobson para enterrá-lo.
Yardley o tinha levado. E Flynn tinha levado a sua
senhoria ao dia seguinte. Ninguém recordava que
Hobson houvesse dito jamais de onde procedia.
Finalmente Fleur voltou para a casa e entrou no
salão de dia, que sempre tinha sido seu favorito. À prima
Caroline nunca tinha gostado porque afirmava que o sol
direto lhe provocava dor de cabeça. E Amelia não estava
acostumada estar acordada pela manhã. Assim Fleur,
dirigindo-se até a porta e olhando em direção aos
cuidados canteiros de flores e as sebes baixas e
recortadas dos jardins, recordou que sempre havia
sentido como se a habitação fosse dela. Parecia que não
conseguia averiguar nada. E o que resultava ainda mais
lhe frustrem, que não sabia o que era o que tinha que
averiguar.
Sabia-se quase toda a história. Tinha matado ao
Hobson por acidente. Matthew fazia que se levassem o
corpo a seu lugar de origem para enterrá-lo. Matthew
também tinha colocado as jóias da prima Caroline em
seu baú e se assegurou de que alguém descobrisse que
estavam ali. Embora pudesse falar com a Annie, não
podia fazer nada para demonstrar que não as tinha posto
ali ela mesma.
Pode que depois de tudo fosse uma estúpida por não
ter fugido a Londres quando tinha tido a oportunidade. As
criadas a olhavam como se esperassem baixar a vista e
descobrir que brandia uma tocha em uma mão. Quando
chegasse Matthew tudo começaria. Ou mas bem tudo
acabaria. E face ao que haviam dito Daniel e Miriam a
noite anterior, duvidava que ninguém nem nada
pudessem salvá-la. Era incapaz de demonstrar sua
inocência.
Mas não. Já não podia correr mais. Estava onde
tinha que estar.
O pensamento de resignação tranqüila não durou
mais de um instante. Uma carruagem tinha aparecido ao
longe entre as árvores do caminho uma carruagem que
se aproximava da casa.
As mãos de Fleur se esfriaram de repente e sentiu
que o coração lhe pulsava dolorosamente contra as
costelas e nos ouvidos. O rosto também ficou gelado. E
um zumbido lhe embotava além os ouvidos.
Separou-se da janela e se sentou no bordo da
cadeira, com as mãos apertadas no regaço e as costas
retas.
Concentrou-se em não deprimir-se e em acalmar-se.
Ficavam como muito cinco minutos. Matthew devia vê-la
tranqüila. Não devia encontrá-la em atitude servil nem
suplicante.
E não devia aceitar nenhum tipo de proposição
procedente dele, embora seguisse disposto a oferecer-
lhe Não devia.
«Por favor, Deus — rezou em silêncio—, Dê-me a
força para não perder a integridade nem me perder a
mim mesma. Por favor, Deus.»
Não voltou a levantar-se nem olhou pela janela
mesmo que o ruído dos cascos e as rodas da carruagem
se aproximou.
Endireitou os ombros, levantou o queixo, e se
concentrou em respirar lenta e profundamente.
Ficou em pé quando a porta se abriu e ele passou
por diante do Chapman e entrou na habitação.
Fleur demorou uns momentos em precaver-se de
que não era Matthew. Ao princípio seus olhos não eram
capazes de transmitir a mensagem a seu cérebro. E logo
sentiu como perdia o fôlego.
—Pensava que era Matthew. Que era a carruagem
do Matthew. Que tinha vindo.
Mas não era Matthew. Era tudo o que Matthew não
era. Era a segurança, o consolo e o carinho. Era sua
casa. Era tudo o que no mundo era esperança e
claridade. Deu um passo para ela e lhe abriu os braços,
e ela se deixou estreitar por esses braços sem saber
sequer como se fechou a distância entre os dois.
—Ah, pensava que era Matthew! —exclamou Fleur,
sentindo os afetuosos braços dele ao seu redor, os
poderosos músculos de suas coxas contra os dela, a
ampla firmeza de seu peito contra os seios da garota, e a
fragrância desse perfume genuinamente seu—.Pensava
que era Matthew.
Sentiu seu fôlego quente contra sua orelha.
—Não. Sou eu, meu amor.
Tocou-lhe os ombros, e sentiu sua força e sua
firmeza enquanto murmurava palavras reconfortantes. E
levantou o olhar para o rosto moreno e duro que tinha
pensado que nunca voltaria ver, o rosto no que tinha
tentado não pensar absolutamente. Elevou uma mão
para lhe tocar a cicatriz que já conhecia muito bem.
—Pensava que não voltaria a vê-lo — murmurou. O
milagre se encontrava ante seus olhos, nas gemas de
seus dedos, em seu corpo, em seu nariz. Um autêntico
milagre. Mas ainda não lhe tinha chegado ao cérebro. Só
estava em seus sentidos. E mais dentro ainda. O rosto
do duque se voltou impreciso ante seus olhos.
—Aqui estou — disse ele.
Ela contemplou sua boca enquanto falava, escutou
sua voz profunda, olhou-o aos olhos escuros e fechou os
seus.
E de repente se sentiu segura e mais ainda: envolta
em carinho e força. Fleur beijou ao duque. E sentiu uma
pontada de desejo que lhe descia pela garganta e os
seios e lhe alcançava até o ventre e entre as pernas.
Manteve os olhos fechados e jogou a cabeça para
trás quando a boca dele se separou da sua e começou a
lhe dar beijos quentes pelo pescoço. O duque lhe jogou
os ombros para trás com suas fortes mãos.
—Está a salvo, meu amor —disse ao ouvido—.
Ninguém voltará a te fazer dano.
Meu amor. Meu amor. Era o duque de Ridgeway. No
Heron House. Tinha percorrido todo o caminho desde o
Willoughby Hall.
Fleur o apartou, deu-lhe as costas, e atravessou a
habitação até uma das janelas. Fez-se um silêncio.
—Sinto-o — ouviu a voz dele procedente do outro
lado da habitação. Não tinha ido atrás dela, como em
parte esperava—. Não queria que ocorresse isso.
—E o que queria que ocorresse? —perguntou Fleur
—. O que está fazendo aqui? Não roubei nada de sua
casa exceto possivelmente a roupa que comprei em
Londres com seu dinheiro. Pode levar-lhe agora se
quiser.
—Fleur… — começou ele em voz baixa.
—Meu nome é Isabella — interrompeu ela—. Isabella
Bradshaw. Só meus pais me chamaram que a outra
maneira. Você não é meu pai.
—Por que fugiu? É que não confiou em mim?
—Não — respondeu ela, voltando-se para olhá-lo.
Obrigou-se a recordar que tinha sido seu cliente no
Touro e o Corno, e olhou aquelas mãos que sempre lhe
tinham assustado muitíssimo—. Por que teria que ter
acreditado em você? E não fugi. Deixei de fugir. Voltei
para casa. Aqui nasci, já sabe. Nesta mesma casa. Este
é meu lugar.
—Sim. Por fim a vejo em seu próprio entorno. Está
esperando que seu primo volte para casa? Está
esperando o pior?
—Isso não é assunto dele. Por que veio? Não
voltarei com você.
—Não. Não me vou levar isso outra vez, Fleur. Seu
lugar não está no quarto de estudo de minha filha e não
a levarei a nenhuma de minhas casas nunca mais.
Ela se voltou para uma mesa auxiliar e começou a
trocar de lugar as flores de um vaso que havia ali.
Reprimiu uma pontada de dor muita pouco razoável.
—Nem tentarei colocá-la em outra casa, se isso for o
que se teme — continuou o duque—. Vim para liberá-la,
Fleur.
—Nunca estive submetida a você — replicou Fleur—.
Ofereci um serviço adequado em troca de todo o dinheiro
que me deu. Pode levar a roupa quando partir. Não
necessito que me liberem. Nunca estive atada você.
Ele deu outro passo para diante, mas bateram na
porta, e ela ficou imóvel quando se abriu.
—O reverendo e a senhorita Booth vieram a falar
com você, senhorita Isabella — anunciou o mordomo,
jogando uma breve olhada ao duque.
—Faça-os entrar, por favor —pediu ela, sentindo-se
muito aliviada. E correu ao outro lado da habitação para
abraçar a Miriam e sorrir ao Daniel.
O duque se dirigiu até a janela onde tinha estado ela
antes, e se tinha ficado ali de pé.
—Miriam, Daniel — começou Fleur—, posso lhes
apresentar a Sua Excelência, o duque de Ridgeway?
Meus amigos Miriam Booth e o reverendo Daniel Booth,
Sua Excelência.
Todos fizeram as reverências correspondentes e se
intercambiaram olhares de curiosidade.
—Sua Excelência veio para assegurar-se de que
cheguei a casa sã e salva — explicou Fleur—. Agora que
o tem feito, está a ponto de partir.
—Não estou a ponto de fazer tal coisa — a corrigiu o
duque, apertando as mãos nas costas—. Seu reencontro
de agora não foi especialmente emotivo. Assumo que já
se viram antes, desde que voltou a senhorita Bradshaw?
—Estivemos aqui ontem à noite — interveio o
reverendo Booth, dando um passo para diante—. A
senhorita Bradshaw volta a estar entre as pessoas que
se preocupam com ela, Sua Excelência. Cuidaremos
dela. Não tem que preocupar-se mais.
O duque inclinou a cabeça.
—Alegro-me então por ela —começou—, ao saber
que Lorde Brockehurst fará uma declaração pública nos
próximos dias em que informará que a morte de seu
ajudante de quarto foi acidental, descartando a idéia do
assassinato, e que o alarme que provocou o
desaparecimento das jóias foi um falso alarme. De fato,
não houve nenhum roubo absolutamente.
Fleur tinha as mãos fortemente agarradas às de sua
amiga, que sorria.
—Se não se fizer essa declaração — continuou o
duque—, embora não acredito que exista a possibilidade
de que não seja assim, então haverá um julgamento no
que com toda probabilidade a senhorita Bradshaw ficará
absolvida e se apresentarão diversos cargos graves para
levar ao Lorde Brockehurst a julgamento.
Os braços da Miriam rodeavam a Fleur, e estava
rindo.
—Sabia. Sabia que todo esse assunto resultava
ridículo. Isabella, querida, está como um bloco de gelo.
—Espero que não esteja dando esperanças à
senhorita Bradshaw sem um bom motivo, Sua
Excelência — comentou o reverendo Booth.
—Não faria semelhante crueldade — se defendeu o
duque. Fleur o olhou—. Tive um largo bate-papo com o
Brockehurst e obtive suficiente informação sobre o
ocorrido como para que não prossiga com as medidas
que estava tomando. E houve uma testemunha de nosso
bate-papo, de cuja presença não foi consciente durante a
maior parte do tempo.
—Matthew reconheceu a verdade? —perguntou
Fleur.
—A efeitos práticos — disse Sua Excelência—. Não
acredito que tenha que temer nada mais dele, FL…
senhorita Bradshaw.
Ela cobriu o rosto com as mãos e escutou a risada
alegre da Miriam. Percebeu que Daniel atravessava a
habitação para dar a mão ao duque.
—Que manhã mais maravilhosa! —exclamo Miriam
—. Senti-me culpado por fechar a escola, mas agora
estou muito de contente de havê-lo feito.
Sua voz parecia muito longínqua.
—Precisa sentar-se — disse outra voz, e as mãos
fortes dos homens agarraram à senhorita Bradshaw
pelos braços e a sentaram em uma cadeira. Uma dessas
mãos a agarrou pela nuca e lhe fez baixar a cabeça até
quase os joelhos—. Tudo terminou, Fleur. Já lhe hei dito
que estava a salvo.

Ao duque de Ridgeway gostou de Miriam Booth.


Parecia ser o tipo de amiga que Fleur necessitava. Era
sensata, prática, alegre, afetuosa. Uma vez que Fleur se
recuperou depois de ter estado a ponto de deprimir-se,
Miriam a levou ao seu quarto um momento face aos
protestos da garota.
Mas o duque não estava seguro de que gostasse de
Daniel Booth. Era um homem loiro e atraente, tranqüilo e
amável. Sim, tinha todas as qualidades necessárias para
fazer que as mulheres se apaixonassem por ele. Sua
Excelência reconheceu que, combinadas com seu traje
clerical, deviam resultar irresistíveis para a maioria das
mulheres.
E Fleur lhe importava. Assim que as mulheres saíram
da habitação, fez perguntas precisas e perspicazes até
obter que contasse toda a história.
—Um homem assim não deveria ser o líder social de
uma comunidade — comentou o padre—. Teriam que
processá-lo. Por desgraça, fazê-lo implicaria causar mais
tensões a Isabella. Suponho que terá que conformar-se
com o acordo que obteve.
—Eu também cheguei à mesma conclusão —
afirmou o duque—. Pessoalmente eu gostaria de fazer
pedaços a esse homem, mas, sim, isso não seria o
melhor para a senhorita Bradshaw.
O reverendo Booth o olhou diretamente, com uns
olhos que pareciam ver através de sua alma.
—A senhorita Bradshaw não deveria permanecer
aqui —observou o duque—, embora esteja bastante
seguro de que seu primo já não supõe um perigo para
ela. Não seria apropriado para uma dama de sua
condição voltar para minha casa para trabalhar de
governanta de minha filha. Tenho intenção de encontrar
ao Brockehurst e convencê-lo para que lhe entregue uma
atribuição considerável até que adquira o controle de sua
fortuna aos vinte e cinco anos. Se não o obtiver, tentarei
que trabalhe como acompanhante de uma dama maior.
Aqueles olhos voltaram a ver no interior de sua alma
e o viram tudo.
—Acredito que tem feito mais do que se supõe que
deve fazer um senhor pelos que dependem dele —
comentou o reverendo Booth—. Isabella foi afortunada.
Mas agora está entre amigos. Minha irmã e eu falamos
que planos possíveis para seu futuro. Agora que
sabemos que não irá a julgamento, podemos lhe
apresentar esses planos e ver se os aceita.
O duque pensou que um desses planos implicava
que o padre se casasse com o Fleur. E pode que ela
também queria casar-se com ele, se conseguia superar
um fato que tinha acontecido em sua vida em Londres. E
possivelmente seria o melhor que poderia lhe ocorrer. Ia
casar-se com aquele homem antes que a morte do
ajudante de quarto do Brockehurst mudasse tudo.
Provavelmente o amava, e a ele parecia lhe importar.
O duque não estava nada seguro de que gostasse de
Daniel Booth, e devia partir. Já não tinha mais razão para
ficar, sobre tudo se seus amigos estavam dispostos a
ajudá-la a estabelecer-se em um lugar que não fosse
Heron House. Teria que esperar até que Fleur voltasse a
aparecer, despedir-se formalmente dela, e a seguir
começar sua viagem de volta a casa.
Poderia voltar para o Willoughby menos de uma
semana depois de partir. Voltar com Pamela. Antes
possivelmente de que Thomas partisse, a tempo para lhe
oferecer ao Sybil algum tipo de apoio na dor que sofreria
quando se fosse. Embora não lhe permitiria que se
aproximasse, claro está.
Teria que voltar e tentar começar a esquecer. Devia
fazê-lo logo. Por que adiá-lo?
Mas aceitou um convite a comer e voltou a contar
sua história a Fleur, que logo que falou, e à senhorita
Booth, que mostrava uma enorme curiosidade. Fleur não
parecia tão aliviada e emocionada como devia está-lo.
Mas tinha que pensar que acabava de liberar-se da
tensão dos últimos meses. Devia lhe resultar difícil fazer-
se à idéia e reconhecer que tudo tinha terminado, que
era livre.
E é obvio não tinha terminado realmente. As
cicatrizes permaneceriam durante muito tempo. E um
fato a acompanharia durante toda a vida.
Os olhos dela se encontraram com os dele na mesa
enquanto Miriam falava, e viu dúvida e dor neles. E ele
queria estender uma mão e perguntar o que ocorria,
como podia ajudá-la… mas não podia ajudá-la. O duque
voltou a olhar seu prato. Quando todos os sucessos dos
últimos meses se esclareceram, resultaria evidente à
garota que ele era a única pessoa que a tinha causado
um dano permanente. Poderia ser que já havia percebido
isso.
Devia partir imediatamente depois de comer.
—Assim que ficará com a casa que antes era da
senhorita Galen, Isabella? —estava dizendo Miriam
Booth—. E me ajudará na escola, tal e como planejamos
em um princípio? Será maravilhoso durante um tempo,
não te parece? Até que possam fazer-se outros planos,
quero dizer. Pode que tendo em conta as circunstâncias
se possa convencer ao Lorde Brockehurst de que acesse
a Miriam sorriu—. Bom, pode que não se comporte como
o tirano que foi sempre.
—Terei que pensá-lo, Miriam —comentou Fleur—.
Sim, acredito que seria uma boa idéia. Sempre gostei da
casa da casita da senhorita Galen. Com todas essas
rosas!
—Não vê que a mente da Isabella não pára de dar
voltas, Miriam? —interveio o reverendo Booth em voz
baixa—. Necessita tempo para pensar em seu futuro.
Tenho que voltar para povo. Esta tarde a dedico a visitar
os doentes. Vem comigo?
Miriam arrastou a cadeira para trás e ficou em pé.
—Sim. A não ser que queira que fique contigo,
Isabella…
Fleur balançou a cabeça e sorriu.
O reverendo Booth também ficou em pé e olhou
inquisitivo ao duque.
—Partirei esta tarde — explicou o duque—. Importar-
lhe-ia dar um passeio pelo jardim, senhorita Bradshaw?
—De acordo — respondeu ela sem olhá-lo.
O reverendo Booth o olhou, e o duque soube que
aquele homem não gostava absolutamente.

—Que bom que tenha vindo —exclamou Fleur—, e


que tenha feito o que fez! Obrigado, Sua Excelência.
Passeavam um ao lado do outro pelos jardins, sem
tocar-se. Tinham visto o reverendo Booth e a Miriam
voltando para ao povo.
—Mas você não é feliz. O que ocorre?
—Claro que sou feliz! —exclamou ela—. Como
poderia não sê-lo? Passei vários meses acreditando que
cedo ou tarde me pendurariam. Não é uma perspectiva
muito aduladora. Uma não pode evitar perguntar-se a
respeito dos detalhes mórbidos. E ontem voltei e todo
mundo me olhava como se fosse uma assassina e uma
ladra. Ajudará a limpar meu nome.
—Sim — concedeu ele, e caminhou um momento em
silencio junto a ela, depois do qual acrescentou—: O que
ocorre?
Ela passou um bom momento sem responder.
—Vim para tratar de aceitar o que ocorreu — acabou
dizendo—, ou possivelmente para procurar provas para
demonstrar minha inocência. Agora parece que já não
necessito essas provas. Mas há muitas perguntas sem
responder. E me encontrei com um muro.
—Explique-se.
—Minha donzela tem outro emprego. Ela foi a que
descobriu as jóias. Queria saber onde estavam as jóias.
Esconderam-nas cuidadosamente, ou estavam em cima?
Se fosse uma ladra, teria que ser terrivelmente estúpida
para as colocar em cima, verdade?
—Seu baú estava fechado?
—Não, claro que não. Só ia até a reitoria.
—E o deixaram sozinho em uma charrete fora da
casa?
—Sim, sim, claro. Teria que ter sido muito estúpida
para deixar umas jóias caras dessa maneira. As teria
tirado de outro modo ou as teria levado comigo. Mas não
sei que peças eram ou quão grandes eram. Annie partiu
e não posso lhe perguntar.
—O que aborrecimento. Farei que a encontrem se for
importante para você.
—Fará que vá o senhor Houghton? —Fleur sorriu
fugazmente—. Não, essa não é minha principal
frustração. O pior é que não encontro ao Hobson.
—O ajudante de quarto? Não está enterrado a dois
metros sob o cemitério?
—O levaram a sua casa para enterrá-lo. Mas
ninguém parece saber onde está. O moço que levou o
ataúde se foi ao Yorkshire, e o chofer que conduziu ao
Matthew ao povo segue com ele. Foi Yardley, o homem
que agora está no Yorkshire, quem ajudou ao Matthew a
amortalhar o corpo e a colocá-lo no ataúde.
—Seriamente?
—Não sei por que, mas é importante que veja a
tumba —comentou ela—. Verá, eu não o assassinei,
mas o matei. Se não tivesse estado histérica e o tivesse
empurrado, não se teria cansado e não se teria morrido.
Matei-o. Fui o instrumento de sua morte. De algum modo
tenho que aprender a viver com isso em minha
consciência. Tenho que aceitá-lo. Tenho que ver sua
tumba.
—E não pode tirar-se esse peso de cima pensando
que aquele homem foi o causador de seu próprio destino
e que seu primo também foi responsável? Não pode
pensar que você não teve nenhuma culpa?
—Sim. Posso em minha mente. Mas sempre me
acompanhará o fato de saber que o empurrei e que
morreu. Sei que é algo estúpido. Não quero entretê-lo,
Sua Excelência. Deve estar desejando partir para
aproveitar o máximo de luz diurna.
—Tem que haver alguém que saiba de onde
procedia o ajudante de quarto —comentou Sua
Excelência—. Tinha amigos entre os criados? No povo?
—Não sei.
—Então temos que averiguá-lo- animou o duque—.
Tratarei de emular a meu secretário e descobrir tudo o
que terei que descobrir. Perguntarei pelo povo. Voltará a
perguntar a seus criados?
—Já falei com a maioria. Não sabem nada, e terá
que recordar que são criados do Matthew, não meus.
Além disso, isto não é assunto dele, Sua Excelência.
Quererá partir.
—Isso quero? —perguntou, agachando-se no
caminho de cascalho e lhe agarrando as duas mãos—.
Quero vê-la feliz. Fleur, e totalmente livre. Não posso
deixá-la até que saiba que se cumprem ambas as coisas.
—Mas por quê? —perguntou ela, olhando-o com
olhos muito abertos.
—Já sabe muito bem por que — replicou ele, lhe
apertando as mãos até que lhe doeram, antes de voltar-
se para dirigir-se aos estábulos.
Ela correu para apanhá-lo.
—Por isso me fez? Mas eu estava na saída do teatro
com esse propósito. Se não tivesse sido você, teria sido
outro. Pode que não essa noite, mas sim a seguinte.
Ele se deteve repentinamente e voltou a lhe agarrar
as mãos.
—Graças a Deus que fui eu — exclamou, olhando-a
com ardor—. Se tinha que ser alguém, então graças a
Deus que fui eu. —Soltou-lhe as mãos—. Voltarei pela
manhã cedo, e espero poder lhe trazer um pouco de
informação.
Afastou-se outra vez, e nessa ocasião ela não o
seguiu, mas sim ficou olhando-o.
E havia um pensamento que dominava a mente do
duque. Demoraria um dia mais: ao dia seguinte se
despediria dela e partiria para sempre. Mas hoje não.
Ainda não.
Amanhã.
Capítulo 22

—Alegramo-nos de que tenha voltado para casa,


senhorita, se me permite dizer-lhe A criada que tinham
enviado para que ocupasse o lugar do Annie estava
pendurando no armário o vestido de musselina que Fleur
se acabava de tirar, e de repente adotou um tom
confidencial—. Como disse Ted Jackson, não pode ser
culpado das coisas que se supunha que era culpado se
tiver tornado voluntariamente. E de todos os modos a
maioria de nós não pensávamos que fora culpado,
senhorita.
Fleur saiu de uma profunda absorção.
—Obrigado Mollie. É muito amável ao dizer isso.
Mollie baixou a voz e adotou um tom mais
confidencial ainda, embora a porta do vestidor de Fleur
estivesse totalmente fechada e provavelmente não
haveria nenhum outro criado perto.
—E se me perguntasse, senhorita, diria que o senhor
Hobson recebeu o que se merecia. Nunca gostei dele.
Sempre pensou que era um presente divino para as
mulheres.
Hobson tinha sido um homem atraente a sua
maneira, e não podia descrever Mollie como uma garota
bonita, não. Fleur imaginou que devia ter desdenhado à
donzela em alguma ocasião.
—Esperava favores em troca de nada — continuou
Mollie, confirmando suas suspeitas—. Mas nunca fiz
caso de seus agrados, embora o tentou comigo mais de
uma vez.
—Seriamente? —Desde que o duque de Ridgeway
partiu, Fleur tinha passado duas frustrantes horas mais
interrogando aos criados.
Estava cansada, e desejou não lhe haver dito nada.
Assim agora estaria voltando para o Dorsetshire e ela
seria capaz de começar a pensar no resto de sua vida.
Mas tal e como estavam as coisas, voltaria para a manhã
seguinte, e ela nem sequer era capaz de sentir a euforia
que sua revelação deveria lhe haver provocado.
—Alguma vez falou de si mesmo, Mollie?
—Todo o tempo — respondeu a garota—. Era seu
tema favorito de conversação, senhorita.
Falou com tanta maldade que, apesar de que não ser
a sua intenção, Fleur sorriu.
—Seu pai fez fortuna no Wroxford como açougueiro,
senhorita — prosseguiu Mollie—, e assim é como o
senhor Hobson pôde conseguir um posto tão bom como
o de criado de um cavalheiro. Mas não por isso tinha
motivos para dar-se tantos ares.
—Assim é dali? De Wroxford?
—Ah! O senhor Chapman me matará! —exclamou a
criada—. Disse-me que nos lembrássemos de quem
pagava nossos salários e não disséssemos nada.
—Que não me dissessem nada? Não tinham que me
dizer nada?
—Devido a sua senhoria a mandar ao cárcere assim
que voltar para casa, senhorita — comentou Mollie—.
Embora não acredito que se mereça ir. Nem tampouco
acreditam muitos dos outros, senhorita. O senhor
Chapman me matará, seguro.
—O mordomo não ouvirá uma palavra de minha
boca, Mollie. E obrigado por me contar tudo o que me
contaste. Assim ali é onde enterraram ao Hobson?
—Suponho que sim, senhorita. Nem sei seguro nem
me importa. Wroxford está a cinqüenta quilômetros de
distância. Não caminharia nem trinta metros para pôr
flores em sua tumba. Prefiro mil vezes ao Ted Jackson,
embora Ted seja só jardineiro. Ted sabe tratar a uma
garota como se fosse especial.
Fleur ficou em pé e se cavou a saia de seu vestido
de seda de noite. Realmente não sabia por que se
trocou, se ia jantar sozinha. Mas se sentia a gosto
voltando a ser uma dama, rodeada de todas suas posses
familiares.
—Tenho que descer para jantar — comentou Fleur
—. Obrigado, Mollie. Não te necessitarei mais tarde.
Pode tomar a noite livre, a não ser que tenha algo para
fazer no piso de abaixo. Ted também tem a noite livre?
—E sorriu.
A garota lhe sorriu cúmplice.
—Assim é, senhorita.
A criada cruzou a habitação por diante de Fleur, mas
duvidou quando teve a mão no pomo. Olhou ao redor da
habitação como se esperasse ver o mordomo e
possivelmente a alguns criados mais escondidos detrás
dos móveis.
—Eu era muito amiga de Annie, senhorita. Ela cuidou
de mim quando cheguei aqui.
—Sim? —Fleur observou as faces ruborizadas da
garota.
—Aquela noite, você se tinha deixado um par de
luvas em seu vestidor, senhorita. Annie baixou correndo
a charrete com elas e os pôs dentro de seu baú, em
cima.
—Isso fez?
—Então não havia nenhuma jóia dentro — continuou
a garota—, mas quando Annie abriu o baú mais adiante,
as jóias estavam aí, em cima das luvas. E justo quando
abriu o baú, sua senhoria e o senhor Chapman entraram
em seu quarto sem chamar. Disse-lhes o que acabo de
lhe dizer a você, senhorita. E ao dia seguinte a
mandaram a outro lugar. Estava assustada e me contou
isso, mas me disse que melhor não contasse nada.
Tinham-lhe dado um montão de dinheiro.
—Isso fizeram?
—O senhor Chapman me matará se o descobre,
senhorita.
—Bom, mas não o fará. Acredito que dentro de muito
pouco, Mollie, o próprio Lorde Brockehurst deixará claro
a todo mundo que o assunto das jóias foi um mal-
entendido. Mas de todos os modos me alegro de ter
alguma prova própria. Obrigado. É a criada mais valente
desta casa, e não o esquecerei.
Enquanto descia para jantar Fleur pensou em
Wroxford. Ficava a cinqüenta quilômetros. E Mollie tinha
razão. Seria muito ter que percorrer trinta metros para
ver a tumba do Hobson. Mas o tinha matado, e Fleur
acreditava que nenhum homem, por mal que fora,
merecia a morte nas mãos de outro. Ao menos devia
tentar aliviar sua consciência ajoelhando-se em sua
tumba.
Cinqüenta quilômetros. Não teria tempo de ir até ali e
voltar em um só dia.

—Mas Wroxford deve ficar a cinqüenta ou cinqüenta


e cinco quilômetros de distância — protestou o
reverendo Booth—. Não entendo por que quer ir,
Isabella. Quão único verá ali será uma tumba, e pode
que uma lápide. Por que percorrer cinqüenta quilômetros
para isso?
Era bastante cedo, à manhã seguinte. Fleur se havia
visto incapaz de esperar em casa a que alguém a
visitasse. Queria ir a caminho. Não poderia descansar
nem ficar tranqüila até que tivesse ido a Wroxford.
—Quando fugi — comentou—, foi como se deixasse
atrás uma história inacabada. Tenho a sensação de que
nada terminou face ao que disse ontem Sua Excelência.
E acredito que seguirei tendo esta sensação inclusive
depois de que Matthew faça sua declaração. Estive
envolta em uma morte e não fiquei para o funeral.
Acredito que esse é um dos motivos pelos que existem
os funerais, não é assim? Para ajudar aos que ficam a
aceitar a realidade da morte.
—Já é bastante afortunada porque vão se retirar os
cargos em seu contrário — brigou o reverendo Booth—.
Por que não o deixa tudo atrás, Isabella? Por que não
começar hoje mesmo de zero, e esquecer tudo o que
ocorreu antes?
—Fá-lo-ei depois de ter ido a Wroxford. Estive
pensando, Daniel, e acredito que a sugestão da Miriam é
o melhor que posso fazer. Estarei feliz na casa da
senhorita Galen e desfrutarei dando aulas na escola da
Miriam. Começarei uma nova vida, mas primeiro tenho
que ir a Wroxford. Esperava que viesse comigo. Não o
fará?
O padre tinha permanecido de pé detrás de seu
escritório desde que sua ama de chaves tinha feito
passar à garota ao estudo, e agora o rodeou.
—Ir contigo? Perdeste todo o sentido do decoro,
Isabella? Nem sequer é apropriado que esteja a sós
comigo enquanto Miriam está ocupada na escola.
Demoraríamos dois dias em ir a Wroxford e voltar.
—Sim — reconheceu ela—, mas pensei que não
quereria que fosse sozinha.
—Não quero. —Havia exasperação na voz do
homem, e lhe agarrou as mãos e as apertou—. Tem que
esquecer esta loucura. Está a ponto de te liberar de um
escândalo. Não quero que nem o fôlego de outro possa
te difamar. Quero que seja minha esposa. Pode que
agora Lorde Brockehurst consinta em que nos casemos.
Se não for assim, então quero continuar com nosso
plano anterior. Casar-me-ei contigo com uma licença
especial. Quererá, Isabella?
Os olhos dela estavam fixos em suas mãos.
—Não, Daniel. Isso está desfeito agora.
—Devido ao escândalo? Mas todo isso terminou. Faz
não muito tempo te agradava a idéia de te casar contigo.
Disse-me que me amava.
—Não posso me casar contigo, Daniel — insistiu ela
—. ocorreram muitas coisas.
Soltou-lhe as mãos e se separou dela para revolver
uma pilha de papéis em seu escritório.
—Senti desejos de te perguntar sobre o duque de
Ridgeway, e sobre quão estranho resulta que te seguisse
até aqui depois de fazer grandes esforços para que lhe
absolveram de todos os cargos que havia em seu
contrário. O que está ocorrendo, Isabella?
—É um homem amável que cuida de seus
empregados. E diria que seus criados o amam e
respeitam.
—E você? Ama-o e o respeita também? —Daniel
havia se tornado outra vez e seus olhos azuis a olhavam
diretamente.
—Claro que não. —os de Fleur duvidaram e
seguiram olhando-o.
—E quais são seus sentimentos por ti? —continuou
ele—. É um homem casado, verdade?
—Hei-lhe isso dito — repetiu a garota—. É um
homem bondoso. Toma a sério suas responsabilidades.
—E então não tem nada que ver com sua reticência
a te casar comigo?
Ela meneou a cabeça.
—Então não direi nada mais sobre esse assunto —
concluiu ele um tanto friamente—. Mas me alegro de que
esteja sã e salva e em casa, Isabella. E me alegro de
que vás trabalhar com a Miriam. Necessita ajuda e sei
que valora sua amizade, ao igual a eu.
—Obrigado — disse Fleur, e ficou olhando-o um bom
momento—. Daniel, eu gostaria de te contar toda a
verdade.
—Está acostumado a ser o melhor. É bom que
descarregue sua consciência.
—Quando estive em Londres, morria de fome e não
encontrava nenhum emprego. Chegou um momento no
que passei dois dias sem comer.
Ele ficou de pé olhando-a muito sério.
—Então me pareceu, e acredito que tinha razão, que
tinha três formas possíveis de sobreviver: podia pedir,
roubar ou podia… —Fleur tragou saliva envergonhada—,
ou podia vender meu corpo.
Ele não a ajudou. Ficaram em silêncio uns minutos.
—Vendi meu corpo. Uma vez. O teria feito uma e
outra vez se não me tivessem devotado o posto de
governanta que me levou ao Dorsetshire.
—É uma prostituta —murmurou ele.
Ela se cobriu os lábios com uma mão tremente e a
seguir voltou a baixar a mão.
—No presente? Tem que ser algo que sempre está
no presente?
—Isabella… — Daniel se deu a volta e apoiou ambos
os braços no escritório—. Devia haver alguma outra
alternativa.
—Os ladrões em Londres estão muito bem
preparados, da infância. Não acredito que tivesse podido
competir com eles. Deveria ter morrido, Daniel? Deveria
ter morrido de fome em vez de me prostituir?
—OH, Meu Deus, Meu Deus! —exclamou ele.
E no silêncio que se produziu a seguir, Fleur soube
que suas palavras não tinham sido somente uma
exclamação.
Finalmente o padre levantou a cabeça, embora não
se voltou.
—Lamenta-o? —perguntou-lhe à garota—.
Arrependeste, Isabella?
—Sim e não — afirmou ela depois de fazer uma
pausa—. Lamento que ocorresse mais do que sou capaz
de expressar, Daniel, mas não lamento havê-lo feito. Sei
que voltaria a fazê-lo se fosse meu único modo de
sobreviver. Suponho que não tenho madeira de mártir.
Ele voltou a baixar a cabeça.
—Mas como pode esperar o perdão de Deus se não
te arrepender realmente?
—Acredito que possivelmente Deus o entende. Se
não for assim, então suponho que tenho uma
discrepância com ele.
Daniel não disse nada durante muito momento.
—Assim já o vê — resumiu ela—, não posso me
casar contigo nem com nenhum outro, Daniel. Já que
embora não lamento o que fiz, sei que sou uma mulher
perdida, e estou preparada para viver com as
conseqüências desse fato. Vou a Wroxford. Para quando
voltar, terá decidido sem dúvida se mereço trabalhar com
a Miriam na escola.
E cruzou a habitação em silencio até a porta, até que
a voz dele a deteve.
—Isabella, não vá. Não está bem, uma dama
sozinha…
—Mas eu não sou uma autêntica dama, verdade?
Não se preocupe por mim, Daniel. Voltarei em um par de
dias.
Saiu sem fazer ruído da habitação e da casa. Não foi,
tal e como tinha pensado, até a escola para visitar a
Miriam e aos meninos. Desatou o cavalo, subiu sem
ajuda à cadeira e se dirigiu com resolução para o Heron
House.
E recordou seu amor pelo Daniel como se fora algo
do passado longínquo. Uma lembrança doce que
persistia em sua mente mas que não podia reavivar.

O duque de Ridgeway tinha deixado sua carruagem


na estalagem do povo e tinha seguido a cavalo até o
Heron House. Não tinha nenhuma informação de valor
para comunicar. Tanto o dono da estalagem como seus
clientes tinham conhecido ao Hobson. Nenhum deles
sabia de onde era e onde o tinham levado para enterrá-
lo. Um homem tinha declarado que era de Londres, mas
um coro de vozes mostrou seu desacordo burlando-se
dele. Conforme parecia, Hobson não tinha acento
cockney.
O bate-papo sobre o ajudante de quarto tinha levado
indevidamente a falar sobre o Fleur e seu estranho e
inesperado retorno. Ninguém parecia acreditar-se que
fora culpado. Sua Excelência concluiu que se tinha ao
Hobson por um cliente nefasto, e o próprio Brockehurst
tampouco estava muito bem considerado.
A iminente declaração e a retirada de todos os
cargos contra a garota não fariam a não ser confirmar
com acréscimo o que a gente já sabia.
O duque desejou ter encontrado a informação que
Fleur queria. Teria gostado de consegui-la, saber que ela
poderia ir ver a tumba e deixar por fim atrás o pesadelo
dos últimos meses. Quereria voltar a pensar nela e saber
que ao menos estava em paz consigo mesma e com o
mundo.
O mordomo do Heron House lhe disse que não
estava em casa. E o duque não sabia se realmente não
estava em casa ou se tinha negado a vê-lo. Em qualquer
caso, pensou que não tinha sentido insistir. Não tinha
nada que lhe contar e portanto não tinha motivos para
vê-la. Deveria partir sem mais demora.
—Faça-me o favor de dizer à senhorita Bradshaw
que não fui capaz de averiguar a informação que
desejava —disse o mordomo, depois de decidir que não
esperaria.
Iria a Londres. Ali é onde devia ter ido Brockehurst.
Resultaria fácil localizá-lo e assegurar-se de que não se
atrasava em esclarecer tudo. E trataria de obter que se
chegasse a algum acordo respeito a Fleur até seu
aniversário de vinte e cinco anos. Também interrogaria
ao chofer do Brockehurst para poder enviar a Fleur os
detalhes da localização da tumba do Hobson. E logo se
dirigiria a casa, ao Willoughby, deixando a Fleur
Bradshaw totalmente fora de sua mente e de sua vida.
Dedicaria suas energias a ser um bom pai. E
possivelmente pudesse chegar a estabelecer algum tipo
de relação pacífica com o Sybil. Em qualquer caso,
tentaria-o. Decidiu. Mas todos seus propósitos se
cambalearam ao afastar-se da casa e encontrar-se a
Fleur em uma curva do caminho. Levava roupa de
montar e um chapéu de veludo negro, uma cor que
ficava bastante chamativa em contraste com o intenso
vermelho e dourado de seu cabelo.
—Ah! —exclamou ela—. Assustou-me.
—Bom dia, Fleur. Acabo de voltar de visitá-la. Temo-
me que não tenho boas notícias, mas espero poder
enviar algumas. Vou a Londres e descida falar com o
chofer de seu primo.
- Trata-se de Wroxford. Ontem à noite escapou a
minha donzela. Ao parecer todos os criados receberam
ordens de manter a boca fechada ante mim.
—Wroxford? Onde está isso?
—A uns cinqüenta quilômetros. Daniel diz que estou
louca por querer ir ali, suponho que tem razão. Mas devo
ir.
—Sim, entendo-o. —E o duque observou a
habilidade com a que Fleur continha ao seu cavalo
brincalhão e viu quão animada estava. A via tão bonita e
tão vital, e tão distinta de quando a viu pela primeira vez!
—. A senhorita Booth e ele vão com você?
—Ah, não, Miriam tem que atender escola. Já se
tomou o dia livre ontem por mim. E Daniel não pode vir.
Seria inadequado.
—Mas a deixa ir sozinha? Acaso não é isso muito
mais inadequado?
—Mas, para ser justo — esclareceu ela, sorrindo—,
não é que ele me deixe fazer algo ou não me deixe. Não
tem nenhum direito sobre mim.
—E você vai?
—Sim.
O cavalo dela soprava, sacudia a cabeça e dava
coices, impaciente por ficar em marcha.
—E galopou com o cavalo esta manhã? —perguntou
o duque a Fleur.
—Não. Mas estava a ponto de fazê-lo.
—Então venha — disse ele, e liderou a marcha entre
as terá que bordeava o caminho até os jardins abertos
salpicados de árvores. Olhou para trás em direção a
Fleur, que o tinha seguido—. Possivelmente possa me
seguir esta vez, já que escolheu ao seu cavalo e eu não
tenho ao Aníbal.
Sorriu-lhe e deu a seu cavalo o sinal que tinha estado
esperando.
O duque pensou que não teria que havê-lo feito. Não
teria que haver-se reservado essa meia hora final de
prazer absoluto com ela. E se tratava certamente de um
prazer absoluto, ao igual ao tinha sido a última vez que
cavalgaram juntos. Parecia que Fleur Bradshaw
alcançava a máxima vitalidade quando montava a
cavalo. Fleur riu ao passar quando seu cavalo adiantou
ao do duque, e sorriu quando ele voltou a adiantá-la ao
rodear por detrás os estábulos e a casa.
Deveria haver-se despedido dela quando estavam no
caminho e contínuo o seu próprio: seu caminho para sair
da vida de Fleur.
Nem sequer deveria ter ido. Deveria ter mandado ao
Houghton. Não devia alimentar um amor proibido.
Mas nunca voltaria a vê-la. Em seguida se teria
partido, e não pensaria nela nem suspiraria por ela.
Tinha uma vida com a que continuar e outras pessoas de
cuja felicidade devia ocupar-se embora não esperasse
unam grande felicidade para si mesmo.
Uma meia hora final. Seguro que poderiam lhe
desculpar por ficar com esse momento para ele mesmo.
Fleur o adiantou uma vez mais e gradualmente
reduziu a velocidade de seu cavalo e se voltou na
direção de casa.
—Isso deveria bastar — murmurou ela, inclinando-se
para diante para dar umas tapinhas no pescoço do
cavalo.
O duque desceu do cavalo e entregou as rédeas a
um moço que esperava. Alargou os braços para levantar
Fleur e deixá-la no chão, e esperou até que a moço
levou ambos os cavalos. As mãos do duque continuavam
na cintura de Fleur.
—Parte ao Dorsetshire agora? —perguntou ela.
—Primeiro a Londres. Tenho que fazer alguns
negócios ali antes de voltar para casa.
—De acordo. Dará- lembranças a Lady Pamela e lhe
dirá que a sinto sua falta?
—Sim — respondeu ele. As mãos dela estavam em
seus braços—. Fleur…
Ela sorriu olhando em direção a seu lenço.
—Adeus. Obrigado por vir.
«Quero-te», queria lhe dizer ele. «Sempre te
quererei, embora tenha que te deixar.»
—Vou a Wroxford com você — acabou dizendo o
duque—, se sairmos em menos de uma hora
provavelmente poderemos chegar esta noite. Amanhã
pode ver o que desejar ver e podemos estar de volta
aqui amanhã de noite. Voltarei para povo a procurar
minha carruagem.
—Não — cortou ela, olhando-o fixamente aos olhos.
Os de Fleur estavam totalmente abertos e tinham uma
expressão de susto—. Não podemos fazer isso, Sua
Excelência, você e eu sozinhos.
—E você tampouco pode fazê-lo só — replicou ele—.
Em nossas estradas há salteadores. E tem que parar
para comer e alugar um quarto para passar a noite. De
maneira nenhuma pode fazê-lo sozinha.
Ela o olhou fixamente. As mãos de Fleur seguiam em
seus braços, e as dele em sua cintura.
—Por quê? —perguntou ela, quase em um suspiro,
inclinando-se para ele—. Você tem uma esposa e uma
filha que lhe esperam. Por que atrasar-se por mim?
—Fleur… — começou. Mas se deteve e deixou de
olhá-la aos olhos. Olhou por cima de sua cabeça para os
estábulos, onde a moço que se levou seus cavalos
tentava parecer enfrascado na tarefa de tirar a cadeira—.
Vou com você. Vá trocar se e a fazer a mala. Estarei
aqui em uma hora ou menos.
Ela não disse nada mais, mas o observou enquanto
se afastava dela, desatava seu cavalo e subia de um
salto à cadeira.
—Uma hora — disse ele ao passar com seu cavalo
diante dela e fazer que se voltasse para o caminho.
Tinha roubado meia hora e se convenceu de que não
era nenhum pecado grave contra as responsabilidades
que tinha com sua família e as outras pessoas a seu
cargo.
Agora ia roubar dois dias. Não estava seguro de ser
capaz de tranqüilizar sua consciência nesta ocasião.
Mas ela o necessitava. Por algum motivo que só ela
podia entender de tudo, precisava ver a tumba do
homem ao que tinha matado acidentalmente. Aquela
tumba estava a cinqüenta quilômetros de distância.
Necessitava que a escoltasse.
E ele a amava.

Fleur pensou que se tratava de uma carruagem muito


cômoda, enquanto se reclinava sobre as suaves
almofadas verdes e se fixava em que os mananciais
desafiavam aos agrestes caminhos pelos que
circulavam. Miúda diferença com a viagem que tinha feito
em diligencia uns poucos dias atrás.
Mas tampouco estava relaxada. O duque de
Ridgeway ia sentado ao seu lado, ambos em silêncio, e
só um pequeno espaço separava seus ombros.
Por que tinha ido? Por que se estava tomando tanto
interesse em seus assuntos? E por que lhe tinha deixado
acompanhá-la? Poderia haver dito que não. Poderia ter
defendido sua postura com maior convencimento.
—Por quê? — perguntou, tal e como tinha feito fazia
mais de uma hora fora dos estábulos—. Por que se
encontra no Wiltshire? Por que me leva a Wroxford?
Ele olhava pela janela. Durante um momento pensou
que não lhe responderia.
—Você sabe que não matou ao ajudante de quarto
de seu primo — falou finalmente—, que em grande
medida não é você responsável por sua morte. Mas
mesmo assim tem que fazer que afastamento a
implicação com sua morte. Tem que fazer esta viagem, e
isso é algo que ninguém exceto você entende. Sinto algo
similar em respeito a você.
Ela não disse nada mais durante um momento.
Entendia sua resposta. Tinha sentido para ela.
—Não o entendo — acabou dizendo Fleur—. Nunca
o entendi, embora em seu caso me resulta
especialmente difícil de entender. A duquesa é bonita.
Tem uma filha que desfruta de seu amor e um lar que
deve ser um dos mais encantados de toda a Inglaterra.
Por que os homens como você necessitam mulheres
para ter relações superficiais e sórdidas? Não o entendo.
Ele continuou olhando pela janela.
—Não posso responder por outros homens —
começou—, só por mim mesmo. Não direi muito sobre
meu matrimônio, Fleur, porque lhe devo intimidade a
minha esposa, por não dizer para mim mesmo. Só direi
que é um matrimônio difícil e infeliz e que o foi desde o
começo. Às vezes resulta difícil não sentir certos
desejos. Mas não fui infiel ao meu matrimônio até aquela
ocasião com você.
Fleur olhou seu perfil, o lado marcado de seu rosto.
Desejos? Acaso não tinha um matrimônio normal?
—Não sei por que ocorreu naquela ocasião —
continuou o duque—. Não o tinha planejado e você não
fez nada para me incitar. Ficou quieta e em silencio entre
as sombras. Nem sequer a via com claridade.
Possivelmente… — Deixou de falar, e Fleur pensou que
não continuaria, mas prosseguiu ao cabo de um
momento—. Possivelmente algo em meu interior a
reconheceu. Não sei.
—Reconheceu o que? —perguntou ela em um
sussurro.
—Minha pérola de valor incalculável — respondeu
ele em voz baixa.
Fleur viu como tragava saliva.
—E logo me zanguei, porque depois de tomar a
decisão de ser infiel, queria uma noite em que me
esquecesse de tudo. Queria ser capaz de culpá-la
depois. Mas você não fez nada, só me permitiu que a
utilizasse. Foi uma experiência terrível para você, Fleur,
e foi bastante desagradável para mim. Suponho que
obtive o que me merecia.
—Por que mandou ao senhor Houghton para me
buscar? Foi só porque se sentia culpado?
Ele se voltou e a olhou pela primeira vez.
—Durante muito tempo disse a mim mesmo que esse
era o motivo. Suponho que em minha mente me sigo
dizendo o mesmo. Não me pergunte mais, Fleur.
Ficaram olhando o um ao outro durante muito
momento até que ela olhou a mão, cuja palma estava
apoiada no assento que ficava entre os dois. Não, não
queria indagar mais. Não queria saber a verdade. O
destino que os tinha unido era muito estranho, e muito
cruel.
Fleur sentiu também os olhos dele em sua mão. E
fixou a vista ao lado, na bonita mão de dedos largos que
em uma ocasião a tinha aterrorizado e que ainda a
perturbava e a deixavam sem fôlego. Seus mindinhos
quase se tocavam.
Ficaram sentados assim, quietos e em silêncio,
durante muito momento antes que ele movesse o
mindinho para acariciar delicadamente o seu. E ela
estendeu o dedo e o dobrou para que os dedos se
enroscassem.
Seus olhos observavam suas mãos. Só se tocavam
em um ponto. E não diziam nada.

Capítulo 23

Pararam e comeram algo que não foi nem um


almoço nenhuma jantar, e continuaram seu caminho.
O duque de Ridgeway pensou que havia uma
estranha tranqüilidade entre os dois. Estranha porque
tinham viajado várias horas em um silêncio quase
absoluto e tinham comido sem falar muito. Estranha
porque estavam juntos, a sós, depois de tudo o que tinha
passado entre eles. Teria que ter sido violento,
embaraçoso, mas não o era.
Quando voltaram a sentar-se na carruagem e este
saiu do pátio da estalagem para a estrada aberta outra
vez, agarrou-lhe a mão e apoiou ambas as mãos
fechadas no assento que havia entre eles. Fleur não
resistiu, mas sim fechou os dedos ao redor de sua mão.
Desejou que ficassem quinhentos quilômetros por
percorrer, e não cinqüenta. Ou cinco mil.
O duque sentiu que ela o olhava, mas não virou a
cabeça. Desejou, ao igual a tinha desejado ao princípio
de sua viagem, haver-se sentado ao outro lado, lhe
oferecendo seu perfil bom.
—Como ocorreu? —perguntou em voz baixa.
—Isto? —O duque assinalou sua cicatriz com a mão
livre—. Com muita dificuldade recordo o que ocorreu. Foi
na batalha do Waterloo, claro. Eu estava na infantaria.
Tínhamos formado em quadro, e nos dedicávamos a
conter uma carga da cavalaria. Mas para alguns dos
mais jovens — e suponho que em realidade para todos—
resultava aterrador ver que a cavalaria carregava contra
nós, que só tínhamos baionetas e aos restantes homens
que formavam em quadro para nos defender. Resulta
uma boa defesa, de fato é quase impenetrável, mas não
te faz te sentir seguro. A uns poucos entrou o pânico e
se apartaram de uma vez. Eu saltei para diante para
tentar animá-los e me assegurar de que não se rompia a
formação, e uma baioneta me deu na face.
Fleur fez uma careta.
—Nem sequer era do inimigo — explicou ele,
sorrindo—. Que ironia, não? Lembro a dor aguda e a
mão vermelha ao me tocar a face. Isso é quão último
lembro. Nesse momento devem ter me acertado com um
projétil e me provocou as outras feridas.
—Demorou quase um ano em recuperar-se. Deve ter
sofrer muito.
—Acredito que sim. Obrigado Deus, parece que
estive delirando durante a pior parte. Embora seja duro
me adaptar ao feito de que carregaria com os efeitos
visíveis do que ocorreu durante o resto de minha vida.
—E às vezes ainda lhe doem as feridas?
—Não muito freqüentemente. —Ele voltou a lhe
sorrir.
—Vi-lhe coxear.
—Quando estou cansado ou submetido a alguma
tensão. Então é quando meu criado Sidney brinca de
tirano e me ordena que submeta a uma massagem. Tem
uma língua impertinente e umas mãos mágicas.
Sorriu-lhe.
—Por que foi? Sendo duque, deve lhe resultar muito
estranho formar parte do exército, sobre tudo como
oficial de infantaria. Não teve uma infância feliz?
—Mas bem ao contrário. Fui um menino privilegiado,
feliz e protegido. Nenhum ser humano tem direito a
desfrutar de uma vida semelhante sem pagar um pouco
por isso. Houve milhares de homens lutando por nosso
país que realmente não lhe deviam nada exceto o ter
nascido nele. E mesmo assim, para eles valia a pena
lutar por ele. O menos que podia fazer era lutar com
eles.
—Fale-me de sua infância.
Ele sorriu.
—É um tema muito amplo. Quer que lhe fale do bom
menino que fui ou de quão vagabundo podia chegar a
ser? Desgraçadamente, às vezes tirava de gonzo a meu
pai. E aos lacaios. Um pobre tipo que tinha medo dos
fantasmas e os diabos se encontrou dois no salão
grande, chamados Adam e Thomas, que viviam na
galeria e faziam ruídos estranhos quando estava de
serviço pelas noites. Perseguiram-no durante três
semanas até que finalmente os apanharam. Ainda sinto
a sova que me deram por isso. Acredito que depois tive
que me passar ao menos duas horas deitado na cama
de barriga para baixo.
Ela riu.
—Foi uma infância maravilhosa — continuou ele—.
Fomos deuses gregos entre os templos e vikings no lago
e caçadores de ursos junto às cascatas. Nosso pai
passava muito tempo conosco, nos ensinando a pescar,
a caçar e a montar. Minha madrasta me ensinou a tocar
o pianoforte, embora não tenho o talento que tem você.
E nos ensinou a dançar. Sempre ríamos muito durante
aquelas aulas. Estava acostumado a nos acusar de ter
dois pés esquerdos.
—E, entretanto agora dança muito bem.
—Oxalá a infância de Pamela pudesse ser
igualmente feliz. Oxalá tivesse havido outros meninos.
Sempre quis ter família numerosa.
Deu-se conta do que havia dito quando ela o olhou
inquisitiva.
—Dedicarei a fazê-la feliz quando voltar a casa —
comentou o duque—. Ficarei com ela. Não voltarei a
deixá-la.
Fechou os olhos e apoiou uma das botas no assento
de em frente. Era a última hora da tarde, a hora da
sonolência.
Nunca tinha falado desse sonho em voz alta: o sonho
de ter filhos próprios, e também filhas, correndo a suas
largas pelo Willoughby, e que seus gritos e suas risadas
voltassem a encher de vida o lugar. Não era justo que
Pamela estivesse tão sozinho como estava.
Filhos deles e de Fleur. Levar-nos-iam a montar e de
picnic e em barco. E a pescar. Ensinaria a Fleur a
pescar. E ela ensinaria aos meninos a tocar o pianoforte,
e ela mesma tocaria para entretê-los algumas noites. E
juntos ensinariam a seus filhos a dançar, a dançar a
valsa.
E de noite a amaria. Dormiria com ela todas e cada
uma das noites na grande cama com dossel que tinha
sido de seu pai antes de ser dela e em que não havia
tornado a haver uma mulher desde a morte de seu pai. E
a encheria com sua semente. Veria-a crescer com seus
filhos. E veria nascer a esses filhos e a ela dá-los a luz.
Já tinha pago por ter tido uma vida de incríveis
privilégios e por ter tido uma infância incrivelmente
segura. Seria feliz outra vez e para sempre. Abriria a
ostra e encontraria a pérola em seu interior.
Abriu os olhos e se deu conta de onde se encontrava
quando a cabeça de lhe tocou o ombro. Fleur respirava
profunda e regularmente. Ele voltou a cabeça muito
lentamente para não despertá-la e apoiou sua face em
seus suaves cachos. E respirou seu perfume. As mãos
dos dois seguiam fortemente fechadas.
O duque voltou a fechar os olhos.

Wroxford não era exatamente uma cidade, a não ser


um povoado grande. A escuridão começava a cair
quando chegaram ali, e o cemitério era bastante extenso.
Depois de procurar sem êxito, o duque a tranqüilizou lhe
dizendo que era muito possível que não tivessem
encontrado a lápide correta na penumbra. Ou poderia ser
que ainda não houvesse lápide. Deveriam perguntar na
reitoria.
Mas a esposa do pároco lhes informou que não
estava em casa, a não ser no leito de um paroquiano
doente. Não conhecia essa tumba. Havia alguns Hobson
no cemitério, sim, mas a última a que tinham enterrado
devia ter sido a velha Bessie Hobson, sete ou oito anos
atrás. E certamente não tinham enterrado a nenhum ali
nos últimos seis meses. Só tinha havido um funeral
nesse período de tempo, e certamente não tinha sido o
do Hobson.
—Esse homem era o ajudante de quarto de Lorde
Brockehurst, do Heron House — explicou o duque—.
Tenho entendido que seu pai foi açougueiro aqui.
A esposa do pároco assentiu.
—Esse deve ser Malrice Hobson, senhor. Agora vive
na colina. —Assinalou para o este—. Uma casa de tijolo
vermelho, senhor, com rosas na fachada.
—Que estranho — comentou Fleur quando se
apartaram, enquanto a mulher do pároco esperava
educadamente na soleira da porta para vê-los partir—.
Mollie estava bastante segura de que era Wroxford, e
parece ser o lugar adequado. Seu pai vive aqui. Mas não
o enterraram aqui? Tenho que falar com o senhor
Hobson. Não é muito tarde, verdade?
—Temo-me que sim — respondeu o duque—. Nos
hospedaremos na estalagem esta noite e eu visitarei
senhor Hobson pela manhã. Sozinho, Fleur. Não acredito
que seja recomendável que o vá ver.
—Mas não posso esperar que faça isso por mim.
—Fá-lo-ei de todas formas —disse ele, fazendo-a
entrar em sua carruagem—. E esta noite será a senhorita
Kent, minha irmã.
—Sim, obrigado, mas o que pode significar? Matthew
não deixou que Daniel enterrasse ao Hobson porque
queria levá-lo a seu povoado. Mas este é seu povoado, e
o enterro não se celebrou aqui.
—Estou seguro de que existe uma explicação
perfeitamente compreensível. —Sua Excelência voltou a
lhe agarrar a mão—. Amanhã descobrirei qual é. Tem
fome? E não me diga que não, senhorita. Eu sim, e odeio
comer sozinho.
—Um pouco — reconheceu ela, e lhe sorriu
rapidamente—. Bom, não muito. Mas o que deve
significar? Que percorremos todo este caminho para
nada? É que acaso este assunto alguma vez terá fim?
—Amanhã — insistiu o duque—. Vai passar o resto
da noite sentada olhando-me comer, e vai comer
também um pouco você, e a me falar de sua infância.
Esta tarde a entretive antes que os dois dormíssemos.
Agora toca a você.
—Não há muito que contar. Meus pais morreram
quando tinha oito anos. Não recordo grande coisa.
—Arranjará mais do que acreditava. Já chegamos.
Espero que esta estalagem ofereça melhor hospedagem
que a de seu povoado. E também melhor comida.
Deram-lhes habitações pequenas a uma ao lado da
outra. Nenhuma das duas era elegante, mas a estalagem
desfrutava de um salão privado, que o duque reservou
para a noite. Havia uma dúzia de homens no bar público.
Fleur pensou que deveria envergonhar-se. Estava
sozinha na escuridão da noite com o duque de
Ridgeway. Foram dormir em habitações contiguas na
estalagem de um povoado. Passaram o dia juntos,
sozinhos, com as mãos agarradas a maior parte do
tempo. E ela despertou um momento depois, pela tarde,
com a cabeça apoiada no ombro do duque.
Tinha-a afastado cuidadosamente, esperando que
também estivesse dormido e não soubesse. Mas ele
estava olhando em silencio pela janela. Sua mão
continuava sujeita na dele, e o duque se virou para lhe
sorrir. Fleur lhe havia devolvido o sorriso um pouco
envergonhada, mas nem com muito tão confundida como
tinha esperado estar.
Pensou que era quase como se, quando partiram do
Heron House, tivessem deixado também atrás o mundo
e a vida e o decoro habituais. Quase como se existisse
um acordo tácito entre eles de viver aqueles dois dias
como se fossem os únicos dois dias de sua vida. E em
certo sentido o eram. Dentro de uma noite teriam voltado
para o Heron House. À manhã seguinte ele partiria e ela
nunca voltaria a vê-lo nem ou seja dele.
Dois dias pareciam muito pouco tempo.
Não, não tinham tempo para que se produzira uma
situação violenta ou incômoda entre eles: só ficava o
resto da noite e o dia seguinte.
Passaram muito tempo jantando. E ela descobriu que
o duque tinha razão. Quando Fleur começou a falar de
sua infância, descobriu que recordava incidentes e
sensações nas que não tinha pensado durante anos.
—Suponho —acabou dizendo— que deveria estar
agradecida por aqueles oito anos. Muitos meninos não
desfrutam nem sequer de um período de amor e
segurança como esse. Estou acostumada a pensar que
o passei muito mal. Faz-me bem recordar.
—Fleur — começou ele—, você passou por
situações difíceis. Mas é uma pessoa forte, uma
sobrevivente. Espero que um dia encontre uma felicidade
que nem sequer tenha sonhado que fora possível.
—Conformar-me-ei estando satisfeita — disse a
garota, e contou seus planos.
—Os meninos serão afortunados — comentou ele—.
Sei que é uma boa professora e lhe importam os
meninos, Fleur. E apostaria a que também a senhorita
Booth é muito querida. E o reverendo Daniel Booth?
—O que ocorre com ele? —perguntou Fleur receosa.
—Estavam a ponto de casar-se. Amava-o, não é
assim?
—Pensava que sim. Foi amável comigo em uma
época em que não desfrutava de muita amabilidade por
parte de outros. E é um homem atraente.
—E agora não o ama?
—Acredito que é muito bom para mim. Vê uma
distinção clara entre o bem e o mal, e se aferra ao que
acredita que é justo aconteça o que aconteça. Eu vejo
muitos tons de cor cinza. Não seria uma boa esposa
para um clérigo.
—O tornou a pedir?
—Sim. Hei-lhe dito que não — a garota duvidou—. O
hei dito tudo. Exceto seu nome.
—Sim, o há dito. E não repetiu sua oferta?
—Eu já me tinha negado.
—Não pode amá-la, Fleur. Não a merece. Se eu
estivesse em seu lugar, lutaria o resto de minha vida
para lhe fazer mudar de opinião. E a respeitaria ainda
mais por sua valentia e sua sinceridade.
Fleur voltou a colocar a colher no prato.
—Um clérigo não merece a uma prostituta? —
perguntou sentida —. Acaso vivemos no mundo ao
reverso?
—Chamou-a assim?
—Sim, empregou essa palavra. —Ela apartou as
mãos da colher e as apoiou agarradas no regaço—. É a
prostituta verdade, não?
—Me alegro de que esteja a cinqüenta quilômetros
de distância. Meus punhos estão desejosos de lhe trocar
os rasgos da face. —Soltou o guardanapo na mesa e
ficou em pé—. Poderia matar a esse estúpido
dissimulado.
—Teria que ter acrescentado — interveio ela—, que
pronunciou a palavra mais horrorizado e dolorido que a
modo de condenação.
O duque deu a volta à mesa e se inclinou para ela,
com uma mão apoiada na mesa.
—Fleur — disse muito sério—, não deixe que essa
etiqueta a afunde jamais. Prometa que não se deixará.
—Aceitei o fato de que fiz quão único parecia
possível naquele momento —afirmou ela, levantando a
vista—. Está no passado. Como as cicatrizes que tem
você, sempre me acompanhará, e sempre afetará a
minha vida. Mas não deixarei que me destrua.
—Dobraria minhas cicatrizes e viveria com elas —
disse ele olhando-a com ardor aos olhos—, se com isso
pudesse lhe tirar as suas, Fleur.
—Não o faça. —Levantou uma mão e lhe tocou a
face com a cicatriz—. Não o faça, por favor. O que
ocorreu não foi culpa dela. Nada foi. E acredito que tudo
o que acontece na vida acontece por algo. Voltamos
mais fortes se não nos destruírem os problemas da vida.
—Fleur. —O duque apoiou a mão dela contra sua
face—. E acaso isto também tem um propósito? Existe
um propósito em que você e eu estejamos sozinhos e no
fato de que não devamos voltar a nos ver jamais a partir
de manhã?
Fleur se mordeu a língua.
O duque se endireitou e lhe soltou a mão.
—Vou dar um passeio — comentou—. Venha.
Primeiro a acompanharei ao seu quarto. Foi um dia muito
longo e ocorreram muitas coisas. Amanhã
descobriremos o que veio a ver, o prometo.
Ela subiu antes que ele as escadas e deu a volta à
chave na fechadura. O duque estava a uma certa
distância quando Fleur levantou a vista.
—Boa noite, Fleur.
—Boa noite, Sua Excelência.
—Adam. Diga-o, quero lhe ouvir dizê-lo.
—Adam — sussurrou—. Boa noite, Adam.
E partiu, e ouviu como suas botas retumbavam ao
baixar as escadas inclusive antes que fechasse a porta
detrás de si.

À manhã seguinte, o duque de Ridgeway saiu da


casa vermelha na colina sumido em seus pensamentos.
Tão obcecado tinha estado Brockehurst com ela? Devia
havê-lo estado, se tinha feito tantos esforços para
consegui-la.
Mas tinha desfrutado protegendo-a, em que pese a
que sabia que a ela nem gostava nem o respeitava e que
nunca poderia amá-lo. No mundo havia alguns homens
estranhos, e havia algo que não era nada normal no
Brockehurst.
A não ser que tivesse interpretado mal
completamente o acontecido. Mas o que outra
explicação poderia haver?
Fleur estava em seu salão privado da estalagem,
onde o duque a tinha deixado depois de tomar o café da
manhã. Em que pese a que lhe havia concedido um
pouco, tinha conseguido convencer para que o deixasse
ir sozinho à casa do senhor Hobson.
—E bem? —Ela deixou de mover-se quando Sua
Excelência abriu a porta, e o olhou tensa.
—Parece que o enterro se celebrou em Taunton —
explicou ele—. Está a uns trinta quilômetros daqui, a uns
sessenta e tantos do Heron House. O senhor Hobson
esteve ali e viu a tumba. Agora há uma lápide.
Fleur o olhou fixamente.
—Em Taunton? —perguntou—. Mas por quê?
—Parece que mataram ao Hobson perto dali, quando
Brockehurst e ele voltavam de Londres. Brockehurst o
enterrou antes de vir aqui a contar-lhe à família.
Fleur continuou olhando-o fixamente.
—Não o entendo. Mas se morreu no Heron House…
—Claro.
—O único motivo pelo que não o enterraram ali foi
que sua família estava aqui.
—Sim.
A garota franziu o cenho.
—Iremos a Taunton a acabar com este assunto —
propôs o duque—. Está pronta para partir?
Ela seguiu olhando-o carrancuda. Ainda não se tinha
precavido da verdade, ou do que evidentemente devia
sê-lo. E possivelmente fora melhor assim. Poderia ser
que, depois de tudo, não fosse a verdade. O duque não
lhe transmitiu suas suspeitas.
—Sim — respondeu ela.
Quinze minutos mais tarde já estavam no caminho.
—Isto não tem sentido — murmurou a garota—.
Taunton não está nem sequer em rota direta para
Wroxford.
Ao duque lhe pareceu que Fleur lhe estendia a mão
sem dar-se conta sequer do que estava fazendo. Ele a
agarrou e a apoiou em sua coxa.
—Relaxe-se e desfrute da viagem — sugeriu o duque
—. Faremos perguntas quando chegarmos ao final de
tudo isto.
—Hoje não chegaremos em casa —comentou ela—.
Sua viagem se atrasará outro dia.
—Sim — reconheceu o duque, e levou a mão da
garota aos lábios antes de voltar a pô-la sobre sua coxa.
Olhou a Fleur aos olhos.
—Sinto-o — disse ela.
—Eu não.
Fleur se mordeu o lábio inferior.
—E do que falamos hoje? —perguntou ele—. Da
escola? Fale-me da sua. Não foi uma experiência feliz,
verdade?
—Bom, em alguns aspectos. Aprendi a amar os livros
e a amar a música ainda mais que antes. Aprendi a viver
com minha imaginação. Pode acrescentar uma dimensão
maravilhosa à vida.
—Sim — assentiu o duque—. Pode fazer que uma
vida cinza pareça alegre, verdade?
Sorriram antes que ela continuasse falando.

Taunton era um povoado muito pequeno. Ali não


havia nada mais além da igreja e umas poucas casas,
uma loja e um botequim pequeno. Sua Excelência tinha
eleito uma estalagem com aparência decente em uma
estrada principal uns poucos quilômetros antes.
Havia-lhe dito que passariam a noite ali, mas Fleur
não lhe fez muito caso. Estavam próximos, e ela estava
inclinada para diante no assento. O coração lhe pulsava
com força.
E aquela vez não teve perda. Ali estava, e era uma
tumba nova, grande que proclamava sua lenda para que
todos a vissem: John Hobson, querido filho do John e
Martha Hobson, 1791—1822. R.I.P.
Deus. Ai, Meu Deus. Fleur ficou de pé junto à tumba,
e ela mesma também se voltou de pedra. Tinha-o
matado. Tinha trinta e um anos. Tinha sido o filho
querido de alguém. Martha Hobson o tinha tido. John
Hobson tinha visto crescer ao filho que se chamava igual
a ele.
Ambos deviam haver-se sentido orgulhosos quando
se converteu em ajudante de quarto de Lorde
Brockehurst do Heron House. Deveram alardear dele
ante seus amigos. E agora estava morto e frio
clandestinamente.
Ela o tinha matado.
—Ai, Deus meu — lamentou ela, e caiu apoiando um
joelho no chão junto à tumba e tocou a lápide fria.
—Fleur. —Sentiu uma mão delicada que lhe tocou o
ombro—. Vou a um momento a reitoria. Volto logo.
Mas ela não o ouviu. Hobson jazia na terra que ficava
sob seus pés. Aquele homem grande, forte e atraente
estava morto. E ela o tinha matado.
Não sabia quanto momento tinha ajoelhada ali, até
que duas mãos fortes a agarraram pelos braços e a
ajudaram a ficar de pé.
—Levá-la-ei outra vez à estalagem — disse ele—.
Pode descansar ali.
E voltaram a encontrar-se outra vez na carruagem,
sem que ela recordasse que tivesse caminhado até ali.
—Não sabia que seria assim — comentou—. Ao
princípio não pensei muito nele. Estava muito
preocupada comigo mesma. Nem sequer tive muitos
pesadelos. E logo pensei que possivelmente merecia o
que ocorreu, embora eu o lamentava. E esta última
semana me dei conta de que devia vir aqui, que devia
ver sua última morada. Mas não sabia que seria assim.
—Fleur se cobriu a face com as mãos.
—Logo poderá descansar — a tranqüilizou o duque,
rodeando-a com os braços. Com uma mão que solto as
cordas de seu chapéu e o tinha deixado a um lado. A
cabeça da garota estava apoiada contra seu ombro, e
lhe acariciava o cabelo, lhe murmurando.
—Não queria que morresse — gemeu ela—. Não
pretendia matá-lo.
O duque tinha conseguido duas habitações na
estalagem com boa aparência, maiores e melhor
acondicionados que os que tinham ocupado a noite
anterior. Havia um salão privado entre elas.
—Quero que descanse uma hora — sugeriu ele,
levando-a a uma das habitações, agarrando a dos
braços e sentando-a na cama—. Jantaremos tarde.
Quero que durma.
Fleur obedeceu à pressão de suas mãos e se
recostou sobre os travesseiros. Tirou-lhe os sapatos. A
garota estava como atordoada, não havia tornado de
tudo à realidade.
—Pode ser que queira tirar o vestido quando eu partir
—propôs o duque.
—Sim.
—Tenho que fazer umas visitas — disse ele—. Volto
logo.
—Sim — assentiu ela. Não lhe ocorreu perguntar-se
a quem ia visitar em uma parte do país que logo que
conhecia, mas sim fechou os olhos, e sentiu que os
lábios dele roçavam os seus antes de sair do quarto.
Pensou que devia haver ficado adormecida. Pareceu-
lhe que ficou inconsciente muito momento, embora viu
que seguia levando o vestido e ele estava de pé diante
dela ao igual a quando tinha fechado os olhos. E havia
uma vela acesa no quarto, e escuridão fora das janelas.
—Pensava que me teria dado por perdido fazia muito
tempo — comentou ele—. Pensava que já teria comido e
já teria mandado retirar meu jantar frio. Passou todo este
tempo dormindo?
Ela o olhou, aturdida. O lado direito da boca do
duque formava um sorriso. E seus olhos escuros
brilhavam ao olhá-la. Fleur pensou que estava deitada na
cama de uma estalagem com o duque de Ridgeway
olhando-a.
—Tenho boas notícias para você — anunciou ele—.
Será melhor que não se levante até que saiba do que se
trata. Nem que se levante, em realidade.
—Boas notícias?
—Não matou a ninguém. Nem deliberadamente nem
por acidente nem de nenhuma outra maneira. Não matou
ao Hobson. O homem segue vivo em alguma parte, sem
dúvida com um montão de dinheiro do Brockehurst nos
bolsos.
Fleur levantou a vista para ele, para o estranho
sonho que lhe acabava de apresentar enquanto dormia.
—Quão único enterrou no cemitério é um ataúde
cheio de pedras — explicou ele—. Parece que nosso
homem só perdeu o conhecimento na chaminé. É livre,
querida… livre da corda e de sua consciência.

Capítulo 24

Jantaram muito tarde. O duque não pensava que ia


passar tanto tempo fora, e Fleur não pensava que ficaria
adormecida tão profundamente.
—A verdade é que não esperava que se pudesse
fazer nada até manhã como muito em breve — disse o
duque quando se sentaram para jantar no salão privado
—. Mas me topei com a curiosidade e o zelo do Sir
Quentin Dowd. —Já lhe tinha explicado que Sir Quentin
era o juiz da zona—. Acredito que ele teria cavado o
cemitério inteiro sozinho se não tivesse tido criados e se
não tivesse podido lhe mostrar a tumba exata.
—O que é o que lhe tem feito suspeitar? Não o
entendo. —Fleur pensou que tinha repetido várias vezes
essa frase no transcurso do dia.
—Por que não quereria alguém que enterrassem a
um homem no lugar onde morreu e era conhecido ou no
lugar onde vivia sua família? —perguntou-se—. Sua
primo poderia ter eleito entre ambas as coisas, mas não
escolheu nenhuma das duas. De fato, removeu quase
literalmente céu e terra para que o enterro se celebrasse
em um lugar estranho, onde nenhum dos dois fora
conhecido.
—Porque alguém teria querido ver o corpo?
—Suponho que sua família teria insistido em vê-lo. E
possivelmente alguns criados do Heron House ou
amigos do Hobson na zona também teriam querido. Seu
primo não podia arriscar-se a que ocorresse isso, Mas
claro, não cobriu bem seu rastro, e contou histórias
contraditórias a diversas pessoas. Mas imagino que não
esperava que ninguém tivesse a curiosidade suficiente
para investigar mais a fundo. Vírgula.
Fleur olhou seu prato, embora não recordava como
tinha chegado a comida a ele.
—Como vou comer? —perguntou.
—Pois com o garfo e a faca — replicou ele—. O que
sente ao ser livre?
—Mas aonde foi? —insistiu ela—. E por quê? Por
que teria que deixar que sua família pensasse que está
morto?
—Sem dúvida por dinheiro. Com certeza está em
algum lugar da Europa.
—E por que faria isso Matthew? —Fleur torceu o
gesto—. Foi um plano diabólico. E tudo isso para que me
pendurassem? Tanto me odeia?
—Já sabe qual é a resposta. Nunca teve a intenção
de deixar que a pendurassem. Queria tê-la em seu poder
durante o resto de sua vida. Está muito obcecado por
você, Fleur.
—Mas nunca gostei dele. Como podia me desejar,
sabendo-o? E sabendo que o odiaria por me obrigar a
fazer algo semelhante?
—A alguns homens basta tendo poder sobre algo
que desejam — opinou o duque—. Às vezes inclusive
parece produzir uma emoção especial ao ser odiado.
Não sei se seu primo é um desses homens. Não o
haveria dito pelo que cheguei a conhecê-lo em
Willoughby. Não parecia diabólico. Mas certamente suas
ações sugerem que o é.
—Oxalá não volte a viver comigo em casa outra vez.
—Fleur. —O duque lhe tocou a mão—. De verdade
espera que ocorra tal coisa? Neste momento Sir Quentin
está jogando fogo pela boca. Seu primo se encontra em
um apuro muito grave, o prometo. Não acredito que deva
temer que volte para casa durante muito tempo.
—Ah — exclamou ela, e voltou a olhar o prato—. Não
tenho fome.
O duque ficou em pé e chamou um garçom para que
lhes retirasse os pratos. Ambos permaneceram em
silêncio até que terminou de fazer sua tarefa.
—Sigo esperando despertar — comentou ela.
Atravessou a habitação e ficou olhando em direção à
chaminé vazia—. Fui uma estúpida por fugir, verdade?
Teria que ter ido à reitoria tal e como tinha previsto.
—Mas ele teria perpetrado o mesmo plano —
apontou o duque—, e possivelmente se teria saído com
a sua.
—Sim — reconheceu Fleur—. Não sei se alguém
mais poderia ter descoberto a verdade. Eu não teria
podido. Só você. E não o teria conhecido se não tivesse
fugido.
Ele ficou a uma curta distância dela, vendo como
olhava em direção ao lar.
—Oxalá não tivesse tido que sofrer tanto —
murmurou ele—. Oxalá me tivesse pedido ajuda, Fleur.
Oxalá me tivesse ocorrido lhe perguntar se necessitava
ajuda. Oxalá tivesse sido diferente.
—Mas não foi.
—Não.
—Por que tem feito tudo isto por mim? —Fleur voltou
a cabeça para olhá-lo—. Diga-me a verdade.
Ele negou com a cabeça lentamente.
—Acredito que não poderia ter estado mais
aterrorizada do diabo do que o estava de você —
confessou ela—, quando aconteceu aquilo e em meus
pensamentos e pesadelos posteriores. E quando voltou
para o Willoughby e me dava conta de que o duque de
Ridgeway era você, pensei que ia morrer de espanto.
O rosto dele não deixava transparecer expressão
alguma.
—Sei.
—O que mais me assustavam eram suas mãos. E
são umas mãos bonitas.
O duque não disse nada.
—Quando mudou tudo? —perguntou Fleur. Voltou-se
completamente para ele e cortou a distância entre ambos
—. Você não se atreve a pronunciar as palavras. Mas
são as mesmas palavras que estão em meus lábios,
verdade? —E viu como ele tragava saliva—. Lamentarei
as haver dito o resto de minha vida, mas acredito que
lamentaria muito mais se não as dizer.
—Fleur… — começou ele, e lhe estendeu uma mão
firme.
—Eu te amo— o interrompeu ela.
—Não…
—Eu te amo.
—O que ocorre é que passamos uns dias juntos, e
falamos muito e chegamos a nos conhecer. O que ocorre
é que pude ajudá-la um pouco e se sente agradecida
para mim.
—Eu te amo — repetiu ela.
—Fleur…
A garota alargou a mão para lhe tocar a cicatriz.
—Me alegro de não te haver conhecido antes que
ocorresse isto. Acredito que não teria sido capaz de
suportar a dor.
—Fleur… — insistiu ele, agarrando a pelos pulsos.
—Está chorando? —perguntou Fleur. Levantou
ambos os braços, os pôs ao redor do pescoço e apoiou a
face contra seu ombro—. Não o faça, meu amor. Não
queria ser uma carga para ti. Não quero sê-lo. Só quero
que saiba que eu te amo e sempre te amarei.
—Fleur… — murmurou ele, com a voz rouca pelas
lágrimas—. Não te posso oferecer nada, meu amor. Não
tenho nada que te dar. Entreguei minha lealdade a outra
pessoa. Não queria que acontecesse isto. Não quero que
aconteça. Conhecerá outra pessoa. Quando partir
esquecerá e será feliz.
Ela elevou a cabeça e o olhou à cara. Apartou-lhe
uma lágrima com o dedo.
—Não estou pedindo nada em troca — esclareceu—.
Só quero te dar algo, Adam. Um autêntico presente. Meu
amor. Não uma carga, a não ser um presente. Para que
lhe leve isso lá onde vá, embora nunca voltaremos a nos
ver.
Agarrou lhe a face com as mãos e a olhou.
—Estive a ponto de não te reconhecer — explicou o
duque—. Estava tão terrivelmente doente, Fleur, e tão
pálida… Tinha os lábios secos e gretados, e o cabelo
sem brilho e sem vida. Mas assim é como te conheci.
Acredito que ainda estaria em Londres te buscando se
não tivesse ido à agência. Mas é muito tarde, amor.
Chegamos seis anos tarde.
O duque inclinou a cabeça para beijá-la, e a paixão
estalou imediatamente.
—Só posso te oferecer esta noite — levantou a
cabeça e sussurrou—. Amanhã te levarei a sua casa e
continuarei meu caminho até meu lar.
—Sim.
—Só esta noite, Fleur.
—Sim.
—Faremos que seja suficiente.
—Sim.
—Faremos que dure toda a eternidade.
—E mais à frente ainda…
—Fleur, querida — exclamou ele—. A pessoa a que
reconheci à saída do teatro Drury Lane foi ao amor de
minha vida. Já sabe, verdade? —Seus lábios estavam
unidos.
—Sim, sim…
—Eu te amo. Tem que saber que te amei desde o
primeiro momento em que te vi de pé entre as sombras.
—Sim. —Ela abriu a boca sob a sua, e lhe tocou os
lábios com a língua—. Adam. Queira-me. Leve os meus
medos.
Ele a beijou intensamente. Penetrou no calor de sua
boca com a língua, amoldou o corpo da garota ao seu
com as mãos e esperou a que se rendesse totalmente a
ele.
—Segue tendo medo? —perguntou-lhe sem soltar-se
de seus lábios.
—Um medo mortal. —Fleur manteve os olhos
fechados—. Aos passos que vão depois de este. Mas
quero ter tudo contigo, Adam. Quero que me toque,
quero seu corpo. Quero te ter dentro de mim.
Ele a voltou a beijar e a tocou com as mãos.
Acariciou os seios redondos e firmes cujos mamilos já
estavam duros sob seu vestido, a cintura estreita e os
quadris torneados, o traseiro brandamente arredondado.
—Fleur — ele sussurrou seu nome no interior de sua
boca. Desejava-a com uma dor intensa.
—Não deixe de me tocar — sussurrou ela—. Dê-me
valor. Tem as mãos tão cálidas e fortes, me dê valor.
Ele se inclinou e a agarrou entre seus braços e a
levou através da porta aberta a seu dormitório,
colocando-a na cama.
E Fleur soube que tinha que fazê-lo, que não podia
retroceder, embora também soubesse que ele se teria
detido em qualquer momento em que o pedisse. Amava-
o mais que à vida e naquele instante desejava mais que
nada no mundo que se apagasse a lembrança de uma
cópula suja e se substituíra por uma lembrança de amor.
Mas tinha medo. Tinha um medo mortal. Tinha medo
ao olhar intenso e ardente nos olhos escuros dele. Tinha
medo a seus rasgos duros e à cicatriz que lhe cruzava o
rosto. Tinha medo a suas mãos, que lhe cobriam os
seios e lhe acariciavam os mamilos com os polegares e
que primeiro se deslocaram até detrás de sua cabeça
para lhe tirar os alfinetes do cabelo e logo se foram
detrás de suas costas para lhe desabotoar os botões do
vestido. E tinha medo ao corpo de Adam, escondido
ainda sob a roupa.
—Podemos fazer que seja suficiente — afirmou ele,
olhando no rosto, com as mãos ainda em suas costas—.
Podemos fazer que nos baste este amor, Fleur. Abraçar-
te-ei uns minutos mais para reunir o valor para deixar ir.
—Não — sussurrou ela—. O quero tudo, Adam.
Quero-o tudo de ti. Quero lhe dar isso tudo de mim.
Deslizou o vestido pelos ombros, pelos braços, pelos
quadris e as pernas. Ela observou seu olhar quando a
seguir tirou a camisa, a roupa interior e as meias. E ela
recordou quando esteve nua ante ele, com a roupa
dobrada em uma pilha perfeita no chão a seu lado.
— Faça-me esquecer —pediu ela—. Adam, faça-me
esquecer. —E estendeu os braços para ele.
—É tão bonita… —suspirou o duque, inclinando-se
para a garota para enterrar a face em seu cabelo—. A
mulher mais bonita do mundo.
Acariciava-lhe um seio com uma mão, cálida e de
dedos largos. Ela ficou a desabotoar os botões de seu
colete e sua camisa. E ele também tinha medo. Era uma
mulher tão bonita… queria ser perfeito para ela. O duque
se levantou para sentar-se.
—Vou fechar a porta — disse. A luz de duas velas
brilhava através da soleira da porta e alcançava até a
cama.
—Não — o deteve ela.
—Fleur… — começou o duque, olhando-a
preocupado aos olhos—. Não quero que me veja outra
vez. Sou muito feio.
—Não. —Ela o agarrou pelos braços e o atraiu para
si—. Quero ver-te. Tenho que ver-te. Por favor, Adam.
Na escuridão terei medo.
Ele ficou de pé junto à cama e se despiu muito
lentamente. E viu como ela o olhava, ao igual a tinha
feito na ocasião anterior. Exceto naquela ocasião estava
zangado, e a desafiava a mostrar seu desagrado,
enquanto que esta vez esperava que voltasse a dar-se.
—Adam — disse ela quando finalmente ficou nu junto
à cama—, não é feio. Ah, de verdade que não o é. Mas
me alegro tanto de não te haver conhecido antes das
feridas… não teria sido capaz de suportá-lo. —Alargou
uma mão para lhe tocar delicadamente o lado esquerdo,
e percorreu com ela o flanco e a coxa—. Não é feia.
Ele se deitou junto a ela na cama, olhou-a aos olhos,
acariciou o cavalo avermelhado e dourado que tinha
solto. E voltou a beijá-la.
Fleur estendeu uma mão através do pêlo grosso de
seu peito e levantou a outra para explorar os músculos
tensos do braço e o ombro do duque. Percorreu o peito
com a mão e chegou até suas costas. A língua de Adam
rodeou à sua, acariciou-a, e a sua vez foi acariciada. E
Fleur sentiu as mãos dele por seu corpo, como a tocava,
como a explorava e excitava.
E já não sentiu medo. Os seios da garota estavam
turgentes e sensíveis ao tato. As mãos dele enviavam
dolorosas vibrações até a garganta da garota, que
notava uma dor muito aguda entre as pernas.
Adam a tinha tomado uma vez, breve e
desapaixonadamente. Além dessa ocasião, tinham
passado muitos anos desde que tinha estado com uma
mulher. Queria ser perfeito para ela. Precisava inundar-
se nela e soltar sua semente em seu interior com uns
quantos empurrões rápidos, mas queria ser perfeito para
ela.
Pôs uma mão entre suas pernas, abriu-as
delicadamente com os dedos, tocou-a, acariciou-a um
pouco. Estava úmida e quente ao tato. Fleur gemeu e se
voltou para ele.
—Não te farei mal — murmurou o duque, com a boca
apoiada contra a da garota—. Esta vez não te farei mal,
Fleur. Prometo-lhe isso. Segue tendo medo?
—Sim. —Sua voz era um soluço—. Sim, mas vêem
mim, Adam. Vêem mim.
Ele se levantou por cima dela e descendeu até ficar
em cima da garota, com a cabeça volta para o flanco
dela. E o terror voltou a surgir quando as pernas dele se
colocaram entre as suas e as abriram de tudo e lhe pôs
as mãos por debaixo para levantá-la e incliná-la.
E a seguir começou a penetrá-la. Sua masculinidade
cálida e dura se abria passo para seu interior. Sem
rasgões. Sem dor. Só as vibrações e as ferroadas ao seu
redor e o fato de que ela esperasse a que lhe pusesse
fim. Fleur ouviu alguém gemer.
O duque tirou as mãos de debaixo dela e se levantou
apoiando os antebraços.
Olhou-a. Devolveu-lhe o olhar. Tinha o cabelo
estendido como um halo chamejante ao redor da cabeça.
—Quero que seja bom para ti — sussurrou ele—.
Quero que seja perfeito para ti, Fleur. Diga-me o que
fazer. Quer que termine rapidamente?
Ele saiu da garota e voltou a empurrar para dentro
lentamente.
Fleur levantou os joelhos, e colocou os pés firmes na
cama a cada lado dele. Fechou os olhos e jogou a
cabeça para trás. Voltou a gemer. Ele a acariciou lenta e
profundamente, uma e outra vez.
Adam sob a cabeça para roçar seus lábios com os
dela.
—Quero que seja perfeito para ti — insistiu—. Diga-
me quando terminar, Fleur. Diga-me quando quer que
termine.
Ela abriu os olhos e olhou em direção aos seus. E viu
o cabelo escuro, o rosto duro, a cicatriz, os potentes
músculos dos ombros, o cabelo escuro do peito. E sentiu
como suas fortes coxas abriam os seus e sentiu as
ferroadas lentas, profundas e íntimas no mais fundo de
seu interior. Não pôde evitar recordar seu primeiro
encontro com ele, mas decidiu esquecê-lo, deixou que se
deslizasse além da memória consciente.
—Acredito que a dor me vai me enlouquecer —
sussurrou ao Adam—. E quero que continue para
sempre.
Mas quando o duque voltou a descender sobre ela e
a rodeou com seus braços e acelerou o ritmo, ela elevou
os joelhos para abraçar-se aos seus quadris e soube que
devia reter esse instante para sempre. Inclinou-se para
ele, esticou-se para ele, e esperou a que se quebrasse
sua prudência.
Ele sentiu que ela gozava, embora não dissesse
nada. E deslizou gostosamente as mãos abaixo dela
outra vez e empurrou e se manteve em seu interior
várias vezes até que sentiu que a tensão se reduzia e
tremia ao redor do centro da garota.
—Agora, meu amor — disse ao ouvido—. Agora.
Goze comigo agora.
E escutou o estranho grito que proferiu Fleur ao
empurrar em seu interior uma vez mais e sentiu que ele
mesmo soltava fôlego em um suspiro contra a face da
garota, justo quando sua semente se disseminou no
mais profundo de Fleur.
Ela estremeceu e tremeu a seu redor e contra ele, e
se abandonou ao momento depois do amor, feliz ao
sentir que o corpo do duque a deixava repousar na cama
ao relaxar-se, feliz de apoiar as coxas abertas contra as
dele, feliz de sentir suas mãos lhe sujeitando os quadris,
e de senti-lo no mais profundo de seu interior, na parte
que só pertencia a ela e ao homem ao que tinha decidido
entregar-se.
Tinha decidido entregar-lhe a ele. Só a ele. A ele,
aquela única vez e para sempre.
Adam apartou seu corpo do dela, levantou-se e a
colocou de lado, atraindo-a para ele e rodeando-a com
os braços. A seguir pôs os lençóis por cima.
—Fleur, desvaneceram-se os fantasmas? —
perguntou, beijando a de maneira afetuosa e persistente.
—Adam. —Ela tinha os olhos fechados. As gemas
dos dedos de uma mão lhe tocaram delicadamente o
rosto—. É tão bonito, tão bonito…
Ela não dormiu, e ele tampouco. Adam a abraçou
forte, enquanto lhe acariciava o cabelo com uma mão, e
se comunicava com ela sem palavras. Só tinham aquela
noite. Não havia tempo para falar. Nem para dormir.
Ficaram tranqüilamente abraçados o um ao outro até
que chegou o momento de voltar a amar-se.

Fleur ficou adormecida em algum momento justo


antes que amanhecesse. O duque lhe sustentou a
cabeça no ombro e lhe acariciou a sua face e a testa.
Olhava para cima, para a escuridão. As velas do salão
se apagaram fazia muito tempo.
Adam pensou que seria possível lhe pôr uma casa
em alguma parte, possivelmente em algum lugar que não
estivesse muito longe do Willoughby, ou possivelmente
perto de Londres. Poderia visitá-la durante dias ou
semanas seguidos. Sentiria-o mais como seu lar que
Willoughby.
Poderiam estar casados em todos os sentidos exceto
de nome. Nunca tinha tido um matrimônio real com o
Sybil. Nem sequer tinha sido consumado. Poderia ser fiel
a Fleur. Possivelmente inclusive poderiam ter um filho.
Ou vários.
Deveria ser possível. Voltou-se para beijá-la na testa.
Estava seguro de que poderia convencê-la. Amava-o
igual a ele. O havia dito e se passou quase toda uma
noite demonstrando-lhe.
Possivelmente uma casa ao lado do mar.
Poderiam passear juntos pelos escarpados, açoitados
pelo vento. Poderiam passear pela praia. Poderiam
levar-se a seus filhos a correr e jogar pela areia.
Adam voltou a esfregar a face contra o cabelo dela.
Pamela desfrutaria da praia. Devia levá-la. Willoughby
ficava a pouco mais de dezesseis quilômetros do mar.
Tinha que levá-la antes que terminasse o verão, e
possivelmente ir também com o Duncan Chamberlain e
seus filhos. Pamela desfrutaria da companhia de outros
meninos.
Nunca poderia desfrutar da companhia dos filhos de
Fleur e dele, esses meninos inventados que viviam na
casa inventada em um mundo de fantasia.
Poderia ter terminado com seu matrimônio com o
Sybil ao cabo de um ano se assim tivesse querido. Mas
não o tinha feito. Comprometeu-se com os votos que
tinha feito embora lhe negasse os direitos que o teriam
convertido em um autêntico matrimônio. Comprometeu-
se porque naquela época ainda sentia certo amor por
ela. E o tinha feito por Pamela. Para que Pamela não
fosse uma filha bastarda.
Meio compromisso não era um compromisso
absolutamente. Ou pertencia a Sybil e a Pamela ou
pertencia a Fleur. Não podia levar uma vida dupla. Ele
pelo menos não.
Abraçou mais forte a Fleur e continuou olhando para
cima.
—O que ocorre? —perguntou ela, voltando-se mais
para ele. O duque a beijou lentamente.
—Quero te contar algo antes que se faça de dia —
comentou.
—Sim.
A iminência do amanhecer se sentia no quarto.
—A partir de manhã — começou—, voltarei a me
comprometer com meu matrimônio. Espero ter a força
suficiente para viver com esse compromisso durante o
resto de minha vida, sem mais deslize. Isso espero, pelo
bem de Pamela.
—Sim. Sei, Adam. Não tem que sentir que me deve
nada. Acordamos que só seria esta noite. E eu não seria
sua amante embora quisesse que o fosse.
Ele pôs um dedo em cima de seus lábios e a beijou
na testa.
—Isso é o que quero te explicar. Em certo sentido,
sempre será minha esposa, mais do que o é Sybil. E
fisicamente sempre te serei fiel. Não haverá nenhuma
outra mulher em minha cama.
Seu dedo continuava apoiado sobre os lábios de
Fleur.
—Meu matrimônio só o é de nome, e sempre o foi.
Ouviu como Fleur tragava saliva.
—E Pamela? —sussurrou.
—É do Thomas. Abandonou ao Sybil grávida. Eu
acabava de voltar da Bélgica e ainda pensava que
estava apaixonado por ela, ou da pessoa que acreditava
que era.
Fleur soltou ar entrecortadamente.
—Desde que nasceu Pamela foi minha — continuou
o duque—. Morreria por ela. Se me expor realmente
anular meu matrimônio para estar contigo, não o faria
devido a Pamela. Se tivesse que escolher entre ela e
você, Fleur, e pode que seja assim, então a escolheria a
ela.
Ela tinha a frente apoiada contra seu peito.
—Sim, sim — assentiu a garota.
—Odeia-me por isso?
—Não. —Houve uma pausa larga—. Esse é o motivo
pelo que te amo, Adam. Há muito pouco espaço em sua
vida para ti mesmo. Preocupa-se muito pelo bem-estar
de outros. Ao princípio não sabia nem o esperava, mas
cheguei a vê-lo cada vez mais.
—E mesmo assim a tomei esta noite para mim. É um
ato egoísta e um engano moral, Fleur, como diria seu
amigo o padre. —Beijou-a um instante—. Mas não quero
falar. Quero te amar uma vez mais. Embora queira que
soubesse que permanecerei fiel a ti e sempre te
considerarei minha esposa.
—Um pedaço de eternidade — murmurou ela, lhe
tocando os lábios com as gemas dos dedos—. foi tão
maravilhoso que não o posso explicar com palavras. Não
o trocaria nem por dez anos de vida, Adam. E ainda fica
um pouco.
Fleur se voltou de barriga para cima e estendeu os
braços para ele enquanto Adam se elevava por cima
uma vez mais.

Capítulo 25
A paisagem que se via pela janela da carruagem se
voltava cada vez mais familiar à medida que se
aproximavam de casa. Passaram toda a viagem
sentadas o um ao lado de outro, com os ombros pegos e
as mãos agarradas, sem dizer virtualmente nada.
—Só ficam uns poucos quilômetros? —perguntou
ele.
—Sim.
Durante um instante lhe apertou a mão com mais
força.
—Tem que te dirigir a quem se encarregue dos
assuntos do Brockehurst — propôs o duque—. Pode ser
que ao menos consiga uma parte de seu dinheiro antes
de cumprir os vinte e cinco anos. Assim poderá viver
com certa comodidade.
—Sim.
—E farei que Houghton investigue também a
respeito.
—Obrigado.
Voltou a haver um silêncio.
—Não posso voltar outra vez aqui, Fleur. Nem
sequer escreverei.
—Não. Sei. Eu tampouco.
—Promete-me que se alguma vez necessitasse algo
ou tivesse algum problema escreverá ao Houghton?
Promete-me isso?
—Só nas circunstâncias mais extremas — respondeu
ela—. Não, Adam. Provavelmente não.
Acariciou-lhe os dedos.
—Fleur, se estiver grávida…
—Não o estou.
—Se o está — disse ele, levando-se sua mão aos
lábios—. Se o estiver, tem que fazer-me saber. Sei que
seu instinto fará que me oculte isso. Mas tem que fazer-
me saber. Também seria meu filho. O único filho de meu
próprio corpo que teria jamais. Enviaria a uma de minhas
casas e me ocuparia de ambos.
—Não estou grávida.
—Mas me faria saber isso?
—Sim.
Ele baixou as mãos e as apoiou em sua coxa.
Estavam a pouco mais de três quilômetros do
povoado, e a seis do Heron House. Fleur se concentrava
em respirar tranqüila e regularmente, reprimindo o pânico
que se agitava em seu interior.
—Mudará em seguida a casa? —perguntou ele.
—Sim. —Fleur centrou sua mente nos planos de
futuro—. Dormirei no Heron House esta noite pela última
vez e amanhã me mudarei ao povoado. Começarei na
escola ao dia seguinte, se Miriam estiver preparada. Vou
desfrutar o muitíssimo.
—Assim será? Vais ensinar música aos meninos,
Fleur?
—Canto, sim. Não há instrumentos, mas não importa.
Sorriu-lhe.
—Alegro-me que tenha perto a uma boa amiga.
—Di-lo pela Miriam? Tenho outros amigos no
povoado, Adam. Ou conhecidos que serão amigos logo
que viva entre eles e já não viva na casa. Não se
preocupe por mim. Serei feliz.
—Sê-lo-á? —Ele a olhava de soslaio o rosto, que
ficava a escassos centímetros do seu.
—Sim. A dor será intensa durante um tempo. Sei e
espero que assim seja. Mas se desvanecerá. Não tenho
intenção de sofrer, mas sim de viver. Espionei o paraíso,
e isso é mais do que muita gente conheceu em sua vida.
Agora vou voltar a viver.
—Pamela se desgostou quando fui — comentou o
duque—. Nem sempre fui generoso no referente a ela.
Abandonei-a muito freqüentemente. Estou desejando
voltar a estar com ela.
—Sim, e isso é o que deveria fazer. Merece a pena
viver por ela, Adam.
A carruagem passou retumbando pela ponte de
madeira que os conduziria até o povoado. Fleur fechou
os olhos e apoiou a face contra seu ombro, e Adam
voltou a fechar a mão ao redor das mãos da garota.
—Ai, Deus — suspirou ela.
—Valor. —Ele apoiou a face contra sua frente—. Se
tivesse que escolher entre sentir esta dor e não senti-lo,
Fleur, escolheria a dor porque sem ele você nunca teria
existido.
—Quero muito. —Fleur respirou profunda e
sonoramente—. Quero que desapareça a dor e o amor
por ti, Adam. Não sei se serei bastante forte para fazer
isto.
Sujeitava-lhe as mãos com força.
—Então quer que te leve a algum lugar onde
possamos nos ver de vez em quando? —perguntou.
—Uma vez ao ano? Duas vezes ao ano? —Ela
continuava com os olhos fechados— Esperar o céu duas
vezes ao ano?
—Poderia ser mais freqüentemente se estivesse
perto.
—Uma cômoda casa perto do Willoughby? —Ela
sorria—. E esperar que venha freqüentemente. E não ter
que dizer nunca adeus. E meninos possivelmente. Teus
e meus. Seriam morenos ou ruivos, o que crê? —acabou
dizendo com um fio de voz.
—Se for o que quer, dar-te-ei essa vida.
—Não. Só falamos de sonhos, Adam. Com um pouco
de tentação incluída. Nenhum dos dois seria capaz de
aceitá-lo como uma realidade.
A carruagem se estava saindo da estrada principal
para agarrar o longo caminho ao Heron House.
—Quando chegarmos ali não entre na casa comigo,
Adam. Vá sem mais.
Não disseram nada mais, mas continuaram sentados
sem mover-se. Ela desejava que ele a agarrasse entre
seus braços e esperava que não o fizesse. Não seria
capaz de suportá-lo se o fizesse. Começaria a pensar
que os sonhos podiam fazer-se realidade.
Uma curva mais e teriam atravessado a grade e se
encontrariam no caminho que chegava reto até a casa.
Ficavam dois minutos como muito.
—Não serei capaz de dizer nada — sussurrou ela—.
Parte sem mais.
—Eu te amo — disse ele—. Durante toda minha vida
e para sempre e para toda a eternidade. Amo-te, Fleur.
Ela assentiu e virou a cabeça para apoiar a face um
instante contra seu ombro.
—Sim — murmurou ela—. Sim…
Duas pessoas baixaram os degraus da casa quando
a carruagem se deteve ante ela. Fleur viu que eram
Miriam e Daniel.
—Isabella! —gritou Miriam quando Ned Driscoll abriu
a porta da carruagem e colocou a escada para baixar—.
Acabamos de chegar para ver se já tinha voltado para
casa. Esperamos você ontem. Ah, boa tarde, Sua
Excelência! —Miriam fez uma reverência rápida.
O reverendo Booth estendeu uma mão para ajudar a
Fleur a baixar.
—Isabella — começou, observando ao duque que
saía detrás dela—. Não te levaste uma donzela? Por que
não o tem feito?
—Encontraste a tumba do Hobson? —perguntou
Miriam—. E sua mente está em paz agora, Isabella?
Ontem se comentava pelo povoado que já não havia
cargos em seu contrário, que a morte foi um acidente e
que o suposto roubo foi um mal-entendido. Tudo
terminou, todo este assunto espantoso. Não é assim,
Daniel?
—Senhorita Bradshaw — ouviu uma voz baixa detrás
de Fleur—. Vou partir.
—Não vai entrar em casa, Sua Excelência? —
perguntou Miriam.
Fleur se virou. Seus amigos só estavam um par de
passos detrás dela. Levantou as mãos e ele as agarrou.
Adam a olhou intensamente aos olhos ao levar uma das
mãos aos lábios.
—Adeus — disse.
«Adam.» Os lábios dela formaram seu nome, embora
não emitiu nenhum som.
E partiu. Sentou-se no extremo mais afastado da
carruagem enquanto Ned fechava a porta, voltava-se
para sorrir, inclinava a cabeça para ela e de um salto
subiu ao lado do chofer.
E partiu. Percorreu o caminho da entrada, atravessou
as portas e girou na primeira curva.
Partiu.
—Bom, parece que tinha pressa por partir —
comentou Miriam alegremente—. Isabella, pequena
mulher louca e independente parece. Por que não veio
para ver-me para me pedir que fora contigo? Sabe que
teria fechado a escola uns quantos dias. Mas quando
Daniel me contou que se negou a te acompanhar, já
tinha ido. E imagina nossa consternação ao descobrir
que tinha ido com o duque de Ridgeway.
—Já parece, Miriam — a cortou o reverendo Booth
—. Não tem sentido lhe arreganhar mais. Entraremos
contigo, se te parecer, Isabella. Seguro que te aliviará
nos contar o que ocorreu.
—Deve estar esgotada — comentou Miriam, dando
um passo adiante para agarrá-la do braço. Sorriu-lhe e a
seguir se voltou bruscamente para seu irmão—. Leva a
bagagem da Isabella dentro, quer, Daniel? Quero falar
um momento com ela antes de reunimos contigo.
Esperou até que Daniel desapareceu no interior da
casa.
—OH, Isabella — sussurrou, tocando o braço de sua
amiga e lhe dando tapinhas—. OH, pobrezinha, minha
pobrezinha…
Fleur ficou a olhar o caminho como se tornasse de
pedra.

Ao menos havia muitas coisas com as que se


entreter. Fleur o agradeceu mais que qualquer outra
coisa nos dias e semanas seguintes. Ao menos havia
muito que fazer.
Mudou suas coisas para a casa que tinha sido da
senhorita Galen e colocou e arrumou todas as coisas de
lugar de modo que a satisfizeram. Ao princípio o fazia
tudo sozinha, incluída a cozinha, já que não podia
permitir-se contratar a uma criada. Passava muitas horas
no jardim pequeno, arrumando as sebes e roseiras
abandonadas para que recuperassem seu esmero e
esplendor originais.
E ensinava a vinte e dois estudantes de Miriam junto
com sua amiga e descobriu o desafio de ensinar a mais
de um menino por vez.
E estava amiga de um casal maior que vivia junto a
sua casa. Levava-lhes bolos que ela mesma fazia e se
sentava a escutar seus intermináveis historias do
passado, incluindo muitas histórias de sua mãe e seu
pai.
E tinha amigos aos que visitar e que a visitavam. E
sempre estava Miriam, que passava grande parte de seu
tempo livre com ela e que era uma amiga alegre sem ser
entremetida. Porque sem dúvida sabia. Tinha tido o tato
de enviar ao Daniel ao interior da casa depois de que
Adam partiu, e lhe tinha dedicado palavras singelas de
apoio e compreensão. Mas se tinha curiosidade, o certo
é que nunca o demonstrava. Nunca fazia pergunta. Era
uma autêntica amiga.
E também estava Daniel. Não a fugia face à
confissão que lhe tinha feito e pese ao comportamento
inadequado que tinha exibido posteriormente ao ir a
Wroxford com o Adam. E havia outros habitantes do
povoado e uma parte da aristocracia vizinha que se
mostraram resistentes a socializar quando vivia no Heron
House com seus familiares, mas que agora estavam
encantados de ser amigos dela.
Matthew não voltou para casa. Nem tampouco a
prima Caroline nem Amelia, nem sequer quando
terminou a temporada de Londres. No povoado se
comentava que as damas se foram ao norte com amigos.
Murmurava-se que Matthew partiu a Europa continental
para evitar uma situação delicada que não se sabia
muito bem qual era. Fleur não sabia se algum desses
rumores era certo. E não lhe importava onde estivesse
nenhum deles, sempre e quando se mantiveram
afastados dela. Não podia suportar a idéia de que a
prima Caroline voltasse, e temia o retorno do Matthew.
Falou com o administrador do Heron House, e ele
prometeu comunicar-se com o homem que levava os
assuntos de Lorde Brockehurst em Londres em relação
aos dela.
Fleur recebeu sua resposta de um modo inesperado.
Uma tarde estava sentada em seu salão bebendo uma
taça de chá depois de um dia exaustivo na escola e
perguntando-se se ficava energia para sair mais tarde a
recortar uma sebe que tinha crescido muito. Ficou em pé
suspirando quando bateram na porta. E uns instantes
mais tarde estava olhando com a boca aberta ao Peter
Houghton. Sentiu como se o estômago lhe estivesse
dando uma cambalhota completa.
—Senhorita Bradshaw — a saudou, fazendo uma
educada reverência.
—Senhor Houghton? —Ela se apartou, convidando-o
a entrar.
—Enviaram a Londres para me encarregar de alguns
assuntos para você, senhorita. Pareceu-me melhor
visitar a de volta ao Willoughby Hall em vez de lhe
escrever uma carta.
—Ah, sim. Obrigado. —Não lhe teria gostado de
nada receber uma carta do Willoughby e descobrir que
era do secretário—. Não quer tomar uma taça de chá?
Fleur se sentou no bordo da cadeira a escutá-lo,
empapando do fato de vê-lo e ouvi-lo, já que o secretário
constituía um débil vínculo com o Willoughby e com o
Adam. E recordou a primeira vez que o viu na agência da
senhorita Fleming.
O certo era que Matthew tinha fugido do país.
Alguém devia lhe haver avisado de que seu engano tinha
ficado ao descoberto e de que estavam a ponto de lhe
fazer perguntas delicadas e comprometedoras. Ao
parecer o senhor Houghton tinha falado com o homem
que se encarregava dos assuntos do Matthew, tinha
movido alguns fios entre os altos cargos e tinha
conseguido que seu tutor atual fora um primo longínquo,
o herdeiro do Matthew, ao que só tinha visto uma vez. E
aquele homem, a quem o senhor Houghton também
tinha ido visitar, mostrou-se muito pouco interessado em
encarregar-se da pessoa ou da fortuna de uma parente
de vinte e três anos a que nem sequer conhecia.
Entregar-lhe-iam uma atribuição muito generosa
durante no próximo ano e meio, depois do qual receberia
seu dote e sua fortuna tanto se estiver casada como
solteira. O senhor Houghton tossiu.
—Acredito que suas palavras exatas foram que
estava preocupado se poderia casar com um jovem que
limpa chaminés — comentou. Os olhos lhe brilharam um
instante.
Sorrindo, Fleur pensou que nunca notou que o
senhor Houghton tinha senso de humor.
O homem não quis ficar para jantar nem para tomar
uma segunda taça de chá. Disse que queria percorrer
uns quantos quilômetros mais antes que anoitecesse.
Fleur permaneceu de pé e juntou as mãos por diante.
Partiria dentro de uns poucos minutos. Fleur resistiria até
então. Não lhe faria nenhuma só pergunta sobre ele.
Nenhuma.
Peter Houghton voltou a tossir, e se deteve junto à
porta exterior antes de abri-la.
—Sua Excelência não pôde ir a Londres. Enviou-me
em seu lugar.
—Sim. O agradeço, senhor. E a ele também.
—Está fazendo planos para levar a duquesa e a Lady
Pamela a Itália no inverno.
—Ah sim? —Quão feridas logo que tinham
começado a tampar-se e fechar- se abriram outra vez.
—Pela saúde de Sua Excelência —explicou
Houghton—. E acredito que também pela sua própria.
Desde que voltou não é o mesmo.
Uma faca afiada arranhava a ferida.
—O clima da Itália deverá ajudar aos dois.
Houghton alargou a mão até o pomo e lhe deu a
volta.
—Encarregaram-me que fizesse uma compra em
Londres, senhorita, e de que me assegurasse de que lhe
chegasse até aqui. Deveria chegar dentro uma semana.
Meu dever era lhe informar de que se trata mais de uma
contribuição à escola que de um presente pessoal.
—E o que é?
—Deve chegar dentro de uma semana — repetiu ele.
E voltou a lhe fazer uma reverência, desejou-lhe que
tivesse um bom dia e partiu.
Fleur ficou com a dolorosa sensação de saber que o
único e mínimo vínculo que tinha com o Adam ainda
estava saindo do povoado. E de saber de que a amava o
bastante para enviar a seu secretário a Londres em seu
nome. E que lhe enviava um presente, supostamente
para a escola.
Mas em realidade era para ela.
E de saber que logo, dentro de uns poucos meses,
teria ido da Inglaterra. Não é que importasse. De todas
formas nunca voltaria a vê-lo. Mas a Itália! Itália estava
muito longe.
Às vezes a dor resultava quase insuportável.
Havia muitas coisas que fazer para mantê-la
ocupada, mas desejava poder ter a mente tão ocupada
como as mãos e o corpo.
Não podia controlar seus pensamentos a respeito
dele. E resultavam terrivelmente dolorosos. Nunca
voltaria a vê-lo, e nunca voltaria a ouvir falar dele. Mas
tinha que saber e acreditar que a amaria durante o resto
de sua vida. Vinte anos depois, se continuasse viva para
então e soubesse que ele continuava vivo, teria que
acreditar que a amava. Mas não poderia comprovar se
efetivamente se era assim. Perguntar-se-ia, ao igual a já
se perguntava: «Ainda me quer? Recorda-me?»
Sentia que em certo sentido resultaria mais fácil
saber que não a queria, que era feliz em outro lugar com
outra pessoa. Ao menos assim poderia empreender a
tarefa de viver sua própria vida com um pouco mais de
determinação.
Possivelmente. Mas quando deitava na cama pelas
noites revivendo essas noites de viagem com ele,
quando falaram com total facilidade e chegaram a fazer-
se amigos e às vezes ficavam sem dizer nada em
perfeita paz e harmonia, com as mãos agarradas, não
estava segura de poder viver sabendo que era feliz em
outro lugar, que a tinha esquecido. E ao reviver aquela
noite, quando se disseram que se amavam uma e outra
vez com seus corpos, não acreditava ser capaz de
suportar saber que poderia haver outra mulher em sua
vida.
Mas mesmo assim lhe doía saber que era infeliz, que
estava preso em um matrimônio que não tinha nada de
matrimônio, obrigado por uma garotinha que nem sequer
era dele.
Doía-lhe saber que a barreira que os mantinha
separados, e que continuaria fazendo-o durante o resto
de sua vida, eram tão fina e tão pouco resistente como
teias de aranha.
A culminação de sua dor se produziu com dois
acontecimentos que ocorreram no mesmo dia, um mês
depois que se mudou para sua casa.
A primeira hora da tarde a avisaram na escola para
que fosse receber um pianoforte que haviam trazido de
Londres. Havia uns quantos curiosos na rua, e todos os
meninos as tinham arrumado para estar fora também,
apinhados junto ao carro grande que transportava o
instrumento.
—Um pianoforte! —Miriam afogou um grito, e juntou
as mãos sobre o peito—. É para ti, Isabella? Você o
pediste?
—É para a escola — explicou Fleur—. Um presente.
—Um presente? Para a escola? —Miriam a olhou
muito surpreendida—. Mas de quem?
—Devemos fazer que o levem para dentro —propôs
Fleur.
Não sabia de onde vinha Daniel, mas também estava
ali.
—É um objeto muito valioso para o sala de aula —
comentou ele—. Devemos colocá-lo em sua casa,
Isabella.
—Mas é para os meninos — protestou ela—, para
que possa lhes ensinar música.
—Então tem que levar a um ou duas por vez a sua
casa para que recebam lições.
—OH sim! —Miriam estava de acordo—. Isso será o
melhor. Que presente mais maravilhoso! —Apertou o
braço de sua amiga, mas não voltou a lhe perguntar
quem o tinha dado.
E assim Fleur se encontrou com um pianoforte em
seu salão e uma caixa inteira de partituras. Quando por
fim ficou sozinha, depois de que Miriam assegurasse que
já não a necessitava embora faltasse muito pouco para
que terminassem as aulas, sentou-se no tamborete e
apalpou as teclas com dedos trêmulos.
Mas não tocou. Baixou a tampa brilhante sobre as
teclas, afundou a cabeça entre os braços e chorou sem
parar até que lhe doeu. Eram as primeiras lágrimas que
tinha vertido desde que ele partiu.
Recordava-o cedo pelas manhãs abrindo a porta que
conectava a biblioteca e a sala de música, ficando ali até
que ela o via para que não pensasse que pretendia
escutá-la sem que ela soubesse. Fleur escutava a si
mesmo tocar, absorvida na música, mas sentindo-o na
habitação do lado enquanto escutava em silêncio.
Acreditou que o odiava durante tanto tempo, que o
temia e lhe repugnava. E tinha sentido medo, um medo
mortal, à estranha e inesperada atração que tinha
sentido por ele.
Adam lhe tinha enviado um presente muito valioso, já
que sabia o muito que significava a música para ela. Mas
nunca a ouviria tocá-lo. Nunca poderia tocar para ele.
Todas suas lágrimas se esgotaram quando, aquele
mesmo dia de noite, descobriu um fluxo de sangue que
lhe avisava de que tampouco teria um filho dele. Levava
mais de uma semana de atraso.
Sabia que tinha sido uma idéia muito estúpida
esperar que fosse verdade. Deveria haver-se passado
essa semana aterrada. Teria resultado catastrófico se
tivesse sido verdade.
Mas estava descobrindo que o coração não poderia
dirigir sempre à cabeça. Arremesso na cama depois de
limpar-se e ficar o pano onde correspondia, sentia-se tão
triste e vazia como o dia no que ele partiu.
Disse-se a si mesmo que não teria se importado. Não
teria importado todo o incômodo e escandaloso que
pudesse resultar. Pode acumular muita esperança em
oito dias, e ela tinha começado a acreditar em sua
esperança.
—Adam — sussurrou na escuridão—. Adam, há
muito silêncio. Não posso suportar o silêncio. Não posso
te ouvir.
As palavras soaram ridículas quando se ouviu as
dizer. Fleur ficou de lado e escondeu a face no
travesseiro.

Pouco depois da visita do Houghton, Fleur perguntou


a Mollie, a donzela do Heron House, se quer casar e
cuidar dela. Mollie se mostrou encantada ante a
possibilidade de ser ama de chaves e cozinheira além de
donzela. Mas insinuou que Ted Jackson ficaria triste ao
tê-la tão longe. Antes que passasse um mês, o senhor e
a senhora Jackson estavam vivendo na casa, e Fleur
tinha um encarregado dos acertos da casa e jardineiro
além de um ama de chaves.
Quando deixou de estar sozinha em casa, o
reverendo Booth começou a visitá-la às vezes sem sua
irmã. Dizia que a presença de Fleur lhe resultava
relaxante, ao observá-la enquanto bordava. E gostava de
escutá-la tocar o pianoforte.
Fleur desfrutava de suas visitas e contemplava com
certa nostalgia a época em que tinha acreditado que
estava apaixonada por ele. Freqüentemente pensava
que, se não tivesse ocorrido tudo aquilo — se a prima
Caroline e Amelia não partissem para Londres, se
Matthew não tivesse evitado que se fora da casa, se
Hobson não tivesse cansado e ela não tivesse fugido,
pensando que lhe tinha matado—, sua vida poderia ser
muito distinta agora. Teria se mudado à reitoria tal e
como tinha planejado e teria vivido ali com a Miriam até
que Daniel tivesse conseguido uma licença especial.
Agora já levariam vários meses casados. Teriam
passado todas as noites sentados tal e como estavam
agora. Possivelmente ela estaria esperando um filho.
E teria sido feliz. Já que sem as experiências dos
meses anteriores, talvez nunca tivesse detectado a
estreiteza de visão do Daniel. Possivelmente ela mesma
teria continuado considerando a moral em termos estritos
de branco e negro. E nunca teria conhecido ao Adam.
Nunca teria conhecido o amor apaixonado e devorador
que sentia por ele.
Teria sido feliz com o amor tenro que Daniel lhe tinha
devotado. Às vezes desejava poder apagar os meses
passados, voltar para modo em que tinham sido as
coisas. Mas se precaveu de que um nunca podia
retroceder, nem desejá-lo verdadeiramente, porque uma
vez que ampliava a experiência pessoal uma vez não
podia dar-se por satisfeita com a experiência mais
limitada.
Além disso, pese à dor, face ao desespero, não teria
querido viver sua vida sem conhecer o Adam. Sem amá-
lo.
—É feliz, Isabella? —perguntou-lhe o reverendo
Booth uma noite.
—Sim. —A garota sorriu—. Sou muito afortunada,
Daniel. Tenho um lar e a escola e amigos. E me sinto
muito segura, o qual é maravilhoso depois da ansiedade
que passei com o Matthew.
—É muito respeitada e querida. Pensei que
possivelmente te custaria te estabelecer aqui depois de
tudo o que tinha passado.
Sorriu-lhe e baixou a cabeça para concentrar-se
outra vez no bordado.
—Às vezes desejaria poder voltar para modo em que
eram as coisas antes daquela noite espantosa —
comentou ele, fazendo-se eco dos pensamentos de Fleur
—. Mas não podemos, verdade? Não podemos
retroceder nunca mais.
—Não.
—Eu pensava —começou ele— que só seria
possível amar a alguém merecedor de meu amor.
Pensava que poderia amar a outras pessoas de um
modo cristão e lhes perdoar seus defeitos se
arrependiam-se deles. Mas não podia imaginar que
pudesse amar ou me casar com alguém que tivesse
cometido um engano grave. Estava equivocado.
Ela sorriu em direção a seu bordado.
—Sou culpado de ter mostrado um orgulho terrível —
lamentou o padre—. Foi como se pensasse que uma
mulher tivesse que ser digna de mim. Mas eu sou o
mortal mais fraco que existe, Isabella. Você viu e me
maravilha que sua experiência não te tenha amargurado
nem endurecido. É muito mais forte e independente do
que o foi antes, verdade?
—Eu gosto de pensar que sim. Acredito que sou
mais consciente que antes que minha vida está em
minhas próprias mãos, de que não posso culpar a outras
pessoas de algo que vá mal nela.
—Far-me-ia a honra o te casar comigo? —perguntou-
lhe Daniel.
Face às palavras que tinham conduzido à
proposição, Fleur se surpreendeu. Levantou a vista para
ele e a agulha ficou suspensa por cima do bordado.
—Ai, Daniel. Não. Sinto muito, mas não.
—Embora saiba o de seu passado? Embora te diga
que não mudou nada respeito a meus sentimentos por
ti?
Ela fechou os olhos.
—Daniel, Não posso. Ai, não posso.
—Então é o que eu pensava — disse ele, ficando em
pé e lhe tocando o ombro—. Mas cortaste toda relação
com ele, não é assim? Não esperaria menos de ti. É um
homem casado. Sinto muito, Isabella. Sinto-o muito.
Quereria que fosse feliz. Rezarei por ti.
Daniel saiu da casa sem fazer ruído enquanto ela
olhava fixamente para seu bordado.
Não voltou a apresentar-se só durante várias
semanas, embora às vezes ia com sua irmã. E ia
freqüentemente à escola.
Voltou a apresentar-se só uma tarde de um dia sem
classe, e lhe trouxe uma carta.
—Se fosse você a devolveria sem lhe abri-la sugeriu
adotando um tom grave ao entregar-lhe. Como seu
pastor teu te recomendaria que o fizesse, Isabella.
Lutaste tanto contra sua debilidade e está tão perto de
ganhar a batalha… Deixe-me devolvê-la por ti. Ou
destruí-la sem lê-la.
Ela agarrou a carta de suas mãos e olhou o selo do
duque de Ridgeway e a caligrafia que não era a do
senhor Houghton. Já tinham passado mais de quatro
meses, ou possivelmente quatro anos ou quatro décadas
ou quatro séculos.
—Obrigado Daniel.
—Seja forte — insistiu ele—. Não ceda à tentação.
Ela não disse nada, mas sim continuou olhando a
carta. Ele se virou e partiu sem dizer nada mais.
Odiava-o. Não esperava voltar a sentir ódio por ele
outra vez, mas o odiava. Havia-lhe dito que nunca
voltaria a vê-la, que nunca voltaria a lhe escrever. E ela o
tinha acreditado.
Tinha sofrido por ele, embora não pudesse continuar
vivendo sem voltar a vê-lo nem voltar a ouvir uma
palavra dela.
E tinha escrito. Para abrir uma vez mais a ferida com
muita dificuldade cicatrizada. Para obrigá-la a começar
de novo. E no futuro não poderia voltar a confiar em que
manteria a tentação separada de sua vida.
Daniel tinha razão. Deveria devolver a carta sem
abri-la para que soubesse que era mais forte que ele. Ou
deveria destruí-la sem lê-la. Deveria dar-lhe ao Daniel
para que a devolvesse ou a destruísse.
Entrou no salão e a pôs, sem abrir, apoiada em um
vaso que havia em cima do pianoforte. E se sentou
lentamente em sua poltrona favorita, com as mãos no
regaço, olhando-a.

Capítulo 26

—Bem-vindo a casa, Sua Excelência. — Jarvis


saudou o duque fazendo sua característica reverencia
formal.
O duque de Ridgeway saudou seu mordomo com a
cabeça e entregou seu chapéu e suas luvas.
—A casa parece muito tranqüila — comentou—.
Onde está todo mundo?
—Todos os convidados partiram, Sua Excelência —
explicou o mordomo—. A maioria partiu faz dois dias.
—E Lorde Thomas? —perguntou o duque.
—Partiu ontem, Sua Excelência.
—E onde está a duquesa?
—Em seus aposentos, Sua Excelência.
O duque se separou dele.
—Diga a Sidney que quero vê-lo, e que preparem a
água quente para um banho.
Enquanto percorria os corredores revestidos de
mármore para suas habitações privadas, pensou que era
um alívio sair por fim da carruagem. Tinha-lhe resultado
tão vazio e silencioso sem ela… E não teve grande coisa
que fazer durante a viagem exceto pensar. E recordar.
O duque não queria fazer nenhuma dessas duas
coisas. Tomaria um banho rápido, trocar-se-ia e
colocaria roupa limpa, subiria para ver Pamela e logo a
ver Sybil. Thomas tinha partido sem ela. E o duque
imaginava que ele voltava a ser o vilão, ao igual à última
vez.
Pobre Sybil. Estava realmente aflito por ela, e sabia
muito bem como se sentia: doída, vazia, incapaz de
convencer-se de que a vida pudesse voltar a trazer
felicidade alguma. Às vezes resultava difícil saber com o
coração ao igual à gente sabia com a cabeça que
voltaria a haver um motivo para rir outra vez.
—Onde diabos está essa água? —perguntou
impertinente Sua Excelência ao seu ajudante de quarto
ao entrar pela porta do vestidor.
—Em algum lugar entre a cozinha e aqui, senhor —
respondeu Sidney—. Se tirar o nó dessa maneira quão
único conseguirá é atar-lhe mais forte e não poderá
soltar-lhe, me deixe que o desfaça como tem que ser.
—És insolente! —zangou-se sua Excelência—.
Como pudeste viver esta semana sem poder me mimar
como uma maldita galinha poedeira?
—Pois muito tranqüilo, senhor. A verdade é que
muito tranqüilo. Dói-lhe o flanco?
—Não, não me dói — respondeu o duque impaciente
—. Ah, por fim. —voltou-se para observar a dois criados
que traziam grandes baldes de água fervendo.
—O esfregarei de todos os modos depois de banhar-
se, senhor. Sente-se e deixe que me encarregue desse
nó ou só se poderá cortar com uma faca.
O duque se sentou e levantou o queixo como um
menino obediente.
Estava desejando banhar-se, vestir-se e subir. Ver
Pamela. Sim, tinha muita vontade de ver Pamela. Não
havia ninguém mais a quem queria ver. Já não sentiria o
antigo desejo de subir, sentar-se na habitação de estudo
e ouvi-la falar e converter cada aula em uma aventura. A
partir de então só estaria Pamela.
Mas de todos os modos estava impaciente por subir
deixando inclusive de lado as vontades de ver sua filha.
Poderia ser que tivesse que demonstrar que Fleur partiu
de verdade. Pensou que em certos aspectos era uma
moça afortunada: viveria em um lugar onde ele nunca
tinha estado e onde não haveria fantasmas. Ele em troca
teria que entrar no quarto de brincar e no quarto de
estudo, na sala de música, na biblioteca, na galeria
alargada… em todos os lugares associados com ela.
Mas o duque não queria pensar. E não o faria. Ficou
em pé inquieto depois de que Sidney tivesse
desenredado o lenço com uma facilidade que raiava na
insolência, e abriu impaciente os botões da camisa. Um
deles saltou da mão e soltou um palavrão.
—Alguém deve ter dormido em uma cama de brasas
ardentes esta noite — comentou Sidney alegremente a
ninguém em particular.
—E alguém está pedindo que o tirem desta casa
agarrando a orelha — replicou o duque, tirando-a camisa
e se sentando outra vez para que seu ajudante de quarto
pudesse ajudar a tirar as botas.

A duquesa de Ridgeway estava em sua sala. Sua


Excelência a ouviu tossir ao aproximar-se. Bateu na
porta e esperou a que sua donzela respondesse, fizesse
uma reverência e saísse do quarto.
A duquesa se encontrava de pé no extremo mais
afastado do quarto, entre as estreitas colunas que
sujeitavam o entablamento. Ia vestida com uma
vaporosa bata de cor branca, e o cabelo solto caía pelas
costas. Estava tão pálida como a bata, à exceção de
duas manchas de cor no alto das maçãs do rosto. A via
magra e séria. Ao dirigir-se para ela, o duque pensou
que tinha perdido peso incluso da última vez que a tinha
visto.
—Sybil — começou, estendendo as mãos para
agarrar as suas e inclinando-se para beijá-la na face—.
Como está?
A duquesa tinha as mãos frias como o gelo, e a face
fresca.
—Bem. Estou bem obrigado — respondeu.
—Ouvi-te tossir. Ainda está resfriada?
Ela riu e apartou as mãos das dele.
—Não tem bom aspecto — lamentou o duque—. Vou
levar l Pamela e a ti a Londres, onde possa consultar
com um médico que saiba o que fazer. E logo iremos um
ou dois meses a Bath. A mudança de ares e paisagem
sentará bem a todos.
—Odeio-te — disse ela com sua voz ligeira e suave
—. Oxalá pudesse utilizar uma palavra mais forte porque
sinto mais que ódio para ti. Mas não me ocorre outro
modo de dizê-lo.
O duque lhe deu as costas e perguntou:
—Partiu ontem?
—Sabe que sim. Você lhe ordenou que partisse.
Ele se passou uma mão pela frente.
—Imagino que lhe suplicou que te levasse com ele.
Por que crê que se negou, Sybil?
—Tem muita consideração por minha reputação.
—E antepor sua reputação a sua felicidade? E à
sua? Resultou-te convincente seu rechaço?
—Quero estar sozinha — murmurou ela, dirigindo-se
até o divã para sentar-se nele—. Quero que parta.
Esperava que não voltasse esta vez. Esperava que seus
encantos lhe resultassem mais apetecíveis. Oxalá
voltasse com ela para não ter que ver-te nunca mais.
Ele suspirou e se voltou para olhá-la.
—Faz seis anos — começou o duque—, teria dado
minha vida para te economizar dor, Sybil. Acredito que
possivelmente dava mais que isso. Segue me resultando
terrível ver-te sofrer. É minha esposa e me comprometi a
fazer tudo o que esteja em minha mão para garantir sua
segurança e sua felicidade. Sei que está sofrendo uma
dor tão intensa que quase resulta insuportável. Mas não
se pode conseguir nada olhando para trás. Por que não
podemos continuar juntos e tentar que o que fica de vida
resulte ao menos pacífico?
Ela se voltou a rir sem olhá-lo.
—O matrimônio funciona em dois sentidos —
prosseguiu o duque—. Eu sou seu marido, Sybil. Você
também deve fazer tudo o que esteja em sua mão para
garantir minha segurança. Acaso o tentar me satisfazer
não proporcionaria a sua mente algo no que te
concentrar? E eu não resultaria difícil de satisfazer,
conformar-me-ia com um pouco de amabilidade, um
pouco de companhia…
Aquela vez Sybil o olhou enquanto ria. Mas a risada
se converteu em uma tosse prolongada.
Ele se ajoelhou diante de sua esposa, Pô-lhe a mão
na nuca e ofereceu seu lenço. Apartou-lhe a mão.
—Na segunda-feira partiremos a Londres —
anunciou ele quando deixou de tossir—. Dentro de três
dias. Diga a Armitage que comece a preparar seus baús.
A duquesa voltou a rir.
—Guarde seus médicos, Adam. Nenhum médico
pode fazer nada por mim. Não quero ter nada que ver
com eles. —Desdobrou seu lenço e sorriu ao lhe mostrar
as manchas vermelhas de sangre nele.
Ele as olhou, sentiu que ficava lívido e baixou a testa
para apoiá-la nos joelhos de sua esposa.
—Teria que haver imaginado — comentou Sybil—.
Se não, é que é incrivelmente estúpido. Parte, Adam.
Não quero ter nada que ver contigo nem com qualquer
de seus médicos.
Ele levantou a cabeça e a olhou à cara.
—Sybil, ai, minha pobrezinha — sussurrou—. Por
que não me disse nada antes? Sabe o doutor Hartley?
Por que não me disse isso? Não teria que ter passado
por tudo isto sozinha.
—Por quê? É que tem pensado morrer por mim,
Adam? Ou te limitará a me agarrar a mão durante todo o
processo? Não, obrigado. Preferiria fazê-lo sozinha.
A duquesa apartou a cabeça bruscamente ao contrair
a expressão ante ele. Adam ficou em pé imediatamente,
levantou-a e a agarrou entre seus braços. Estreitou-a
forte, balançando-a contra ele, e lhe beijou a testa.
Mas Sybil se separou de seu marido assim que
recuperou um pouco o controle.
—Quero estar sozinha. Quero morrer sozinha. Se
Thomas não estiver aqui comigo, então morrerei sozinha.
Não! — voltou-se bruscamente quando ele moveu a mão
para ela—. Não tem que te fazer de generoso e mandá-
lo o procurar. Isso é o que estava a ponto de te oferecer
a fazer, verdade? Já te conheço, Adam.
Ele não disse nada.
—Sei que não teria vindo. Não viria se estivesse sã e
me oferecesse com um milhão de libras. Crê que viria a
me ajudar a morrer?
—Sybil… — começou ele, alargando uma mão para
ela. A duquesa riu mais violentamente que antes.
—Crê que não sei a verdade? Crê que não a soube
sempre, no fundo? Mas isso não faz que te odeie menos.
Odeio-te por ser tão nobre e tão pormenorizado. Odeio-
te por estar sempre tão disposto a te levar as culpas.
Alegro de ser tuberculosa. Alegro-me que vá morrer. —
Deu-lhe as costas.
—Não te deixarei partir sem lutar — interveio o
duque—. Existem tratamentos que podem te ajudar em
sua enfermidade. Se me houvesse isso dito antes, ou me
houvesse isso dito o médico —suponho que lhe obrigou
a guardar segredo— já poderíamos ter feito algo a
respeito. O clima quente ajuda, ouvi isso. Levar-te-ei a
algum lugar quente. Pode ser a Espanha, ou a Itália. Nós
iremos passar o inverno ali. Para quando chegar o
próximo verão terá se recuperado. Sybil, não perca a
esperança. Não perca a vontade de viver.
—Quero descansar — gemeu ela—. Bate o sino para
chamar o Armitage, Adam. Estou cansada.
Ele o fez imediatamente e se voltou para ela.
—Vou cuidar te você até fique curada —prometeu—,
tanto se você gosta como se não. E tanto se me odiar
como se não, vou manter-te viva e ao meu lado. E junto
a Pamela. Pensa nela, Sybil. Necessita que vivas. Ela te
adora.
—Pobrezinha — gemeu a duquesa—. Ficará órfã
quando me tiver ido.
—Sempre me terá. A seu pai. E terá a ti também.
Farei que Houghton se encarregue dos preparativos para
nos mudar para a Itália durante o inverno.
A donzela entrou na habitação nesse momento.
—Sua Excelência não se encontra bem e está
cansada —explicou o duque—. Ajude-a a deitar-se, por
favor, Armitage.
E contemplou a sua duquesa, frágil e encantadora,
apoiando-se muito no braço de sua donzela enquanto se
escapuliam no vestidor. O duque resistiu o impulso de
tomar a em seus braços e levá-la à cama. Sabia que
esse gesto não seria bem visto.

Dois dias depois do retorno do duque, enviou ao


Peter Houghton a Londres para consultar com seu
advogado e o de Lorde Brockehurst e ver o que podia
arrumar para Fleur. E tinha planejado comprar um
pianoforte para enviar como presente para a escola. Sua
Excelência se convenceu de que Fleur devia ter um
pianoforte.
Um só presente. Isso seria tudo. Um presente e
nenhuma outra comunicação mais.
O duque passou parte da manhã do primeiro dia em
casa, dando um longo passeio com sua filha e a
cachorrinha, e prometeu que pela tarde iriam a cavalo a
casa do senhor Chamberlain para que pudesse brincar
com os meninos.
—Montarei contigo, papai.
—Nem pensar — riu ele—. Montará seu próprio
cavalo, Pamela. Pensei que já tinha perdido o medo.
—Mas não estará a senhorita Hamilton montando ao
outro lado.
—Não necessita nenhuma ajuda. Já pode montar
bem sozinha. Tenho que me encarregar de te encontrar
outra governanta, uma que queira ir a Itália conosco.
—Não quero outra governanta. Quero à senhorita
Hamilton — exigiu a menina.
—Mas a senhorita Hamilton mudou a vida, Pamela —
explicou ele, agachando-se para agarrar o cão em
braços e entrá-lo assim em casa e levá-lo escada acima
—. Está dando aulas a um grupo inteiro de meninos.
— Não gostava de mim. —A menina fez uma careta
—. Sempre soube que não gostava.
O duque lhe pôs uma mão na cabeça e a esfregou
energicamente.
—Sabe que isso não é verdade, Pamela. Ela te
amava.
—Então por que partiu? —perguntou a menina—. E
nem sequer se despediu.
O duque suspirou e se alegrou da distração que se
produziu quando a cachorrinha saltou de seus braços no
alto das escadas e correu para a porta até entrar no
quarto de brincar. Pamela riu e correu atrás dela.
Ele saiu em direção aos estábulos e fez que
selassem o cavalo. E se passou as seguintes horas
montando, esquecendo-se completamente da comida,
cavalgando para o meio galope pelas zonas de grama da
parte de atrás, através das árvores, passando pelas
ruínas e evitando o parque na parte dianteira da casa.
Tratou de concentrar-se em seus planos de futuro.
Levaria Sybil a Londres antes que partissem da
Inglaterra. Averiguariam a opinião do melhor médico que
existisse sobre sua enfermidade e suas possibilidades de
recuperar-se. E logo iriam a Itália, ao menos durante os
meses de inverno, e ele se asseguraria de que Sybil se
empapasse de sol todos os dias sem exceção.
Tinha vinte e seis anos. Era muito jovem para morrer.
O duque pensou que resultava estranho como uma
pessoa era capaz de ser totalmente consciente de algo
nas curvas da mente, e entretanto não sabê-lo
absolutamente. Tinha sabido ou suspeitado ele que Sybil
tinha tuberculose? Tinham aparecido todos os sintomas,
deslumbrando na face. Mas ninguém havia dito nada.
Acreditava que ao menos o médico lhe informaria.
Thomas tinha mencionado que possivelmente estava
tuberculosa, mas ele tinha negado essa possibilidade.
Possivelmente suas próprias negativas tinham sido
similares às de Sybil. No dia anterior havia dito que sabia
a verdade sobre Thomas desde o começo. Mas ao
mesmo tempo não a tinha sabido, ou se tinha negado a
reconhecer-lhe inclusive a seu próprio coração.
Já estava tossindo sangue. Isso significava que a
enfermidade se encontrava na fase final, verdade? Que
não havia esperanças de que se recuperasse.
Mas ele a cuidaria até que se curasse.
O duque desejou que estivesse disposta a aceitar
seus cuidados, sua companhia, o afeto que ainda estava
disposto a lhe dar. Mas ela não queria.
Adam pensou que Sybil sempre tinha sido o pior
inimigo de si mesma. Sem dúvida, sua experiência com o
Thomas, o embaraço fora do matrimônio e o sentir-se
obrigada a casar-se com o Adam embora não o amasse
a tinham marcado. Não queria menosprezar a dor que
devia ter sofrido. Como podia fazê-lo quando ele mesmo
estava sofrendo uma dor muito similar? Mas poderia ter
feito algo por si mesmo.
Se tivesse sabido no mais profundo de seu ser que
Thomas a tinha abandonado cruelmente poderia ter feito
um esforço ao menos por seu matrimônio. Poderia ter
prodigalizado todo seu amor a Pamela, ou inclusive a ele
mesmo. Dado que lhe tinham arrebatado toda a
felicidade que tinha, poderia haver-se concentrado em
dar felicidade a outras pessoas.
Mas Sybil não tinha um caráter forte. Se lhe tivessem
dado felicidade, sem dúvida teria seguido sendo doce
toda sua vida. Mas era uma pessoa que queria receber,
não dar, e uma vez que lhe tiveram arrebatado tudo o
que queria, em sua vida não ficou nada salvo amargura e
ódio e uma busca desesperada pela gratificação sensual.
Só podia sentir uma grande pena por ela. E se sentia
obrigado a ajudá-la naquela nova crise de sua vida, a
pior de todas. Seria muito triste que morrera tão jovem e
sem ter descoberto que havia muito que dar à vida.
Mas não resultava fácil dar as costas às penas do
passado e entregar todas as energias ao presente e ao
futuro; não era nada fácil. Ao final o duque dirigiu seu
cavalo para a fachada da casa e se foi ao meio galope
pela grama ondulante do extenso parque. E logo ficou a
galopar, imprimindo ao Aníbal uma velocidade cada vez
maior, sem poder deixar atrás todos os seus
pensamentos.
Virou-se quase por instinto para a esquerda uns três
quilômetros mais adiante e saltou a grade em direção ao
prado, puxou as rédeas e deu uns tapinhas no pescoço a
seu cavalo. Olhou para trás e a viu em sua lembrança
saltando por cima da grade depois dele, transbordando-a
mais de um palmo. O duque inclinou há cabeça para
diante e fechou os olhos.
Não, não era fácil. Passou a noite sem dormir: os
braços e o corpo lhe doíam de pensar nela. E recordou
uma vez mais a doçura e a fragrância de seu cabelo, a
pele suave e sedosa, os seios turgentes, a cintura
estreita e os quadris largos, as pernas largas e magras, a
boca quente e ansiosa, as profundidades femininas
cálidas e úmidas…
E a recordou silenciosa, adormecida e cálida em
seus braços nos interlúdios das vezes que se amaram,
sorrindo à pálida luz das velas, de modo que as palavras
entre eles resultavam bastante desnecessárias. E
agarrando a mão de Adam na carruagem, com o ombro
de Fleur apoiado justo por debaixo do dele.
Fleur! Meu Deus! Fleur!
Não pôde evitar pensar que se Sybil morresse
poderia casar-se com o Fleur.
Meneou a cabeça violentamente e fez girar a seu
cavalo para o caminho comprido através do prado. Não a
deixaria morrer. Era sua esposa, e estava doente e
infeliz. Não a deixaria morrer.
Não pensaria em Fleur. Não tinha direito a pensar
nela. Estava casado com o Sybil.
Seguiu a rota que tinha pego em uma ocasião
anterior com o Fleur, mas detrás passar pela grade de
volta ao parque, tomou uma direção distinta até que seu
cavalo se meteu no caminho que ficava na borda sul do
lago, em frente do pavilhão na ilha.
Dirigiu-se por volta de onde tinha passeado com o
Fleur durante o baile ao ar livre.
Justo ali. No caminho. Tinha-lhe pânico, tinha pânico
de que a tocasse. Tinha fechado os olhos com força, e
logo a música e o ambiente a tinham apanhado com sua
magia ao igual ao tinham apanhado a ele, e tinham
dançado como se estivessem feitos para dançar juntos o
resto de suas vidas.
A bela, a muito bela Fleur com seu vestido azul claro
e seu maravilhoso cabelo vermelho dourado.
Olhou em direção ao lugar onde tinham dançado.
Mas não havia música, nem estava a luz das luminárias.
Nem Fleur.
Só um caminho iluminado pelo sol e a brisa nas
árvores e o canto dos pássaros.
Adam tragou saliva duas vezes e dirigiu seu cavalo
para casa. Sybil tinha ido ao Wollaston aquela manhã.
Devia ir comprovar que havia tornado bem e a saída não
a tinha feito piorar. Fazia um dia quente e muito bonito.
Possivelmente gostaria de dar um passeio curto,
apoiando-se em seu braço… mas não, nem que os anjos
descessem do céu a pedir-lhe.
Partiriam no fim de setembro, mais de três meses
depois de que Fleur se foi do Willoughby Hall. O duque
de Ridgeway se alegrava de passar ao menos uma parte
do outono na Inglaterra. Passeava-se por suas terras, às
vezes a pé, outras vezes a cavalo, às vezes sozinho,
outras com sua filha e a cachorrinha se iam a pé,
desfrutando das cores cambiantes das folhas e o tapete
multicolorido sob seus pés. A Pamela gostava de pisar
nas folhas rangentes com ele, as esmagando ao passar.
O duque sabia que jogaria tudo aquilo de menos
durante o inverno. Recordou os largos meses e anos de
campanhas contra Bonaparte e a saudade que sentiu
então quando viajava com os exércitos.
Mas deviam partir. Sybil não queria ir, e afirmava
teimosa que não iria. Mas naquele assunto podia exercer
sua autoridade e insistir em que lhe obedecesse. Se não
tinha vontades de viver, ele as teria por ela. Transmitiria
sua própria força e faria que voltasse a estar bem outra
vez.
Não mostrava muitos sinais externos da
enfermidade. Depois de partir seus convidados, voltava a
estar inquieta e saía todo o tempo a visitar outras
pessoas. Em ocasiões levava a Pamela, mas a maioria
das vezes ia sozinha. Quando convidava a alguém a sua
casa, o qual o duque estranha vez fazia por medo de
cansá-la muito, animava-se e estava contente. Duncan
Chamberlain ficou muito incômodo uma noite em que
escolheu flertar com ele.
Mas havia ocasiões, às vezes inclusive dias inteiros,
nos que a febre alta e a tosse a mantinham confinada a
suas habitações.
O duque ia visitá-la diariamente, interessava-se por
sua saúde e tentava que conversassem. Mas ela o
rechaçava.
E cada vez que Adam tirava o ela tema afirmava que
não iria a Itália nem a ver nenhum médico.
Manteve-se encerrada em suas habitações o dia
antes da saída prevista. Peter Houghton levou o correio
a última hora da manhã, incluída uma carta de uma
amiga de Londres com a que estava acostumado a
escrever-se.
Era um dia frio e borrascoso, que ameaçava com
chuva todo o tempo.
Ao sair do quarto de brincar, onde tudo eram nervos
e baús ao meio fazer, e enquanto baixava as escadas
para fazer a visita diária a sua esposa, o duque pensou
que já tinha chegado a hora de que partissem a climas
mais quentes. Mas Sybil não tinha baixado a comer.
A donzela lhe disse que tinha saído antes de comer.
Armitage pensava que Sua Excelência a duquesa tinha
saído a dar um passeio curto, mas deve entendê-la mal.
Devia ter ido na carruagem à cidade.
O duque franziu o cenho. Havia tornado dos
estábulos fazia menos de uma hora. Ninguém tinha
comentado que Sybil levou a carruagem.
E além não fazia o tempo adequado para passear
para o Sybil. E o almoço tinha sido duas horas antes.
—Obrigado — o duque assentiu rapidamente ante a
donzela de sua esposa.
Cinco minutos mais tarde, nos estábulos, descobriu
que não levou nenhuma carruagem. A duquesa não tinha
estado ali.
—Mas a vi esta manhã caminhando nessa direção,
Sua Excelência — disse Ned Driscoll, assinalando para o
lago—. Mas faz horas disso.
—Obrigado — disse o duque.
Estava começando a chover. Era uma chuva fria e
torrencial, que impregnava rapidamente o corpo incluso
através da roupa e se abria caminho pelo pescoço. O
duque se dirigiu rapidamente ao lago.
Imediatamente viu que um dos barcos estava na
água, derrubada e flutuando sem rumo. Algo escuro
estava apanhado entre os juncos perto da ilha.
Uns minutos mais tarde, do outro barco, desenredou
o corpo de sua esposa dos juncos e subiu ao barco.
Remou até a borda, esteve parado barco, levantou com
cuidado a sua esposa em braços, e começou a caminhar
para a casa.
Embora estivesse empapada e com a roupa imersão,
não pesava mais que uma pluma. Tinha uma mão
branca e frágil apoiada no ventre.
Era como se os pés do duque fossem feitos de
chumbo. Sentia uma dor no pescoço e na garganta que
lhe dificultava a respiração.
Em uma ocasião a tinha amado, tinha amado sua
beleza e seu passo ligeiro e sua doce voz. Tinha-a
amado com o ardor próprio de um jovem. E se casou
com ela e prometeu amá-la e respeitá-la até a morte.
Mas não tinha sido capaz de proteger a do desespero
que a tinha levado a tirá-la vida.
Havia uns quantos moços fora dos estábulos,
observando-o enquanto se aproximava como se
sentissem que algo ia mal. E por algum motivo Jarvis e
um lacaio se encontravam fora, no alto dos degraus em
forma de ferradura enquanto ele subia a carga por eles.
—Sua Excelência teve um acidente — anunciou o
duque, surpreso da firmeza de sua própria voz—. Mande
a Armitage e à senhora Laycock a seu quarto, por favor,
Jarvis.
—Está ferida, Sua Excelência? —Por uma vez o
mordomo se mostrava surpreso e não se comportava
com frieza.
—Morta — respondeu o duque, passando por diante
dele.
Entrou na casa passando por diante do Houghton e
do ajudante de quarto de seu irmão, que também se
encontrava ali, talher pelo pó e o barro da viagem.
Adam levou sua esposa a seu quarto e a deixou com
cuidado na cama. Endireitou-lhe as extremidades e
colocou pulcramente a roupa úmida, alargou a mão para
fechar os olhos e tocou o bonito cabelo loiro platino, que
agora estava úmido e cheio de barro. Ajoelhou-se junto à
cama, agarrou uma das mãos de sua esposa, apoiou-a
contra sua face e chorou.
Chorou pela morte de um amor apaixonado e imaturo
que não tinha conseguido proporcionar nenhum tipo de
paz à pessoa amada. E chorou pela mulher que tinha
tomado por esposa movido por tais ideais, a mulher que
acabava de matar-se em vez de enfrentar-se a uma
enfermidade fatal contando só com os braços do duque
para consolá-la. Chorou por sua própria fragilidade e
infidelidade. Chorou por sua humanidade.
Acabou ficando em pé, sabendo de que Armitage e a
senhora Laycock levavam um momento detrás dele.
Voltou-se sem dizer uma palavra e atravessou o vestidor
até o salão oval.
Seus passos o levaram a escritório, no que havia
uma carta aberta. Em algum lugar de sua mente soube
que não devia lê-la. Era de sua esposa. Mas sua esposa
estava morta.
Assim que se inclinou sem muita curiosidade. E
assim descobriu, antes que Houghton e o ajudante de
quarto de seu irmão tivessem oportunidade de falar com
ele, de que Lorde Thomas Kent tinha morrido em uma
encarniçada briga.

Capítulo 27

Ela sabia, é obvio, que acabaria abrindo a carta.


Soube no instante em que Daniel a pôs nas mãos. Como
podia não abri-la, como podia ficar sem saber sobre sua
vida uma vez mais?
Mas lhe incomodava. E odiava ao Adam. Já que
depois de quatro meses e meio se deu conta de que não
tinha superado absolutamente a dor, que precisaria viver
muitos meses mais no presente para deixar do ter
saudades de dia e suspirar por seus braços de noite.
E finalmente reconheceu para si mesmo que o
motivo pelo que o estava pospondo não era tanto seu
ressentimento, o saber que ao ler sua mensagem
voltariam a abrir todas as feridas, a não ser um pouco
totalmente distinto. O motivo pelo que o pospor era que
sabia que só demoraria uns poucos minutos em ler a
carta. E logo não haveria nada mais. Voltaria a
encontrar-se com o vazio e o silêncio que se estendia até
o infinito.
Deixou a taça e o prato a um lado e agarrou a carta,
sustentou-a em suas mãos, a levou aos lábios e a
apertou contra sua face.
Pensou que depois de tudo poderia ser que fosse
uma carta de alguma outra pessoa da casa.
Possivelmente fosse da senhora Laycock. Sentiu que lhe
removia o estômago ao pensá-lo e ficou a rasgá-la presa
do pânico.
Seu olhar foi diretamente ao final da página, à
assinatura. «Adam», tinha escrito a mão com letra
grossa e enérgica. Fleur mordeu o lábio inferior e fechou
os olhos um instante. Voltou a sentar-se na cadeira.
«Minha querida Fleur — dizia—, escrevo-te para te
falar de duas perdas que se produziram em minha
família. Meu irmão morreu em uma briga em Londres
recentemente mais de um mês. Minha esposa se afogou
acidentalmente o mesmo dia em que soube de sua morte
em Willoughby. Enterrei a ambos, um junto ao outro, no
cemitério familiar.»
Fleur apoiou a carta na lapela. Fechou os olhos e se
levou uma mão à boca. Adam! OH, pobre Adam!
«Amanhã levo a Pamela de viagem pela Europa —
continuava a carta—. Mostrou-se inconsolável. Adorava
ao Sybil. Permanecerei com ela no estrangeiro durante o
inverno e possivelmente durante todo o ano que dure
nosso luto.
»Quando terminar o ano irei ao Wiltshire. Não direi
mais por agora. Entenderá que o mês passado resultou
muito doloroso. E lhe devo um ano de luto, Fleur, e a
meu irmão também, é obvio.
»Queria que soubesse estas coisas antes que me
partisse. E acrescentarei que pensava em tudo o que te
disse quando estive em Wiltshire.»
Fleur voltou a apoiar a carta no regaço, dobrou-a
cuidadosamente e se precaveu sem lhe emprestar muita
atenção de que lhe tremiam as mãos.
Estava morta. Sua esposa estava morta. Havia dito
que tinha morrido de maneira acidental, mas tinha
morrido o mesmo dia que tinham sabido da morte de
Lorde Thomas. E Lorde Thomas era o pai da Lady
Pamela. Então é que se tirou a vida. Devia haver-se
jogado no lago.
OH, pobre Adam! Pobre Adam! Como devia culpar-
se a si mesmo!
Mas estava morta. E ele estava livre. Quando
terminasse o ano de luto voltaria para o Wiltshire. Dentro
de onze meses. No fim de setembro.
Não, não devia pensar nisso. Não devia esperá-lo.
Onze meses pareciam uma eternidade. Poderia ocorrer
algo nesse tempo. Um deles podia morrer. Adam poderia
mudar de opinião. Poderia conhecer outra pessoa em
suas viagens. Poderia desfrutar tanto da viagem que
acabasse passando anos no estrangeiro. Pode que Lady
Pamela não quisesse que fora a procurá-la.
Poderia ocorrer algo. Onze meses atrás nem sequer
o conhecia. Mas parecia como se o conhecesse de
sempre. Isso significava que teria que esperar mais que
nunca, e que ao final pode que ele não chegasse.
Ficando em pé e apoiando a carta com cuidado no
vaso, Fleur decidiu que não pensaria nisso. Não pensaria
nisso. Se voltasse para acabar o ano, então escutaria o
que tivesse que lhe dizer. Se não vinha, então não se
mostraria decepcionada porque não o teria esperado.
Mas aquela ontem à noite e durante muitas outras
noites sonhou com ele. Teve sonhos estranhos e
inquietantes nos que ele tratava de chegar até ela, mas
se encontrava ao outro lado de um caudal de água o
bastante larga como para não vê-lo com claridade e lhe
gritava palavras que não ouvia bem. E cada vez
despertava com os braços vazios e sentindo que o outro
lado da cama estava vazio.
Fleur redobrou os esforços para ser uma boa
professora e dedicou muitas de suas horas livres a
ensinar música. E se dedicou a visitar seus vizinhos,
sobre tudo aos anciões, que dependiam dos visitantes
para aliviar o tédio do dia, e aceitou tudo e cada um dos
convites que recebeu. Inclusive quando a prima Caroline
voltou para casa — Amelia se casou e vivia em
Lincolnshire — e soube que estariam na mesma festa,
também foi.
E se aferrou à amizade com a Miriam como se fosse
uma corda de salvamento.
Cada vez que se permitia pensar conscientemente
no assunto, precavia-se de que tinha razão em algo:
onze meses eram mais que uma eternidade.

—Voltaremos para casa logo, papai? —Lady Pamela


Kent estava sentada na carruagem em frente de seu pai,
acariciando o focinho e a cabecinha de sua cachorrinha,
que fechava os olhos extasiada.
—Logo — respondeu ele—. Alegra-te? Vimos muitas
maravilha juntos em ano passado, verdade? Pode que te
aborreça em casa.
—Tenho muitas vontades de chegar. Por que vamos
ver a senhorita Hamilton, papai? Voltará ser minha
governanta outra vez?
—Você gostaria que o fosse?
—Sim — disse ela detrás pensá-lo um instante—.
Mas me daria medo que se fosse outra vez. —De
repente olhou ao seu pai ansiosa—. Você não irá,
verdade, papai? Quando estivermos em casa, não irá
outra vez a Londres e me deixará sozinha?
Outra vez a antiga ansiedade. Tinha passado
semanas depois da morte de sua mãe despertando
gritando virtualmente cada noite. Aterrorizava-lhe que a
abandonassem. O duque de Ridgeway sorriu para
consolá-la. Antes inclusive de que partissem de viagem
tinha tido que passar quase cada momento da jornada
com ela, todos os dias. Durante muito tempo tinha tido
que levar a cama de noite para que sua voz e seus
braços estivessem ali quando despertasse.
—Não irei a nenhuma parte — respondeu Adam—. A
partir de agora, Pamela, lá aonde vá, eu também irei.
—Pergunto-me se Timothy Chamberlain e outros
terão crescido.
—Atrever-me-ia a dizer que sim. Ou possivelmente
foi o ar continental o que tem feito que o crescesse.
Ela o olhou e riu.
—E se não levamos a senhorita Hamilton de volta ao
Willoughby para que seja sua governanta? —sugeriu ele
—. E se nos levarmos isso para que seja sua nova
mamãe?
Ela o olhou sem compreender.
—Mas eu já tenho mamãe.
—Sim. —Sabia que deveria lhe haver exposto o tema
muito antes. Mas ainda não tinha dado com as palavras
adequadas nem tinha conseguido armar-se da valentia
necessária. Não estava seguro de ter dado com as
palavras ainda—. Já tem mamãe, Pamela, e sempre a
quererá mais que a ninguém em sua vida até que cresça
e tenha sua própria família. Mas como mamãe já não
pode estar contigo, você não gostaria que houvesse
outra pessoa que pudesse fazer contigo as coisas que
teria feito mamãe?
—A senhorita Hamilton? —perguntou a menina
receosa.
—Você gosta, não é assim?
Ela duvidou.
—Sim. Mas partiu sem despedir-se, papai.
—Não foi culpa dela. O teria feito se tivesse podido.
Mas teve que fugir de um homem mal, Pamela, e não
pôde despedir-se de ninguém. Acredito que te amava.
—Mas se for ser minha mamãe, então terá que ser
sua esposa, papai. O que te pareceria isso?
Ele a olhou muito sério.
—Parece-me muito bem.
—E não te incomodaria fazer isso por mim? —
perguntou a menina, apartando a cabeça e enrugando o
nariz quando a cadela se sentou e tratou de lhe lamber a
face.
—Não. Eu também quero, Pamela. Verá… amo à
senhorita Hamilton.
Pamela apartou à cadela com uma brutalidade
inusitada.
—Mas você me ama! —chiou.
—Claro que sim. —Adam se levantou para sentar-se
junto a ela, e a pôs no regaço—. É minha filha. Minha
primogênita e sangue de meu sangue. Nada mudará
nunca isso, Pamela. Sempre será a primeira garota de
minha vida. Mas todos podemos querer a mais de uma
pessoa. Você amava a mamãe e a mim, verdade?
—Sim — respondeu ela sem estar muito segura—. E
ama a Pequenina.
—Pois bem. Eu amo a ti e à senhorita Hamilton. E se
ela se casar comigo e tivermos outros meninos, eu
também os amarei. E você sempre será minha filha mais
velha, sempre será alguém especial.
—Vai vir conosco em seguida? —perguntou Pamela
—. Vou ensinar a Pequenina. Surpreenderá quanto
cresceu, verdade? E vou contar que não me pus doente
no navio. Não o diga, papai. Deixe a mim.
—De acordo — acessou ele, apoiando a face contra
a testa de sua filha—. Ainda não o pedi, Pamela. Pode
ser que diga que não. Pode que esteja contente onde
está, ensinando em sua escola e vivendo em sua casa.
Mas o pedirei—-riu—. Não você. Deixe-me a mim.
—De acordo — acessou a menina, e saltou de seu
regaço para incomodar ao cão, que se tinha colocado
pacificamente em outro assento.
O duque se reclinou nas almofadas e os observou.
Era possível que dissesse que não. De fato, pode que já
estivesse casada, com o Daniel ou com outro cavalheiro
do povo. Não devia albergar muitas esperanças.
Um ano antes, ou onze meses antes, quando
finalmente se liberou da pior parte do pesadelo da dupla
morte de seu irmão e sua esposa, estava seguro de sua
resposta, embora se tinha visto obrigado a manter-se
afastado dela durante o ano de luto. Só se tinha
permitido essa breve carta.
Mas onze meses pareciam uma eternidade. Pamela
e ele passaram todo o tempo viajando e haviam visto
muitos lugares e tinham conhecido a muitas pessoas.
Parecia que tinha passado mais de um ano desde que
tinha saído da Inglaterra.
Recordava as palavras que lhe havia dito ela. Como
poderia as esquecer? E recordava a paixão e o
desenfreio com as que se entregou a ele aquela única
noite antes que partisse. Tinha revivido aquela noite
muitas vezes em sua imaginação. Naquele momento
acreditou que o amor dela, como o que sentia ele,
duraria toda a eternidade e mais ainda. Mas agora não
estava tão seguro.
O amor de Fleur não tinha durado tanto como o seu:
tinha-o odiado e rechaçado com motivo. Não foi até os
últimos dias, quando viajaram juntos em busca da tumba
do Hobson, que se começou a sentir mais cômoda com
ele, que cercaram amizade e se fizeram amantes.
Naquelas circunstâncias era compreensível que
tivessem terminado nos braços um do outro.
Pode que para ela não fora mais que isso. Embora
seus sentimentos tivessem sido autênticos naquela
ocasião, possivelmente se tinham desvanecido nos dias
e semanas posteriores a sua marcha. Adam devia estar
preparado para que se comportasse com frieza e lhe
envergonhasse sua visita.
O duque fechou os olhos e se deixou arrulhar pelo
movimento da carruagem. Não devia esperar que tivesse
pensado nele a cada momento do dia todos os dias,
possivelmente não de maneira consciente, mas sim no
mais profundo, onde se encontram os sentimentos e os
significados. Não devia esperar formar parte de seus
sonhos, tão acordada como adormecida. Não devia
esperar que fora como ele.
Fleur. Veria-a o dia seguinte se não se mudou.
Por fim. Ah, por fim. Os mais de quinze meses
transcorridos desde que lhe tinha apertado as mãos,
despediu-se e subiu a essa mesma carruagem para
afastar-se dela pareciam mais compridos que nunca.
Muito mais distantes.
Fleur estava ensinando a ler a um grupo dos
meninos pequenos enquanto Miriam dava uma aula de
geografia a outros.
Mas ao sorrir a um menino para que emprestasse
outra vez atenção à classe, Fleur duvidou que ninguém
estivesse aprendendo muito. Havia uma excitação
contida na sala de aula. Não fazia falta grande coisa para
excitar a aqueles meninos. Foram dar um passeio pela
natureza assim que terminassem as aulas da manhã, e
levariam o almoço. Encontravam-se no fim de setembro,
e era a última oportunidade que teriam de fazer uma
saída como aquela antes que fizesse muito frio.
Miriam e ela acompanhariam aos meninos, assim
como Daniel, que ia freqüentemente à escola a dar uma
aula de religião, e o doutor Wetherald, que tinha
mostrado uma notável preferência pela Miriam nos
últimos meses, em que pese a que Miriam afirmava com
seu tom alegre e direto de sempre que só eram amigos.
Embora Fleur se fixou em que sua amiga se ruborizava
ao dizê-lo.
Fleur pensava que não faziam falta tantas carabinas
adultas, mas para outros também resultava um prazer
sair a tomar ar fresco ao campo durante uma tarde
inteira.
Quando bateram na porta se esfumou a escassa
atenção que conservavam ainda os meninos. Fleur sorriu
e meneou a cabeça enquanto os olhos do grupo de
meninos, e sem dúvida também suas mentes, seguiram
a Miriam até a porta.
—Está aqui a senhorita Hamilton, por favor? —
perguntou uma voz jovem e educada.
Fleur se deu a volta na cadeira.
—Temo-me que não há ninguém com esse nome,
querida —respondeu Miriam—. Você é…?
—Pamela! —Fleur se levantou da cadeira e
atravessou correndo o sala de aula, estendendo os
braços—. Aqui estou! OH, quanto cresceu, e quanto me
alegro de vê-la! —inclinou-se para abraçar à menina e
em seguida se precaveu da presença de uma figura alta
e morena a uma certa distância, apoiada na carruagem
com escudo.
—Papai diz que o ar do continente me tem feito
crescer —explicou a menina—. Pequenina está na
carruagem, senhorita Hamilton. Espere-se a ver quanto
cresceu. Já não é Pequenina. E não me pus doente ao
voltar no navio da França, embora algumas damas sim.
Fleur se agachou diante dela.
—Estou muito orgulhosa de você — disse—. E vai de
caminho a casa? —Não se via capaz de elevar a vista
para o homem que se encontrava a poucos metros de
distância nem que lhe tivesse ido a vida nisso.
—Sim — respondeu Pamela—. Tenho muitas
vontades. Mas papai queria vir aqui primeiro. Não posso
lhe dizer por que. Só lhe direi que não me pus doente no
navio.
Fleur riu. E de repente se precaveu do murmúrio de
vozes que havia detrás dela. Endireitou-se e se voltou.
—Esta é Lady Pamela Kent — explicou, agarrando à
menina da mão e fazendo-a entrar no sala de aula—.
Acaba de voltar de um ano de viagem pela Europa.
Estes são a senhorita Booth, Pamela, e todos os
meninos do povo.
Lady Pamela sorriu e se aproximou de Fleur. Miriam
fez uma reverência a Lady Pamela.
—Bom dia, Sua Excelência —saudou—. Meninos,
façam, uma reverência a Sua Excelência, o duque de
Ridgeway, por favor.
E Fleur virou a cabeça bruscamente e por fim o olhou
aos olhos. Sentiu um impacto imediato. Era mais alto do
que recordava, tinha o cabelo mais negro, o olhar mais
penetrante e escuro, o nariz mais proeminente, e a
cicatriz mais marcada. Tinha suavizado todos aqueles
rasgos na lembrança. Sentiu um broto inesperado do
antigo medo.
Fez uma reverência para ele.
—Sua Excelência… — murmurou.
O duque inclinou a cabeça para ela e para a classe
em geral.
—Bom dia — saudou o duque—. Lamento
interromper as aulas, mas se conhecer os jovens e como
funciona sua mente, diria que sou o homem mais popular
do povo neste momento.
Ouviram-se os risos das meninas, e gargalhadas dos
meninos. Parecia que as aulas tinham terminado. As
meninas admiravam abertamente a roupa moderna da
Lady Pamela e ela as olhava tímida, mas interessada.
Os meninos olhavam ao duque um tanto intimidados.
Adam conversava educadamente com a Miriam. E então
chegou o doutor Wetherald, e também Daniel, e Lady
Pamela olhou suplicante ao seu pai.
—Posso, papai? —dizia—. Por favor! Posso?
—Não está vestida para ir a uma excursão — disse
ele sorrindo.
—Mas tenho outros vestidos. Posso me trocar. Por
favor, papai! Por favor. Senhorita Hamilton, posso ir? Por
favor?
Miriam a olhava fixamente. Ao que parece tinha sido
ela a que tinha sugerido que Pamela desfrutaria da
excursão da escola, embora Sua Excelência tinha que
saber que pensavam partir durante várias horas.
—Só seu papai pode lhe dizer que sim — disse
Fleur, sorrindo ante o rosto bonito e ansioso de sua
antiga aluna—. Mas sei que se divertiria muito.
Um minuto depois, depois de conceder-se o a
permissão que tinha suplicado, Lady Pamela saiu a toda
velocidade para a carruagem.
—Vou levar a Pequenina —chiou—. Posso, senhorita
Hamilton?
Miriam ria.
—Cuidarei muito bem dela, Sua Excelência. E meu
irmão e o doutor Wetherald estarão comigo para me dar
uma mão. Com três adultos bastará. Não
necessitaremos que venha, Isabella. Será melhor que
fique entretendo a Sua Excelência, dado que terá que
esperar várias horas.
Fleur abriu a boca para falar e voltou a fechá-la.
Parecia que os meninos eram incapazes de falar de
outro modo que não fora gritando. A sala de aula ficou
muito tranquila quando todos os meninos e os três
adultos partiram.
—A senhorita Booth é muito amável — comentou o
duque de Ridgeway a suas costas—. Pamela falará
desta excursão durante semanas.
—Sim. Alegro-me por ela, Sua Excelência.
—Sua Excelência? —murmurou ele.
Fleur olhou por cima do ombro e fixou os olhos em
seu lenço.
—Podemos ir a outra parte? —perguntou ele—. A
sua casa, possivelmente?
—Sim. Está perto.
Fleur fechou a escola e caminhou a seu lado pela rua
até a casa. Não se tocaram nem disseram uma só
palavra.
Capítulo 28

Ela depositou os livros que levava e o observou


enquanto ele deixava o chapéu e as luvas na mesa.
Fleur se voltou e o conduziu até um salão quadrado e
acolhedor, que tinha o pianoforte em uma esquina e fazia
que o resto dos móveis da habitação parecessem
pequenos.
As coisas estavam indo como ele tinha pensado,
como tinha chegado a acreditar. Não estava realmente
contente de lhe ver: estava incômoda e envergonhada.
—Não quer sentar-se, Sua Ex…? —Fez um sinal
com a mão para uma cadeira, mas se deteve e se
ruborizou.
Estava muito bonita. O duque ficou sem fôlego assim
que a tinha visto agachar-se para abraçar a Pamela.
Mais bonita inclusive do que recordava. Tinha elegância,
um sentido da dignidade mais pronunciado do que o
tinha sido antes.
Ele era muito consciente de sua própria feiúra, de
sua cicatriz. E tinha que resistir conscientemente o
impulso de voltar-se de lado para que ela não a visse.
—Vou chamar para que tragam um pouco de chá, e
algo de comer. É a hora do almoço. Esteve viajando do
café da manhã, não é assim? Deve ter fome.
—Não tenho — afirmou ele—. Então, está contente?
A escola parece um lugar alegre. É uma casa
acolhedora, e maior do que esperava.
—Sim. — sorriu—. Estou contente. Estou fazendo o
que eu gosto de fazer, e estou rodeada de meus amigos.
— Alegro-me. Tinha que vir para me assegurar.
—Obrigado. Foi muito amável por sua parte. Deve
estar desejando voltar para casa, depois de passar tanto
tempo fora.
—Sim. Tenho muitas vontades.
Mas ao mesmo tempo o duque pensou que não se
preparou nada bem. Acreditava que sim. Acreditava que
estava preparado para o pior. Mas o coração lhe pesava
terrivelmente no peito e não podia pensar em seu lar ou
no inverno que morava, nem nos anos que viriam a
seguir.
Não sem Fleur. Willoughby não seria seu lar sem ela,
nem valeria a pena viver o futuro assim. Não depois de
um ano de esperança no que tinha tratado de convencer-
se de que não o era absolutamente.
Fleur cavou uma almofada em uma cadeira sem que
realmente fora necessário e se sentou, embora ele não
tinha aceito seu convite a sentar-se.
E ela pensou em algo que dizer e manteve uma
expressão cortesmente alegre.
Durante um mês inteiro — durante onze meses—,
ela se tinha convencido de que não iria, de que se
esqueceria dela, de que lamentaria as precipitadas
palavras de amor que lhe tinha dirigido. Mas mesmo
assim durante no mês anterior o tinha esperado uma
hora atrás de outra e se havia dito a si mesmo uma e
outra vez que não iria.
Ele estava de pé em seu salão, com as mãos detrás
das costas e uma expressão escura e taciturna, olhando
como se desejasse estar em qualquer outro lugar da
terra exceto onde se encontrava.
Tinha ido movido pelo sentido da responsabilidade,
porque havia dito que iria. Adam e seu maldito sentido da
responsabilidade! Voltava a odiá-lo, e desejava que
estivesse a um milhão de quilômetros de distância.
—Não lhe incomodaram nem Brockehurst nem sua
família? —perguntou-lhe friamente.
—Não. Não soube nada do Matthew, embora
comenta-se que poderia estar em qualquer parte da
América do Sul ou a Índia. A prima Caroline está aqui,
mas acredito que tem previsto visitar sua filha durante o
inverno.
—E o reverendo Booth e sua irmã seguem sendo
amigos deles. Alegro-me.
—Sim.
Fleur desejou com todo seu coração que Lady
Pamela não tivesse ido à excursão. Desejou que partisse
sem mais demora. Desejou poder começar a viver o
resto de sua vida.
O duque pensou que oxalá não lhe tivesse permitido
a Pamela partir com os outros meninos. Oxalá houvesse
algum modo de poder partir imediatamente. Pensou que
poderia partir à estalagem do povo, mas se sugerisse tal
coisa pensaria que não tinha sido bastante hospitaleira.
—Obrigado pelo pianoforte — disse finalmente Fleur
—. Não tive oportunidade de agradecer-lhe antes. Você
queria que ficasse na sala de aula, claro, mas tanto
Miriam como Daniel pensaram que estaria mais seguro
aqui.
—Já sabe que era um presente para você sozinha —
comentou ele.
E observou pensativo como ela se ruborizava e se
olhava as mãos agarradas. Tinha os nódulos brancos da
tensão.
O duque recordou o tato de suas mãos, deslocando-
se delicadamente sobre as feridas do flanco. Recordou
que lhe havia dito que era bonito. E recordou que lhe
havia dito que o amava. O duque sentiu uma tristeza
quase entristecedora. Dirigiu-se para o pianoforte e ficou
de pé olhando as teclas. Pulsou uma.
—Está bem afinado? —perguntou.
—É um instrumento bonito. Minha posse mais
apreciada.
Ele sorriu, e levantou a vista para o vaso que estava
em cima do pianoforte e a carta apoiada nele. Alargou a
mão e agarrou a carta.
—Esta é a carta que lhe enviei.
—Sim. —Ela ficou em pé, ruborizando-se, e
estendeu a mão para agarrá-la.
—Leva aí quase um ano?
—Sim. —Fleur riu entrecortadamente—. Deve levar
quase um ano. Não sou uma pessoa muito ordenada.
O duque jogou uma olhada a seu redor, para a
habitação ordenada e limpa. E sentiu um novo e
injustificado broto de esperança.
—Por quê? —perguntou-lhe—. Por que a tem aí?
Ela se encolheu de ombros.
—Eu… não sei — disse bobamente. Não lhe ocorria
nenhuma explicação razoável. Pensaria que era uma
estúpida. Que humilhante resultaria se adivinhasse a
verdade. Fleur sorriu, alargando ainda a mão para
agarrar a carta—. Vou guardá-la.
—Fleur?
Ela deixou cair a mão. Havia-lhe dito fazia pouco
mais de um ano que o amava e que sempre o faria.
Deveria envergonhar-se agora por haver dito a pura
verdade? Devia proteger seu orgulho a qualquer preço?
—Porque minha posse mais apreciada não é só o
pianoforte — acabou dizendo, fixando a vista no botão
superior do colete do cavalheiro—. Isto também. Deixo-
os juntos.
—Fleur — murmurou ele.
—Não tenho nada mais de ti. Só estas duas coisas…
Fleur desejou poder ver o botão com claridade, e
desejou que ele não a visse com lágrimas nos olhos.
Mas não lhe envergonhava amá-lo. Havia dito que o
amava e assim era.
Observou o borrão de cor branca enquanto ele
deixava a carta a um lado. Viu que seu colete se
aproximava. E sentiu suas mãos lhe emoldurando o
rosto.
Fleur tinha tenso o queixo. E a face como se fosse
feita de pedra. Mas as lágrimas lhe brilhavam nas
pestanas. E logo estavam também as palavras que havia
dito. E a carta, colocada no alto do pianoforte quase um
ano depois de havê-la recebido.
—Meu amor — sussurrou ele, lhe sujeitando a face.
Se pensava rechaçá-lo, que assim fosse. Mas saberia
que ele tinha completo com sua palavra, que ainda a
amava mais que à vida e que sempre o faria.
O duque observou como a garota se mordia o lábio
superior, alargava as mãos trementes para lhe tocar o
colete, e voltava às retirar.
— Eu te amo — disse ele—. Nada mudou nos quinze
meses que aconteceram desde que lhe disse isso. E
nada mudará nunca.
—Ah! —exclamou ela. Não conseguia dizer outras
palavras e sabia que não seria capaz das pronunciar
embora desse com elas. Estendeu a mão para tocá-lo
outra vez e descobriu que suas mãos se tornaram tão
incontroláveis como sua voz.
Mas não tinha que encontrar as palavras. Nem
recuperar o controle. Ele inclinou a cabeça para a de
Fleur, seus lábios se tocaram e Adam os abriu sobre os
dela. Deixou de lhe acariciar as faces e passou um braço
pelos ombros e o outro ao redor da cintura. Fleur se viu
atraída por sua força, e não lhe importou estar tremendo.
Fleur. Doce, cálida e feminina. Seu corpo se arqueou
sem vergonha para o seu, abriu os lábios para os dele, a
boca para sua língua, e passou os braços ao redor do
pescoço.
Fleur. Permitiu-se o luxo de albergar a esperança.
—Eu também te amo — sussurrou contra seu ouvido.
Mantinha os olhos fechados. Não devia pensar mais no
orgulho—. Não deixei de te amar nem sequer um
instante. E a carta não está sempre apoiada no vaso. Só
de dia. De noite está debaixo de meu travesseiro.
—Porque o pianoforte não cabe aí dentro? —
perguntou ele mostrando um humor tão inesperado que
Fleur soltou uma gargalhada. Ele se somou às risadas e
a abraçou—. Fleur —disse finalmente ao ouvido—, não
acredito que esta seja a primeira vez que me tenha rido
em um ano, não? Mas o parece.
Ela jogou a cabeça para trás e o olhou diretamente
pela primeira vez.
—Acreditava que não voltaria a ver-te nunca — disse
ela—. Quando me rompeu todos os ossos da mão
aquela manhã, subiu-te à carruagem e te partiu. Acreditei
que não voltaria a ver-te jamais.
—Bom, isso não deveria representar uma tragédia.
—O duque sorriu—. Não é que eu seja grande coisa,
não?
—Não sei. —Fleur inclinou a cabeça—. Não o crê?
Para mim é o mundo.
—Um mundo escuro e marcado.
—Um mundo lindo. Um rosto com caráter. O rosto
que mais amo deste mundo.
De repente, surpreendeu-a agachando-se e
agarrando-a em braços e sentando-se com ela no regaço
em um sofá.
—Adivinha o que tenho no bolso — a tentou.
—Não sei. —Ela o rodeou com seus braços e lhe
sorriu—. Uma jóia preciosa que me trouxeste.
—Não. Volta-o para tentar.
—Uma caixa de rapé.
—Não tomo essas coisas. Nem sequer te aproxima.
—Um lenço de linho.
—No outro bolso. —O duque voltou a rir, e Fleur com
ele—. O que tenho no outro bolso?
—Não sei. Como vou saber?
—Deveria. O que é o que, de entre todas as outras
coisas, asseguraria de trazer quando por fim viesse a
ver-te?
Ela meneou a cabeça. O sorriso começou a apagar-
se de seu rosto.
—Uma licença especial — revelou por fim, ficando
também sério de repente—. Uma licença especial, meu
amor, para poder te fazer minha sem esperar mais
quando conseguir que diga que sim.
—Adam — murmurou ela, tocando a face que tinha a
cicatriz—. OH, Adam.
—Fará-o? Casar-te-á comigo, Fleur? Sei que não
sou nenhum prêmio, e que sabe algumas coisas
desagradáveis de mim. Mas teria meu amor e minha
devoção incondicional durante o resto da vida. E seria
duquesa, se isso supuser um estímulo, e senhora do
Willoughby. Fará-o, Fleur?
—Adam…—começou ela, repassando a cicatriz do
olho até a comissura do lábio—. Pense bem, por favor.
Pensa no que sabe de mim, pelo que fui, pelo que sou.
—Uma prostituta? —disse-o tão bruscamente que
Fleur se voltou a olhá-lo horrorizada e se ruborizou
completamente—. Vou explicar te algo, Fleur, e quero
que me escute atentamente. Sybil tinha tuberculoso. É
muito pouco provável que tivesse sobrevivido a este ano.
Mas de todos os modos poderia ter vivido este ano, ou
parte dele. Poderia ter disposto de meu apoio e inclusive
de meu afeto e de todo o amor de Pamela. Mas sofreu
uma decepção cruel em sua vida e outra menor o
passado verão. Perdeu a vontade de viver. Negava-se a
aceitar o consolo que tentava lhe proporcionar. Ignorava
quase de tudo a Pamela. E finalmente, quando soube da
morte do Thomas, antes que eu, tirou a pouca vida que
ficava.
—Pobre dama — lamentou Fleur—, sinto-o
muitíssimo por ela, Adam.
—E eu também. Mas me escute, Fleur. Faz mais de
um ano te encontrou em uma situação espantosa. Devia
escolher entre deixar que pusessem uma corda ao
pescoço ou aceitar um matrimônio infernal se voltava
para casa, ou morrer de fome se seguia escondida. Mas
acaso cedeu e te compadeceu de ti mesma? Não. Lutou,
e fez tudo o que tinha que fazer para sobreviver. Fez o
mais terrível do mundo. Fez-te de prostituta. Compadeço
a minha esposa, mas te admiro mais do que posso
expressar.
Ela tragou saliva.
—Porque sabe que foi o único — protestou a garota
—. Como se sentiria se tivesse havido uma dúzia mais?
Duas dúzias? Mais ainda?
—Isso não deve importar — respondeu o duque—.
Antes de me casar, Fleur, deitei-me com mais de uma
dúzia de mulheres. Não posso nem contar as mulheres
com as que me deitei. O que te parece isso?
Ela ficou em silêncio um momento.
—Isso não deve importar — acabou dizendo.
—E isso faz que deixe de me querer? —perguntou
ele.
—Não. —Apoiou uma palma sobre sua face – Isso
está no passado, Adam. Não posso controlá-lo e você
não pode trocá-lo. Não me importa seu passado.
—E não me importa o teu. Será minha duquesa,
Fleur?
—E Pamela?
—Parecia um pouco preocupada com que estivesse
disposto a me sacrificar te convertendo em minha
esposa só para que pudesse ser também sua mamãe —
explicou—. Tive que lhe assegurar que eu também
queria. — O duque sorriu.
—Adoraria ser sua mãe — recordou Fleur.
—Sim, e sempre a amará. Teremos que nos
assegurar de que nunca esqueça a Sybil, Fleur. E
esperar que essa lembrança distorça de algum modo a
verdade. Esperar que recorde a Sybil como uma mãe
sempre atenta, além de bonita e indulgente. Nunca será
sua mãe, mas pode ser sua madrasta. E posso te dizer
por experiência que é possível as amar a ambas. Tenho
algumas imagens débeis de minha mãe e sempre
associei essas imagens com o amor incondicional. Mas
queria muito a minha madrasta, a mãe do Thomas.
Fleur baixou a cabeça à altura do ombro dele.
—Casar-te-á comigo?
—Sim — respondeu ela, e fechou os olhos. Não
havia nada mais que dizer. Como expressar com
palavras uma felicidade que enchia tanto a uma pessoa
que quase resultava dolorosa?
O duque apoiou a face na testa de Fleur e fechou os
olhos. E sentiu que já não havia necessidade de dizer
nada mais no momento. Era tal e como recordava a noite
em que fizeram o amor. Podiam comunicar-se de
maneira mais perfeita através do silêncio que através da
imperfeição das palavras.
—Tenho que te confessar algo — acabou dizendo
ele—. Temia receber tua carta dizendo que estava
grávida, mas ao mesmo tempo esperava essa carta e me
iludia que chegasse. Vê como poderia te haver feito
sofrer com meu egoísmo?
—Chorei quando soube que não o estava —
acrescentou ela.
Ele riu em voz baixa e voltou o rosto dela para o seu
lhe agarrando o queixo com uma mão e a beijou
profunda e insistentemente.
—Estará grávida logo que seja possível — comentou
ele—. Esta noite, possivelmente?
—Esta noite? —riu ela apoiada em seu pescoço.
—Em nossa noite de bodas. É muito cedo?
—Esta noite?
—Podemos esperar se quiser. Podemos planejá-la.
Podemos celebrá-la em Londres se quiser, e que atira a
metade da aristocracia. Atrever-me-ia a dizer que
inclusive o rei assistiria se o convidássemos. Mas
preferiria celebrá-la hoje, Fleur. Poderíamos passar a
primeira noite em nossa casa. Tem uma habitação de
hóspedes para Pamela?
—Sim — respondeu Fleur, lhe tocando os lábios
delicadamente com um dedo—. Sonhei que te tinha aqui
comigo, Adam. Meus braços estavam tão vazios sem ti,
e a cama tão fria…
—Não estarão vazios esta noite, meu amor — a
tranqüilizou ele—, e a cama estará quente. E não terá
que sonhar mais. Tudo será real.
—Não terei que pôr sua carta sob o travesseiro esta
noite.
—Nem tampouco o pianoforte — interveio ele, e
ambos riram e se abraçaram.
—OH, Adam! —suspirou Fleur—. Estive tão só sem
ti! Pareceu-me uma eternidade.
Ele voltou a lhe sujeitar a face e se sorriram.
—Já não durará mais. Não mais solidão, Fleur, para
nenhum dos dois. Só nosso matrimônio, nossos meninos
e Willoughby. Envelheceremos juntos. Só nosso amor
eterno. —Baixou a cabeça e a beijou brandamente na
boca—. E além da eternidade.

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Mary Balogh

Nasceu em Wales, Grã-Bretanha e seus pais lhe


puseram o nome da Mary Jenkins. Teve uma infância
feliz junto com sua irmã, dois anos maior que ela.
Estavam acostumados a encher de histórias seus
cadernos e devoravam todos os livros que podiam.
Diziam que quando crescessem seriam escritoras, um
sonho que cumpriram.
Mary se graduou como professora de inglês e como
queria ensinar e viajar, foi ao Canadá, onde conheceu
seu marido em uma entrevista às cegas… antes de um
ano estavam casados. Em 1985 escreveu sua primeira
novela, Masked Deception, a qual ganhou o prêmio Rita
de novela romântica. Reuniu sua carreira como
professora de inglês com sua paixão pela escritura, até
que em 1988 se aposentou depois de vinte anos de
docência.
Na atualidade segue vivendo no Canadá junto com
seu marido também retirado. Segue lendo muito,
escutando música galesa, praticando ioga e dando
largos passeios matutinos. «A vida é muito boa… quem
diz que os sonhos não se voltam realidade. Podem fazer-
se realidade se tiver visão, esforço e um pouco de sorte,
bom, talvez, muita sorte.»
A pérola secreta

Uma fria noite no Londres Vitoriano, Adam Kent,


Duque de Ridgeway, decide contratar os serviços de
Fleur, uma jovem prostituta. Depois de fazer o amor em
uma sórdida estalagem, separam-se, mas Adam não
pode tirar-se da cabeça a jovem, estranhamente
inocente e educada, certamente uma moça de classe
alta que caiu em desgraça. Fleur está ao bordo do
desespero, tem cansado o mais baixo que podia
imaginar. Mas depois de seu primeiro e único cliente,
tem um golpe de sorte e a contratam para cuidar de filho
de uma família nobre. Pouco imagina que o pai do moço
não é mais que Adam, que decidiu mantê-la perto dele. A
relação que começou da forma mais inconfessável se
converteu agora em um jogo perigoso de desejo e
silêncios.
LHE VENDEU SEU CORPO…
Fleur tinha chegado até o próprio inferno aquela noite
em que vendeu sua virgindade a um estranho. Desde
que teve que escapar de sua casa acusada injustamente
de um crime que não tinha cometido, o mundo elegante
e cômodo no que tinha crescido se converteu em um
pesadelo de ruas escuras, humilhação e fome. Mas seu
demônio se converte em seu redentor, quando o mesmo
duque que comprou seus serviços lhe oferece um
trabalho digno, protege-a e a acolhe em sua mansão. A
jovem não pode evitar que nasça em seu interior uma
crescente atração por esse homem rude e de uma vez
sedutor, mas na mesma casa onde residem sua mulher e
sua família, seu amor parece impossível.
… E ELE CONQUISTOU SEU CORAÇÃO.
Adam acreditava que já não havia nada na vida que
pudesse lhe devolver a alegria. Certamente, não sua
própria imagem, cruzada pelas cicatrizes. Dado por
morto na guerra, perdeu todas suas propriedades e
também a sua prometida, Sybil, nas mãos de seu irmão.
Conseguiu as recuperar a ambas, mas jamais pôde
voltar a ganhar o amor de Sybil. Sua amargura lhe levou
a perder-se entre as prostitutas de Londres mas, de
forma inesperada, ali encontrou sua tabela de salvação.
Agora conseguiu arrancar a Fleur de um destino que não
merecia e levá-la a sua própria casa. Mas para poder
amá-la, terá que superar uma situação impossível e
sanar umas feridas que são muito profundas.

***
Título original: The Secret Pearl
Editor original: Signet Books
Tradução: Raquel Ferrer Herrera
Copirraite © 1991 by Mary Balogh
© da tradução 2007 by Raquel Ferrer Herrera
© 2007 by Edições Urano, S.A
ISBN: 978-84-96711-27-3
Depósito legal: B - 45.981 - 2007

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Mary BALOGH A pérola secreta

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