Você está na página 1de 224

Marcelo Bulhões e

Claudio Bertolli Filho


(ORGS.)
Prazeres Possíveis
Organizadores:
Marcelo Bulhões
Claudio Bertolli Filho

Conselho editorial:
Demétrio de Azeredo Soster • Universidade de Santa Cruz do Sul
Danilo Rothberg • Universidade Estadual Paulista
José Miguel Arias Neto • Universidade Estadual de Londrina
Marcos Tuca Américo • Universidade Estadual Paulista

Design e produção gráfica:


Romildo Sergio Lopes

P931 Prazeres possíveis [recurso eletrônico] / Marcelo Bulhões


e Claudio Bertolli Filho (Orgs.). – São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2019 224 p.

ISBN 978-85-7249-025-2

Inclui bibliografia

1. Prazer. 2. Cultura. 3. Subjetividade. 4. Comunicação.


5. Artes. I. Bulhões, Marcelo. II. Bertolli Filho, Claudio.

Copyright @ Marcelo Bulhões e Claudio Bertolli Filho


Cultura Acadêmica

Praça da Sé, 108 - 01001-900 - São Paulo SP


T 11 3242 7171 • F 11 3242 7172
www.culturaademica.com.br
www.livrariaunesp.com.br
feu@editora.unesp.br

São Paulo • 2019


Marcelo Bulhões e
Claudio Bertolli Filho
(ORGS.)
Sumário
Apresentação
9
PARTE 1: Preliminares

15 Prazeres errantes
Marcelo Bulhões

23 Percepção, psicanálise e estética:


contribuições sobre o prazer na feiura
Renan Siqueira Rossini; Érico Bruno Viana Campos

47 O prazer do consumo e da posse: força e fetiche


do produto e o anti-flâneur da alta modernidade
Romildo Sergio Lopes

PARTE 2: Representações nas


artes e na comunicação
69 Os tormentos do desejo e as vitórias
da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch

81 Do prazer na beleza: contemplação e sublimação estética


Flávia Arielo

103 Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela


O bem amado (1973)
Emilla Grizende Garcia

119 Prazeres perversos para além da aberração


e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral

135 Promessas de um grande prazer: a publicidade via spams


Claudio Bertolli Filho
PARTE 3: Outros prazeres

161 O prazer no universo acadêmico: possibilidades pelo


imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva

181 Reflexões sobre prazer e política


Vinícius Carrasco

199 O hedonismo de ver e ser visto: as selfies no esporte


como experiência de prazer para além do jogo
Ary José Rocco Júnior; José Carlos Marques;
Pedro Lucas Leite Parolini

220 Sobre os autores


Apresentação

O
prazer incomoda. Instalado em um terreno nebuloso arqui-
tetado tanto pelas experiências subjetivas quanto pelas re-
presentações coletivas, ele pode ser extraído das pequenas
e das grandes situações do cotidiano e, por estar em qualquer lugar,
não está em lugar algum. A fluidez e a instantaneidade da sensação
prazerosa definem sua condição surpreendente, enigmática e ambí-
gua. Surpreendente pela intensidade e enigmática pela dificuldade
de ser dissecada, racionalizada e transposta para o império do dizível.
Ambígua porque, mais do que em épocas anteriores, a contempora-
neidade impõe que o prazer seja incansavelmente buscado ao mesmo
tempo que multiplica as medidas que inibem e censuram os deleites
considerados afrontosos à moral religiosa, ao decoro público e ao que
se convencionou rotular de “politicamente correto”.
No entanto, a mesma cultura que penaliza os prazeres também abri-
ga amplos espaços de rebeldia, fazendo a história humana se confundir
com sucessivas tentativas de explicitação dos sentimentos e sensações
pautadas pela intensidade. Para além dos limites dos tratados médicos
e psicológicos, temos a nossa disposição textos “malditos” porque em-
penhados em discorrer despudoradamente sobre o prazer, além de
uma profusão de metáforas, iconografias, sons, exercícios corporais e
artefatos que invocam indiretamente o que é proibido.
As múltiplas faces do prazer levam à hierarquização das experiên-
cias realizadas em seu nome. Existem prazeres rotulados de “peca-
minosos” ou “grotescos”, especialmente os suscitados pelas práticas
sexuais, os quais devem ser confinados discretamente entre quatro
paredes, quase como uma experiência vergonhosa. Há também os
prazeres incorporados como “sublimes”, aos quais se concede dig-
nidade cultural e que frequentemente são explorados pelos artistas
“legítimos”.
O ambiente universitário reproduz em seu âmago os valores cul-
turais da sociedade, fazendo do prazer um tema estrangeiro e incon-
veniente para a maior parte dos pesquisadores. Indício desta situação
foi a sucessão de recusas de vários estudiosos frente ao convite para
participar desta coletânea, alguns deles afirmando que o assunto não
lhes interessava, mesmo que ele seja de interesse de todos. Outros
convocados seguiram uma trilha mais sutil, dispondo-se primeiramen-
te em participar da empreitada para algum tempo depois, alegarem
a sobrecarga de trabalho como impedimento para a realização da
tarefa comprometida.
Mesmo assim, houve também aqueles que enfrentaram o desafio
e permitiram a concretização deste livro. A primeira parte da obra
conta com textos que se destacam por distintos enfoques teóricos:
Marcelo Bulhões destaca os obstáculos e reticências de tratar do
tema privilegiado nesta coletânea, enquanto que Renan Rossini e Éri-
co Viana Campos enveredam pelas relações entre psicanálise, estética
e prazer e Romildo Lopes enfatiza oconsumo de mercadorias como
uma das fontes de prazer exaltada na modernidade tardia.
A segunda parte do livro refere-se às representações do prazer
nas artes e na comunicação. Flávia Arielo e Paula Vermeersch focam
o tema na pintura e Emilla Grizende analisa a questão do prazer no
mais típico produto da televisão brasileira: a telenovela. Na mesma
rota, Muriel Amaral explora o conteúdo de uma revista que foge aos
padrões convencionais da imprensa nacional e Claudio Bertolli volta-
-se para a análise de spams que exaltam o prazer a partir de drogas
potencializadoras da sexualidade masculina.
A última parte da coletânea agrega textos que apontam para as
situações prazerosas que se multiplicam no cotidiano e que ainda são
pouco avaliadas como temas de pesquisa, sobretudo pelos estudiosos
brasileiros. Lilian Silva discute o prazer como um dos atos fundamen-
tais da vida acadêmica, a realização de pesquisas, e Vinicius Carrasco
vistoria a prática política como ato prazeroso. Por fim, Ary Rocco, José
Carlos Marques e Pedro Lucas Parolini reportam-se a um dos hábitos
próprios dos dias atuais: as selfies.
Esperamos que a multiplicidade de enfoques apresentados instigue
novos estudos sobre o tema central desta obra e que a leitura desta
coleção de textos seja ela própria uma fonte de prazer e de reflexão.

Os organizadores.
PARTE 1

Pre
limina
res
15

Prazeres Errantes
Em cinco atos

Marcelo Bulhões

I
Tratar do prazer no ambiente científico-acadêmico parece ser um
problema. Será mera impressão ou o prazer e o desejo tornaram-
-se mesmo dificuldade nas últimas décadas na universidade? Pois não
raramente são considerados tema irrelevante. Chegam a ser evitados.
Transposto o vetusto saguão que leva aos corredores dos departa-
mentos de ensino costumam ficar do lado de fora. Falar de prazer em
sua acepção básica - de deleite, gozo - parece ser, de modo latente ou
explícito, sinônimo de torpeza.
O prazer e o desejo são temas que só parecem ter dignidade no dis-
curso acadêmico quando inscritos em chave negativa, apontados como
impossibilidade? (O exemplo mais notável provém, aliás, da área que
mais destacou a questão do prazer - no eixo em que ele é privilegiado,
a sexualidade: a psicanálise). O prazer parece só ter valimento quando
dele salta um feixe utilitarista ou pragmático, como na medicina?
16 Prazeres Possíveis

Há, todavia, lugar para os prazeres “nobres” - vertidos em estudos,


textos, eventos acadêmicos. Discutir, avaliar e afirmar o prazer do co-
nhecimento intelectual (o prazer de ler os Ensaios de Montaigne, o
Fausto de Goethe ou os Aforismos de Schelling; o prazer em dar aula
ou liderar um grupo de pesquisa) tem acento de respeitabilidade. Fa-
lar em prazer estético também é atitude prestigiada. Em outro vetor,
professar que se obteve prazer em uma viagem pelo Oriente, em uma
longa jornada por uma trilha na mata, em respirar o ar da montanha
ou escutar o silêncio gera aprovação - talvez por nesses casos se su-
gerir uma suposta experiência espiritual.
Mas expressar o prazer de fumar, o desejo de comer muita carne
de porco, de se embriagar - tais prazeres “grotescos” não recebem
aceitação. Dificilmente têm guarida como “objetos epistemológicos”.
Com o sexo - ressalvadas algumas áreas como a psicanálise e a bio-
logia - também. Tais “objetos safados” são sinônimo de atrevida irres-
ponsabilidade, espécie de travessura acadêmica? Parece que não nos
livramos da concepção grega, a qual foi reprogramada teologicamente
séculos à frente por Agostinho, cuja dicotomia corpo-alma é hierar-
quizadora, dando superioridade à alma - imortal, espiritual, eterna - e
inferioridade ao corpo - abjeta matéria perecível e efêmera.
Mas essa tácita censura e mal-estar não deixam de causar estra-
nheza, pois a vasta tradição filosófica produziu rolos de páginas que
se dedicaram diretamente ou tangenciaram a questão do desejo e do
prazer - nem sempre adotando tais substantivos: dos estoicos a Scho-
penhauer, de Epicuro a Nietzsche, de Schelling a Espinosa, de Sêneca
a Heidegger, de Thomas More a Hussell; em alguns, como em Platão e
Hegel, ocupando fundas escamas de inferioridade. Para Marx, o tema
do desejo praticamente não aparece. Fica, no máximo, nas entrelinhas.
É verdade que tais entrelinhas em Marx são suficientemente insti-
gantes para uma espécie de doutrina geral do desejo. Já para Freud,
desejo e prazer fazem parte da mira frontal de seus interesses. Mas
como território calamitoso e tenso. Para a “primeira” psicanálise - a
de matriz freudiana - a sexualidade torna-se a pedra de toque de sua
investida teórica segundo a notação de conflitos que se desencadeiam
no interior da incontrolável natureza pulsional. A psicanálise tornou-se
instância por excelência de auscultação das tramas e labirintos do de-
sejo, mirante privilegiado dos caminhos tortuosos aos quais o desejo
sexual encaminha (ou descaminha) aqueles que desejam: espaço dis-
Prazeres errantes • Marcelo Bulhões 17

cursivo por excelência das ranhuras da frustração, dando o flagrante


do terrível conflito entre as pulsões sexuais e as proibições da civiliza-
ção, o qual se traduz em mal-estar do indivíduo.
No campo das artes, do teatro e da literatura, prazer e desejo enla-
çados ao campo sexual inúmeras vezes tiveram que percorrer uma via
lacrimosa de reprovações e escândalos antes de serem incorporados
ao cânone: as narrativas do Marquês de Sade ou Laclos, os poemas
de Bocage, as obras de Matisse, Klint ou Schiele, o cinema de Pasolini
etc. É bem conhecida a trajetória acidentada da tela “A Origem do
Mundo” de Gustave Courbet, de 1866. Feita por encomenda de um
diplomata turco que teria pedido a retratação do nu feminino sem
meios tons, só foi exibida publicamente em 1995, no Museu de Orsay.
“Objetos corporais” da estética somente são admitidos na atualidade
por terem sido respaldados pelo cânone cultural do passado?
Bate-nos, pois, a indagação: persiste (e intensificou-se nos últimos
tempos) em diversos campos de estudo a estratégia a tendência de
deslocar o prazer para suas margens - tornado assunto transversal,
atalho da rodovia do saber para acessar outros interesses, mais “no-
bres”? Por que majoritariamente a universidade evita a dicção que
exalte o prazer e o desejo, não o acolhendo despregado de qualquer
dimensão “utilitária”?
Espécie de pudor?
Franciscanismo na universidade brasileira nas últimas décadas?

II
Diálogo fictício entre dois professores.
(Cena 1)
- Estou organizando um livro. Vou chamar colegas de diferentes
áreas para escrever. Você topa?
- Qual é o tema?
- Em termos epistemológicos...
- Qual é o tema?
- Prefiro lhe enviar por e-mail.
- O tema é segredo?
- Bem, é um pouco complexo. Penoso até.
- O tema é penoso?
- Não. O tema é ótimo. Penoso é falar assim, direto.
- Pode falar, poxa.
18 Prazeres Possíveis

- Tá bom. O tema é: o prazer.


- Hum... Interessante. E qual o alinhamento teórico? Perspectiva
gramsciana?
- Não.
- Já sei, claro, foucaultiana. O prazer dominado pelos discursos do
poder, da ciência médica, das instituições...
- Não.
- Então como será?
- Ainda não sei bem. Mas pretendo que o livro fale de prazer e de
desejo. Só prazer pelo prazer, entende?
- Hum. Olha, não sei não. Como você vai conseguir justificar a
relevância disso? E com que cara você vai aparecer para a chefe do
departamento?

(Cena 2)
- Olha, a respeito daquele livro. Sobre o prazer, lembra?
- Ah, você ainda está com essa ideia...
- Pois é. Pensei em convidar o Aristides, professor de História. Ele é
especialista em que mesmo?
- Capitalismo inglês, séculos XVIII e XIX. Período industrial. Proleta-
riado, aquele sofrimento todo.
- Poxa, pensei que fosse em Grécia. Acho que não vai rolar.
- Convide a Elizeth.
- A Elizeth? Mas ela é professora de Latim.
- Hum... Então vou convidar o Lázaro. É professor de Antropologia.
Sabe como é, professor de Antropologia gosta dessas coisas...
- Essas coisas?
- É. Prazer, desejo, uma sacanagenzinha...
- Mas o Lázaro é de Sociologia. Universidade para ele é coisa muito
séria.
- Vixe... Já sei, vou convidar a Mira.
- Opa, acho que ela topa. Se bem que ultimamente ela tem traba-
lhado somente com temas como empoderamento feminino, violência
contra a mulher, machismo, essas coisas. Acho que não rola prazer.

III
Não tenho dúvida de que a maior parte das ações de vertentes
emancipatórias fora e dentro da Universidade - feminismo(s), dis-
Prazeres errantes • Marcelo Bulhões 19

cussões sobre gênero e sexualidade - encampa uma série de avan-


ços. Mas talvez tenham produzido um efeito colateral. Creio que as
atuações discursivas da contemporaneidade que buscam desbastar
preconceitos e reivindicar o direito à pluralidade - apontando que
tanto as categorizações de gênero são construções sociais quanto o
próprio sexo - restringem as falas sobre desejo e prazer na esfera da
negatividade.
Tão necessária, a crítica da heterossexualidade normativa corre o
risco de chegar (se é que não chegou) à afirmação de particularis-
mos. Se no século XIX o prazer e o desejo sexual foram controlados
pelo discurso médico-prescritivista, a superação de tal teor convida-
ria a discursos que não o limitam à chave de protesto. Legitimar o
prazer e o desejo em vetor emancipatório requer que ele não fique
alocado, que ele não se aloje em nichos exclusivamente sob a rubrica
da denúncia da opressão.

IV
O prazer é uma experiência essencialmente tangível. Não dizível.
Dizê-lo é contorná-lo, ficar nas suas bordas. Ou melhor: conformá-lo.
Dizer sobre o prazer - mediação em um sistema de signos - é buscar
apreendê-lo. Aprisioná-lo?
Quem falar sobre o prazer presta uma espécie de testemunho?
(“Meninos, eu vi”!). O falante do prazer vive sua nostalgia?
Mas se essa parece ser uma condição da linguagem, sua inefável
desventura (a linguagem só pode testemunhar a “coisa”, nunca sê-la),
é de toda linguagem? Todo discurso não pode ser senão expressão
sobre a coisa, nunca ela mesma?
O prazer (como a paixão, a memória, o desespero) nunca é dizível?
Nem tanto.
Ou melhor, para dizer o prazer a linguagem precisa roçar a língua
do próprio prazer. (Narcisismo? Autoerotismo?) Precisa mudar seu
curso habitual. A linguagem precisa deixar de se comportar como
garoto de recado.
Tão necessário.
Tão banal.
Precisa abdicar daquilo que diariamente lhe cobram: ser comunicá-
vel. Precisa abandonar a necessidade de se “fazer entender”.
Trata-se de um gesto de recusa; de desobediência. De vibrante
20 Prazeres Possíveis

renúncia ao seu uso medíocre e serviçal.


Passa a ser vivência de prazer.
E como o faz?
Ela passa a desconstruir, desarticular, desmontar seus esquemas ha-
bituais. Passa a desarmar seu diagrama, desautomatizar seus códigos
rançosos, desconstruir-se. A linguagem lança-se a um jogo com seu
próprio corpo (com suas texturas e sonoridades). Ludus essencial;
marotagem, artimanha consigo mesma. Chega, enfim, aos limites da
própria representação.
Arte pela arte? De modo algum. Arte pela vida.
Somente assim ela deixa de ocupar aquela zona opaca, aquele vá-
cuo: a de simplesmente prestar contas sobre o mundo, ser mero tes-
temunho; dizer sobre.
Desautomatizar o mundo é empreitada de uma linguagem que não
se submete ao imperativo da comunicação. Empreitada do prazer.
Parece-me que existe um nome para isso: literatura.
Mais exatamente: poesia.

V
Em um tempo e mundo em que se escancaram os discursos e
gestos autoritários - censura e condenação moralista no Brasil a ex-
posições de arte e performances em 2017, patrulhamento ideológico
e intolerância à divergência de crenças no lugar da reflexão filosófica -,
onde o prazer encontra expressão? Em que lugar ou lugares ainda se
podem reconhecer seus contornos, sua fala ou seu silêncio - para além
do vetor negativo em que parece estar sendo apontado, das falácias
mercadológicas ou dos clamores desalentadores em que ele acaba se
obliterando?
O prazer - sua afirmação - ainda tem vez?
23

Percepção, Psicanálise
e Estética: contribuições
sobre o prazer na feiúra

Renan Siqueira Rossini


Érico Bruno Viana Campos

Introdução
Por que se interessar pelo feio? Grotesco, podre, sujo, repelente,
horrendo, asqueroso, abominável, obsceno, assustador, horripilante,
fétido, desprezível, monstruoso, repulsivo… Os sinônimos da feiúra
parecem evocar as piores sensações em nós e, normalmente, estão
associados a conteúdos que nos causam repulsa. Contudo, se essa
frase é verdadeira, como explicar então que, nos últimos anos, ve-
mos estratégias televisivas que apresentam de forma descarada tudo
aquilo que é grotesco, sujo e perturbador em busca de audiência? A
feiúra não é, aparentemente, repelida pelos telespectador, mas, sim,
consumida com prazer… Sem contar que, na vida cotidiana, estamos
envoltos de vários fenômenos considerados feios e que são vividos
dia após dia por nós: fome, guerra, terrorismo, assassinato, mutilações,
doenças, podendo expandir essa lista indefinidamente.
Como é possível que a feiúra persista próxima de nós se busca-
24 Prazeres Possíveis

mos dela nos afastar? Numeremos algumas hipóteses. Podem dizer que
mantemos com ela uma relação ambígua: não conseguimos derrubá-la
por completo, então aprendemos a suportá-la. Há quem diga que a
feiúra é simplesmente um erro de percurso no caminho de busca da
Beleza, um acidente na trilha da perfeição. Quiçá, podemos encontrar
quem associe a feiúra com os pólos demoníacos das religiões, sendo
o reverso da magnanimidade divina. Qualquer que seja a explicação,
na filosofia estética, nas ciências ou na vida ordinária, prevalece uma
concepção de feiúra que está automaticamente associada ao reverso
da beleza, do bom ou do justo. De uma forma ou de outra, a feiúra
aparece onde a beleza falta. Nesse trajeto, como se fossem conceitos
complementares, bastaria a definição do que é beleza para que a feiúra
estivesse também definida: se a beleza está relacionada à harmonia e à
proporção, cabe ao feio ser tudo que não é belo.
Tendo em vista que a feiúra ocupa papel marginal e secundário nas
correntes estéticas, abriu-se um abismo entre sua conceituação e sua
presença em nossas vidas. Frente a isso, podemos arriscar: e se pro-
puséssemos uma nova forma de olhar para a feiúra, tomando-a como
suficiente em si? Para que a feiúra possa passar da posição permanen-
temente velada aos olhos comuns e ocupar, cada vez mais livremente,
o cotidiano, podemos questionar quais são as influências que devem
atuar nesse modo de agir e ser. Esses apontamentos interessam, princi-
palmente, como pano de fundo para uma investigação mais íntima dos
indivíduos, de seus desejos, anteriores a uma análise social da feiúra,
ainda que essa apareça timidamente.
Partimos de uma hipótese: e se a profundeza da nossa alma, a parte
inacessível e temida do inconsciente, sentisse prazer em admirar o feio?
Evidentemente, nossos processos perceptivos - visuais, táteis, auditivos
etc. - estão imbricados nesse movimento de fruição e prazer: nossa
percepção influencia nossos processos associativos daquilo que experi-
mentamos? Como explicar o prazer na feiúra percebida? Embora pouco
conteúdo tenha sido escrito sobre a temática do feio, propomos com-
preender o feio a partir de sua perfeição por não assumirmos esse como
o pensamento corrente sobre as dimensões estéticas da vida. Por isso,
na tentativa de endossar esse outro lugar para ele, buscamos comple-
mentos teóricos no campo da Psicanálise, cujas formulações adentram
o campo da estética e promovem novos olhares sobre os fenômenos.
Sigmund Freud, o criador da ciência do inconsciente, não se ateve
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
25

necessariamente aos estudos estéticos sobre o feio (Gagnebin, 1994).


Na contramão, suas ideias estão adequadas àqueles pensadores que
propõem uma estética voltada para a beleza: “a felicidade na vida é pre-
dominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se
apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento – a beleza das formas
e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das
criações artísticas e mesmo científicas” (Freud, [1930]1929/1996, p. 90).
Para Freud, a beleza ocupa posição privilegiada entre as exigências da
civilização. Embora frívola e sem aparente utilidade, é de fruição inesca-
pável aos seres: “exigimos que o homem civilizado reverencie a beleza,
sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos objetos
de seu trabalho manual” (p. 99).
Em seu pequeno ensaio “A transitoriedade”, Freud já havia mostrado
que essa era sua forma de apreender a beleza no mundo. O texto trata
a impossibilidade de um poeta romântico apreciar a paisagem floreada
por saber que essa beleza se esvaneceria com o inverno. Contrapondo
essa visão, Freud demonstra que sua beleza se torna ainda mais valoro-
sa em decorrência de sua transitoriedade, aumentando o seu valor: “Se
existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá
menos formosa por isso” (Freud, 1916/2010, p. 249). Todavia, em uma
citação vultuosa para nossos fins, ele arrisca: “É raro o psicanalista sen-
tir-se inclinado a investigações estéticas, mesmo quando a estética não
é limitada à teoria do belo, mas definida como teoria das qualidades de
nosso sentir” (Freud, 1919/2010, p. 329).
Como todo homem de seu tempo, Freud foi fortemente influenciado
pelo caldeirão cultural do fin-de-siècle de Viena e as correntes de pensa-
mento da época: não dar crédito suficiente à feiúra está em consonância
com esses ideais. Mesmo não sendo um estudioso do tema, ele foi, defi-
nitivamente, um pensador que se debruçou no que pode ser entendido
com o lado feio do ser humano: os desejos incestuosos, as fantasias per-
versas, os tabus e muitos outros temas que não são, via de regra, belos.
Para expandir os horizontes das leituras sobre o feio, propomos revisitar
a teorização freudiana sobre a percepção, pontuando contribuições que
oferecem chaves de leituras ricas para o tema proposto.
Na obra freudiana, a percepção aparece “ora como função, ora como
o ato através do qual se exerce essa função ou, ainda, como resultado,
isto é, um conteúdo” (Botella; Botella, 2002, p. 147). O conceito é caro
para a teoria “pelo fato de que a percepção é uma noção situada nos
26 Prazeres Possíveis

limites da teoria analítica: os do psique-soma, os do psique-mundo ex-


terno” (p. 147). Ela é, para Freud, a borda entre aquilo que é do campo
psíquico e aquilo que se reflete na materialidade corpórea, dialogando
com o inconsciente, com as representações e com o corpo. Dessa for-
ma, a percepção não é desinteressada, isto é, não percebe o fenômeno
ingenuamente: ela traz consigo associações, temporalidade e dinâmicas
internas. Não obstante, todos esses processos estão em jogo quando
falamos sobre fruição estética.

A feiúra e suas múltiplas representações

Não é necessário um extenso levantamento bibliográfico para per-


ceber que a feiúra é um tema pouquíssimo explorado, qualquer que
seja o campo de estudo. Fica aquém do número de publicações sobre
a temática da beleza, ou então vem com ela relacionado. Afinal, os nú-
meros estão justificados pela História: desde a Antiguidade, os gregos
já consideravam a beleza como motivo de contemplação e estudo por
representarem a harmonia e a proporção. A arte buscou representar
os elementos belos, a perfeição, a razão áurea, a iluminação divina -
enfim, onde a beleza estivesse presente. E isso não se esgota: alguns
propuseram que o belo faz parte do princípio estético humano.
Para tentar subverter esse padrão, que encontra raízes nos mais
remotos tempos de civilização, devemos acompanhar esse retrospecto
na busca pelas representações da feiúra. Nessa empreitada, estamos
bem acompanhados de Umberto Eco (2015) e seu livro História da
Feiúra, que, valentemente, adentrou as profundezas do horripilante
para fazer um estudo detalhado dessa temática no galgar dos séculos.
Para efeito de análise, ele propõe três categorias para a feiúra: o feio
em si (“um excremento, uma carcaça em decomposição, um ser co-
berto de chagas emanando um cheiro nauseabundo”), o feio formal
(“desequilíbrio na relação orgânica entre as partes de um todo”) e a
representação artística de ambos.
Foi na filosofia da Grécia Antiga que os primeiros escritos ocidentais
sobre a feiúra apareceram. Segundo Platão (2010), a realidade sensível
é uma cópia infiel de um mundo superior, o mundo das ideias; os seres
terrestres são representações decaídas de um mundo inteligível, uma
“sombra” aparente de algo verdadeiro, superior e perfeito. Sob essa
perspectiva, o feio está presente na ordem do sensível e do universo
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
27

físico, uma vez que o mundo das ideias é perfeito. Ele foi ainda mais se-
vero com as representações esculturais, dizendo que elas seriam cópias
de um mundo feito de cópia - portanto, duplamente falho. Era a per-
feição ideal que o artista deveria almejar, não apenas a beleza física que
se apresenta aos olhos. Caminhando na mesma trilha, Plotino, outro
filósofo que se deteve ao estudo das artes, considerou que a matéria
era representação do mal e do erro, admitindo que a dimensão sensível
era a fonte de toda a feiúra. Esse prisma estreita as relações entre a
estética e a moral: tudo aquilo que é bom, é belo, enquanto o que for
mal, é feio. As proporções adquirem status moral e a busca pela beleza
se torna também uma busca espiritual.
Mas os gregos não consideravam, necessariamente, que o mundo
era todo belo. De fato, a mitologia grega é recheada de horrores e
maldade. A própria oposição entre apolíneo e dionisíaco já demonstra
que a razão é bela, enquanto as paixões são impuras. Esses elemen-
tos dualistas foram incorporados pela cristianismo, que manteve inú-
meras referências ao modelos de feiúra e horror da antiguidade. Por
um lado, a mitologia pagã foi motivo de falseamento por conta das
monstruosidades que apresentava; por outro, os cristão assumem o
solo terreno como um lugar de pecados e abominações, ostentando o
Paraíso como exemplo máximo de beleza e perfeição. Portanto, havia
um mundo belo de proporções, beleza e bondade, criado por Deus
a sua imagem e semelhança, e um mundo de criaturas horripilantes,
desproporcionais, existindo paralelamente (Eco, 2015).
Como conciliar a ideia de que o universo é belo e bom se existe
nele o mal e a deformidade? Quem tentou solucionar o embate foi
Santo Agostinho (Hinrichsen, 2016), dizendo que o feio não existe no
plano divino: o que existe é a corrupção de um bem precedente, de
tal forma que o corrompido sofre uma privação de valor que, antes da
corrupção, era positivo. Com a noção de pecado, imerge a feiúra e in-
completude do ser humano e a ordem bela dos cosmos está rompida;
para sanar essa problemática, criam-se mecanismos de controle, como
o castigo e a condenação ao inferno - uma das formas utilizadas para
restaurar a harmonia. Nesse sentido, seria impossível o mal e a feiúra
existirem, pelo menos enquanto ideia.
Alguns talvez se dêem por satisfeitos, mas é patente que a feiúra
existe como fenômeno, pode ser percebida e exerce influência em nós.
É o caso de conceber Cristo, flagelado na cruz, como belo. Mas essa
28 Prazeres Possíveis

aceitação não foi de imediato. Foi necessária uma maturidade medieval


para que o homem na cruz fosse considerado uma das fases da Pai-
xão de Cristo, sendo evocado através de simbolismos. Os sentimentos
passam a ser retratados como forma de padecimento e identificação,
estabelecendo uma espécie de erótica da dor, que interessa enquanto
laço do prazer frente à feiúra.
O martírio, a exortação da penitência, o inferno, o diabo e o pecado
tiveram fins moralistas e devocionais. Os cristãos eram conclamados
a se identificarem com a figura sofredora de Cristo para suportarem
suas próprias dores. Mais precisamente, o feio aparece no mundo cris-
tão com o Apocalipse de São João Evangelista. O texto, ao longo dos
tempos, não foi lido de forma alegórica, mas como uma narrativa literal
de coisas que vão acontecer, por isso Lúcifer se torna tão horripilante e,
ao mesmo tempo, uma obsessão.
Com a Reforma Protestante, o diabo adquire um estatuto moral,
identificando-se com os vícios dos quais se torna símbolo - o diabo da
dança, da luxúria, da bebida, da preguiça… As artes passam a represen-
tá-lo como um ser que poderia tanto vaguear pelo mundo, como viver
nos confins do inferno. São personagens carnavalescas, divertidas e insi-
nuantes, não remetendo ao demônio da tradição, mau demais para ser
levado a sério. O mundo dos prazeres terrenos passa a se relacionar
com o pecado e o inferno de modo que as imagens não representam
visões dos diabos, mas imagens dos vícios da sociedade.
A Idade Média foi uma época cheia de contradições (Huizinga, 2010).
Se por um lado o cristianismo endurecia sua doutrina na luta contra
os hereges, algumas atividades não pareciam incomodar o clero. Havia
lugares em que a prostituição era tolerada e até festas populares que
faziam vista grossa ao pecado. Este, como sinônimo do feio, trouxe con-
sigo uma série de situações que apenas denunciavam o pouco crivo da
igreja católica nos seus julgamentos. A literatura, a poesia erótica, as figu-
ras e esculturas davam um tom jocoso às proibições católicas, uma for-
ma de válvula de escape frente às repressões impostas pelas tradições
religiosas. Mesmo aqueles que exortavam a feiúra pelo pecado eram
capazes de suportá-la e conseguir algum proveito em seu nome…
O fenômeno da “caça às bruxas”, que se difundiu entre os anos de
1600 e 1650, teve expoentes católicos e protestantes na luta contra
todos aqueles que eram considerados hereges, pouco importando a
crença a ser adorada. No entanto, foram as curandeiras, feiticeiras e
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
29

bruxas as principais perseguidas em nome de Deus (Tosi, 2012; Hor-


sley, 1979). Suas representações são dúbias: tanto de mulheres feias
com caldeirões que roubam crianças para se alimentar, quanto mulheres
belas que se utilizam de sua aparência física para usufruto próprio. O
imaginário da época recheou esse fato de diversas roupagens, inclusive
dizendo que as bruxas, que normalmente eram velhas feias, poderiam
se transformar em criaturas de formas atraentes enquanto queimavam.
Muitas mulheres foram condenadas à fogueira por seus comporta-
mentos distoantes dos costumes da época, mas uma parcela apresen-
tava comportamentos um tanto quanto curiosos: paralisias, convulsões,
contrações faciais, voz alterada… Enquanto esses comportamentos
eram suficientemente claros de indicação de possessão demoníaca para
a corte da época, três séculos depois a psicanálise se inicia com o estudo
de mulheres histéricas. Traçando um paralelo temporal, é bastante pro-
vável que mulheres que foram sentenciadas à fogueira seriam atendidas,
por meio do método hipnótico, por Jean-Martin Charcot e, posterior-
mente, pelo método psicanalítico de Freud (1893-1895/2016).
Pensar que mulheres queimavam em praça pública e eram assisti-
das pela população como um espetáculo soa absurdo para os tempos
modernos. Para além dos motivos religiosos e políticos, quais eram as
motivações que levavam as pessoas às ruas para se deleitarem com
esses escândalos? Ao que tudo indica, esses anseios existem há milênios.
Desde os espetáculos romanos, impressionamo-nos com o horror. Seja
o Coliseu, as praças em que pessoas eram degoladas ou enforcadas, até
os acidentes automobilísticos causados nas estradas, parece que há uma
“disposição natural” para deleitarmo-nos com a tragédia. O cinema tem
um caráter importante nesse cenário. Compadecemo-nos menos com
os filmes de ação já que são mostrados como fictícios?
Com o período renascentista, a sátira passou a fazer parte da cultura
da época, no qual o terreno ganha prevalência sobre o divino. É o caso,
inclusive, da própria Loucura fazer uma crítica aos costumes do seu
tempo, no conhecido livro de Erasmo de Rotterdam (1509/2011). O
obscuro passa a ser um atributo orgulhoso dos corpos e a obscenidade
passa a tomar ares realistas. A genitália deixa de ser motivo de escândalo
e começa a ser representada em sua beleza. Na corte, isso se torna um
convite ao gozo.
No contexto do Romantismo, as refigurações estéticas são ainda
mais profundas e atingem os domínios do Sublime. De maneira geral, o
30 Prazeres Possíveis

sentimento de sublime acontece frente a um fenômeno que seja belo e


assustador, ao mesmo tempo, como a imensidão de uma montanha, ou
uma tempestade. A dubiedade desse sentimento foi matéria de estudo
no campo estético, principalmente no período Romântico, que concebia
a natureza de maneira peculiar. O sublime é uma expressão de grandes
e nobres paixões que colocam em jogo a participação sentimental, seja
do sujeito criador, seja do sujeito fruidor. O pathos, uma das fontes do
sublime, é condição congênita e sine qua nom para que se sinta a expe-
riência em questão. Cabe lembrar que pathos é a origem comum para
palavras como paixão, excesso, sofrimento, ligação afetiva…, indicando,
novamente, o caráter dúbio do terreno que estamos adentrando.
Na perspectiva setecentista, o sublime deixa de ser um aspecto es-
pecífico da arte para se associar às experiências relacionadas à natureza.
Nesse momento, o feio aparece como privilegiado, representado pelo
informe, doloroso e tremendo. A Natureza se torna objeto de gozo
para pintores, escritores e até religiosos, que encontram na experiência
frente às montanhas algo que eleva a alma a Deus e evoca a sombra do
infinito. Burke, Kant, Schiller, Hegel, Schopenhauer foram alguns pensado-
res que exploraram a temática do sublime (Parente, 2017): de maneira
geral, ele ocupa a posição de um lugar em que há deleite através das
sensações de medo e terror; é, também, uma experiência que propicia
a sensação de limite e finitude humana frente à grandiosidade terrena.
No século XVIII, deixamos a natureza para pensar as mudanças no
cenário urbano. Teares mecânicos, máquina a vapor; manufatura e in-
dústrias - a percepção do tempo se altera. O capitalismo se afirma e
surgem os proletariados, uma nova classe social, filha dos aglomerados
urbanos, em oposição aos endinheirados burgueses. O ideal de beleza
se altera e não custa muito para que alguns manifestem nostalgia pela
beleza anterior. De fato, a beleza não é mais a arquitetura gótica e nem
os retratos italianos. O choque da cidade foi também um caldo pro-
veitoso de inspiração, ainda que negativamente. Expoentes conhecidos,
como Dickens, Poe, Wilde, Eliot, fazem literatura criticando a indigência
do progresso e seus custos.
Com a massificação do mundo industrial, iniciou-se aquilo que é con-
siderado atualmente como cultura de massa. Todavia, não apenas os
bens de produção tornaram-se massificados, mas também a arte e a
cultura: por um lado, democratizou-se o acesso à arte; por outro, gene-
ralizou-se a fórmula artística e calou suas propriedades. Como forma
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
31

de evitar massificação, os artistas adotaram a “arte pela arte”, isto é, ela


devia existir enquanto marginal, fora dos centros que espremiam seu
suco. O lema era: “tudo já foi dito ou experimentado, tudo já foi feito
e resta apenas gozar com o que se herdou até então”. Quem ocupou
papel de destaque - como forma de chocar a sociedade do ferro e da
máquina - foi o feio, que passou a ser luxuoso e benquisto.
Esse movimento se tornou ainda mais radical no início do século
XX, quando o feio iniciou as mudanças estéticas que podemos con-
templar nos dias atuais. O mais importante: ele deixou de ser uma
bela representação de algo feio e se tornou uma feia representação da
realidade. A arte tomou ares realistas como método para escandalizar a
burguesia, mas seu efeito se alastrou para o público em geral. A crítica à
arte moderna se manteve, em grande parte, por degenerar o conceito
de beleza, elencando a feiúra como sua principal aliada. Surgem, nesse
período, movimentos revolucionários das estéticas tradicionais, como o
futurismo, que elogia os avanços tecnológicos; o cubismo, apresentando
influências africanas; o dadá, com a tentativa de quebrar com todos os
tipos de corrente que pudessem estar em voga. Com Duchamp, inicia-
-se o ready made, estética de remodelação da percepção de objetos
banais; Dalí e seus amigos surrealistas instauram a arte do inconsciente
e das situações oníricas com o surrealismo; Com Warhol, a estética se
torna reciclada, tanto do lixo, quanto de objetos da vida cotidiana da
sociedade burguesa.
Por fim, chegamos aos dias atuais. Com esse percurso, tentamos
demonstrar como o conceito de feiúra é relativo ao longo do tempo
e das diversas culturas. Quando nos deparamos com a descrição das
musas inspiradoras de séculos atrás, ou com nus femininos, dificilmente
aceitamos os padrões de beleza. Essa sensação é contemporânea, não
importa a época.
O que antes era inadmissível, amanhã pode ser bem aceito e o que
é percebido como feio pode, em contexto adequado, simpatizar com
a beleza do conjunto. Mais do que nunca, o feio se tornou humani-
zado: está nas artes, vestimentas, peles, telas de cinema e fotografias.
Estamos diante de uma selva de contradições, com monstros horríveis,
mas amáveis; espectadores que buscam filmes de terror para se entre-
ter; literatura com histórias de horror... O cinema é fiel ao representar
monstros com um bom coração, misturando aquilo que faz jus à feiúra
com uma condição humanizada e sentimental.
32 Prazeres Possíveis

Em 1510, Bosch pintou um quadro com perseguidores de Jesus per-


furados por anéis nas bocas, porque essa era a representação conce-
bida para os bárbaros e piratas. Hoje, piercing e tatuagem podem ser
vistos como desafio geracional e, com certeza, não são compreendidos
como escolha delinquencial. Isso significa que o piercing e a tatuagem
não estão mais relacionados à moralidade e degeneração. Por outro
lado, a pós-modernidade comprime a individualização com os adereços
dos corpos, tendo em vista que tê-los é seguir um pouco o padrão.
Da mesma forma que os adultos vão às salas de cinema ver cenas que
antes só eram presenciadas em aulas de anatomia: o fazem porque é o
que todos fazem. Sem contar que, em momentos de repressão popular,
como foi o caso da ditadura, abusar das escolhas cinematográficas de
temas proibidos e moralmente vexatórios é encontrar uma “válvula
de escape” para os desejos próprios, estando em consonância com as
permissões públicas (Rossini, 2016).
O recurso ao feio deixa de ser uma denúncia da presença do Mal.
Atualmente, ele vende muito bem e é aceito como interessante e exci-
tante. O artista deixa apenas de representar, mas coloca o próprio cor-
po à prova de seus limites - a dimensão da carne entra como denúncia
das atrocidades dos nossos tempos, com um espírito lúdico e sereno.
Essas performances estão cada vez mais presentes no mundo artístico
e a tendência ao escândalo se firma na arte contemporânea. Hoje, um
mesmo sujeito aceita as propostas do Kitsch e, concomitantemente,
sabe escolher obras de artes enobrecidas. Chegamos a uma máxima:
a oposição belo/feio não tem mais valor estético - são duas opções que
podem ser vividas de modo neutro, como confirmam os comporta-
mentos contemporâneos.
Se não importam mais os padrões e a relatividade tomou conta da
vida atual, por que haveriam as pessoas de procurar por representações
corporais específicas? Nossa pergunta não é ingênua: a busca pelo belo
- e pelo feio - ainda é uma máxima estética na atualidade.

Caminhos perceptivos na psicanálise freudiana

Deixemos a temática estética em segundo plano, por alguns instan-


tes, para adentrarmos um campo rico de formulações filosóficas e cien-
tíficas que serão essenciais para nossa discussão: a psicanálise. Remeten-
do ao final do século XIX, Freud expandia os horizontes fisiológicos da
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
33

neurologia para pensar um modelo psíquico representacional, formado


por neurônios, intensidades enérgicas e memória (Freud, 1891/2014,
[1950]1895/2003). No virada do século, acreditando seu saber cientí-
fico revolucionário para época, foi lançado o livro que deu início, for-
malmente, à psicanálise: Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900/2013).
Nele, Freud postulou a existência de uma instância psíquica avessa aos
ditames da consciência, da qual pouco se sabe e se controla, mas que
abriga os desejos mais íntimos de cada um e influencia de maneira de-
cisiva como pensamos e agimos. Embora encontrado em todos nós, é
substancialmente singular, cada qual com suas fantasias e histórias. Essa
parcela psíquica, cujos fundamentos são estudados pela psicanálise, é o
inconsciente.
O modelo psíquico proposto por Freud é usualmente englobado
em dois períodos: a primeira topologia, que abriga desde 1900 até
1923, e a segunda topologia, de 1923 em diante. No primeiro mode-
lo, o psiquismo é dividido nas instâncias inconsciente, pré-consciente e
percepção-consciência; já, na segunda topologia, são o Eu, Supereu e Id
que constituem o psiquismo. Embora o conceito de inconsciente mude
ao longo da obra freudiana, é possível afirmar que ele é uma instância
psíquica onde se encontram os desejos sexuais, que, por imposições
culturais, não podem habitar a consciência do sujeito, estando recalca-
das no inconsciente, longe de acesso. Por meio do desenvolvimento de
sua ciência, Freud expandiu a forma usual de pensar o psiquismo, co-
locando em xeque o cogito cartesiano, tão caro às ciências modernas.
Com o avanço da teoria, foi possível pensar não apenas as psicopato-
logias da época e suas curas, mas o criador da psicanálise se aventurou
em análise de fenômenos sociais, na criação de uma mitologia própria e
de um campo epistemológico paradigmático (Campos, 2010).
Esse breve panorama nos permite adentrar o território da percep-
ção, eleito como via para tratarmos da feiúra. A explicação para esco-
lhermos a percepção é simples: através dela os conteúdos sensoriais
acessam o psiquismo e passam a habitá-lo como representações. Mais
do que analisar as relações entre representações, fantasias e afetos,
consideramos que a percepção é influenciada por algumas forças in-
conscientes e, por esse motivo, não é desinteressada; isto é, a própria
percepção, enquanto dinâmica pré-representacional, é carregada de
sentido e influencia a forma com que os fenômenos são apreendidos.
O percurso freudiano pelas ponderações sobre a percepção não
34 Prazeres Possíveis

é coeso: tomando o inconsciente como objeto a ser estudado, a psi-


canálise renegou a percepção ao segundo plano de sua teoria. Como
se não bastasse a problemática da transcrição dos estímulos em re-
presentações, Freud também trata de autopercepção, percepção en-
dopsíquica e percepção interna. Para ilustrar que pouco se debate o
estatuto perceptivo na psicanálise, o verbete “percepção” não aparece
isolado nos dois dicionários consultados que tratam da obra freudiana,
mas tomam-no relacionando ao conceito de consciência (Laplanche
& Pontalis, 2011; Hanns, 1996). Sabemos que percepção e consciência
não são equivalentes na obra freudiana, causando-nos espanto que suas
definições venham, na maioria das vezes, juntas.
A maioria dos textos freudianos trata sobre o inconsciente: desde
as primeiras obras até as publicadas postumamente. Seus modelos do
funcionamento psíquico e, portanto, do inconsciente, tem como esteio
a noção de representação, que consiste em uma imagem mnêmica de
um estímulo externo. Para Freud (1915/2010), um conteúdo só se tor-
na consciente quando as representações inconscientes podem ser assi-
miladas pela consciência e ganharam novas significações. Nesse sentido,
o processo de significação está às voltas com as dinâmicas representa-
cionais e suas relações com os sistemas psíquicos, uma perspectiva que
Freud manteve em todos os períodos de sua obra.
Em um esquema geral, que vislumbre de forma rasteira a obra freu-
diana, temos o seguinte cenário: Freud concebe o aparelho psíquico
majoritariamente como percepção e memória, herança de suas pri-
meiras formulações metapsicológicas, anterior ao modelo topológico
dos anos 1900 (Loffredo, 1999, 2017). Em “Sobre as Afasias” (Freud,
1891/2014), existe uma proposta específica sobre o que é perceber:
“Não podemos ter uma sensação sem associá-la imediatamente”. Em
outras palavras, perceber (ter uma sensação) é associar imediatamente
conteúdos temporais, extensos e internos, bastando estar dentro de
um determinado contexto para ter as percepções influenciadas. Ade-
mais, temos que os traços perceptivos são a matéria-prima do psiquis-
mo e a percepção é a primeira forma de subjetivação dos estímulos
(Freud, 1895/2003; 1900/2013; 1923/2011).
Em 1923, Freud postula que o Eu é construído como uma projeção
da superfície corporal, desmembrando-se do Id em decorrência das
exigências da realidade (Freud, 1923/2011). Na primeira topologia, as
relações entre percepção, as primeiras impressões dela no psiquismo
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
35

(tratadas como traço mnêmico) e as representações se dão na via pro-


grediente, obedecendo aos ditames do desejo. Isto é, a atividade do
desejo obedece às mesmas vias que a percepção, quando se pensa no
caminho que o estímulo percorre do mundo exterior ao mundo inter-
no. Por outro lado, na via regrediente, própria dos trabalhos oníricos,
ocorre o oposto: o desejo caminha das representações em direção
às percepções em busca de realizar-se por meio da alucinação de sua
satisfação (Freud, 1900/2013).
Esses fatores são importantes à medida que, na segunda topologia, a
libido do Id passa a influenciar diretamente nos processos perceptivos.
Se antes o desejo buscava a percepção para se satisfazer, nesse novo
modelo é a própria energia sexual que exerce autoridade nos proces-
sos perceptivos. Ao que nos interessa, esse caminho abre uma trilha
que não envolve necessariamente a dupla percepção-representação e
a ascensão à consciência dos conteúdos reprimidos para que haja sim-
bolização (Campos, 2014). A percepção passa a ser entendida como
um processo ativo de captação dos estímulos através dos ditames pul-
sionais, registrando os estímulos por meio das influências pulsionais e,
consequentemente, de forma mediada, indicando processos de subjeti-
vação próprios.
A leitura de Ayouch (2010) explicita a importância de pensar o jogo
próprio da percepção entre interno e externo, na obra freudiana, em
dois tempos: um primeiro, em que há um julgamento de atribuição, regi-
do pelo princípio de prazer-desprezar, com um ego-prazer e um ego-re-
alidade, formados a partir do objeto bom que é introjetado e o objeto
ruim que é expelido (Freud, 1915/2010); e um segundo momento, em
que o princípio de realidade põe à prova se esse objeto fantasmático
corresponde ou não ao real: “o objetivo primeiro e imediato do teste de
realidade é não encontrar na percepção real um objeto que correspon-
da ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele
está lá” (Freud, 1923/2011). Desse modo, a percepção está ancorada, em
um primeiro momento, dentro de um universo fantasioso: ”o mundo
então percebido e as zonas reveladas tinham sido primeiramente estru-
turados e construídos pelo prazer e o desprazer” (Ayouch, 2010, p. 508).
Esse será, portanto, o crivo de leitura para nossa análise. Poucos estu-
dos sobre a temática da percepção em psicanálise se atentam aos fatos
que foram expostos; a maioria dos trabalhos que trabalham a percep-
ção - mesmo que não como tema principal - tomam-na sob um viés
36 Prazeres Possíveis

bastante míope: como um processo passivo, como sinônimo da consci-


ência, como parcela de um processo cuja meta é representaciona.
Diante disso, é preciso adentrar um campo mais específico das pro-
duções freudianas, que englobam as percepções internas, endopsíquicas
e os sentimentos inconscientes. Os termos propostos são trabalha-
dos na obra freudiana com bastante semelhança, embora seja possível
perceber que percepção interna diz respeito a aspectos conscientes,
pré-conscientes e conscientes, cuja aplicabilidade é abrangente; per-
cepção endopsíquica indica a percepção de conteúdos recalcados que
produzem efeito na percepção consciente por meio do mecanismo
de projeção (Bandeira, 2016); por fim, acrescentamos que a noção de
sentimentos inconscientes são problemáticos em sua acepção, tendo em
vista que não são possíveis enquanto qualidade no inconsciente, já que
um sentimento é sempre da ordem da consciência perceptiva. Por sua
vez, eles aparecem na segunda topologia como afetos que não neces-
sitam de ligações com representações para se tornarem conscientes, o
que é rico para o nosso propósito.
Em “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, Freud (1901/1996) con-
sidera os efeitos dos conteúdos inconscientes sobre a forma como
o sujeito percebe algo em seu meio: “na percepção endopsíquica, o
que foi reprimido atua não como material transformado, mas sim do
modo como está presente no inconsciente” (Coelho Junior, 1999, p. 37).
O mesmo reaparece em “O Delírio e os Sonhos na Gradiva” (Freud,
1907/2015), em que o personagem principal do romance sofre dis-
torções perceptivas em decorrência de conteúdos infantis recalcados,
delineando as propriedades perceptivas mesmo que não sejam perce-
bidas conscientemente. Ao que tudo indica, toda percepção do mundo
externo é influenciada pelos fatores internos, “e é apenas por eles que
a realidade ganha sentido” (Coelho Junior, 1999, p. 37). As percepções
endopsíquicas aparecem vinculadas a processos afetivos, no texto “To-
tem e Tabu” (Freud, 1912/2012), para demarcar como elas são, assim
como as percepções sensoriais, projetadas para fora quando deveriam
habitar o mundo interno: é o que acontece no caso da hostilidade
recalcada que aparece na realidade externa em forma de tabu. Nesse
processo, a percepção endopsíquica está bastante próxima dos afetos e
tem sua aparição no mundo sem que haja sua deturpação por meio das
fantasias e dos conteúdos inconscientes. Ademais, o segundo modelo
topológico aparece mais aberto aos afetos e percepções quando Freud
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
37

coloca o Id como o caldeirão pulsional, inserindo as pulsões dentro do


aparelho psíquico. Portanto, o corpo passa a ocupar o psiquismo desde
o início. Esse movimento insere as forças pulsionais no núcleo psíquico,
permitindo pensá-las sem que sejam representadas (Campos, 2014).
Ao retomar as considerações sobre as percepções endopsíquicas,
em O Eu e o Id, Freud (1923/2011) se questiona sobre a relação entre
elas e o Eu, dizendo que elas exigiriam um cuidado especial: a dúvida
que surge é a possibilidade de se referir à consciência como um único
sistema superficial, o percepção-consciência. Cabe lembrar que, no mo-
delo do aparelho psíquico proposto nesse livro, quem se torna respon-
sável pelas percepções endopsíquicas são as partes inconscientes do
Eu. No caso dos afetos e da percepção, Freud (1923/2011) considera
que a percepção interna está vinculada às camadas mais profundas do
aparelho psíquico e à série prazer-desprazer; esta, por sua vez, se faz
sentir no Eu através da pressão que este exerce para resistir a ela,
tornando-se imediatamente consciência de desprazer. Portanto, para
que as sensações se tornem conscientes, elas devem atingir o sistema
perceptivo; mas, se o caminho é barrado, elas deixam de se produzir
como sensações, “embora o outro que a elas corresponde no curso da
excitação seja o mesmo” (p. 27). Pode-se pensar, então, no que Freud
chamou de sentimentos inconscientes.
Na primeira topologia, Freud está às voltas com os afetos incons-
cientes, e suas considerações, em 1915, demarcam uma dúvida quan-
to à possibilidade de existirem ou não, como bem destaca Loffredo
(2012), ao enfatizar o alcance da segunda parte da seguinte formulação:
“A rigor... não existem afetos inconscientes tal como existem ideias in-
conscientes. Mas bem pode haver, no sistema Ics, formações afetivas
que, como outras, tornam-se conscientes” (Freud, 1915/2011, p. 117).
No segundo modelo topológico, com as dinâmicas inconscientes do
Eu, os sentimentos inconscientes não precisam se ligar às representa-
ções para se tornarem conscientes, mas se tornam diretamente. Freud
não dá direções do que seriam essas sensações inconscientes, mas são
nodais para se pensar a relação entre percepções endopsíquicas e as
sensações inconscientes que se tornam conscientes sem necessitar de
ligações representacionais – tornando próxima a relação entre a exte-
riorização das percepções internas e as sensações inconscientes.
Como as porções inconscientes do Eu são responsáveis pela per-
cepção interna, essas são sentidas através de seus efeitos, e não de
38 Prazeres Possíveis

suas determinações. Mais ainda, Freud faz uma observação valiosa que
não coloca apenas as percepções internas na influência das externas,
mas o próprio corpo como um lugar do qual partem percepções in-
ternas e externas: “o Eu é sobretudo corporal, não é apenas uma enti-
dade superficial, mas ele mesmo a projeção de uma superfície” (Freud,
1923/2011, p. 32). Em uma nota adiciona em 1927, ele continua: “o Eu
deriva, em última instância, das sensações corporais, principalmente da-
quelas oriundas da superfície do corpo” (Freud, 1923/2011, p. 32).
Nesse percurso, cabe pontuarmos algumas contribuições sobre a
temática do inquietante, propostas em 1919. O Unheimliche é a sen-
sação de desconcerto advinda do familiar que se torna estranho e do
estranho que se torna familiar. Não é apenas o novo ou desconhecido
que causa o inquietante, tampouco o horror, o medo ou outras sensa-
ções, mas é o conteúdo familiar e íntimo que, em um dado momento,
se apresenta para o sujeito como estranho, um “estranho retorno do
íntimo” (Cheibub, 2004). A estranheza pode advir tanto de conteúdos
recalcados que reaparecem sob forma de percepções externas - estrei-
tando os laços do conceito com o de percepção endopsíquica -, quanto
de situações que não podem ser representadas pelo sujeito, embora
possam ser percebidas. No primeiro caso, sabemos que os conteúdos
recalcados são majoritariamente desejos sexuais cuja meta de prazer foi
interditada por alguma instância, como é o caso da paterna que instaura
a lei social. No segundo momento, temos um conteúdo de difícil assimi-
lação por diferentes motivos, como situações traumáticas que não po-
dem ser representadas e se transformam, prioritariamente, em angústia.
O que está em jogo é a percepção de um fenômeno que escapa ao
entendimento do sujeito: aos nossos interesses, um desejo interno proi-
bido que reaparece como percepção externa e, concomitantemente,
adquire um estatuto de proibição. Seria o caso de percebermos a feiúra
em relação com nossos desejos, aparecendo como uma inquietante
volta do nosso íntimo?

Psicanálise, percepção e o prazer naquilo que é feio

Se pouco foi dito sobre essa temática na filosofia, ainda menos é


encontrado no campo em que estamos circunscritos. Nesse cenário,
quem desponta é Muriel Gagnebin (1994), que traça um percurso in-
teressante sobre a análise da feiúra: em obras de arte, na ontologia, no
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
39

percurso filosófico, na religião… E emplaca um posfácio dezesseis anos


depois para referendar a posição de que pouco se debate sobre o
tema do feio e indica posições psicanalíticas sobre o tema.
Para efeito de análise, é benquisto começarmos a pensar a feiúra a
partir das ideias propostas por Freud em 1891, quando pouco se falava
sobre o inconsciente tal como o conhecemos atualmente, e avançar-
mos para suas considerações mais modernas. No começo, ele estava
interessado nos problemas de fala dos pacientes e coletou material
clínico suficiente para propor um funcionamento psíquico baseado em
esquemas complexos de representações e suas relações com a motrici-
dade. Nesse momento, perceber e associar eram dois termos distintos,
embora ocorressem simultaneamente.
Estar imerso em um cultura específica, em uma dada época, significa
estabelecer parâmetros referentes ao universo em que se está inserido.
Não à toa o curioso fato de que nossas percepções das cores vão se
alterando e se complexificando com o passar do tempo: o azul, por
exemplo, foi descrito pela primeira vez em meados do século XVIII. Os
modelos de beleza na Antiguidade são protótipos da beleza ocidental,
mas muito distantes do modelos de outras sociedades. Ainda assim, há
quem veja uma escultura grega e encontre um pouco mais de “gordu-
ra” representada nos corpos femininos quando comparado ao padrão
estético de beleza contemporâneo. Nesse sentido, perceber um corpo
é perceber um corpo associado com os padrões que estão em voga
na cultura e na época, acontecendo o mesmo com a feiúra. Se o corpo
esbelto dos rapazes musculosos era sinônimo da beleza suprema na
Grécia, há quem discorde que os halterofilistas sejam campeões em
concursos de beleza atualmente. Ao mesmo tempo, o corpo acima
do peso, enquanto execrado pela contemporaneidade, foi motivo de
contemplação na modernidade. Em uma época em que os índices de
natalidade são os mais inferiores da história, pouco parece absurdo que
o corpo da mulher ideal não seja representado com os quadris avanta-
jados, o que indica a excelência biológica para o recebimento da prole.
A cultura não influencia apenas os padrões estéticos, mas também
os desejos e as formas de expressá-lo. Os estudos da psicanálise nas-
ceram, inclusive, em um momento bastante peculiar: a Viena em que as
mulheres eram altamente reprimidas e não podiam expressar seus de-
sejos. O resultado desse imbróglio são sintomas corpóreos que não são
falências anatômicas, mas sintomas conversivos histéricos. A repressão
40 Prazeres Possíveis

do desejo faz com que a busca pela sua satisfação ocorra por outras
vias, como é o caso da via corpórea. Não poderia ser esse o caso da
percepção? Uma percepção prazerosa é necessariamente regida pelo
desejo, embora ela não apareça em sua forma habitual, mas deturpada
pelas dinâmicas inconscientes. No caso dos voyeuristas, por exemplo,
a percepção do falo, sua ausência, seus correlatos e diferentes formas
de expressão é essencial para que haja prazer e gozo. Não precisa-
mos ater-nos a classificações específicas: há particularidades que trazem
prazer aos sujeitos sem que eles saibam conscientemente os motivos,
como é o caso da fruição das obras de arte, de assistir a um filme, de
encostar em um corpo quente.
Se até então exemplificamos como é possível sentir prazer em per-
cepções que são genericamente agradáveis para todos, como fica a
feiúra? Arriscamos dizer que pouco importa, tendo em vista que pode
ser a fruição de uma obra de arte fora dos padrões estéticos vigentes,
de um filme sobre dissecação de cadáveres e um corpo tão quente que
dê calor. Todas essas situações envolvem prazeres que não estão dire-
tamente relacionados ao campo sexual, mas podem ser deslocamentos
desse. É o caso da percepção de um mictório que se altera quando
ele passa a ocupar um museu sob o título de “Fonte”, como ousada-
mente fez Duchamp. Esse mictório, que antes era percebido como um
instrumento para excreções, passa a ser percebido como obra de arte,
mesmo sendo esteticamente ordinário. Podemos ir ainda mais longe e
dizer que a escolha pelo mictório não parece ser ingênua: era necessá-
rio que o objeto causasse repulsa, vergonha, distância e estranhamento
para que fosse subvertido em um objeto de prazer.
A trilha para pensarmos as percepções internas e seus derivados
caminha na mesma direção. As primeiras percepções que constroem
a realidade psíquica são frutos dos processos de prazer e desprazer,
onde as boas sensações e percepções internas e externa são assimila-
das por introjeção e passam a fazer parte do mundo psíquico do bebê,
enquanto aquelas que causam desconforto são expelidas. Em um se-
gundo momento, é o teste de realidade que necessita reencontrar esse
objeto, não um objeto que corresponda a sua representação, para se
ter certeza de que ele não é um objeto fantasioso, criado pelas dinâmi-
cas de prazer. O que existirá, futuramente, serão investimentos desses
objetos que vão se agrupar em complexos fantasiosos, cujas energias se
expressam através do desejo.
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
41

Quando o teste de realidade se instaura e o psiquismo passa a fun-


cionar sob seu crivo, as dinâmicas de bom/ruim e dentro/fora perdem
forças para uma estrutura mais organizada, que consegue suportar ob-
jetos ruins ao invés de excretá-los. Freud fala em fases do desenvolvi-
mento da libido e esses momentos corresponderiam à fase oral, em
que o psiquismo é mais arcaico e trabalha com oposição de duplos, e
a fase anal, mais organizada. Nessa, o bebê passa a sentir prazer com a
retenção e excreção das fezes, investindo-a de afeto quando dirige-as a
uma figura amada. Quando se passa para as fases seguintes de desen-
volvimento da libido, inevitavelmente existe uma operação de castração,
que reprime o desejo e faz ele regredir ao ponto anterior de fixação,
na fase que ele era satisfeito. O ponto de fixação da fase anal é comum
a todas as personalidades obsessivas, regendo como o psiquismo vai
trabalhar com a libido e realizar as fantasias.
Esse ponto nos interessa à medida que o obsessivo está, inevitavel-
mente, preso nos movimentos de retenção e excreção, em última ins-
tância, das fezes. Na criança, isso aparece de forma bastante ilustrativa:
basta pouco para que uma massa de modelar se torne um correlato
das fezes e seja arremessada no analista. De forma um pouco mais ela-
borada, isso aparece na arte sob outros aspectos: Marquês de Sade, por
exemplo, escreveu diversas vezes sobre as relações sexuais envolvendo
escatologia. A feiúra dos excrementos e fluídos corporais assume novas
roupagens quando escritas por sua pena e seus livros são amplamente
consumidos e estudados mundo afora. As percepções, nesse caso, exer-
cem o papel antipredicativo do prazer quando, em sua atividade, trazem
consigo projeções de conteúdos internos recalcados. Não é apenas na
relação que os conteúdos estabelecem com a fantasia que esses fatores
aparecem, mas a própria percepção já carrega marcas desses impulsos
reprimidos, que tem o prazer como seu lastro. Quando Freud assume
que não existem sentimentos inconscientes, mas que pode haver afe-
tos inconscientes que se tornam conscientes como as ideias, podemos
inferir que se tratam dos processos secundários, incluindo a percepção.
Independente da repressão do desejo, a sua meta é a satisfação e seus
destinos visam o prazer: mesmo que as fantasias sejam escatológicas
(ou qualquer outra proibitiva e englobada pelo campo da feiúra), elas
aparecem projetadas na realidade sob um aspecto aceitável e são incor-
poradas pelo sujeito, deslocando o objeto de seu desejo para algo que
possa ser assimilável.
42 Prazeres Possíveis

O desfecho final fica por conta das relações entre a feiúra e o in-
quietante. Parece ser esse o eixo que mais pode contribuir para a nossa
discussão, por ter sido explorado por Freud e tratar diretamente do
prazer e dos conteúdos estranhos. O inquietante é um conceito que
se refere a algo - podendo ser uma situação, uma pessoa, uma percep-
ção - que não se remete ao misterioso, mas ao estranhamente familiar
daquilo que sempre foi conhecido. Curiosamente, Freud indica que os
sinônimos da palavra Unheimliche (desconhecido) em outras línguas
apontam para paradoxos, coincidindo com seu oposto, Heimliche (fami-
liar). Para que algo se constitua como inquietante, é necessário que ele
tenha sido, anteriormente, familiar, e não apenas ser fora do convencio-
nal. Nesse ínterim, algo aparentemente incompreensível carrega consigo
uma sombra muito conhecida. “Unheimlich seria tudo o que deveria
permanecer secreto, oculto, mas apareceu” (Freud, 1919/2010, p. 338).
A literatura fantástica e os filmes de terror estão repletos de cenas que
causam estranhamento: autômatos que não conseguimos distinguir se
são dotados de vida ou não, a percepção de situações contínuas, que
se repetem automaticamente, e parecem impossíveis de escapar. Cabe
ressaltar que não são todas as situações aterrorizantes que evocam
a sensação de estranhamento: é necessário que ela seja, lá no fundo,
muito bem conhecida. Isso envolve nossas fantasias e desejos proibidos,
que, familiares por habitarem nosso íntimo, mas desconhecidos por não
serem conscientes, assustam quando percebidos.

Encaminhamentos finais

O percurso traçado permite algumas amarrações férteis na tentati-


va de referendarmos os diferentes pontos que elencamos. O primeiro
dele, que foi o ensejo para nossas discussões, é referente ao conceito
de feiúra. Fica evidente que a feiúra pode ser lida através de seu interior,
o que a afasta de outros valores estéticos aos quais ela é geralmente
relacionada. Entretanto, é inegável que a Beleza encontrou mais inte-
ressados ao longo do tempo e tem uma produção respeitável sobre
o assunto. Na tentativa de afastá-las, procuramos demonstrar como a
feiúra tem características próprias que são independentes, como, por
exemplo, as imagens de Cristo humanizado, flagelado na cruz, apelando
para a comiseração dos fiéis em busca de identificação. O apelo da ima-
gem estava estritamente relacionado com a piedade: a feiúra subverteu
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
43

os padrões de devoção e, através do que chamamos de erótica da dor,


o fiel pôde se identificar com o sofrimento de Cristo para encontrar
destinos para seus desejos conflitantes. No caso da caça às bruxas,
a dinâmica é um pouco diferente: o prazer adquire matizes sádicas,
satisfazendo-se no sofrimento daquelas que são a encarnação do mal.
Talvez, o imaginário da bruxaria seja recheado de projeções de desejos
reprimidos, na medida em que suas figuras personificam tanto o cas-
tigo para aquelas que vivem as fantasias proibidas, como aquelas que
são castigadas no lugar de outras, uma espécie de “bode expiatório”
e, exatamente por isso, essas outras são com elas identificadas - nesse
aspecto, a fogueira é o clímax da realização de um desejo.
No campo da psicanálise, fizemos um panorama conceitual da teoria
freudiana e de seus teorizações sobre a percepção. Nosso intuito foi
demonstrar como a discussão sobre a percepção é bastante insipiente
na temática psicanalítica e, como tentativa de expandir esse horizon-
te, pontuamos maneiras de pensá-la deslocada das concepções usuais.
Para tanto, foi preciso rever a teorização em busca dos caminhos em
que ela pode ser pensada fora de suas dinâmicas com as representa-
ções. Encontramos uma faísca, principalmente, nas conceituação das
percepções internas e seus correlatos inconscientes, quando esses apa-
recem na realidade externa sob aspectos da projeção de conteúdos
internos. Sem passar por representações, os sentimentos inconscientes
se tornam conscientes - e a percepção emplaca uma função similar. Por
fim, vislumbramos como o inquietante se relaciona com a percepção
e permite um gancho para pensar a feiúra: com a formação do duplo,
torna-se estranho aquilo que era familiar, enganchando essa sensação
na formação de angústia.
Para finalizar, entramos nos meandros da psicanálise e da feiúra,
sempre perpassando o tema pela chave de análise da percepção. Ini-
cialmente, dissemos que a percepção influencia a noção de feiúra por
se constituir em uma determinada época e cultura, estando as per-
cepções imbricadas nas associações; ademais, partimos para a análise
das projeções de desejos em situações internas e exemplificamos
como essas questões aparecem nas artes; por fim, indicamos conside-
rações sobre o campo do inquietante, onde expusemos as relações
da feiúra com o prazer.
Nesse movimento, é interessante apontar que a percepção e a feiúra
ocupam posições marginais nos campos em que estão inseridos. Ainda:
44 Prazeres Possíveis

majoritariamente, aparecem relacionadas com outros conceitos! Fize-


mos um duplo trabalho de afastamento dessas noções de seus correla-
tos e a sedimentação de uma trilha alternativa como forma de valorizar
suas contribuições próprias. Ao que tudo indica, estética e psicanálise
são passíveis de cruzamento sob muitas facetas - cabe a humildade de
promover esse encontro, também, com seus conceitos marginais.

Referências

AYOUCH, T. Desmentindo as falsas comparações: do corpo perceptivo ao corpo


fantasmático. Rev. Filos., Aurora, v. 22, n. 31, p. 495-513, 2010.
BANDEIRA, M. L. Percepção e fantasia: delineamentos a partir da metapsicologia
freudiana. 2016.Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universida-
de de São Paulo, São Paulo.
BOTELLA, C; BOTELLA, S. Irrepresentável: mais além da representação. Porto Alegre:
Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul/Criação Humana, 2002.
CAMPOS, E. B. V. A Posição singular da psicanálise no campo dos saberes e práticas
psicológicas. In: Ferreira, A. A. L. (Org.). A pluralidade do campo psicológico: principais
abordagens e objetos de estudo. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, p. 143-179, 2010.
CAMPOS, E. B. V. Limites da representação na metapsicologia freudiana. São Paulo:
Edusp, 2014.
ECO, U. (Org.). História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2015.
CHEIBUB, W. B. O Unheimliche freudiano: interfaces entre psicanálise e literatura.
In: KATZ, C. S.; KUPERMANN, D.; MOSÉ, V. (org). Beleza, feiúra e psicanálise. Rio de
Janeiro: Contra Capa Livraria Formação Freudiana, 2004.
COELHO JUNIOR, N. E. Inconsciente e percepção na psicanálise freudiana. Psicolo-
gia USP, v. 10, n. 1, p. 25-54, 1999.
FREUD, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Traba-
lho original publicado em 1901)
FREUD, S. Mal-Estar na Civilização. In: Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obra originalmente escrita em 1929/Obra pu-
blicada em 1930)
FREUD, S. O Inconsciente. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. (Trabalho original publicado em 1915)
FREUD, S. A Transitoriedade. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. (Obra originalmente publicada em 1916).
FREUD, S. O Inquietante. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras,
2010. (Obra originalmente publicada em 1919)
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
45

FREUD, S. O Eu e o Id. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
(Trabalho original publicado em 1923)
FREUD, S.Totem e Tabu. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
(Trabalho original publicado em 1912)
FREUD, S. Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen. In: Obras Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015. (Trabalho original publicado em 1906)
FREUD, S. Estudos sobre a Histeria. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016. (Obra originalmente publicada em 1893-1895)
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2013.
FREUD, S. Projeto de uma psicologia. In: GABBI JUNIOR, O. F. Notas a um Projeto
de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
(Trabalho original publicado em 1950/redigido em 1895)
FREUD, S. Sobre as Afasias. In: GARCIA-ROZA, L. A. Afasias. Rio de Janeiro: Ed. Zahar,
2014. (Trabalho original publicado em 1891)
GAGNEBIN, M. La fascination de la laideur. Seyssel: Champ Vallon, 1994.
HANNS, L. A. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago
Ed, 1996.
HINRICHSEN, L. E. A experiência estética segundo Santo Agostinho: beleza, unidade,
conversão e transcendência. Civitas Augustiniana, 3, 33-65., 2016.
HORSLEY, R, A. Who were the witches? The social roles of the accused in the Euro-
pean witch trials. Journal of interdisciplinary history, vol. 9, pp. 689-715, 1979.
HUIZINGA, J. O Outono da idade média. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LOFFREDO, A. M. Em busca do referente, às voltas com a polissemia dos sonhos: a
questão em Freud, Stuart Mill e Lacan. Psicologia USP, v. 10, n. 1, p. 169-197, 1999.
LOFFREDO, A. M. Anotações sobre a leitura freudiana da angústia. Tempo psicanalí-
tico, v. 44, n. 1, p. 105-130, 2012.
LOFFREDO, A. M. Um texto freudiano surpreendentemente esquecido. Estilos clin.,
v. 22, n. 1, p. 166-184, 2017.
PARENTE, A. M. Sublimação e unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.
PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA, 2010.
ROSSINI, R. S. Pornochanchada: um sintoma social. In: BERTOLLI FILHO, C.; AMARAL,
M. E. (orgs). Pornochanchando: em nome da moral, do deboche e do prazer. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2016.
ROTTERDAM, E. Elogia da Loucura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
TOSI, L. Mulher e ciência: a revolução científica, a caça às bruxas e a ciência moderna.
Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 10, p. 369-397, 2012.
47

O prazer do
Consumo e da Posse:
força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade

Romildo Sergio Lopes

A felicidade de encontrar uma roupa que nos veste bem ou uma


promoção de cadeiras do designer Charles Eames em um site, o prazer
de ostentar uma marca de luxo ou um aparelho eletrônico de última
geração: tomar coisas para si é um ato de prazer que não necessita de
uma busca muito árdua para encontrar os personagens da vida real que
possam falar empiricamente sobre o assunto. Pensar sobre o prazer de
consumir e, de forma subsequente, possuir algo sempre traz à men-
te um dos contos de Clarice Lispector que constrói de forma muito
perspicaz essa relação: A Felicidade Clandestina. Nesse conto, narra-se a
“saga” de uma menina que é ávida leitora, da promessa de ter o livro até
finalmente possuí-lo. Passando da excitação a uma marcha sonâmbula
de espera e uma dor auto imposta e obstinada até o gozo de se reunir
ao seu objeto de desejo. Assim, igualmente, pretende-se nesta discussão
tratar o consumo não apenas como uma fonte de prazer e gozo, mas
também como um percurso que não está livre de dor e percalços. Só
48 Prazeres Possíveis

que não o fazemos de forma “clandestina”, mas pública.


Walter Benjamin (1997), baseando-se em Fournel em sua análise da
poesia de Baudelaire, descreve o flâneur (“aquele que flana, caminha e
passeia”) como a figura do espectador urbano moderno, um investiga-
dor da cidade. Mais do que isso, era uma marca da alienação urbana e
do capitalismo. O sentido de flanar conduz a uma travessia pela cidade,
não somente a física; mas também, a criada pelo espaço sígnico que
habita, na medida em que somos construídos também por relações
imaginárias. Embora o seu olhar seja de distanciamento, ele é antes de
tudo um “observador que sente a cidade”, ele busca “asilo na multidão”.
Assim a flânerie é o meio pelo qual se pode contemplar a cidade sem
ser por ela integrado, pois esse caminhar investigativo na cidade trata de
refletir e compreender os fenômenos que a envolvem. Para Benjamin,
o flâneur encontrou o seu fim com a vitória do capitalismo de consumo.
Como esse caminhar reflexivo e desatento poderia sobreviver à carga
informacional das cidades contemporâneas, sempre a requerer nossa
atenção? Contudo há que se investigar o consumo por uma visão me-
nos dogmática.
Desde Marx, que seria a base para estudos sobre mercado, passando
pelos frankfurtianos até Marcuse, apresenta-se a noção de fetichização
do produto, transformando-o em mercadoria (Mancebo, 2002). Essa
transformação do produto em mercadoria tem por função afastar o
homem do real valor de troca do que é consumido, que antes era
ligado ao valor do trabalho e insumos para um valor de troca com-
plexo que liga o produto a uma função de uso abstrata, mais centrada
em satisfação e inclusão social, elaborada e naturalizada pelo aparato
comunicacional da indústria cultural.

Uma relação social definida, estabelecida entre homens, assume a for-


ma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (...) É o que acontece
com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo
a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do traba-
lho, quando são gerados como mercadorias. (Marx, 1980, p. 81).

A alienação social ocorre, segundo Baudrillard (1995), pela natura-


lização do consumo, não consumo de produtos e serviços, mas de
signos regidos por uma lógica própria de modo a estarem totalmen-
te ou desconectados com qualquer função ou necessidade definida. A
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
49

mercadoria é uma representação dinâmica de conforto e bem-estar,


afastando o homem de questões existenciais, para convertê-las em re-
lações associativas opressivas, fazendo o “ter” mais importante que o
“ser”. Temos aí a gênese das regras de ouro da comunicação e propa-
ganda: consomem-se benefícios e não produtos.
As abordagens do consumo como forma reflexiva e de auto identi-
dade tangencia estas discussões, sem de fato serem abordadas de forma
clara ou ao menos de forma a ver uma inflexão positiva em consumir.
Pensamos no estudo do consumo – entendido como “o conjunto de
processos socioculturais nos quais se realizam a apropriação e os usos
dos produtos” (Canclini, 1995, p.77)

(…) quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos


o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos de
nos integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de combinarmos o
pragmático e o aprazível. (…) ser cidadão não tem a ver apenas com
os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais, mas também com as
práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem
que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas
semelhantes de organização e de satisfação das necessidades. (Cancli-
ni,1995, p.35)

Essa definição de Canclini apresenta-nos a ideia de satisfação ainda


atrelada a “necessidades”, ou seja, resvala na questão que apresentare-
mos aqui de forma mais contundente: o prazer em consumir objetos
extremamente apoiados no design como valor de posse e signo de
identidade, sejam mercadorias ou produtos culturais. Essa tratativa já
começa com uma distorção do binômio clássico do design moderno:
forma & função. Produtos como smartphones, móveis assinados, roupas
e assessórios de grife e até produtos editorias. Vejamos duas definições
de design. Uma de Tomás Maldonado:

“Design é uma atividade de projeto que consiste em determinar as


propriedades formais dos objetos a serem produzidos industrialmente.
Por propriedades formais entende-se não só as características exterio-
res, mas sobretudo, as relações estruturais e funcionais dos objetos”.1

1
Proposta de Tomás Maldonado no Congresso do ICSID realizado em 1961 em Veneza.
50 Prazeres Possíveis

Numa abordagem mais contemporânea de outro designer de reno-


me internacional, o romeno Alexander Manu (2011): “Design é a ativi-
dade consciente de combinar, de modo criativo, invenção tecnológica
com inovação social, com o propósito de auxiliar, satisfazer ou modificar
o comportamento humano”.
Essas duas definições apresentam uma contradição que ainda hoje
gera controvérsia: uma que busca traçar um discurso institucional do
que é design e a outra uma noção mais abrangente tratando com lin-
guagem ou instrumentalização de linguagens. Contudo, ambos tinham
um pressuposto básico: para o design o homem é usuário e como tal
deveria buscar uma adequação entre matéria e sensibilidade de forma
a estabelecer uma relação. Dentro da lógica de mercado, contudo, ele é
também um consumidor, mas a relação de consumo não deveria vir a
priori como função dominante. Quanto mais se exerce a pressão sobre
o produto para que em sua ação de tocar uma sensibilidade e fomentar
uma relação de uso e prazer subjetivo de posse, para uma ação objetiva
de venda, mais se perde o usuário em função do consumidor. Temos
uma interpenetração do campo do marketing e publicidade no design.
Lipovetsky (2007) divide o consumo moderno em três fases essen-
ciais: a) a fase I se inicia em 1880 e vai até a Segunda Guerra Mundial e é
marcada pela implantação de uma infraestrutura de transporte e comu-
nicação, aumento de produtividade devido às máquinas de fabricação
contínua, linha de montagem, insurgência do marketing e publicidade
como nova abordagem a esse novo consumidor como uma estratégia;
surgimento das marcas e implantação de grandes magazines que alte-
ram o perfil urbano e a maneira de expor os produtos, em especial de
moda; b) a fase II é marcada pela economia fordista e inicia-se por volta
de 1950, estabelecendo o modelo puro do consumo de massa.Tem por
características diversos produtos se tornarem acessíveis a um grande
número de consumidores, em especial os bens duráveis como carros e
eletrodomésticos, antes exclusivos à elite. Nesta fase o marketing tem
por estratégia buscar as diferentes camadas sociais e os aspectos socio-
culturais. A rápida circulação de mercadorias inicia-se e a obsolescência
planejada torna-se fato. Desejos e anseios são estimulados visando a
individualização do consumo; c) a fase III tem início por volta de 1970 e
chega até os dias de hoje. Abrange os aspectos mais subjetivos e emo-
cionais. Lipovetsky fala que vivemos uma “felicidade paradoxal” com a
abundância de mercadorias e a grande maioria vivendo em precarieda-
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
51

de. Paradoxal também porque a marca traduz uma apropriação pesso-


al, uma busca da individualização assim como um desejo de se integrar
em determinados grupos, mas, ainda mais importante, transforma o
produto em experiência de um prazer pessoal, muito característica do
que ele chama de “hiperconsumo”. Sobre essas questões trataremos
na sequência.

Céu e Inferno do eu: cinco etapas do consumo

Passa-se agora à exposição de cinco passos ou elementos presentes,


em maior ou menor escala, em um ato de compra. Tais apreciações
podem nos assomar de forma tão corriqueira que não nos damos
conta, ou ainda, são ignoradas em questões automatizadas no ato do
consumo, como quando abastecemos o carro, ou enfadonhamente
empilhamos itens básicos no supermercado ao fim de um dia exaus-
tivo. Esses elementos são mais perceptíveis nas compras recreativas
de produtos com os quais temos uma relação mais afetiva, mesmo
que sejam produtos básicos. Mas tornam-se evidentes na compra de
produtos ligados à moda e design, apêndices quase orgânicos da nossa
identidade social.
Entendamos como moda não apenas peças de vestuário, mas todo
produto que se apresenta como tendência de consumo a priori, ou
seja, que já está em processo de incorporação aos gostos e hábitos,
mas também às tendências presumidas: lançamentos que são apostas
do mercado, criadores, pesquisadores e consultores a participarem de
uma fatia significativa do mercado. De forma geral, as apresentações
desses produtos são extensivas pelos aparatos comunicativos da pu-
blicidade, relações públicas e até jornalismo. Os cinco elementos são:
a) desejo e impulso; b) tempo de ação e demanda reprimida; c) prazer
no ato da compra; d) prazer da posse; e) naturalização e obsolescência.
Numa trajetória similar à proposta pela psicanálise que vai da punção
ao gozo.

• Desejo e impulso - a construção da marca.


Todo ato de consumo parte de uma necessidade subjetiva que te-
mos de dar sentido ao logo do processo. Uma sensação de fome pode
transformar-se numa gama sem fim de possibilidades de consumo. A
esse sentido podemos chamar de desejo. John Milton (1948. Canto I)
52 Prazeres Possíveis

em Paraíso Perdido traz no primeiro verso do seu poema épico a es-


sência clássica do desejo: “Do homem primeiro canta, empírea musa, a
rebeldia – e o fruto, que, vedado, com seu mortal sabor nos trouxe ao
mundo, a morte e todo o mal na perda(...)”.
João Francisco Cabral mostra a ideia explorada pela tradição filosó-
fica e a psicanálise parte de Plantão em o Banquete e aponta a noção
de desejo como falta. “só podemos desejar o que não temos!” Sócrates
define o amor como sendo a busca da beleza e do bem:

Quem ama, deseja algo que não tem. Quando se tem, não se deseja
mais, ou se se deseja, deseja manter no futuro, o que significa que não
o tem. E todos só desejam o melhor, ninguém escolhe o mal voluntaria-
mente. (CABRAL, 2019)

Esse conceito parte da assunção de que vivemos em um mundo


de representação e aparência, sem acesso à verdade, ou seja, o mundo
imperecível das ideias. Muitas teorias de marketing apelam para essa
noção da eterna falta e inundam o mercado com publicidades que ex-
ploram a máxima de que você só será plenamente realizado quando
possuir algum produto. Podemos vê-las em abundância nos anúncios de
carros, em especial os de maior valor agregado ao estereótipo do “ho-
mem” bem-sucedido. Destacam-se as aspas em “homem” porque tem
havido uma mudança nessa representação na medida em que mais e
mais mulheres têm clamado para si um posto de destaque na sociedade
e também buscam ostentar esse posto com signos relativos a essa po-
sição. Contudo, ainda é dominada pela máxima: homem/branco/hétero/
jovem-maduro. O carro, assim como outros símbolos de status social, é
comumente apresentado como a parte faltante da sua identidade.
Contudo, um outro olhar sobre o desejo ganha força na filosofia e
psicanálise modernas. Uma forma que extrai o conceito de transcen-
dência (existência de um mundo superior: verdade, céu, inferno, etc)
para a imanência: para além da representação, existe sim a realidade e
nós estamos inseridos nela. Assim o desejo: busca do prazer e impulso
criador e transformador da própria realidade. Vemos essas ideias em
Nietzsche, o filósofo pessimista que não vê o desejo senão como “von-
tade de potência”. Tudo está na ordem de abundância e exuberância.
O desejo se afirma e se amplia. Por isso, desejar algo que não seja a
realidade em si seria julgar como insuficiente a nossa existência. Põe-se,
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
53

dessa forma, a vontade como o núcleo do mundo.


Deleuze e Guattari irão além com essa noção, trazendo o desejo jus-
tificado, forte e dono de si. Não é falta, é produção e o é porque produz
no real sua matéria prima, e o final é sempre a existência. Assim nos põe
em movimento, é o artífice da ação transformadora que desencadeia
processos que podem sim ser maiores que nós, mas que nos rodeiam
e nos assomam, pois somos parte deles.

Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só


pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de
sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os cor-
pos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre dis-
so, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução
do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o
sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito
fixo; só há sujeito fixo pela repressão (Deleuze & Guattari, 1976, p. 43)

Essa é uma ideia muito próxima à de mercado consumidor. Uma


simples ação de compra, desencadeada pelo desejo pode mover toda
uma cadeia produtiva de bens e serviços. Fazendo do consumidor autor
e ator ainda que alienado da sua parte, mas não à parte.
Não é incomum num mundo em que se faz urgente a discussão de
questões como sustentabilidade e a possibilidade de uma economia co-
laborativa, vermos a comunicação e o marketing se apropriarem, ainda
que de forma rebaixada e colocar o comprador, como antes buscando
a transcendência do ser em produtos desnecessários ou com vida curta,
como agora reza o mantra do consumo consciente. Ou seja, compra-se
o necessário; produtos duráveis e recicla-se. Claro que, dentro de uma
economia de mercado, há de se supor que em muitos dos casos isso é
um mero exercício retórico exercido pelas ferramentas midiáticas.
Como já vimos, forma e função há muito deixou de ser o binômio
por excelência do design. Marcas e produtos são construídos muito
mais para falar aos sentidos e sentimentos do consumidor e não à ra-
zão, isso porque tais signos são potencializados no nível sintático, ou seja,
quando os signos são lidos em relação a si mesmos e a outros que o ro-
deiam e/ou fazem parte de uma mesma cadeia e não lidos em relação
ao objeto que representam, levando a uma formulação necessária de
sentido - nível semântico e, em última instância, a um juízo de valor em
54 Prazeres Possíveis

relação ao foco do da decisão e no campo da razão – nível pragmático


(Morris, 1976). Checkouts de supermercados e lojas de conveniência
exploram isso de forma magistral na forma de exposição de produtos
para potencializar as comprar por impulso.
Mais do que mera organização de gôndolas em mercados, essa cons-
trução de produtos os transforma em personagens e não mais objetos.
São “indivíduos” com os quais nos relacionamos, nos apaixonamos ou
odiamos até, mas que necessariamente requerem uma reação emoti-
va. São conotadas a eles características que fazem com que nos iden-
tifiquemos em um nível humanizado, como sensualidade, aconchego,
força, suavidade, etc. Não são mais substantivos comuns, mas próprios,
com suas personalidades e peculiaridades. Não é incomum falarmos:
meu computador não está se comportando bem hoje. Não é só uma
metáfora, mas uma percepção genuína de que há uma sensibilidade
nessa forma.
Dessa forma o desejo nos compele a trazer mais e mais desses “ami-
gos-coisa” a participarem das nossas vidas e muitas vezes a serem nossa
própria persona social. Desejo é vontade e desejamos invariavelmente
o que não temos, mas também é energia potencial com a fagulha trans-
formadora da realidade que nos cerca e nos põe em ação.

• Tempo de agir - demanda reprimida


Um importante fator a ser considerado no consumo é o tempo.
Existe um tempo de maturação entre o desejo, a decisão e a compra.
Pode ocorrer em um flash nas compras de impulso ou ser prolonga-
do ao extremo quando envolve produtos de alto valor em relação
ao orçamento dispensado, ou ainda um consumidor diletante, sempre
pendendo entre o sim e o não, entre uma marca ou outra.
O mercado consumidor em qualquer país é ilustrado pelo setor mais
representativo, quase sempre a classe média. No Brasil a ascensão dessa
classe ao mercado de consumo tem sido marcada por altos e baixos
provocados por crises ora externas, ora internas de todas as ordens
que por vezes suprimem a capacidade ou vontade de ir às compras, le-
vando, por vezes, o consumidor a focar nos produtos que suprem suas
necessidades básicas. Não cabe discorrer sobre o que é básico, pois
trata-se de uma categoria subjetiva e em constante mutação. Essa situ-
ação prolonga, em oposição, a sanha do mercado em vender, aumentar
os lucros ou minimamente sobreviver num horizonte de incertezas a
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
55

bombardear a audiência com publicidades que cumprem a função de


instigar ou, em alguns casos, criar o desejo pela mercadoria. A tensão
entre desejo/necessidade e possibilidade gera uma demanda reprimida.
Demanda reprimida é esse prolongamento forçado do tempo entre
o pináculo do desejo na decisão de compra e a compra em si.Vivemos
em um ambiente urbano altamente informado pelas mídias que nos
cercam e vestimos como sugere Kerckhove (1997) em “A pele da cul-
tura”. Levamos para essas mídias partes de nós mesmos, hoje mais que
nunca, quando smartphones, extensões do nosso sistema nervoso, nos
mantêm conectados uns aos outros e consequentemente ao aparato
de comunicação e marketing das empresas, excitando nosso desejo da
mesma forma que uma mola retorcida guarda a energia potencial. Mas
nem sempre podemos suprir essas punções, o que gera um desconfor-
to e frustração, o afastamento do objeto de desejo.
Outro elemento que é novo nessa questão são as compras online.
Não é necessariamente novo enquanto mecanismo, pois há um bom
tempo existem programas pela televisão ou revistas que vendem pro-
dutos que só mais tarde recebemos em casa. Mas só com o advento
da internet se fez possível um ambiente favorável a um mercado re-
levante em termos numéricos. Enquanto o varejo, bem como toda a
maioria dos setores no Brasil, enfrenta um cenário recessivo, as vendas
online, ou e-Commerce, tiveram um crescimento de 12% em 2017 em
relação ao ano anterior e faturamento na ordem de 59,9 bilhões de
Reais, segundo dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico
(ABComm) e projeta 15% para 2018.
O crescimento dessa forma de consumo cria uma outra forma de
prolongamento desse afastamento entre consumidor e o produto. Só
que nesse caso a decisão de compra está a poucos cliques e o limite
é o do cartão de crédito, mas o produto não e, por vezes, tem que se
cruzar o mundo para essa reunião. O desejo já se realizou e a com-
pra foi efetuada. Há satisfação nisso, mas não por completo. Agora há
a espera do produto, que depende de aparatos de entrega que tem
muito pouca sintonia com a sensibilidade e ansiedade do consumidor.
Isso pode culminar em um gozo prolongado ou um coito interrompido.
De forma geral, essa espera pode ser ilustrada pela personagem
central apresentada no conto A Felicidade Clandestina de Clarice Lis-
pector. uma “criança devoradora de histórias” que tem seu purgatório
gerido pela contraparte da história uma garota “gorda, baixa, sardenta e
56 Prazeres Possíveis

de cabelos execissivamente crespos”cujo pai era dono de livraria. Essa,


depois da promessa feita de que lhe emprestaria um livro (as reinações
de Narizinho) a personagem/narradora, passa então a uma maçante
tortura. Pedindo para que voltasse sempre no outro dia para pegar o
livro, sempre com uma desculpa. Fazendo-a esperar por puro sadismo.

(...) Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia
seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu
já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer
me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.
(...) E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob
os meus olhos espantados. (Lispector, 1981, p. 9)

Não há garantias de uma real satisfação nesse processo, só a pro-


messa. Por mais sofisticados que se façam os aparatos tecnológicos,
ainda não há uma forma que garanta que o produto adquirido cumpra
as expectativas. As mídias de hoje se especializaram em trazer-nos o
produto na forma de desejo. Lição número 1 nas aulas de marketing
e publicidade: o consumidor não compra um produto, compra um be-
nefício. Contudo, essas mídias não conseguem substituir a sinestesia do
consumidor no contato direto com o produto: uma roupa no provador,
o toque na superfície polida de um eletrodoméstico e ter nas mãos a
promessa de performance do mais novo gadget tecnológico lançado.
Produtos editorias também são, por excelência, um exercício de es-
pera, em especial literatura seriada ou, ainda mais, histórias em quadri-
nhos que, em muitos casos, são também objeto de coleção e movem a
paixão dos aficionados. A maiorias das histórias em quadrinhos seriadas
é mensal ou quinzenal. Muitas dessas histórias se utilizam de um recurso
literário muito comum aos folhetins: o cliffhinger; numa tradução literal
“a beira do precipício”. Consiste em terminar a história em um ponto
clímax e/ou um “gancho” que serve de prólogo para a história da pró-
xima edição. Assim o leitor já fica engajado na compra do produto; seja
por colecionismo ou entretenimento é levado em um período muito
curto de uso e um longo período de espera.
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
57

• O prazer no ato da compra


Quando trata se do prazer em comprar sempre vem à mente o
filme “Os Delírios de Consumo de Becky Bloom” (EUA - 2009 - comé-
dia), que tem em seu elenco Isla Fisher como protagonista, uma jovem
jornalista que adora fazer compras e seu vício a leva à falência. Seu
maior sonho é trabalhar em sua revista de moda preferida, mas ironica-
mente o que ela consegue é um emprego como colunista em uma re-
vista de finanças. Ela representa nessa trajetória o perfil do consumidor
compulsivo que chega ao ponto de delirar que os produtos na vitrine
chamam por ela, os manequins a convidam ao parque de diversão das
compras. Em uma cena icônica, Becky participa de um grupo de apoio a
consumidores compulsivos, onde, como parte da terapia, descreve seu
prazer pelas compras, levando os participantes do grupo a fugirem às
pressas da terapia grupal para fazer valer sua compulsão.
Não se trata nesse espaço de vilanizar ou enaltecer o consumo, mas
falar de um fator real e amplamente verificável em simples entrevistas
entre os compradores ocasionais ou compulsivos: o prazer nas compras.
Dentro da teoria psicanalítica da personalidade de Freud (1976), po-
demos verificar dois princípios que regem nossas necessidades: o prin-
cípio do prazer e o princípio da realidade. O princípio do prazer é a força
que move o id, a parte mais básica e animalesca da personalidade, tem
por função garantir nossa sobrevivência pela busca da satisfação imedia-
ta de todas as necessidades, desejos e impulsos, tais como fome, sede,
raiva e sexo. É a única parte da personalidade que Freud acredita estar
presente desde de o nosso nascimento. Sendo uma das forças motiva-
doras mais intensas e que tende a ser enterrada no nível mais profundo
do nosso inconsciente. Quando tais necessidades não são satisfeitas, o
resultado é um estado de tensão e ansiedade. Com o amadurecer da
criança, o ego se desenvolve para ajudar a controlar nossos impulsos.
O ego se preocupa com a realidade garantindo que as necessidades
do id sejam atendidas, mas de maneira aceitável ao mundo real. A essa
força de oposição dos impulsos Freud chama de princípio da realidade.
Em vez de buscar gratificação imediata, o princípio da realidade orienta
o ego a buscar meios para satisfazer essas necessidades de formas mais
realistas e socialmente adequadas.
Esta tensão entre prazer e realidade expõe a tensão no ato do con-
sumo que caminha entre a gratificação na busca pelo objeto desejado
e a possibilidade de realização que, quando negada, leva a uma tensão
58 Prazeres Possíveis

e em última instância tristeza e sensação de fracasso por não participar


do mundo do consumo da forma que lhe parece apropriada. Diz-se
também que em publicidade não se vende o produto, mas um benefí-
cio, quer seja de uso ou posse. Em geral esse benefício se torna pungen-
te quando encarna essas formas básicas de satisfação ligadas ao princí-
pio do prazer que são, de formas subconscientes, maneiras de garantir
nossa sobrevivência. Essa assunção ganha contornos muito complexos
dentro da Alta Modernidade, quando sobreviver não está somente li-
gado a subsistir enquanto organismo, mas garantir nossa construção
identitária por força dos signos que usamos para dizer aos outros e a
nós mesmo quem somos.
Holbrook e Hirschman (1982) propõem uma sistematização dos
vários aspectos intangíveis e subjetivos ligados à compra designando-a
como “compra hedônica” (hedonic consumption), que designa os aspec-
tos do comportamento do consumidor relacionados à multissensoria-
lidade, à fantasia e aos fatores emocionais. Arnold e Reynolds (2003), a
partir de uma extensa literatura, identificam 16 motivações que levam
as pessoas a comprar, daí propõe 6 motivações mais vinculadas a fato-
res hedônicos para os indivíduos irem às compras que definem como:
‘como aventura’ (adventure shopping), ‘para socializar’ (social shopping),
‘para auto satisfação’ (gratification shopping), ‘para obter ideias’ (idea sho-
pping), ‘para desempenhar um papel’ (role shopping) e ‘para obter bens
a bons preços’ (value shopping).
Para Aristipo (435 – 366 a.C), o verdadeiro mundo é este, e o verdadeiro
bem é a busca do prazer aqui e agora, um hedonismo racional que procura
o prazer e evita a dor. Tem-se aí uma das fundações de Deleuze quanto à
ideia de prazer. Consumir, dentro dessa visão, é tão somente uma forma
de prazer básica que opera num diâmetro oposto ao desejo de morte.
Encontra-se prazer mesmo na mais enfadonha ida ao mercado para se ad-
quirir produtos básicos. A construção dos ambientes de consumo nos dias
de hoje é projetada de forma lúdica, colorida e convidativa, que vai desde
a elaboração do produto, sua organização nas gôndolas, ambientação e
decoração dos mercados culminando na apoteose dos shopping centers,
cuja organização busca suprimir a ideia de tempo e convida o consumidor,
a uma total imersão no prazer, em que os limites podem ser encontrados
no saldo dos cartões de crédito ou no bom senso (ou ausência dele) de
seus usuários. Não obstante vemos a grande massa de pessoas endividadas
ou falidas completando a trajetória da já citada personagem Becky Bloom.
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
59

• O gozo da posse
No trecho final do conto de Clarice Lispector, vê-se uma das formas
de exultação do consumo: a posse.

(...) Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece
que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e
pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no
colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. (Lispector, 1981, p. 10)

A posse é ato final para quem se põe no caminho do desejo, o


ápice do prazer ou do gozo. Entende-se posse não apenas de objetos,
mas também de experiências ou produtos culturais. Quando vamos a
um filme ou show musical, em especial um pelo qual aguardamos com
certa ansiedade, nossos sentidos se apossam dessa experiência como
se fosse algo físico. Podemos quantificá-lo ou qualificá-lo tanto quanto
peças de vestuário ou aparelhos eletrônicos. Com as mídias sociais es-
sas experiências são agregadas a nós como signos de pertencimento
e identidade. Em um passado próximo vivenciar uma peça ou viagem
era algo que falava ao interior e, salvo as parcas fotografias em papel,
era parte de um repositório de memórias que nos constituía enquanto
seres culturais. Hoje, contudo, essa experiência tem sobrevida expo-
nenciada em fotos e vídeos que compartilhamos com nossa rede de
relacionamentos virtuais.
Possuir é vestir-se de representações. Lipovetsky (2007) define que
o hiperconsumo, a fase III do consumo, diferencia-se do momento
anterior, no qual tais representações eram itens de distinção. Falavam
sobre status social, diferencial cultural e construção de uma identida-
de coletiva para uma identidade individual e autorreflexiva, no sentido
de autossatisfação e gratificação. Não que tenham desaparecido por
completo os elementos de exposição e pertencimento, mas esses
passaram a ocupar o segundo plano. Assim, consumir é também uma
forma de autoconhecimento e construção da identidade. Pesquisas
recentes mostram que os jovens urbanos sonham menos em pos-
suir carro ou casa e mais com “possuir” experiências. Assim se dá o
crescimento do turismo e do entretenimento como forma hedônica
de consumo. Vemos aí uma forma elaborada de felicidade clandestina.
60 Prazeres Possíveis

Não que seja às escondidas ou marginal, mas uma sobreposição do


privado à exposição pública.

O sensitivo e emocional tornam-se objetos de pesquisa de marketing


destinados, de um lado, a diferenciar as marcas no interior de um uni-
verso hiperconcorrente, do outro lado, a promoter uma “aventura sen-
sitiva e emocional” ao hiperconsumidor em busca sensações variadas
de maior bem-estar sensível. (Lipovetsky, 2007, p.45)

Consumo como forma de identidade cria uma miríade de personas


possíveis e às vezes contraditórias, muito mais vastas que as opções de
xampu, em oposição às identidades grupais estabelecidas pela tradição,
ideologia ou religião. “Na corrida às coisas e aos lazeres, o Homo con-
sumericus esforça-se mais ou menos conscientemente em dar uma res-
posta tangível, ainda que superficial, à eterna pergunta: quem sou eu?”
(Lipovetsky, 2007, p.45). A noção de pertencimento ou exclusão das
tribos que a posse de determinado produto, de determinada marca,
pode trazer, informações corriqueiras sobre os gostos, ligadas à audi-
ência de determinado programa podem, igualmente, ser fator de agre-
miações. Pode-se completar traçando que a apropriação de identidades
via consumo não é pacífica e sem a devida negociação da recepção. É,
antes, um processo que se dá por meio de diversas variáveis de usos e
gratificações.
Outro pensador indispensável à questão da identidade é Stuart Hall:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada


e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única,
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvi-
das. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisa-
gens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva
com as ‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso,
como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio
processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemáti-
co. (Hall, 2003, p.12)

A esse processo Hall (2003) chama de descentramento do sujeito.


A maior conexão e interdependência do local e global trazida pelo
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
61

avanço das tecnologias do transporte e comunicação, se por um lado


hibridizam formas simbólicas, por outro as homogeneízam. Constroem
o pensamento de pertencer a uma comunidade global cosmopolita
e urbana, por mais que uma representação local imprima uma dura
realidade de subdesenvolvimento. Marcas globais de empresas multina-
cionais são consumidas em todo o globo independente de contextos
ideológicos, políticos e religiosos. Nessa via de mão dupla, os locais se
misturam com as identidades, que antes eram locais e podem agora ser
encontradas em qualquer ponto.
Nos dias de hoje há um produto que consegue incorporar as di-
versas questões sobre consumo e satisfação pessoal: os smartphones.
Cada vez mais complexos e com tecnologia capaz de ruborizar de
vergonha por seu desempenho os mais avançados computadores de
uma década atrás. A comunicação desses produtos traz a possibilidades
de experiências que extrapolam os usos e migram para um imaginário
lúdico de prazer e realização. Algumas marcas convertem-se em alvo
de um fetichismo quase que religioso. A Apple com seu Iphone é a ter-
ceira marca mais valiosa do mundo em 2018. Boa parte desse valor não
está ligado a questões materiais dos ativos dessas empresas, mas do seu
valor imaterial junto ao público.

(...) Na fase III, o imperativo de imagem deslocou-se do campo social


para a oferta de marketing. Não são mais tanto a imagem social e sua
visibilidade que importam, é o imaginário da marca; quanto menos há
valor de status no consumo mais cresce o poder de orientação do
valor imaterial das marcas. (Lipovetsky, 2007, p.47)

Quando se adquirem esses smartphones há argumentos de venda


acerca das inúmeras possibilidades que eles oferecem, bem como de-
sempenho. Contudo esses argumentos são acessórios ao fetiche exer-
cido pela marca e design. Por fim o uso cotidiano acaba como que
limitado, mais ou menos, ao mesmo: enviar mensagens, trocar imagens
e fazer ligações. Mas isso pouco importa quando se tem acesso a uma
infinidade de aplicativos cuja inutilidade é inversamente proporcional à
quantidade disponível. Mas como explicar o prazer de romper o ace-
tato brilhante que envolve a caixa do novo celular ou o gozo final de
remover a película plástica que cobre a tela gigante do aparelho?
Claro que o custo cada vez mais elevado desses dispositivos fala mui-
62 Prazeres Possíveis

to sobre a capacidade de consumo, do acesso à informação privilegiada


sobre o que é melhor do ponto de vista performático da tecnologia e
design e serve à construção de uma identidade social, mas a questão
agora é o quanto de satisfação esse jogo de dentro e fora proporciona
ao consumidor.
Considera-se concluir essa fase da mesma forma que Clarice Lispec-
tor o faz em seu conto de forma a exaltar o prazer e unir-se ao seu
objeto de desejo. “Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante”. O que é uma excelente ilustração da forma
como produtos complexos se convertem nas formas básicas nas quais
o id busca satisfação.

• Naturalização e obsolescência
Muito se fala sobre obsolescência programada como um dos mais
importantes ingredientes do capitalismo moderno. Ela descreve a for-
ma como as empresas, de forma sistêmica e programada, estabelecem
um tempo de uso para os produtos. Essa obsolescência é importante
no mercado, pois é o que garante os níveis de produção, inovação e
crescimento, todos caros ao capitalismo desde seus primórdios. Den-
tro das economias de mercado contemporâneas, cristalizou-se a noção
político-ideológica circular de que a qualidade de vida está atrelada à
inserção no consumo; este por sua vez gira a roda da economia; que
gera crescimento e empregos; que garantem a inserção no mercado e
consequentemente no consumo; ad infinitum.
O ouroboros ou uróboro, o nome vem do grego antigo: oura - signifi-
ca “cauda” e boros – devora). É um conceito representado pelo símbolo
em formato circular de uma serpente, ou dragão, que morde a própria
cauda. Simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo. O
símbolo é apresentado com as ideias de movimento, continuidade, auto
fecundação e, em consequência, eterno retorno. O ouroboros é a me-
táfora para a última e também primeira fase no processo de consumo.
Há pouco tempo atrás aposentamos as longevas televisões de tubo
em favor às novidades do momento que eram telas “finas” de plas-
ma. Não demorou muito e logo tínhamos as telas de LED, depois as
de LED em HD (high definition), Smart TV, que finalmente levou aos
aparelhos os recursos tecnológicos da informática e agora definição
em 4K e QLed com telas realmente finas disputam a atenção do con-
sumidor. Em qualquer um desses passos de substituição, ficamos mes-
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
63

merizados pela qualidade de som e imagem nunca antes vistas, novos


digitais recursos. Por algum tempo delicia-se com muitos recursos que
elas oferecem, mas isso logo acaba e passamos a desfrutar dos nossos
programas favoritos sem nos darmos conta da maravilha tecnológica
que os apresenta. Nossa acuidade visual se adapta e se acostuma aos
novos milhões de cores recém adquiridas. Os usos dos novos recursos
são incorporados ao nosso cotidiano ou então deixados de lado por
pura inutilidade prática.
A naturalização é essa fase em que qualquer que seja a vantagem
existente no produto ou que o aparato de vendas criou para nos con-
vencer da compra perde a importância e passa a fazer da nossa rotina
de uso ou sequer é levada em conta no dia a dia. Roupas e sapatos
novos passam a disputar nossa atenção com tantos outros no armário,
exceto talvez por aqueles com os quais desenvolvemos uma relação
afetiva. Tal como em um casamento fadado ao fracasso, a rotina conso-
me toda a novidade e nos prende às questões de uso prático até que
passam a subsistir apenas como uma sobra na nossa memória. Momen-
to propício para que nos seja apresentada uma nova paixão.
Contudo, a obsolescência programada age de forma a pressionar
nossa sensibilidade ao ponto de que em muitos casos compremos algo
já com vias a substituí-lo em breve.Vemos isso muito claro na estratégia
de venda de smartphones que têm data e hora de lançamento. Muitas
das vezes o novo, em relação à versão anterior, ainda em plena capacida-
de de uso, é puramente cosmético. Mas entra em ação um aparato de
marketing que nos convence de que a felicidade está logo ali, há alguns
dígitos a mais no cartão de crédito.
Não obstante as televisões de tubo ou celulares com 4 ou 5 anos
ainda estão aí, em pleno funcionamento. Performando as mesmas coisas
básicas que os lançamentos. Ou seja, a obsolescência não é mais uma
questão técnica ou mecânica, mas afetiva. A Apple recentemente foi
acusada de, intencionalmente, tornar lentos seus aparelhos antigos por
meio dos sistemas operacionais, prejudicando o uso dos aparelhos para
criar a sensação da necessidade de um novo. Algo que do ponto de
vista mercadológico é desnecessário, visto que a febre pelo novo nos
consome desde o momento da compra. Salvo as pessoas cuja mente
prática sobrepuja a emotiva, o que nos prende a um aparelho “antigo”
é tão somente nossa capacidade financeira. Seja para preencher a “falta”
ancestral que nos consome ou para pura inserção no parque de diver-
64 Prazeres Possíveis

sões dos sentidos hedonista que a alta modernidade nos oferece

• Até o próximo lançamento...


Há uma pergunta a ser respondida do início desse texto: nosso
flanêur ainda vive? A imersão no ambiente informacional e lúdico das
cidades e o olhar atento e caminhante tomaram o lugar o caminhar
diletante e afastado, mas não é, contudo, menos reflexivo. É antes uma
forma de conhecermos a nós mesmos e de estabelecermos os limites
dos nossos corpos cada vez mais “estendidos” ao ambiente cultural que
se constrói intimamente ligado ao consumo. Talvez o espírito do indi-
vidualismo e do hedonismo seja a real forma do contemporâneo, nos
afastando das grandes questões coletivas e existenciais, mas ainda assim
um caminho para a construção da nossa identidade e lugar de perten-
cimento, mesmo que calcado em personas flutuantes.
Tal como a garotinha em busca de um livro empreende sua jornada
de dor e prazer, para conhecer a si mesma em um ato de “felicidade
clandestina”, nós o fazemos para nos conhecermos. Não cabem nesse
momento maniqueísmos ideológicos, mas pensar o quão paradoxal é o
momento de espantosa abundância compartilhada numa crueza mise-
rável dos excluídos. Talvez seja essa a forma mais clandestina de prazer:
saber que para que alguns tenham muitos não terão. Ainda assim desejo
por prazer é energia que nos põe em movimento e realiza transfor-
mações sobre a realidade e, graças ao deus “Marketing”, existe prazer
para todo nicho de mercado. Pelo menos até ser anunciada a próxima
novidade.

Referências

ARNOLD, M.J; REYNOLDS, K.E. 2003. Hedonic shopping motivations. Journal of Retai-
ling, Vol. 79. p.77-95 Badan Pusat Statistik. 2011.
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: a lyric poet in the era of high capitalism. London: Verso,
1997.
CABRAL, J. F. P. “Amor Platônico”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.
com.br/filosofia/amor-platonico.htm. Acesso em 10 de junho de 2019.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
65

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.


HALL, S. A identidade cultural da Pos-modernidade. 7ª. ed., Rio de Janeiro: DP
&A. 2003.
HOLBROOK, M. B.; HIRSCHMAN, E. C.The Experiential aspects of consumption: consu-
mer fantasies, feelings, and fun. Journal of Consumer Research, v. 9, n. 2, p. 132-140, 1982
KERCKHOVE, D. A pele da cultura. Lisboa: Relógio D’Água, 1997.
LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal - Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LISPECTOR, C. Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1981, p.7-10.
MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, Livro 1, v. 1.
MAGNINO, L. Q. S. Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas. Pulsional Revista de
Psicanálise, ano XIII, nº 132, p. 45-51, 1999.
MANU, A. Coletânea Aspectos do Design II, Volume 2. Vários Autores. São Paulo: Sesi
Senai Editora, 2011
MILTON, J. Paraiso Perdido. São Paulo: Editora Brasileira, 1948
PARTE II

Representações
nas
e naartes
comunicação
69

Os tormentos do desejo
e as vitórias da beleza na
pintura de Botticelli

Paula Ferreira Vermeersch

Giovanni Boccaccio (1313-1375) começa sua opera omnia, o Deca-


meron1, escrito entre 1349 e 1352, dedicando suas linhas às mulheres – e
espera que as cem histórias reunidas no volume, contadas pelos jovens
florentinos fugidos da peste e isolados numa villa, por sugestão de Pam-
pinéia, possam instruir, distrair e apoiar as mulheres em seus sofrimentos
de amor. O narrador afirma que os corações femininos, por conta das
restrições sociais, têm suas paixões inflamadas e não dispõem de recur-
sos para se educar e avançarem na conquista de seus intentos.
A oitava das histórias narradas na quinta jornada, sob direção de
Fiammetta, por Filomena, desenvolve o tema proposto, os amores que
têm inícios cruéis e finais felizes, de uma maneira bastante interessante.
Filomena conta a trajetória do jovem Nastagio degli Onesti, de Ravenna,
1
Aqui, usamos as seguintes edições da obra: Boccaccio, G. Decameron. Edizione di riferimento: a cura
di Vittore Branca, Utet, Torino, 1956, Torino: Einaudi, s/d e a tradução para o português, Decameron.
Debenedetti, I. (tradução), Berriel, C. (Introdução). Porto Alegre: L&PM Editores, 2011.
70 Prazeres Possíveis

enamorado da filha de Paolo Traversari. Nastagio, de modestas posses,


arruína-se tentando conquistar a atenção da jovem, que o desdenha
impiedosamente. Nastagio então segue a sugestão de amigos e paren-
tes e sai de Ravenna, supostamente rumo à França, mas para com sua
criadagem perto da cidade, na localidade de Chiassi ou Classe, e monta
tendas, onde recebe algumas pessoas. Numa sexta-feira, final de tarde,
pensativo, Nastagio se perde num bosque de pinheiros e presencia
terríveis cenas.
Uma mulher nua e ferida surge, acossada por cães ferozes e um
cavaleiro. Nastagio tenta defendê-la com um galho de árvore, sem su-
cesso. Os cães passam a morder a mulher, e o cavaleiro, a golpes cer-
teiros de espada, mata-a, retira suas vísceras e dá de comer aos cães.
Petrificado, Nastagio interpela o cavaleiro, que responde que, durante
sua vida, amou a mulher, sem ser correspondido, e que se matou por
conta daquele sentimento. Anos mais tarde, com o falecimento da sua
amada, o cavaleiro recebeu a pena infernal de caçá-la e matá-la nos
lugares onde ela lhe fora cruel, pela quantidade de anos que isso durou.
Todas as sextas-feiras, naquele horário, diz o cavaleiro, ele a mata e a vê
ressuscitar e correr alucinada. Para espanto de Nastagio, é o que ocorre
na sequência.
Passado o pavor, Nastagio elabora um plano. Convida amigos, conhe-
cidos e parentes, incluindo toda a família Traversari, para uma refeição
suntuosa num ambiente luxuoso, montado no bosque de pinheiros, na
sexta-feira seguinte. A cena infernal se repete, para o espanto e pânico
dos presentes, principalmente da jovem Traversari, que, enfim, manda
aviso para Nastagio que o aceita por futuro marido, e o conto termina
com o casamento dos dois. Filomena acrescenta que, depois da história,
as mulheres de Ravenna se tornaram mais dóceis e compreensivas “aos
desejos dos homens”.
As figuras 1, 2, 3 e 4 nos trazem as imagens das telas que Ales-
sandro di Marianni di Vanni Filipepi, conhecido como Sandro Botticelli
(1445-1510), realizou em 1483, provavelmente a pedido de Lorenzo
il Magnifico (1449-1492), para presentear Giannozzo Pucci pelo seu
casamento com Lucrezia Bini, ocorrido naquele ano. As telas foram
destinadas à decoração do Palazzo Pucci, no centro de Florença. Os
Pucci sempre foram grandes aliados dos Médici, e a proximidade entre
as famílias é atestada pela oferta de outros presentes mútuos. Na cena
do casamento de Nastagio e da filha de Paolo Traversari, fig.4, veem-se
Os tormentos do desejo e as vitórias da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch
71

os escudos das famílias florentinas Pucci e Bini, bem como dos Médici, e
um novo, Pucci-Bini, criado para o casamento de Giannozzo e Lucrezia.
Em 1483, Botticelli estava de volta a Florença, depois de temporada
em Roma decorando a Capela Sistina. Neste retorno, ou antes, mas de
qualquer forma por aqueles anos, o mestre estaria também envolvido
no trabalho de ilustração de um códice luxuoso da Comédia de Dante
Alighieri (1265-1321) para o primo mais jovem do Magnífico, Lorenzo
di Pierfrancesco de Médici (1463-1503)2.
O tema da história de Nastagio degli Onesti parece saído de um dos
Cantos do Inferno de Dante, e nas telas, Botticelli usa um recurso análo-
go ao dos desenhos para a Comédia- a repetição das figuras para a cria-
ção das sequências narrativas, expediente muito usado na tradição das
iluminuras, e que podemos observar na fig.1, com Nastagio, de manto
púrpura e calças vermelhas, entrando no pinhal de Classe, à esquerda, e
depois com o galho tentando afastar os cães. Na fig.6, um dos desenhos
inacabados de Botticelli para a Divina Comédia, vemos igualmente as fi-
guras de Dante e Virgílio, repetidas no espaço dos túmulos dos hereges,
denotando seus movimentos.
A atmosfera dantesca do conto de Filomena confirma-se logo no
princípio- o pinhal de Chiassi ou Classe é citado por Dante no Purga-

Fig.1. Primeira cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpe-
ra sobre tela: 138 x 83 cm. Madri: Museu do Prado. Foto: WikiCommons.

2
Vermeersch, P. Considerações sobre os desenhos de Sandro Botticelli para a Divina Comédia.
Tese de doutorado, IEL-Unicamp, 2007, disponível em http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/
REPOSIP/27006;2
72 Prazeres Possíveis

Fig.2. Segunda cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpe-
ra sobre tela: 138 x 83 cm. Madri: Museu do Prado. Foto: WikiCommons.

Fig. 3. Terceira cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpera
sobre tela: 142 x 83 cm. Madri: Museu do Prado. Foto: WikiCommons.

tório, Canto XXVIII, como memória, para explicar o movimento dos


ramos nos bosques da expiação. Nastagio se perde nesse pinhal, como
Dante se perde na “selva oscura”, e testemunha cenas horríveis, mas
que redundarão em sua “salvação”. O jovem tinha pensado em suicídio,
em meio às dores de seu amor não-correspondido, e recebe a lição do
cavaleiro, seu “espelho”, bem como Dante, que tantas vezes no Inferno
ouve condenados por pecados como os seus.
Não passou desapercebida, por Georges Didi-Huberman, a cruel-
Os tormentos do desejo e as vitórias da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch
73

Fig. 4. Quarta cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpera
sobre tela: 142 x 83 cm. Florença: Coleção particular do Palazzo Pucci. Foto: WikiCommons

Fig.5. Canto X, Inferno. Botticelli, c.1481. Ponta de metal, lápis e têmpera sobre pergaminho, 32,5
x 47,5 cm (ilustração inteira).Vaticano: Biblioteca Apostólica, Cód. Reg. Lat. 1896, fol.100 frente..

dade misógina inerente às cenas de Botticelli3. O corpo nu feminino


destroçado, as vísceras entregues aos cães, e a caçada que se perpe-
tua num tempo determinado- o da vingança do amante rejeitado- e
o assassínio repetido nos lugares onde a dama exercera o interdito,
entendido como cruel, ao desejo do homem, tornam-se exemplo para
a jovem Traversari. Educada no terror, resta à jovem atender à paixão

3
Didi-Huberman, G. Ouvrir Vénus. Nudité, rêve, cruauté. Paris: Gallimard, 1999
74 Prazeres Possíveis

de Nastagio. Na narrativa de Boccaccio e nas telas de Botticelli, não há,


porém, uma reflexão sobre o desmedido do castigo. A rejeição vira
assassinato, com o manejo cruel de palavras e a retirada dos órgãos.
A ambivalência da narrativa de Boccaccio e da dedicatória do De-
cameron faz pensar numa leitura às avessas; que diria mestre Dante
de tão desequilibrado jogo entre a pena e o delito? No Canto V do
Inferno, Dante dá voz à desafortunada Francesca da Rimini, que, junto
ao amado, seu cunhado Paolo Malatesta, foi pega em adultério e morta
por Giovanni, seu marido4. O castigo de Giovanni é pior que o de Fran-
cesca: enquanto a adúltera gira nos ventos eternos onde estão as almas
dos que morreram por amor, no Limbo, o assassinato está no círculo
interno do gelo dos traidores, bem perto de Lúcifer. Percebe-se no en-
contro de Virgílio e Dante com Paolo e Francesca, fig. 5, que o autor da
Comédia tem ideias bastante heterodoxas sobre casamento, adultério,
e desejo. Para Dante, é bem pior ser assassino que adúltero, é pior ma-
tar que sucumbir ao desejo, mesmo que quem esteja sucumbindo seja
uma mulher. Francesca é que conversa com os poetas, e Dante cai des-
falecido, ao perceber que, se Beatriz tivesse lhe dado uma chance, muito
provavelmente os dois estariam também presos nos ventos do Limbo.
Boccaccio herda de Dante a crença na corporalidade dos castigos

Fig.6. Canto V, Inferno. O encontro com Paolo e Francesca. Iluminura. Siena, séc. XV. Ms 36
Yates-Thompson. Londres: British Library.

4
ALIGHIERI, D. Inferno. Commedia. Edizione di riferimento: a cura di Giorgio Petrocchi, 3 volu-
mi. Milano: Mondadori, 1966-1967. Torino: Einaudi, s/d, e Inferno. Divina Comédia. Tradução de
Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1999
Os tormentos do desejo e as vitórias da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch
75

Fig.7. O Nascimento de Vênus. Sandro Botticelli, 1483. Têmpera sobre tela, 172,5 x 278,5
cm. Florença: Galleria degli Uffizi.

do Inferno5: os condenados sentem dores e tormentos “físicos”, resga-


tando uma crença antiga, estóica, explicitada por Virgílio na Eneida, de
que as almas, possuindo determinadas organizações atômicas, podem,
após a morte, se configurar como espectros mais “densos”, e passíveis
de eternizar os tormentos sofridos em vida, ou se condenarem a ex-
cruciantes situações. A dualidade corpo-espírito, em Dante, e depois em
Boccaccio, desdobra-se numa hierarquia, na qual as almas beatas são as
mais “voláteis”, e mais próximas do estado de eterno repouso de Deus.
O movimento é reservado à matéria, e entendido como sofrimento:
mesmo depois de mortos, Paolo e Francesca não cessam de sentir
desejo um pelo outro, nem a amada do cavaleiro amaldiçoado, de sentir
o pavor de cada morte.
É curioso observar como as posições de Boccaccio, em vários sen-
tidos, são mais “ortodoxas” que as de Dante6. Porém, Boccaccio vê a

5
Vermeersch, P. A materialidade das penas no Inferno: a corporalidade do infortúnio na Tradição
Clássica. Anais do Colóquio do Grupo de Pesquisa o Corpo e a Imagem no Discurso, Uni-
versidade Federal de Uberlândia, 2017, disponível em http://www.ileel.ufu.br/cid/wp-content/
uploads/2017/06/Anais-CID-2017.pdf
6
O grande estudioso Francesco Mazzoni chega a observar que Dante é mais “moderno” que
seus comentadores, principalmente Boccaccio, que, ao fim da vida, converteu-se e escreveu lon-
gas cartas de arrependimento e obras voltadas à piedade mais convencional. Mazzoni, F. Giovanni
Boccaccio fra Dante e Petrarca. Atti e Memorie dell’Accademia Petrarca di Lettere, Arti e Scienze
di Arezzo, XLII n.s. (1976-1978).
76 Prazeres Possíveis

jovem Traversari com muito pouca simpatia, ao contrário da delicadeza


com a qual Dante constrói sua Francesca, obrigada pelo pai a se casar
com um homem muito mais velho e feio. Quem ouve a narrativa de
Francesca compreende porque ela se apaixonou pelo cunhado Paolo,
jovem e bonito. A mulher que desdenha, para Boccaccio, merece puni-
ção, mas Dante pede piedade para a alma de uma adúltera7.
A história de Nastagio degli Onesti pode ser lida como uma inversão
do Canto V do Inferno de Dante, no sentido que Boccaccio assume o
papel da proteção da família e dos
desígnios masculinos. Nastagio é
pobre, porém ama com sinceri-
dade. Que mais a jovem Traversari
pode querer? Interessante é que
na narrativa Filomena não investi-
ga as causas da recusa da jovem.
Nas cenas de Botticelli, a jovem
Traversari se torna uma das mo-
ças de boa família da Florença do
final do Quattrocento, as jovens
que saíam de seus lares com cas-
soni decorados com pinturas de
temas mitológicos e suas Madon-
nas em tondi de moldura dourada.
Fig.8. Santa Maria Madalena penitente. Uma dessas jovens, a esposa do
Donato di Niccolò di Betto Bardi, dito Do-
próprio Lorenzo di Pierfrancesco,
natello (c.1386-1466), 1453-1455. Álamo
branco, 188 cm. Florença: Museo dell’Opera encontrou num dos divãs da villa,
del Duomo. Foto: WikiCommons. o Nascimento da Vênus de mes-
tre Botticelli, fig. 7.
Não se trata, aqui, nem palidamente, de sugerir mais hipóteses so-
bre essa tela, tema da tese de doutoramento de Aby Warburg e de
suas preciosas análises . Apenas gostaria de observar que a obra, que
representa uma figuração do surgimento da deusa a partir das fontes

7
Boccaccio, ao comentar o Canto V do Inferno, fala dos tremores dos desejos dos amantes,
para explicar porque Francesca conta que “tremeu inteira” ao beijar pela primeira vez Paolo.
Desejo, “desiderio”, aparece em toda a Comédia, e o “desiderio” do peregrino Dante se torna
mais e mais ardente, a ponto de “ferver como lava” no Canto XXXIII do Paraíso. É possível
rastrear “desiderio” tanto na Comédia quanto nos comentadores no site Darthmouth Dante
Project, https://dante.dartmouth.edu/, onde os textos estão digitalizados integralmente.
Os tormentos do desejo e as vitórias da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch
77

antigas e da criatividade de Botticelli, foi um presente de casamen-


to de Lorenzo di Pierfrancesco para Semiramide Appiano. A Vênus
botticelliana adornava, em cima de um divã, um dos salões da Villa di
Castelo, com seu famoso jardim dedicado à deusa da beleza. Semi-
ramide tinha, diante de si, um outro discurso do que Lucrezia Bini e
suas “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Ao invés de uma mulher
dilacerada por ter sido desdenhosa, o pudor esplendoroso da potên-
cia da beleza.
O corpo feminino, exposto para o deleite masculino se cobre pre-
cariamente com os cabelos. Botticelli deliberadamente “inverte” o pu-
dor da Maria Madalena penitente de Donatello, fig.8, para respeitar o
motivo clássico do “pudor” da Afrodite greco-romana, que esconde o
púbis com tecidos. A Madalena de Donatello, com suas carnes ema-
ciadas pelos jejuns, flagelações e pela velhice, é uma figura repulsiva,
segundo os padrões de beleza e sedução da Florença do Quattro-
cento, em que até a Virgem Maria aparece com longos cabelos louros,
olhos amendoados e formas arredondadas, em tantos e tantos retá-
bulos . Madalena no deserto tem apenas os cabelos, outrora belos
e perfumados, e que enxugaram os pés de Cristo, para se cobrir- a
Vênus botticelliana que acaba de nascer, triunfante, logo receberá um
manto florido da ninfa das estações do ano. Se num caso os cabelos
escondem a penitência dura e o declínio, no outro asseguram a inven-
cibilidade do triunfo da deusa nascida em Chipre .
Botticelli, o pintor da Afrodite triunfante, que vem ao mundo do-
tada da força de Cronos e do Oceano, foi também capaz de pensar
uma maneira de narrar a história de Boccaccio- infernal, soturna e um
tanto quanto apavorante para uma jovem noiva. Falando de inver-
sões, e das ambivalências do desejo, Didi-Huberman chama Botticelli
do “caçador de Vênus”, o pintor que montou e desmontou o corpo
feminino de acordo com as conveniências de seus mecenas, das oca-
siões das encomendas e do gosto, que ele próprio ajudou a construir,
de seus conterrâneos. O debate entre Boccaccio e Dante, ao que
tudo indica, fomentou no pintor projetos de figuração distintos, nas
quais as projeções não apaziguam os tremores das almas ardentes.
78 Prazeres Possíveis

Referências

ALIGHIERI, D. Inferno. Commedia. Edizione di riferimento: a cura di Giorgio Petrocchi, 3


volumi. Milano: Mondadori, 1966-1967.
_______________. Inferno. Divina comédia.Tradução de Ítalo Eugênio Mauro. São Pau-
lo: Editora 34, 1999.
ARGAN, G. C. Botticelli. In IDEM. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi
a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BASKINS, C. L. Gender trouble in Italian Renaissance Art History: two case studies.
Studies in Iconography, vol. 16, 1994, pp. 1–36. Disponível em: <www.jstor.org/stab-
le/23924090>. Acesso em: 05/10/18.
BOCCACCIO, G. Decameron. Edizione di riferimento: a cura di Vittore Branca, Utet,
Torino, 1956, Torino: Einaudi, s/d.
____________________. Decameron. DEBENEDETTI, I. (tradução), BERRIEL, C. (in-
trodução). Porto Alegre: L&PM Editores, 2011.
DIDI-HUBERMAN, G. Ouvrir Vénus. Nudité, rêve, cruauté. Paris: Gallimard, 1999.
________________________. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
DUBY, G. Damas do século XIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KAMBER, G. Antitesi e Sintesi in «Nastagio Degli Onesti”. Italica, vol. 44, no. 1, 1967, pp.
61–68. Disponível em: <www.jstor.org/stable/477422>. Acesso em: 05/10/18.
MAZZONI, F. Giovanni Boccaccio fra Dante e Petrarca. Atti e Memorie dell’Accademia
Petrarca di Lettere, Arti e Scienze di Arezzo, XLII n.s. (1976-1978).
TERENZI, J. M. Do Caos à espuma: o sinuoso percurso de Afrodite. DAPesquisa, v.10,
n.13, p 63-74, junho 2015.
VERMEERSCH, P. Considerações sobre os desenhos de Sandro Botticelli para a Divina
Comédia.Tese de doutorado, IEL-Unicamp, 2007, disponível em: <http://repositorio.uni-
camp.br/jspui/handle/REPOSIP/27006;2>. Acesso em: 05/10/18.
___________________. “A materialidade das penas no Inferno: a corporalidade do
infortúnio na Tradição Clássica”. Anais do Colóquio do Grupo de Pesquisa o Corpo e a
Imagem no Discurso, Universidade Federal de Uberlândia, 2017. Disponível em <http://
www.ileel.ufu.br/cid/wp-content/uploads/2017/06/Anais-CID-2017.pdf>. Acesso em:
05/10/18.
WARBURG, A. O nascimento de Vénus e a Primavera. Lisboa: KKYM, 2012.
_______________. Histórias de fantasma para gente grande: escritos, esboços e con-
ferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
81

Do prazer na Beleza:
contemplação e
sublimação estética

Flávia Arielo

Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa,


Beleza! monstro horrendo e ingênuo! se de ti
Vêm o olhar, o sorriso, os pés, que abrem a porta
De um Infinito que amo e jamais conheci?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,


Se és capaz de tornar, - fada aos olhos leves,
Ritmo, perfume, luz! - a vida menos feia,
Menos triste o universo e os instantes mais breves?
(Baudelaire, Hino à beleza)

Conta-nos Homero, na Ilíada, que a beleza de Helena foi o pretexto


da disputa entre Menelau e Páris, culminando na célebre Guerra de
Tróia. Tão bela era a rainha, que poderia simbolizar, ao mesmo tempo,
desolação e consolação para o luto das vidas perdidas em combate.
Seria possível tomar emprestada a história de Helena de Tróia para
tentar compreender a expressão grega kalón kakón - o belo mal - que
Hesíodo (século XVIII a.C.) menciona em sua Teogonia, quando se re-
fere à Pandora? Creio que sim. São o prazer e a dor como duas faces
do mesmo objeto de desejo: a beleza. Em busca da beleza, homens de
todas as épocas e lugares travaram infinitas guerras e findaram muitas
82 Prazeres Possíveis

outras. Erigiram monumentos e destruiram outros tantos. Entoaram


canções, escreveram romances e tratados, pintaram quadros, desenha-
ram paredes e filmaram em alta resolução na tentativa de apropriar-se
de todas as formas da beleza.
Mas por quais caminhos a beleza se impõe sobre a vida humana?
Acuso de antemão ser essa uma imposição, e não uma escolha, visto
não ter conhecimento de um único ser humano sobre a face da Terra
que desvie seu olhar por muito tempo daquilo que é belo. A bele-
za encanta, sublima, transcende e dá prazer; porém, também angustia,
maltrata e desola. É exatamente por essa ambiguidade que ela nunca
se esconde de nosso olhar: se impõe através do irresistível prazer que
temos em observá-la e até mesmo em tentar possuí-la. É atravessando
o caminho do prazer que se buscará aqui apreender o gosto humano
pela beleza através das representações artísticas e suas reflexões filo-
sóficas e estéticas.
Ainda que este artigo não pretenda definir o conceito de beleza,
este se pautará primordialmente nas observações cuidadosas do filóso-
fo contemporâneo britânico Roger Scruton e do historiador e roman-
cista italiano Umberto Eco. Ambos se debruçaram longamente sobre a
fortuna da beleza e ressaltaram o prazer de suas descobertas. Segundo
esses autores, falar em beleza é se dedicar à contemplação, ao arreba-
tamento e à sublimação. Umberto Eco afirma que a beleza se identifica
com “as coisas que se mostram agradáveis à contemplação” (2014, p.
10). Nesse mesma linha, Scruton reconhece como intencional o prazer
que temos ao lidar com a beleza, pois ele é “contemplativo, nutrindo-se
da forma de seu objeto e renovando-se a partir dessa fonte” (2013, p.
40). Tal será o ponto de partida da presente reflexão: afinal, se uma das
formas de gozar a beleza ocorre a partir da contemplação, isso seria
proveniente exclusivamente da razão ou da estética?
Segundo a filosofia grega - principalmente no que tange a Sócrates
e Platão -, são muitos os atributos da beleza: a virtude, a bondade, a
felicidade, a verdade. Segundo os filósofos, todas estas propriedades são
captadas a partir daquilo que vemos e ouvimos. Eis porque a constata-
ção de que as primeiras representações artísticas gregas que louvavam
a beleza em relação à harmonia e à virtude, estavam contidas na ex-
pressão kalokagathía - a perfeição na beleza física e moral presidindo
o mesmo objeto. Portanto, se o prazer da beleza grega se manifestava
na harmonia das proporções e na expressão da beleza virtuosa, como
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
83

afirma Sócrates, a partir de Xenofonte “(…) então, o escultor tem de


saber representar nas suas estátuas as características da alma dos seus
modelos” (2009, p. 208).
Ainda que todas essas qualidades tenham sido vastamente louvadas
em nome da beleza, contemporaneamente não há consenso sobre qual
desses predicados revelaria o real mérito do ethos da beleza. Mas há
nela uma marca inegável de sua essência: a agradabilidade. O conforto
e o consolo causados pela admiração do que é belo agrada tanto o co-
ração quanto a razão do Homem. Pois então, saber que a beleza agrada
não aparenta representar exaustivo trabalho de percepção, visto que
até mesmo uma criança se agradaria de coisas belas sem maiores julga-
mentos. Mas como ressalta o filósofo britânico Edmund Burke (século
XVIII), é necessário fazer “um exame diligente das paixões que habitam
nossos próprios corações” (2016, p. 23) para distinguir e compreender
os caminhos que a a beleza oferece.
O prazer pode ser visto como uma das propriedades da beleza, visto
que ela não apenas nos agrada, como causa deleite naqueles que ousam
saciar o prazer ofertado por ela, seja esteticamente ou racionalmente.
Assim, o objetivo deste artigo é convencê-lo de que o prazer advindo
da beleza pode ser experimentado de muitas maneiras, dentre as quais
pelo viés da contemplação filosófica e da experiência artística.
Sob o ponto de vista teórico-filosófico, a beleza ocupou as men-
tes de Platão, Santo Agostinho, Immanuel Kant, David Hume, Edmund
Burke, Friedrich Nietzsche e uma infinidade de homens - e algumas
mulheres, como a poetisa grega Safo -, a olhar para o mundo ao redor
ou dentro de si, em busca de sentido e explicação para aquilo que os
agradava. Da busca do Bem supremo, da verdade absoluta, da represen-
tação da natureza, aos confins do vazio e abandono de Deus, aos apelos
do sexo e do corpo: a beleza contemplou a face de todos aqueles que
a buscaram algum dia.
Do ponto de vista estético, a beleza se apresenta forjada para o pra-
zer humano: de Homero a Fiódor Dostoiévski, de Safo a Baudelaire, de
Praxiteles a Monet, do cinema mudo a Stanley Kubrick: os contornos de
pedras, linhas, tintas e palavras se moldaram em torno da ode à beleza,
ainda que solfejassem angústia, dor, sofrimento e pesar. Por isso, uma das
propostas destas linhas é também a de convencer de que a beleza não
se revela exclusivamente por um único conceito de belo, mas também
pelos caminhos tortuosos e espantosos do sublime.
84 Prazeres Possíveis

O ponto de partida será o de um ambiente comum e confortável


para a maioria das pessoas: analisar as representações artísticas de Vê-
nus (ou Afrodite), a deusa da beleza. Nas primeiras páginas de apresen-
tação do livro A História da Beleza, Umberto Eco nos presenteia com
uma instigante linha do tempo iconográfica da evolução do conceito
de beleza, a partir de diversas obras artísticas da Vênus nua e vestida. A
começar pela Vênus de Willendorf (XXX milênio a.C.) chegando até as
fotos de musas desnudas do lascivo Calendário Pirelli (sec. XX), Eco sin-
tetiza o prazer fruído pelo olhar humano em relação à beleza feminina
e as maneiras como dá vazão a esse prazer valendo-se da reprodução
artística. É um verdadeiro banquete no qual os olhos se deleitam.
São tantas as efígies da beleza ao longo da história da arte, que se
torna uma tarefa quase deselegante escolher uma ou outra alegoria
para ressaltar o prazer. O principal intuito desta proposta não é desta-
car a mais bela ou mais prazerosa versão da personificação da beleza
e sim pontuar o quão diversa e pouco universal é a evolução do en-
tendimento do belo na arte, assim como apontar a impossibilidade de
mensurar o prazer advindo de cada uma delas. Sendo assim, a princípio,
evocarei o pintor florentino Sandro Botticelli.
A pintura O Nascimento de Vênus (Imagem 1) foi dada ao mundo
por Botticelli por volta de 1485, fim do Quatrocentos renascentista na

Imagem 1. A beleza no prazer desinteressado

Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus, c.1485 , Galleria degli Uffizi, Florença.


Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
85

Itália. O pintor partiu da descrição mitológica do surgimento da deusa


do amor e da beleza, representando seu nascimento de forma alegórica,
assim como nos contou Hesíodo, em sua Teogonia: a deusa nascida das
espumas (aphros, do grego), desliza em uma concha de madrepérola
até a ilha de Citera, onde é calorosamente recebida pelo manto da
primavera. O pintor florentino utiliza cores suaves e “realistas”, mas que
causam no observador a sensação etérea de participar desse momen-
to. Céu, mar e terra estão presentes na composição, indicando total
completude e reverência da natureza diante do surgimento da beleza
suprema, simbolizada pelos traços esculturais e alvos (tal qual as es-
culturas gregas de Praxiteles ou Miron) da Vênus nua. Trata-se de uma
beleza transcendental, idealizada e alcançada apenas pelo caminho da
contemplação, pois, como sugere Giulio Carlo Argan, além de ser apon-
tado como o último grande mestre do final do Quatrocentos, “Botticelli
foi considerado um místico do belo ideal, um verdadeiro esteta” (2003,
p. 260). Neste contexto, é necessário ressaltar o papel desempenhado
pela filosofia neoplatônica humanista, em plena efervescência no perí-
odo do Renascimento, a qual, diferentemente dos ideais platônicos da
antiguidade, se pretendia

(…) como um vago ser-além, com respeito à natureza (ou ao espa-


ço) e à história (ou ao tempo). Também o belo, com a qual a ideia se
confunde, é aliquid incorporem: desconfiança da realidade mais do que
imagem perfeita.Vale lembrar que o neoplatonismo é, como hoje diría-
mos, uma “filosofia da crise” (ARGAN, 2003, p. 261).

A crise citada por Argan faz referência ao sentimento de melancolia


(o Humanista Marsilio Ficino utilizou o termo malinconicus) que im-
perava durante o final do século XV e começo do XVI, por conta das
sucessivas crises políticas e culturais pelas quais passava Florença. Ainda
assim, observar a delicadeza do desenho e das pinceladas de Botticelli
desperta a contemplação de estigmas clássicos, pautados pelo “belo
espiritual e não físico: a nudez de Vênus significa simplicidade, pureza,
falta de ornamentos” (ARGAN, 2003,p. 262). Não há luxúria, tampouco
erotismo na Vênus de Botticelli, posto que a beleza da deusa é inefável,
inalcançável e demonstra recato na tentativa de encobrir sua própria
nudez com as mãos e os longos cabelos. Esta é uma vênus celestial, bem
distante dos demais mortais. Resta, então, uma pergunta: onde está o
86 Prazeres Possíveis

desejo e prazer nesta representação? É possível decifrar algo para além


do agradável sobre tais tintas? A resposta virá séculos à frente, sob a
tutela do filósofo Immanuel Kant (século XVIII), o qual indica, em seu
Crítica do Juízo (1790), a solução através da contemplação estética na-
quilo que define como “prazer desinteressado”. Segundo o filósofo, o
único interesse que há nesse prazer advém exclusivamente da razão e
parte de uma motivação moral: quanto mais o meu prazer se orientar
a partir do dever moral, mais imparcial será meu julgamento sobre as
coisas. Em outras palavras, quando se trata do julgamento da beleza,
“somos pessoas puramente desinteressadas, abstraindo-nos das con-
siderações práticas e atentando para o objeto com todos os desejos,
interesses e objetivos suspensos” (SCRUTON, 2013, p. 38). O prazer
desinteressado não está nas coisas em si e não advém exclusivamente
da experiência que os sentidos nos proporcionam, mas se encontra no
fundamento da contemplação do seu próprio objeto, e como afirma
Scruton, “o prazer desinteressado é uma espécie de prazer em” (2013,
p. 40), ou seja, este tipo de prazer subsiste no pensamento e na racio-
nalização sobre seu objeto.
A ideia kantiana sobre o prazer desinteressado tem por princípio e
fundamento uma das mais ricas teorias do século XVIII - o tão divul-
gado imperativo categórico - donde, em sua mais célebre obra, Crítica
da Razão Pura (1781), o filósofo buscou resolver quase todos os pro-
blemas morais a partir da universalização do comportamento humano
pelo viés da razão: se todos somos seres racionais - e fazemos uso
desta razão -, então chegaremos às mesmas conclusões em qualquer
que seja o assunto. Eis a lei universal kantiana. Pautado nisso, Scruton
confirma que “a beleza não é a fonte do prazer desinteressado, mas
apenas o objeto de um interesse universal: o interesse que temos pela
beleza e pelo prazer que ela nos propicia” (2013, p. 39).
Posto isso, é possível ler a pintura de Botticelli a partir de regras uni-
versais de padrão de beleza instaurados na antiguidade e amplamente
retomadas durante o Renascimento. Neste aspecto, tendo a dar razão
ao filósofo da arte, Arthur Danto, ao afirmar que “a beleza pode até ser
subjetiva, mas é universal, como insistia Kant” (2015, p. 36). E ainda hoje,
no século XXI, parece-me que Kant não ficaria desapontado ao visitar a
Galleria degli Uffizi e perceber a reação de multidões que contemplam
a alva, pura e imaculada Vênus de Botticelli.
Antes de partir para o próximo exemplo, gostaria de brindá-los com
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
87

Imagem 2. A beleza como prazer

John William Waterhouse, Hilas e as Ninfas, 1896. Manchester Art Gallery.

um pequeno regalo. Relatos da época renascentista revelam que a pró-


pria musa inspiradora de Botticelli galgou o título de mais bela dentre
as mulheres de sua época. Estou a falar de Simonetta Vespuccio, o amor
platônico de Botticelli, a fonte de todos seus desejos e inspiração de
suas mais belas obras. La bella Simonetta inspirava desejo por onde an-
dava e passou a personificar o modelo idealizado dos pintores de sua
época. Pelas mãos de Botticelli, ela se transformou em muitas Vênus
e ninfas. Pelas tintas de outros renascentistas, foi Perséfone, a Virgem
Maria e inúmeros outros retratos. E ainda que a mais bela das mulheres
não se permitisse saciar os prazeres de Botticelli em vida ( visto que era
casada com Marco Vespucci), o destino garantiu que o último desejo
do pintor suprisse a falta da musa em vida: ao morrer, Botticelli suplica
que seja enterrado aos pés da amada. Prazer - ainda que platônico -
realizado na eternidade. Por outro lado, nem só de beleza idealizada e
contemplativa são formadas as representações da Vênus.
Qual sua sensação ao observar Hilas e as Ninfas (Imagem 2), de Wa-
terhouse? Hilas estaria inclinado a aceitar o convite e mergulhar em suas
águas? Apresentaria relutância ou se entregaria ao deleite oferecido por
essas beldades da natureza? E você? Identifica-se com o torpor de Hilas
ou com a suavidade carnal estampada nas faces das náiades?
John William Waterhouse foi um representante tardio da suis generis
88 Prazeres Possíveis

Irmandade Pré-Rafaelita, durante o período vitoriano na Inglaterra. Este


peculiar movimento artístico encarnava o espírito simbólico e místico
do Romantismo alemão do século XIX. Sobre o conceito de Romantis-
mo, refiro-me especificamente à tradição filosófico-literária dos séculos
XVIII e XIX, que olhava para os séculos anteriores de forma a recupe-
rar ideais medievais, renegando a tradição racional iluminista francesa.
Os românticos não desejavam leis, regras ou normas de conduta. Em
vez disso, refestelavam-se entre símbolos, alegorias, mitos e qualquer
tipo de linguagem que tentasse dar conta da profundidade da vida. O
filósofo judeu britânico Isaiah Berlim (século XX) apresenta ricamente
este tema em seu livro Raízes do Romantismo (2001). Conceitos como
“Absoluto”, “abismo sem fundo”, “profundidade” e “irredutibilidade” são
peças-chave para submergir no universo romântico. É possível sinte-
tizar o pensamento romântico na seguinte frase: “O romantismo nos
legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual
não nos reconhecemos (PONDÉ, 2013c).
É nesta conjuntura que a Irmandade Pré-Rafaelita se insere, abarcan-
do em sua proposta estética características dos movimentos realista,
simbolista, do Romantismo e até mesmo do nascente Impressionismo.
A Irmandade fora fundada em 1848, pelo poeta e pintor inglês Dante
Gabriele Rossetti, e tinha por princípios o retorno romântico ao Qua-
trocentos renascentista, período de grande profusão artística, princi-
palmente entre os pintores flamengos com suas temáticas religiosas.
Os pré-rafaelitas abominavam a exacerbação da técnica e do Realismo
instaurado por Rafael Sanzio, o qual acabou por influenciar toda arte
ocidental e, principalmente, o academicismo artístico que imperava so-
bre os artistas europeus do século XIX. Como aponta Gombrich,

(...) meditaram eles sobre sobre as razões que tinham levado a arte a
cair em tão perigosa rotina. Sabiam que as academias se proclamavam
representantes da tradição de Rafael e do que ficou conhecido como
“Estilo Grandiloquente”. Se isso era verdade, então a arte tomara ob-
viamente um rumo errado com Rafael - e por obra dele (1993, p. 404).

Ao repúdio rafaelita juntava-se o indescritível teor místico, re-


sultado iminente dessa atmosfera rica e tenebrosa exalada pelos anta-
gonismos do período romântico e sua profusão do conceito de subli-
me. Rossetti apontava para o caminho da transcendência e da busca de
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
89

Deus - impecavelmente personificado em sua obra Ecce Ancillia Domini!


(1850) - , mas termina por regular seus pincéis pelo viés da sensualidade
humana:

(…) as suas mulheres, as suas Beatrizes e as suas Vênus têm bocas


carnudas e olhos acesos pelo desejo. Mais que às mulheres angelicais da
Idade Média, elas fazem pensar nas mulheres perversas que habitam os
versos de Swinburne, mestre do decadentismo poético na Inglaterra.
(ECO, 2014, p. 351).

O rigor pré-rafaelita está presente em Hilas e as Ninfas, assim como


toda essa carnalidade descrita por Umberto Eco. É possível olhar para
cada uma das ninfas de Waterhouse como olhamos para as demais
Vênus: como uma representação de um tipo de beleza e de um ideal.
Neste caso, a despeito da pureza, da proporção e da harmonia pre-
gadas pela antiguidade clássica e pelo Renascimento, temos o desejo,
o prazer e a sensualidade, fiéis aos ideais do século XIX. Waterhouse
revisita o mito de Hilas, o mais belo argonauta e amante de Héracles
(Hércules). Na busca pelo Velocino de Ouro, Héracles e a tripulação da
Argo aportam na Ilha de Mísia, quando o escudeiro de Héracles, Hilas,
sai em busca de água e se depara com as náiades - as ninfas dos lagos.
Era tal a beleza de Hilas que as ninfas se encantam pelo argonauta,
arrastando-o para as profundezas do lago. Héracles sai em busca do
amado, sem sucesso. Grita por seu nome, mas tem por retorno apenas
o eco de sua súplica.
John Waterhouse transmuta o mito trágico grego para a estética am-
bivalente do momento que pintava: a profundidade dos azuis e verdes
do lago nos carregam para junto da pintura, como se fôssemos traga-
dos pelo poder sedutor das muitas Vênus que nos chamam a participar
de seu mergulho eterno. Ainda que o pintor tenha optado por ninfas e
não a clássica deusa da beleza, temos ali um arquétipo, uma reprodução
idealizada de um tipo de beleza, como descrito por Ferrazza: “Na pin-
tura, o transbordamento amoroso e o êxtase são sugeridos de forma
controlada, e a nudez dialoga com o tema: é principalmente nos olhares
incisivos e nos gestos contidos que a sedução acontece” (2018).
É possível interpretar as ninfas de Waterhouse como deusas da be-
leza e da sedução se olharmos para as formas de reprodução dos
arquétipos da beleza ao longo da história da arte. As idealizações - por
90 Prazeres Possíveis

mais que desejem o perfeito e o ideal -, precisam fincar parte de suas


bases na observação do real e na proximidade com o mundo dos ho-
mens. Assim como Botticelli se valeu da mais bela das mulheres para
idealizar a Vênus (que por conseguinte servirá de infinitas maneiras à
compreensão de beleza feminina), boa parte da inteligência artística se
pautará na percepção do mundo sensível para depois transmutá-lo em
supra-sensível, e assim tornar o inacessível em acessível, posto que

As a counterpoint to the links between beauty and deity, so strong in


aristocratic settings, which might highlight the difficulty of achieving such
beauty - popular’s account of Venus beauty tend to humanize goddess
and to identify her with real palpable girls from this social group thus
rendering her close and accessible. (FEITOSA; FUNARI, 2015, p. 144)1

Hilas e as Ninfas nos apresenta de forma alegórica o prazer na be-


leza: o encantamento duplo entre Hilas e a ninfa que o olha profunda
e diretamente nos olhos é característica do movimento Romântico,
que busca no Absoluto a aceitação do destino que se impõe sobre
os homens. Não existe negação do desejo ou do prazer, e sim uma
exacerbação dos sentimentos e dos gostos. Umberto Eco afirma que
a beleza para os românticos é o que “(…) produz a verdade. A Beleza
não participa da verdade, mas é o seu artífice” (2014, p. 317). E continua:

Essa beleza tem o poder de dissolver o próprio conteúdo particular


para abrir a obra de arte para o Absoluto e, simultaneamente, de su-
perar a forma da obra de arte na direção da obra de arte absoluta,
expressão da arte inteiramente romantizada (2014, p. 317).

Essa predisposição ao Absoluto através do belo estético, tão carac-


terística desse momento histórico, pode ser sintetizada pela busca de
uma essência infinita, como admite Tzvetan Todorov: “Por que o Belo
goza de tal privilégio? A definição que lhe dá Schelling é “o infinito
representado de modo finito”: o belo designa nosso contato com o
infinito” (2014, p. 272).

1
“Como um contraponto de conexão entre beleza e deidade, tão forte em cenários aristocráti-
cos, que podem realçar a dificuldade de alcançar tal beleza - o relato popular da beleza de Vênus
tende a humanizar a deusa e a identificá-la com meninas reais desse grupo social, tornando-a
assim mais próxima e acessível” (tradução da autora)
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
91

Ao recuperar mitos da antiguidade revestidos de beleza romântica,


Waterhouse faz seu anúncio sobre o prazer perpetrado pela beleza
como uma das formas de tocar esse Absoluto, e de forma alegórica,
mostra não negar o destino que se impõe à realidade, agarrando-se a
ele como a ninfa ao braço de Hilas - suave e mortalmente.
A Vênus moderna proposta por Waterhouse e metaforizada em
suas ninfas foge à representação ingênua e recatada da Vênus de Botti-
celli. Os corpos já não revelam as formas belas e rígidas das esculturas
greco-romanas, mas são insinuantes nus à procura da realização de um
desejo. Não estou falando aqui de uma arte pornográfica, mas eroti-
zada. Roger Scruton pontua que, a partir de Ticiano - o pintor renas-
centista que prenuncia o movimento Barroco -, e sua Vênus de Urbino
(1538), temos uma nova interpretação de Vênus: a deusa passa a ser
representada reclinada (ao contrário da posição vertical, indicativo de
superioridade e objeto de louvor), exibindo seu corpo e sua sexualida-
de àqueles que a olham e entendem o seu desejo. No caso da Vênus
de Urbino, a musa exibe um olhar sincero e uma “corporificação” do
desejo (SCRUTON, 2013, p. 160), isto é, ainda não é um corpo a ser
possuído, mas está para além da idealização anterior.
Esse movimento citado por Scruton demarca os limites entre dois
tipos de beleza que interessam aqui: a celeste e a mundana. Enquanto
a arte e a estética do belo, até o século XV, galgavam a Vênus exclusi-
vamente ao Olimpo e a outros mundos celestiais, os períodos recor-
rentes a tornarão também terrena, humanizando a deusa e sua bele-
za, transpondo ideias e renovando paradigmas. Se Botticelli alçou sua
musa (tanto Vênus quanto Simonetta) para além do desejo e do prazer
carnal, Waterhouse propõe o contrário ao erotizar o olhar das ninfas
para Hilas. O prazer em possuir a beleza única do argonauta transpõe a
pintura e nos faz também desejar partilhar aquele momento.
Recentemente, em janeiro de 2018, uma polêmica foi suscitada em
torno do quadro de Waterhouse. A Galeria de Arte de Manchester,
à qual pertence a obra, juntou-se às ondas de debate feministas con-
temporâneas e decidiu retirar temporariamente Hilas e as Ninfas da
sala intitulada “À procura da beleza”. No centro do debate estava a
tentativa de despertar a reflexão sobre o corpo e a nudez feminina
como objetificação do mundo masculino ao longo da história da arte.
Sob o ponto de vista da curadoria do museu, as ninfas do pintor inglês
sentenciavam ardilosamente Hilas à morte, expressando através desse
92 Prazeres Possíveis

ato o papel simbólico da mulher enquanto femme fatale nas fantasias


masculinas, ou simplesmente como meros corpos nus decorativos. No
lugar do quadro, um aviso alertava os visitantes a se manifestarem sobre
o assunto, grudando suas ideias em pedaços de papel. A polarização de
opiniões logo tomou conta do debate no mundo artístico e principal-
mente das redes sociais ao longo do mundo. De um lado, os objetivos
do museu foram atingidos, visto que a proposta realmente tomou lugar
de destaque num momento propiciado por movimentos de denuncia
de assédio sexual no meio artístico; por outro, acalorou os movimen-
tos anti-censura, que declaravam o museu como politicamente correto,
oportunista e permissivo com a repressão da liberdade artística e de
pensamento.
Estamos diante de embates bastante comuns ao século XXI: a demo-
nização da beleza, a iconoclastia e a tentativa de apagar o passado. Primei-
ramente, foge à baila da discussão proposta pela curadoria da galeria - e
principalmente ao debate que se seguiu nas mídias sociais -, a contextuali-
zação da obra de Waterhouse. Como afirma Ferrazza (2018),

Waterhouse representou uma mulher multifacetada, que podia desem-


penhar diferentes papéis. Em suas telas, encontramos heroínas, mártires,
santas e bruxas. Isso é notável se pensarmos no contexto em que pro-
duziu suas obras: a era Vitoriana (reinado da Rainha Vitória, de 1837 a
1901) e a era Eduardiana (reinado de Eduardo VII, de 1901 a 1910). Foi
nesse período que as mulheres inglesas iniciaram sua luta por igualdade
social, como, por exemplo, o movimento das sufragistas, que data de
1897. Por outro lado, foi também um período de repressão contra a
sexualidade feminina. Waterhouse mostra-se sensível a essas questões
ao escolher figuras femininas como protagonistas e, muitas vezes, únicas
personagens em suas telas.

John Waterhouse se debruçou sobre o universo feminino, e por prin-


cípios estéticos anteriormente expressados, deu voz à mulher como
Vênus terrena, como ser desejante e desejado. Mas o que o manifesto
do museu representa de fato é uma visão de superioridade do conte-
údo contemporâneo sobre a forma artística, execrando a beleza como
representação genuinamente moral ou de ordem racional e julgando-a
de forma superficial e anacrônica, promulgando assim a morte da esté-
tica que preza pelo belo.
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
93

Quando falamos em estética, Benedito Nunes pontua que o belo é


“prazer de ordem superior, decorre mormente da atividade privilegiada
desses dois sentidos, de natureza intelectual, a vista e o ouvido, que
estariam mais próximos da essência imaterial da alma” (1989, p. 18). Se
apreendemos o mundo ao nosso redor através de nossos sentidos, o
objeto estético pressupõe exatamente esse sentir, experimentar uma
sensação, ou seja, ter uma experiência pessoal e intransferível com o ob-
jeto proposto, em outras palavras: o sentimento estético não pode ser
vivenciado e experimentado ipsis litteris por duas pessoas. Quando cha-
mamos a algo de “belo”, isso pode, segundo Scruton, ser compreendido
de duas formas: “(…) ‘beleza’ significa o êxito estético; no outro, apenas
um tipo de êxito estético” (2014, p. 25). Ainda que essa experiência
não possa ser vivenciada de maneira exata por pessoas diferentes, um
dos atributos da beleza é a busca pelo universal, como afirma Benedito
Nunes

O prazer relacionado com o Belo tende a universalizar-se, e é nisso que


difere do prazer sensível. Ao experimentarmos a Beleza, reconhecemos
um objeto valioso que outras consciências também poderão reconhe-
cer. (1989, p. 49)

E também Scruton

A beleza está nas aparências, mas elas são também realidades e as coi-
sas que compartilhamos. Nosso interesse nas aparências vem do desejo
de estar em casa quando nos encontramos nos nossos arredores e de
encontrar escrito algum registro das nossas preocupações pessoais no
mundo dos objetos. É no mundo das aparências que nos tornamos o
que realmente somos. (2017, p. 154-155)

Tendo por base Immanuel Kant, Scruton afirma que, a partir da aparên-
cia, os objetos são passíveis de serem contemplados. Isso indica que pode-
mos contemplar o mundo a partir daquilo que a aparência nos permite
ver e assim buscamos sentido no mundo através desse olhar orientador
da aparência. Mas resta a pergunta: como transfigurar os sentidos em
formas, em palavras, ou seja, como transmutar o mundo da aparência em
mundo inteligível? Qualquer tentativa de obter real prazer na transforma-
ção estética da beleza não legaria necessariamente uma falta?
94 Prazeres Possíveis

É exatamente neste vácuo (que nem sempre deve ser completa-


mente preenchido, dando espaço à imaginação - conteúdo essencial do
campo da fantasia e do prazer), que reside o prazer da contemplação
do beleza, o qual se vê obnubilado pela tentativa de manifesto panfle-
tário da Galeria de Manchester. Ao se demonizar a beleza presente na
obra e rebaixá-la apenas ao papel de objetificação, é renegada toda a
história da beleza ocidental europeia, e abre-se precedente para uma
iconoclastia da beleza e do prazer, como pontua João Pereira Coutinho
(2018): “Os novos puritanos são, como os iconoclastas do passado, lite-
ralistas, ou seja, incapazes de entender a natureza simbólica, iconológica,
de uma imagem”. O êxito estético que garante a apreciação da beleza,
mencionado por Scruton, carrega uma escolha de olhar sobre o objeto
artístico e depende da compreensão de uma gama de carga simbólica,
racional e filosófica como fonte de interpretação. Ignorar estes precei-
tos, inevitavelmente, lver-nos-ia à margem obscurantista do relativismo,
posto que “quando lemos a arte com os nossos próprios preconceitos,
é possível projetar sobre as coisas belas a sombra viscosa dos nossos
fantasmas” (COUTINHO, 2018).
Abandonada a zona de conforto, a última análise artística percorrerá
outros caminhos de prazer, sem no entanto desamparar a beleza. O
debate acerca do belo se cruza com os pressupostos do sublime e um
possível resultado pode ser exemplificando a partir do Cristo Morto na
Tumba, de Hans Holbein (Imagem 3).
Imagino a indignação do leitor, estupefato diante do Cristo Morto pre-
sente num livro sobre o prazer. Ainda mais em um capítulo que se diz

Imagem 3. A beleza no sublime

Hans Holbein, Cristo Morto na Tumba, 1521. Museu de Belas Artes (Kunstmuseum), Basilea.
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
95

reverenciar a beleza. Posto de lado o choque, discutamos o prazer no


sublime. O painel O Cristo Morto na Tumba foi concebido pelo pintor
alemão Hans Holbein, o Jovem, em 1521, momento de grande dispersão
renascentista para além da Itália. É possível notar a preocupação intelec-
tual e racional do pintor em apontar com riqueza de detalhes o corpo
inerte e rijo de um deus morto: jaz o Cristo com seu olhar petrificado,
a boca entreaberta e as chagas ainda latentes. Um verdadeiro cadáver
dissecado pelo olhar do pintor. Sublimado diante deste quadro, em 1867,
o escritor russo Fiódor Dostoiévski simbolizou todo seu assombro numa
das mais belas e repetidas frases do século seguinte, pela boca de um de
seus personagens no livro O Idiota: a beleza salvará o mundo.
O impacto gerado pela observação do Cristo Morto foi relatado de-
talhadamente pela segunda esposa de Dostoiévski, Ana:

O quadro deprimiu Fiódor Mikhailovitch, que se sentiu derrotado dian-


te dele. Eu não tive forças para olhar o quadro, me impressionava com
facilidade (…) Quando voltei quinze, vinte minutos depois, encontrei
Fiódor Mikhailovitch ainda diante do quadro, como se estivesse preso.
A expressão de seu rosto era de preocupação e susto, a mesma que vi
várias vezes, nos primeiros minutos de um ataque de epilepsia (DOS-
TOIEVSKAIA, 1999, p. 133).

Onde está a beleza e o prazer na obra de Holbein? O arrebata-


mento do escritor russo diante da pintura lhe rendeu uma epifania
salvacionista, na qual a beleza rege soberana e íntegra: a beleza que
Dostoiévski - e Holbein -, aponta é, ao mesmo tempo, detentora de
verdade, bondade, sacrifício e horror. Apenas as belas formas da beleza
não seriam capazes de converter o belo em salvação, por isso o concei-
to de sublime passa a representar também o complemento da beleza.
Ainda que Edmund Burke afirme que “(…) deve-se necessariamente
ser admitido que os prazeres e as dores que cada objeto incita em um
homem devam causar o mesmo em toda a humanidade” (2016, p. 32),
o mesmo Burke conclui que “dor e prazer são ideias simples, incapazes
de serem definidas” (2016, p. 46). A dor da experiência vivida por Dos-
toiévski foi transmutada em beleza fora do ideal, fora do padrão, pois

Todos os escritores, não somente os nossos, mas também os estran-


geiros, que tentaram representar a Beleza Absoluta, foram desiguais em
96 Prazeres Possíveis

seus resultados, pois é algo infinitamente difícil de representar. A beleza


é o ideal; mas ideais, seja entre nós ou na civilizada Europa, há muito se
desfazem. Há no mundo apenas uma figura de absoluta beleza: Cristo.
Aquela figura infinitamente adorável é, de fato, uma maravilha infinita
(todo o Evangelho de São João está repleto desse pensamento; João vê
a maravilha da Encarnação, a aparição visível do Belo) (DOSTOIÉVSKI,
2009, p. 138).

Ao analisar a obra de Dostoiévski, o filósofo Luiz Felipe Pondé


(2013a) argumenta que Míchkin - o personagem principal de O Idiota
que aponta para a beleza como salvação - nos conta que se tivéssemos
consciência de nossa mortalidade, teríamos uma apreensão completa-
mente diferente da vida. Esta é a verdadeira beleza que o painel de Hol-
bein imprimiu em Dostoiévski: o prazer de viver a partir da concepção
de nossa própria finitude.
Para compreender melhor esse tipo de análise, faz-se necessário
discutir o conceito de sublime. O termo foi primeiramente conceitua-
do por Pseudo-Longino, em 1554, na Basiléia, almejando dar conta de
definições que não cabiam mais exclusivamente à beleza. Interessante
destacar o contexto histórico do início do período moderno, devastado
existencialmente pelos estudos de Copérnico em relação ao lugar da
Terra no universo: o homem moderno tem de aprender a lidar com seu
destronamento do centro do mundo. Eis um vazio a ser ocupado pelas
artes, como aponta Remo Bodei

A ‘ferida narcísica’ sofrida pela espécie humana quando foi relegada à


periferia da ‘criação’ é ressarcida somente em parte pela maior atenção
promovida pelas artes a respeito desse mundo, mediante a nascente
reflexão estética e através das teorias científicas, que mostram como
nunca a plena racionalidade do mundo físico e, em perspectiva, do
mundo histórico (2005, p. 115).

Segundo Bodei, o sublime é uma “sensação totalmente humana”


(2005, p. 112), pelo qual o homem busca elevação de espírito, “retidão
e ‘verticalidade’ moral” (2005, p. 113), para além das banalidades cotidia-
nas. O sublime e o belo representariam uma antítese, na qual

a ideia do belo (…) implica a procura de um prazer, não desprovido


Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
97

de melancolia, ligado à esfera sexual, à propagação da espécie. Todavia,


a ideia do sublime contém um prazer negativo, um “horror prazeroso”
(BODEI, 2005, p. 119).

Tanto Bodei, quanto Umberto Eco e Roger Scruton apontam se-


melhanças e divergências entre as definições de beleza e de sublime,
sendo que todos são conduzidos através dos estudos do pensador do
sublime moderno, o filósofo Edmund Burke que, em 1757, torna pública
sua Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e da
beleza. Burke desmembra os conceitos de beleza e sublime, legando
a cada qual um lugar próprio, não apenas no campo da estética, mas
principalmente “para a dimensão do poder, da vitalidade e da experi-
ência do corpo e das paixões” (BODEI, 2005, p. 118). O livro de Burke
discorre sobre certas definições como dor, prazer, terror, obscuridade,
luz, delicadeza e tantas outras, na tentativa de apresentar e discernir a
beleza e o sublime. Em linhas gerais, a primeira definição de Burke sobre
o sublime enseja

o que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor
e de perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que
compreenda objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é
fonte do sublime; ou seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que
a mente é capaz de sentir” (BURKE, 2016, p. 52).

Em seguida, Burke ainda supõe que a relação que o homem trava com
a morte desperta a mais pura sensação do sublime: o sentimento ou a
reflexão sobre a morte ultrapassa qualquer afeto de dor ou prazer, legan-
do-nos um estado para além do comum, para cima (sub-limen) ou para
baixo (sub-limo). Exatamente por isso, quando nos deparamos com o
sublime, as sensações se mostram ambíguas e desordenadas, misturadas
entre si, sem definição clara entre o bem e o mal. As bases traçadas pela
doçura e clareza da beleza não podem se valer dos mesmos parâmetros
para o sublime, pois este adiciona o dionisíaco ao apolíneo - fazendo aqui
um empréstimo da linguagem nietzscheana. O claro e o escuro, o verda-
deiro e o dissimulado, a beleza e a feiura, o divino e o demoníaco: a vida
humana veste a capa do sublime em todas suas incongruências, desde
que o homem perceba sua nulidade diante desses paradoxos e que, a
partir disso, eleve-ve espiritualmente. Dito de maneira clara
98 Prazeres Possíveis

(…) a nobreza do espírito não é outra coisa senão a dignidade do


sublime: ou seja, diante das dimensões e das forças obscuras do mundo,
estou consciente de minha nulidade, isto é, de não ter valor na econo-
mia do universo; tenho consciência também do risco de ser esmagado
e aniquilado pela potência de suas forças e de ser como que um caniço
dobrado por todos os ventos, porém, “um caniço que pensa” (BODEI,
2005, p. 116).

Eis a justificativa de minha escolha pela pintura de Holbein, junta-
mente com a descrição do sentimento de êxtase de Fiódor Dostoiévski
diante do painel: de forma quase didática, e ainda assim enigmática e
bela, a arte de Holbein despertou o sublime em Dostoiévski, que, por
conseguinte, continua a nos sublimar a partir de sua obra O Idiota. Há
quem julgue a reação do escritor meramente sob o aspecto psico-fisio-
lógico (há certos estudos que garantem que o russo sofria da peculiar
Síndrome de Stendhal, também conhecida por Síndrome da Sobredose de
Beleza, o que já garantiria em si um debate absolutamente interessan-
te), tendo em vista que sofria de epilepsia. Sinto mais prazer em levar
adiante a versão do sublime: o sentimento de horror prazeroso diante
daquilo que não tem nome.
Findo este artigo após discorrer sobre o lugar da beleza e do sublime
na arte, a partir das representações magistrais das Vênus em diferentes
tempos históricos e sob diferentes olhares de percepção e representa-
ção do prazer no Belo. É nítida a ideia de que a beleza nos agrada, tanto
pela da experiência obtida pelos nossos sentidos quanto pela riqueza
da percepção racional do debate filosófico. Para Roger Scruton, este
seria não apenas o melhor, mas o único caminho para atingir a con-
templação do belo. Resumindo, em suas palavras, “tudo o que afirmei
acerca da experiência da beleza insinua que ela possui fundamentos
racionais” (2013, p. 206). Como visto, a tese do filósofo britânico, pauta-
da principalmente em Kant, reforça a obsessão pela pureza e harmonia
inalcançáveis na personificação da Vênus renascentista, e contribui para
determinar a noção de beleza em toda a arte europeia ocidental, pelo
menos até o século XIX.
Ainda assim, o prazer proveniente dessa experiência pode se apre-
sentar de forma ímpar e multifacetada, como nos demonstra o Cristo
de Holbein e a experiência extática de Dostoiévski. O sublime personi-
fica o belo para além da razão, da proporção e da pureza; ele abrange
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
99

uma infinidade de sensações estéticas, amplamente representadas pelo


mundo artístico, principalmente a partir do pensamento romântico do
século XIX. Desse modo, é possível experimentar a multiplicidade de
prazeres advindos de tão diversas formas de perceber a beleza. Seja
corroborando a premissa racional de Scruton, seja ampliando os sen-
tidos com o mergulho no Absoluto romântico do sublime, são todos
estes modos de deleite na beleza.
Volto ao começo, reforçando o que havia postulado: ainda que com-
pletamente racional ou opostamente estética, a beleza não se esconde
de nosso olhar, longe disso: ela se impõe, no domínio de corações e
mentes, de percepções e representações, da Antiguidade aos nossos
dias. E ainda que exista qualquer tipo de insistência em denegrir ou
ocultá-la, isso seria como “negar que o pulmão não quer ar” (PONDÉ,
2013, p. 167b). Por isso, reafirmo que Dostoiévski tinha razão: a beleza
salvará o mundo.

Referências

ARGAN, G. C. História da arte italiana. Vol. 2. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
BERLIN, Isaiah. As raízes do romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
BODEI, Remo. As formas da beleza. Bauru: Edusc, 2005.
BOTTICELLI, S. O nascimento de Vênus. Disponível em <https://upload.wi-
kimedia.org/wikipedia/commons/thumb/4/47/La_nascita_di_Venere_%28Bot-
ticelli%29.jpg/800px-La_nascita_di_Venere_%28Botticelli%29.jpg> Acesso em
27 mar. 2018.
BURKE, E. Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime
e da beleza. Bauru: Edipro, 2016.
COUTINHO, J. P. Novos puritanos não entendem a natureza simbólica da arte.
Folha de São Paulo. São Paulo, 2018. 2 fev. 2018. Disponível em <https://www1.
folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2018/02/novos-puritanos-nao-en-
tendem-a-natureza-simbolica-da-arte.shtml> Acesso em 29 mar. 2018.
ECO, U. História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2014.
DANTO, A. C. O abuso da beleza. Martins Fontes: São Paulo, 2015.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Dostoiévski: correspondências (1838-1880). Porto Ale-
gre: 8Inverso, 2009.
DOSTOIEVSKAIA, A. G. Meu marido Dostoiévski. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
100 Prazeres Possíveis

FEITOSA, L. C.; FUNARI, P. P. Feeling the roman skin: Unsettled, Conformed and
plural bodies In: Coming to senses: topics in sensory archeology. Cambridge
Scholars Publish, 2015. p. 141 - 156
FERRAZZA, L. A maldição da beleza. Estado de São Paulo. São Paulo, 2018.
24 fev. 2018. Disponível em <http://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-ar-
te/a-maldicao-da-beleza/> Acesso em 26 mar. 2018.
GLEHN, P. R. von. O Cristo de Hans Holbein na composição interna da obra
‘O Idiota, de Dostoiévski. In Revista do SELL, vol 4, n 1, 2014. Disponível em
<http://seer.uftm.edu.br/revistaeletronica/index.php/sell/article/view/533/623
> Acesso em 23 mar. 2018.
GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1995.
HOLBEIN, H. O Cristo morto na tumba. Disponível em <https://commons.
wikimedia.org/wiki/File:The_Body_of_the_Dead_Christ_in_the_Tomb,_an-
d_a_detail,_by_Hans_Holbein_the_Younger.jpg> Acesso em 25 mar. 2018.
NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1989
PONDÉ, L. F. Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. São
Paulo: Leya, 2013a.
___________ A filosofia da adúltera: Ensaios selvagens. São Paulo: Leda,
2013b.
___________ As raízes do Romantismo. Folha de São Paulo. São Paulo, 2013c.
09 set. 2013. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipe-
ponde/2013/09/1338890-as-razies-do-romantismo.shtml> Acesso em 30 mar.
de 2018.
SCRUTON, R. Beleza. São Paulo: Editora É, 2013
_______________. O rosto de Deus. São Paulo: Editora É, 2015.
_______________. A alma do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2017.
TODOROV, T. A beleza salvará o mundo. Rio de Janeiro: Difel, 2014.
XENOFONTE. Memoráveis. Coimbra: Coimbra University Press, 2009. Dis-
ponível em <https://digitalis-dsp.uc.pt/jspui/bitstream/10316.2/2416/9/memo-
raveis.pdf?ln=pt-pt> Acesso em 25 mar. 2018.
WATERHOUSE, J. W. Hilas e as Ninfas. Disponível em <https://commons.wiki-
media.org/wiki/File:Waterhouse_Hylas_and_the_Nymphs_Manchester_Art_
Gallery_1896.15.jpg> Acesso em 29 mar. 2018.
103

Prazer e desejo nas telas:


uma análise na telenovela
O Bem-Amado (1973)

Emilla Grizende Garcia

Próxima à sensibilidade e a cultura popular, a telenovela está tão pre-


sente no cotidiano dos telespectadores que conduz a uma relação que
entrelaça a vida real e a ficção, intercalando a identificação, o prazer e a
fantasia. Ao dar vazão ao prazer, ao proibido, ao fantasioso, o melodra-
ma audiovisual cria uma atmosfera de liberdade imagética, mesmo em
tempos nos quais essa mesma liberdade era, a todo momento, cercea-
da pela censura federal. Nesta direção, este artigo objetiva percorrer o
prazer de ver telenovelas e o prazer representado em O Bem-Amado,
de autoria de Dias Gomes e exibida no início da década de 1970, du-
rante os anos mais repressivos da ditadura militar brasileira.
A telenovela, mais que qualquer outro gênero televisivo, sintoniza o
telespectador de tal maneira com a trama que o propicia vivenciar sen-
sações de prazer que sua vida não o possibilitaria. Consequentemente,
a telenovela pode ser observada como um espaço para a constituição
104 Prazeres Possíveis

de imaginários coletivos a partir dos quais as pessoas se reconhecem


e se representam. Os folhetins eletrônicos permitem ao telespectador
consumir, simbolicamente, diferentes formas de prazer inalcançáveis, a
não ser, em seu imaginário, por meio de representações e projeções
no cotidiano.
Na perspectiva psicanalítica, o prazer é entendido, segundo Sigmund
Freud (2006), a partir de um par de expressões antagônicas – o princí-
pio do prazer e o princípio da realidade – que regem o funcionamento
psíquico e social. O primeiro princípio, ligado à pulsão e ao desejo, tem
o objetivo de alcançar o prazer sem entraves nem limites, evitando, em
última instância, o desprazer. Ele é mediado pelo princípio da realidade,
imposto pela cultura e por todas as demais instituições sociais, modifi-
cando o prazer e impondo restrições necessárias à adaptação à realida-
de externa (FREUD, 2006). No curso dos processos psíquicos, apesar
de uma forte tendência para condução dos eventos mentais regulados
para o princípio de prazer, há outras forças ou condições que se opõem
a ela, de modo que o desfecho da realidade nem sempre corresponda
à tendência para o prazer. Essa tensão é suprimida pelo princípio da rea-
lidade, que pode ser concebido como o substituto do próprio princípio
de prazer, direcionando-se para as pulsões de autoconservação do eu
(ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 485).
Conforme aponta Marcuse, equipado pelo dispositivo externo, é por
meio do princípio de realidade que “o ser humano desenvolve a função
de razão: aprende a examinar a realidade, a distinguir entre bom e mau,
verdadeiro e falso, útil e prejudicial” (1965, p. 35). Entretanto, o autor
aponta ainda que:

Apenas um modo de atividade mental é ‘separado’ da nova organiza-


ção do aparelho mental e conserva-se livre do domínio do princípio
de realidade: é a fantasia, que está ‘protegida das alterações culturais’ e
mantém-se vinculada ao princípio de prazer (MARCUSE, 1965, p. 35).

A não sujeição da fantasia ao princípio de realidade é fundamen-


tal para que a ficção reinstaure o prazer, possibilitando ao sujeito uma
oportunidade para se colocar em posições que não ele poderia assu-
mir na vida real. Para além do princípio da realidade, extrapolando as
pulsões autoconservadoras, a fantasia está submetida unicamente ao
princípio do prazer (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 288). A estrei-
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
105

ta vinculação entre prazer e fantasia despe o prazer melodramático, a


partir da necessidade humana de realização de sensações românticas,
perigosas e arriscadas que, em muitos momentos, são utópicas e sensa-
cionais (MEIRELES, 2007).
As telenovelas permitem ao telespectador imergir em uma represen-
tação fantasiosa e sedutora da realidade, uma vez que a subjetividade se
constitui a partir de narrativas sobre si e sobre a sua própria existência.
Ao abordar temáticas próximas à realidade, a estrutura do texto narra-
tivo gera mecanismos de identificação do público com os personagens
por meio de aspectos morais e psicológicos projetados nas telas. Esse
processo de identificação se formata nas instâncias do consciente e do
inconsciente. A identificação consciente, portanto, promove a inserção
do su¬jeito na história, fazendo com que este vivencie, juntamente com
o personagem, algumas de suas experiências; a segunda identificação,
a nível inconsciente, estrutura-se para além do controle do indivíduo,
de forma que ele seja toca¬do em suas vivências e invadido por suas
emoções e sentimentos, muitas vezes, de forma arrebatadora e catárti-
ca (ROSSINI, 2016, p. 94).
Quando a ficção seriada invade a realidade do telespectador, os per-
sonagens não podem ser tomados meramente como modelos, mas
como realizações simbólicas subjetivas, vinculadas à fantasia que, por sua
vez, está intimamente vinculada à espectatorialidade do prazer (MEI-
RELES, 2007, p. 10). Sendo uma dimensão necessária e inevitável da
realidade psíquica, a fantasia não deve ser observada como uma mera
ilusão, pois nela o sujeito pode protagonizar e evocar uma cena em ce-
nários alternativos, reais ou não, uma vez que o apelo da fantasia reside
precisamente na criação imagética que pode ultrapassar os dispositivos
racionalizados aceitáveis no mundo real (ANG, 1996).
A própria estrutura narrativa do folhetim eletrônico incita a ima-
ginação do telespectador por meio dos ganchos de tensão, os quais,
muitas vezes, almejam chegar à catarse do prazer (MACHADO, 2000, p.
87-88). O gancho é uma estratégia narrativa que intensifica os proces-
sos de projeção e identificação do telespectador em relação à trama,
despertando a expectativa do sujeito no momento em que o clímax
da ação cênica é suspenso, sendo reiterado e desenvolvido somente no
episódio seguinte. Ao interpelar o prazer na narrativa, levando a outro
capítulo, o suspense, ou mesmo o desejo de que o prazer seja final-
mente alcançado, induz a participação do telespectador, convidando-o a
106 Prazeres Possíveis

operar nos desdobramentos das tramas. Não é por acaso que a teleno-
vela é transmitida à noite permitindo, durante o dia, quando as pessoas
estão em suas atividades habituais, comentar sobre o desenrolar de
suas tramas. Assim, a telenovela invade o dia a dia do telespectador que
aguarda ansiosamente o desenrolar do capítulo anterior.
Prazer, curiosidade, fantasia e desejo são uma espécie de fórmula má-
gica do folhetim eletrônico, fazendo com que este se fixe na preferência
das plateias populares, possibilitando tamanha identificação com o pú-
blico a ponto de a telenovela se projetar como um elemento referencial
para a constituição do imaginário popular brasileiro.

Ditadura e repressão do prazer

Durante períodos de supressão dos direitos políticos e sociais e com


a imposição de valores morais conservadores, tal como o que ocorreu
no Brasil pós-golpe civil-militar de 1964, as expressões artísticas buscam
representar e permitir o prazer em uma multiplicidade de experiências.
Procurando transgredir regras – as diretrizes de conduta impostas pelo
regime militar brasileiro – artistas e intelectuais engajados incorporaram,
em suas obras, novas concepções estéticas narrativas, subvertendo as
normas impostas pelo próprio Estado Autoritário (MOTTA, 2013).
Do ponto de vista moral, o regime militar buscou constituir uma
sociedade marcada por forte conservadorismo, bem como por civismo,
controle e disciplina, embasado em valores cristãos tradicionais, direcio-
nado à e pela família patriarcal católica. Militares, setores da sociedade
civil e da Igreja visavam, em última instância, combater ideais, valores e
representações que fossem inerentes à cultura política comunista2, con-
siderada altamente perigosa à manutenção do status quo. Nesta pers-
pectiva foi concebido um “imaginário anticomunista” formatado, com
a função de proteger a nação das ameaças do movimento comunista
internacional, sendo assim necessário que a censura de costumes assu-
misse uma conotação político-ideológica (MARCELINO, 2006, p. 11).
Difundida nos diversos meios de comunicação, a propaganda anticomu-
nista visava, sobretudo, “proteger a nação” contra a ameaça dos “terro-

2
O conceito “cultura política” pode ser entendido como um conjunto de valores, tradições, prá-
ticas e representações, expressos nas expressões artísticas e nas manifestações estéticas compar-
tilhado por um grupo de indivíduos, os quais se identificam a um projeto sistemático de forma
coletiva ou individual (MOTTA, 2013, p. 16-18).
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
107

ristas”, dos “inimigos do povo e da civilização cristã”, veiculando a ideia


de que esses “subversivos” objetivavam promover a desagregação social
e dos valores cristãos, propagando a imoralidade e uma “vida desregra-
da nos prazeres” (BERTOLLI, 2016, p. 21).
Assim, a fim de sistematizar as representações culturais para que
fossem compatíveis com “o bem da segurança nacional” e com uma
“conduta moral adequada” a todo o país, o Estado autoritário utilizou
como principal ferramenta a censura, com o intuito de estabelecer o
controle social e a desarticulação da veiculação de posicionamentos
contrários ao regime. Todavia, mesmo sob rigorosa vigilância da Divisão
de Censura de Diversões Públicas (DCDP), a vanguarda comunista uti-
lizou o poder de persuasão da imagem para veicular, tanto no cinema
quanto na TV, um conjunto de representações que visavam expressar
valores e seduzir os espectadores ao ideário comunista.
A renovação de sentidos da telenovela se deu no final da década
de 1960, pela contratação de profissionais reconhecidos no meio te-
atral e cinematográfico que perceberam a televisão como um espaço
para expressar suas perspectivas acerca da realidade sociopolítica bra-
sileira, alcançando um público imensurável. A presença de intelectuais
de esquerda, oriundos do teatro e do cinema experimental, em uma
emissora de televisão comercial como a Rede Globo, em plena dita-
dura militar, é um fator que sugere a complexidade do fenômeno da
telenovela no Brasil.
O regime militar estabeleceu um processo de desarticulação e ins-
titucionalização estatal dos dramaturgos engajados impossibilitando-os,
pela censura federal, de encenar e se comunicar com seu público (OR-
TIZ, 1991, p. 114). Diante da consolidação do aparato de controle mili-
tar a televisão, especialmente a TV Globo, passou a ser vista por artistas
e intelectuais de esquerda não apenas como uma instância reprodutora
da ideologia burguesa, mas como um mercado de trabalho atraente,
que possibilitava alcançar amplos setores da população. Entre esses
artistas destacaram-se Dias Gomes, Oduvaldo Vianna, Gianfrancesco
Guarnieri, Braúlio Pedroso e Walter Dust.
Ao estetizar e espetacularizar a história, as telenovelas produzidas
por esses profissionais inseriu na estrutura melodramática elementos
inerentes à realidade sociopolítica brasileira, com ênfase em temas de
cunho nacional-popular, levando às telas formas de prazer, delineadas
pelos novos códigos de sociabilidade advindos da modernidade.
108 Prazeres Possíveis

A telenovela, devido a sua grande audiência, foi imprescindível para


propagar por todo o país uma visão modernizante, principalmente na
esfera dos costumes. Apesar de reproduzir estereótipos sociais, ela per-
mitiu compartilhar, em um mesmo repertório de valores, visões dife-
renciadas de mundo e de novos padrões culturais. Principalmente nas
telenovelas produzidas por autores engajados, houve a representação,
em suas tramas, de alterações comportamentais que contrastavam com
a conduta comportamental desejada pelo regime militar.
Mesmo com o intenso monitoramento exercido pela DCDP3, as
telenovelas levaram às telas formas de prazer, forjando uma nova con-
cepção estética atrelada à modernização no comportamento social. O
Estado autoritário buscou impor regras e limitações com relação a múl-
tiplas configurações de prazer, controlando e disciplinando os corpos
e discursos, estabelecendo o que era lícito ou ilícito, o que era trans-
gressor e o que deveria ser castigado, o que era permitido e o que era
proibido (FOUCAULT, 1999; 2016). Em tempos de repressão, o poder
disciplinar se torna ainda mais concreto e sistematizado objetivando
controlar, até mesmo, os desejos inerentes a condição humana. Nesse
contexto, a concepção de prazer se torna intimamente associada ao
desejo de liberdade, seja esta em termos comportamentais, estéticos
ou políticos.
Assim, em especial nas telenovelas de autoria de intelectuais de
esquerda, tocava-se em temáticas em voga na década de 1970, como
vícios, sexo por prazer, liberdade sexual feminina, contestando setores
mais conservadores da sociedade civil e a Igreja e, ao mesmo tempo,
desafiando as premissas vinculadas à moral e aos “bons costumes” de-
fendidas pelo regime militar. Ao tocar em temáticas próximas ao uni-
verso dos telespectadores e ao utilizar diálogos coloquiais, a telenovela
passou a ser uma vitrine privilegiada do “ser moderno”, representando
os novos códigos de sociabilidade delineados pela modernidade e, con-
sequentemente, as diferentes formas de prazer.

3
A entrada desses artistas no meio televisivo foi rigorosamente monitorada pela Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP), visto que estes já eram anteriormente visados por suas
posições políticas engajadas. As telenovelas que contivessem em seu texto algum viés político, bem
como abordassem questões comportamentais que fossem consideradas arrojadas na concepção
dos censores foram deslocadas do horário original proposto pela emissora. Com a intenção de
diminuir a repercussão destas obras entre as camadas populares, a Censura de Diversões Públicas
estabelece um novo horário, preliminarmente não previsto na grade de programação, o horário
das 22 horas.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
109

Em 1968 foi ao ar Beto Rockfeller4, de Braúlio Pedroso, que inovou a


linguagem televisiva trazendo um protagonista anti-herói em um drama
urbano e contemporâneo, o qual se manteve em sintonia com a movi-
mentação sociopolítica do ano de 1968 (HAMBURGUER, 2014, p. 17).
O jovem Beto (interpretado por Luiz Gustavo), malandro e sedutor,
buscava a liberdade com sua motocicleta e os prazeres advindos da
ascensão social. Exibida às vésperas da decretação do AI-5, Beto Rock-
feller sofreu pressões por parte da censura na medida em que, mesmo
de maneira implícita, propôs um novo discurso em relação ao com-
portamento, ao fazer alusão à ascensão social independentemente dos
códigos morais, bem como ao esgotamento do casamento burguês e
à liberdade sexual.
A adaptação de Walter Dust do romance Gabriela cravo e canela5,
de autoria de Jorge Amado, trouxe às telas a sensualidade e o espírito
livre e impulsivo de Gabriela, protagonizada por Sônia Braga. Ao mi-
grar para Ilheús, buscando melhores condições de vida, Gabriela tem
dificuldades para se enquadrar às regras de comportamento impostas
pela sociedade. Dona de uma sexualidade espontânea, sem pudores,
a jovem logo passa a despertar o desejo dos homens da cidade. Nem
mesmo o casamento consegue limitar sua natureza livre. A cena em-
blemática da personagem subindo no telhado extravasa um erotismo
ingênuo e ainda permanece presente no imaginário popular brasileiro.
Já os folhetins eletrônicos de Dias Gomes, Bandeira 26, Roque San-
teiro7 e Saramandaia8 explicitam o prazer em diferentes contornos.
Bandeira 2 apresenta o prazer da compulsão pelo ilícito e contra-

4
Beto Rockfeller foi exibida entre 04 de novembro de 1968 a 28 de novembro de 1969, na TV Tupi,
de São Paulo, e na TV Rio.
5
Com 135 capítulos, Gabriela mesclou sexualidade a questões sociopolíticas como comportamen-
to social, fome, pobreza e o coronelismo, sendo exibida às 22 horas na Rede Globo entre 14 de
abril a 28 de outubro de 1975. Juntamente com O Bem-Amado, Gabriela foi um grande sucesso
internacional.
6
Bandeira 2 teve a supervisão de Daniel Filho e direção de Walter Campos, indo ao ar entre
27/10/1971 e 15/07/1972, pela Rede Globo.
7
No caso particular de Roque Santeiro, em 1975, mesmo tendo a aprovação prévia da DCDP para
exibição às 22 horas, já com 36 capítulos gravados, houve uma censura integral da obra. Ironica-
mente, Dias Gomes afirma que isso se deveu a essa produção ser “atentatória aos bons costumes”
(GOMES, 1998, p. 280). Somente em 1985, com a liberdade propiciada pela abertura política,
Roque Santeiro pôde ir ao ar, sendo a primeira produção televisiva de Dias Gomes veiculada em
horário nobre.
8
Saramandaia, com direção de Walter Avancini, Roberto Talma e Gonzaga Blota, foi veiculada entre
03/05/1976 e 30/12/1976 e contou com 160 capítulos.
110 Prazeres Possíveis

ventor do jogo do bicho, que coexiste com o universo das escolas


de samba, por meio das quais os personagens chegavam à catarse do
prazer na avenida, durante os desfiles de carnaval. A emancipação e
liberdade femininas são presentadas através de Noeli (Marília Pera),
motorista de táxi, desquitada e independente, que defendia uma con-
dição mais atuante para a mulher na sociedade.
A trama de Roque Santeiro representou, por meio dos persona-
gens Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e a fogosa viúva Porcina (Regina
Duarte), um jogo de poder composto pela tríade que envolvia sexo,
submissão e dominação. O poderoso e viril fazendeiro Sinhozinho
Malta via seu poder cair por terra, quando se transformava em um
cachorrinho para atender os desejos da viúva. Submetido, de quatro,
o personagem sente prazer ao lamber sua “santinha” e Porcina, por
sua vez, se delicia de prazer com o poder da dominação. Esta rela-
ção pode ser entendida pela perspectiva desenvolvida por Foucault
(2006) como uma relação de poder positiva, uma negociação afetiva
sexual realizada a partir de acordos entre os indivíduos.

Considerem , por exemplo , as relações sexuais ou amorosas: exercer


poder sobre o outro , em uma espécie de jogo estratégico aberto , em
que as coisas poderão de inverter, não é mal: isso faz parte do amor, da
paixão, do prazer sexual (FOUCAULT, 2006, p. 284).

Em Saramandaia, Dias Gomes nos fornece doses generosas de


prazer utilizando, para tanto, modos insólitos, a fim de estabelecer
zonas de contato com a realidade por meio de um novo recurso
estético narrativo, o realismo fantástico. Empregando aspectos asso-
ciados ao fantástico, ao extraordinário e ao grotesco frente à rea-
lidade repressiva do governo Geisel, Dias Gomes cria os seguintes
personagens: Marcina (Sônia Braga), que literalmente se incendiava
de excitação e desejo reprimidos; Dona Redonda (Wilza Carla), que
levava o prazer da gula ao extremo, chegando literalmente a explodir
de tanto comer; e João Gibão (Juca de Oliveira), que chega ao clímax
do prazer quando consegue mostrar a todos suas asas e, então, alçar
voo. O extraordinário e fantasioso eram utilizados como metáfora
do mundo exterior, pois remetiam aos despropósitos intrínsecos ao
cotidiano dos próprios indivíduos no Brasil da década de 1970.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
111

O prazer em O Bem-Amado

Em 1973, um dos anos mais repressivos do regime militar, vai ao ar, em


rede nacional, a primeira telenovela em cores: O Bem-Amado. Ao ver sua
obra ganhar movimento nas telas, Dias Gomes, tomado por um prazer
barthesiano, contempla sobre o caráter artístico de sua produção:

Apesar de ser um trabalho pioneiro, pois era a primeira telenovela


em cores no Brasil, alguns capítulos me proporcionaram grande prazer
estético (principalmente graças à atuação de um elenco primoroso...)
me levaram a seguinte reflexão: “seria possível realizar uma verdadeira
obra de arte na televisão? (GOMES, 1998, p. 275).

Buscando inspiração em fatos políticos, Dias Gomes satirizou e criti-


cou a realidade brasileira ao tecer a trama de O Bem-Amado. De acordo
com Roland Barthes, a maior proeza do escritor é manter ao longo da
escritura do texto a mimesis da linguagem, “fonte de grandes prazeres,
de uma maneira tão radicalmente ambígua (ambígua até a raiz) que o
texto não tombe jamais sob a boa consciência (e a má fé) da paródia
(do riso castrador, do ‘cômico que faz rir’)” (1987, p. 15). Sob pressão
da DCDP e dos interesses comerciais da Rede Globo, o autor adentrou
no terreno do absurdo, empregando os aspectos cômicos e satíricos,
voltando-se para representar a realidade sociopolítica brasileira e seus
prazeres, mesmo em condições que transgrediam a proibição, lançando
mão da ambiguidade.
A trama se passa em Sucupira, uma pequena cidade do litoral baiano,
onde a vida seguia de forma pacata, só havendo um problema: a falta
de um cemitério. Ao candidatar-se a prefeito, o coronel Odorico Para-
guaçu (papel representado por Paulo Gracindo) inclui como principal
ponto de sua plataforma eleitoral a construção de um campo santo. O
viúvo simpático, “mau-caratista”9, dono da maior fazenda de dedê do

9 Os termos em parênteses são expressões peculiares criadas por Dias Gomes para a narrativa
de O Bem-Amado. A postura de político do interior, cuja maior preocupação era falar correta-
mente e com termos rebuscados, acabou levando Dias Gomes a criar a linguagem “apetrechada”
para Odorico, com uma sucessão de neologismos, que passaram a identificá-lo como sua marca
registrada. Esses termos e expressões conferiram ao personagem popularidade junto aos teles-
pectadores, os quais, ávidos pelas “invencionices linguísticas” proferidas pelo prefeito, não deixaram
de empregá-las em suas conversas informais e bate-papos no cotidiano. Sobre o vocabulário
empregado por Odorico Paraguaçu, cf.: DIAS, José. Odorico Paraguaçu: o bem amado de Dias
Gomes. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
112 Prazeres Possíveis

Brasil, exercia um estranho fascínio nas mulheres, principalmente nas


“mal-amadas”. Apoiado por elas, Odorico vence a eleição. Ao cons-
truir o cemitério municipal, sua grande obra pública, gostaria, como
ele mesmo dizia, de entrar para os “Anais e Menstruais da História”.
Todavia, a própria morte havia entrado em licença por tempo inde-
terminado e o cemitério não era inaugurado, pois não contava com
nenhum defunto para aquela solenidade, fato este que desencadeou
uma série de ações e artimanhas do prefeito. Desta maneira, o enre-
do se desenvolve tendo como desfecho a morte de Odorico, consi-
derado o “bem amado do povo”.
Sobre O Bem-Amado, a própria DCDP observa que “situações
afloradas, pelo seu duplo sentido, podem ser claramente interpreta-
das como alusivas a conjuntura nacional, particularizando instituições,
pessoas, ou mesmo valores consagrados”10. O deboche, o prazer do
sexo em condições que transgrediam a proibição, era vivenciado por
personagens que representavam a moralidade e colocavam em cheque
aspectos relacionados à moral e aos “bons costumes”, tão caros ao
regime militar. Tratava-se do envolvimento amoroso de Odorico – “o
homem que mata a cobra e mostra o pau!” – com as três irmãs, “Dona
Doroteia, Dona Dulcineia e Dona Judiceia, todas ‘talqualmente’ Cajazei-
ra, a fina flor do ‘donzelismo’ juramentado de Sucupira”. Doroteia (Ida
Gomes), a mais velha e rígida, buscava controlar Odorico. A irmã caçula,
Judiceia (Dirce Migliaccio), apresentava características de histeria, espe-
cialmente com relação às investidas de Odorico, às quais ela respondia
com estridentes gritinhos e gargalhadas. Dulcineia (Dorinha Duval), a
mais romântica e submissa, no decorrer da trama, acaba por engravidar
do prefeito. O prazer nas cenas era conduzido por ataques inesperados
de Odorico a cada uma das irmãs, bem como pela tensão de ser pego
em flagrante.
Com toques de crítica e ironia à intransigente defesa da moral e dos
“bons costumes”, pelo menos publicamente, cujo expediente o regime
militar não deixara de abraçar, Dias Gomes engendra a cena a seguir.
Odorico reúne-se com as irmãs Cajazeiras, para articular o desenvolvi-
mento de sua campanha eleitoral. Os personagens, em torno de uma
mesa, discutem a criação de slogans para a candidatura do prefeito,

10
Parecer nº. 4166/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Di-
versões Públicas.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
113

quando Odorico faz a seguinte afirmação: “Eu, como candidato das fa-
mílias, acho que toda minha campanha vai ser baseada na seriedade e na
moral”11. Logo depois desta fala a câmera se desloca de cima para baixo,
dirigindo o foco para debaixo da mesa em que se reuniam os perso-
nagens. Esse movimento de câmera permite ao telespectador visualizar
em close Odorico acariciando, com os seus pés, as três Cajazeiras. Ob-
serva-se claramente a disjunção entre o discurso e a prática, posto o
incontestável desacordo entre o que se confessa e aceita publicamente,
e o agir distante do olhar de terceiros. A composição dessa cena evi-
dencia uma crítica à sociedade moralista do período, uma vez que o
discurso não acompanha as práticas de sociabilidade, e os prazeres que
aconteciam abaixo da mesa.
Antenada à modernização de costumes, presente no início da dé-
cada de 1970 e que soprou novos ares para os discursos sobre a se-
xuali¬dade, O Bem-Amado trouxe representações do prazer sexual e
do desejo da mulher, proporcionados pela cisão entre sexo e reprodu-
ção, o que, por sua vez, estava intimamente associada à emancipação
feminina. O arquétipo feminino, representado pela personagem Telma,
“uma mulher bonita com ideias nada provincianas sobre o amor”12,
não divergia da jovem mulher contemporânea à veiculação da novela,
a qual, por meio de modernas formas de expressões de individualidade,
contrapôs-se aos padrões normativos da ideologia da domesticidade,
assumindo novos códigos de sexualidade. Não aleatoriamente, a perso-
nagem foi interpretada pela atriz Sandra Bréa, tida como símbolo sexual
à época (ROLLEMBERG, 2011, p.4). Telma havia vivenciado diferentes
formas de prazer associadas à liberdade individual, recusando-se a se
sub¬meter aos valores tradicionais, indo morar em uma comunidade
hippie, banhando-se nua ao luar13, dirigindo seu jipe, dissociando sexo e

11
O BEM-AMADO, 2012. Disponível no DVD 01, Capítulo 04, de 01:14:53 a 01:16:18 segundos.
Todavia, na telenovela, a cena foi cortada por outras tomadas. Para o melhor entendimento da ação,
a cena foi transcrita em sua integralidade.
12
Esta frase consta na Sinopse da telenovela enviada pela Rede Globo para a DCDP. Disponível
para consulta no Arquivo Nacional/DF. Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas.
13
Esta cena foi gravada, inicialmente, em plano geral, com o intuito de captar todo o ambiente, a
noite de uma a praia deserta. Todavia, assim que a personagem entra em cena, o enquadramento
é alterado para meio primeiro plano. Neste plano, a câmera enquadra somente parte do objeto,
mantendo uma distância média. Acredita-se que a direção optou por esse enquadramento para
sugerir a nudez, mas sem captá-la em sua totalidade, visto que Telma é filmada entrando no mar de
costas, sendo enquadrada somente da cintura para cima. Aventa-se que esse recurso foi emprega-
do a fim de evitar problemas com a Censura Federal, uma vez que era proibida a nudez explícita.
114 Prazeres Possíveis

casamento e estabelecendo várias relações amorosas.


Não foi somente na esfera da sexualidade que O Bem-Amado bus-
cou representar a transformação social presente desde o final dos anos
de 1960. A narrativa abordou também o prazer existente no uso de
drogas, tanto lícitas quanto ilícitas. A bebida, principalmente a cachaça,
era consumida cotidianamente pelos personagens de Sucupira, não fi-
cando restrita a nenhuma classe social, embriagando desde o médico
da cidade, Dr. Juarez Leão (Jardel Filho), a Nezinho do Jegue (Wilson
Aguiar), espécie de mendigo do local, que era seu maior consumidor.
O álcool proporcionava um estado alterado de consciência, prazer este
que atenuava questões de ordem emocional – como as do médico –
ou mesmo questões sociopolíticas – como as do mendigo. Um fator
importante a se comentar é que a bebida tinha uma ação de efeito
contrário em Nezinho do Jegue, pois quando estava sóbrio era favorável
politicamente a Odorico mas, quando bebia, ganhava lucidez política,
gritando aos quatro ventos as imoralidades cometidas pelo prefeito.
Já a cena do uso da maconha pelo hippie Nadinho, personagem que
representava aspectos próprios ao movimento da contracultura, como
já era esperado, sofreu veto integral por parte da DCDP. A encenação
dramática ocorreria em uma cena de flaschback, na qual Nadinho re-
lembrava junto à Telma suas vivências na comunidade hippie. A cena
transcorria mostrando o casal e grupos de jovens, sentados e fumando
no chão. Os censores entenderam que não se tratava de cigarro e ve-
taram toda a tomada14.
O prazer da liberdade foi evidenciado na novela por uma narrativa
própria do realismo fantástico, na qual o personagem Zelão das Asas
(Milton Gonçalves) alça voo e expressa o desejo de liberdade a ser al-
cançado. Essa liberdade era extremamente almejada em tempos de di-
tadura militar, ainda mais dada à vigência do totalmente repressivo AI-5,
instalado desde o final de 1968 e que somente seria revolvido uma dé-
cada depois, já no final do governo do general-presidente Geisel, como
parte do processo de Abertura política, iniciado no ano seguinte ao da
exibição da telenovela, ou seja, 1974. A tomada final de O Bem-Amado
é marcada por uma forte narrativa sonora e imagética em que Zelão,
por um descuido do Vigário, consegue cumprir sua promessa a Bom

14
Parecer nº 652/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Diver-
sões Públicas. A descrição da cena consta no parecer citado.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
115

Jesus dos Navegantes e salta do alto da torre da Igreja15. O teledrama-


turgo dirige tais elementos na trama escudados pela visão comunista,
sugerindo como caminho a conscientização social e política. Através da
formatação de Zelão das Asas – o negro e pobre que alcança a liberda-
de, desafiando o impossível –, Dias Gomes elege o personagem como
referencial simbólico do homem novo, visão compartilhada por vários
intelectuais adeptos do nacional-popular (RIDENTI, 2014). As ações de
Zelão das Asas representam uma metáfora da liberdade, no caso, livrar-
-se da situação de penúria e de infortúnios a qual ele e seu grupo social
eram submetidos16. Dessa forma, Dias Gomes sugere que as camadas
populares podem adquirir o prazer máximo da liberdade ao se contra-
por às regras rígidas impostas pelo Estado Autoritário, as quais feriam
os princípios da justiça social, transformando sentimentos, pensamentos
e ações, e alcançando o impensável.

Considerações finais

A telenovela, principal gênero ficcional eletrônico consumido pelos


telespectadores brasileiros, é um canal que proporciona a percepção
de valores ideológicos que estão em jogo, bem como as formas de
encenação da sociedade e suas tensões, sendo possível, por meio de
sua análise, a compreensão histórica de comportamentos, valores, iden-
tidades, ideologias e representações. O prazer representado nas telas
da TV, em imagem, som e movimento, cria uma atmosfera imagética
que permite ao telespectador consumir, simbolicamente, por meio da
narrativa melodramática, um espectro de prazeres e fantasias que não
conseguiria vivenciar, a não ser em seu próprio imaginário.
Após o golpe de 1964, incessantemente, o Estado Autoritário bus-
cou formas de controle do prazer presentes nas produções culturais
que operavam no Brasil, as quais problematizavam, de forma consciente
ou não, os valores e as regras socioculturais vigentes no período. As
instituições de controle, como a Divisão de Censura de Diversões Pú-

15
O BEM-AMADO, 2012. Transcrição do texto narrado, disponível no DVD 10, Capítulo 10, em
03:30:10 segundos.
16
Na composição desse personagem, Dias Gomes utilizou referências do realismo fantástico. Pos-
teriormente, na telenovela Saramandaia, o teledramaturgo retoma a temática, própria dessa cor-
rente literária, por meio do personagem João Gibão (Juca de Oliveira), que voa com suas próprias
asas, também no último capítulo.
116 Prazeres Possíveis

blicas, tinham a função de impor limites profundos do ponto de vista


político e moral, com o intuito de disciplinar os corpos e as mentes, fa-
vorecendo, assim, uma domesticalização, um maior domínio operatório
do poder (FOUCAULT, 2016).
Nas telenovelas, principalmente as escritas por autores engajados,
como Dias Gomes, essa ação de resistência se torna mais evidente,
visto que esta já era evidenciada por suas produções críticas à realidade
sociopolítica brasileira. Em O Bem-Amado, a ação da DCDP pode ser
observada a partir dos pareceres que tentam, constantemente, limitar
as representações de prazer construídas ao longo da trama. A respei-
to disso, o Parecer da sinopse (1973) apresenta críticas contundentes,
principalmente em relação ao caráter duvidoso da personagem Telma,
caracterizada como “moça libertina”, “muito moderninha”, “adepta ao
amor livre”, indicando que esses aspectos deveriam ser atenuados17.
O quarteto amoroso composto por Odorico e pelas irmãs Cajazeiras
também se tornou um alvo incômodo para a DCDP, uma vez que es-
ses personagens deveriam ser os representantes da moral e dos bons
costumes em Sucupira18. As cenas com insinuações ao uso de maconha
foram eliminadas e proibidas de irem ao ar, uma vez que poderiam es-
timular os jovens ao consumo de drogas19.
O único prazer, e o mais perigoso, que passou ileso pelas tesouras da
censura, foi o prazer da liberdade, quando o personagem Zelão alcança
o êxtase em seu voo. O Bem-Amado, mesmo sofrendo o monitoramen-
to e o cerceamento por parte da DCDP, evidencia tensões e frestas,
por meio das quais é possível vislumbrar a fantasia, o desejo e o prazer
contidos nessa telenovela.

Referências
ANG, I. Melodramatic identifications: television fiction and women´s fantasy. In: Living room
wars: rethinking media audiences for a postmodern world. London: Routledge, 1996.
________. Watching Dallas: soap opera and the melodramatic imagination. London
and New York: Methuen, 1985.

17 Parecer nº 4166/73; Parecer nº 293/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão
de Censura de Diversões Públicas.
18 Parecer nº 293/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Di-
versões Públicas.
19 Parecer nº 652/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Di-
versões Públicas
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
117

BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.


BERTOLLI FILHO, C. Um confronto esquecido: pornochanchada x moral e civismo. In:
BERTOLLI FILHO, C.; AMARAL, M. E.P. (Orgs.). Pornochanchando: em nome da moral,
do deboche e do prazer. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2016.
DIAS, J. Odorico Paraguaçu: o bem amado de Dias Gomes. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
__________. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
__________. Ética, do cuidado de si como prática da liberdade. In: MOTTA, M. de B.
Foucault: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 264-287.
GOMES, D. Apenas um subversivo. São Paulo: Civilização Brasileira, 1998.
HAMBURGUER, E. Beto Rockefeller, a motocicleta e o Engov. Revista Significação, São
Paulo, n. 41, p. 14-36, 2014.
MACHADO, A. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2005.
MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Guanabara, 1965.
MARCELINO, D. Á. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de
livros e diversões públicas nos anos 1970. Dissertação (Mestrado em História social).
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
MEIRELLES, C. Melodrama e prazer: telenovela, estudos de televisão e crítica feminista.
Anais XXX Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comuni-
cação, Santos, 2007.
MOTTA, R. P. S. Cultura política comunista: alguns apontamentos. In: NAPOLITANO,
M.; MOTTA, R. P. S.; CZAIJAKA R. (Orgs.). Comunistas brasileiros: cultura política e
produção cultural. Belo Horizonte, 2013.
ORTIZ, R. Evolução histórica da telenovela. In: BORELLI, S. H. S.; ORTIZ, R.; RAMOS, J.
M. O. Telenovela: história e produção. São Paulo: Brasiliense, 1991.
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
São Paulo: Ed. Unesp, 2014.
ROLLEMBERG, D. “O Bem-Amado” e a Divisão de Censura de Diversões Públicas.
São Paulo: Anais do Simpósio Nacional de História, ANPUH, 2011, p. 1-12.
ROSSINI, R. S. Pornochanchada: um sintoma brasileiro. In: BERTOLLI FILHO, C.; AMA-
RAL, M. E.P. (Orgs.). Pornochanchando: em nome da moral, do deboche e do prazer.
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2016.
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
119

Prazeres perversos
para além da aberração
e do esdrúxulo:
notas sobre a revista Nin

Muriel Emídio P. Amaral

Introdução

Descrever sobre prazeres e perversão pode soar como algo repug-


nante ou remeter a práticas sexuais consideradas abusivas ou abjetas
que envolveriam dejetos, sangue, sujeira ou a participação de pesso-
as convencionalmente fora do esquadro da normalidade daquilo que
poderia ser considerado prazeroso: deficientes físicos, anões, amputa-
dos, feios ou sujeitos dotados de corpos deformados. A intenção desse
texto não é relatar o desejo de sujeitos advindos ou comtemplados
pela estética freak, tampouco propor algum discurso moralizante sobre
essas práticas como sendo inadequadas como aconteceu no final do
século XIX por uma questão de poder. A intenção aqui é de verificar
outras representações eróticas para além daquilo que é maciçamente
reconhecido como discurso de prazer, abrindo espaços para discursos
120 Prazeres Possíveis

e imagens que não referenciem apenas o corpo liso, “imaculado” e


torneado por músculos nas práticas midiáticas, mas que abra caminhos
para que a normalidade não seja uma representação unilateral e cristali-
zadas, mas também uma manifestação libertária e prazerosa.
A proposta desse texto é de reconhecer outras propostas discur-
sivas e imagéticas de corpos, desejos e sexualidades pelas páginas da
revista Nin, publicação erótica brasileira que pode ser encontrada na
versão impressa, além de manter perfis em redes sociais e site na in-
ternet. Até a preparação desse texto, a revista apresentou duas edi-
ções, sendo a primeira em 2015 e a segunda em 2016. Entretanto,
no espaço digital, a revista mantém atualizações mais frequentemente,
principalmente nos perfis que alimenta nas redes sociais com ensaios
fotográficos, ilustrações e pinturas de artistas brasileiros e estrangeiros.
Além dos ensaios fotográficos, ilustrações e charges a revista publi-
ca textos produzidos por artistas, jornalistas, professores e cientistas
sobre assuntos pertinentes à sexualidade e também erotismo. Os
textos não são necessariamente científicos, mas trazem reflexões do
âmbito acadêmico para a linguagem mais acessível como modo de
difusão de conhecimento, mas também há textos que apresentam re-
latos de vida, poesias, fragmentos de romances e uma série de outras
produções literárias.
A escolha da revista Nin se realiza por apresentar representações
dos corpos e das sexualidades fora do esquadro midiático conven-
cionalmente proposto pela imaculidade daquilo que se acredita ser a
concepção cristalizada do belo e do prazer. Nin não estampa apenas
o corpo esbelto de seios túrgidos ou homens robustos para suas ima-
gens, mas representações de homens, mulheres, travestis de diferentes
idades marcadas por estrias, celulites, próteses, dotado de pelos, além
de corpos mais densos que podem ser lisos, másculos, franzinos ou
torneados e até mesmo manchados por sangue menstrual.Todos esses
elementos e representações compõem o cenário de sentido erótico
da revista. A Nin não apresenta uma nova forma para de lidar com o
desejo, com o prazer, com o corpo e com a sexualidade; na verdade, a
publicação descortina de modo escancarado os prazeres que muitas
vezes se encontram em zonas mais recônditas da alma humana.
Por esse caminho, a revista também se torna sintoma dos desafios
de representação das sexualidades e gêneros que não se encontram
cristalizados ao propor e agir que os poderes também não se encon-
Prazeres perversos para além da aberração e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral
121

tram inertes, mas em constante movimento e dinamicidade. Como a


proposta discursiva de Nin é de versar sobre outras possibilidades e
alternativas de desejo e de poder, esse texto se apropria também no
entendimento de que discursos, práticas e estéticas perversos podem
ser aplicados para a visibilidade de representações de corpos e desejos
para além das estruturas já conhecidas. Na concepção de Dufor (2013),
as perversões quando praticadas sob o aspecto de desafio das estrutu-
ras de poder não necessárias e importantes justamente pela intenção
de enfrentar sociedades ou grupos conservadores e renitentes de pro-
postas inovadoras.
Na intenção de promover os prazeres de modo mais libertário, sem
as demarcações de identidade, prazer ou sexualidade, a revista pode
ser considerada como expoente da estética queer. O termo que trazia
o sentido de algo repugnante e abjeto passa a ser utilizado pelos Estu-
dos Culturais e estudos de gêneros e sexualidades como algo que se
apresenta rebelde às categorias de definição, ou seja, aquilo que era
estranho perde a noção de abominável e pode ser considerado como
algo desprovido de raiz essencialmente firme e rígida. Na proposta da
epistemologia queer não acredita na extinção dos modos de represen-
tação identitária conhecidos até agora, tampouco preza pela criação
de outra categoria, mas afirma a intenção de reconhecer que os signos
para concepção das identidades encontram-se flutuantes. Tanto a pro-
posta da perversão como estética da sexualidade e a epistemologia
queer serão desenvolvidas com mais profundidade ao longo do texto.

Queer, erotismo e perversão

No entendimento de Judith Butler (2012), a categoria de sexo é uma


qualidade normativa. A autora faz alusão a Michel Foucault ao afirmar
que o sexo é um ideal regulatório, Nesse sentido, além de ser normati-
va, também se apresenta como sendo função regulatória da produção
de corpos e subjetividades e possibilidade de tecnologia de poder. Por
esse viés que o sexo é considerado pela autora como construção que
se materializa através do tempo, enquanto produção discursiva da his-
tória e também das subjetividades dos indivíduos, não sendo, portanto,
uma manifestação linear e objetiva de representações pareada com
a biologia, por exemplo. Dentro dessa concepção, as sexualidades e
as questões de gênero não podem ser compreendidas pela chave de
122 Prazeres Possíveis

entendimento pragmática ou enquanto uma relação de causa e efeito,


mas devem ser compreendidas em modos de entendimento que levam
em consideração perspectivas culturais e subjetivas. Por esse motivo
Butler acredita que o sexo seja performativo, ou seja, não dotado de
uma condição unificante, sólida e indivisível, mas como performativi-
dade que pode ir além da concepção daquilo previamente estipulado
pelas práticas sociais dos corpos e dos sexos.
Nas propostas de estudos de gênero e sexualidade, a performativi-
dade pode não acompanhar a concepção biológica do sexo, nem os
discursos normativos sobre gênero previamente estabelecidos como
poder social. Essas concepções compõem o cenário sobre o enten-
dimento da diversidade sexual que também não se limita apenas no
abarcamento das homossexualidades ou transexualidades, mas na di-
luição dos referencias de identidade e na valorização dos desejos do
indivíduo. Esse pensamento oferece base para acreditar que a revista
não apresenta um recorte muito firme ao público dirigido pelo viés do
sexo ou erotismo, devido à presença de imagens eróticas de homens,
mulheres e travestis performando sensualidade e desejo. Desse modo,
a publicação pode ser considerada queer, aquilo cujo o sentido escapa
dos valores condicionados pelas práticas discursivas do poder.
A epistemologia queer nasceu como uma das vertentes dos Estudos
Culturais, concebendo outra forma de desenhar as relações de corpos,
desejos e sexos não mais de modo convencional, mas pós-estrutural;
isto é, o termo que num primeiro momento expressa repúdio e aver-
são, dentro desse campo de estudos, passa a ser considerado como
a fluidez das identidades e uma afirmação política no meio social que
clama por visibilidade.
A revista não é apenas erótica por publicar corpos nus. Outras for-
mas de prazer e representações de sexualidade podem ser percebidas
nas representações de objetos de decoração: móveis, plantas e pinturas
de natureza morta integram as possibilidades de erotismo e prazer que
circulam a vida. Como apontou um dos textos da revista escrito pelo
psicanalista João da Mata (2015), “Erotismo, sensualidade & sexualidade
como potências da vida”. O texto aborda de maneira direta repre-
sentações de prazer para além do ato sexual. Amparado por Wilhelm
Reich, o autor expõe que é possível presenciar a sensualidade no ato
de comer, de escutar uma boa música ou numa agradável percepção de
alguma fragrância. Por isso, a vida é circulada e preenchida por motivos
Prazeres perversos para além da aberração e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral
123

que podem ser sintomas de prazer, oferecendo sentido à ciranda da


vida pelos sentidos:

Erotismo e sensualidade, apesar de quase sempre estarem relaciona-


dos ao ato sexual, estão também além dele. Uma existência sensualista
diz respeito ao mundo das sensações, que percorre o corpo afetado
pelos sentidos. Assim, é possível sentir uma dose de sensualidade no
ato de comer uma boa comida, de escutar uma música ou contemplar
a beleza. Ou seja, a sensualidade está relacionada a todo prazer que
afeta o corpo. Uma existência erótica, percorrida de sensualidade, não
precisa apenas do ato sexual para manifestar-se. Ela está presente nos
pequenos atos, no dia a dia, intensificando a vida, percorrida por ener-
gias e vitalismo (Mata, 2015, p.65-66).

O texto de João da Mata é ilustrado com fotografias de Lídia O., ar-


tista e performer que, na ocasião, publica autorretratos nua. A artista se
apresenta de modo sensual a evidenciar seios, costas, nádegas e vaginas,
em ângulos bem próximos. Não teria nada de diferente se não fosse o
caso de Lídia O. ter a cabeça raspada, a pele mais melânica, ser mais cor-
pulenta e expor de modo claro as marcas que o corpo traz: tatuagens,
celulites e estrias. É interessante perceber como texto e imagens nesse
caso casam de modo a explicitar que os prazeres não se encontram em
representações estanques e que podem ser apreciados sob as diversas
formas de desejo.
Nesse momento do capítulo se faz necessário pontuar que o con-
ceito de perversão, ainda mais de cunho sexual, foi considerado aver-
sivo de acordo com as práticas e discursos sobre o que poderia ser
manifestação de normalidade ou condição patológica. Como apresen-
tou Foucault (2012), houve, principalmente a partir do século XIX com
o desenvolvimento do pensamento científico positivista, a produção
discursiva proveniente de práticas médicas, jurídicas, pedagógicas e bio-
lógicas a necessidade de enquadramento e classificação de sujeitos e
comportamentos. Aos poucos, esses discursos foram compreendidos
como práticas de verdade devido, além da condição de poder, aos
afetos desenvolvidos na sociedade, para estabelecer quais comporta-
mentos poderiam ser considerados convencionais ou patológicos. De
acordo com o autor, a presença desses discursos, bem como sua repro-
dução como ação no meio social, teve como propósito o controle e a
124 Prazeres Possíveis

disciplina de corpos e subjetividades para além das questões das áreas a


que estariam envolvidos esses discursos, mas também, na fabricação de
sujeitos que pudessem ser produtivos para a ordem econômica e para
a promoção de uma sociedade supostamente desenvolvida e saudável.
Entretanto, para a promoção de controle e disciplina dos corpos
não foram levadas em consideração questões subjetivas desses sujei-
tos. Assim, houve a intenção de legitimar o processo de poder por
acompanhamentos, verificação, testes, esquadrinhamento, catalogação,
classificação de comportamentos e sujeitos que não seriam prósperos
para a sociedade dita normal: homossexualidades, pedofilia, masturba-
ção, zoofilia, necrofilia, fetichismo e uma série de outras práticas seriam
consideradas em níveis semelhantes de equivalência enquanto patolo-
gias por uma questão discursiva de poder. Obviamente, práticas como
pedofilia e necrofilia devem ser consideradas repugnantes, todavia, a
necessidade de classificar os demais comportamentos dentro do mes-
mo esquadro patológico condiz com a intenção de promover poder
na produção de corpos produtivos. Por esse viés Foucault acredita que
a sociedade do século XIX, e tomo a liberdade de considerar que a
sociedade atual não foge à raia, é considerada perversa justamente por
não levar em consideração subjetividades na classificação da condição
saudável e, além disso:

Não porque, ao querer erguer uma barreira demasiada rigorosa ou


geral contra a sexualidade tivesse, a contragosto, possibilitado toda uma
germinação perversa e uma série patologia do instinto sexual. Trata-se,
antes de mais nada, do tipo de poder que exerceu sobre o corpo e o
sexo, um poder que, justamente, não tem a forma da lei nem os efeitos
da interdição: ao contrário, que procede mediante a redução das sexu-
alidades regulares. (...) A sociedade moderna é perversa, não a despeito
de seu puritanismo ou como a reação à sua hipocrisia: é perversa real
e diretamente (Foucault, 2012, pp.54-55).

Por essa condição o autor considerou que as perversões não se


encontravam apenas nas práticas daquilo que fora considerado sub-
versivo, mas também nas práticas refratárias que pudessem limitar as
subjetividades e os desejos, na domesticação de corpos e da própria
condição do sexo como uma questão normativa.
Há outros modos de conceber as perversões, como o entendimen-
Prazeres perversos para além da aberração e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral
125

to proposto por Sigmund Freud (1905/1996) ao considerar que a per-


versão é uma condição estruturante do psiquismo humano que envol-
ve desejo e a fantasia. De modo muito sintético, a perversão dentro
da epistemologia da Psicanálise não se encontra em consonância com
a concepção de perversa na chave de entendimento do pensamento
científico positivista proposto no final do século XIX, mas como uma
estrutura em que o sujeito não reconhece as estruturas de poder, ou
seja, o sujeito não reconhece os movimentos de castração simbólica
desenhados pelo complexo de Édipo e acredita que o gozo lhe é uma
garantia sacra em nome da frustração causada ao reconhecer a mãe
como sujeito castrado.
Dentro do campo social, outra perspectiva que pode ser conside-
rada no sentido das perversões é o enfrentamento de estruturas de
poder, como iniciativas que podem ser consideradas potência de criati-
vidade, ousadia e perspicácia. Na intenção de promover o rompimento
de barreiras e de propostas audaciosas, a perversão pode ser estra-
tégica para reconstruir realidades e oferecer também dinamismo às
relações de poder ao enfrentar estruturas cristalizadas. Por essa chave,
a perversão não se assemelha aos comportamentos abjetos e repug-
nantes dos seres humanos em prol da destruição da vida social e da
própria do sujeito que a pratica. A perversão não se torna atitude que
poderia ser classificada ou atravessada por juízo e discursos de valores
moralizantes, tampouco sintoma de indiferença. Por esse olhar, a per-
versão pode ser compreendida como a força de enfrentamento para
oferta de outras práticas discursivas, questionando e criticando gramáti-
cas previamente estabelecidas, principalmente acerca das sexualidades,
representações de gênero e signos de identidade.
A perspectiva da epistemologia queer intenciona promover a rene-
gação das identidades com o intuito de desenhar flexibilizações senti-
dos para além dos códigos previamente concebidos. O pensamento
queer nasceu como sintoma da necessidade de reconfigurar espaços de
poder como enfrentamento a discursos já conhecidos. As sexualidades
consideradas dissidentes, o que não contempla apenas as homossexu-
alidades e bissexualidades, dentro da concepção queer abre lugares de
visibilidade e reconhecimento político, compreendendo político como
o espaço de possibilidade de comunicação, visibilidade e manifestação.
Pela pena de Silva (2000), o pensamento queer promove o desaforo e
é perverso justamente porque se propõe a desafiar paradigmas.
126 Prazeres Possíveis

Desse modo, a revista Nin pode ser considerada perversa na medi-


da em que, além de desafiar as formas de representação cristalizadas,
promove a diluição dos referenciais de identidade para o erotismo. Não
há demarcações seguras para apontar se a publicação é direcionada ao
prazer masculino, feminino, homoerótico ou a lésbicas, transexuais ou
travestis. Todas essas representações de desejo e sexualidades estão
presentes na revista sem impedimento moral ou de valor. O prazer não
é barrado ou de usufruto impedido.
A primeira edição da revista trouxe a ex-atriz pornô Cicciolina que,
em entrevista a uma das editoras da publicação, Letícia Gicovate, fez críti-
cas à objetificação da mulher na indústria do cinema erótico e nos demais
discursos midiáticos quando, na visão dela, mulheres são apresentadas
como objetos de consumo para o prazer masculino. Cicciolina, que tem
como verdadeiro nome Ilona Staller, nasceu na Hungria e migrou para a
Itália no começo da fase adulta, também estremeceu as estruturas polí-
ticas italianas quando foi eleita para o Parlamento do país em 1987. No
exercício do cargo, em plenário, ela mostrou a mama esquerda em alusão
à feminilidade e também pela simbologia das mamas para alimentação
infantil para sublimar seu posicionamento ideológico voltadas às ações
e políticas de esquerda. Nessa mesma edição, há no texto de Fernanda
Marinho (2015), “O homem nu”, críticas e questionamentos acerca das
representações artísticas da nudez masculina em que ora se encontram
em signos tipicamente masculinos (guerra, poder ou força) ora é envol-
vida para além do corpo do homem no controle do mundo, da natureza
humana, como o Homem vitruviano, de Leonardo da Vinci. Para a auto-
ra do texto, a nudez masculina apresenta hiatos de representação, pois
acompanhou os códigos culturais de sentido: sendo quase esquecida no
rococó dos séculos XVII e XVIII ou permanecendo em evidência das re-
presentações contemporâneas como a exposição Masculin, que ocorreu
no Museu d’Orsey, em Paris, em 2013 e a exposição Hommes nus, que
aconteceu em 2012, no Museu Leopold de Viena, na capital austríaca;
exposições que contribuíram para variedade do leque de representação
das masculinidades e dos corpos masculinos. Para ilustrar o texto da au-
tora, há o ensaio assinado por Alessio Boni que retrata a performativida-
de de um homem nu. No final do texto, ela considera que:

Os debates contemporâneos em torno das questões de gênero não


despertam apenas um outro lado feminino adormecido em detrimen-
Prazeres perversos para além da aberração e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral
127

to da sensualidade coibida fragilidade à qual a mulher é recorrente-


mente associada, mas instigaram também a libertação do homem para
além das funções sociais de força e poder (Marinho, 2015, p.25).

Como o deboche também é parte da concepção do erotismo da


publicação, não apenas imagens de pessoas nuas são veiculadas. Outras
representações conotam erotismo, pelo viés do escárnio. A ilustração
da fotógrafa e artista plástica brasileira Verena Smit, publicada na primei-
ra edição, ironiza o nome do brinquedo de parque de recreação; como
trata-se de uma publicação erótica, é clara a intenção de deboche.

Figura1

Cansei de brincar
de trepa trepa
Fonte: Nin, n.1, p.78-79

A irreverência e a ironia também podem ser percebidas na instala-


ção do artista carioca Leo Ayres, intitulada de Interseções. De poética
irônica e criativa, o artista consegue, pela disposição de diferentes mo-
delos de camas, apresentar o entrelaçamento do móvel de tal forma a
conotar a prática sexual coletiva.

Figura 2

Interseções
Fonte: Nin, n.1, pp. 36-35.
128 Prazeres Possíveis

A segunda edição da revista também flui sem barreiras rumo ao ero-


tismo quando apresenta em ensaio fotográfico a modelo trans Camila
Ribeiro. Além disso, há um pequeno depoimento sobre ela um curta
entrevista pingue-pongue. Esbelta e de seisos redondamente esculpidos
por próteses, ela divide as páginas da edição com imagens do fotógrafo
russo, radicado na Ucrânia, Sasha Kurmaz. Ele apresenta poses de cor-
pos femininos em situações inusitadas, fora do convencional.
Na mesma edição, Aleta Valen-
Figura 3 te desafia não apenas as práticas
de representação dos corpos e
desejos, mas as qualidades daquilo
que pode ser arte. Moradora da
periferia carioca, Bangu, ela con-
viveu com algumas adversidades
como a doença mental da mãe e
a pobreza no subúrbio. Ela criou
um avatar, Ex-miss Febem, para ser
o seu canal, também vitrine do
seu trabalho. Com esse nome, ela
criou perfis em redes sociais. En-
tretanto, nem sempre bem-vindos,
algumas dessas redes cancelou os
seus perfis por acreditar que se-
jam ofensivos ou pornográficos.
Do seu corpo, ela performa en-
Autoria: Sasha Kurmaz - Sem título
Fonte: Nin, n.2, p.53 frentamentos contra os ditames
do sexismo, do machismo e da so-
ciedade patriarcal. Ela descortina de modo escancarado a sexualidade
feminina, branda com o corpo a necessidade de visibilidade daquilo que
encontra-se escondido, abafado e silenciado. Suas imagens evidenciam a
própria vagina, a menstruação, os pelos nas axilas e até mesmo a aridez
do subúrbio. Como sátira dos valores artísticos, Aleta, em fotografia,
expõe a própria vagina com sangue menstrual e batiza a obra com o
nome L’origine du nouveau monde em alusão à tela da segunda metade
do século XIX, L’origine du monde, de Gustave Coubert, em 1866.
A artista, que já passou por bancos universitários da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com sua arte denuncia e explora
outras práticas discursivas para lidar com a machismo. Ela causou po-
Prazeres perversos para além da aberração e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral
129

lêmica ao postar uma fotografia Figura 4


sua de roupas brancas com san-
gue menstrual, com a legenda: “O
patriarcado está vazando. A mi-
soginia está vazando. Não sere-
mos censurados”. A imagem não
foi publicada pela revista, mas foi
alvo de agressões verbais severas
que puderam ser observadas du-
rante a exposição História da se-
xualidade, organizada pelo Museu
de São Paulo (Masp), ocorrida de
novembro de 2017 a fevereiro de
2018. A imagem foi exibida em
uma tela de plasma de um lado e,
do outro lado, rolavam automati-
camente os comentários. Pela re- L’origine du nouveau monde
Fonte: Nin, n.2, p.65
vista Select, sob a pena de Márion
Strecker, a autora considera Aleta:
“(...) uma artista que afronta os estereótipos. Ativista, usa a internet, o
humor e as câmeras de celular há anos, explorando profundamente a
dinâmica e a interatividade das redes sociais, onde causa furor e atrai
tanto ódio quanto seguidores” (Strecker, 2018, p.66).
Essas fotografias justificam o dis-
curso da revista Nin, que afirma sobre Figura 5
os trabalhos e a atuação da artista:

(...) com fins de protesto, uma


performance cotidiana com
fins de crítica social, uma per-
formance em processo que
confronta as normas culturais
vigentes, com vistas a uma
transformação da realidade, a li-
bertação do corpo da mulher, a
dissolução da ideologia machis-
ta dominante e o fim das mino-
rias (...) Seu estilo destemido e Fonte: Fotografia da obra. Masp, 2018
130 Prazeres Possíveis

dissonante ilumina uma série de subjetividades periféricas, expõe o corpo


e a sexualidade da mulher de maneira inaceitável para a cultura heteronor-
mativa, explicita uma atitude que o ideário patriarcal-machista-misógino faz
questão de esconder, condenar, oprimir, apagar e castrar. Aleta desafia a
tradição, cria ruído, tremor nas depiladas redes sociais com sua tempestade
de bucetas, pentelhos, sovacos, sangue, drogas, pegação, gays, entulhos, caos,
calcinhas, quentinhas e coxinhas de galinha. No seu Instagram, Bangu é o
centro do mundo e marginal é o Leblon (Colassanti, 2016, p.63).

A mesma edição apresenta a vida conturbada de Jeza, pseudônimo


de Jonatas Rodrigues. Formado em Letras, ele teve uma vida agitada em
diferentes atividades profissionais, o que incluiu a prostituição no Rio de
Janeiro. Assim, como Aleta, ele é morador de comunidade periférica e teve
de lidar com as adversidades. Em um episódio, foi preso por furto de uma
bolsa dentro de um estabelecimento comercial. No texto autobiográfico,
ele apresenta sua experiência nas leituras em bibliotecas, a fluência em
idiomas, o casamento que se
findou com um estrangeiro Imagem 6
que o levou a conhecer al-
guns países da Europa e al-
gumas passagens na qualida-
de de profissional do sexo.
No ensaio que acompanha
o texto, imagens de ménage
à trois e outras do artista nu
compõem as representa-
ções imagéticas.
Conforme apresentado
anteriormente, a revista não
se delimita por um segmen-
to de público, a despeito de
ser um produto a ser comer-
cializado. Nin mistura entre
suas páginas as concepções
de desejo e representações
das sexualidades de modo
desimpedido e mais livre.
Fonte: Nin, n.2, p.97
Prazeres perversos para além da aberração e do esdrúxulo: notas sobre a revista Nin
Muriel Emídio P. Amaral
131

Imagem 7 Considerações
finais

A proposta da revis-
ta, pelas análises realizadas,
perpassa a estética queer de
descomprimir e despressuri-
zar as marcas de identidades
e ofertar o prazer para além
da concebida normativa dos
gêneros, das identidades e
dos desejos. Os lugares de
prazer não se encontram fi-
xos ou previstos, mas fluídos
e em trânsito por entre ho-
mens, mulheres, transexuais,
incluindo também a alimen-
tação, as atividades sinestési-
cas do corpo e dos desejos.
A proposta da Nin não é
exatamente nova, se fizer-
mos um regaste histórico,
Fonte: Nin, n.2, p.93 perceberemos que o pri-
meiro jornal homoerótico
brasileiro, Lampião da Esquina, já apresentava nuances queers, não pelo
erotismo (nesse sentido, o jornal não apresentou nenhuma novidade
fora do esquadro de corpos masculinizados), mas pelo deboche e ir-
reverência com que abordou as sexualidades e as estruturas de poder.
Até mesmo os desenhos eróticos de Carlos Zéfiro dos anos 1950,
conhecidos como catecismos, apresentaram traços queers ao trazer
à tona a sexualidade de modo tão claro em pequenas publicações
ilustradas.
Em 2017, a revista de artes Esse, é produzida no Canadá e veiculada
em inglês e francês, dedicou sua edição inteira para veicular pesquisas
e trabalhos de acadêmicos, artistas e performers que seriam contem-
plados pela estética queer. Destaque para o texto “Islamicate sexualities:
the artworks of Ebrin Bagheri”, de Andrew Gayed. No texto, o autor
apresenta como as homossexualidades foi apresentada pelo trabalho
132 Prazeres Possíveis

de Ebrin Bagheri, enfrentando o preconceito em países islâmicos, e as


imagens produzidas por Zanele Muholi, pela série Faces and Phases, que
dá visibilidade a negros e negras homossexuais e queers pelo mundo.
Para o fim e ao cabo, a Nin pode ser compreendida para além do
erotismo e da pornografia. Em outro estudo, podemos considerar a
publicação como sendo política (Amaral; Bertolli Filho, Baptista, 2018)
por oferecer visibilidade a sujeitos e representações que se encontram
no limbo da sociedade ou em lugares de marginalidade. Assim, a publi-
cação torna-se, mesmo que dentro de um segmento social e de um
espaço ainda muito restrito, a necessidade de descortinar os desejos
para outros campos e sintoma da urgência de contemplar outros sujei-
tos, corpos e subjetividades para o espaço social, sendo deliciosamente
perversa!

Referências
AMARAL, M. E. P; BERTOLLI FILHO, C.; BAPTISTA, M. M. R.T. A perversão como estética
política para a sexualidade: notas sobre a revista Nin. Brasiliana: Journal for Brazilian
Studies, Londres, 2018 (prelo).
BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”.
2ªed. Buenos Aires: Paidós, 2012.
COLASSANTI, A. Aleta Valente, a boca do novo mundo. Nin, v.1, n.2, pp.62-65, 2016.
DUFOR, D.-R. Cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
2012.
FREUD, S. Um caso de histeria: três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos. Rio
de Janeiro: Imago, 1905/1996.
MARINHO, F. O homem nu. Nin. n. 1, v.1, pp.20-35, 2015.
MATA, J. da. Erotismo, sensualidade & sexualidade como potências da vida. Nin, ed. 1,
ano 1, pp. 65-67, 2015.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
STRECKER, M. Aleta Valente: suburbana, mãe solteira, feminista, artista. Revista Select,
n.38, ano 7, pp.64-71, 2018.
135

Promessas de um
Grande Prazer:
a publicidade via spams

Claudio Bertolli Filho

Todos aqueles que se interessavam pelos concursos de Miss Brasil


realizados na década de 1960 devem se lembrar que, dentre os critérios
de apresentação das candidatas, encontrava-se uma rápida entrevista,
no decorrer da qual duas questões mostravam-se perenes. A primeira
delas era atinente aos gostos literários das beldades (posteriormente
substituída pelo “filme da sua vida”) e, invariavelmente, a resposta re-
caía sobre O pequeno príncipe de Saint-Exupéry ou Sidarta, de Herman
Hesse. A segunda indagação, mantida até hoje mesmo que com outra
formatação, voltava-se para o significado e importância da beleza e as
moças, algo desajeitadamente, mostravam-se uníssonas na declaração
de que a beleza individual estava no espírito e não no corpo. Aflorava
desta resposta compartilhada uma ambiguidade: as mesmas mulheres
que concorriam entre si tendo como critério básico a perfeição corpo-
ral minimizavam ou mesmo negavam a importância da estrutura física
136 Prazeres Possíveis

em prol das qualidades metafísicas dos seres humanos.


A constância de respostas assemelhadas à que essas jovens ofere-
ceram há meio século deve-se aos arranjos hierárquicos engendrados
pela cultura ocidental que historicamente tem situado o espírito, alma
ou personalidade como superiores em importância ao corpo. As ex-
pressões públicas centradas nas “coisas do espírito” comovem e são
celebradas grupalmente, enquanto o corpo, por mais que seja exposto
e desejado, exige cautela nas reações coletivas e vigilância nas palavras
individuais de regozijo. O prazer sexual, como uma das mais íntimas ex-
periências viabilizadas pelo corpo, constitui-se em assunto que, quando
invocado mediante imagens ou palavras, encontra o moralismo como
dispositivo inibidor. Aqueles que ousam discorrer sobre o prazer na
primeira pessoa do singular tendem a ser imediatamente discriminados;
quem já não se deparou com considerações que se reportam a artistas
“exibicionistas”, escritores e bloggers “pervertidos” e pessoas de pouco
talento que querem chamar a atenção da mídia para si ao falarem de
suas intimidades na cama?
Os esquemas censores centrados no corpo e no prazer pontuam o
cotidiano. As exclusões de postagens nas redes sociais consideradas im-
próprias porque apresentam corpos nus ou mensagens sobre o prazer
sexual sem recorrência à metáforas admitidas, o escândalo causado pela
exposição de um homem despido em um museu aberto para todas as
faixas etárias de público e os “cortes” de cenas efetuados pelo Canal
Brasil em algumas pornochanchadas brasileiras a ponto de os enredos
fílmicos tornarem-se ininteligíveis são expressões institucionalizadas do
ardor da censura. Esse comportamento também está presente em es-
paços considerados mais liberais, como no cotidiano universitário. No
decorrer de uma aula tematizada exatamente pelo corpo, quando uma
dupla de alunos se auto-avaliaram como “bonitos, gostosos e tesudos”,
foram imediatamente admoestados pelos colegas, que definiram tais
palavras como algo que só poderia ser pronunciado por pessoas “vulga-
res”. Em outra situação, ocorrida também em sala de aula, desta vez du-
rante um curso de reciclagem para docentes do Ensino Médio, quando
os presentes foram convidados para pensar como o corpo e o prazer
poderiam ser discutidos junto aos alunos adolescentes para além dos
ensinamentos de Biologia, alguns docentes, praticamente repetindo o
que foi pontificado pelas candidatas a misses focadas na abertura deste
texto, asseveraram que era “melhor ensinar coisas boas para a meni-
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
137

nada, coisas sobre a alma”, enquanto um professor mais exasperado


bradou que não falaria para adolescentes sobre “essas porcarias”.
Situações como essas evidenciam a persistência da percepção do
corpo humano como objeto obsceno, termo de etimologia latina que
remete a obscenus, cuja raiz é caenum, sujeira. Em decorrência, “obsce-
no” persiste nos léxicos contemporâneos como sinônimo de perver-
são, imoralidade, impureza, indecência e desonestidade, tendo como
antônimos pureza, candidez e pudicidade, atributos que, sintomatica-
mente, são imputados ao espírito ou à personalidade.
No entanto, quando as falas sobre o corpo e a intimidade corporal
ocorrem em situações mais privadas, percebe-se o afrouxamento das
interdições sociais e as palavras ganham maior fluência. Pesquisando um
grupo de mulheres da Mongólia, a antropóloga britânica Hedwig Wal-
ters deparou-se com personagens que, mesmo com reticências, confi-
denciaram sobre si, ressaltando a beleza e a sensualidade de seus cor-
pos assim como sobre as estratégias de obtenção e compartilhamento
de prazeres sexuais. Para essas depoentes, o corpo e suas sensações
definem-se não só como vetores que contribuem para o sentimento
de plenitude existencial, mas também como elementos que podem fa-
vorecer a aquisição de vantagens sociais e benefícios pecuniários (Wal-
ters, 2015).
A partir deste cenário, o objetivo deste escrito é focar como a ques-
tão orquestrada pelo prazer sexual tem sido explorada na rede mundial
de computadores. A prolixidade das mensagens sobre o tema varia de
blogs de auto-ajuda que se propõem a “ensinar” como alcançar orgas-
mos mais intensos até orientações que, hospedadas nos labirintos da
undernet ou deep web, versam sobre o prazer sádico, oferecendo um
rico material para análise. A variedade e volume das fontes virtuais im-
pôs a necessidade de um recorte mais fino para o estabelecimento do
corpus a ser analisado; nessa operação, optou-se pela análise de cerca
de 1.200 spams centrados na questão do prazer sexual, os quais foram
colecionados pelo autor e mais dois colaboradores no decorrer do
segundo semestre de 2017.
A decisão de estudo dos spams deveu-se não só à originalidade de
uma fonte documental ainda não vistoriada pelas Ciências Sociais Apli-
cadas como também pela circunstância dessas mensagens flutuar entre
o público e o privado. É frequente o texto de spam chegar ao receptor
como uma mensagem sigilosa que invoca o nome do titular da caixa de
138 Prazeres Possíveis

correio virtual, criando a fantasia de o emissor ser alguém que conhece


e quer contribuir com o bem-estar de quem está recebendo o conte-
údo. É significativo notar que um grande número de spams apresenta
produtos voltados para o corpo e o prazer; planos de saúde, remédios,
cremes, perfumes e acessórios de todo o tipo concorrem com “reca-
dos” virtuais que informam sobre produtos indicados para recuperar e/
ou ampliar o prazer sexual.
Pouco ainda o público sabe sobre os mecanismos geradores e dis-
seminadores dos spams, talvez porque eles sejam pouco percebidos
pelos internautas, já que a maior parte deles é automaticamente enca-
minhada para as lixeiras ou caixas de quarentena criadas pelos serviços
de correio eletrônico. Mesmo assim, o Brasil, depois da Índia e dos
Estados Unidos, é o terceiro país onde mais se recebe spams, dado
que torna importante seu conhecimento e análise (Padrão, 2018). O
spam pode ser provisoriamente entendido como uma mensagem não
solicitada e reenviada constantemente, reformulada ou não, para um
mesmo endereço, encontrando destinatários via a recorrência a fór-
mulas matemáticas designadas algoritmos, as quais selecionam perfis de
possíveis consumidores dos produtos ofertados. O limbo em que se
encontra o spam faz com que não se tenha certeza nem mesmo sobre
a origem do termo que o designa, ora sendo aventado como resultado
da aglutinação das palavras spiced ham ora como empréstimo do título
cunhado pelo grupo de humoristas britânicos Monty Python para um
de seus mais conhecidos quadros televisivos que, na década de 1980,
explorava o nonsense cultural. Apesar dessas informações, acredita-se
que o termo spam tenha surgido como uma sigla referente a sending
and posting advertisement in mass, a qual é ironicamente reinterpretada
por profissionais da área de marketing como stupid pointless annoying
messages (Arutyunov, 2013, p. 206).
Acrescenta-se que os conteúdos veiculados como spams serão avalia-
dos enquanto peças publicitárias que, por sua vez, encontram na cultura,
mais especialmente no imaginário coletivo, os recursos para a apresen-
tação e eventual consumo das mercadorias anunciadas (Rocha; Barros,
2003, p. 182). A recorrência ao termo “publicidade” e não “propaganda”
deve-se a imposições conceituais, pois entende-se por propaganda a
estratégia divulgadora de ideias e pessoas, enquanto que publicidade
compreende a intenção de indicar as características e qualidades de
produtos e de serviços expostos à venda, portanto uma ação vinculada
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
139

tanto à cultura quanto aos interesses econômicos do mercado (Piedras;


Jacks, 2006). Apesar disso, como será constatado no decorrer do texto,
são fluídas as fronteiras entre o intento de vender mercadorias e o de
informar sobre eventos e personagens, sendo possível deparar-se com
situações nas quais o discurso publicitário oferece definições sobre a
identidade corporal e também sobre o que é o prazer. Derivado disso,
propõe-se também restringir-se a análise aos conteúdos das mensagens
dispensando-se pouca atenção à forma que são apresentadas. Com isso
não há o intento de menosprezar as relações viscerais entre forma e
conteúdo das formulações publicitárias; o recorte deveu-se sobretudo
às limitações do espaço destinado a um capítulo de uma obra coletiva.
Como anfiteatro da discussão proposta, é necessário especificar o
contexto cultural e científico articulado a partir do corpo humano e,
mais especialmente, do prazer sexual.

O corpo como enigma, o prazer como recompensa

Calcado primeiramente nos princípios religiosos e, em seguida, na


filosofia mecanicista, o binômio corpo/espírito ganhou o sentido de ter-
mos em oposição. Até o tempo presente, nota-se a persistência do
espírito ser representado como o centro do pensamento, da fé em um
deus e da racionalidade que fluem para o equilíbrio individual e para a
harmonia social, enquanto o corpo é retratado como uma usina gera-
dora do “desejo de obter prazer” (Freud, 1995), remetendo à luxúria, à
perdição e à rebeldia em relação aos regramentos sociais.
A insuficiência de uma definição operacional de prazer remete, em
uma primeira instância, ao dimensionamento histórico do corpo e de
sua dimensão prazerosa. Nessa tarefa, é possível constar que, na maioria
dos sistemas mágico-religiosos, houve um tempo primordial no qual
a perfectibilidade era o sinal distintivo da principal produção divina: o
ser humano. A perfeição do corpo se dava não só por ser o viven-
te resultado das intenções de uma ou mais divindades, mas também
porque ele, como na tradição hebraico-cristã, foi concebido “à imagem
e semelhança” de seu deus. Se o corpo era magistral, a alma apenas
aspirava a tal perfeição, condenando todos à decadência; os pecados
acumulados como que corrompiam o corpo, reduzindo paulatinamente
seu vigor, entregando-o ao primado do prazer, gerando padecimentos
físicos, causando enfermidades, resultando, enfim, na brevidade da vida.
140 Prazeres Possíveis

Isto porque a imperfeição espiritual disseminou-se, “poluindo” e “conta-


minando” o corpo, decretando o encerramento da Idade de Ouro da
humanidade (Mopsik, 1990).
O arcabouço de ossos e carnes passou a ser percebido como espe-
lho da própria condição humana, tornando-se, no pensamento cristão,
até mais corrompido que a própria alma. Junto a ela, era no corpo e
a partir dele que se inscrevia a história individual, configurando-se pri-
meiramente como “nosso maior inimigo”, uma entidade a ser odiada
porque fadada à impureza já que, orientada pela busca dos prazeres,
rejeitava submeter-se à administração da moral religiosa e que, por
isso, carecia ser dominada mediante a multiplicação de ordenamentos,
preces, penitências e suplícios. Concomitantemente, como obra divina,
portanto sagrado, o corpo foi também concebido como o “templo do
espírito”, carecendo de cuidados, sendo exaltado em sua luta pelo ima-
culado propiciado pela castidade, em seu vigor, em sua beleza e em sua
perfeição. Entre uma e outra peroração, erigiu-se uma avaliação setorial
do corpo pelas lentes cristãs. A cabeça e o coração foram definidos
como “puros” porque sede do espírito e era a partir deles que se alcan-
çava Deus; por sua vez, as partes de baixo, sobretudo as sexuais, foram
avaliadas como “sujas” porque remetentes ao desejo e aos prazeres
pecaminosos, enfim, ao Demônio (Míguez, 2002, p. 24).
Foi somente com o advento da Revolução Científica iniciada no
século XVI que o corpo começou a ser efetivamente dessacralizado,
o que viabilizou novas estratégias para a sua apreensão. Refletindo as
transformações econômicas, políticas e culturais, as ciências pautadas
na filosofia mecanicista foram coprodutoras de uma nova sensibilida-
de, a qual não mais antevia obstáculos morais intransponíveis para o
estudo do corpo, assim como, no plano mais abrangente da cultura, o
corpo-máquina passou a ser visto como uma fábrica ao mesmo tempo
preservadora e promotora da vida.
A dualidade corpo/alma, que dominou o cartesianismo, entendia a con-
cretude corpórea como uma entidade geradora de paixões e sensações
frente às coisas do mundo, cabendo à alma, onde supostamente se en-
contraria a sede da razão, regular a intensidade de tais impulsos, conferin-
do caráter a um só tempo filosófico e científico à moderação enquanto
princípio moral. Nesse sentido, para Descartes, a saúde era sinônimo de
uma convivência equilibrada entre o corpo sempre rebelde em apetites e
sensações e a alma, a timoneira do corpo (Descartes, s.d., p. 87).
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
141

A admissão da impossibilidade de anulação no maquinário huma-


no do desejo e do prazer impôs novas regras para o amoldamento
social de ambos, o qual tem se mostrado perenemente lastreado por
orientações culturais divergentes. Os ensinamentos predominantes na
Modernidade Clássica insistiam na indicação do comedimento e do
autocontrole como elementos basilares do “padrão civilizatório” e, em
desdobramento, como instrumentos morais importantes nos processos
de sociabilidade e na manutenção da saúde física e mental (Elias, 1993,
p. 256). A fórmula “nem tanto à terra, nem tanto ao mar”, cunhada no
período, resume exemplarmente essa linha de conduta controlada, a
qual deveria ser aplicada às circunstâncias cotidianas, prazerosas ou não,
encontrando eco nas orientações iluministas que insistiam nos discursos
acerca da moderação como o valor central na educação moral dos
jovens (Crespo, 1990, p. 499).
Se a regra era a discrição em relação ao prazer sexual, alguns per-
sonagens romperam os rígidos códigos de moralidade para dissertar
exaustivamente sobre o assunto. No final do século XVIII e nas primei-
ras décadas da centúria seguinte, o espírito revolucionário emblemati-
zado pelo Marquês de Sade disseminou uma postura que afrontava a
censura pública, levando seus livros a serem avidamente consumidos
primeiramente na França e, em seguida, em toda a Europa. Para o
“Príncipe dos Libertinos”, a cultura atentava contra os cidadãos, res-
tringindo drasticamente, por meio de credos e leis, a liberdade de
existir o mais próximo da plenitude. O também cognominado “Divino
Marquês” insuflava a rebeldia ao empregar sua pena no enlevamento
dos prazeres extraídos do corpo como uma experiência radical e
que deveria ser praticada ao extremo. Para ele, conspurcar todos os
comedimentos era a regra, pois “qualquer coisa é boa desde que seja
excessiva” (Sade, 2007, p. 172).
A educação, ou melhor, a “boa educação” destinada à elite estabelecia
os limites específicos sobre o que dizer e o que calar nos comporta-
mentos e apresentações públicas nutridas pela sensação e experiências
com o prazer. A sociedade vitoriana avaliava o prazer sensual como algo
necessário para a reprodução da espécie, porém desprovido de virtu-
des. Mais do que o regramento religioso, era a ciência, especialmente a
medicina, que reclamava o posto de saber legítimo, porque instituciona-
lizado, para o desempenho da missão de aconselhar sobre as estraté-
gias e dispositivos mobilizados no silenciamento dos desejos proscritos,
142 Prazeres Possíveis

condenando como patologias a um só tempo médicas e sociais o coito


ilegítimo, o onanismo, as fantasias eróticas mais exaltadas, os fetiches e
uma extensa lista de “taras”.
Frente às “tiranias de aparências” engendradas no contexto europeu
ocidental em nome da saúde moral, coube também à sociedade vitoria-
na patrocinar a existência de uma lucrativa empresa de mercadorias se-
xuais. Editores ganharam fama e riqueza ao se dedicarem à publicação
de livros com enredos pornográficos que concorriam e sobrepujavam
em transgressões as confissões de Sade, sendo recitados nos salões dos
prostíbulos europeus como estimulantes sensuais do intelecto dos seus
frequentadores. O desejo pelo prazer contava com muitas outras pro-
messas: mercadores endinheiravam-se com o comércio de itens impor-
tados do Oriente, como ilustrações eróticas e ervas e “pós da China”
que asseguravam a ampliação do prazer sexual, assim como ofereciam
dildos talhados em marfim com incrustações de ouro para a clientela
abonada (Gay, 1990; Muchembled, 2008).
Além disso, acredita-se que foi no transcorrer do século XIX que o
imaginário europeu deixou-se seduzir pelo fetiche do pênis avantaja-
do como quesito cobrado para a obtenção de um prazer sexual mais
substancial, provavelmente a partir da disseminação de pinturas eróticas
importadas do sudeste asiático ou do norte africano. Nessa rota, o feti-
che pelo falo avantajado, até então identificado como indício de huma-
nidade imperfeita e ausência de civilização, substituiu a celebração dos
pênis minúsculos instituídos como marca de refinamento, princípio este
admitido já na estatuária helênica do século IV A.C. (Holloway, 2016).
Imbuída de fantasias como esta, a sociedade vitoriana mostrava-se
não exatamente cingida, mas sim multifacetada: as camadas sociais privi-
legiadas, inclusive os membros da realeza, ao mesmo tempo que defen-
diam rígidos padrões morais, eram as que mais consumiam os produtos
gerados em nome do prazer. Muitos daqueles que defendiam vigorosa-
mente a temperança em relação ao sexo também eram personagens
de existências secretas. Símbolo daquele momento, um dos grandes
sucessos da empreitada editorial pornográfica na Grã-Bretanha foi a
obra My secret life, cujo autor anônimo discorreu sobre seu empenho
na busca pelo prazer em 4.200 páginas distribuídas em 11 volumes
publicados por volta de 1890 (Marcus, 2008, p. 83).
Depositária dessa trama, que foi atualizada porém pouco alterada no
século passado, a cultura da modernidade tardia é pautada por insegu-
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
143

ranças que permitem inclusive o afloramento de uma consciência prá-


tica que insufla um ambiente de “faz de conta” em relação a questões
cruciais que tocam a existência individual (Giddens, 2002, p. 41). Nessas
arquiteturas imaginárias, o corpo perfeito e sempre aparentando juven-
tude, o prazer sexual imorredouro e a negação da morte são exalta-
dos, como antídotos à sentença de que a estrutura física humana foi
produzida com um material de qualidade duvidosa e pouco resistente
aos infortúnios e ao passar do tempo (Frisch, 1994, p. 180). Ainda mais,
o fantasma do “pinto pequeno” persiste, perturbando e intimidando,
sendo referência obrigatória em um grande número de anúncios que
serão analisados na última parte deste texto. Na década passada, o
cineasta britânico Lawrence Barraclough produziu e dirigiu o bem hu-
morado documentário My penis and everyone else’s que, tendo como
personagem central o small cock do diretor, fez com que ele recebesse
não só elogios, mas também expressões de solidariedade de homens e
de mulheres que assistiram ao filme e souberam do seu “drama” (My
penis, 2005)1.
Para que o “faz de conta” apontado por Giddens se torne plausível,
alguns esquemas clássicos têm que se manter em voga. Apesar das no-
vas concepções sobre o corpo elaboradas pela medicina psicossomáti-
ca, que propõe a unidade entre as estruturas corporais e psíquicas, e da
biologia molecular que, ao relegar a um plano secundário a dimensão
psicológica, apresenta o corpo como um artefato de “agenciamento de
informações” (Else, 2010, p. 29), o que ainda impera nos livros de ins-
trução e de divulgação da anatomia humana é a da estrutura corpórea
como a articulação de uma série de bombas, vigas e dobradiças que
compõem uma máquina complexa. Mesmo assim, as peças constituti-
vas do maquinário anatômico-fisiológico contam com autonomia sufi-
ciente para, em caso de deficiência, serem recuperadas separadamente
mediante procedimentos e terapêuticas específicas (Aldersey-Williams,
2016; Francis, 2017).
A partir dessa visão reducionista constata-se a multiplicação de dis-
cursos e cobranças culturais que negam as limitações naturais do corpo
humano e os efeitos do correr dos anos sobre o funcionamento físico.
É nesse território semificcional que o prazer propiciado pelo gozo é

1
O documentário com as confidências de Barraclough encontra-se hospedado em: https://top-
documentaryfilms.com/my-penis-and-everyone-elses/
144 Prazeres Possíveis

cobrado como um dos indícios da vitalidade individual e também como


uma sensação que pode ser potencializada e expandida para além das
limitações humanas, mediante recursos externos, isto é, drogas e pro-
cedimentos diversos, tendo como referências centrais a recorrência a
cirurgias que objetivam aumentar a extensão do pênis e, nos últimas
duas décadas, o consumo disseminado de citrato de sildenafila, fármaco
comercializado pelo Laboratório Farmacêutico Pfizer sob a designação
de Viagra, uma droga eficiente no combate à disfunção erétil e que é
corriqueiramente utilizado especialmente por homens, mas também
por mulheres preocupados em garantir e intensificar o próprio prazer
sexual. Além disso, esta droga é indicada para a maximalização do de-
sempenho em práticas esportivas e para aumentar a resistência frente
a qualquer esforço físico (Croissant, 2006, p. 344).
Nesse contexto no qual se constatam mais continuidades do que
rupturas em relação aos séculos passados, resta uma questão crucial:
o que é o prazer? O filósofo Tim Mulgan ponderou que o termo “é
surpreendentemente difícil de definir”. Para ele, apesar de desde a An-
tiguidade haver a correlação entre prazer e sensação de bem-estar ou,
ainda a articulação religiosa entre prazer e pecado, foi somente nos
séculos XVIII e XIX que se buscavam novas elucidações sobre o tema,
especialmente entre os filósofos utilitaristas, dentre eles John Stuart
Mill e Jeremy Benthan, que acabaram se acomodando em enunciá-lo
como sensação agradável, contentamento, satisfação e deleite, sem no
entanto chegarem a uma definição mais precisa. Os herdeiros atuais da
linhagem utilitarista assumiram o mesmo intento, registrando a tríade
possível de sensações que, entrelaçadas, podem abrir novos caminho
para os debates: a fisiológica, representada pela experiência corporal
propriamente dita; a fenomenológica, constituída pelo sentimento in-
telectual experimentado pelo sujeito durante o ato e, finalmente, a
preferência, quando se compara e hierarquiza uma determinada expe-
riência prazerosa em relação a outras anteriormente vivenciadas (Mul-
gan, 2014, p. 90-91).
Nessa rota, se Sade já havia contemplado o prazer como o sublime
que se constitui o objetivo da existência humana, o qual é alcançado
pela dor e pelo gozo (Sade, 1996, p. 118), Michel Foucault empenhou-
-se em aprofundar a tarefa da busca do conceito do prazer, entenden-
do-o como “sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda
utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro” (Foucault, 2013, p.
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
145

16). Suas palavras foram acompanhadas de perto por David Le Breton


que acrescentou: “A brincadeira de viver do erotismo é um confronto
simbólico com a morte que se estende além da “morte de mentira”,
que muitas vezes denomina o prazer (2016a, p. 163).
Tanto Foucault quanto Le Breton mostraram-se pouco dispostos a
buscar definições mais amplas e consistentes de prazer, deixando de
agregar a suas explanações vários aspectos da sexualidade, inclusive o
exercício referendado como “o diálogo com o próprio corpo”, isto é, o
prazer advindo da masturbação, talvez porque esta desfrute uma história
própria tanto no referente às suas práticas quanto às suas interdições.
A persistência das dificuldades em discorrer sobre o prazer coloca
em evidência um fato: o corpo que o sujeito possui não é o próprio
sujeito (Le Breton, 2016b, p. 119), estabelecendo uma lacuna entre o
que o corpo oferece em termos de prazer e o que é esperado e fervo-
rosamente necessitado, pelo detentor deste corpo. Uma lacuna que faz
parte da essência humana, mas que tem sido cada vez mais exponenci-
da pelas cobranças do “viver plenamente” insuflado pela trama cultural
reformatada a partir do pós-Segunda Guerra Mundial. A presença de
uma insatisfação ou um mal-estar imperfeitamente acobertado pela
intimidade e pelo silêncio não poderia deixar de ser percebida pelo
mercado que, habilmente, adotou estratégias agressivas e intimidadoras
para explorar as carências individuais e os medos coletivos na apresen-
tação e comercialização dos seus produtos, especialmente mediante
mensagens que chegam ao público como spams.

Angústias e recompensas: a publicidade

As mensagens publicitárias que apresentam produtos indicados para


despertar, potencializar ou recuperar a capacidade de usufruir do pra-
zer sexual não se constituem em fenômeno recente. O advento da
cultura de massa e seus meios de comunicação relegou ao passado as
simpatias e poções preparadas por feiticeiros e alquimistas, anuncian-
do produtos pretensamente mais eficientes que prometiam o rápido
alcance do prazer. Restringindo-se ao contexto nacional, comunidades
virtuais dedicadas à divulgação de “propagandas antigas” mostram-se
pródigas em apresentar anúncios comprometidos com as práticas se-
xuais e os “prazeres da carne”. Apesar disso, a atividade desses grupos é
lacunar, já que eles não indicam nem a fonte e nem a data de publicação
146 Prazeres Possíveis

original do material veiculado2.


Nas páginas destas comunidades, duas peças publicitárias apresentam
elementos que permitem situá-las na década de 1920 ou no começo
da seguinte. A primeira delas refere-se ao Tônico Potentol; ao lado da
imagem de um símio que parece locupletear-se da sua força e vigor físico,
consta os seguintes dizeres sobre o produto:“usando-o readquirireis vigor
e mocidade. Fortificante e estimulante por excelência”. A segunda peça,
mais elaborada que a anterior, apresenta um produto vendido até mea-
dos do século passado, o Fosfosol. Na publicidade, a imagem sorridente
de um homem maduro e calvo é acompanhada da seguinte mensagem:
Conquistador com 50 anos!
Pois sei equilibrar os meus nervos!
O nervosismo, o desânimo, a falta de memória, a diminuição da
vitalidade sexual, mental e orgânica. Logo depois das primeiras
colheradas ou injeções, sentir-se-á outro! Animado! Forte! Disposto
para o trabalho e para o prazer!

Nas décadas seguintes, os anúncios que prometiam a ampliação do


prazer sexual ganharam formatos variados mediante um discurso dissi-
mulado que se referia ligeira ou indiretamente à dimensão sexual, cen-
trando-se na ênfase do revigoramento físico. No início dos anos de 1970,
Vitassay, oferecido em pílulas ou em forma de tônico, contou com o
atleta Pelé como principal protagonista de suas mensagens. No final do
século passado, novamente o futebolista ocupou o papel de garoto-pro-
paganda de um produto ligado ao prazer, o Viagra, servindo-se de uma
linguagem sóbria e permeada de jargões médicos.
Os protocolos de como abordar o tema do prazer na publicidade
baseavam-se em um certo pudor em discorrer abertamente sobre o as-
sunto, preferindo enfatizar que o corpo inteiro deveria ser “energizado”
e, somente após isso, havia referências à substância como uma droga que
também agia em benefício do vigor sexual. Essa tradição, mesmo que
com menor frequência, ainda persiste no ambiente dos spams. Com-
postos denominados Chá Canela de Velho e Chá Dor nos Ossos são
inicialmente recomendados para artrite, artrose, diabetes e “dores nos
ossos”; após longas perorações sobre suas qualidades, acrescenta-se que

2
As páginas pesquisadas foram: “Propagandas antigas” (www.facebook.com/Propagandas-anti-
gas-133976306748169/) e “Propagandas antigas brasileiras” (www.facebook.com/ Propagandas-
-antigas-brasileiras-466683513389536/).
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
147

também atuam na “purificação sanguínea” e como “potentes estimulan-


tes sexuais” por anularem os efeitos deletérios dos radicais livres no
organismo humano.
Apesar de exceções como estas, o ambiente virtual instiga a composi-
ção e veiculação de mensagens que conferem densidade à falsa sensação
de proximidade entre os indivíduos em interação, como se estivessem
sentados na mesa de um bar ou frente a frente em um confessionário e
o diálogo rumasse para os “problemas de cama” que perturba um dos
envolvidos no encontro. O corriqueiro é a abordagem da questão direta-
mente e sem pudor nas palavras para quebrar o “desespero do silêncio”
auto-imposto por aquele que padece. “Seu pau anda mole?”, “você não
está dando conta da perseguida?”, “não está fodendo legal?”, “você está
amaldiçoado na cama?”,“parece que a sua mulher cortou seu pinto com a
tesoura?” e “você é velho e não dá mais no couro?” são aberturas comuns
de mensagens que, após um ou dois parágrafos, prometem a revelação
da “cura” para a disfunção sexual se o interessado abrir o link constante
no final do texto introdutório. Nesse complemento, que emprega termos
mais sóbrios e pretensamente científicos, o leitor é informado que um
pesquisador atuante em um modesto laboratório ou um simples “curio-
so” descobriu a fórmula para uma vida sexual plena de prazeres.
Visando enredar também a parcela do público que acredita não pade-
cer de disfunção sexual, o missivista empenha-se em suscitar a sensação
de insegurança no internauta com uma nova série de indiscretos ques-
tionamentos: “já ficou com vergonha do seu pau?”, “você tem certeza
que sua mulher está satisfeita com seu desempenho?” e “você sabia que
o mal desempenho na cama é o grande vilão responsável das traições
no relacionamento?” Implantada a dúvida a partir da exploração da fra-
gilidade do receptor, busca-se então o franqueamento do interesse do
leitor para o oferecimento do produto.
Uma peça publicitária de uma droga chamada Power Potência alerta:
Você acha que a sua mulher está mentindo quando diz que está
sentindo algo?... É assim que elas fazem quando você tem um
PAU pequeno, sabia? Mas a longo prazo isso não é bom faz com
que a mulher procure outro. Seja um homem VIRIL e de PAU
GRANDE, elas adoram! Não deixe outro em seu lugar!3

3
Nesta e nas demais citações, as palavras grafadas em caixa alta reproduzem o texto original.
Alerta-se também que muitos textos de spams contêm erros de digitação, de concordância e de
gramática, os quais foram corrigidos quando apresentados neste escrito.
148 Prazeres Possíveis

Super Potência Max, um produto apresentado como “recuperador


das ereções” e que “ganhou prêmio nobre” (sic) e já beneficiou mais de
5 mil homens”, ressalta:
Você sabia que o mal desempenho na cama é o grande vilão
responsável das traições no relacionamento? Uma pesquisa da
Universidade dos Estados Unidos diz que 83% das mulheres que
traem no casamento alegam insatisfação sexual.

A partir dessas conjecturas é que se constroem textos cujo prota-


gonista central não é o sujeito leitor, mas seu órgão sexual. A multiplici-
dade de denominações mobilizadas para invocar o pênis é um indício
da sua centralidade anatômica: “pinto”, “pau”, “pica”, “pênis”, “piroca”,
“bilau”, “rola”, “cacete”, “caralho”, “comedor”, “arrombador”, “mangueira
mágica” , “aquilo que você tem de melhor”, “grandão”, “pequenino”, “pe-
queno comedor”, “amiguinho”, “seu melhor amigo”, “seu bicho”, “má-
quina fodedora”, “brinquedo”, “parquinho de diversão” e simplesmente
“ele” são alguns dos termos invocados. No mesmo curso, a disfunção
sexual encontra múltiplas formas de denominação. Se termos minima-
mente científicos são notados, como “disfunção sexual”, “disfunção eré-
til” e “perda do libido”, o mais comum são conotações populares como
“impotência”, “potência fraca”, brochisse (sic), “pinto mole”, “cacete
tombado”, “meia bomba”, “negação de fogo”, “falta de desempenho”,
“mal da cama”, “doença da cama” “não durar muito na cama”, “fadiga ou
stress na cama”, “falta de energia” e “perda de algo” se alinham a muitas
outras metáforas e analogias que podem ser sintetizadas em uma única
designações: “fantasma da cama”.
A concepção maquínica do corpo, sendo o pênis a peça privilegiada
nas observações, transmite a clara noção de sua autonomia em relação
à totalidade da estrutura física, praticamente nunca deixando seu “pro-
prietário” satisfeito com o desempenho apresentado. É por isso que os
conselhos virtuais cobram de quem os lê a necessidade e urgência do
uso das drogas anunciadas. O efeito dos produtos é único para o pênis,
muitos deles apropriados para máquinas: “dar potência”, “turbinar”, “dar
energia”, “dar poder”, “dar pressão total”. A partir destes, seguem ou-
tros termos reiteradores: “empoderar”, “permitir erupção sexual”, “pro-
piciar virilidade”, “aumentar a libido”, “ampliar o vigor”, “deixar fodão”,
“fazer sentir tesão” são algumas das expressões empregadas na tarefa
de convencimento do potencial comprador.
4
No período de coleta das fontes o pesquisador deparou-se com outra propagada referente à
“mangueira mágica”, dessa vez de uma mangueira real, a qual aumenta de extensão conforme o
número de vezes que ela é utilizada.
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
149

A legitimação da oferta

O apregoamento das qualidades da mercadoria oferecida conta


como desafio superar a supremacia do principal produto existente no
mercado para disfunção erétil: o Viagra. O ponto questionável desta
droga é a ocorrência, mesmo que em número reduzido, de complica-
ções da saúde do usuário, especialmente em relação à pressão sanguí-
nea, levando alguns deles a óbito, circunstância amplamente noticiada
pela mídia e objeto de contínuas avaliações acadêmicas desde 1998, ano
em que o Viagra foi posto à venda (Irvine, 2006).
A instalação do produto e da marca no imaginário coletivo faz com
que qualquer outra droga, para concorrer com o Viagra, empenhe-se
em desacreditá-lo, circunstância corriqueira nos spams analisados. Para
tanto, a esfera publicitária, provavelmente sem ter noção clara disso, ex-
plora dois dos principais crivos avaliadores dos produtos científicos no
contexto da modernidade tardia: a cultura da segurança e a cultura do
risco. A primeira faz a apologia de que os novos resultados da ciência e
da tecnologia são importantes para a sociedade porque garantem a vida
e o bem estar, sendo necessário que sejam integrados imediatamente ao
gosto dos consumidores; a cultura de risco, por sua vez, nutre um olhar
desconfiado em relação às novidades científico-tecnológicas, pontifican-
do que em médio ou longo prazo elas podem trazer mais prejuízos do
que benefícios à existência humana, desqualificando rapidamente uma
parcela de itens gerados pelas hard sciences (Beck, 1997, p. 41).
A operação instrutora das peças analisadas consiste em identificar
o Viagra como resultado de uma ciência que pode comprometer a
saúde de quem a ela recorre. Em contraste, os produtos ofertados
são apresentados como “substâncias naturais”, algumas delas heranças
de culturas tradicionais, e que não ofereceriam qualquer risco para o
consumidor. Por isso, o Viagra é classificado como remédio enquanto
que as drogas propagandizadas são rotuladas de chás, tônicos, géis ou
suplementos vitamínicos.
Tesão de Vaca e Maca Peruana são as denominações comerciais de
dois desses produtos que, na verdade, parecem ser a mesma droga
comercializada por diferentes agentes do mercado; na sua publicidade é
reiterado até a exaustão que são composições tradicionais que foram
redescobertas e que sua purificação e envasamento são efetuados por
profissionais que não se deixam comprar pelos grandes laboratórios.
150 Prazeres Possíveis

Uma dessas marcas adverte: “Usa Viagra? É porque ainda não experi-
mentou Tesão de Vaca! (...) 100% natural! Não negue fogo nunca mais!”
e “o priapismo causado pelo Viagra pode matar o seu pênis e ele terá
que ser amputado”.
Outro produto, o Vigra Master, apesar de o nome inscrito no rótulo
constituir-se em corruptela da palavra Viagra, discorre mais abertamen-
te sobre a questão:
A solução mais buscada é o famoso azulzinho (Viagra), mas a
verdade é que não vale o risco, ele dilata as veias do coração e
você corre sérios riscos de vida, sem contar os inúmeros outros
efeitos colaterais (...).

A retórica de oposição entre as substâncias sintetizadas em labo-


ratório e os compostos naturais também é invocada para explicar os
motivos que condenam o fato de as drogas anunciadas ainda não se-
rem amplamente conhecidas. Há um complô que associa os grandes
laboratórios farmacêuticos e os profissionais da saúde que, para per-
petuarem seus lucros, obstaculizam a comercialização dos produtos
naturais, já que estes são mais eficientes e custam bem menos para o
consumidor. Repetindo jargões que são invocados inclusive para com-
postos naturais que prometem a cura do câncer, o Vigra Plus e o Vigra
Senior, duas outras poções oferecidas, informam:
Dois doutores vencedores do prêmio Nobel foram responsáveis
por reduzir drasticamente a venda do azulzinho nos EUA. Eles
criaram um suplemento natural que levou a indústria farmacêu-
tica ao completo desespero! Devido ao grande sucesso interna-
cional alguns pesquisadores testaram a novidade no Brasil.

Outro enredo publicitário acrescenta:


Dr. Andrade, da USP, explica os benefícios do Suplemento Sênior,
4 x melhor que o Azulzinho: o Suplemento número 1 nos EUA
chega ao Brasil desafiando toda a indústria farmacêutica. Sem
efeitos colaterais, sem contraindicação. Registrado na ANVISA!!

Apesar de vários anúncios referirem-se à circunstância de não en-


contrarem espaço na “grande mídia”, outras mensagens buscam legiti-
mação junto ao público com a indicação de terem sido tema abordado
em programas de televisão de grande audiência, mentirosamente re-
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
151

ferindo-se às matérias veiculadas pelo Jornal Nacional, Globo Repórter


e Fantástico, todos da Rede Globo. Na parte introdutória de uma das
peças publicitárias que apresenta o MegaForm Oficial, com um texto
mais elaborado e bem mais amplo que seus concorrentes “naturais”,
destaca-se que a droga foi amplamente comentada na mídia estadu-
nidense, sendo que junto ao texto aparecem os logotipos de várias
empresas de comunicação e também de publicações conhecidas como
as redes de televisão NBC, ABC e CNN, os portais Yahoo! e Aol, além
das revistas Men’s Health, Time, People e GQ.

Os efeitos do uso das drogas

A revelação em termos algo sigilosos do que é denominado como


sendo segredo, milagre, maravilha, sistema, santo graal do sexo e ainda
truque oculto dos atores pornôs constitui-se em instrumento significa-
tivo dos atos publicitários, constituindo-se em uma espécie de porta de
entrada para um mundo imaginário no qual, após fazer uso da droga, o
consumidor poderá desfrutar de uma nova e exaltada sexualidade.
Fala-se, pois, na constituição via spam de uma pornotopia (Marcus,
2008, p. 271) isto é, uma utopia sexual, portanto algo irreal, alicerçado
em palavras, imagens e fantasias que visam acima de tudo criar ilusões
e alimentar sonhos. Adaptada para o tema sob enfoque, é possível en-
tender a pornotopia como uma estratégia de promessas que sustenta a
pretensão de quebra das mesmices do cotidiano mediante a capacita-
ção do corpo humano para atuar além dos limites que lhe são próprios.
A arquitetura de um não-espaço onde “maravilhas” e “milagres” acon-
tecem promete ao usuário das drogas não só um pênis recapacitado
“com força e vigor”, mas também a chance de uma nova e vantajosa
inserção na esfera social, isto é, uma nova identidade após ter padecido
de um “golpe no ego” e “perda da masculinidade” impostos pela insufi-
ciência sexual. O modelo a ser seguido é o do conhecido ator de filmes
pornôs Kid Bengala e a missão do novo homem, segundo o tônico Po-
tentor (que também oferece para venda um livro com o mesmo título),
é “tornar a cama mais alegre e agitada que o Cirque du Soleil”.
Para que tal tarefa seja cumprida, os efeitos das drogas são enfatiza-
dos na mensagem enviada em nome do Vigra Plus, energizador ofere-
cido preferencialmente para o “homem sênior”, mediante os seguintes
predicados:
152 Prazeres Possíveis

Devolve a sua ereção natural em até 27 dias


Segura a ejaculação no sexo contínuo entre 15 a 30 minutos
Dilata o pênis dando um efeito mais grosso em até 39,3%
Aumenta a libido em até 248% aproximando aos níveis da
adolescência
Efeito duradouro.

As promessas que conferem fundamentos para a pornotopia não pa-


ram por aí; em concorrência, outras drogas comportam compromissos
ainda mais sedutores para o tão aflito quanto esperançoso consumidor:
começa a funcionar 15 minutos após seu uso, permite estar sempre
preparado para o sexo, aumenta a extensão do pênis em até 12 cen-
tímetros no espaço de duas semanas; em poucos dias faz quadruplicar
o diâmetro do “brinquedo”; capacita para dezenas de gozos no prazo
de oito horas; permite satisfazer na cama até 9 mulheres concomitan-
temente. Enfim, possibilita que o consumidor adote “um estilo de vida
próprio de vitoriosos atores pornôs”.
Cumpre-se com isso a premissa segundo a qual quanto maior for as
dimensões do pênis maior será o gozo por ele propiciado. O pinto re-
novado não é só um instrumento de prazer para o corpo que o detém,
mas também motivo de prestígio e sucesso nas relações sociais e eróti-
cas junto aos “outros”, sobretudo à comunidade feminina. A identidade
é um processo relacional e, portanto, exige a presença do outro, nesse
caso, de mulheres, já que o destinatário dos anúncios é implicitamente
assumido como sendo o público masculino e heterossexual. Apesar de
algumas das drogas serem anunciadas para ambos os sexos, o penis-
centrismo que domina o conteúdo das mensagens deixa claro o papel
marginal da mulher nas tramas articuladas pela publicidade. Sob uma
ótica constrangedora, elas povoam os textos dos spams como benefici-
árias secundárias do prazer masculino. Isto porque a extensão, diâmetro
e potência do órgão recuperado são festejadas como atributos que
encantam e seduzem as mulheres: “seja um garanhão e elas vão adorar”;
“elas gamarão na sua rola enorme e dura!”. A “transa violenta e dura-
doura” e a “ereção pontente com durabilidade de muitas horas” que
caracteriza “um leão na cama” permite, além de “dar conta da patroa”,
“arrastar todas para a cama”, “comer toda a vizinhança e as mulheres do
escritório” e ainda “pegar as novinhas que quiser”. Enfim, como propõe
o gel Volumão, “você será um maratonista sexual, aumentando não ape-
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
153

nas o seu pênis, como também sua autoconfiança”.


Não são os homens, mas sim as mulheres que são convocadas para
oferecer depoimentos sobre os resultados das drogas “naturais” nos
homens. O mais disseminado depoimento que integra uma investida
publicitária deu-se com Vigra Senior. Nesse texto, é colocado em desta-
que o cantor Fábio Júnior mediante o depoimento de sua esposa, nunca
identificada pelo nome; é essa mulher que oferece provas do “renasci-
mento” do marido e agradece singelamente ao artista por compartilhar
seu prazer com ela.
Em gratidão ao produto, a encantada esposa resolveu confidenciar
sobre o padecimento do casal e a solução encontrada para o tormento
da impotência sexual para servir de exemplo para outros casais que
enfrentam o mesmo dilema. Seis meses depois de ter desistido de ten-
tar manter relações sexuais com seu parceiro, devido à solidariedade
de uma amiga que havia enfrentado o mesmo problema, ela soube da
existência do “poderoso Vigra Senior”. A partir do uso da droga, Fábio
Júnior “ressuscitou”; após ingerir uma cápsula do produto antes de dor-
mir, aconteceu o seguinte:
Eu me sinto um pouco desconfortável falar sobre essa louca experi-
ência incrível, mas... eu vou te dizer os detalhes:
Em menos de uma hora meu marido acordou com uma ereção
muito forte e que ele não conseguia controlar, e acredite em
mim quando eu digo, nós transamos sem parar por 1 hora e 45
minutos, sem exageros! (...) O pau dele tava tão duro e eu nun-
ca havia tido um orgasmo igual aquele... nunca mesmo! Ambos
conseguimos atingir vários orgasmos naquela noite.

A marginalização da mulher em prol da “potência” masculina


desdobra-se na constatação da inexistência de spams que privilegiam
o orgasmo feminino. Em vez disso, são anunciadas roupas sensuais, cal-
cinhas e soutiens “mágicos” que dão forma e volume aos glúteos e aos
seios, cremes que combatem gorduras, rugas e estrias e, no máximo,
anúncios de “consolos” dos mais diferentes materiais, tipos e dimensões.
Certamente por isso, as estratégias para que as mulheres sejam infor-
madas sobre as possibilidades de obtenção de maior prazer sexual são
veiculadas sobretudo por blogs. Um exemplo significativo constitui-se
em uma matéria publicitária veiculada como notícia que apresenta o
Forin, um gel lubrificante composto basicamente por essência de ma-
154 Prazeres Possíveis

conha, apresentado como uma substância que “desperta a excitação


e aumenta a sensação de orgamos mais intensos com mais facilidade”
(Guarizo, 2014). Paralelamente, o peniscentrismo incrustrado na cultura
conta com reações de mulheres que associam o pênis às doenças sexu-
almente transmissíveis (DST). No curso de uma entrevista, a jovem atriz
hollywoodiana Jennifer Lawrence confidenciou: “Pênis é um negócio pe-
rigoso. Não quero pegar doenças, sou germofóbica” (Coletti, 2018).

Considerações finais

Acredita-se que seria muito simplista e certamente moralista alegar,


como diagnosticou Lucien Sfez (1996, p. 41), que as novas incursões
voltadas para a potencialização do corpo em termos tecnocientíficos
constituam-se unicamente em um dos mais evidentes indícios de uma
profunda crise moral e ética que se abate sobre os personagens da
modernidade tardia. Em vez disso pensa-se em um impulso humano
que, desde tempos imemoriais, tem aspirado por um poder impossível,
inclusive no referente ao corpo e à pujança sexual; nesse sentido, a
publicidade analisada recorre a fragmentos míticos que encontram em
Príapo e em Mercúrio seus mais atordoados personagens e o altar fálico
de Delfos como locus imperante.
Em coro, a maior parte dos anúncios refere-se ao momento presente
como um período no qual o prazer deve ser intensamente valorizado
pelo “homem moderno” que, por isso, carece de novos suportes para
atingir, como invoca a publicidade do gel Macho-Macho, “os prazeres
ocultos que nunca foram despertados”. Implicitamente, as arquiteturas
publicitárias remetem a um futuro duvidoso em termos de regalo sexu-
al, tema explorado em várias composições distópicas, como a assinada
por Margaret Atwood, que faz que uma de suas personagens situada no
futuro, retrate os dias de hoje como um ambiente político e cultural no
qual “excitação sexual e orgasmo não são mais considerados necessá-
rios; seriam meramente um sintoma de frivolidade, como ligas rendadas
ou pintas falsas” (Atwood, 2017, p. 115). Com isso, percebe-se o escopo
transgressor da busca pelo prazer e, mais do que isso, da exposição
pública da ansiedade pelo prazer máximo. A “boa educação” continua
atuante e quem busca conspurcá-la continua sendo alvo de punições,
mesmo que seja mediante o riso de escárnio.
Nesse sentido, o conteúdo dos spams vistoriados não são formulado-
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
155

res de uma nova cultura, mas sim – como todos os produtos midiáticos
– resultado da seleção e divulgação maciça de elementos culturais pree-
xistentes à própria ação publicitária. Os comunicadores arregimentam e
combinam tendências variadas, associam em um discurso único e preten-
samente moderno o arquetipal das mitologias clássicas, a herança inte-
lectual de culturas extintas e o moderno da ciência e da tecnologia atual,
permeando tudo isso com o tradicionalismo do machismo ocidental, es-
perando com isso atingir o sucesso de vendas dos produtos ofertados.
A eficiência da publicidade tem como destinatários uma vasta legião
masculina que, apesar de reivindicar a condição pós-moderna, persiste
em entender o prazer sexual como cadenciado pelas dimensões do
pênis. Com isso, os anúncios buscam ganhar poder de convencimento
prometendo o impossível; a constituição de uma pornotopia contem-
porânea reforça um imaginário que, fadado a nunca ser cumprido, pro-
porciona fantasias geralmente não confessadas em nome do pudor e
das normas sociais, sobretudo no contexto do “politicamente correto”.
E são estas fantasias, mais do que a “recuperação sexual” que são ex-
postas pela publicidade e compradas por muitos que têm suas atenções
despertadas pelos spams; certamente não são poucos os que respon-
dem positivamente ao apelo último das mensagens analisadas: “compre
logo; nosso estoque é limitado e a procura é muito grande!”

Referências
ALDERSEY-WILLIAMS, H. Anatomias: uma história cultural do corpo humano. Rio de
Janeiro: Record, 2016.
ARUTYUNOV, V.V. Spam: its past, present, and future. Scientific and technical informa-
tion processing. London, vol. 40, n° 4, p. 205-211, 2013. Disponível em: <//link.springer.
com/article/10.3103/S0147688213040060>. Acesso em: 12 mar. 2018.
ATWOOD, M. O conto da aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernidade reflexiva. In:
GIDDENS, A.; BECK, U.; LASH, S. Modernidade reflexiva: política, tradição e estética na
ordem social moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1997, p. 11-71.
COLETTI, C. 7 famosos que admitiram não fazer muito sexo. Observatório do cine-
ma. São Paulo, 14 mar. 2018. Disponível em: <observatoriodocinema.bol. uol. com.br/lis-
tas/2018/03/7-famosos-que-admitiram-nao-fazer-muito-sexo>. Acesso em: 15 mar. 2018.
CRESPO, J. A história do corpo. Lisboa: Difel, 1990.
CROISSANT, J.L.The new sexual techonology:Viagra in the hiper-real world. Sexualities.
London, vol. 9, n° 3, p. 333-344, jul. 2006. Disponível em: <journals.sagepub.com/doi/
156 Prazeres Possíveis

abs/10.1177/1363460706065056>. Acesso em 10 mar. 2018.


DESCARTES, R. Discurso do método. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.
ELIAS, N. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993, vol. 2.
ELSE, L. A meadowful of meaning. The new scientist, London, vol. 207, n° 2774, 2010,
p. 28-31.
FOUCAULT, M. O corpo utópico; as heterotopias. São Paulo: n-1, 2013.
FRANCIS, G. Da cabeça aos pés: histórias do corpo humano. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
FREUD, S. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (contribuições
à psicologia do amor II). In: SALOMÃO, J. (dir.). Edição brasileira eletrônica das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995, vol. XI.
FRISCH, M. Homo faber: a report. Philadelphia: Harvest, 1994.
GAY, P. A paixão terna: a experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
GUARIZO, R. Conheça o gel lubrificante a base de maconha (para mulheres). Almana-
que SOS. São Paulo, 16 jul. 2014. Disponível em: <www.almanaquesos.com/conheca-o-
-gel-lubrificante-a-base-de-maconha-para-mulheres/>. Acesso em: 27 fev. 2018.
HOLLOWAY, K. Why do classical sculptures have such small penises? – There eas a time
when smaller was considered better. AlterNet: The Indepentente Media Institut, 14 mai.
2016. Acesso em:<www.alternet.org/why-do-classical-sculptures-have-such-small-peni-
ses#15054824076882&action=expand_widget&id=0&data=>. Acesso em: 01 mar. 2018.
IRVINE, J.M. Selling Viagra. Contexts. New York, vol. 5, n° 2, p. 39-44, spring 2006.
LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. 6ª. ed., Campinas, 2016a.
LE BRETON, D. Antropologia do corpo. 4ª. ed., Petrópolis: Vozes, 2016b.
MARCUS, S. The other victorians: a study of sexuality and pornography in mid-ninet-
tenth-century England. London: Routledge, 2008.
MÍGUEZ, D. Inscripta en la piel y en el alma. Religião e sociedade. Rio de Janeiro, vol. 22,
n° 1, p. 21-56, 2002.
MOPSIK, C. El cuerpo del engendramiento em la Biblia hebraica, en la tradición rabínica
y em la Cábala. In: FEHER, M.; NADDAFF, R,; TAZI, N. (orgs.). Fragmentos para una his-
toria del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990, vol. 1, p. 49-73.
MUCHEMBLED, R. Orgasm and the West: a history of pleasure from the 16 th. Century
to the present. London: Polity Books, 2008.
MULGAN, T. Utilitarismo. 2ª ed, Petrópolis: Vozes, 2014.
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
157

MY PENIS and everyoine else’s (My penis and I). Top documentary films. London, 2005.
Disponível em:<topdocumentaryfilms.com/my-penis-and-i/>. Acesso em 01 mar. 2018.
PADRÃO, M. Brasil é o terceiro país com mais spam; saiba se proteger desta praga.
UOL Tecnologia, São Paulo, 30 mar. 2018. Acesso em: <tecnologia.uol.com.br/ noticias/
redacao/2018/03/30/oferta-imperdivel-brasil-e-o-terceiro-pais-com-mais-spam-no-
-mundo.htm>. Acesso em: 30 mar. 2018.
PIEDRAS, E.R.; JACKS, N. A contribuição dos estudos culturais para a abordagem da
publicidade: processos de comunicação persuasiva e as noções de “articulação” e “flu-
xo”. e-Compós. Brasília, vol. 6, 2006. Disponível em: <www.e-compos.org.br/e-compos/
article/view/74/74>. Acesso em: 28 fev. 2018.
ROCHA, E.; BARROS, C. Cultura, mercado e bens simbólicos: notas para uma interpre-
tação antropológica do consumo. In: TRAVANCAS, I.; FARIAS, P. (orgs.). Antropologia
da comunicação. Rio de Janeiro: Garamond, 2003, p. 181-208.
SADE, Marquês de. História de Juliette ou as prosperidades do vício. Lisboa: Guerra
& Paz, 2007.
SADE, Marquis de. La philosophie dans le boudoir. Paris: Gallimard, 1996.
SFEZ, L. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo: Loyola; Ed. Unimarco,
1996.
WALTERS, H.A. Erotic capital as societal elevator: pursuing feminine attractiveness in
the contemporary Mongolian global(ising) economy. Sociologus, Berlin, vol, 65, n° 2,
p. 1-28, 2015. Disponível em:<HEINRI\Zeitsschriften\Sociologus\2015-2\indd>. Acesso
em: 18 fev. 2018.
PARTE III

Outros
Prazeres
161

O prazer no Universo
Acadêmico:
possibilidades pelo
imponderável da pesquisa

Lilian dos Santos Silva

Muito prazer
Este texto debruça-se sobre a pesquisa, tomando-a como um ter-
reno fértil para certos deleites, na grande maioria das vezes, solitários.
Parece covardia desenvolver uma seção com tal abordagem em uma
coletânea que trata do prazer sob tantos vieses atraentes. Ora, o prazer
enquanto deleitar-se, extasiar-se, inebriar-se, arrebatar-se e transportar-
-se em êxtase1 não remete propriamente à produção de pesquisa. Aliás,
o prazer - como algo desmedido e eufórico - contrasta com a pesquisa,
pelo menos a acadêmica, que tem nuances de outros tons. Ela é regra-
da, planejada, contida, exige compostura e seriedade. Por outro lado,
entende-se que a pesquisa requer um mínimo que seja de entusiasmo,
envolvendo, em alguma medida, vivacidade, entrega e rendição, fatores
ligados ao prazer.

1
Acepções de prazer do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa (2010, p. 388).
162 Prazeres Possíveis

Quando se fala em prazer, em geral vem à mente uma experiência


com a sexualidade. Por que essa associação, no entanto, é tão imediata?
Talvez porque ela trate do prazer mais óbvio, o erótico, o que mais
parece uma amarra que encerra e cerca o assunto nessa seara. Sabe-se
que é possível alcançar prazer por meio de infinitas coisas e a pesquisa
não figura como referência quando esse tema é suscitado. Todo o pro-
cesso que envolve essa empreitada - seja em que nível for - remete a
um trabalho de raciocínio, de convocação do pensamento, de tempo
perdido, o que não é um jogo fácil. Ninguém afirma: “que delícia, vou
começar uma pesquisa” vislumbrando um mar de prazeres. Em contra-
partida, pode-se afirmar que existe prazer nesse processo por mais que
ele não pulse de largada, ou seja, a priori. É nessa obscuridade que mora
o interesse por tratar desse tipo de prazer.
Com isso, pretende-se seguir seus rastros a fim de dar a ver al-
guns pontos dos quais, em determinadas fricções, reluzem faíscas de
satisfação e euforia. De todo modo, a possibilidade de pensar em um
prazer porvir é como riscar um fósforo diante do desalento de relatos
contemporâneos nos quais a vida acadêmica, seus modos de conduta
e ambientes são retratados como algo nocivo e, inclusive, prejudicial
à saúde2. A intenção aqui não é discordar dessa perspectiva. Busca-se,
todavia, investigar um contingente que vai de encontro a essas linhas
duras de produtividade, burocracia, prazos, angústia e ansiedade.
Antes de qualquer coisa, é importante pontuar que a pesquisa a
que se refere este texto se reporta diretamente àquelas de maior
densidade realizadas no universo acadêmico: mestrado e doutorado.
Esse enfoque dá-se por elas serem investigações de maior vulto, nas
quais pesquisadores passam anos em seus horizontes. Mas nada im-
pede que as proposições, a seguir, também sejam tomadas tendo em
vista um modo mais amplo de pesquisa e mesmo fora das fronteiras
da academia.
A ambiência das ideias delineadas sobre prazer e pesquisa parte do
contexto das Humanidades, mais especificamente do campo da Educa-
ção, em uma abordagem na qual se convocam passagens literárias, além

2
Estudantes de mestrado e doutorado relatam suas dores na pós-graduação, matéria de Fernando
Tadeu de Moraes, Jornal Folha de S. Paulo, 18 de dezembro de 2017; O doutorado é prejudicial à saúde
mental, matéria de Pablo Barrecheguren, Jornal El País, 26 de março de 2018; There’s an awful cost
to getting a PhD that no one talks about (O terrível custo sobre o qual ninguém fala de ter um
doutorado), relato de Jennifer Walker, Portal Quartz, 12 de novembro de 2015.
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
163

de perspectivas de Gilles Deleuze e Michel Foucault3. Posto isso, apresen-


ta-se, a seguir, uma pequena série de olhares sobre esse tipo de prática
com a intenção de dar a ver como dela pode despontar prazer. Perten-
cendo a esta coletânea, este texto não a integra com a promessa de des-
vendar uma forma de se obter muito prazer, mas se concentra na possi-
bilidade de contemplar um prazer discreto e solitário, porém verdadeiro.

Um recado bem claro: D de desejo

Era uma aula de História da Arte. A sala, majoritariamente formada


por alunos do período inicial do curso de graduação de Artes Visuais,
tinha também estudantes de outros cursos da universidade. Naquela
manhã estonteante de sábado, o tempo parecia suspenso naquele lugar
em que convergiam a leveza e a intensidade de vontades afins; os que
ali estavam tinham almas parecidas. A professora seguia sua explanação
fazendo com que os olhos em sua direção emitissem luz e a aula trans-
bordasse desejos. Os alunos queriam mais e mais e mais, em um afã.
Aquele mundo das pinturas, dos artistas, pulsava. Foi então que, tendo a
aula nas mãos, a professora proferiu uma frase, em meio a outras, sem
dar qualquer ênfase. Tal fala soou como um conselho, um sussurro no
ouvido de quem estivesse suficientemente atento, à espreita. Mas era
uma cartada. Uma denúncia. A professora disse algo como: “não tem
jeito, sentar-se e ler, parar e ler, ficar longas horas em cima de certo tex-
to: há prazer aí. Não tenham dúvida. Insistam e vão encontrá-lo. Isso não
é óbvio”. Assim ela dava uma garantia. Uma chancela. Era o vestígio de
alguma coisa aos que estavam tomados pela força do encontro daquela
aula. E estava dada a largada.
Diante das demandas do universo acadêmico, é preciso um esforço
que parece cada vez mais laborioso para tomar a ação de fazer pes-
quisa como algo positivo. Uma avalanche de afazeres encobre qualquer
prazer nesse jogo e, se ele realmente existe aí, estaria como que soter-
rado em meio ao turbilhão que se impõe. Qual é, no entanto, o sentido
do prazer se esvair em um sumidouro se ele possui um papel fulcral

3
Autores que são o foco de duas disciplinas de pós-graduação em Educação cursadas pela autora,
cujas aulas fomentaram esta proposta. Pensamento, Cultura e Educação: Uma perspectiva deleuzia-
na, ministrada pela profa. Dra. Cintya Regina Ribeiro, e Análise dos Cursos Finais de Michel Foucault
V: Subjetividade e verdade (1980-1981), ministrada pelo prof. Dr. Julio Groppa Aquino. Ambas
foram realizadas no primeiro semestre de 2018, na Faculdade de Educação da USP.
164 Prazeres Possíveis

para a própria consecução da pesquisa?4 De todo o modo, ainda que


despontem nesse processo frustrações e limitações, a pesquisa continua
sendo um caminho a ser perseguido. Eis, de saída, um motivo pontual
para buscar torná-la prazerosa.
O prazer e a pesquisa têm afinidades. Ambos demandam um gesto
de dispêndio de energia e, colocando-os lado a lado, é curioso obser-
var como possuem o imponderável como característica. Afinal, não se
pode medir o prazer ou afirmar que se teve um tanto determinado
dele, pois classificá-lo remete a uma percepção particular. Mas indepen-
dentemente desses aspectos, onde está o prazer na pesquisa? Talvez a
pergunta não seja bem essa e precise entrar em cena um elemento de
ação: como. Neste caso, como se dá o prazer na pesquisa? A resposta
talvez tenha a ver com certa necessidade de companhia e vizinhança.
Em uma das entrevistas que Deleuze concedeu a Claire Parnet, intitula-
da O abecedário de Deleuze, precisamente na letra D, que se refere ao
desejo, o filósofo apresenta uma ideia que parece cara a esta questão
do prazer acadêmico5.
Segundo Deleuze, as pessoas nunca desejam alguém ou alguma coisa,
mas um conjunto de coisas. A fim de esclarecer a proposta, ele per-
gunta “qual é a natureza das relações entre elementos para que haja
desejo, para que eles se tornem desejáveis?” (DELEUZE, 1997, n. p.).
Dessa forma, não é o caso de se afirmar que se deseja uma pessoa ou
algo, um objeto. Para explicar a questão, Deleuze toma uma passagem
do romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. De acordo
com o filósofo, “quando se diz que se deseja uma mulher, não se trata
tão somente dela, mas de certa atmosfera, de uma paisagem que essa
mulher envolve (1997, p. 189)”. O desejo, portanto, reside no que não
se pode conhecer, ou seja, no que se pressente, sendo que ele segue
e permanece, pois não se saciará “enquanto não tiver desenrolado a
paisagem que a envolve”. Em outro exemplo:

4
Destaca-se aqui a importância do entorno que cerca uma pessoa para que ela tenha minimamen-
te garantida a possibilidade de se envolver de fato com a pesquisa. Nesse sentido, a valorização do
fomento da pesquisa remete à valorização do próprio pesquisador perante a sociedade. Ressalta-
-se, com isso, a universidade como um lugar privilegiado de produção científica e do conhecimento
e não como um mero passaporte à obtenção de títulos. O prazer em ler, estudar, pesquisar tam-
bém conta no jogo da política educacional. Posto isso, ele pode ser estimulado por meio de uma
política consistente de incentivo e valorização à educação ou desmantelado como algo secundário,
sem importância.
5
Neste trecho da entrevista, Deleuze retoma uma ideia dele e de Félix Guattari presente em O
Anti-Édipo (2011).
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
165

Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal che-
misier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja
em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação
não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas,
ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo
sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em
um conjunto. (...) Não há desejo que não corra para um agenciamento.
(...) Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, con-
junto de uma saia, de um raio de sol... (DELEUZE, 1997, n. p.).

Compreendendo-se que fazer pesquisa é desejar desenvolver


uma proposta ou uma ideia em um contexto, o que significa, no
limite, almejar que coisas aconteçam; pode-se dizer que essa vonta-
de disparadora traz como consequência uma série de encontros e
efeitos. Desse modo, quando se deseja uma pesquisa, não se deseja
apenas ela, mas um conjunto de coisas em vizinhança, em uma busca
por descobertas e desdobramentos que remetam à satisfação e ao
contentamento. A partir dessa visada desejante sobre a pesquisa,
observa-se seu processo, examinando como ela se dá a fim de cap-
tar onde estão tais prazeres de satisfação e contentamento, entre
outros deleites.

P de prazer, p de pesquisa

Fazer pesquisa não se restringe a empreender procedimentos


analíticos, armar problemas, arquitetar argumentações, analisar dados,
convocar fontes a serviço da proposta. Tudo isso sem contar que ela
tem uma emergência com um enigma a ser solucionado em um de-
safio autoimposto pelo pesquisador, o que pode conter ares sádicos.
No entanto, há uma questão mais íntima que também remete ao
prazer. Trata-se de uma interpelação: em que medida a discussão em-
preendida me toca? Nesse sentido, pode-se dizer que fazer pesquisa
é como produzir uma dobra de uma ideia que o pesquisador toma
para si - ou seria ela que toma o pesquisador?
Eis o aspecto arbitrário. Cada processo de pesquisa é singular por-
que envolve um modo de fazer próprio do pesquisador. Por exemplo,
qual é a razão de se escolher determinado recorte? Há muitos atra-
vessamentos em cena que compõem essa decisão, mas fato é que
166 Prazeres Possíveis

cada trajeto de pesquisa segue um curso e por isso mesmo não é pos-
sível ter duas pesquisas iguais. No mais, cada pesquisador inventa seu
modo de trabalhar, de mover as peças nesse tabuleiro e de conduzir o
jogo. E essa forma de conduta também se relaciona com o prazer, em
como ele é enquadrado, suscitado e pode ser múltiplo. Por outro
lado, a pesquisa tem seu deleite na medida em que nela se usufrui de
algo que, de alguma forma, se escolheu. Imagina-se que quem pesquisa
opta por algo que lhe tome, que prometa algum tipo de movência, de
vibração, que inspire. Considerando-se o prazer desse modo, há outra
fala pertinente de Deleuze, em sua entrevista do abecedário, referente
à letra P de professor. Nessa passagem, ele explica sua ideia de como
deve ser uma aula:

...cada atividade tem seus modos de inspiração. Mas não há outra


palavra a não ser pôr algo na cabeça e conseguir achar interessante
o que é dito. Se o orador não acha interessante o que está dizendo...
Nem sempre achamos interessante o que dizemos. E não é vaidade,
não é se achar interessante ou fascinante. É preciso achar a matéria
da qual tratamos, a matéria que abraçamos, fascinante. Às vezes, te-
mos de nos açoitar. Não que seja desinteressante, a questão não é
essa. É necessário chegar ao ponto de falar de algo com entusiasmo
(DELEUZE, 2010, n. p.).

Tal indicação sobre o fascínio para a aula pode ser aplicada à pes-
quisa, mesmo porque elas se confundem, já que a preparação de uma
aula, pelo professor, envolve pesquisa. Logo, a sedução está constan-
temente em jogo e nos instiga a buscar um tema que provoque o
pesquisador. Vale lembrar que o problema de pesquisa que move a
investigação não é dado na natureza. Trata-se de uma invenção que
surge a partir de um jogo de forças6. Por isso mesmo, imagina-se que
o problema de pesquisa possa ter um quê de visceral para o pesqui-
sador, tanto que é eleito para ser solucionado ou, enfim, desenvolvido,
talhado. Essa atmosfera sedutora, portanto, pode se dar de modo va-
riado, em um arrebatamento, em um incômodo, em um embate. Nes-
se sentido, ao abordar as contribuições de Deleuze e Guattari para as
pesquisas em Educação, Sandra Corazza defende que

6 Anotações da aula da professora Cintya Ribeiro (2018).


O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
167

O que buscamos, nos conceitos que desejamos, é que alguma coisa


ocorra: uma nova aventura, uma nova conjunção amorosa; e, por isto,
a relação que estabelecemos com determinados conceitos do autor
amado é que eles ficam lá, como signos de nós próprios, inspirando-nos
a passar do Prazer de Ler ao Desejo de Escrever (Scripturire = Querer-
-Escrever) (CORAZZA, 2012, p. 2).

Destaca-se que o prazer na pesquisa, no entanto, não pode desvane-
cer. Isto é, não deve se saciar em estar presente de início, apenas como
um disparador. A palavra prazer tem origem no latim, placere, o que agra-
da. E esse agradar pode permear todo o processo, em sua extensão e
duração. Por isso, compreende-se que, a partir da escolha que se faz
da investigação e do problema, visando um bem próprio, é preciso dar
continuidade a esse desejo e tornar o prazer perene, seguindo uma linha
tênue que instigue sua continuidade nas ações de examinar, remexer, re-
buscar, enfim, envolver. Do contrário, a pesquisa pode se tornar pesada.
Por isso, a pesquisa precisa de estímulo, fazendo-se atraente ao próprio
pesquisador, que, para isso, deve realizar um trabalho de entrega de fato.
Ressalta-se ainda que a pesquisa é insinuante porque, em sua performan-
ce, ela se coloca o tempo todo à mostra à medida que é produzida. E,
com movimentos próprios, a pesquisa também quer se satisfazer.
Sobre a questão da duração, a pesquisa não tem bem um começo
e um fim estritamente delimitados, no sentido de que não é sempre
possível indicar ao certo onde ela nasce. E, na outra ponta, não se sabe
onde ela pode parar. Os desdobramentos podem ser infinitos e, apesar
da finitude declarada do seu processo, quando ela oficialmente termina,
a pesquisa é capaz de seguir em frente. Aliás, talvez a forma mais óbvia
de prazer na pesquisa esteja em sua própria conclusão. Mas mesmo
essa satisfação do fim não se dá de uma hora para a outra, ela se faz
do conjunto das pequenas vitórias unidas. Por mais que a investigação
siga por outros caminhos, ter a perspectiva de término, de que ela finda,
também potencializa um prazer próprio por ocasião de sua conclusão.
Ela não é eterna, por isso seu prazer merece ser desfrutado a tempo.

A pesquisa que se faz em ato

Retoma-se o enfoque do prazer no interregno da execução da pes-


quisa. No início de uma investigação, sua dimensão é imprevisível e o
168 Prazeres Possíveis

ponto de chegada tem mesmo que ser desconhecido porque o pes-


quisador não pode prever o que acontece nesse caminho, isto é, não
sabe como a investigação vai mover-se. Existe, assim, certo desnível no
processo, uma desorientação. Por mais que haja um projeto para ma-
pear de onde se parte e se quer chegar, não é possível deliberar aonde
a pesquisa vai levar. Também por isso, não se pode limitá-la demais de
saída, o que obstruiria as descobertas ao acaso. Assim, fazer pesquisa é
se lançar numa aventura que deve ser algo vivo com seus saltos e suas
quedas, pois ela se espreguiça, se contorce e coisas vão sendo desco-
bertas nesse movimento.
Por isso, é importante enfatizar a perspectiva de que a pesquisa se faz
em ato. Dessa forma, enfoca-se seu viés procedimental e performativo,
entendendo que revelações e resultados emergem de um trabalho de
busca. Joga-se luz, portanto, em sua natureza experimental. Aponta-se
essa apreensão tendo em vista um estudo sobre os movimentos de
pensamento de Deleuze que acontecem no jogo imanente, no en-
contro. Segundo Zourabichvili (2016), o centro da filosofia deleuziana
está no acontecimento. Essa perspectiva parece muito potente quando
transposta para a pesquisa, pois evidencia os encontros que ela pode
propiciar no seu próprio fazer. Desse modo, percebe-se como o impon-
derável reside como característica intrínseca da ação de pesquisar, uma
vez que nela há a possibilidade de efeitos inesperados, imprevisíveis. Isso
se refere ao que surge no calor das situações que estão sendo pesqui-
sadas, ou seja, o imponderável também tem a ver com o que emerge
como demanda da própria pesquisa. Com isso, a pesquisa pode ganhar
outros ares atraentes, deslocando-se seu foco, que não estaria total-
mente em comprovar uma tese ou chegar a determinado resultado. Há
nuances anteriores da maior importância ao processo em si e que inte-
ressam nesta proposta, pois elas podem envolver um prazer inesperado.
Se a pesquisa é mesmo experimental, é uma experiência, um convite
ao pensamento. Vale lembrar que a experimentação implica correr ris-
cos. Para realizá-la existe uma dança necessária, um movimento que se
empreende com seu material. Há uma dimensão performativa e, desse
modo, o trabalho é feito à medida que é desenvolvido. Afinal, só se
sabe da potência do jogo jogando-se. Soma-se a isso o fato de a inves-
tigação exigir um movimento em sua construção de reolhar, remexer,
repensar, refazer. Pesquisar também implica, portanto, um deslocamento
do pesquisador em um constante fora-dentro do estudo - dentro dele
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
169

produzindo-o e fora, lendo, revendo, editando, maquinando.


Há inúmeras possibilidades nesse processo, como ser devorado pela
própria pesquisa ou observar como ela pode ganhar vultos inimaginá-
veis, movimentos antropofágicos, de fagocitose, de osmose. Em meio a
tudo isso, porém, há uma luta do pesquisador consigo mesmo. Assim,
dar vazão à pesquisa, empreendê-la, pode se verter em um efeito de
voragem7, como em um turbilhão, que pega o que está na borda e traz
ao centro. Tal dinâmica vai assoreando o que está em vizinhança. Da
mesma forma, também pode retomar elementos já tratados na investi-
gação e retomá-los de modo diferente, em outros giros, acrescentando
algo novo. Isso mostra como esse redemoinho tem uma agitação que
vai se consumindo. De modo semelhante, age também o prazer em
uma mistura de sensações capaz de tragar e causar arroubos.

O imponderável, Uma aprendizagem ou o Livro


dos prazeres e Maria dos Prazeres

Seguindo com a questão do imponderável, parte-se a uma espécie


de preliminar indispensável a esta discussão que consiste num aponta-
mento de Silvio Gallo (2012) a partir de uma passagem de um romance
de Clarice Lispector, cujo sugestivo título é Uma aprendizagem ou o
Livro dos prazeres (1998). A obra literária traz o envolvimento amoroso
de Lori, uma professora primária, e Ulisses, um professor de Filosofia.
Em dado momento, ela faz a ele uma afirmação inquietante. “Aprendo
contigo, mas você pensa que eu aprendi com tuas lições, pois não foi,
aprendi o que você nem sonhava em me ensinar (1998, p. 157)”. Ulisses,
portanto, sem ter tido o desejo ou a intenção de ensinar determinada
coisa, o fez. Silvio Gallo então questiona:

“como pôde Lori ter aprendido com Ulisses, mas não aquilo que ele
quis ensinar, e sim algo de que ele nem sequer suspeitava? Que tipo de
aprendizado seria esse? Um aprender que não é conduzido, que não é
orientado pelo outro? Um aprender singular?” (2012, p. 2).

Ou seja, Lori aprendeu com Ulisses sem mesmo que ele soubesse o
que foi ensinado. Eis o imponderável.

7
Anotações da aula do professor Julio Groppa Aquino (2018).
170 Prazeres Possíveis

Reitera-se que a mesma coisa pode ocorrer na pesquisa, uma vez


que essa empreitada carrega a capacidade de abranger descobertas
que ultrapassam os objetivos iniciais, indo além. Nesse processo, em
meio às inquietações próprias da investigação, mora a possibilidade de
arrebatamentos de insights e radiações de convergências de ideias. Des-
se modo, esses prazeres arrastam o pesquisador a momentos-chave
que são da ordem do instante; não podem ser adiados nem retomados
depois, devido a uma determinada falta de tempo naquele momento.
Isso porque estão pari passu com a ação. Assim, o prazer pelo impon-
derável é o que não cabe num horizonte prévio que pode ser pensado;
se dá no desconhecido, o que pode ser de uma revelação perturbadora,
como um desassossego.
Precisa-se estar atento, portanto, a pulsações em meio a esse pro-
cesso. Elas são como sinais que latejam. Como captar, então, esses
sinais? Entende-se que isso se dá no embrenhar-se do ato da pes-
quisa. A respeito disso, há uma proposição de Deleuze (2015) - que
também remete à ideia de acontecimento do filósofo -, na qual ele
afirma que a árvore verdeja, no sentido de que não é exatamente a
árvore, pois se trata de algo que não acontece sem ela, mas depende
dessa condição de jogo. Ora, por que não fazer a pesquisa verdejar?
Com isso, o prazer está em viver, por meio da pesquisa, uma relação
efetivamente profunda com o presente, o que significa dizer ambígua
e paradoxal. Essa emergência de uma atenção ao aqui e agora nesse
processo, a fim de estar inteiro nele, e não em deslizes do passado e
do futuro, seria uma possível chave para adentrar a uma perspectiva
em potencial de suscitar prazer. Ou melhor, seria uma forma de cla-
rear seu cenário e não passar por ele sem lhe dar o devido espaço.
Acredita-se que nas tramas do tempo da pesquisa mora um tipo de
prazer ainda que, por vezes, ele seja fugidio, secreto, discreto e mes-
mo clandestino, como se nem ao menos pertencesse a esse lugar. E
não se pode deixar o prazer ser soterrado por outras urgências. É
preciso salvá-lo e não se deixar cair nessa armadilha, nem ser ultra-
passado por essa onda que o encobre. É preciso mergulhar na inves-
tigação e fazer o prazer emergir com o frescor que lhe é próprio. Tal
frescor é como a brisa de vivacidade que surge para a personagem
Maria dos Prazeres, no conto homônimo de Gabriel Garcia Marques
(1992): uma mulher que passa a vida esperando a morte, preparan-
do-se para ela de diversas maneiras; quando a morte chega, chega
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
171

também com um homem que ela deseja, justo ela que ficou a vida
toda esperando a morte.

Um charme irresistível

Ora, o imponderável não seria o charme da pesquisa? Não se


trata, porém, de um charme qualquer. Ele tem intensidades, fica na
corda bamba entre a própria sedução que a proposta lança e certa
imponência. Essa última remete à complexidade que a discussão da
investigação pode demandar, desafiando o pesquisador com abismos,
bifurcações e encruzilhadas, enfim, intimidando-o. Já essa sedução se
refere aos mundos que a investigação desvenda, às novidades que
faz brotar, como ela pode perfumar com o cheiro do novo. E, nesse
sentido, ela é disruptiva em relação à sua própria proposta conforme
a possibilidade de dar a ver outros horizontes e outros matizes até
então impensados. Assim, pesquisar é talhar um frescor.
Com isso, observa-se que o prazer da pesquisa está nos seus bas-
tidores e não nos holofotes. Acontece atrás da cortina, além do que
se vê, em uma relação que se pode dizer carnal, nua e crua com o
pesquisador. A pesquisa também tem seus momentos escancarados
de inspiração e entusiasmo. É epifania, delírio, bem-estar, saciedade8.
Constitui-se de suspiros e bocejos que são ainda pequenas cotas de
prazer. Dessa forma, a pesquisa pode ser um campo de afecção por-
que o pesquisador se deixa atravessar por forças que vão entrando
em composição. Há muitos blocos de sensações. Desnudar a pesquisa
e relacionar-se com ela, amá-la e odiá-la para amá-la novamente com
outra intensidade. E por tudo que ela causa e por ser uma experiência
tão íntima, é preciso extrair dela o máximo de prazer que ela possa
propiciar, valendo-se, para isso, do seu processo, do que ele pode en-
tregar de melhor ao pesquisador.
Nessa moldagem, o pesquisador é um artesão que tece uma
trama que vai formando uma tessitura. O tom minucioso revela a
necessidade de saber usar as mãos, de colocar as mãos na massa,

8
Destaca-se aqui a participação e a presença do orientador, que pode agir como um agente
que estimula ou não essa caminhada. Entende-se que a possibilidade dessa interlocução é algo
da maior importância para o processo de pesquisa e mesmo para que ele se realize de forma
instigante. Partilhando essa trajetória, a maestria do orientador envolve a capacidade de extrair o
melhor do orientando, contribuindo para que o pesquisador desafie a si mesmo, sem perder de
vista o incentivo ao prazer em cada etapa.
172 Prazeres Possíveis

sujando-se com essa argila moldável, para usar uma expressão de


Jorge Luis Borges:

Um escritor, ou todo homem, deve pensar que tudo o que lhe ocorre é
um instrumento; todas as coisas lhe foram dadas para determinado fim
- e isso tem de ser mais forte no caso de um artista. Tudo o que acon-
tece a ele, inclusive as humilhações, as vergonhas, as desventuras, todas
essas coisas lhe foram dadas como argila, como matéria-prima para sua
arte; ele tem de aproveitá-las. (...) Essas coisas nos foram dadas para que
as transmutemos, para que façamos, da miserável circunstância de nossa
vida, coisas eternas ou que aspirem a sê-lo (BORGES, 2011, p. 213).

Se a pesquisa envolve a criação, o pesquisador pode ser considerado


um artista e, nesse sentido, está também a ligação entre o prazer e a
arte. De todo modo, há uma condição de criação que se revela na es-
crita textual de uma investigação. Afinal é ali que o pesquisador mostra
efetivamente o registro de seu trabalho.

O tempo perdido do prazer na pesquisa

A satisfação com conquistas no desenvolvimento da pesquisa lembra


uma experiência de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (2006).
Em certo ponto da vida adulta do protagonista, ele se depara com um
bolinho conhecido como Madeleine e ao mordê-lo acontece algo mágico.
Ele é tomado por um banho de sensações que disparam nele o universo
de Combray, local de sua infância. Assim, um conjunto intenso e amoroso
de lembranças é resgatado, em uma alegria fora do comum.
Deleuze utiliza o romance para explicar sua teoria dos signos na obra
Proust e os Signos (1987) e especificamente essa passagem para tratar
do signo sensível e do signo da arte. Segundo o filósofo, o sabor de
Madaleine aprisionou e envolveu Combray em seu volume, restauran-
do um bloco de infância. Com isso, entra em cena a busca pelo que se
passou nessa sensação. Surge primeiro o efeito imediato de uma alegria
que faz, no momento seguinte, o personagem se perguntar: de onde
ela vem? e “depois, [surge] uma espécie de sentimento de obrigação,
necessidade de um trabalho do pensamento” (1987, p. 57). Mas há uma
espécie de lacuna pois ainda falta algo quando Combray se revela por
meio de Madeleine. A questão é que Combray não ressurge tal como
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
173

esteve pre¬sente, mas aparece sob uma forma jamais vivida, na sua “es-
sência”, na sua eternidade. Resta explicar por que ele sente uma alegria
tão intensa e tão particular. Na apresentação da edição brasileira da
obra deleuziana, Roberto Machado defende que a consistência do pro-
blema do signo para Deleuze se refere a dois pontos fulcrais: os signos
possuem destaque porque, fazendo violência ao pensamento,

forçam a pensar ou buscar o sentido; e se os signos (...) da arte são


superiores (...) é porque são o resultado de um aprendizado temporal
que converge para a arte, transforma o tempo perdido em tempo
redescoberto e possibilita conferir a cada tipo de signo a verdade que
lhe é própria (apud DELEUZE, 1987, n. p.).

Logo, para Roberto Machado, a potência de Proust e os Signos está


em dar a ver, por meio do romance proustiano, a redescoberta do
tempo. Entretanto, não exatamente do tempo passado, mas do “tempo
puro ou o que poderia se chamar de tempo original absoluto, idênti-
co à eternidade, que só a arte pode proporcionar” (MACHADO apud
DELEUZE, 1987, n. p., grifo nosso). Diante desse cenário literário en-
volvente e da percepção do signo deleuziano, apreende-se que algo
parecido pode se passar com a pesquisa. Quando Deleuze fala em fazer
violência ao pensamento significa levá-lo ao limite, ir com ele às últimas
consequências. Desse modo, quando se pensa em fazer investigação,
tanto essa perspectiva como a ideia de buscar sentido parecem ter
bastante proximidade com seu processo. No mais, em meio ao imenso
conjunto de horas nas quais o pesquisador se coloca entregue e à dis-
posição da pesquisa, podem surgir instantes de estalos que captam um
tempo redescoberto iluminado após um tempo que já se foi, em um
tempo perdido. Eis o prazer e a oportunidade de tomar esses instantes
ampliando-os em momentos maiores a fim de degustar seu deleite e
experienciar sua fruição.
Por outro viés, valendo-se do título do romance para pensar esse
processo, é possível inferir que fazer pesquisa também remete a uma
busca de um tempo perdido. Segundo Deleuze, há dois sentidos impli-
cados no tempo em questão. “O tempo perdido não é simplesmente o
tempo passado; é também o tempo que se perde, como na expressão
‘perder tempo’” (1987, p. 3). Após elucidar essa duplicidade, joga-se
luz na palavra “busca” do título. Para Deleuze, ela remete à busca da
174 Prazeres Possíveis

verdade que constitui a unidade da obra e pode ser identificada como


uma atitude que se repete na narrativa. Dessa forma, muitas vezes, o
protagonista encontra-se inserido em determinado contexto, diante de
fatos que ele não conhece, mas que virá a conhecer depois. Ou seja, ele
“não sabe certas coisas no início, aprende-as progressivamente e tem a
revelação final” (DELEUZE, 1987, p. 26). Nisso, ilusões vão sendo criadas,
percepções se alteram e “o mundo vacila na corrente do aprendizado”
(Idem, 1987, p. 26). Aí está o movimento de decepções e revelações
que dá ritmo à obra (Idem, 1987, p. 4). Ora, pode-se dizer que tal apre-
ensão se parece muito com o processo de investigação de pesquisa que
se tem na busca o comando de sua proposta.

A fórmula mágica

Certa vez, em um congresso anual, algo curioso se passou em uma


sessão de apresentação de pesquisas. Em uma sala de 30 lugares quase
cheia, em meio a falas da área de Exatas com o mesmo padrão de
exposição, seguidas de breve arguição dos avaliadores, o último aluno
iniciou sua participação. Diferentemente dos demais e absorvido pela
própria fala, ele entrou em um universo particular. As projeções na tela
traziam o desenvolvimento de um raciocínio de uma fórmula, em um
encadeamento ao qual não era possível estar alheio. Mesmo quem não
entendia do assunto não poderia passar imune ao vigor daquelas ideias
que borbulhavam em números. Ao final, como é de praxe, a plateia
aplaudiu, interpelações foram feitas, mas ninguém esperava o gran finalle.
Uma das professoras avaliadoras permitiu-se, como ela mesma afirmou,
sanar uma curiosidade. Perguntou ao aluno: “mas, afinal, para que servia
aquilo tudo ou como toda aquela formulação poderia ser útil?”. Fez-se
um silêncio inquietante revelando que a questão não era só dela. Princi-
palmente os que não estavam entendendo muito daquilo ansiavam pela
resposta que poderia fazer uma revelação final surpreendente e dar
sentido a tudo. Além do mais, inebriado, o aluno poderia ter esquecido
de dizer sobre o tal “para quê”. Não era o caso. Ele respondeu, muito
sereno, seguro e assertivo, que ainda não sabia para que a fórmula ser-
via. O prazer que permeara sua fala entoou ali um deleite ainda maior.
Foi aplaudido novamente em meio ao burburinho do fim da sessão, que
já se confundia com a movimentação da que vinha na sequência. Em
vez de dar ênfase ao fato de que não sabia para que servia toda aquela
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
175

concentração de horas trabalhadas, em um gesto ao futuro, ressaltou


não à pesquisa pregressa, mas àquela por vir. A magia estava em ainda
não saber e, de algum modo, acreditar que isso viria.

O registro das ideias

Para abordar outra forma de prazer na pesquisa, aciona-se o capítulo


de negativas de Memórias póstumas de Brás Cubas (1994), de Machado
de Assis, no qual o protagonista diz o que não conquistou ou não rea-
lizou em vida.

Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não


houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a
vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério,
achei-me com um pequeno saldo (1994, p. 140)”.

O saldo se refere à famigerada afirmação de que não teve filhos e


não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Operando-se pela inversão, a pesquisa seria também em uma seme-
adura para ficar quite com a vida, deixando uma espécie de contribui-
ção, um pequeno saldo. A transmissão - não do legado de nossa miséria,
mas de um estudo - é uma forma colocar ideias, registrá-las, lançando
uma semente que contém a possibilidade da germinação, de outra vida
em si guardada. Isto é, outro pesquisador pode deparar-se com essa
proposta e tomá-la como um disparador ou, enfim, de alguma maneira,
a fim de fazer funcionar sua própria pesquisa. Nesse sentido, a pesquisa
guardaria o seu quinhão de eternidade na possibilidade do seu registro
e do seu acesso. E se ela subsiste, perdura e se conserva, é porque
carrega uma força em si mesma como um código ou uma mensagem
que pode atingir outro pesquisador e encontrar, como que em uma
promessa, outras ideias afins com as quais possa retomar vida.
Isso seria como a ideia da flecha que Deleuze (1992) menciona
em outra entrevista a Claire Parnet, na qual descrevia o livro que es-
crevera sobre Foucault9. Segundo o filósofo, um pensador lança uma
flecha no vazio que é recolhida por outro pensador, em outro tempo,

9
Outro livro que trata dessa ideia é Zen e a arte do tiro com arco, de Eugel Herrigel. Biblioteca
Editores Independentes, n. 14, 2007.
176 Prazeres Possíveis

que faz o mesmo. Assim a flecha ganha novos rumos e vai seguindo
em uma dissolução de quem atira. Diante dos horizontes que uma
pesquisa pode suscitar a partir de seu registro, o prazer é capaz de
residir na sutileza de um sopro para o futuro pela produção de conhe-
cimento e contribuição científica. Aliás, nesse sentido, quando se trata
de uma pesquisa com arquivo, tal como Foucault o faz, essa forma de
procedimento também seria como um sopro, mas um sopro de vida
aos mortos, aos autores. Segundo essa comparação do professor Julio
Groppa Aquino10, isso é amor ao mundo, pois assim esse arquivo e
esses autores continuam vibrando.

Considerações finais

As duas narrativas de perspectivas solares apresentadas resvalam em


prazeres que nem sempre estão à mostra. Parece que quando se trata
de pesquisa, os prazeres têm característica mais soturna. Trazer à tona
esse jogo de claro-escuro foi proposital. Os bastidores dessas histórias
envolvem as infinitas horas de solidão, isolamento e - por que não dizer
- luta com o pensamento. Ao mesmo tempo, elas revelam momentos
em que a pesquisa - tanto para uma aula ou uma apresentação - é pos-
ta à luz do mundo, encontrando ares de fora. Assim, buscou-se ilustrar
aspectos de prazer que não se distanciam do jogo de possibilidade e
urgência a que a pesquisa remete.
Para abordar o prazer na pesquisa, vasculhou-se seu procedimento e o
imponderável em seu processo. Nesse sentido, é preciso considerar certa
movência, entendendo que a investigação se faz em ato. Afinal, nunca se
sabe ao certo para quais caminhos uma pesquisa pode levar, nem como
ela evoluirá. Com isso, tal empreitada lança o pesquisador ao desconhecido.
Observar essa tomada performativa ajuda a perceber vultos de prazer em
meio a esse processo. Assim, tem-se uma possibilidade de ampliar a satis-
fação e o contentamento, não deixando que o prazer seja somente um
disparador de largada ou ponto de chegada, mas tomando-o como com-
panhia de percurso. O segredo, portanto, estaria em deixar-se arrebatar
por pequenos deleites que podem ser descobertos nessa trajetória. Para
isso, é preciso dar à pesquisa o tempo que ela demanda, deixando-a fluir
para experienciá-la em sua extensão. E, mesmo percebendo que extensão

10
Anotações da aula do professor Julio Groppa Aquino (2018).
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
177

é essa, sem antecipar o fim dessas sensações em função da avalanche de


demandas outras da própria pesquisa.
Assim, buscou-se desvelar um ponto de vista sobre esse assunto co-
mumente diligenciado. Fica o convite para que se usufrua maliciosamente
do desenvolvimento da pesquisa, nas oportunidades dos instantes. E, do
mesmo modo, para que se esteja atento à sua chama desejante; que ela
permaneça queimando, constante, jogando a investigação adiante para
o movimento seguinte, no seu excedente de insaciabilidade necessário.
Por fim, arremata-se esta proposta com o registro de que Foucault
sinalizou o desejo de que suas obras fossem tomadas como fogos de
artifício. Desse modo, elas seriam eficazes como bombas, teriam beleza
e, depois de carbonizadas pelo próprio uso, não deixariam nada além
de um rastro marcante na memória (FOUCAULT, 2006). Ora, o prazer
tem sua relação com esse tipo de explosão e esse convite de tomar
algo como fogos parece querer fomentar rebentações. Nesse sentido,
acredita-se que o prazer pode figurar não de modo en passant nas
investigações, mas em sons, luzes, cores e sensações, como fogos de
artifício nas pesquisas. Tomara que ele não seja apenas a satisfação do
término, no ponto de chegada, mas surja em constantes torções de
insights instigantes que estouram e iluminam os pesquisadores e quem
estiver à espreita.

Referências
AQUINO, J. G. Anotações de aula da autora. Disciplina: Análise dos cursos finais de
Michel Foucault V: Subjetividade e verdade (1980-1981), realizada no primeiro semestre
de 2018, Faculdade de Educação da USP.
ASSIS, M. de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
AZEVEDO, F. F. dos S. Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. 2a ed. Rio de Janeiro:
Lexikon, 2010.
BARRECHEGUREN, P. O doutorado é prejudicial à saúde mental. Jornal El País, 26
de março de 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/15/cien-
cia/1521113964_993420.html. Acesso em 19/04/2018.
BORGES, J. L. Borges oral & sete noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CORAZZA, S. Contribuições de Deleuze e Guattari para as pesquisas em educação.
Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais. Santa Maria, vol. 8, 2012. Disponível
em: <https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/5298>. Acesso em 18/4/2018.
DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
178 Prazeres Possíveis

________. Lógica do sentido.Trad. Luiz Roberto Fortes. São Paulo: Editora Perspectiva,
2015.
________. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração:
Brasil, Ministério da Educação, TV Escola, 2001. Paris: Éditions Montparnasse, 1997, VHS,
459 min. Texto disponível em: <http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abece-
dario+G.+Deleuze.pdf>. Acesso em 13/04/2018.
________. Proust e os signos. 2a. edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987
[1964].
________; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia I. São Paulo: Editora
34, 2011.
FOUCAULT, M. Eu sou um pirotécnico. In: POL-DROIT, R. Michel Foucault, entrevistas.
Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 67-100.
GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender. COEB 2012 Congresso de Educação
Básica, aprendizagem e currículo. Disponível em: <http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/
arquivos/pdf/13_02_2012_10.54.50.a0ac3b8a140676ef8ae0dbf32e662762.pdf>. Aces-
so em 23/03/2018.
HERRIGEL, E. Zen e a arte do tiro com arco. Biblioteca Editores Independentes, n. 14,
2007.
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MARQUEZ, G. G. Doze contos peregrinos. 23ª. ed., Rio de Janeiro: Record, 1992.
MORAES, F. T. Estudantes de mestrado e doutorado relatam suas dores na pós-gra-
duação. Jornal Folha de S. Paulo, 18 de dezembro de 2017. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/ciencia/2017/12/1943862-estudantes-de-mestrado-e-doutora-
do-relatam-suas-dores-na-pos-graduacao.shtml>. Acesso em 19/04/2018.
PROUST, M. No caminho de Swann (Em busca do tempo perdido, volume 1). 3a. ed.
São Paulo: Ed. Globo, 2006.
RIBEIRO, C. R. Anotações de aula da autora. Disciplina: Pensamento, Cultura e Educação:
uma Perspectiva Deleuziana, realizada no primeiro semestre de 2018, Faculdade de
Educação da USP.
WALKER. J. There’s an awful cost to getting a PhD that no one talks about (O terrível
custo sobre o qual ninguém fala de ter um doutorado). Portal Quartz, 12 de novembro
de 2015. Disponível em: <https://qz.com/547641/theres-an-awful-cost-to-getting-a-ph-
d-that-no-one-talks-about>. Acesso em 19/04/2018.
ZOURABICHVILI, F. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo: Editora
34, 2016.
181

Reflexões sobre
Prazer e Política

Vinicius Carrasco

Contextualização

O ser humano enquanto ser social sempre esteve relacionado à po-


lítica. Tal característica inspirou o dramaturgo Bertold Brechdt a escrever
sobre o analfabetismo político referindo-se à apatia ou desinteresse da
população por política. Assim como a política está presente em toda
parte, Foucault (1979) também defende que o poder é uma prática social
historicamente constituída que se manifesta em diferentes formas e está
em constante transformação. Para ele, poder não é algo que dependa
unicamente do estado ou de uma instituição ou figura política, mas está
nas relações sociais e nas ações resultantes delas. O poder é algo exerci-
do em rede. Segundo Foucault, o que faz com que o poder se mantenha
e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força
que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer,
forma saber, produz discurso. Para o autor, deve-se considerar o poder
182 Prazeres Possíveis

como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social, muito mais
do que uma instância negativa que tem por função reprimir.

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca
está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indi-
víduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este
poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder
não se aplica aos indivíduos, passa por eles” (FOUCAULT, 1979, p. 183).

Ao recorrer à origem da palavra potere, pode-se buscar a interpre-


tação de que poder está associado ao governar algo, à disposição ou
força física ou moral de executar algo. Em O sujeito e o poder, Foucault
explica que, embora em sua obra trate do conceito de poder, não é
este, mas o sujeito que é tema de sua pesquisa. Assim, ele afirma que,

Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as


formas de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de
exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem;
ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste
modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjeti-
vação e submissão). (FOUCAULT,1995, p. 235)

O próprio Foucault afirma ao pensar nessas lutas há de se considerá-


-las enquanto estratégias utilizadas pelos indivíduos, muito mais do que
pensar na questão institucional ou política, que ele mesmo trata. Por
esta relação que se estabelece com as redes e o cívico, essa questão
de articulação entre sujeitos e social, faz-se apropriado trazer outro
conceito ao qual o termo está intimamente relacionado.
Derivada do grego politikos, que significa cívico, a palavra política se
origina de polites, que pode ser traduzida como “cidadão”. Na Grécia,
todos os indivíduos se interessavam pela vida pública e em governar a
polis (cidade ou Estado). O sentido da palavra, por sua vez, chegou ao
ocidente corrompido. O termo latino politician popularizou-se no sécu-
lo XVI, referindo-se àquele que recorria a intrigas para adquirir poder
ou cargos públicos, retornando no século seguinte o sentido do “ho-
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
183

mem público que representa os partidos de composição do governo”.


(DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO, 2008).
Sodré (2006, p. 62) ao discutir aspectos sobre a mudança de com-
portamento e relações de controle na sociedade contemporânea, faz
menção ao filósofo italiano Antônio Negri que aborda a questão da
militância em suas obras. Sodré destaca que Negri vê a militância como
uma “tecnologia do amor”, com potência biopolítica.
Pensando neste aspecto de estratégia em relação com a biopolítica,
essa articulação, que outrora pertencera a partidos políticos, sindicatos
e grupos com visões ideológicas definidas concordando ou discordan-
do de uma causa, dá lugar a outras formas de organização social no
contemporâneo.Vizer e Ferreira (2007, p. 36) afirmam que o paradigma
emergente no século XXI vai demarcar novos modos de relação entre
militância, novas formas de ativismo social e nos meios de comunicação.
Segundo ele, o ativismo social não precisa ser “forçosamente organiza-
do, nem requer atos de fé e formalidades”. Ele pode ser “espontâneo e
tomar forma de ‘multidões’ convocadas por situações críticas”, num ato
característico de comunicação, que se transforma em acontecimento.
Nesse sentido, é possível mencionar que a utilização de tecnologias de
informação e comunicação (TICs), novos suportes midiáticos e estéti-
cas narrativas para publicização de causas que dificilmente chegariam à
mídia tradicional, permitiu o crescimento de movimentos sociais orga-
nizados em diversas partes do globo como os protestos como o siste-
ma financeiro mundial ou contra o aumento das tarifas do transporte
coletivo no Brasil, em 2013, nos quais comentários e manifestações em
redes sociais digitais e atos públicos em ruas e avenidas demonstravam
o descontentamento contra-governo, num sentido de lutas ou ações de
sujeitos sociais como mencionou-se anteriormente.

Movimentos sociais, manifestações


e articulação política1

Para Vizer e Ferreira (2007, p. 44), os movimentos sociais são for-


mas de ação coletiva que se constroem em função de condições eco-

1
Nota do autor: Parte destes aspectos aqui ampliados foram apresentados em minha dissertação
de mestrado e no livro originado da mesma. CARRASCO, Vinicius; BERTOLLI FILHO, Claudio.
#descontent@mento: o que comunicam os protestos brasileiros de 2013. São Paulo: Cultura Aca-
dêmica, 2017.
184 Prazeres Possíveis

nômicas, políticas e sociais críticas:

Os movimentos sociais representam uma forma específica e historica-


mente diferenciada e organização social, surgida nos fins do século XIX,
como manifestação dos setores sociais fundamentalmente urbanos
que cobravam consciência de ser encontrados sujeitos em condições
de vida não só injustas ou restritivas, mas, além disso, compartilhadas
por um setor ou grupo social identificável ou identificado. (VIZER e
FERREIRA, 2007, p. 45).

Para o autor, os movimentos sociais representam “a expressão dialé-
tica e manifesta da complexidade, a diversidade e a agitação social”.
“Uma forma de ação social que pretende justamente transformar as
condições objetivas de seu ‘ambiente’” (VIZER e FERREIRA, 2007, p.
45). Neste sentido, a transformação se dá por meio de mobilizações,
práticas e ações, vínculos, formas de agrupamento e contensão fruto de
uma motivação e criação que tem como inspiração o universo da cul-
tura, comunicacional e de formas simbólicas. (VIZER e FERREIRA, 2007,
p. 46). É possível, neste sentido, estabelecer relações com a própria di-
mensão comunicacional de que fala Foucault ao tratar das relações de
poder e relações de comunicação, bem como com o agir comunicativo
do filósofo e sociólogo alemão Jünger Habermas, um conceito que tem
sido resgatado e atualizado em virtude das transformações contempo-
râneas. O homem, por meio da linguagem é capaz de expressar desejos
e objetivos, mobilizando-se para a racionalidade e resgatando o fazer
coletivo numa tentativa de se libertar da dominação que o oprime em
especial numa sociedade em que o Estado se esvazia de suas respon-
sabilidades com relação ao bem-estar comum, situação que faz emergir
novas formas de mobilizações na tentativa de resgatar os aspectos que
foram suprimidos nesta relação sociedade-Estado no contemporâneo.
Os movimentos sociais são ações sociais coletivas de caráter socio¬po-
lítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar
e expressar suas demandas e, em geral, “possuem identidade, têm oposi-
tor e articulam ou fundamentam-se em um projeto de vida e de socieda-
de”. (GOHN, 2011, p. 335-336). No mesmo sentido, para Cicilia Peruzzo
(2013, p. 75), movimentos sociais são definidos como articulações da so-
ciedade civil constituídas por segmentos da população que se reconhe-
cem como portadores de direitos e que se organizam para reivindicá-los.
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
185

Eles podem assumir configurações dependendo de suas motivações, do


lugar, do tempo histórico e da conjuntura em que se movem.
Os movimentos sociais organizados se distinguem das manifestações
por terem permanência temporal e estruturam-se por meio da militân-
cia como estratégia para construção de significados políticos ou culturais
em comum, conquistar, mobilizar cidadãos e produzir transformações so-
ciais. As manifestações, por sua vez, são reações conjunturais coletivas e
públicas que criam visibilidade política e reconhecimento das vozes dos
cidadãos através de mobilizações para um evento público em si. Para
Scherer-Warren (2014, p. 17), as manifestações expressam o momento
“multidão” dos movimentos, que por sua vez é formado por “múltiplas
identidades” que cooperam pensando no benefício comum. E esse pen-
sar do bem comum em conjunto se refere a uma característica humana
ligada à sua capacidade de sociabilidade que é a organização política.
Manuel Castells (2013), ao tratar das reconfigurações dos movimen-
tos sociais da contemporaneidade, define este formato de mobilização:

Construindo uma comunidade livre num espaço simbólico, os movi-


mentos sociais criam um espaço público, um espaço de deliberação
que, em última instância, se torna um espaço político, para que assem-
bleias soberanas se realizem e recuperem seus direitos de represen-
tação, apropriados por instituições políticas ajustadas às conveniências
dos interesses e valores dominantes. Em nossa sociedade, o espaço
público dos movimentos sociais é construído como um espaço híbrido
entre as redes sociais da internet e o espaço urbano ocupado: conec-
tando o ciberespaço com o espaço urbano numa interação implacável
e constituindo, tecnológica e culturalmente, comunidades instantâneas
de prática transformadora.

Segundo o autor (20013, p. 162), esses movimentos sociais “são am-


plamente espontâneos em sua origem, geralmente desencadeados por
uma centelha de indignação, seja relacionada a um evento específico,
seja a um acesso de aversão pelas ações dos governantes. ”

Tecnologia, comunicação e participação

Por suas características, a internet e suas ferramentas comunicativas


trouxeram uma nova compreensão e sentido para participação, ampliando
186 Prazeres Possíveis

de certa forma a maneira com a qual as pessoas se comunicam, se expres-


sam, discutem, partilham opiniões e reivindicam seus direitos, ressignifican-
do ainda aspectos da democracia, do ativismo e das identidades coletivas.

O poder comunicacional não deve ser considerado uma simples mo-


dulação do poder político e financeiro. Conecta-se com o conceito de
biopoder em M. Foucault, um poder que se expressa em dimensões
múltiplas, das quais a política é somente uma entre outras. Além disso,
é um poder que tem uma profunda força metafórica, pois se consti-
tui como modelo para entender tanto a práxis social e os processos
macrossociais, como as relações de comunicação presentes em nível
microssocial. É a chamada microfísica do poder, presente nas práticas
cotidianas, em que se expressa o poder em todas as suas formas. Poder
e saber se juntam ali, onde aparecem as práticas humanas. (BUSTA-
MANTE, 2010, p. 19)

O educador e comunicador paraguaio Juan R. Diaz Bordenave (1994)


recorre à etimologia para definir o termo participação: fazer parte, tomar
parte ou ter parte. Nota-se, aqui, aproximação com o conceito de parti-
lha que carrega a palavra comunicação. De acordo com Bordenave (1994,
p. 46), o homem não nasce sabendo participar. A participação é uma
habilidade que se aprende e se aperfeiçoa. Ela pressupõe vivência coletiva
que só se aprende na prática grupal, um processo contínuo de criação e
conhecimento, com função educativa de desenvolver mentalidades.
Wilson Gomes (2006) se propôs a tratar do tema da participação
política e os efeitos políticos da internet e examinar a tese segundo a
qual a internet constitui um ambiente de comunicação que tenderia a
transformar o padrão atual de baixa participação política por parte da
esfera civil nas democracias contemporâneas. Segundo ele, uma demo-
cracia, entre outros aspectos, deve habilitar o cidadão a níveis adequados
de compreensão de questões, argumentos, posições e matérias relativas
aos negócios públicos e ao jogo político; dar possibilidade de acesso aos
cidadãos a debates públicos, onde a cidadania pode ser exercitada do
ponto de vista argumentativo, da formação de opiniões ou deliberativo,
que inclui as decisões políticas. A democracia deve ainda proporcionar
a ele oportunidades de participação em instituições democráticas ou
em grupos e ações por meio de voto, afiliação, eventos ou atividades
políticas e prepará-lo para a comunicação da esfera civil com os seus
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
187

representantes. (GOMES, 2006, p. 59).


A literatura sobre o impacto da internet e as possibilidades de par-
ticipação política traz discussões acerca do revigoramento da esfera
pública com esse “novo meio ambiente de comunicação política” e a
capacidade da internet, em particular, e dos novos meios, em geral, de
superar o déficit democrático dos tradicionais meios de comunicação
de massa, constituindo-se ainda em um recurso relativamente barato
para transmissão de informação on-line. (GOMES, 2006, p. 64). Entre
alguns aspectos positivos destacados, ressalta-se, em tese, a superação
do tempo e do espaço, do controle do comunicador sobre a mensa-
gem, sem filtros ou censuras. Além disso, considera-se o caráter intera-
tivo que permite um diálogo de mão dupla entre quem envia e quem
recebe, dando voz inclusive a minorias e excluídos. Contudo, segundo
Gomes, essa interatividade só se efetiva quando se estabelece a comu-
nicação contínua e de iniciativa recíproca entre esfera civil e agentes
políticos, servindo para um recíproco feedback entre cidadania e so-
ciedade política. Para ele a internet é um ambiente, um meio pleno de
possibilidades, desde que as sociedades consigam dela retirar tudo o
que de vantajoso à democracia pode oferecer, mas, contudo, a socieda-
de civil e o Estado não têm ainda conseguido explorar plenamente as
possibilidades favoráveis à democracia e ao interesse público. Para ele, a
abundância de meios não significa efetivamente que se materialize essa
possiblidade de democracia.
Em A Cultura da Participação, Clay Shirky (2011) também se propõe
a discutir a questão da participação na contemporaneidade, a exem-
plo de Henry Jenkins (2009) com sua noção de cultura participativa,
aqui já mencionada. Sem chegar a um conceito de participação, Shirky
apresenta iniciativas que emergem nos últimos anos como formas co-
laborativas e participativas de engajamento dos cidadãos. Para ele, exis-
tem basicamente quatro níveis de engajamento ou compartilhamento:
o pessoal, de indivíduos que não estariam coordenados; o comum, que
ocorre em um grupo de colaboradores e, por isso, pode gerar mais en-
volvimento; o público, que permite interações externas entre um grupo
de colaboradores organizados para obter um recurso público; o cívico,
no qual o grupo busca ativamente a transformação da sociedade.
Retomando o pensamento anterior, Vizer e Ferreira (2007, p. 49-50)
destacam que o processo de socialização e adaptação ecológica de nos-
sas sociedades requer entre outros aspectos uma ecologia afetiva. Nes-
188 Prazeres Possíveis

te sentido, percebe-se novamente uma aproximação com Sodré (2013,


p.234-235), que trata do que ele chama de bios midiático. O autor afirma
que a comunicação cobre um “largo, mas delimitado, espectro de ações
ou práticas” como: a) veiculação, voltada para a relação ou contato entre
sujeitos sociais por meio das tecnologias da informação ou dispositivos
de veiculação (mídia) de natureza societal; b) vinculação, que engloba as
práticas e estratégias de promoção ou manutenção do vínculo social; c)
cognição, ou seja, práticas teóricas relativas à posição de observação e de
sistematização das práticas de veiculação e das estratégias de vinculação.
Para ele, o conceito de comunicação social permanece como possibilida-
de hermenêutica de se desenvolver a reflexão sobre a diferença ontológi-
ca, na acepção heideggeriana, entre o ser (modo de aparecimento original
do que existe) e o ente (o existente), aproximando-se da chamada teoria
“ontológica” defendida por Vattimo, que incorpora contribuições da psi-
cologia, da semiótica, da antropologia, mas da biologia e etologia, para se
poder pensar a natureza. (SODRÉ, 2010, p. 37).
Nesta relação entre linguagem, comunicação e política, enquanto es-
paço de participação, o ser humano se estabelece enquanto ser presen-
te no seu tempo e tenta colocar-se diante de questões que lhe dizem
respeito, posicionando-se e inserindo-se na dinâmica social, questões
relacionadas à sensação do fazer parte, de identificação ou distancia-
mento/diferenciação, que podem também, dependendo da experiência,
em especial se a mesma é positiva, gerar a sensação de prazer.

Mais que uma questão afetiva

A perspectiva acerca dos afetos é tratada por Sodré (2006, p. 71),


que afirma que a já mencionada ideia de Vattimo sobre a comunicação
pressupõe uma comunidade afetiva, mantida por um acordo de gostos
em torno do problema da partilha coletiva de vozes e sensações. Tais
emoções teriam sido motivadoras para a ação comunicativa dos agru-
pamentos ativistas, uma vez que “o afeto, território próprio da estesia,
revela-se como um mecanismo de compreensão irredutível às verifica-
ções racionalistas da verdade” (SODRÉ, 2006, p. 71).
Para Sodré (2006, p. 28),

Afeto é nome recente para o que antes se designava como afecção, a


exemplo da doutrina de Espinosa: “Entendo por paixões (affectus) as
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
189

afecções (affectiones) do corpo que aumentam e diminuem a potência


do agir” (Ética Ill, def. 3). Registra-se, aqui, entretanto, uma sutil diferença
entre afecção, como um conceito referido diretamente ao corpo e sua
ideia, e afeto (affectus), “que implica tanto para o corpo quanto para o
espírito um aumento ou uma diminuição da potência de agir”.

Segundo o autor (2006, p. 28), termos como afeição ou afecção, pro-


venientes de affectus e aifectio, entendem-se como um conjunto de
estados e tendências dentro da função psíquica denominada afetividade,
mais especificamente, uma mudança de estado e tendência para um ob-
jetivo, provocadas por causa externa. “Afeto, por sua vez, com a mesma
etimologia, refere-se ao exercício de uma ação no sentido B, em par-
ticular sobre a sensibilidade de B, que é um ser necessariamente vivo”.
Assim, completa Sodré, a ação de afetar (no latim clássico, commuovere)
contém o significado de emoção, isto é, um fenômeno afetivo que, não
sendo tendência para um objetivo define-se por um estado de choque
ou de perturbação na consciência”. “Afeto pode muito bem equivaler
à ideia de energia psíquica, assinalada por uma tensão em campos de
consciência contraditórios. Mostra-se, assim, no desejo, na vontade, na
disposição psíquica do indivíduo que, em busca de prazer, é provocado
pela descarga da tensão”. (SODRÉ, 2006, p. 28-29).
Aqui, faz-se necessário um parêntese, pois também é possível esta-
belecer uma relação com o conceito de comunidade com o entrelaça-
mento ou vinculação.

Vincular-se (diferentemente de apenas relacionar-se) é muito mais do


que um mero processo interativo, porque pressupõe a inserção social
e existencial do indivíduo desde a dimensão imaginária (imagens la-
tentes e manifestas) até às deliberações frente às orientações práticas
de conduta, isto é, aos valores. A vinculação é puramente simbólica, no
sentido de uma exigência radical de partilha da existência com o outro,
portanto dentro de uma lógica profunda de deveres para com o socius,
para além de qualquer racionalismo instrumental ou de qualquer fun-
cionalidade societária. (SODRÉ, 2006, p. 93)

Sodré complementa que há um aproximação entre o conceito de
comunidade e comunicação coletiva. Ele explica que a palavra latina
communitas, referida à ideia de pôr uma tarefa em comum implica o
190 Prazeres Possíveis

coletivo, oposto ao particular. (SODRÉ, 2006, p. 94). Outro conceito


que se relaciona à questão é o de emoção, que é derivado do latim
emovere, emotus – donde, commuovere. “Emotus” significa abalado, sa-
cudido, posto em movimento. (SODRÉ, 2006, p. 29), uma dimensão
propulsora para a ação.
Michel Maffesoli (1998, p. 22) afirma que “em todos os domínios, do
mais sério ao mais frívolo, dos diversos jogos de faz de conta ao jogo
político, na ordem do trabalho como na dos lazeres, bem como nas
diversas instituições, a paixão, o sentimento, a emoção e o afeto (re)
exercem um papel privilegiado”.
O sociólogo francês aborda o que ele chama de comunidades emo-
cionais e afirma que as pessoas se unem por uma emoção coletiva e
configuram-se em laços sociais e comunidades efêmeras, mutantes e
estruturadas no cotidiano. As mesmas são baseadas em certa proximi-
dade, afinidade ou identificação, refletindo emoções, paixões, sentimen-
tos e opiniões, gerando também uma espécie de emoção coletiva.
A metáfora da “tribo” ganhou novas configurações no contempo-
râneo e permite perceber de forma mais concreta a metamorfose do
vínculo social, atenta à saturação da identidade e do individualismo e sua
expressão. O tribalismo está relacionado à importância do sentimento
de pertença a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial de
toda a vida social e, portanto, ao ideal comunitário ou dimensão tran-
sindividual, coletiva. (MAFFESOLI, 2007, p. 100).
Maffesoli chama de neotribalismo aquilo que se observa em protes-
tos e movimentos ativistas em rede e nas redes ao redor do globo, uma
vez que eles agregam as pessoas em torno de uma causa ou propósito
por afinidade ou grupos de interesses comuns. Na concepção de Ma-
ffesoli (2007, p. 101), esse tribalismo marca o fim de uma época: a de
um mundo organizado a partir do primado do indivíduo e o retorno
da comunidade. Para ele, dado o caráter de fluidez das relações atuais,
o que se estabelece entre os indivíduos e entre as instituições nas so-
ciedades contemporâneas não é mais uma relação contratual, mas uma
relação de pertencimento na qual os agrupamentos se dão por afini-
dades, laços de sentimentos (“estar junto”). Tais relações que se confi-
guram nesse neotribalismo podem ser relacionadas à dinâmica da rede,
ao presente vivido coletivamente por agrupamentos que se estruturam
ou se estabelecem em torno de causas comuns ou éticas específicas
em busca de identidades que se configuram de forma afetiva, transitória,
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
191

efêmera, emocional e que coletivamente são capazes de estabelecer a


socialidade entre os indivíduos.Tais indivíduos ou grupos das sociedades
contemporâneas passam a ter papéis e não mais funções como nas
sociedades modernas, adotando uma estrutura mais orgânica do que a
estrutura mecânica que se experimentava no período anterior. Assim,
esses agrupamentos por afinidades, que despertam e desencadeiam
emoções que se concretizam em ações políticas, refletem um certo
prazer no ativismo e em “comunidades emocionais” que se constroem
em função dele.
Castells (2013, p. 17-18) afirma que temos de entender a motivação
de cada indivíduo: como esses indivíduos constituem uma rede conectan-
do-se mentalmente com outros indivíduos e por que são capazes de fa-
zê-lo, num processo de comunicação que, em última instância, leva à ação
coletiva: como essas redes negociam a diversidade de interesses e valores
presentes em cada uma delas para se concentrarem num conjunto de
objetivos comuns; como essas redes se relacionam com a sociedade em
geral e com muitos outros indivíduos; e como e por que essa conexão
funciona em grande número de casos, estimulando indivíduos a ampliar
as redes formadas na resistência à dominação e a se envolver num ataque
multimodal a uma ordem injusta. Para o autor, os movimentos sociais são
emocionais. Para ele, segundo a teoria da inteligência afetiva, as emoções
mais relevantes para a mobilização social e o comportamento político
são o medo (um afeto negativo) e o entusiasmo (um afeto positivo). Afe-
tos positivos e negativos ligam-se a dois sistemas motivacionais básicos
resultantes da evolução humana: aproximação e evitação.

O sistema de aproximação está ligado ao comportamento voltado


para objetivos, que leva o indivíduo a experiências gratificantes. Os
indivíduos entusiasmam-se quando são mobilizados para um objetivo
que apreciam. É por isso que o entusiasmo está diretamente relaciona-
do a outra emoção positiva: a esperança. A esperança projeta o com-
portamento no futuro. De vez que uma característica distintiva entre
a mente humana é a capacidade de imaginar o futuro, a esperança é
um ingrediente fundamental no apoio à ação com vistas a um objetivo.
(CASTELLS, 2013, p.23)

O autor acredita que os movimentos sociais contemporâneos são ca-


pazes de desencadear uma mudança social através da comunicação e do
192 Prazeres Possíveis

uso da ação comunicativa. Segundo ele, a mudança “social envolve uma


ação individual e/ou coletiva que é, em sua essência, emocionalmente
motivada, da mesma forma que todo comportamento humano”. Cas-
tells, (2013, p. 158) afirma que “quando se desencadeia o processo de
ação comunicativa que induz a uma ação e mudança coletivas, prevalece a
mais poderosa emoção positiva: o entusiasmo, que reforça a mobilização
societária intencional”. O autor completa que indivíduos entusiasmados,
conectados em rede, superam o medo e transformam-se num ator co-
letivo consciente. Assim, infere-se que tais experiências gratificantes men-
cionadas por Castells podem estar relacionadas à ideia de prazer.

Significado e considerações acerca


do prazer e da política

Até aqui discutiu-se uma relação entre o poder, o significado da po-


lítica, de articulações políticas, manifestações e movimentos sociais e o
sentimento que motiva a organização dos indivíduos em comunidades
ou redes que se aproximam por afinidades e afetos em relação a cau-
sas propulsoras de ação e ativismo ou o prazer que esse “empodera-
mento” desencadeia nos sujeitos sociais.Tratou-se desta dimensão para
chegar ao conceito de prazer e tentar, a partir de então, chegar a con-
siderações que levassem a esta a ação política. Sabe-se, contudo, que a
reflexão ensaística que se faz acerca de tais aspectos possui seus limites
e tem também um caráter introdutório, podendo levar a outras consi-
derações mais abrangentes e ao aprofundar de interpretações, uma vez
que se constitui um olhar sobre temas tão complexos que permeiam
as discussões teóricas ao longo da história humana.
O significado de prazer está estritamente ligado a questões como
motivação, emoção, disposição, vontade e satisfação. Do latim pla-
cèo,es,cùi ou cìtus sum, placére “agradar”, o substantivo masculino
designa a “sensação ou emoção agradável, ligada à satisfação de uma
vontade, uma necessidade, do exercício harmonioso das atividades
vitais etc.; alegria, contentamento, júbilo, satisfação” (HOUAISS, ELE-
TRÔNICO 2009) .
Não é à toa que o termo se associa ao estado afetivo agradável
de ordem física e, nesse sentido, sinônimo de gozo ou de volúpia. Por
extensão, satisfação moral em que predominam elementos de ordem
intelectual ou espiritual sobre os elementos sensíveis ou fisiológicos. O
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
193

prazer - físico ou moral - é inseparável do exercício de uma tendência e


como tal é vinculado à satisfação de uma necessidade e depois de um
desejo. Para alguns filósofos, o conceito é concebido negativamente. Em
Platão, ele é sempre mais ou menos associado à dor, enquanto Scho-
penhauer o recusa, considerando o sofrimento como parte da vida. Na
Antiguidade, coube ao filósofo Epicuro de Samos (341 – 270 a.C) a
chamada “filosofia do prazer” na qual o termo está associado ao bem
a ser cultivado com sabedoria e moderação, um caminho à felicidade
baseado na apreciação dos bons momentos da vida. (DUROZOI, G. e
ROUSSEL, 1993)
Para a psicologia, o prazer é difícil de definir por ser sui generis e estar
relacionado a dois tipos de afeçção. De modo generalista, as teorias que
associam prazer e dor a exemplo de filósofos como Platão, Epicuro,
Kant e Schopenhauer, as chamadas monistas, reconhecem que ambas
têm a mesma função e origem, embora considerem o prazer como
ausência da dor. Para Aristóteles, Paulhan, Ribot, por exemplo, a incom-
pletude de determinadas situações poderia adquirir conotação negativa
permitindo a relação com a sensação de dor. (GRANDE ENCICLOPÉ-
DIA PORTUGUESA E BRASILEIRA, s.d. p.).
Lowen (1970, p. 10) afirma que como a cultura moderna é dirigida
mais pelo ego que pelo corpo, o poder se transformou no principal
valor, reduzindo o prazer a uma situação secundária. Poder-se-ia dizer
que não só o homem moderno, mas também o homem contemporâ-
neo quer “dominar o mundo e comandar o self”. Lowen lembra que o
prazer é a força criativa que sustenta a personalidade, a epserança (ou
ilusão) desse homem que acredita que ao alcançar seus objetivos “terá
uma vidade prazeres”. Para o autor, o prazer é a chave de uma vida
criativa. Fazendo uma relação entre Fausto, a obra magistral de Goethe,
Lowen, revisita questões da psicologia humana ao afirmar que

a personalidade dominada pelo ego é uma perversão diabólica da ver-


dadeira natureza humana. O ego não existe para ser mestre do corpo,
mas sim seu servo leal e obediente. O corpo, ao contrário do ego,
deseja prazer em ão poder. O prazer é a origem de todos os bons
pensamentos e sentimentos. Quem não tem prazer corporal se torna
rancoroso, frustrado e cheio de ódio. O pensamento é distorcido e o
potencial criativo se perde. A perda se torna autodestrutiva. (LOWEN,
1970, p. 10-11)
194 Prazeres Possíveis

Em outra passagem, o autor se propõe a discutir a relação do signi-


ficado da felicidade e sua relação com o prazer. Para ele, subjacente a
qualquer experiência de alegria ou felicidade, existe uma sensação cor-
poral de prazer. “Pode-se ter prazer nas circunstâncias comuns da vida”
(p. 21). Contudo, o prazer está relacionado à identificação da pessoa
com dada atividade. “Quando estamos identificados com uma atividade,
fluímos livre e espontaneamente. O prazer é um fluxo de sentimentos
(…) Apreciamos uma conversa quando há comunicação de sentimen-
tos. Sentimos prazer ao expressarmos nossos sentimentos e reagimos
com prazer à expressão dos sentimentos de outra pessoa. (p.23)
O “estar junto” remete também ao significado mais estrito da comu-
nicação que é o sentido de partilha, além de instigar aspectos teóricos
como o conceito de inteligência coletiva. Para Jenkins, este tipo de am-
biente que emerge com as novas tecnologias permite a chamada inte-
ligência coletiva, ou seja, “essa capacidade das comunidades virtuais de
alavancar a expertise combinada de seus membros e criar conteúdos
deixando o papel de mero consumidor. O que não podemos saber ou fa-
zer sozinhos, agora podemos fazer coletivamente” (JENKINS, 2009, p.56).
Os dois autores que mais ampla e profundamente trataram o tema
do prazer na história ocidental foram Aristóteles, em Etica Nicomaqueia,
livros 7 e 10, e São Tomás de Aquino em Summa Theologica 1-2, 31-
34. Diferente de outros filósofos mencionados anteriormente, esses
cultivavam uma postura positiva acerca do tema. Para Aristóteles, o
prazer é algo completo, perfeito, acabado e natural (telos). Santo Agos-
tinho recebe influência do estoicismo. Posteriormente, na modernidade,
Freud traz novas interpretações aos pensamentos dos dois e trabalha
na psicanálise questões relacionadas ao princípio do prazer (lustprinzip,
em alemão). Para ele, tal princípio estaria ligado à satisfação das necessi-
dades biológicas e psicológicas e, assim, conseguindo uma “gratificação”
para enfrentar a realidade. A questão do prazer também foi abordada
por Wilhelm Reich (1897-1957), membro do partido comunista, expul-
so em 1933 depois de escrever Psicologia de massas do fascismo. Foi exi-
lado e morreu preso. Reich, criador do “freudo-marxismo”, questiona o
conformismo burguês e o comunismo. Para ele o “fascismo se explicava
por uma insatisfação sexual das massas” (GUZMÁN,2006). “Para Reich,
a liberação não era um problema individual, senão político-sexual-cultu-
ral. Ele se apropriará dos textos de Marx e de Freud, para afirmar a in-
suficiência de uma revolução puramente sexual ou de uma puramente
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
195

política, social ou econômica” (GUZMÁN,2006, p.23).


Estar imerso nas ações que por ventura possam a vir influenciar deci-
sões políticas, fazer parte de processos e sentir-se considerado enquan-
to ator social e pertencente à tomada de decisão política dá prazer. Se o
sentimento de emoção ou esperança por mudanças movem as pessoas
e as impulsiona a buscar uma sociedade melhor, enquanto atores unidos
em redes e “apoderados” por essas possibilidades de manifestação po-
lítica, prazer maior está na tentativa de agir bem comum e consequen-
temente suas conquistas. Cada ação é materialização de uma jornada
que carrega em si o prazer da esperança, do fazer parte da ação e da
tentativa de um processo de mudança.
Numa dimensão simbólica, a busca do homem por espaço, por ser
ouvido, por poder opinar, manifestar sua opinião ou desejos do que
espera para uma sociedade, de anseios coletivos ou individuais, é uma
reação ao sofrimento generalizado ou à dor causada por má gestões
que implicam em sucateamento do bem-estar social e falência dos sis-
temas políticos, de governo, econômicos ou democrático.
Manifestar-se, expor ideias, lutar por transformações ou mudanças
sociais, engajar-se em causas quebrando a sensação de apatia e inércia
constitui uma resposta ao que não agrada. A iniciativa é uma reação ao
desconforto, que gera mal-estar social que sinaliza que algo precisa ser
alterado, uma tentativa de reestabelecimento de um prazer social que
remete à sensação agradável ou desse bem-estar. É um prazer que res-
gata as sensações mais primitivas num sentido orgânico ecológico, sócio
e psicológico similar ao de acolhida ou “aninhamento” que se traduz em
ser um elemento fundamental da conjuntura social, do tecido social; um
nó que está ali presente fazendo sua parte do grande sistema dinâmico
que se conhece por sociedade.
Numa sociedade marcada pelo hedonismo, individualidade, consumo
e pelo vazio causado pelo fim dos paradigmas que ruíram ao longo dos
anos, tais ações se configuram como essa tentativa de retomada de
valores e sensações.
Manifestar-se, organizar-se em movimentos sociais, tomar as ruas, ex-
pressar-se, reconfigura-se como uma tentativa de exercício do poder,
um ato político, uma ação comunicacional. Mais que um agir político, é
um ato de reencontro com identidades, tangenciando origens antropo-
lógicas que simbolizam as lutas da humanidade em busca do avanço das
relações. Representa o posicionamento de um membro vivo e pulsante
196 Prazeres Possíveis

do organismo social que quer reocupar seu espaço, as praças, a polis,


seu lugar de fala, de “ser” presente no processo decisório. É um anseio
desses atores sociais em serem vistos, uma vez que sentem-se esque-
cidos, clamam por vez e voz e esperam a realização como uma subli-
mação para as dores da sobrevivência numa sociedade cada vez mais
desigual. Esse manifestar representa a tentativa de encontrar o prazer
do locus social e cidadão, do locus humano e de indivíduos na tentativa
de contrapor-se ao que lhe foi imposto, deixando-o à margem de seus
direitos.

Referências

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.


BORDENAVE, J. E. D. O que é participação política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BUSTAMANTE, J. Poder comunicativo, ecossistemas digitais e cidadania digital. In Silveira,
Sérgio Amadeu da (org.). Cidadania e redes digitais. São Paulo: Comitê Gestor da Inter-
net, v. 25, n. 11, p. 13-35, 2010. Disponível em <http://www. cidadaniaeredesdigitais. com.
br/_pages/artigos_01. htm> Acesso em 13 dez. 2013.
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da inter-
net. Jorge Zahar, 2013.
CITELLI, A. Bertold Brecht: comunicação, poesia e revolução. Comunicação & Educa-
ção, v. 12, n. 2, p. 109-112, 2007.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995. v.1
Dicionário Etimológico: etimologia e origem das palavras. 2008 (versão online). Dispo-
nível em <https://www.dicionarioetimologico.com.br>. Acesso em 28 fev. 2018.
DUROZOI, G. e ROUSSEL, A. Dicionário de filosofia. Tradução de Marina Appenzeller.
Campinas, SP: Papirus, 1993.
FERREIRA, L. O prazer etimológico em Sigmund Freud. Cad. psicanal., Rio de Janei-
ro , v. 34, n. 26, p.159-171, jun. 2012. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script= sci_arttext&pid=S1413-62952012000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso
em 04 mar. 2018.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
_________. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault – uma
trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Unesp, 1991.
Reflexões sobre Prazer e Política
Vinicius Carrasco
197

GOMES,W. Internet e participação política em sociedades democráticas. Revista FAME-


COS: mídia, cultura e tecnologia, Porto Alegre, n. 27, 2006.
GOHN, M. da G. Teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 2008.
GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Lisboa/Rio de Janeiro: Edi-
torial Enciclopédia, [s.d. p.].
GUZMÁN, M, J. Notas filosóficas sobre desejo e prazer, política e educação. Disserta-
ção apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educa-
ção da Universidade Estadual de Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 2006.
HOUAISS, A. Dicionário eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
LEMOS, A. Tecnologia e Cibercultura. In: BERGER, Christa; BACCEGA, Maria Aparecida;
LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; FRANÇA, vera Veiga. (Org.). Dicionário de Co-
municação: escolas, teorias e autores. São Paulo: Contexto, 2014, p. 412-420.
LIMA, V. A. Comunicação, poder e cidadania. Revista Rastros, Ano VII, nº 7, Outubro, p.
8-16.
LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
LOWEN, A. Prazer: uma abordagem criativa da vida. São Paulo: Summus Editorial, 1970.
MAFFESOLI, M. Tribalismo pós-moderno: da identidade às identificações. Ciências so-
ciais Unisinos, v. 43, n. 1, p. 97-102, 2007.
___________. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
MATTELART, A. História da sociedade da informação. São Paulo: Loyola, 2002.
PERUZZO, C. M. K. Movimentos sociais, redes virtuais e mídia alternativa no junho em
que “o gigante acordou”?. MATRIZes, v. 7, n. 2, p. 73-93, 2013.
RICOEUR, P. Do texto à ação. Ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés, 1989.
RÜDIGER, F. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre:
Sulina, 2013.
SCHERER-WARREN, I. Dos movimentos sociais às manifestações de rua: o ativismo
brasileiro no século XXI. Política & Sociedade, v. 13, n. 28, p. 13-34, 2014. Disponível
em < http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2014v13n28p13>. Acesso em 12 set. 2015.
SHIRKY, Clay. A cultura da participação. Criatividade e generosidade no mundo conec-
tado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
SODRÉ, M. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.

VIZER, E.; FERREIRA, J. Mídia e movimentos sociais. São Paulo: Paulus, 2007.
199

O hedonismo de
Ver e de Ser Visto:
as selfies no esporte como
experiência de prazer
para além do jogo

Ary José Rocco Junior


José Carlos Marques
Pedro Lucas Leite Parolini

A realização, no Brasil dos dois mais importantes eventos do esporte


global (a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016)
permitiu de forma clara e direta a observação do comportamento do
público que frequentou as competições esportivas dos dois megaeven-
tos.Torcedores e fãs das mais diversas modalidades esportivas, inclusive o
futebol, conviveram, durante os dias de competições, com indivíduos que
pouco ou quase nada sabiam sobre as equipes envolvidas na disputa e/ou
conheciam sobre a modalidade a que foram assistir nas praças esportivas
do Rio de Janeiro, no caso dos Jogos Olímpicos, ou nas doze cidades que
abrigaram jogos da Copa do Mundo, no caso do Mundial de futebol.
O esporte global de alto rendimento é, hoje, pelo interesse que des-
perta dos veículos de comunicação e pelo volume de dinheiro que mo-
vimenta em patrocínios e investimentos de empresas e governos, um dos
principais expoentes da chamada indústria do entretenimento. Em razão
disso, a estrutura de organização e de funcionamento de eventos como
200 Prazeres Possíveis

a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, por iniciativa de seus organi-


zadores - a Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) e o
Comitê Olímpico Internacional (COI), obedece a uma lógica semelhan-
te à de grandes acontecimentos do universo das artes e espetáculos,
como shows de rock e lançamentos dos “grandes filmes” da indústria
cinematográfica.
Interesses e fatores motivacionais diversos levaram o público brasilei-
ro, e os turistas estrangeiros que ao Brasil vieram para os dois eventos a
comprar ingressos para as duas maiores festas do esporte mundial. Entre
esses fatores, um, em especial, chamou a atenção em pesquisas realizadas
junto ao público que compareceu a jogos da Copa do Mundo de 2014,
participou da Maratona de São Paulo em 2015 ou assistiu a modalidades
com pouca cobertura de mídia durante os Jogos Olímpicos Rio-2016: a
realização de selfies e a posterior postagem das fotografias nos sites de
redes sociais.
Assim, o objetivo deste artigo é analisar como a selfie (e sua posterior
publicação nos portais de redes sociais) funciona cada vez mais como
elemento de atração para a participação e sociabilização de boa parcela
do público presente a eventos esportivos. Para este público, mostrar que
esteve em uma competição desta natureza é, na maioria das vezes, mais
importante do que a competição, mais prazeroso do que o ato de torcer
por alguma equipe envolvida na disputa ou de assistir ao próprio fato
esportivo em si.
Com isso, e como questão norteadora deste artigo, pretendemos de-
monstrar que o número de indivíduos que vai hoje às praças esportivas
apenas para expor este instante pessoal nas redes sociais é cada vez
maior, concorrendo com aqueles que apenas vão aos estádios, ginásios,
ruas e piscinas motivados pela competição esportiva propriamente dita.
Em outras palavras: tão ou mais importante do que sentir prazer diante
da prática esportiva, está o prazer de uma boa parcela do público em
partilhar selfies ambientadas nos espaços esportivos.
Em última instância, é nossa intenção demonstrar como a publicação
das selfies nos sites de redes sociais funciona como elemento de “con-
cretização da presença” e satisfação hedonista de alguns indivíduos em
eventos esportivos. Para essas pessoas, a presença em um acontecimen-
to deste tipo só se consolida com a divulgação de suas imagens em seus
perfis nos portais de redes sociais (Facebook, Instagram, Youtube etc.),
tendo ao fundo o próprio local da competição.
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
201

O hedonismo grego e a epifania esportiva

Na Grécia Antiga, entre diferentes doutrinas filosóficas, a noção de


prazer (hedonê, em grego) também foi alvo de teorizações várias. Aris-
tipo de Cirene (435-356 a.C), discípulo de Sócrates e criador da escola
cirenaica, ficou conhecido como um dos filósofos que estabeleceu as ba-
ses do chamado hedonismo, pensamento que defendia o prazer como
bem supremo do ser humano. Uma vida hedonista seria aquela cujo
objetivo maior estaria na busca do prazer e da felicidade. Diógenes Laêr-
tius, historiador latino e biógrafo dos filósofos gregos, assim caracterizou
o hedonismo cirenaico:

A prova de que o prazer é o bem supremo está no fato de desde a


infância sermos atraídos instintivamente para o prazer e, quando o ob-
temos, nada mais procuramos, e evitarmos tanto quanto possível o seu
oposto, a dor. (LAÊRTIOS, 2008, p. 69).

O hedonismo cirenaico seria confrontado anos mais tarde pelo epi-


curismo, doutrina derivada do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C), para
quem o estado de tranquilidade do indivíduo somente seria alcançado
por meio da procura dos prazeres moderados. Para a filosofia epicurista,
o prazer precisava de moderação para poder caracterizar-se como um
bem:

É por esta razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de


uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro
e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e
toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a
distinção entre prazer e dor. (EPICURO, 1997, p. 37).

A despeito das distinções entre o hedonismo cirenaico e o epicuris-


mo, cabe registrar que o esporte representa uma das atividades humanas
que se fundamenta no próprio princípio do prazer, moderado ou não.
Como definido tanto pelo historiador holandês Johan Huizinga (1990)
como pelo sociólogo francês Roger Caillois (1990), a atividade do jogo é
desenvolvida voluntariamente por seus praticantes, ou seja, só joga quem
quer. O esporte, que é o jogo regrado e regulamentado, possuiria ainda
assim um forte caráter hedônico: nele teríamos a busca de um prazer, a
202 Prazeres Possíveis

satisfação de uma necessidade menos do corpo e mais do espírito. Have-


ria no esporte a busca de um prazer lúdico, o prazer da brincadeira “em
que sempre está presente o traço da competição, o desafio de vencer
um obstáculo mediante o emprego de uma habilidade específica e a
obediência a certas regras preestabelecidas” (BIZZOCCHI: 1996, p. 99).
Não entraremos aqui na discussão sobre os benefícios que a atividade
esportiva oferece ao corpo humano - até porque o esporte de alto
rendimento distancia-se da noção de bem-estar do organismo. Vamos
antes nos ater ao prazer e à satisfação que o esporte pode proporcionar
para a plateia, para o público que se deleita ao acompanhar a prática
competitiva de outrem. O semiólogo italiano Umberto Eco (1984), no
instigante artigo “A falação esportiva”, publicado em 1969, estabelecia as
categorias do esporte “elevado ao quadrado”, “elevado ao cubo” e “ele-
vado à enésima potência”, as quais nos ajudam a compreender a figura
do espectador esportivo. Para Eco, esporte só existe para aqueles que
o praticam, ou seja, os atletas que disputam alguma prova. Depois disso,
teríamos a categoria do esporte elevado ao quadrado: o jogo, que era
praticado em primeira pessoa, passa aqui a ser uma espécie de discurso
sobre o jogo, isto é, o jogo passa a ser um espetáculo para os outros. O
jogo deixa de ser apenas uma atividade praticada por determinadas pes-
soas, mas passa a ser visto na relação com a alteridade - surge portanto
a figura do espectador. O esporte ao quadrado representa, assim, o es-
petáculo esportivo sobre o qual se exercem especulações e comércios,
bolsas e transações, vendas e consumos. Já o esporte elevado ao cubo
ocorre a partir do momento em que impera o discurso sobre o esporte
assistido. Temos aqui, strictu sensu, o discurso da imprensa esportiva em
primeira instância.
Esse esporte elevado ao quadrado e que define a figura do especta-
dor justifica grande parte das reflexões do pensador alemão Hans Ulrich
Gumbrecht e sua obra Elogio da beleza atlética, lançada em 2007 no mer-
cado editorial brasileiro. Para Gumbrecht, a má vontade que intelectuais
dedicam aos esportes, de forma geral, estaria relacionada ao fato de que
seus juízos investem quase invariavelmente para a sublimação dos aspectos
comerciais que estão por detrás das competições e torneios e para o fato
de que experiências de gozo estético, para muitos, derivariam sempre de
manifestações artísticas já consagradas. Pouca atenção, todavia, seria dada
à compreensão do esporte por meio da fruição estética (ou prazer) que
dele poderíamos extrair, na condição de meros espectadores:
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
203

Não achamos apenas difícil elogiar o esporte também achamos difícil


admitir que o fascínio pelo esporte possa ter raízes respeitáveis no âmbi-
to do apelo estético.

A maioria das pessoas que se consideram cultas tendem a acreditar que


experiências estéticas só podem ser desencadeadas por um conjunto
limitado de objetos e situações consagrados: por livros que se apresen-
tam como “literários”, pela música executada em salas de concerto, por
quadros pendurados em museus ou por dramas que se desenvolvem
num palco. (GUMBRECHT: 2007, 36)

Para nós, esses juízos mais apocalípticos sobre o esporte não conse-
guem sobreviver quando o apelo estético do esporte é colocado à mesa,
como propõe Gumbrecht. E, a despeito de toda mercantilização possível,
o que dizer da fruição que nos vem sendo proporcionada, já há alguns
anos, por diferentes equipes e jogadores que se têm notabilizado pela
arte das belas jogadas e dos corpos em movimento, capazes de provocar
aquilo a que o mesmo Gumbrecht chamou de epifania:

[a] aparição inesperada de um corpo no espaço, que de repente assume


uma bela forma que se dissolve de maneira tão rápida e irreversível, pode
ser encarada como uma espécie de epifania. Essas epifanias, acredito, são a
fonte da alegria que sentimos ao assistir a um evento esportivo, e elas mar-
cam a intensidade de nossa resposta estética. (GUMBRECHT: 2007, 46)

Nossa resposta estética é certamente perceber que corpos em


movimento, seja no teatro, na dança ou na prática esportiva, executam
gestos e lances que buscam a harmonia estética. Daí não ser difícil ob-
servar os “momentos mágicos” que atletas nos proporcionam quando
praticam “uma jogada bonita”: uma jogada bonita é “mais que apenas
uma forma - é uma epifania da forma. Uma jogada bonita é produ-
zida pela convergência súbita e surpreendente dos corpos de vários
atletas no tempo e no espaço” (GUMBRECHT: 2007, 134). Para além
do jogo - e do prazer que ele nos pode proporcionar - outro prazer
adviria do congelamento de corpos no tempo e no espaço, fenôme-
no protagonizado por câmeras fotográficas ou aparelhos de telefonia
móvel. É por meio de artefatos como esses que a selfie passou a
conviver de perto com as jogadas bonitas, produzindo outras epifanias
204 Prazeres Possíveis

nas redes sociais dos espectadores dos estádios.Veremos como se dá


esse processo nos megaeventos esportivos.

O esporte, seus eventos e a Sociedade do Espetáculo

Em razão dos valores financeiros que orbitam em torno da cultura


do esporte mundial, um grande número de empresas começou a en-
xergar nesse universo uma excelente perspectiva de negócio. O esporte
é, atualmente, um dos principais vértices da tão propalada indústria do
entretenimento e, consequentemente, do consumo. Os megaeventos es-
portivos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, são os expoen-
tes da indústria do esporte, movimentando valores financeiros cada vez
maiores em cada uma das suas edições. Durante a Copa do Mundo de
2014, por exemplo, os turistas movimentaram R$ 4,4 bilhões somente na
cidade do Rio de Janeiro (PORTAL BRASIL, 2014). Já a FIFA, promotora
do evento, faturou perto de R$ 16 bilhões, a maior parte destes recursos
oriundos de contratos comerciais, vendas de ingressos e direitos de tele-
visão. Nenhum outro evento jamais se comparou aos ingressos gerados
pelo Brasil (CHADE, 2015).
Os Jogos Olímpicos Rio 2016, segundo estimativas, movimentou apro-
ximadamente R$ 4,2 bilhões em turismo, apenas no que se refere a visi-
tantes estrangeiros. O cálculo foi feito pelo Instituto Brasileiro de Turismo
(Embratur) e levou em consideração os cerca de 400 mil turistas de fora
do país que visitaram a cidade e gastaram, em média, R$ 8.400,00 duran-
te sua permanência (JORNAL DO BRASIL, 2016).
Porém, não são somente os megaeventos esportivos que movimen-
tam grandes recursos financeiros. As corridas de rua, por exemplo, expe-
rimentaram nos últimos anos um amplo crescimento. Segundo dados do
portal Runner´s World (2014), publicação especializada no assunto, em
2010 foram realizadas no Estado de São Paulo 374 provas, contra 301
em 2009, um crescimento de 24,5%. O levantamento apontado pelo
site foi feito pela Federação Paulista de Atletismo (RUNNER´S WORLD,
2014).
Dentro da indústria do entretenimento e do espetáculo é necessá-
rio que o esporte, “produto de mercado”, apresente vantagens compe-
titivas para cativar sua audiência. A melhoria das instalações esportivas,
como os novos estádios e arenas construídos para a Copa do Mundo
e os Jogos Olímpicos, é uma das vertentes dessa mudança. Os locais
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
205

de competições necessitam, atualmente, de garantir ao torcedor, agora


também um consumidor, condições adequadas de segurança, de aquisi-
ção de produtos licenciados, de conforto, alimentação e, principalmente,
de comunicação com seus amigos que não conseguiram estar presente
aos eventos.
A combinação do esporte com o entretenimento é um dos prin-
cipais ingredientes dos grandes eventos esportivos organizados por
entidades como a FIFA e o COI. Todos esses elementos constituem
aquilo que o pensador francês Guy Debord (2000) definiu como “so-
ciedade do espetáculo”: o modo capitalista de organização social assu-
me, como já mencionado, novas formas e conteúdos no processo de
reificação da vida humana.
No entender de DEBORD (2000), uma partida de futebol, durante
um evento como a Copa do Mundo, com seus rituais, protocolos e
atmosfera, é uma representação moderna de um novo produto eco-
nômico oferecido ao consumidor individual. A relação do público com
o esporte é mediada pelo consumo de imagens em uma tela gigante
com altíssima definição, pela música em volume alto de algum astro do
mundo da música, por bebidas e comidas de alguma qualidade. Todos
esses elementos contribuem para melhorar a qualidade do espetáculo
esportivo. Através da mediação de todos esses elementos, os indiví-
duos esquecer-se-iam da dura realidade dos acontecimentos de suas
vidas cotidianas e começam a viver em um mundo conduzido pelas
aparências e fatos de consumo permanente de notícias, produtos e
mercadorias. O show, diz Debord (2000), é a multiplicação de ícones e
imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa,
mas também de rituais políticos, religiosos, esportivos e hábitos de
consumo.
Tais eventos, inseridos no contexto da sociedade do espetáculo,
trazem até os indivíduos tudo aquilo que falta em sua dura vida coti-
diana de pessoas comuns: celebridades, atores, esportistas de suces-
so, gurus e a publicidade. Tudo transmite uma sensação de constante
aventura, prazer, felicidade, grandiosidade e ousadia. O show é o olhar
que dá significado e completude para uma sociedade despedaçada e
dividida. É a forma mais elaborada do extremo “fetichismo da merca-
doria”, no caso aqui exemplificada pelos produtos Copa do Mundo,
Jogos Olímpicos ou Maratona de São Paulo.
O ambiente dos estádios e arenas representa o espaço onde as
206 Prazeres Possíveis

pessoas consomem uma simulação da realidade, conforme atesta o


também pensador francês Jean Baudrillard (1996). Os fãs presentes
nos eventos esportivos são, em todos os momentos, bombardeados
por imagens e sons que nada mais são do que uma representação da
realidade que ocorre diante do público. O objetivo do evento não
é apenas o jogo e a competição em si, mas o consumo do produto
esporte, criando uma atmosfera hedonista voltada para esse fim.
Uma das características da cultura da sociedade pós-moderna, que
Debord (2000) define como sociedade do espetáculo, é, segundo
vários de seus estudiosos, como Fredric Jameson (2005), Mike Fea-
therstone (1995), Zygmunt Bauman (2001) e Jean Baudrillard (1996),
a de ser uma sociedade-cultura de consumo. Esse tipo de sociedade,
que caracteriza o momento em que vivemos, reduz o indivíduo à
condição de consumidor como consequência da automatização do
sistema de produção. Os novos formatos do consumo nessa socie-
dade, ilustrados pelas novas instalações esportivas, estão relacionados
com os meios de comunicação, com a alta tecnologia, com as indús-
trias da informação (buscando expandir uma mentalidade consumista,
a serviço dos interesses econômicos) e com as maneiras de ser e de
ter do homem pós-moderno.
Para Giddens (2002), a mercantilização do consumo participa di-
retamente dos processos da contínua reformulação das condições da
vida cotidiana, gera a chamada “experiência mercantilizada” da vida e
estimula o crescimento econômico ao estabelecer padrões regulares
de consumo promovidos pela propaganda e outros métodos. Como
resultado da produção existe uma “lógica do capital”, nesta socieda-
de-cultura pós-moderna, uma “lógica do consumo” estruturada em
torno do simulacro, do hedonismo, da colagem, do “tudo vale”, da
efemeridade etc. Nesta lógica consumista, tudo é feito no sentido de
atrair o consumidor: as imagens desempenham um papel importante,
os códigos são misturados ecleticamente e os significantes não pos-
suem sentido, pois não apresentam relação alguma.
Em função disso, Featherstone (1995) afirma que o consumo não
deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de
utilidades materiais, mas primordialmente com o consumo de signos.
As selfies se configuram, assim, como produtos da indústria do entre-
tenimento e consumo.
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
207

A selfie, as mídias sociais e o “show do eu”

Selfie é uma palavra em inglês, um neologismo com origem no termo


self-portrait, que significa autorretrato. Normalmente uma selfie é tirada
pela própria pessoa que aparece na foto, com um celular que possui
uma câmera incorporada, como um smartphone.Também pode ser tira-
da com uma câmera digital ou webcam. A particularidade de uma selfie
é que ela é tirada com o objetivo de ser compartilhada em um portal
de rede social como Facebook, Instagram ou Snapchat. Uma selfie pode
ser tirada com apenas uma pessoa, com um grupo de amigos ou mesmo
com celebridades.
Segundo Costa, “selfie é uma foto que alguém tira de si mesmo, geral-
mente com um celular ou webcam, e posta em uma rede social. Assim,
se você tira e não compartilha, não é selfie. Se você não fotografa a si
mesmo também não é” (2015, p. 11). Para Aguirre & Munain (2014), uma
das características necessárias do selfie é a de introduzir o cenário na
imagem. Portanto, três aspectos são fundamentais para caracterizar a sel-
fie: a autoimagem, sua imensa capacidade de difusão pelos sites de redes
sociais e a presença do cenário aonde a fotografia foi tirada.Temos, então,
a fotografia, ou melhor, a autoimagem, na era de “sua reprodutibilidade
cibernética” (AGUIRRE & MUNAIN, 2014).
Em 2013, os responsáveis pelos dicionários da Universidade de Ox-
ford escolheram selfie como a palavra do ano. Um dos motivos para esta
escolha foi o fato de esta palavra ter crescido 17.000% em 2013, o que
confirma o seu estatuto de uma das palavras mais procuradas em um ano
(EXAME.COM, 2013). De junho a outubro de 2014, foram 58 milhões
de selfies (COSTA, 2015). Atualmente, as estimativas são de que sejam
postadas mais de 230 milhões de fotografias por ano.
Os eventos esportivos se convertem, assim, em excelente cenário
para a realização das selfies, uma vez que envolvem um grande núme-
ro de pessoas, seja como público ou como atleta, oferecem cenários e
ambientes extraordinários para as fotografias e fornecem ao seu ator
principal, o autor da autoimagem, aquilo que BOURDIEU (2006) cha-
ma de fator de distinção: o “estar onde outros não estão”. Além disso, e
apesar dos sabidos benefícios da prática de atividade física para a saúde,
relativamente são poucos os indivíduos que iniciam ou mantêm o seu
envolvimento com as corridas de rua apenas em função do seu melhor
condicionamento físico. Outros fatores, como a possibilidade de associa-
208 Prazeres Possíveis

ção com outras pessoas, a sociabilização e o “ver e ser visto”, também


contribuem para que um indivíduo se torne adepto desse tipo de evento.
A noção de comunidade, de convívio, que sempre permeou a vida em
sociedade, está ligada à ideia de um espaço de partilha, a uma sensação
de pertencer a um grupo, de interrelacionamento íntimo a determinado
agrupamento social. Homens e mulheres procuram grupos de que pos-
sam fazer parte, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo o
mais se desloca e muda, em que nada mais é certo (BAUMAN, 2003). A
noção de comunidade, apresentada acima, aponta para um único desejo
do ser humano: o de pertencer a um grupo de indivíduos onde possa, em
algum momento, partilhar sentimentos comuns.
O amor aos eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpi-
cos e a prática esportiva, como as corridas de rua, tornam-se marca de
identificação do indivíduo. Manifestações de fidelidade e paixão por essas
práticas de consumo esportivo criam fortes laços de união entre pessoas
de diferentes classes sociais, etnias ou religião. Historicamente, esses agru-
pamentos passam a partilhar, na expressão do seu amor pelo esporte, um
sentimento de homogeneidade e de ausência de hierarquia, uma sensa-
ção de pertencimento.
Com isso, é cada vez maior o número de espectadores dos grandes
eventos esportivos que, antes, durante e depois de um jogo de futebol
e de uma disputa olímpica, fazem seu autorretrato com a competição
servindo de paisagem. Também cresce o número de participantes de
corridas de rua que, no meio de uma prova, deixam de correr para ser
fotografados por amigos e colegas. Fotografias essas que irão, instantanea-
mente, inundar os sites de redes sociais como o Facebook ou o Instagram.
É a era do acesso (RIFKIN, 2001), a galáxia da Internet (CASTELLS, 2003)
ou a cultura da convergência (JENKINS, 2008).
Na selfie o autor da foto é o protagonista também da cena apresen-
tada e, muitas vezes, a cena é apenas um detalhe de seu corpo (COSTA,
2015). A selfie pode ser entendida como um fenômeno cultural de acor-
do com a concepção estrutural de cultura descrita por THOMPSON
(1995). O que define nossa cultura como “moderna” é o fato de que a
produção e a circulação das formas simbólicas se tornaram desde o fim
do século XV, cada vez mais e de uma forma irresistível, parte de um
processo de mercantilização e transmissão que é, agora, de caráter global
(THOMPSON, 1995).
A atitude selfie, a necessidade de se mostrar, ou aquilo que a antropólo-
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
209

ga Paula SIBILIA (2008) chama de “show do eu”, convertem-se em forte


elemento para a participação cada vez maior de indivíduos em práticas
esportivas, como as corridas de rua e/ou a presença nos megae-ventos
do esporte mundial. A mudança de comportamento dos torcedores e
praticantes de atividades e competições esportivas, com a postura selfie
e o forte apelo econômico e financeiro dos negócios relacionados ao es-
porte, se convertem, assim, em excelente perspectiva para que empresas
tracem estratégias mercadológicas para aproveitamento deste compor-
tamento em prol de suas marcas e organizações em eventos esportivos.
Ao fazer a análise cultural por meio do estudo das formas simbólicas
(palavra, imagem, filme e outros) em relação a contextos estruturados,
THOMPSON (1995) mostra como as regras que dirigem uma socie-
dade, mesmo que não tenham sido formuladas, passam a integrar seu
cotidiano (COSTA, 2015).
Destaca-se, ainda, o fato de as próprias entidades esportivas, como a já
citada FIFA, também estimularem e promoverem ações para a produção
de selfies, ainda que atreladas a alguma campanha cidadã. Exemplo disto
é o que se viu por ocasião da Copa do Mundo de 2014 no Brasil e a
campanha #SayNoToRacism with a selfie! ou “Diga não ao racismo com
uma selfie!” (Figura 1):

Figura 1

Campanha #SayNoToRacism with a selfie! promovida pela Fifa (disponível em


http://www.fifa.com/worldcup/news/y=2014/m=6/news=saynotoracism-with-a-selfie-2354628.html).

Fonte: http://www.fifa.com.
210 Prazeres Possíveis

O consumismo estético encontra, assim, no esporte, amplo campo


para prosperar, principalmente por seu caráter atual, eminentemente mer-
cantil. A cultura está imersa na lógica do lucro que preside a expansão da
forma-mercadoria em todos os campos da vida social. Integrada, como as
demais áreas produtivas, a esfera cultural torna-se componente essencial
de lubrificação do sistema econômico. Parece que há uma espécie de va-
lor potencial de mercado no indivíduo que ganha visibilidade por meio da
crônica imagética que faz de sua vida através dos selfies (COSTA, 2015).
Chama-nos a atenção, igualmente, que também os atores esportivos
estimulem e incentivem o ato de se realizar selfies, surpreendentemente
até na própria arena esportiva e após a realização da competição. Um
dos casos mais emblemáticos nos Jogos Olímpicos de 2016 envolveu o
velocista jamaicano Usain Bolt, uma das mais midiáticas figuras daquele
evento e do esporte mundial. Após vencer a prova dos 200 metros
rasos, o atleta dirigiu-se até a lateral do Estádio Olímpico do Engenhão,
virou-se de costas para o público e, de posse de um aparelho de tele-
fone celular, fotografou-se a si mesmo em meio a familiares e demais
espectadores - todos demonstrando inegável satisfação por partilhar tal
momento (Figura 2):

Figura 2:
Selfie de Usain Bolt e o público nos Jogos Olímpicos de 2016 após vencer a medalha de ouro nos 200 m.

Fonte:Time Sports (http://time.com/4461190/these-are-the-top-liked-instagrams-of-the-rio-olympics/).


O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
211

Além disso, as comunidades virtuais e de mídias sociais, de forma geral,


e aquelas relacionadas aos adeptos dos eventos esportivos, de forma
específica, estão florescendo por todos os cantos do planeta (COSTA,
2002). Há comunidades virtuais e grupos em redes sociais que reúnem
interessados em esportes, em produtos esportivos, em cultura do corpo,
em conhecer pessoas, em se entreter e o que mais se possa imaginar.
Um dos aspectos que mais chama a atenção nos agrupamentos vir-
tuais constituídos por espectadores de eventos esportivos é aquilo que
Paula Sibilia chama de “show do eu” ou a intimidade como espetáculo.
É a “fabricação virtual de si mesmo” (SIBILIA, 2008). O “eu”, motivado
pelo crescimento das mídias sociais, passa a ser o próprio personagem
dos espaços virtuais frequentados por um público, participa dos eventos
esportivos e está cada vez mais afeito à tecnologia. Um número cada vez
maior de fãs enxerga neste tipo de evento o local ideal para se conectar,
para se mostrar, para pertencer, para expor sua satisfação por lá estar.
Esses indivíduos escrevem aquilo que SIBILIA (2008) chama de autobio-
grafia que se torna digital, instantânea e multimídia, da qual o Facebook
e os blogs são alguns dos exemplos mais notórios. Para essas pessoas, e
também segundo SIBILIA (2008), a experiência dos eventos esportivos
serve como parte das experiências de subjetividades nas quais as di-
mensões “íntimas” e “confessionais” são pensadas como “alterdirigidas”
construções de si orientadas para uma exposição que objetiva legitimar
formas de ser e estar no mundo.
As experiências de subjetividades, representada pelas selfies, podem
ser entendidas, também, como fator de distinção desses indivíduos nas
comunidades virtuais das quais fazem parte nas mídias sociais. BOUR-
DIEU (2006) considera que a posição de um indivíduo na estrutura social
determina algumas características comuns com indivíduos ou grupos que
ocupem a mesma posição nessa estrutura. Nesse contexto, para se dife-
renciar dentro de sua classe, os indivíduos atuam de forma a transformar
simples diferenças em distinções, com a finalidade de modificar ou de
conservar sua situação nesse espaço, dependendo da posição ocupada
por eles.
O princípio gerador de tais atitudes é o habitus, definido pela capaci-
dade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de
diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto) (BOUR-
DIEU, 2006), constituindo o espaço dos “estilos de vida”. Estrutura estru-
turante que organiza as práticas e a percepção das práticas, o habitus é
212 Prazeres Possíveis

também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes lógicas


que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto
da incorporação da divisão em classes sociais. Cada condição é definida,
inseparavelmente, por suas propriedades intrínsecas e pelas proprieda-
des relacionais inerentes à sua posição no sistema das condições que é,
também, um sistema de diferenças, de posições diferenciais, ou seja, por
tudo o que a distingue de tudo o que ela não é e, em particular, de tudo
o que lhe é oposto: a identidade social define-se e afirma-se na diferença
(BOURDIEU, 2006).
O habitus, portanto, define não só as práticas comuns aos membros
da mesma classe, como também enfatiza as diferenças que determinam
as posições em seu interior, transformando os estilos de vida em sistemas
de sinais socialmente qualificados, ou seja, em propriedades distintivas
(BOURDIEU, 2006). A presença em eventos esportivos é a prática co-
mum, o habitus, o estilo de vida, dos indivíduos que participam de uma
mesma comunidade, dentro das mídias sociais. A selfie, que registra a
presença do indivíduo no evento esportivo, é a propriedade distintiva, o
sinal que socialmente qualifica seu autor nas redes sociais e que media
seu prazer diante da exposição que faz de si para os outros.

Pesquisa de campo e resultados obtidos

As questões apontadas neste artigo em parte foram resultado de três


pesquisas realizadas, em três grandes eventos esportivos diferentes, com
outras motivações, distintas dos objetivos propostos para este trabalho,
mas que, nos seus instrumentos de coleta de dados, continham pergun-
tas sobre a relação entre selfie e eventos esportivos.
De forma geral, as três pesquisas pretendiam, como objetivo princi-
pal, colaborar para a melhoria da qualidade da gestão dos organizado-
res e promotores de eventos esportivos no Brasil, investindo em um
melhor entendimento do comportamento do consumidor do produto
evento esportivo, principalmente no que dizia respeito aos fatores que
motivaram os indivíduos a comparecer a um jogo da Copa do Mundo,
participar de uma corrida de rua de nível internacional e a assistir a uma
competição, de modalidade com pouca cobertura midiática, no Rio de
Janeiro, durante os Jogos Olímpicos.
Para a realização das três investigações, utilizamos pesquisas qualitativas,
de natureza causal, trabalhando com a análise entre diferentes variáveis
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
213

e o efeito provocado por essas relações (MALHOTRA, 2012). Pretendía-


mos, com isso, estimular, de forma ainda embrionária, o desenvolvimento
de estratégias mercadológicas, unindo esporte e tecnologia, que utilizem
esse tipo de comportamento humano, cada vez mais característico dos
dias atuais. Os respondentes foram abordados aleatoriamente nos espa-
ços esportivos em que se desenvolveram as competições já relatadas.
Muito embora não fosse o propósito principal das três investigações,
os instrumentos de coleta de dados utilizados nos três momentos - Copa
do Mundo 2014, Maratona Internacional de São Paulo 2015 e Jogos
Olímpicos Rio-2016 - continham questões que perguntavam diretamen-
te aos entrevistados se estes realizavam seu autorretrato nos locais das
competições e, posteriormente, publicavam essas imagens em seus perfis
nos sites de redes sociais, como Facebook e Instagram. Os instrumentos
de coleta de dados também continham, nos três momentos, perguntas a
respeito da importância, ou não, do fato esportivo que haviam acabado
de assistir e/ou participar. A intenção destes questionamentos foi a de ve-
rificar, dentro da escala de valor do respondente, se ele estava ali, naque-
le evento esportivo, mais pelo esporte, sua competição e disputa entre
equipes ou nações, ou pelo entretenimento, diversão ou sociabilização.
Para os três estudos foram entrevistados indivíduos que comparece-
ram como espectadores ao jogo Bósnia x Nigéria, da Copa do Mundo de
2014, na Arena Pantanal, em Cuiabá (MT); como participantes da Marato-
na Internacional de São Paulo, em maio de 2015, em São Paulo (SP); e aos
Jogos Olímpicos do Rio-2016, no Rio de Janeiro (RJ), também como es-
pectadores.Todos os entrevistados foram abordados, nos três momentos,
após sua experiência com o esporte. Para uma melhor comparação entre
os dados obtidos, apesar do caráter internacional dos eventos estudados,
as amostras, nas três ocasiões, foram compostas apenas por indivíduos de
nacionalidade brasileira.
A primeira pesquisa que chamou a atenção para a questão das selfies
foi realizada junto a torcedores que foram assistir à partida Bósnia x Nigé-
ria, disputada no dia 21 de junho de 2014, na Arena Pantanal, pela segunda
rodada do Grupo F da Copa do Mundo FIFA 2014. No estudo, que
apresentou como objetivo principal avaliar a percepção dos torcedores
do novo estádio (a Arena Pantanal, construída em Cuiabá - MT - para o
Mundial de futebol), 78% dos 253 entrevistados afirmaram ir ao estádio
para fazer selfies, e, posteriormente, publicá-las nos seus perfis em sites de
redes sociais. Outro dado interessante obtido no mesmo jogo foi o fato
214 Prazeres Possíveis

de, logo após o confronto, no momento das entrevistas, 36% dos pesqui-
sados terem afirmado não lembrar as duas seleções que disputaram a
partida que haviam acabado de presenciar, numa clara demonstração de
que o fato esportivo, o jogo, pouca importância tinha.
Quase um ano depois, em 17 de maio de 2015, em pesquisa realiza-
da na XXI Maratona Internacional de São Paulo, com uma amostra de
164 corredores que participaram daquela competição, quando pergun-
tados, em uma escala de 1 (muito pouco) a 5 (bastante), se a corrida de
rua proporcionava a seus participantes a oportunidade de se socializar
através das redes sociais, a média das respostas atingiu 3,35. O número
obtido demonstra que mais da metade dos entrevistados naquela com-
petição participava de comunidades relacionadas às corridas de rua em
seus portais de redes sociais.
Na coleta realizada após sua participação na Maratona Internacional
de São Paulo, 75% dos 164 respondentes afirmou que, em algum mo-
mento antes, durante ou depois da realização da prova, fez seu autorre-
trato e publicou, ou pretendia publicar, sua autoimagem em seu perfil em
algum site de relacionamento social, como Facebook ou Instagram.
Pouco mais de um ano depois, durante os Jogos Olímpicos do Rio de
Janeiro realizados em agosto de 2016, nova pesquisa foi realizada com o
objetivo de analisar as motivações que levaram o público a comparecer a
competições de modalidades com pouca visibilidade em mídia no Brasil,
como o hóquei na grama, o levantamento de peso e o badminton. Mais
uma vez, na mesma escala de 1 (muito pouco) a 5 (bastante), quando
perguntados sobre a oportunidade que aquele evento dava aos especta-
dores de se socializar através das redes sociais, a média das 65 respostas
obtidas foi de 4,03, equivalente ao nível “muito”.
Quando questionados se realizaram durante o evento seu autorre-
trato para imediata e/ou posterior publicação em seus perfis nos por-
tais de redes sociais, 94% responderam positivamente. Por outro lado,
apenas 48% afirmaram ter ido às competições de hóquei na grama,
levantamento de peso e badminton durante os Jogos Olímpicos Rio-
2016 para torcer ou por ser uma pessoa interessada na modalidade
esportiva em disputa.
Os dados mencionados, embora obtidos em três pesquisas realizadas
com outros propósitos, chamaram a atenção para o fato de que a pre-
sença nos sites de redes sociais, com a divulgação do autorretrato, as sel-
fies, no local do evento, passou a ser uma constante em grandes eventos
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
215

esportivos, funcionando, em muitos casos, como elemento de motivação


para a presença do espectador em competições sobre as quais os indi-
víduos detinham pouco ou nenhum conhecimento técnico e esportivo.
Os resultados dos três estudos apontaram que a atitude selfie, com-
posta pelo autorretrato e sua publicação nos sites de redes sociais, algo
realizado por indivíduos presentes aos eventos esportivos estudados,
funciona como elemento de motivação para a presença nos estádios,
arenas, ginásios e ruas do Brasil. No atual contexto contemporâneo,“estar
presente” é, nos grandes eventos do esporte mundial, tão ou mais pra-
zeroso do que torcer ou participar efetiva e esportivamente da disputa
em si. Para essas pessoas, a experiência esportiva só se completa com a
publicação em suas redes sociais de seus autorretratos ambientados nos
locais das competições. Fazer parte de uma rede social interfere na sua
disposição em participar do evento. Postar sua selfie concretiza a presença
e funciona, no “show do eu”, como o fator de distinção que aponta-
va BOURDIEU (2006). Acredita-se que, muito mais do que o prazer e
a convivência social, muitos indivíduos postam sua imagem apenas pelo
apelo “selfie” ou pelo “show do eu”.

Considerações Finais

As mídias eletrônicas fizeram com que a imagem ganhasse um lugar de


maior destaque na comunicação entre os sujeitos. É a partir delas - espe-
cificamente dos computadores, visto aqui como um dos principais supor-
tes da internet - que se estabelece grande parte das relações humanas ao
partilhar fotografias. Na sociedade atual, os sujeitos se expõem demasia-
damente nas redes sociais, revelando suas identidades, sua privacidade, na
ânsia de uma comunicação e de uma hipervisibilidade, em um verdadeiro
exercício de autopromoção.
É nessa sociedade do espetáculo que as selfies (autorretratos) ga-
nham destaque. Postadas no Facebook, Instagram ou Snapchat, elas são
criadas e manipuladas para que os indivíduos se reinventem da maneira
muito mais como gostariam de ser vistos. Isso fica claro no caso dos
eventos esportivos.
O próprio indivíduo, para se distinguir em suas redes de relaciona-
mento, registra sua presença em um evento esportivo global apenas para
mostrar que “está lá”, às vezes com pouco ou nenhum conhecimento
da competição esportiva que ali acontece. Trata-se efetivamente de uma
216 Prazeres Possíveis

manipulação de sua própria imagem ou da criação de um “perfil para os


outros de sua comunidade” que pode corresponder pouco à realidade
de sua personalidade. Os autorretratos são tirados com o objetivo de se-
rem expostos justamente para os usuários da rede social (que têm acesso
ao seu perfil) enquanto vitrines humanas.
As selfies (autorretratos) representam assim uma personalidade, uma
imagem ideal que pretende ser ostentada. O indivíduo preza pela cons-
trução de uma identidade por meio de imagens que se tornam símbolo
de pertencimento. O esporte e seus grandes eventos funcionam, por
todos os atributos positivos que os cercam, como campo propício para
esta construção de uma autoimagem positiva junto ao seu agrupamento
social de relacionamento.
Pode-se perceber que os espectadores presentes nas três competi-
ções aqui citadas postaram autorretratos no Instagram visando a uma
maior visibilidade, visando a ser “consumidos” pelo olhar do outro. Muito
mais do que o consumo de alguma marca e/ou produto, os produtores
das selfies estão interessados em seu próprio consumo pelas pessoas
que visualizam seus perfis nas redes sociais. Funcionam assim, dentro do
evento esportivo, como fator de hedonismo para esses indivíduos em
seus agrupamentos virtuais.
As mídias sociais trazem aos grandes eventos do esporte como evento
social a possibilidade da espetacularização do “eu”, a gestão do indivíduo,
de si próprio, como uma marca (SIBILIA, 2008). O ato de se autofotogra-
far e de divulgar as imagens em redes sociais instantaneamente parece
dizer: “Eu estou aqui! Sou diferente! Sou especial! Como todo mundo...”
(SIBILIA, 2008), transferindo o prazer do “ver” para o prazer do “ser visto”.
O comportamento deste grupo de indivíduos, cada vez maior nas
redes sociais, aponta para a doutrina do hedonismo conceituada por
Aristipo de Cirene. Se o epicurismo podia ser facilmente identificado na
epifania da forma tal qual vimos em Gumbrecht (a obtenção do prazer
estético no esporte depende de regras de comportamento definidos
pela própria modalidade esportiva), a epifania do registro do espaço es-
portivo feita pelo público por meio das selfies parece não ter limites nem
moderação. Na busca do prazer como bem supremo, espectadores de
eventos esportivos (e até os próprios atletas) não titubeiam diante dos
meios e das possibilidades de ampliar sua fruição imagética. Temos deste
modo não mais um hedonismo em apenas ver o espetáculo, mas em ser
visto como parte do espetáculo - mesmo que alheio por vezes do resul-
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
217

tado da própria competição a que se está assistindo.

Referências
AGUIRRE, Ander e MUNAIN, Gorka. Hacia la cultura visual. In: AGUIRRE, Ander e MU-
NAIN, Gorka. Estudios de la imagen, experiencia, percepción, sentido(s). Santander:
Shangrila, 2014.
BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
________________. Comunidade - a busca por segurança no mundo atual. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 2003.
BIZZOCCHI, Aldo Luiz. Cultura e prazer: o lugar da ciência. In: Cultura Vozes, v. 90, n.º 3,
maio/junho de 1996, p. 95-112.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2006.
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Lisboa: Portugal, 1990.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
CHADE, Jamil. Fifa fatura R$ 16 bilhões com a disputa da Copa do Mundo no Brasil. O
Estado de S. Paulo. Disponível em: <http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,fifa-
-fatura-r-16-bilhoes-com-a-disputa-da-copa-do-mundo-no-brasil,1653669>. Acesso em:
19 mar. 2018.
COSTA, Carlos. A cultura do selfie e a desmaterialização da imagem. In: III Seminário
Comunicação, Cultura Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Faculdade de Comunicação
Social Cásper Líbero, 2015.
COSTA, Rogério da. A comunidade virtual. São Paulo: Publifolha, 2002.
DEBORD. Guy. Society of the spectacle. London: Black & Red, 2000.
ECO, Umberto. A falação esportiva. Em Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo: UNESP, 1997.
EXAME.COM. Palavra do ano, selfie se consolida como mania na internet. Disponível em:
<http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/palavra-do-ano-selfie-se-consolida-como-
-mania-na-internet>. Acesso em: 26 jan. 2018.
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernidade. São Paulo: Studio
No-bel, 1995.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da beleza atlética. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
218 Prazeres Possíveis

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 2ª ed. São Paulo:
Pers-pectiva, 1990.
JAMESON, Fredric. Espaço e imagem - teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2005.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
JORNAL DO BRASIL. Olimpíada deverá movimentar até US$ 1,05 bilhão apenas em
turismo. Disponível em: <http://www.jb.com.br/olimpiada-2016/noticias/2015/08/08/olim-
piada-devera-movimentar-ate-us-105-bilhao-apenas-em-turismo/>. Acesso em: 08 ago.
2017.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora Universi-
-dade de Brasília, 2008.
MALHOTRA, Naresh K. Pesquisa de marketing - uma orientação aplicada. 6ª ed. Porto
Ale-gre: Bookman, 2012.
PORTAL BRASIL. Copa trouxe 886 mil turistas e movimentou R$ 4,4 bilhões. Disponível
em: <http://www.brasil.gov.br/turismo/2014/07/copa-trouxe-886-mil-turistas-e-movimen-
tou-r-4-4-bilhoes>. Acesso em: 15 jul. 2017.
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso - a revolução da nova economia. Lisboa: Presença, 2001.
RUNNER´S WORLD. Corridas de rua têm maior crescimento dos últimos 4 anos. Dispo-
nível em: <http://runnersworld.abril.com.br/noticias/corridas-rua-tem-maior-crescimento-
-ultimos-quatro-anos-280713_p.shtml>. Acesso em: 27 jan. 2018.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 2008.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios
de comunicação de massa. Petrópolis:Vozes, 1995.
SOBRE OS AUTORES
ARY JOSÉ ROCCO JUNIOR - pós-doutor em Ciências da Comunicação pela
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Do-
cente da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/
USP). Líder e fundador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Marketing e Comu-
nicação no Esporte (GEPECOM) da EEFE/USP. Presidente da Associação Brasileira
de Gestão do Esporte (ABRAGESP), Diretor da Asociación Latinoamericana de
Gerencia Deportiva (ALGEDE) e representante regional da World Association for
Sport Management (WASM). É Mestre em Administração pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (2000) e Doutor em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006).

CLAUDIO BERTOLLI FILHO - graduado em História e Ciências Políticas e Sociais,


mestre em História Social, doutor em Ciências pela USP e livre-docente na área de An-
tropologia pela UNESP. Docente aposentado e atuante junto ao Programa de Pós-gra-
duação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru.

EMILLA GRIZENDE GARCIA - licenciada em História pela Universidade Fede-


ral de Juiz de Fora - UFJF (2004). Mestre em História e Sociedade pela Faculdade
de Ciências e Letras da Unesp/Assis e doutoranda do Programa de Pós-Gradua-
ção em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, na linha “Narra-
tivas, imagens e sociabilidades”, com financiamento Capes. Membro do Grupo de
Pesquisa “História e Mídias Eletrônicas” (GPHEM), da Unesp/ Assis e do Grupo de
Pesquisa “CPCINE: história, estética e narrativas em cinema e audiovisual”, da UFJF.

ÉRICO BRUNO VIANA CAMPOS - possui graduação, mestrado e doutorado


pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professor assistente doutor
do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP, campus de Bau-
ru. É líder do grupo de pesquisa do CNPq “Psicanálise: clínica, teoria e cultura” e co-
ordenador do Núcleo de Estudos, Extensão e Pesquisa em Psicanálise (NEEPPSICA)

FLÁVIA ARIELO - graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina,


mestre e doutoranda em Ciência da Religião pela Pontifica Universidade Católica
de São Paulo, desenvolve pesquisa nas linhas de filosofia da religião e arte, com
ênfase em cinema e história da arte. É docente de ética e cultura religiosa na Uni-
versidade do Sagrado Coração em Bauru

JOSÉ CARLOS MARQUES - pós-doutor em História pela Universidade de São


Paulo (FFLCH/USP) e em Sociologia do Desporto pela Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias de Lisboa - Portugal (ULHT). Docente do Programa
de Pós-graduação em Comunicação e do Departamento de Ciências Humanas da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista
(Unesp/Bauru). É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação sobre Espor-
te e Futebol da Unesp) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos
sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP). É Doutor em Ciências da Comunica-
ção pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
LILIAN DOS SANTOS SILVA - graduada em Comunicação Social com habili-
tação em Jornalismo pela Unesp, Mestre em Educação pela Unifesp e doutoranda
em Educação pela USP. Já atuou como professora e como jornalista. Atualmente,
integra a equipe EAD da Escola Digital do Instituto Natura.

MARCELO BULHÕES - livre-docente (UNESP) em Teoria Literária. Doutor em


Literatura Brasileira (USP), Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada
(USP) e Licenciado em Letras (Unesp). É docente e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo da UNESP.

MURIEL EMÍDIO P. AMARAL - pós-doutorando em Jornalismo pela Univer-


sidade Estadual de Ponta Grossa, doutor em Comunicação pela Universidade
Estadual Paulista (Unesp/Bauru), bolsista Capes e mestre pela mesma instituição.
Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Norte do Para-
ná (Unopar/Londrina), onde foi professor dos cursos de Jornalismo, Publicidade e
Propaganda e Desenho Industrial (modalidade virtual).

PAULA FERREIRA VERMEERSCH - graduada em Sociologia e Antropologia,


mestre em Sociologia e doutora em Teoria e História Literária (Unicamp). Do-
cente do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Unesp, campus de Presidente Prudente.

PEDRO LUCAS LEITE PAROLINI - graduado em Educação Física e Esportes


pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Mestre em Ciência pela Escola de Edu-
cação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP). Professor do curso
de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Coordenador do
Grupo de Estudos e Pesquisa em Marketing e Comunicação no Esporte GEPECOM -
UFLA . Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Marketing e Comunicação no Es-
porte GEPECOM - USP. Membro da Asociación Latinoamericana de Gerencia Depor-
tiva (ALGEDE). Membro da Associação Brasileira de Gestão do Esporte (ABRAGESP).

RENAN SIQUEIRA ROSSINI - mestrando no Instituto de Psicologia da Univer-


sidade de São Paulo. Graduado em Psicologia (UNESP) e Filosofia (USC). Desen-
volve trabalho nas áreas de psicanálise, estética e metapsicologia.

ROMILDO SERGIO LOPES - bacharel em Design Gráfico pela Universidade


Estadual Paulista - Unesp/Bauru e Mestre em Comunicação Midiática pela mesma
instituição. Aficcionado por histórias em quadrinhos e com mais de 20 anos atu-
ando na área de design, propaganda e produção editorial, atualmente é diretor de
criação da Avanti Comunicação de Bauru.

VINICIUS CARRASCO - jornalista e docente nas Faculdades Integradas de Jaú


(FIJ e na Universidade do Sagrado Coração (USC). Doutorando e mestre em
Comunicação Midiática pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e especialista em Comunicação nas Organiza-
ções pela USC. É membro do Grupo de Pesquisa Comunicação Midiática e Movi-
mentos Sociais (ComMov)/Unesp e do Grupo de Pesquisa Comunicação, Mídia e
Sociedade (GPECOM)/USC.

Você também pode gostar