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Conselho editorial:
Demétrio de Azeredo Soster • Universidade de Santa Cruz do Sul
Danilo Rothberg • Universidade Estadual Paulista
José Miguel Arias Neto • Universidade Estadual de Londrina
Marcos Tuca Américo • Universidade Estadual Paulista
ISBN 978-85-7249-025-2
Inclui bibliografia
15 Prazeres errantes
Marcelo Bulhões
O
prazer incomoda. Instalado em um terreno nebuloso arqui-
tetado tanto pelas experiências subjetivas quanto pelas re-
presentações coletivas, ele pode ser extraído das pequenas
e das grandes situações do cotidiano e, por estar em qualquer lugar,
não está em lugar algum. A fluidez e a instantaneidade da sensação
prazerosa definem sua condição surpreendente, enigmática e ambí-
gua. Surpreendente pela intensidade e enigmática pela dificuldade
de ser dissecada, racionalizada e transposta para o império do dizível.
Ambígua porque, mais do que em épocas anteriores, a contempora-
neidade impõe que o prazer seja incansavelmente buscado ao mesmo
tempo que multiplica as medidas que inibem e censuram os deleites
considerados afrontosos à moral religiosa, ao decoro público e ao que
se convencionou rotular de “politicamente correto”.
No entanto, a mesma cultura que penaliza os prazeres também abri-
ga amplos espaços de rebeldia, fazendo a história humana se confundir
com sucessivas tentativas de explicitação dos sentimentos e sensações
pautadas pela intensidade. Para além dos limites dos tratados médicos
e psicológicos, temos a nossa disposição textos “malditos” porque em-
penhados em discorrer despudoradamente sobre o prazer, além de
uma profusão de metáforas, iconografias, sons, exercícios corporais e
artefatos que invocam indiretamente o que é proibido.
As múltiplas faces do prazer levam à hierarquização das experiên-
cias realizadas em seu nome. Existem prazeres rotulados de “peca-
minosos” ou “grotescos”, especialmente os suscitados pelas práticas
sexuais, os quais devem ser confinados discretamente entre quatro
paredes, quase como uma experiência vergonhosa. Há também os
prazeres incorporados como “sublimes”, aos quais se concede dig-
nidade cultural e que frequentemente são explorados pelos artistas
“legítimos”.
O ambiente universitário reproduz em seu âmago os valores cul-
turais da sociedade, fazendo do prazer um tema estrangeiro e incon-
veniente para a maior parte dos pesquisadores. Indício desta situação
foi a sucessão de recusas de vários estudiosos frente ao convite para
participar desta coletânea, alguns deles afirmando que o assunto não
lhes interessava, mesmo que ele seja de interesse de todos. Outros
convocados seguiram uma trilha mais sutil, dispondo-se primeiramen-
te em participar da empreitada para algum tempo depois, alegarem
a sobrecarga de trabalho como impedimento para a realização da
tarefa comprometida.
Mesmo assim, houve também aqueles que enfrentaram o desafio
e permitiram a concretização deste livro. A primeira parte da obra
conta com textos que se destacam por distintos enfoques teóricos:
Marcelo Bulhões destaca os obstáculos e reticências de tratar do
tema privilegiado nesta coletânea, enquanto que Renan Rossini e Éri-
co Viana Campos enveredam pelas relações entre psicanálise, estética
e prazer e Romildo Lopes enfatiza oconsumo de mercadorias como
uma das fontes de prazer exaltada na modernidade tardia.
A segunda parte do livro refere-se às representações do prazer
nas artes e na comunicação. Flávia Arielo e Paula Vermeersch focam
o tema na pintura e Emilla Grizende analisa a questão do prazer no
mais típico produto da televisão brasileira: a telenovela. Na mesma
rota, Muriel Amaral explora o conteúdo de uma revista que foge aos
padrões convencionais da imprensa nacional e Claudio Bertolli volta-
-se para a análise de spams que exaltam o prazer a partir de drogas
potencializadoras da sexualidade masculina.
A última parte da coletânea agrega textos que apontam para as
situações prazerosas que se multiplicam no cotidiano e que ainda são
pouco avaliadas como temas de pesquisa, sobretudo pelos estudiosos
brasileiros. Lilian Silva discute o prazer como um dos atos fundamen-
tais da vida acadêmica, a realização de pesquisas, e Vinicius Carrasco
vistoria a prática política como ato prazeroso. Por fim, Ary Rocco, José
Carlos Marques e Pedro Lucas Parolini reportam-se a um dos hábitos
próprios dos dias atuais: as selfies.
Esperamos que a multiplicidade de enfoques apresentados instigue
novos estudos sobre o tema central desta obra e que a leitura desta
coleção de textos seja ela própria uma fonte de prazer e de reflexão.
Os organizadores.
PARTE 1
Pre
limina
res
15
Prazeres Errantes
Em cinco atos
Marcelo Bulhões
I
Tratar do prazer no ambiente científico-acadêmico parece ser um
problema. Será mera impressão ou o prazer e o desejo tornaram-
-se mesmo dificuldade nas últimas décadas na universidade? Pois não
raramente são considerados tema irrelevante. Chegam a ser evitados.
Transposto o vetusto saguão que leva aos corredores dos departa-
mentos de ensino costumam ficar do lado de fora. Falar de prazer em
sua acepção básica - de deleite, gozo - parece ser, de modo latente ou
explícito, sinônimo de torpeza.
O prazer e o desejo são temas que só parecem ter dignidade no dis-
curso acadêmico quando inscritos em chave negativa, apontados como
impossibilidade? (O exemplo mais notável provém, aliás, da área que
mais destacou a questão do prazer - no eixo em que ele é privilegiado,
a sexualidade: a psicanálise). O prazer parece só ter valimento quando
dele salta um feixe utilitarista ou pragmático, como na medicina?
16 Prazeres Possíveis
II
Diálogo fictício entre dois professores.
(Cena 1)
- Estou organizando um livro. Vou chamar colegas de diferentes
áreas para escrever. Você topa?
- Qual é o tema?
- Em termos epistemológicos...
- Qual é o tema?
- Prefiro lhe enviar por e-mail.
- O tema é segredo?
- Bem, é um pouco complexo. Penoso até.
- O tema é penoso?
- Não. O tema é ótimo. Penoso é falar assim, direto.
- Pode falar, poxa.
18 Prazeres Possíveis
(Cena 2)
- Olha, a respeito daquele livro. Sobre o prazer, lembra?
- Ah, você ainda está com essa ideia...
- Pois é. Pensei em convidar o Aristides, professor de História. Ele é
especialista em que mesmo?
- Capitalismo inglês, séculos XVIII e XIX. Período industrial. Proleta-
riado, aquele sofrimento todo.
- Poxa, pensei que fosse em Grécia. Acho que não vai rolar.
- Convide a Elizeth.
- A Elizeth? Mas ela é professora de Latim.
- Hum... Então vou convidar o Lázaro. É professor de Antropologia.
Sabe como é, professor de Antropologia gosta dessas coisas...
- Essas coisas?
- É. Prazer, desejo, uma sacanagenzinha...
- Mas o Lázaro é de Sociologia. Universidade para ele é coisa muito
séria.
- Vixe... Já sei, vou convidar a Mira.
- Opa, acho que ela topa. Se bem que ultimamente ela tem traba-
lhado somente com temas como empoderamento feminino, violência
contra a mulher, machismo, essas coisas. Acho que não rola prazer.
III
Não tenho dúvida de que a maior parte das ações de vertentes
emancipatórias fora e dentro da Universidade - feminismo(s), dis-
Prazeres errantes • Marcelo Bulhões 19
IV
O prazer é uma experiência essencialmente tangível. Não dizível.
Dizê-lo é contorná-lo, ficar nas suas bordas. Ou melhor: conformá-lo.
Dizer sobre o prazer - mediação em um sistema de signos - é buscar
apreendê-lo. Aprisioná-lo?
Quem falar sobre o prazer presta uma espécie de testemunho?
(“Meninos, eu vi”!). O falante do prazer vive sua nostalgia?
Mas se essa parece ser uma condição da linguagem, sua inefável
desventura (a linguagem só pode testemunhar a “coisa”, nunca sê-la),
é de toda linguagem? Todo discurso não pode ser senão expressão
sobre a coisa, nunca ela mesma?
O prazer (como a paixão, a memória, o desespero) nunca é dizível?
Nem tanto.
Ou melhor, para dizer o prazer a linguagem precisa roçar a língua
do próprio prazer. (Narcisismo? Autoerotismo?) Precisa mudar seu
curso habitual. A linguagem precisa deixar de se comportar como
garoto de recado.
Tão necessário.
Tão banal.
Precisa abdicar daquilo que diariamente lhe cobram: ser comunicá-
vel. Precisa abandonar a necessidade de se “fazer entender”.
Trata-se de um gesto de recusa; de desobediência. De vibrante
20 Prazeres Possíveis
V
Em um tempo e mundo em que se escancaram os discursos e
gestos autoritários - censura e condenação moralista no Brasil a ex-
posições de arte e performances em 2017, patrulhamento ideológico
e intolerância à divergência de crenças no lugar da reflexão filosófica -,
onde o prazer encontra expressão? Em que lugar ou lugares ainda se
podem reconhecer seus contornos, sua fala ou seu silêncio - para além
do vetor negativo em que parece estar sendo apontado, das falácias
mercadológicas ou dos clamores desalentadores em que ele acaba se
obliterando?
O prazer - sua afirmação - ainda tem vez?
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Percepção, Psicanálise
e Estética: contribuições
sobre o prazer na feiúra
Introdução
Por que se interessar pelo feio? Grotesco, podre, sujo, repelente,
horrendo, asqueroso, abominável, obsceno, assustador, horripilante,
fétido, desprezível, monstruoso, repulsivo… Os sinônimos da feiúra
parecem evocar as piores sensações em nós e, normalmente, estão
associados a conteúdos que nos causam repulsa. Contudo, se essa
frase é verdadeira, como explicar então que, nos últimos anos, ve-
mos estratégias televisivas que apresentam de forma descarada tudo
aquilo que é grotesco, sujo e perturbador em busca de audiência? A
feiúra não é, aparentemente, repelida pelos telespectador, mas, sim,
consumida com prazer… Sem contar que, na vida cotidiana, estamos
envoltos de vários fenômenos considerados feios e que são vividos
dia após dia por nós: fome, guerra, terrorismo, assassinato, mutilações,
doenças, podendo expandir essa lista indefinidamente.
Como é possível que a feiúra persista próxima de nós se busca-
24 Prazeres Possíveis
mos dela nos afastar? Numeremos algumas hipóteses. Podem dizer que
mantemos com ela uma relação ambígua: não conseguimos derrubá-la
por completo, então aprendemos a suportá-la. Há quem diga que a
feiúra é simplesmente um erro de percurso no caminho de busca da
Beleza, um acidente na trilha da perfeição. Quiçá, podemos encontrar
quem associe a feiúra com os pólos demoníacos das religiões, sendo
o reverso da magnanimidade divina. Qualquer que seja a explicação,
na filosofia estética, nas ciências ou na vida ordinária, prevalece uma
concepção de feiúra que está automaticamente associada ao reverso
da beleza, do bom ou do justo. De uma forma ou de outra, a feiúra
aparece onde a beleza falta. Nesse trajeto, como se fossem conceitos
complementares, bastaria a definição do que é beleza para que a feiúra
estivesse também definida: se a beleza está relacionada à harmonia e à
proporção, cabe ao feio ser tudo que não é belo.
Tendo em vista que a feiúra ocupa papel marginal e secundário nas
correntes estéticas, abriu-se um abismo entre sua conceituação e sua
presença em nossas vidas. Frente a isso, podemos arriscar: e se pro-
puséssemos uma nova forma de olhar para a feiúra, tomando-a como
suficiente em si? Para que a feiúra possa passar da posição permanen-
temente velada aos olhos comuns e ocupar, cada vez mais livremente,
o cotidiano, podemos questionar quais são as influências que devem
atuar nesse modo de agir e ser. Esses apontamentos interessam, princi-
palmente, como pano de fundo para uma investigação mais íntima dos
indivíduos, de seus desejos, anteriores a uma análise social da feiúra,
ainda que essa apareça timidamente.
Partimos de uma hipótese: e se a profundeza da nossa alma, a parte
inacessível e temida do inconsciente, sentisse prazer em admirar o feio?
Evidentemente, nossos processos perceptivos - visuais, táteis, auditivos
etc. - estão imbricados nesse movimento de fruição e prazer: nossa
percepção influencia nossos processos associativos daquilo que experi-
mentamos? Como explicar o prazer na feiúra percebida? Embora pouco
conteúdo tenha sido escrito sobre a temática do feio, propomos com-
preender o feio a partir de sua perfeição por não assumirmos esse como
o pensamento corrente sobre as dimensões estéticas da vida. Por isso,
na tentativa de endossar esse outro lugar para ele, buscamos comple-
mentos teóricos no campo da Psicanálise, cujas formulações adentram
o campo da estética e promovem novos olhares sobre os fenômenos.
Sigmund Freud, o criador da ciência do inconsciente, não se ateve
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
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físico, uma vez que o mundo das ideias é perfeito. Ele foi ainda mais se-
vero com as representações esculturais, dizendo que elas seriam cópias
de um mundo feito de cópia - portanto, duplamente falho. Era a per-
feição ideal que o artista deveria almejar, não apenas a beleza física que
se apresenta aos olhos. Caminhando na mesma trilha, Plotino, outro
filósofo que se deteve ao estudo das artes, considerou que a matéria
era representação do mal e do erro, admitindo que a dimensão sensível
era a fonte de toda a feiúra. Esse prisma estreita as relações entre a
estética e a moral: tudo aquilo que é bom, é belo, enquanto o que for
mal, é feio. As proporções adquirem status moral e a busca pela beleza
se torna também uma busca espiritual.
Mas os gregos não consideravam, necessariamente, que o mundo
era todo belo. De fato, a mitologia grega é recheada de horrores e
maldade. A própria oposição entre apolíneo e dionisíaco já demonstra
que a razão é bela, enquanto as paixões são impuras. Esses elemen-
tos dualistas foram incorporados pela cristianismo, que manteve inú-
meras referências ao modelos de feiúra e horror da antiguidade. Por
um lado, a mitologia pagã foi motivo de falseamento por conta das
monstruosidades que apresentava; por outro, os cristão assumem o
solo terreno como um lugar de pecados e abominações, ostentando o
Paraíso como exemplo máximo de beleza e perfeição. Portanto, havia
um mundo belo de proporções, beleza e bondade, criado por Deus
a sua imagem e semelhança, e um mundo de criaturas horripilantes,
desproporcionais, existindo paralelamente (Eco, 2015).
Como conciliar a ideia de que o universo é belo e bom se existe
nele o mal e a deformidade? Quem tentou solucionar o embate foi
Santo Agostinho (Hinrichsen, 2016), dizendo que o feio não existe no
plano divino: o que existe é a corrupção de um bem precedente, de
tal forma que o corrompido sofre uma privação de valor que, antes da
corrupção, era positivo. Com a noção de pecado, imerge a feiúra e in-
completude do ser humano e a ordem bela dos cosmos está rompida;
para sanar essa problemática, criam-se mecanismos de controle, como
o castigo e a condenação ao inferno - uma das formas utilizadas para
restaurar a harmonia. Nesse sentido, seria impossível o mal e a feiúra
existirem, pelo menos enquanto ideia.
Alguns talvez se dêem por satisfeitos, mas é patente que a feiúra
existe como fenômeno, pode ser percebida e exerce influência em nós.
É o caso de conceber Cristo, flagelado na cruz, como belo. Mas essa
28 Prazeres Possíveis
suas determinações. Mais ainda, Freud faz uma observação valiosa que
não coloca apenas as percepções internas na influência das externas,
mas o próprio corpo como um lugar do qual partem percepções in-
ternas e externas: “o Eu é sobretudo corporal, não é apenas uma enti-
dade superficial, mas ele mesmo a projeção de uma superfície” (Freud,
1923/2011, p. 32). Em uma nota adiciona em 1927, ele continua: “o Eu
deriva, em última instância, das sensações corporais, principalmente da-
quelas oriundas da superfície do corpo” (Freud, 1923/2011, p. 32).
Nesse percurso, cabe pontuarmos algumas contribuições sobre a
temática do inquietante, propostas em 1919. O Unheimliche é a sen-
sação de desconcerto advinda do familiar que se torna estranho e do
estranho que se torna familiar. Não é apenas o novo ou desconhecido
que causa o inquietante, tampouco o horror, o medo ou outras sensa-
ções, mas é o conteúdo familiar e íntimo que, em um dado momento,
se apresenta para o sujeito como estranho, um “estranho retorno do
íntimo” (Cheibub, 2004). A estranheza pode advir tanto de conteúdos
recalcados que reaparecem sob forma de percepções externas - estrei-
tando os laços do conceito com o de percepção endopsíquica -, quanto
de situações que não podem ser representadas pelo sujeito, embora
possam ser percebidas. No primeiro caso, sabemos que os conteúdos
recalcados são majoritariamente desejos sexuais cuja meta de prazer foi
interditada por alguma instância, como é o caso da paterna que instaura
a lei social. No segundo momento, temos um conteúdo de difícil assimi-
lação por diferentes motivos, como situações traumáticas que não po-
dem ser representadas e se transformam, prioritariamente, em angústia.
O que está em jogo é a percepção de um fenômeno que escapa ao
entendimento do sujeito: aos nossos interesses, um desejo interno proi-
bido que reaparece como percepção externa e, concomitantemente,
adquire um estatuto de proibição. Seria o caso de percebermos a feiúra
em relação com nossos desejos, aparecendo como uma inquietante
volta do nosso íntimo?
Psicanálise, percepção e o prazer naquilo que é feio
do desejo faz com que a busca pela sua satisfação ocorra por outras
vias, como é o caso da via corpórea. Não poderia ser esse o caso da
percepção? Uma percepção prazerosa é necessariamente regida pelo
desejo, embora ela não apareça em sua forma habitual, mas deturpada
pelas dinâmicas inconscientes. No caso dos voyeuristas, por exemplo,
a percepção do falo, sua ausência, seus correlatos e diferentes formas
de expressão é essencial para que haja prazer e gozo. Não precisa-
mos ater-nos a classificações específicas: há particularidades que trazem
prazer aos sujeitos sem que eles saibam conscientemente os motivos,
como é o caso da fruição das obras de arte, de assistir a um filme, de
encostar em um corpo quente.
Se até então exemplificamos como é possível sentir prazer em per-
cepções que são genericamente agradáveis para todos, como fica a
feiúra? Arriscamos dizer que pouco importa, tendo em vista que pode
ser a fruição de uma obra de arte fora dos padrões estéticos vigentes,
de um filme sobre dissecação de cadáveres e um corpo tão quente que
dê calor. Todas essas situações envolvem prazeres que não estão dire-
tamente relacionados ao campo sexual, mas podem ser deslocamentos
desse. É o caso da percepção de um mictório que se altera quando
ele passa a ocupar um museu sob o título de “Fonte”, como ousada-
mente fez Duchamp. Esse mictório, que antes era percebido como um
instrumento para excreções, passa a ser percebido como obra de arte,
mesmo sendo esteticamente ordinário. Podemos ir ainda mais longe e
dizer que a escolha pelo mictório não parece ser ingênua: era necessá-
rio que o objeto causasse repulsa, vergonha, distância e estranhamento
para que fosse subvertido em um objeto de prazer.
A trilha para pensarmos as percepções internas e seus derivados
caminha na mesma direção. As primeiras percepções que constroem
a realidade psíquica são frutos dos processos de prazer e desprazer,
onde as boas sensações e percepções internas e externa são assimila-
das por introjeção e passam a fazer parte do mundo psíquico do bebê,
enquanto aquelas que causam desconforto são expelidas. Em um se-
gundo momento, é o teste de realidade que necessita reencontrar esse
objeto, não um objeto que corresponda a sua representação, para se
ter certeza de que ele não é um objeto fantasioso, criado pelas dinâmi-
cas de prazer. O que existirá, futuramente, serão investimentos desses
objetos que vão se agrupar em complexos fantasiosos, cujas energias se
expressam através do desejo.
Percepção, Psicanálise e Estética: contribuições sobre o prazer na feiúra
Renan Siqueira Rossini - Érico Bruno Viana Campos
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O desfecho final fica por conta das relações entre a feiúra e o in-
quietante. Parece ser esse o eixo que mais pode contribuir para a nossa
discussão, por ter sido explorado por Freud e tratar diretamente do
prazer e dos conteúdos estranhos. O inquietante é um conceito que
se refere a algo - podendo ser uma situação, uma pessoa, uma percep-
ção - que não se remete ao misterioso, mas ao estranhamente familiar
daquilo que sempre foi conhecido. Curiosamente, Freud indica que os
sinônimos da palavra Unheimliche (desconhecido) em outras línguas
apontam para paradoxos, coincidindo com seu oposto, Heimliche (fami-
liar). Para que algo se constitua como inquietante, é necessário que ele
tenha sido, anteriormente, familiar, e não apenas ser fora do convencio-
nal. Nesse ínterim, algo aparentemente incompreensível carrega consigo
uma sombra muito conhecida. “Unheimlich seria tudo o que deveria
permanecer secreto, oculto, mas apareceu” (Freud, 1919/2010, p. 338).
A literatura fantástica e os filmes de terror estão repletos de cenas que
causam estranhamento: autômatos que não conseguimos distinguir se
são dotados de vida ou não, a percepção de situações contínuas, que
se repetem automaticamente, e parecem impossíveis de escapar. Cabe
ressaltar que não são todas as situações aterrorizantes que evocam
a sensação de estranhamento: é necessário que ela seja, lá no fundo,
muito bem conhecida. Isso envolve nossas fantasias e desejos proibidos,
que, familiares por habitarem nosso íntimo, mas desconhecidos por não
serem conscientes, assustam quando percebidos.
Encaminhamentos finais
FREUD, S. O Eu e o Id. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
(Trabalho original publicado em 1923)
FREUD, S.Totem e Tabu. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
(Trabalho original publicado em 1912)
FREUD, S. Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen. In: Obras Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015. (Trabalho original publicado em 1906)
FREUD, S. Estudos sobre a Histeria. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016. (Obra originalmente publicada em 1893-1895)
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2013.
FREUD, S. Projeto de uma psicologia. In: GABBI JUNIOR, O. F. Notas a um Projeto
de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
(Trabalho original publicado em 1950/redigido em 1895)
FREUD, S. Sobre as Afasias. In: GARCIA-ROZA, L. A. Afasias. Rio de Janeiro: Ed. Zahar,
2014. (Trabalho original publicado em 1891)
GAGNEBIN, M. La fascination de la laideur. Seyssel: Champ Vallon, 1994.
HANNS, L. A. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago
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HINRICHSEN, L. E. A experiência estética segundo Santo Agostinho: beleza, unidade,
conversão e transcendência. Civitas Augustiniana, 3, 33-65., 2016.
HORSLEY, R, A. Who were the witches? The social roles of the accused in the Euro-
pean witch trials. Journal of interdisciplinary history, vol. 9, pp. 689-715, 1979.
HUIZINGA, J. O Outono da idade média. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
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questão em Freud, Stuart Mill e Lacan. Psicologia USP, v. 10, n. 1, p. 169-197, 1999.
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Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 10, p. 369-397, 2012.
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O prazer do
Consumo e da Posse:
força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade
1
Proposta de Tomás Maldonado no Congresso do ICSID realizado em 1961 em Veneza.
50 Prazeres Possíveis
Quem ama, deseja algo que não tem. Quando se tem, não se deseja
mais, ou se se deseja, deseja manter no futuro, o que significa que não
o tem. E todos só desejam o melhor, ninguém escolhe o mal voluntaria-
mente. (CABRAL, 2019)
(...) Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia
seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu
já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer
me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.
(...) E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob
os meus olhos espantados. (Lispector, 1981, p. 9)
• O gozo da posse
No trecho final do conto de Clarice Lispector, vê-se uma das formas
de exultação do consumo: a posse.
(...) Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que
era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece
que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e
pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no
colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. (Lispector, 1981, p. 10)
• Naturalização e obsolescência
Muito se fala sobre obsolescência programada como um dos mais
importantes ingredientes do capitalismo moderno. Ela descreve a for-
ma como as empresas, de forma sistêmica e programada, estabelecem
um tempo de uso para os produtos. Essa obsolescência é importante
no mercado, pois é o que garante os níveis de produção, inovação e
crescimento, todos caros ao capitalismo desde seus primórdios. Den-
tro das economias de mercado contemporâneas, cristalizou-se a noção
político-ideológica circular de que a qualidade de vida está atrelada à
inserção no consumo; este por sua vez gira a roda da economia; que
gera crescimento e empregos; que garantem a inserção no mercado e
consequentemente no consumo; ad infinitum.
O ouroboros ou uróboro, o nome vem do grego antigo: oura - signifi-
ca “cauda” e boros – devora). É um conceito representado pelo símbolo
em formato circular de uma serpente, ou dragão, que morde a própria
cauda. Simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo. O
símbolo é apresentado com as ideias de movimento, continuidade, auto
fecundação e, em consequência, eterno retorno. O ouroboros é a me-
táfora para a última e também primeira fase no processo de consumo.
Há pouco tempo atrás aposentamos as longevas televisões de tubo
em favor às novidades do momento que eram telas “finas” de plas-
ma. Não demorou muito e logo tínhamos as telas de LED, depois as
de LED em HD (high definition), Smart TV, que finalmente levou aos
aparelhos os recursos tecnológicos da informática e agora definição
em 4K e QLed com telas realmente finas disputam a atenção do con-
sumidor. Em qualquer um desses passos de substituição, ficamos mes-
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
63
Referências
ARNOLD, M.J; REYNOLDS, K.E. 2003. Hedonic shopping motivations. Journal of Retai-
ling, Vol. 79. p.77-95 Badan Pusat Statistik. 2011.
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: a lyric poet in the era of high capitalism. London: Verso,
1997.
CABRAL, J. F. P. “Amor Platônico”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.
com.br/filosofia/amor-platonico.htm. Acesso em 10 de junho de 2019.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
O prazer do consumo e da posse: força e fetiche do produto e o
anti-flâneur da alta modernidade • Romildo Sergio Lopes
65
Representações
nas
e naartes
comunicação
69
Os tormentos do desejo
e as vitórias da beleza na
pintura de Botticelli
os escudos das famílias florentinas Pucci e Bini, bem como dos Médici, e
um novo, Pucci-Bini, criado para o casamento de Giannozzo e Lucrezia.
Em 1483, Botticelli estava de volta a Florença, depois de temporada
em Roma decorando a Capela Sistina. Neste retorno, ou antes, mas de
qualquer forma por aqueles anos, o mestre estaria também envolvido
no trabalho de ilustração de um códice luxuoso da Comédia de Dante
Alighieri (1265-1321) para o primo mais jovem do Magnífico, Lorenzo
di Pierfrancesco de Médici (1463-1503)2.
O tema da história de Nastagio degli Onesti parece saído de um dos
Cantos do Inferno de Dante, e nas telas, Botticelli usa um recurso análo-
go ao dos desenhos para a Comédia- a repetição das figuras para a cria-
ção das sequências narrativas, expediente muito usado na tradição das
iluminuras, e que podemos observar na fig.1, com Nastagio, de manto
púrpura e calças vermelhas, entrando no pinhal de Classe, à esquerda, e
depois com o galho tentando afastar os cães. Na fig.6, um dos desenhos
inacabados de Botticelli para a Divina Comédia, vemos igualmente as fi-
guras de Dante e Virgílio, repetidas no espaço dos túmulos dos hereges,
denotando seus movimentos.
A atmosfera dantesca do conto de Filomena confirma-se logo no
princípio- o pinhal de Chiassi ou Classe é citado por Dante no Purga-
Fig.1. Primeira cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpe-
ra sobre tela: 138 x 83 cm. Madri: Museu do Prado. Foto: WikiCommons.
2
Vermeersch, P. Considerações sobre os desenhos de Sandro Botticelli para a Divina Comédia.
Tese de doutorado, IEL-Unicamp, 2007, disponível em http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/
REPOSIP/27006;2
72 Prazeres Possíveis
Fig.2. Segunda cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpe-
ra sobre tela: 138 x 83 cm. Madri: Museu do Prado. Foto: WikiCommons.
Fig. 3. Terceira cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpera
sobre tela: 142 x 83 cm. Madri: Museu do Prado. Foto: WikiCommons.
Fig. 4. Quarta cena das “Histórias de Nastagio degli Onesti”. Sandro Botticelli, 1483. Têmpera
sobre tela: 142 x 83 cm. Florença: Coleção particular do Palazzo Pucci. Foto: WikiCommons
Fig.5. Canto X, Inferno. Botticelli, c.1481. Ponta de metal, lápis e têmpera sobre pergaminho, 32,5
x 47,5 cm (ilustração inteira).Vaticano: Biblioteca Apostólica, Cód. Reg. Lat. 1896, fol.100 frente..
3
Didi-Huberman, G. Ouvrir Vénus. Nudité, rêve, cruauté. Paris: Gallimard, 1999
74 Prazeres Possíveis
Fig.6. Canto V, Inferno. O encontro com Paolo e Francesca. Iluminura. Siena, séc. XV. Ms 36
Yates-Thompson. Londres: British Library.
4
ALIGHIERI, D. Inferno. Commedia. Edizione di riferimento: a cura di Giorgio Petrocchi, 3 volu-
mi. Milano: Mondadori, 1966-1967. Torino: Einaudi, s/d, e Inferno. Divina Comédia. Tradução de
Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1999
Os tormentos do desejo e as vitórias da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch
75
Fig.7. O Nascimento de Vênus. Sandro Botticelli, 1483. Têmpera sobre tela, 172,5 x 278,5
cm. Florença: Galleria degli Uffizi.
5
Vermeersch, P. A materialidade das penas no Inferno: a corporalidade do infortúnio na Tradição
Clássica. Anais do Colóquio do Grupo de Pesquisa o Corpo e a Imagem no Discurso, Uni-
versidade Federal de Uberlândia, 2017, disponível em http://www.ileel.ufu.br/cid/wp-content/
uploads/2017/06/Anais-CID-2017.pdf
6
O grande estudioso Francesco Mazzoni chega a observar que Dante é mais “moderno” que
seus comentadores, principalmente Boccaccio, que, ao fim da vida, converteu-se e escreveu lon-
gas cartas de arrependimento e obras voltadas à piedade mais convencional. Mazzoni, F. Giovanni
Boccaccio fra Dante e Petrarca. Atti e Memorie dell’Accademia Petrarca di Lettere, Arti e Scienze
di Arezzo, XLII n.s. (1976-1978).
76 Prazeres Possíveis
7
Boccaccio, ao comentar o Canto V do Inferno, fala dos tremores dos desejos dos amantes,
para explicar porque Francesca conta que “tremeu inteira” ao beijar pela primeira vez Paolo.
Desejo, “desiderio”, aparece em toda a Comédia, e o “desiderio” do peregrino Dante se torna
mais e mais ardente, a ponto de “ferver como lava” no Canto XXXIII do Paraíso. É possível
rastrear “desiderio” tanto na Comédia quanto nos comentadores no site Darthmouth Dante
Project, https://dante.dartmouth.edu/, onde os textos estão digitalizados integralmente.
Os tormentos do desejo e as vitórias da beleza na pintura de Botticelli
Paula Ferreira Vermeersch
77
Referências
Do prazer na Beleza:
contemplação e
sublimação estética
Flávia Arielo
(...) meditaram eles sobre sobre as razões que tinham levado a arte a
cair em tão perigosa rotina. Sabiam que as academias se proclamavam
representantes da tradição de Rafael e do que ficou conhecido como
“Estilo Grandiloquente”. Se isso era verdade, então a arte tomara ob-
viamente um rumo errado com Rafael - e por obra dele (1993, p. 404).
1
“Como um contraponto de conexão entre beleza e deidade, tão forte em cenários aristocráti-
cos, que podem realçar a dificuldade de alcançar tal beleza - o relato popular da beleza de Vênus
tende a humanizar a deusa e a identificá-la com meninas reais desse grupo social, tornando-a
assim mais próxima e acessível” (tradução da autora)
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
91
E também Scruton
A beleza está nas aparências, mas elas são também realidades e as coi-
sas que compartilhamos. Nosso interesse nas aparências vem do desejo
de estar em casa quando nos encontramos nos nossos arredores e de
encontrar escrito algum registro das nossas preocupações pessoais no
mundo dos objetos. É no mundo das aparências que nos tornamos o
que realmente somos. (2017, p. 154-155)
Tendo por base Immanuel Kant, Scruton afirma que, a partir da aparên-
cia, os objetos são passíveis de serem contemplados. Isso indica que pode-
mos contemplar o mundo a partir daquilo que a aparência nos permite
ver e assim buscamos sentido no mundo através desse olhar orientador
da aparência. Mas resta a pergunta: como transfigurar os sentidos em
formas, em palavras, ou seja, como transmutar o mundo da aparência em
mundo inteligível? Qualquer tentativa de obter real prazer na transforma-
ção estética da beleza não legaria necessariamente uma falta?
94 Prazeres Possíveis
Hans Holbein, Cristo Morto na Tumba, 1521. Museu de Belas Artes (Kunstmuseum), Basilea.
Do prazer na Beleza: contemplação e sublimação estética
Flávia Arielo
95
o que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor
e de perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que
compreenda objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é
fonte do sublime; ou seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que
a mente é capaz de sentir” (BURKE, 2016, p. 52).
Em seguida, Burke ainda supõe que a relação que o homem trava com
a morte desperta a mais pura sensação do sublime: o sentimento ou a
reflexão sobre a morte ultrapassa qualquer afeto de dor ou prazer, legan-
do-nos um estado para além do comum, para cima (sub-limen) ou para
baixo (sub-limo). Exatamente por isso, quando nos deparamos com o
sublime, as sensações se mostram ambíguas e desordenadas, misturadas
entre si, sem definição clara entre o bem e o mal. As bases traçadas pela
doçura e clareza da beleza não podem se valer dos mesmos parâmetros
para o sublime, pois este adiciona o dionisíaco ao apolíneo - fazendo aqui
um empréstimo da linguagem nietzscheana. O claro e o escuro, o verda-
deiro e o dissimulado, a beleza e a feiura, o divino e o demoníaco: a vida
humana veste a capa do sublime em todas suas incongruências, desde
que o homem perceba sua nulidade diante desses paradoxos e que, a
partir disso, eleve-ve espiritualmente. Dito de maneira clara
98 Prazeres Possíveis
Referências
ARGAN, G. C. História da arte italiana. Vol. 2. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
BERLIN, Isaiah. As raízes do romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
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kimedia.org/wikipedia/commons/thumb/4/47/La_nascita_di_Venere_%28Bot-
ticelli%29.jpg/800px-La_nascita_di_Venere_%28Botticelli%29.jpg> Acesso em
27 mar. 2018.
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folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2018/02/novos-puritanos-nao-en-
tendem-a-natureza-simbolica-da-arte.shtml> Acesso em 29 mar. 2018.
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DOSTOIÉVSKI, F. M. Dostoiévski: correspondências (1838-1880). Porto Ale-
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DOSTOIEVSKAIA, A. G. Meu marido Dostoiévski. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
100 Prazeres Possíveis
FEITOSA, L. C.; FUNARI, P. P. Feeling the roman skin: Unsettled, Conformed and
plural bodies In: Coming to senses: topics in sensory archeology. Cambridge
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PONDÉ, L. F. Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. São
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___________ A filosofia da adúltera: Ensaios selvagens. São Paulo: Leda,
2013b.
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09 set. 2013. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipe-
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XENOFONTE. Memoráveis. Coimbra: Coimbra University Press, 2009. Dis-
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WATERHOUSE, J. W. Hilas e as Ninfas. Disponível em <https://commons.wiki-
media.org/wiki/File:Waterhouse_Hylas_and_the_Nymphs_Manchester_Art_
Gallery_1896.15.jpg> Acesso em 29 mar. 2018.
103
operar nos desdobramentos das tramas. Não é por acaso que a teleno-
vela é transmitida à noite permitindo, durante o dia, quando as pessoas
estão em suas atividades habituais, comentar sobre o desenrolar de
suas tramas. Assim, a telenovela invade o dia a dia do telespectador que
aguarda ansiosamente o desenrolar do capítulo anterior.
Prazer, curiosidade, fantasia e desejo são uma espécie de fórmula má-
gica do folhetim eletrônico, fazendo com que este se fixe na preferência
das plateias populares, possibilitando tamanha identificação com o pú-
blico a ponto de a telenovela se projetar como um elemento referencial
para a constituição do imaginário popular brasileiro.
2
O conceito “cultura política” pode ser entendido como um conjunto de valores, tradições, prá-
ticas e representações, expressos nas expressões artísticas e nas manifestações estéticas compar-
tilhado por um grupo de indivíduos, os quais se identificam a um projeto sistemático de forma
coletiva ou individual (MOTTA, 2013, p. 16-18).
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
107
3
A entrada desses artistas no meio televisivo foi rigorosamente monitorada pela Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP), visto que estes já eram anteriormente visados por suas
posições políticas engajadas. As telenovelas que contivessem em seu texto algum viés político, bem
como abordassem questões comportamentais que fossem consideradas arrojadas na concepção
dos censores foram deslocadas do horário original proposto pela emissora. Com a intenção de
diminuir a repercussão destas obras entre as camadas populares, a Censura de Diversões Públicas
estabelece um novo horário, preliminarmente não previsto na grade de programação, o horário
das 22 horas.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
109
4
Beto Rockfeller foi exibida entre 04 de novembro de 1968 a 28 de novembro de 1969, na TV Tupi,
de São Paulo, e na TV Rio.
5
Com 135 capítulos, Gabriela mesclou sexualidade a questões sociopolíticas como comportamen-
to social, fome, pobreza e o coronelismo, sendo exibida às 22 horas na Rede Globo entre 14 de
abril a 28 de outubro de 1975. Juntamente com O Bem-Amado, Gabriela foi um grande sucesso
internacional.
6
Bandeira 2 teve a supervisão de Daniel Filho e direção de Walter Campos, indo ao ar entre
27/10/1971 e 15/07/1972, pela Rede Globo.
7
No caso particular de Roque Santeiro, em 1975, mesmo tendo a aprovação prévia da DCDP para
exibição às 22 horas, já com 36 capítulos gravados, houve uma censura integral da obra. Ironica-
mente, Dias Gomes afirma que isso se deveu a essa produção ser “atentatória aos bons costumes”
(GOMES, 1998, p. 280). Somente em 1985, com a liberdade propiciada pela abertura política,
Roque Santeiro pôde ir ao ar, sendo a primeira produção televisiva de Dias Gomes veiculada em
horário nobre.
8
Saramandaia, com direção de Walter Avancini, Roberto Talma e Gonzaga Blota, foi veiculada entre
03/05/1976 e 30/12/1976 e contou com 160 capítulos.
110 Prazeres Possíveis
O prazer em O Bem-Amado
9 Os termos em parênteses são expressões peculiares criadas por Dias Gomes para a narrativa
de O Bem-Amado. A postura de político do interior, cuja maior preocupação era falar correta-
mente e com termos rebuscados, acabou levando Dias Gomes a criar a linguagem “apetrechada”
para Odorico, com uma sucessão de neologismos, que passaram a identificá-lo como sua marca
registrada. Esses termos e expressões conferiram ao personagem popularidade junto aos teles-
pectadores, os quais, ávidos pelas “invencionices linguísticas” proferidas pelo prefeito, não deixaram
de empregá-las em suas conversas informais e bate-papos no cotidiano. Sobre o vocabulário
empregado por Odorico Paraguaçu, cf.: DIAS, José. Odorico Paraguaçu: o bem amado de Dias
Gomes. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
112 Prazeres Possíveis
10
Parecer nº. 4166/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Di-
versões Públicas.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
113
quando Odorico faz a seguinte afirmação: “Eu, como candidato das fa-
mílias, acho que toda minha campanha vai ser baseada na seriedade e na
moral”11. Logo depois desta fala a câmera se desloca de cima para baixo,
dirigindo o foco para debaixo da mesa em que se reuniam os perso-
nagens. Esse movimento de câmera permite ao telespectador visualizar
em close Odorico acariciando, com os seus pés, as três Cajazeiras. Ob-
serva-se claramente a disjunção entre o discurso e a prática, posto o
incontestável desacordo entre o que se confessa e aceita publicamente,
e o agir distante do olhar de terceiros. A composição dessa cena evi-
dencia uma crítica à sociedade moralista do período, uma vez que o
discurso não acompanha as práticas de sociabilidade, e os prazeres que
aconteciam abaixo da mesa.
Antenada à modernização de costumes, presente no início da dé-
cada de 1970 e que soprou novos ares para os discursos sobre a se-
xuali¬dade, O Bem-Amado trouxe representações do prazer sexual e
do desejo da mulher, proporcionados pela cisão entre sexo e reprodu-
ção, o que, por sua vez, estava intimamente associada à emancipação
feminina. O arquétipo feminino, representado pela personagem Telma,
“uma mulher bonita com ideias nada provincianas sobre o amor”12,
não divergia da jovem mulher contemporânea à veiculação da novela,
a qual, por meio de modernas formas de expressões de individualidade,
contrapôs-se aos padrões normativos da ideologia da domesticidade,
assumindo novos códigos de sexualidade. Não aleatoriamente, a perso-
nagem foi interpretada pela atriz Sandra Bréa, tida como símbolo sexual
à época (ROLLEMBERG, 2011, p.4). Telma havia vivenciado diferentes
formas de prazer associadas à liberdade individual, recusando-se a se
sub¬meter aos valores tradicionais, indo morar em uma comunidade
hippie, banhando-se nua ao luar13, dirigindo seu jipe, dissociando sexo e
11
O BEM-AMADO, 2012. Disponível no DVD 01, Capítulo 04, de 01:14:53 a 01:16:18 segundos.
Todavia, na telenovela, a cena foi cortada por outras tomadas. Para o melhor entendimento da ação,
a cena foi transcrita em sua integralidade.
12
Esta frase consta na Sinopse da telenovela enviada pela Rede Globo para a DCDP. Disponível
para consulta no Arquivo Nacional/DF. Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas.
13
Esta cena foi gravada, inicialmente, em plano geral, com o intuito de captar todo o ambiente, a
noite de uma a praia deserta. Todavia, assim que a personagem entra em cena, o enquadramento
é alterado para meio primeiro plano. Neste plano, a câmera enquadra somente parte do objeto,
mantendo uma distância média. Acredita-se que a direção optou por esse enquadramento para
sugerir a nudez, mas sem captá-la em sua totalidade, visto que Telma é filmada entrando no mar de
costas, sendo enquadrada somente da cintura para cima. Aventa-se que esse recurso foi emprega-
do a fim de evitar problemas com a Censura Federal, uma vez que era proibida a nudez explícita.
114 Prazeres Possíveis
14
Parecer nº 652/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Diver-
sões Públicas. A descrição da cena consta no parecer citado.
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
115
Considerações finais
15
O BEM-AMADO, 2012. Transcrição do texto narrado, disponível no DVD 10, Capítulo 10, em
03:30:10 segundos.
16
Na composição desse personagem, Dias Gomes utilizou referências do realismo fantástico. Pos-
teriormente, na telenovela Saramandaia, o teledramaturgo retoma a temática, própria dessa cor-
rente literária, por meio do personagem João Gibão (Juca de Oliveira), que voa com suas próprias
asas, também no último capítulo.
116 Prazeres Possíveis
Referências
ANG, I. Melodramatic identifications: television fiction and women´s fantasy. In: Living room
wars: rethinking media audiences for a postmodern world. London: Routledge, 1996.
________. Watching Dallas: soap opera and the melodramatic imagination. London
and New York: Methuen, 1985.
17 Parecer nº 4166/73; Parecer nº 293/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão
de Censura de Diversões Públicas.
18 Parecer nº 293/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Di-
versões Públicas.
19 Parecer nº 652/73, Brasília, 1973. Arquivo Nacional/DF. Fundo de Divisão de Censura de Di-
versões Públicas
Prazer e desejo nas telas: uma análise na telenovela O Bem-Amado (1973)
Emilla Grizende Garcia
117
Prazeres perversos
para além da aberração
e do esdrúxulo:
notas sobre a revista Nin
Introdução
Figura1
Cansei de brincar
de trepa trepa
Fonte: Nin, n.1, p.78-79
Figura 2
Interseções
Fonte: Nin, n.1, pp. 36-35.
128 Prazeres Possíveis
Imagem 7 Considerações
finais
A proposta da revis-
ta, pelas análises realizadas,
perpassa a estética queer de
descomprimir e despressuri-
zar as marcas de identidades
e ofertar o prazer para além
da concebida normativa dos
gêneros, das identidades e
dos desejos. Os lugares de
prazer não se encontram fi-
xos ou previstos, mas fluídos
e em trânsito por entre ho-
mens, mulheres, transexuais,
incluindo também a alimen-
tação, as atividades sinestési-
cas do corpo e dos desejos.
A proposta da Nin não é
exatamente nova, se fizer-
mos um regaste histórico,
Fonte: Nin, n.2, p.93 perceberemos que o pri-
meiro jornal homoerótico
brasileiro, Lampião da Esquina, já apresentava nuances queers, não pelo
erotismo (nesse sentido, o jornal não apresentou nenhuma novidade
fora do esquadro de corpos masculinizados), mas pelo deboche e ir-
reverência com que abordou as sexualidades e as estruturas de poder.
Até mesmo os desenhos eróticos de Carlos Zéfiro dos anos 1950,
conhecidos como catecismos, apresentaram traços queers ao trazer
à tona a sexualidade de modo tão claro em pequenas publicações
ilustradas.
Em 2017, a revista de artes Esse, é produzida no Canadá e veiculada
em inglês e francês, dedicou sua edição inteira para veicular pesquisas
e trabalhos de acadêmicos, artistas e performers que seriam contem-
plados pela estética queer. Destaque para o texto “Islamicate sexualities:
the artworks of Ebrin Bagheri”, de Andrew Gayed. No texto, o autor
apresenta como as homossexualidades foi apresentada pelo trabalho
132 Prazeres Possíveis
Referências
AMARAL, M. E. P; BERTOLLI FILHO, C.; BAPTISTA, M. M. R.T. A perversão como estética
política para a sexualidade: notas sobre a revista Nin. Brasiliana: Journal for Brazilian
Studies, Londres, 2018 (prelo).
BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”.
2ªed. Buenos Aires: Paidós, 2012.
COLASSANTI, A. Aleta Valente, a boca do novo mundo. Nin, v.1, n.2, pp.62-65, 2016.
DUFOR, D.-R. Cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
2012.
FREUD, S. Um caso de histeria: três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos. Rio
de Janeiro: Imago, 1905/1996.
MARINHO, F. O homem nu. Nin. n. 1, v.1, pp.20-35, 2015.
MATA, J. da. Erotismo, sensualidade & sexualidade como potências da vida. Nin, ed. 1,
ano 1, pp. 65-67, 2015.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
STRECKER, M. Aleta Valente: suburbana, mãe solteira, feminista, artista. Revista Select,
n.38, ano 7, pp.64-71, 2018.
135
Promessas de um
Grande Prazer:
a publicidade via spams
1
O documentário com as confidências de Barraclough encontra-se hospedado em: https://top-
documentaryfilms.com/my-penis-and-everyone-elses/
144 Prazeres Possíveis
2
As páginas pesquisadas foram: “Propagandas antigas” (www.facebook.com/Propagandas-anti-
gas-133976306748169/) e “Propagandas antigas brasileiras” (www.facebook.com/ Propagandas-
-antigas-brasileiras-466683513389536/).
Promessas de um Grande Prazer: a publicidade via spams
Claudio Bertolli Filho
147
3
Nesta e nas demais citações, as palavras grafadas em caixa alta reproduzem o texto original.
Alerta-se também que muitos textos de spams contêm erros de digitação, de concordância e de
gramática, os quais foram corrigidos quando apresentados neste escrito.
148 Prazeres Possíveis
A legitimação da oferta
Uma dessas marcas adverte: “Usa Viagra? É porque ainda não experi-
mentou Tesão de Vaca! (...) 100% natural! Não negue fogo nunca mais!”
e “o priapismo causado pelo Viagra pode matar o seu pênis e ele terá
que ser amputado”.
Outro produto, o Vigra Master, apesar de o nome inscrito no rótulo
constituir-se em corruptela da palavra Viagra, discorre mais abertamen-
te sobre a questão:
A solução mais buscada é o famoso azulzinho (Viagra), mas a
verdade é que não vale o risco, ele dilata as veias do coração e
você corre sérios riscos de vida, sem contar os inúmeros outros
efeitos colaterais (...).
Considerações finais
res de uma nova cultura, mas sim – como todos os produtos midiáticos
– resultado da seleção e divulgação maciça de elementos culturais pree-
xistentes à própria ação publicitária. Os comunicadores arregimentam e
combinam tendências variadas, associam em um discurso único e preten-
samente moderno o arquetipal das mitologias clássicas, a herança inte-
lectual de culturas extintas e o moderno da ciência e da tecnologia atual,
permeando tudo isso com o tradicionalismo do machismo ocidental, es-
perando com isso atingir o sucesso de vendas dos produtos ofertados.
A eficiência da publicidade tem como destinatários uma vasta legião
masculina que, apesar de reivindicar a condição pós-moderna, persiste
em entender o prazer sexual como cadenciado pelas dimensões do
pênis. Com isso, os anúncios buscam ganhar poder de convencimento
prometendo o impossível; a constituição de uma pornotopia contem-
porânea reforça um imaginário que, fadado a nunca ser cumprido, pro-
porciona fantasias geralmente não confessadas em nome do pudor e
das normas sociais, sobretudo no contexto do “politicamente correto”.
E são estas fantasias, mais do que a “recuperação sexual” que são ex-
postas pela publicidade e compradas por muitos que têm suas atenções
despertadas pelos spams; certamente não são poucos os que respon-
dem positivamente ao apelo último das mensagens analisadas: “compre
logo; nosso estoque é limitado e a procura é muito grande!”
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PARTE III
Outros
Prazeres
161
O prazer no Universo
Acadêmico:
possibilidades pelo
imponderável da pesquisa
Muito prazer
Este texto debruça-se sobre a pesquisa, tomando-a como um ter-
reno fértil para certos deleites, na grande maioria das vezes, solitários.
Parece covardia desenvolver uma seção com tal abordagem em uma
coletânea que trata do prazer sob tantos vieses atraentes. Ora, o prazer
enquanto deleitar-se, extasiar-se, inebriar-se, arrebatar-se e transportar-
-se em êxtase1 não remete propriamente à produção de pesquisa. Aliás,
o prazer - como algo desmedido e eufórico - contrasta com a pesquisa,
pelo menos a acadêmica, que tem nuances de outros tons. Ela é regra-
da, planejada, contida, exige compostura e seriedade. Por outro lado,
entende-se que a pesquisa requer um mínimo que seja de entusiasmo,
envolvendo, em alguma medida, vivacidade, entrega e rendição, fatores
ligados ao prazer.
1
Acepções de prazer do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa (2010, p. 388).
162 Prazeres Possíveis
2
Estudantes de mestrado e doutorado relatam suas dores na pós-graduação, matéria de Fernando
Tadeu de Moraes, Jornal Folha de S. Paulo, 18 de dezembro de 2017; O doutorado é prejudicial à saúde
mental, matéria de Pablo Barrecheguren, Jornal El País, 26 de março de 2018; There’s an awful cost
to getting a PhD that no one talks about (O terrível custo sobre o qual ninguém fala de ter um
doutorado), relato de Jennifer Walker, Portal Quartz, 12 de novembro de 2015.
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
163
3
Autores que são o foco de duas disciplinas de pós-graduação em Educação cursadas pela autora,
cujas aulas fomentaram esta proposta. Pensamento, Cultura e Educação: Uma perspectiva deleuzia-
na, ministrada pela profa. Dra. Cintya Regina Ribeiro, e Análise dos Cursos Finais de Michel Foucault
V: Subjetividade e verdade (1980-1981), ministrada pelo prof. Dr. Julio Groppa Aquino. Ambas
foram realizadas no primeiro semestre de 2018, na Faculdade de Educação da USP.
164 Prazeres Possíveis
4
Destaca-se aqui a importância do entorno que cerca uma pessoa para que ela tenha minimamen-
te garantida a possibilidade de se envolver de fato com a pesquisa. Nesse sentido, a valorização do
fomento da pesquisa remete à valorização do próprio pesquisador perante a sociedade. Ressalta-
-se, com isso, a universidade como um lugar privilegiado de produção científica e do conhecimento
e não como um mero passaporte à obtenção de títulos. O prazer em ler, estudar, pesquisar tam-
bém conta no jogo da política educacional. Posto isso, ele pode ser estimulado por meio de uma
política consistente de incentivo e valorização à educação ou desmantelado como algo secundário,
sem importância.
5
Neste trecho da entrevista, Deleuze retoma uma ideia dele e de Félix Guattari presente em O
Anti-Édipo (2011).
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
165
Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal che-
misier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja
em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação
não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas,
ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo
sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em
um conjunto. (...) Não há desejo que não corra para um agenciamento.
(...) Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, con-
junto de uma saia, de um raio de sol... (DELEUZE, 1997, n. p.).
P de prazer, p de pesquisa
cada trajeto de pesquisa segue um curso e por isso mesmo não é pos-
sível ter duas pesquisas iguais. No mais, cada pesquisador inventa seu
modo de trabalhar, de mover as peças nesse tabuleiro e de conduzir o
jogo. E essa forma de conduta também se relaciona com o prazer, em
como ele é enquadrado, suscitado e pode ser múltiplo. Por outro
lado, a pesquisa tem seu deleite na medida em que nela se usufrui de
algo que, de alguma forma, se escolheu. Imagina-se que quem pesquisa
opta por algo que lhe tome, que prometa algum tipo de movência, de
vibração, que inspire. Considerando-se o prazer desse modo, há outra
fala pertinente de Deleuze, em sua entrevista do abecedário, referente
à letra P de professor. Nessa passagem, ele explica sua ideia de como
deve ser uma aula:
Tal indicação sobre o fascínio para a aula pode ser aplicada à pes-
quisa, mesmo porque elas se confundem, já que a preparação de uma
aula, pelo professor, envolve pesquisa. Logo, a sedução está constan-
temente em jogo e nos instiga a buscar um tema que provoque o
pesquisador. Vale lembrar que o problema de pesquisa que move a
investigação não é dado na natureza. Trata-se de uma invenção que
surge a partir de um jogo de forças6. Por isso mesmo, imagina-se que
o problema de pesquisa possa ter um quê de visceral para o pesqui-
sador, tanto que é eleito para ser solucionado ou, enfim, desenvolvido,
talhado. Essa atmosfera sedutora, portanto, pode se dar de modo va-
riado, em um arrebatamento, em um incômodo, em um embate. Nes-
se sentido, ao abordar as contribuições de Deleuze e Guattari para as
pesquisas em Educação, Sandra Corazza defende que
“como pôde Lori ter aprendido com Ulisses, mas não aquilo que ele
quis ensinar, e sim algo de que ele nem sequer suspeitava? Que tipo de
aprendizado seria esse? Um aprender que não é conduzido, que não é
orientado pelo outro? Um aprender singular?” (2012, p. 2).
Ou seja, Lori aprendeu com Ulisses sem mesmo que ele soubesse o
que foi ensinado. Eis o imponderável.
7
Anotações da aula do professor Julio Groppa Aquino (2018).
170 Prazeres Possíveis
também com um homem que ela deseja, justo ela que ficou a vida
toda esperando a morte.
Um charme irresistível
8
Destaca-se aqui a participação e a presença do orientador, que pode agir como um agente
que estimula ou não essa caminhada. Entende-se que a possibilidade dessa interlocução é algo
da maior importância para o processo de pesquisa e mesmo para que ele se realize de forma
instigante. Partilhando essa trajetória, a maestria do orientador envolve a capacidade de extrair o
melhor do orientando, contribuindo para que o pesquisador desafie a si mesmo, sem perder de
vista o incentivo ao prazer em cada etapa.
172 Prazeres Possíveis
Um escritor, ou todo homem, deve pensar que tudo o que lhe ocorre é
um instrumento; todas as coisas lhe foram dadas para determinado fim
- e isso tem de ser mais forte no caso de um artista. Tudo o que acon-
tece a ele, inclusive as humilhações, as vergonhas, as desventuras, todas
essas coisas lhe foram dadas como argila, como matéria-prima para sua
arte; ele tem de aproveitá-las. (...) Essas coisas nos foram dadas para que
as transmutemos, para que façamos, da miserável circunstância de nossa
vida, coisas eternas ou que aspirem a sê-lo (BORGES, 2011, p. 213).
esteve pre¬sente, mas aparece sob uma forma jamais vivida, na sua “es-
sência”, na sua eternidade. Resta explicar por que ele sente uma alegria
tão intensa e tão particular. Na apresentação da edição brasileira da
obra deleuziana, Roberto Machado defende que a consistência do pro-
blema do signo para Deleuze se refere a dois pontos fulcrais: os signos
possuem destaque porque, fazendo violência ao pensamento,
A fórmula mágica
9
Outro livro que trata dessa ideia é Zen e a arte do tiro com arco, de Eugel Herrigel. Biblioteca
Editores Independentes, n. 14, 2007.
176 Prazeres Possíveis
que faz o mesmo. Assim a flecha ganha novos rumos e vai seguindo
em uma dissolução de quem atira. Diante dos horizontes que uma
pesquisa pode suscitar a partir de seu registro, o prazer é capaz de
residir na sutileza de um sopro para o futuro pela produção de conhe-
cimento e contribuição científica. Aliás, nesse sentido, quando se trata
de uma pesquisa com arquivo, tal como Foucault o faz, essa forma de
procedimento também seria como um sopro, mas um sopro de vida
aos mortos, aos autores. Segundo essa comparação do professor Julio
Groppa Aquino10, isso é amor ao mundo, pois assim esse arquivo e
esses autores continuam vibrando.
Considerações finais
10
Anotações da aula do professor Julio Groppa Aquino (2018).
O prazer no Universo Acadêmico: possibilidades pelo imponderável da pesquisa
Lilian dos Santos Silva
177
Referências
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181
Reflexões sobre
Prazer e Política
Vinicius Carrasco
Contextualização
como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social, muito mais
do que uma instância negativa que tem por função reprimir.
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca
está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indi-
víduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este
poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder
não se aplica aos indivíduos, passa por eles” (FOUCAULT, 1979, p. 183).
1
Nota do autor: Parte destes aspectos aqui ampliados foram apresentados em minha dissertação
de mestrado e no livro originado da mesma. CARRASCO, Vinicius; BERTOLLI FILHO, Claudio.
#descontent@mento: o que comunicam os protestos brasileiros de 2013. São Paulo: Cultura Aca-
dêmica, 2017.
184 Prazeres Possíveis
Referências
VIZER, E.; FERREIRA, J. Mídia e movimentos sociais. São Paulo: Paulus, 2007.
199
O hedonismo de
Ver e de Ser Visto:
as selfies no esporte como
experiência de prazer
para além do jogo
Para nós, esses juízos mais apocalípticos sobre o esporte não conse-
guem sobreviver quando o apelo estético do esporte é colocado à mesa,
como propõe Gumbrecht. E, a despeito de toda mercantilização possível,
o que dizer da fruição que nos vem sendo proporcionada, já há alguns
anos, por diferentes equipes e jogadores que se têm notabilizado pela
arte das belas jogadas e dos corpos em movimento, capazes de provocar
aquilo a que o mesmo Gumbrecht chamou de epifania:
Figura 1
Fonte: http://www.fifa.com.
210 Prazeres Possíveis
Figura 2:
Selfie de Usain Bolt e o público nos Jogos Olímpicos de 2016 após vencer a medalha de ouro nos 200 m.
de, logo após o confronto, no momento das entrevistas, 36% dos pesqui-
sados terem afirmado não lembrar as duas seleções que disputaram a
partida que haviam acabado de presenciar, numa clara demonstração de
que o fato esportivo, o jogo, pouca importância tinha.
Quase um ano depois, em 17 de maio de 2015, em pesquisa realiza-
da na XXI Maratona Internacional de São Paulo, com uma amostra de
164 corredores que participaram daquela competição, quando pergun-
tados, em uma escala de 1 (muito pouco) a 5 (bastante), se a corrida de
rua proporcionava a seus participantes a oportunidade de se socializar
através das redes sociais, a média das respostas atingiu 3,35. O número
obtido demonstra que mais da metade dos entrevistados naquela com-
petição participava de comunidades relacionadas às corridas de rua em
seus portais de redes sociais.
Na coleta realizada após sua participação na Maratona Internacional
de São Paulo, 75% dos 164 respondentes afirmou que, em algum mo-
mento antes, durante ou depois da realização da prova, fez seu autorre-
trato e publicou, ou pretendia publicar, sua autoimagem em seu perfil em
algum site de relacionamento social, como Facebook ou Instagram.
Pouco mais de um ano depois, durante os Jogos Olímpicos do Rio de
Janeiro realizados em agosto de 2016, nova pesquisa foi realizada com o
objetivo de analisar as motivações que levaram o público a comparecer a
competições de modalidades com pouca visibilidade em mídia no Brasil,
como o hóquei na grama, o levantamento de peso e o badminton. Mais
uma vez, na mesma escala de 1 (muito pouco) a 5 (bastante), quando
perguntados sobre a oportunidade que aquele evento dava aos especta-
dores de se socializar através das redes sociais, a média das 65 respostas
obtidas foi de 4,03, equivalente ao nível “muito”.
Quando questionados se realizaram durante o evento seu autorre-
trato para imediata e/ou posterior publicação em seus perfis nos por-
tais de redes sociais, 94% responderam positivamente. Por outro lado,
apenas 48% afirmaram ter ido às competições de hóquei na grama,
levantamento de peso e badminton durante os Jogos Olímpicos Rio-
2016 para torcer ou por ser uma pessoa interessada na modalidade
esportiva em disputa.
Os dados mencionados, embora obtidos em três pesquisas realizadas
com outros propósitos, chamaram a atenção para o fato de que a pre-
sença nos sites de redes sociais, com a divulgação do autorretrato, as sel-
fies, no local do evento, passou a ser uma constante em grandes eventos
O hedonismo de Ver e de Ser Visto: as selfies no esporte como experiência de prazer para
além do jogo • Ary José Rocco Junior - José Carlos Marques - Pedro Lucas Leite Parolini
215
Considerações Finais
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SOBRE OS AUTORES
ARY JOSÉ ROCCO JUNIOR - pós-doutor em Ciências da Comunicação pela
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Do-
cente da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/
USP). Líder e fundador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Marketing e Comu-
nicação no Esporte (GEPECOM) da EEFE/USP. Presidente da Associação Brasileira
de Gestão do Esporte (ABRAGESP), Diretor da Asociación Latinoamericana de
Gerencia Deportiva (ALGEDE) e representante regional da World Association for
Sport Management (WASM). É Mestre em Administração pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (2000) e Doutor em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006).