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ALGUNS POEMAS PORTUGUESES

ÍNDICE

Alberto Pimenta
PORCO TRÁGICO I
BALADA DITIRÂMBICA DO PEQUENO E DO GRANDE FILHO-DA-PUTA

António José Forte


UMA FACA NOS DENTES
O POETA EM LISBOA
UM HOMEM
RESERVADO AO VENENO
AINDA NÃO
POEMA
AZULIANTE
DECLARAÇÃO
DENTE POR DENTE
LIBERTAÇÃO
MEMORIAL
O BOM ARTÍFICE
RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM
TESES SOBRE A VISITA DO PAPA
EXPOSIÇÃO DADA

Mário Cesariny de Vasconcelos


VOZ NUMA PEDRA
YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO
DE PROFUNDIS AMAMUS
LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS (FRAGMENTO)
AUTOGRAFIA
PASTELARIA
TANTOS PINTORES...
TODOS POR UM
A UM RATO MORTO ENCONTRADO NUM PARQUE
DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO
OUTRA COISA
EXERCÍCIO ESPIRITUAL
PASSAGEM DOS ELEFANTES
HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE
O HOMEM EM ECLIPSE
UMA CERTA QUANTIDADE
O POETA CHORAVA...
POEMA

Alexandre O'Neill
ADEUS PORTUGUÊS
A MEU FAVOR
SABER VIVER É VENDER A ALMA AO DIABO
POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO
AGORA ESCREVO
PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL
SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS
PENSANTES
POIS
VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
PERFILADOS DE MEDO
O REVÓLVER DE TRAZER POR CASA
ANIMAIS DOENTES
PELA VOZ CONTRAFEITA DA POESIA
O QUOTIDIANO "NÃO"
EM PLENO AZUL
AO ROSTO VULGAR DOS DIAS
O BEIJO
UM CARNAVAL

António Maria Lisboa


PROJECTO DE SUCESSÃO

Carlos Eurico da Costa


7

Cruzeiro Seixas
EPITÁFIO
ANDAM DESCALÇOS OS PEIXES
A TUA BOCA ADORMECEU

Herberto Helder
SOBRE O POEMA
O AMOR EM VISITA
SÚMULA
(A CARTA DA PAIXÃO)
AS MUSAS CEGAS
FONTE
BICICLETA
O DIA ORDENA OS CÂNTAROS UM A UM EM FILAS VIVAS
OS ANIMAIS CARNÍVOROS

Luiza Neto Jorge


MINIBIOGRAFIA
A MAGNÓLIA
AS CASAS
A CASA DO MUNDO
AS SOFRIDAS AMORAS
RECANTO 18
RITUAL

Jorge de Sena
UMA SEPULTURA EM LONDRES

António Ramos Rosa


NÃO POSSO ADIAR O AMOR
POEMA DE UM FUNCIONÁRIO CANSADO

José Régio
CÂNTICO NEGRO

Miguel Torga
ORFEU REBELDE

Daniel Filipe
A INVENÇÃO DO AMOR

Alberto Pimenta

PORCO TRÁGICO I

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta


não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.
o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.

BALADA DITIRÂMBICA DO PEQUENO E DO GRANDE FILHO-DA-PUTA

o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.

todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

tudo o que é mau


para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.

II

o grande filho-da-puta
também sem certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande
filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

tudo o que é bom


para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multipliccação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta.

António José Forte

UMA FACA NOS DENTES

0 MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS.

Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas cicatrizes frescas todas as
manhãs, nem estas palavras que envelhecem no curto espaço de um dia. A noite recebe as nossas
mãos como se fossem intrusas, como se o seu reino não fosse pertença delas, invenção delas. Só a
custo, perigosamente, os nossos sonhos largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. A nossa
miséria vive entre as quatro paredes, cada vez mais apertadas, do nosso desespero. E essa miséria, ela
sim verdadeiramente nossa, não encontra maneira de estoirar as paredes. Emparedados, sem
possibilidade de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso amor, assim vivemos. Procuramos a
saída - a real, a única - e damos com a cabeça nas paredes. Há então os que ganham a ira, os que
perdem o amor.

Já não há tempo para confusões - a Revolução é um momento, o revolucionário todos os momentos.


Não se pode confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor.
Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à liberdade. NÃO SE PODE
CONFUNDIR! Quem ama a terra natal fica na terra natal; quem gosta do folclore não vem para a
cidade. Ser pobre não é condição para se ganhar o céu ou o inferno. Não estar morto não quer
forçosamente dizer que se esteja vivo, como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. Há
mortos nas sepulturas
muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela
palavra que toda uma geração de escritores.

A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude
intransigente,para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a
sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica.

Os profetas, os reformistas, os reaccionários, os progressistas arregalarão os olhos e em seguida hão-de


fechá-los de vergonha. Fechá-los como têm feito sempre, afinal, e em seguida mergulharem nas suas
profecias. Olharem para a parte inferior da própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha.
Abandonarem-se desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima
das nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o amor e em seguida fecharem os
olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor.

MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO no meu desespero e na minha
revolta. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que
se extingue em cada homem à vista dos massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram,
pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da infância, por um estandarte negro sobre o
coração, pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos, pelas cidades que chegam durante as
tempestades, pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite - um a um mordem os
pulsos e cantam - sei pelos animais feridos, pelos que cantam nas torturas.

Por isso, para que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a minha revolta, o meu
desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho e que
ninguém se aproxime para aquém dos mil passos

EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU


MEU AMOR

minha aranha mágica agarrada ao meu peito


cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano dois anos um século
agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete o último o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar

DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE


O TEU ÚLTIMO CABELO

O POETA EM LISBOA

quatro horas da tarde.


o poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
tem febre. arde.
e a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

segue por esta, por aquela rua


sem pressa de chegar seja onde for.
pára. continua.
e olha a multidão, suavemente, com horror.

entra no café.
abre um livro fantástico, impossível.
mas não lê.
trabalha - numa música secreta, inaudível.

pede um cigarro. fuma.


labaredas loucas saem-lhe da garganta.
da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

fuma mais. outra vez.


e atira um braço decepado para a mesa.
não pensa no fim do mês.
a noite é a sua única certeza.
sai de novo para o mundo.
fechada à chave a humanidade janta.
livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. canta.

sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

seis da madrugada.
a luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

febre alta, violenta


e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

UM HOMEM

De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda

RESERVADO AO VENENO

Hoje é um dia reservado ao veneno


e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras»
AINDA NÃO

Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca


para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem

ainda não há nada no pulmão direito


ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada


nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça

ainda não há camas só para pesadelos


ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração

POEMA

Alguma coisa onde tu parada


fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão


escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte


beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-Io passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses


numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

AZULIANTE
Este poema é da AIdina

Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte

Choverá muito eu sei choverá muito


e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa
cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente

Certas palavras muito duras quando a noite cai


não devem ter outra origem sabes tão bem como eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente

Digo não Eu digo não


digo o teu nome que diz não

No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore


à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão
para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos

passas tu devagar atirando as moedas


que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera

Meu amor países pátrias têm todos um nome


de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir

No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis


que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase sobre a terra

tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão


com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração
Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal
DECLARAÇÃO

Eu de barba branca a tiracolo


rodeado de fumo por todos os lados vadios
menos pelo lado do mar
com um incêndio à ilharga
e dois artelhos clandestinos
eu salvo miraculosamente para te amar e curar
e esperar o teu regresso glacial e escarlate
que escrevo poemas desde que um rato
me entrou prós pulmões e só por causa disso
eu que disse: há um cancro no mapa universal
e engenheiros, geógrafos, doutores se apressaram a negá-Ia
eu da cintura pra cima de alcatrão e terror
e do umbigo pra baixo de quiosque chinês
eu não espero piedade obrigado

DENTE POR DENTE

Outros antes de nós tentaram o mesmo esforço: dente por


dente: não, nunca olhar de soslaio e manter a cabeça escar-
late, o vómito nos pulsos por cada noite roubada; nem um
minuto para a glória da pele. Despertar de lado: olho por
olho: conservar a família em respeito, a esperança à distância
de todas as fomes, o corno de cada dia nos intestinos. Aos
dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e
do amor, os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no
festivaI das letras, abrir passagem a golpes de fígado para a
saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo
menos doentes exemplares.
Fora do meu reino toda a pobreza, toda a ascese que gane
aos artelhos dos que rangem os dentes; no meu reino apenas
palavras provisórias, ódio breve e escarlate. Nem um gesto de
paciência: o sonho ao nível de todos os perigos. Pelo meu .
relógio são horas de matar, de chamar o amor para a mesa
dos sanguinários.
Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher
a tempo a nossa morte e amá-Ia.

LIBERTAÇÃO

Descerão por paredes sangrentas


e subirão do asfalto
ganindo com um prego na língua
com os pulsos atados às patas
sobre pulmões raivosos em barcos de esterco
e não olharão nem para baixo nem para o alto
mas para a frente
para o horizonte de fatias vermelhas
e para trás
para os afogados sem mar sem terra natal
sem paisagens marinhas
cada um com um buraco em seu peito
esguichando palavras estridentes
descerão atravessando gargantas
e subirão pela espinha a golpes de jejum
descerão empurrando palavras
transportando-as ao pescoço como cintos de salvação
abrindo crateras nas cabeças queridas
e olhos nos olhos dos aflitos
subirão do asfalto
transparentes e feridos
com os olhos nas mãos
a cabeça no sangue
chegarão aos pares ligados pela boca
com um estandarte negro seguro nos dentes
e descerão sempre cada vez mais e cada vez de mais alto
até chegar à orla do inferno chorarem as últimas lágrimas
e partirem de vez

MEMORIAL
As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira
o teu nome que os teus irmãos gastaram
dia a dia e que por fim morreu
atravessado na tua própria garganta
as tuas pernas os teus cabelos percorridos
rato após rato tantos anos
durante tanta alegria que não era tua
os teus olhos mortos eles também
na primeira ocasião do teu amante
assim como as palavras ainda fumegando docemente
sob as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus ombros
tudo finalmente soterrado
para descanso de todos
- mesmo dos que estavam ausentes

O BOM ARTÍFICE

Entretanto
dez séculos mais tarde no local do drama
o diabo
diante do seu fomo
levanta por instantes seus doces olhos
para quatro mil cadafalsos

Vêde
mais além o bom artífice
mostrando
anjos
ou
batéis

ainda uma canção


se gostais
de belas torturas
não ouvireis nada
RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM

Com o focinho entre dois olhos muito grandes


por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual


és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra

TESES SOBRE A VISITA DO PAPA

1.
Ó Estado, mais uma vez podes limpar as mãos à parede
do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus
crimes. Ó partidos, da esquerda e da direita, mais uma vez
podeis beijar os pés ao papa, ficareis com a boca abençoada
para mentir melhor. Explorados, escolhei o crime, escolhei a
mentira. Sois livres. Tu poeta, range os dentes e indigna-te.

2.
Que o Estado venere a Deus na figura do papa, que os par-
tidos venerem o Estado na figura do papa; que os explorados
venerem a Deus, o Estado, o Partido – a trindade omnipotente.
Enfim, o poder temporal subordinado ao poder sobrenatural.
Nem Deus nem senhor? Maldita incurável doença infantil do
Comunismo. Explorado, escolhe o explorador.

3.
O Estado que te submete é republicano e reverencia a
Igreja, o Partido em que militas é marxista e felicita o papa, o
Sindicato onde estás inscrito é revolucionário e saúda a reac-
ção. A greve geral é uma arma que não deve ferir o papa.
Nada contra o obscurantismo. Paz ao inimigo. Quem disse
que a religião é o ópio do povo? Explorados, que escolheis?

4.
Sobretudo, nada de escândalo. Uma pedra branca sobre o
crime, uma pedra negra sobre a crítica. Ecrasez l´infâme, dizia
Voltaire. Uma pedra negra sobre Voltaire. O silêncio dos ateus
é o ouro do Vaticano. Explorado, escolhe a pedra para a tua
cabeça.

5.
Conquistar a liberdade de expressão para não usar a liber-
dade de expressão. Não denunciar o opressor, não ousar ati-
rar-lhe à cara a revolta, sequer na forma de um cravo. Ver,
ouvir, receber o papa com o medo do 24 de Abril. Explorado,
por que não vomitas?

6.
Explorado, sê manso e obedece. Pode ser que entres no
reino dos céus, de camelo ou às costas de um rico. Obedece.
Pode ser que vás para a cama com a Pátria. Obedece. Pode
ser que o teu cadáver ainda venha a ser estandarte glorioso
do Partido. Nunca percas a esperança, explorado, jamais.

7.
Abaixo a união livre. Viva a coexistência pacífica. O casa-
mento do capital e do trabalho vai ser o grande casamento do
Século. Não haverá oposição dos pais nem da polícia. Sobre-
tudo, tudo menos a erotização do proletariado. Felicidades,
explorado.

8.
Ouvi falar de luta de classes e da revolução e do mundo
que o proletariado tem a ganhar e nada a perder. Ouvi falar das
armas da crítica e da crítica pelas armas. Ouvi falar em trans-
forar o mundo e mudar a vida. Ouvi falar de que enquanto
um homem, um só que seja, e ainda que seja o último, existir
desfigurado, não haverá figura humana sobre a terra. Nunca
tinha ouvido uma sereia assim. Ouviste, explorado?

9.
O diálogo? Que diálogo pode haver entre o condenado à
morte e o carrasco que o conduz ao patíbulo? O diálogo é
entre amantes, entre amigos, entre camaradas. Fora disso não
há diálogo. Tens a plavra, explorado.

Lisboa, 1982

EXPOSIÇÃO DADA

Quando em 1922 Dada foi atirado vivo e nu ao Sena, não era para que fosse pescado. Também não era
para ser servido como dobrada à moda do Porto fria. Dada cavalo marinho voador alemão de 1918
nunca foi para vir a ser para concursos hípicos. Dada dador de sangue e barbeiro de Mona Lisa nunca
foi para coisa nenhuma, pela simples razão de ser Dada. Dada quer dizer: uma forma de matar para não
morrer. Nunca foi portanto para aparecer de suicida, de artista maldito, de monstro querido, de vampiro
arrependido, e muito menos de cadáver esquisito.
Se houvesse cadáver de Dada, mas não há, o que vai chegar agora aí embalsamado seria um falso
cadáver. Se houvesse cadáver insepulto de Dada, cheirava mal num continente inteiro. Se houvesse
cadáver de Dada enterrado em vala comum, havia ainda hoje fogo-fátuo que dava para iluminar uma
cidade - exemplo, Lisboa. Como não cheira e tudo permanece muito às escuras, segue-se que não há
cadáver de Dada.
Se houvesse fantasma de Dada, mas não há, já todos os museus do mundo teriam ardido. Como ainda
não ardeu nenhum, é que não há fantasma de Dada.
Dada nunca foi goraz, por isso não pode ser agora peixe frito. Também nunca foi rei do petróleo, não
pode agora pela mesma razão ser irmã de caridade. Se nunca foi ao dentista por causa dos dentes
podres, não pode ter agora o sorriso de Mona Lisa, mesmo com bigode.
Se Dada fosse anti-Dada, estava tudo certo. Como não é, tudo está errado. Só o Surrealismo, que foi
um erro próprio de Dada, é ainda Dada. Só Dada é surrealista, e o humor e o amor o surreal Dada.
O Dada surrealista e o Surrealismo Dada não são formas para arrancar os cabelos da arte, mesmo a
mais cabeluda, se a arte não estivesse irremediavelmente careca, e fosse a cantora que se sabe. Não
são também para efeitos de luz de museu.
A cadaverização de Dada é um segredo que nem Dada conhece, quanto mais quem não. Donde: o
inimigo morto que se vai exibir, para pasto dos gorilas da cultura, não é cadáver de Dada. Porque a
pintura Dada nunca foi pintura, a escultura Dada nunca foi escultura, a poesia Dada nunca foi poesia, e
por aí fora até ao infinito: Dada.
Houve a revolução Dada que ainda está a haver, mas não haverá nunca exposição de Dada.

Mário Cesariny de Vasconcelos

VOZ NUMA PEDRA

Não adoro o passado


não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco e flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada


sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde "a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela"
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
"a machadada e o propósito de não sacrificar-se não constituirão
ao sol coisa nenhuma"
nada está escrito afinal

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

Entre nós e as palavras há metal fundente


entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar


do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos


há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar


há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,


as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos


palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco.

DE PROFUNDIS AMAMUS

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me


os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS (FRAGMENTO)

«Coitado do Álvaro de Campos!»


«Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!»
«Coitado dele, enfiado na poltrona da sua
melancolia!»
«Coitado dele, que com lágrimas (autênticas)
nos olhos,»
«Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita
«Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha
pouco, àquele
«Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes
profissão.»
«Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém
se importa!»
«Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!»
«E, sim, coitado dele!»
«Mais coitado dele que de muitos que são vadios
e vadiam.»
«Que são pedintes e pedem,»
«Porque a alma humana é um abismo.»
«Eu é que sei. Coitado dele!»
*
«Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,»
«Depois o navio a caminho da barra, pequeno e
preto)»
«Depois, ponto vago no horizonte (ó minha
angústia!»

«Ponto cada vez mais vago no horizonte.»

FERNANDO PESSOA, Obra Poética

Há uma hora, há uma hora certa


que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente
gente! olhos, narinas,
bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates,
telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo
aos mictórios para apanhar elétricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do elétrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua
menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.
E agora, neste momento que horas são?
a telefonista guarda o batom na mala pousa os auscultadores ligam eletricamente Lisboa a Santarém
e começou o dia
o pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou
qualquer coisa
para começar o dia
o banqueiro sentou
se, puxou de um charuto cubano,
pensou um bocado na família
e começou o dia
a varina infectou a perna esquerda nos lixos da
Ribeira
e começou o dia
o desempregado ergueu-se, viu chuva na vidraça,
e imaginou-se banqueiro
para começar o dia e o presidiário, ouvindo a sineta das nove,
começou o seu dia sem dar inicio a coisa alguma.

Agora fumo, trepidação,


correias volantes de um a outro extremo da fábrica
isolada,
cigarros meio fumados em cinzeiros de prata,
bater de portas pás! em muitas repartições,
uma velha a morrer silenciosamente em plena rua
e um detido a apanhar porrada embora acreditem
nele.
Agora pranto e pranto
na bata da manicure apetitosa do salão Azul.
Agora, regressão, milhões de anos para trás,
patas em vez de mãos, beiços em vez de lábios,
crocodilos a rir em corredores bancários
apesar das mulheres terem varrido muito bem o chão.
Agora tudo isto e nada disto
em plena e indecorosa licenciosidade comercial
pregando partidas, coçando, arruinando, retorcendo
o fato atrás dos vidros
um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre às
ordens!
(a velha já morreu e no seu leito de morte
está agora um automóvel verdadeiramente aerodinâmico
e a tocar telefonia: and you, and you my darlyng?)
Há uma hora, Isto! Há duas, ISTO!
E eu?

Eu, nada. Eu, eu, é claro...Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto
Penso que a questão é esta: a gente, certa gente
sai para a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem
glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante
altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a...Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou
inteiramente o gato
mas de gato para cima nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira
me o estômago só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão belo
cosida. tão ininteligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por cento hipócritas.

E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente


que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite
foi comprar para o cinema
porque há que ir ao cinema, ele é por força, é por
amor de Deus, ah, não! não! isso não!, não
se atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que, vê o logro? A quem é que isto
cheira a ranço?
Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige
três quartas de cinema
e sim três quartas partes pretas de lã carneira?
Porque é que a pianista compra do Alves Redol
quando está a pensar nas pernas e no peito do louro
galã yankee?
E porque raio despede o senhor Director três humo-
limos empregados
quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda
não viu um que lhe enchesse as medidas?

Com certa espécie de solidariedade


1embro-me de ti, Mário de Sá
Carneiro,
Poeta gato
branco à janela de muitos prédios altos
Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se
todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber,
mas isso é já outra história...)

E com uma solidariedade muito mais viva


lembro-me de ti, meu vizinho de baixo,
sapateiro
branco mas no rés-do-chão, desta
vez
É curioso que não te possas suicidar
só porque a tua janela está ao nível do mundo
e que cantes alegremente de manhã à noite
com uma casa de seis andares em encima de ti.
Também tu foste empurrado, também te disseram:
Fora, gato!
Mas achaste isso quase natural (e não o é, deveras?)
E agora, guardando em ti todas as tuas grandes
qualidades
vais vivendo um pouco à margem, um pouco no
quinto andar

Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo


e decido-me a andar mas para quê ? Mas para
onde ?
As lojas estão todas abertas mas nunca se viu coisa
tão fechada
Ah! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um proletário vê-se logo
mas odeio cordialmente a gataria
e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoológico
me atraem
quanto mais estes! E aqui é que começa o em-
bróglio...
O pouco amor que eu tive à burguesia
deixei-o todo numa casa de passe
quando me perguntaram: quer assim ? Ou assim ?
E agora, era fatal, falto ao escritório,
falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs.
Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa escura que te deram.
Eu
estudei música, como toda a gente

(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)

Não. Por aqui não nos entenderemos.


Estudemos outro papel. Outro fim. Outras músicas.

Recomecemos: Um:
Estes versos não querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em Portugal quer de algum modo
fazer versos versos
está em muito maus lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)

Segundo:
Apesar de tudo, saí para a rua com bastante natu-
ralidade
e que vi eu? Que é isto? (E que esperava eu ver?)

Terceiro:
(e aqui começa, talvez, o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com ele
mas não sou um proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado quem é que disse que pode?

Fiquei-me a vê-lo: primeiro junto ao cais


com um certo ar simpático de proletário dos mares
e apinhado de gente tanta espécie dela! Depois a meio do rio, destacado e nítido,
depois um ponto vago no horizonte (ó minha angústia ! )
ponto cada vez mais vago no horizonte

e de repente, ao virar uma esquina, já depois de


outra esquina,
vejo uma nova espécie de enforcado
um homem novo em cima de um escadote
a colar afixar cartazes deste gênero:

VOTA POR SALAZAR

Paro. Paro de novo. Pararei sempre enquanto


afixarem cartazes deste gênero.
Curioso, curiosíssimo este gênero.
Um chefe não é grande pelo nome que arranjou.
Salazar Xavier Francisco da Cunha Altinho isso que
importa.
Um chefe é grande ,pelas suas obras, pelo amor que
inspira.
Pois os fascistas os nossos bons fascistas
querem que a gente vote por um nome
por um nome calcula essa coisa qualquer que qual-
quer fulano tem!
Vota por Salazar ora pois ó meu povo
vota por sete letras muito bem arrumadas em três
sí-la-bas.

Deito a cabeça para trás para deixar sair a gar-


galhada
e aproximo-me do homem em cima do escadote
aproximo-me tanto que ele nota
alguém que se aproxima
e o braço cai-lhe, grosso, pingando água num balde

AUTOGRAFIA

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!
PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura


nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio


nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante


- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola


antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome


porque assim como assim ainda há muita genteque come

Que afinal o que importa é não ter medo


de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo


à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta


ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

TANTOS PINTORES...

A realidade, comovida, agradece


mas fica no mesmo sítio
(daqui ninguém me tira)
chamado paisagem
Tantos escritores
A realidade, comovida, agradece
e continua a fazer o seu frio
sobre bairros inteiros na cidade
e algures
Tantos mortos no rio
A realidade, comovida, agradece
porque sabe que foi por ela o sacrifício
mas não agradece muito
Ela sabe que os pintores
os escritores
e quem morre
não gostam da realidade
querem-na para um bocado
não se lhe chegam muito pode sufocar
Só o velho moinho do acordeon da esquina
rodado a manivela de trabuqueta
sem mesura sem fim e sem vontade
dá voltas à solidão da realidade.
Titânia e a cidade queimada

TODOS POR UM

A manhã está tão triste


que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?


Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto


sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum.

A UM RATO MORTO ENCONTRADO NUM PARQUE

Este findou aqui sua vasta carreira


de rato vivo e escuro ante as constelações
a sua pequena medida não humilha
senão aqueles que tudo querem imenso
e só sabem pensar em termos de homem ou árvore
pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube)
o milagre das patas - tão junto ao focinho! -
que afinal estavam justas, servindo muito bem
para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar
atrás de repente, quando necessário
Está pois tudo certo, ó "Deus dos cemitérios pequenos"?
Mas quem sabe quem sabe quando há engano
nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer
que não era para príncipe ou julgador de povos
o ímpeto primeiro desta criação
irrisória para o mundo - com mundo nela?
Tantas preocupações às donas de casa - e aos médicos -
ele dava!
Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam?
Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar
e passou nela a roda com que se amam
olhos nos olhos - vítima e carrasco
Não tinha amigos? Enganava os pais?
Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido
e agora parado, aquoso, cheira mal.
Sem abuso
que final há-de dar-se a este poema?
Romântico? Clássico? Regionalista?
Como acabar com um corpo corajoso e humílimo
morto em pleno exercício da sua lira?

DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO

Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito , um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do


outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo , até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos , olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela , aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece , apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado
depois olhas para mim , olhas as tuas mãos , e elas ambas , tão claras ,
tão seguras , são as mãos de um soldado a arder em febre ,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas sabes , tu viste , e mais do que eu; a mão do homem é doce e


iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se , em fileiras angélicas e


gratas , a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra ,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos , o teu cansaço e a


minha miséria , os teus braços e os meus , altos como
cidades , altos como flores

parou o automóvel , lá em baixo , e eu não tenho mais que descer as


escadas , fechar ainda a porta do teu quarto , atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas

OUTRA COISA

Apresentar-te aos deuses e deixar-te


entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo


que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato


de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto

pôr-te na posição sexual


tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato
EXERCÍCIO ESPIRITUAL

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia


é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano


é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

PASSAGEM DOS ELEFANTES

Elefantes na água optimistas à solta


optimistas à solta elefantes na árvore

elefantes na árvore optimistas na esquadra


optimistas na esquadra elefantes no ar

elefantes no ar optimistas em casa


optimistas em casa elefantes na esposa

elefantes na esposa optimistas no fumo


optimistas no fumo elefantes na ode

elefantes na ode optimistas na raiva


optimistas na raiva elefantes no parque

elefantes no parque optimistas na filha


optimistas na filha elefantes zangados

elefantes zangados optimistas na água


optimistas na água elefantes na árvore

HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE

Aos pés do burro que olhava para o mar


depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou


com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

O HOMEM EM ECLIPSE

Ora foi que certo dia


o homem eclipsou-se
a data digam a data
a datazinha faz favor
qual data foi por decreto
que a gente se eclipsou
foi só manobra espertice
um dois três e pronto é noite
que nem a lua apareça
seja de que lado for
Uns seguraram-se logo
eram espertos bem se viu
outros cairam ao mar
com cabeça pernas e tudo
quanto a mim perdi a calma
fiquei desaparafusado
tradição cultura estilo
certeza amigos fatiota
tudo fora do seu sítio
um desaparafuso terrível

Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar
o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar

UMA CERTA QUANTIDADE


Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura


duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse


que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro

O POETA CHORAVA...

O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
nelas buscava Uma estrela talvez a salvação?
O poeta era sinceríssimo
honesto
total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões

E agora o poeta começou por rir


rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva

Tirai-lhe agora os poemas que ele próprio despreza


negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA DESTROI-VOS

POEMA

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos
Alexandre O'Neill

ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos


vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo


à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira


onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo


em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo


à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces


esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira


da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante


que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti .

A MEU FAVOR

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.
SABER VIVER É VENDER A ALMA AO DIABO

Gosto dos que não sabem viver,


dos que se esquecem de comer a sopa
((Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,


transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.


Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!


Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;


não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:


vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,


confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes


nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra
[morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,


enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do


[trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

Saber viver é vender a alma ao diabo,


a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim...

POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo


pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo


fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais


países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo


tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo


quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

AGORA ESCREVO

Que queriam fazer de mim?

Uma palavra, um gemido obsceno,


Uma noite sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte ,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida , resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos , o segredo


Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim-de-semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas , no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo - o mar ...
Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te meu amor, dos passeios que demos


Pela cidade? Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionamos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor.
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade ,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir ,
Olhos já sem angústia, sem esperança, sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir ( oh! que vergonha!...)
Com a gente " ordinária", e calados
Descemos até ao rio - e ali ficámos
A ver !

O amor continua muito alto,


Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil : maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia,
Paciente e natural em cada dia,
Profundo e ao mesmo tempo aéreo,
Verde e simples,
Como uma árvore!

Ganhámos juntos o que perdemos separados:


A luz incomparável, esta luz quase louca
Da primavera, esta gaivota
Caída dos ombros da luz,
E a leve , saborosa tristeza do entardecer,
Como uma carta por abrir,
Uma palavra por dizer...
Ganhámos juntos o que vamos perdendo
Separados:
A alegria - inocente
Cidade,
Coração aberto pela manhã,
Pequeno barco subindo
Nitidamente o rio,
Fumegando, fumando
Com o seu ar importante de homenzinho....
E a ternura - beijo obrevoado
O teu rosto fiel,
Fogo intensamente verde sobre a terra,
Intensamente verde nos teus olhos,
Pequeno " nariz ordinário"
Que entre os meus dedos protesta
E se debate....

Duas árvores de avanço,


Uma corrida louca ....
... E o teu coração na minha boca !

E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir ,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza , a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!

Ganhámos juntos o que vamos perdendo separados.

Flechas Velocíssimas
Nos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar!

Nos nossos sonhos entrava gente viva,


Entravam cartas, poeams , versos
Tão cheios de sentido como ruas
E ruas plenas de ritmo e sentido,
Como os melhores versos.
Entravam amigos, desejos lutas
E esperanças comuns,
Recordações, amores antigos
Como navios perdidos muito ao longe
Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio,
Leituras discutidas, evocadas: sonhos
E destinos próximos , tristezas e alegrias semelhantes,
Vidas exemplares,
Vidas fulgurantes de vida !

Michaud, o que dizia


A cada passo : " Et comment!"
Par exprimir o seu apego à vida,
A sua indomável alegria!
e N-2 e Berta,
Um ao outro presos
Como fantasmas,
Mas vivendo e ajudando a viver !
E Éluard, os seus poemas
Simples como gestos de alegria,
Directos como palavras
De justa cólera,
Irreprimíveis como beijos
Quentes de ternura,
Completos como pássaros
Rápidos no azul !
E muitos outros ainda,
Muitas outras vidas,
Reais ou inventadas
Exemplarmente do real!

Nos nossos dias entravam dúvidas e erros,


A terrível solidão de certas horas
Sem um ombro amigo,
O coração abandonado, flutuando
Como um peixe morto, um resto
De calor dentro do frio.

Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar " em obras", de instalar
Em cada dia um " problema"
E de dourar
O " problema" de cada dia ...

Mas não só a dúvida e o erro


O coração entornado, a cabeça perdida
Entravam nos nossos dias ,
Porém
Tratava-se de realizar.

"Realizar" : fazer passar


Para a realidade,
Pôr em prática os sonhos,
Ideias, teorias.
Por exemplo : a indústria,
A agricultura realizam
Certas teorias
Químicas, físicas,
Biológicas.
Por exemplo : hoje
Estão a ser realizados
Os mais velhos
Sonhos do homem.
Por exemplo - mais pessoal
Mas não menos importante :
Em ti
Via realizados os meus sonhos !

PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL

A uma luz perigosa como água


De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos

(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da


provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)

Por isso fecho os olhos


E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher

E sob a forma desejada


A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços

Experimento um grito
Contra o teu silêncio

Experimento um silêncio

Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos

Assobio às pequenas esperanças


Que vêm lamber-me os dedos

Perco-me no teu retrato


Horas seguidas

E ao trote do ciúme deito contas


Deito contas à vida.

SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS


PENSANTES

1
Não te ataques com os atacadores dos outros.

Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.


O mesmo deves fazer com os açaimos.

E com os botões.
2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.

Depois, faz um berreiro.


Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...

Esta deve ser a tua filosofia.

5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.

Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

É provável que te sintas logo muito melhor.

Sai, então, de baixo da pedra.

7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro.


Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.
8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!

9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece.

10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem
de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.

11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.

POIS

O respeitoso membro de azevedo e silva


nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini


vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões

Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.

VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA


Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser


e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:


de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser


se não fora
não querer.

(-Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam


Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas


Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama


Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam


Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes

PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos


o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,


perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,


o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,


já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

O REVÓLVER DE TRAZER POR CASA

Querem fazer de mim o revólver de trazer por casa,


Fizeram já de mim o revólver de trazer por casa,
Aquele que toda a gente, uma, duas vezes na vida,
Encosta por teatro a um ouvido
Que acaba por se fechar envergonhado.

Um bom revólver domesticado:


Algumas noções de pré-suicídio, mas não mais,
Que a vida está muito cara e a aventura
Nem sempre devolve o barco que lhe mandam.
Quem espera por mim não espera por mim
E talvez me encontre por um acaso distraído.
Mas no meu obsceno mostruário de gestos,
Guardo o mais obsceno
Para quando a ilusão se der...

ANIMAIS DOENTES

Animais doentes as palavras


Também elas
Vespas formigas cabras
De trote difícil e miúdo
Gafanhotos alerta
Pombas vomitadas pelo azul
Bichos de conta bichos que fazem de conta
Pequeníssimas pulgas uma sílaba só
Lagartos melancólicos
Estúpidas galinhas corriqueiras
Tudo tão doente tão difícil
De manejar de lançar de provocar
De reunir
De fazer viver

Ou então as orgulhosas
Palavras raras
Plumas de cores incandescentes
Altos gritos no aviário
E o branco sem uso
Imaculado
De certas aves da solidão

Para dizer
Queria palavras tão reais como chamas
E tão precárias
Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte
No discurso de fogo
Logo extintas na combustão das próximas
Palavras que não esperassem
Em sal ou em diamante
O minuto ridículo precioso raro
De sangrar a luz a gota de veneno
Cativa das entranhas ociosas.
O QUOTIDIANO "NÃO"

Estamos todos bem servidos


de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.

Pão é claro que temos


(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»

não figura nesta prosa


assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,

recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão

a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,

que nunca viu no tal saco


o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:

- Para dizer a verdade,


eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação

(ou na minha...) e que sentia


como eu a solidão
e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção

de quem hoje nos fornece


o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,

até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...

PELA VOZ CONTRAFEITA DA POESIA

Dá-nos os passos os teus passos


de manhã triunfal de cidade à solta
os gestos que devemos ter
quando a alegria descobrir os dedos
em que possa viver toda a vertigem
que trouxer da noite
os primeiros dedos do sonho
do teu sonho nosso sonho mantido
mesmo no mais íntimo abandono
mesmo contra as portas que sobre nós:
em silêncio e noite
em venenosa ternura
em murmúrio e reza
se fecharam já
mesmo contra os dias vorazes
que por todos os lados nos assaltam
e consomem
mesmo contra o descanso eterno
a viagem fácil
com que nos ameaçam vigiando
todo o percurso do nosso sono
interminável sono coração emparedado
no muro cruel da vida
desta que vivemos que morremos
assim esperando
assim sonhando
sonhando mesmo quando o sonho
ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós
e é o gemido sem boca
a precária luz que nem aos olhos chega

Não digas o teu nome: ele é Esperança


vai até aos que sofrem sozinhos
à margem dos dias
e é a palavra que não escrevem
sobre as quatro paredes do tempo
o admirável silêncio que os defende
ou o sorriso o gesto a lágrima
que deixam nas mãos fiéis

Não digas o teu nome: quem o não sabe


quem não sabe o teu nome de fogo
quem o não viu entrar na sua noite
de pobre animal doente
e tomar conta dela
mesmo só pelo espaço de um sonho

O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam

As coisas também gritam por ti

E as cidades as cidades que morreram


na mesma curva exemplar do tempo
estão hoje em ti são hoje o teu nome
levantam-se contigo na vertigem
das ruas no tumulto das praças
na espera guerrilheira em que perfilas
o teu próprio sono

Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono

Onde está o amor a sublime


rosa que os amantes desfolhavam
tão alheios a tudo raptados
pela mão aristocrática do tempo
o amor feito nos braços no regaço
de um tempo fácil
perdulário
vosso

Hoje não é fácil o tempo


já não é vosso o tempo
viajantes do sonho que divide
doces irmãos da rosa
colunas do templo do Imóvel
prudentes amigos da vertigem
deliciados poetas duma angústia
sem vísceras reais
já não é vosso o tempo.

Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo

Impossível

Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela


neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia

Impossível
Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes

Mas de repente voltas


numa dor de esperança sem razão de ser

Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto


é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavra!
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação

É tempo de acordar nas trevas do real


na desolada promessa
do dia verdadeiro

Nesta luz quase louca


que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mais bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo

EM PLENO AZUL

Com horror mal disfarçado


sincero desgosto (sim!)
lágrima azul aflita
mão crispada de piedade
vêem-me passar cantando
calamidades desastres
impossíveis de evitar
as mães
as minhas a tua
as que estropiam ternamente os filhos
para monótono e prudente
avanço da família

E quando páro e faço a propaganda


dos lugares mais comuns da poesia
há um terror quase obsceno
nos seus olhos maternais

Então prometo congressos


em pleno azul

Prometo uma solução


em pleno azul

Prometo não fazer nada


em pleno azul

sem consultar o «bureau»


em pleno azul

Visivelmente sossegadas
é a hora de não cumprir
de recomeçar cantando
calamidades desastres
ruínas por decifrar

Se eu não estivesse a dormir


perguntaria aos poetas
A que horas desejam que vos acorde?

Vamos decifrar ruínas


identificar os mortos
dormir com mulheres reais
denunciar os traidores
e atraiçoar a poesia
envenenada nas palavras
que respiram ausência podre
vamos dizer sem maiúsculas
o amor a vida e a morte

E as mães
onde estão elas?

As mães rezam as mães


cosem farrapos de dor
as mães gritam
choram
uivam
no espesso rio de um sono
já quase só animal

AO ROSTO VULGAR DOS DIAS

Monstros e homens lado a lado,


Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

Ao rosto vulgar dos dias,


A vida cada vez mais corrente,
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

Imaginar, primeiro, é ver.


Imaginar é conhecer, portanto agir.

O BEIJO

Congresso de gaivotas neste céu


Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
QUrela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (não é meu...)


De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha colorida,


Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,


De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

UM CARNAVAL

Vam ao baile vem ao baile


Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris

Deixa a tristeza roer


As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber

Vem ao baile das palavras


Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças
Vem ao baile, oh tens que vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir

Vem ao baile da loucura


Vem desfazer-te do corpo
E quando caires de borco
A tua alma é mais pura

Vem ao baile vem ao baile


Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar

António Maria Lisboa

PROJECTO DE SUCESSÃO

Para o Mário Henrique

Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua


continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária


amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora


pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.
Carlos Eurico da Costa

Neste dia meu amor


os meus dedos são o candelabro que te ilumina
o único existente.

E o homem
sua esfera perdida em mãos alheias
é o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o límpido cristal corrompido
o defunto.

E este patíbulo onde o próprio carrasco se enforcará


eu o digo
será erguido como símbolo de todos os homens.

Aqui a hora vai sendo longínqua meu amor e solene.


O caminho é grande o tempo tão pouco
tenhamos muita esperança e muito ódio
e vítreas flores a ornar o teu cabelo
porque serei o homem para as transportar
e tu a última mulher que as aceitará.

E enquanto assim for


erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas
a nebulosa
que dizem estar a milhões de anos-luz
mas não acreditemos bem o sabes
porque em verdade a temos em nossas próprias mãos
oculta para a contemplarmos agora.
Cruzeiro Seixas

EPITÁFIO

Atravessam os ciprestes
bicicletas
com cidades velozmente antigas
na memória.

Descem as escadas de caracol em mármore


que há por dentro de todos os ciprestes
outras paisagens
tão longas quanto transparentes
e indecifráveis.

A hora indefinida
tem um lago em cada face
e para lá da linha esticadíssima do horizonte
há túmulos esventrados até ao infinito.

As palavras são verdes


e as horas esperam o luar
imitando as fontes.

ANDAM DESCALÇOS OS PEIXES

Andam descalços os peixes


circulam dentro do seu mar interior
vestidos de brocados
agitando no ar campainhas de oiro.

Não mais haverá teatro


quando os guindastes
descobrirem o seu próprio sexo
de aço.

Atravessem embora os namorados os aquedutos,


sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias
navios líquidos se reproduzirão
por toda parte.
E por sobre as tempestades
navegarão
rumo ao porto mais distante
indestrutíveis palavras sem nexo.

A TUA BOCA ADORMECEU

A tua boca adormeceu


parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.

Mas as palavras querem voltar à terra


ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.

E há um cão de pedra como um fruto


que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de oiro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.

As lágrimas que não chorei


arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.

Assim é ao mesmo tempo


que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de oiro
que além flutua.

Herberto Helder

SOBRE O POEMA

Um poema cresce inseguramente


na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo.


Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.


Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora


a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra


e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.


Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.


E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos,navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina


e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro


pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeia o acordar das ervas e a estrela


despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,


tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distãncia amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura,
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,


a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza partida,
os ombros violados,
o sangue penetrado de paredes nuas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
se transfiguram, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti


que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma


o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta


que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
por teu poder angélico e fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,


eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,


é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,


onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria dos instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura


com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa gratidão.

Felizmente estás na pedra e a pedra em mim, ó urna


salina, imagem fechada em sua pungência e castidade.
E o que se perde em ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite,
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de angústia e prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade


inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento


na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.


Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim o instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo,
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso deserto, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto,
- no amor mais impossível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz


o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Corre em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo do meu ardente pensamento.
Onde estará o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E eu peço ao vento: traz do espaço a luz inocente


das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Ó amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,


o povo renasce,
o tempo ganha alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se


entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz encanta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

SÚMULA

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.


Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas


próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.


Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.


Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,


líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.


Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como


direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados


agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.


Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.


Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.


Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.

(A CARTA DA PAIXÃO)

Esta mão que escreve a ardente melancolia


da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

AS MUSAS CEGAS

AS MUSAS CEGAS I

Bruxelas, um mês. De pé sob as luzes encantadas.


Em noite assim eu extinguiria minha alma
cantando humildemente. Fecharia os olhos
sob os anéis dos astros, e entre os violinos
e os fortes poços da noite descobriria
a ardente ideia da minha vida.
Em noites assim amaria o fogo
da minha idade. Cantaria como um louco este grande
silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas
as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos
e a cândida e ligeira arquitectura
de uma vida.

Bruxelas com as traves da minha cabeça


e uma grinalda de carvões em torno dos testículos
de um homem
bêbado da sua idade. Cantaria com estes testículos
negros, as lágrimas, o coração ao meio do nevoeiro
derramando o seu baixo e aéreo sangue,
a sua dor, o lírico
fervor, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos.

Era tão pura a ideia de que o tempo começava


depois do verde e fértil e exaltado
mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto
ardia,
a vida esperava com sua torres
vibrantes, seus grandes lagos
límpidos. E eu adormecia
e sonhava um homem em voz alta, um vidro
incandescente, uma fina flor
vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até que voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.
- Cantar fixa e fria e intensamente
sobre a minha rasa
luminosa vida, ou sobre os campos transparentes e sombrios
de bruxelas do mundo.

AS MUSAS CEGAS II

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada


pelas vozes.
E enquanto dorme o leite, a minha casa
pousa no silêncio e arde pouco a pouco.
No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -
e as palavras nascem.
- Límpidas e amargas.

Eis um tempo que começa: este é o tempo.


E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas,
é o pensamento que verga de flores actuais e frias.
A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro.
E as estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado
de seivas, para a noite que estremece
fundamente.

Melancolia com sua forma severa e arguta,


com maçãs dobradas à sombra do rubor.
Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando
com a primeira música de água.
Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído,
com esta coroa recente de ideias, esta mão
que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa
onde o coração se consome devagar.

Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras


antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera
de minúsculas folhas eternas como uma árvore.
Degrau a degrau devorei a alegria -
eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas
desvairadas, entre jarros transbordando
húmidos astros.

Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer


com os olhos queimados pelo poder da lua.
Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe
procuro no meu silêncio uma outra forma
dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é
a casa ligeira colocada num espaço
de profundo fogo.
E apagaram-se as luzes.

- Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente


para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, de grau a degrau, a escadaria daquele corpo.
E não chames mais por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite.

É primavera. Arde além rodeada pelo sal,


por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.
Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu.
Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. - É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.

AS MUSAS CEGAS III

Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio


poço dos sons. Ela não dormia, estava
a meu lado, era uma gruta onde a música
um instante se torna imensa.
Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês
das musas, a penumbra da sua vida
estava coberta de ervas puras.
Não dormia. Durante
o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho
onde as brasas da cabeça principiam a girar.

Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha


sobre os arcos e os tanques e as frestas.
Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento,
eu era profundo e fecundo. O sangue
passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos
ardiam em mim, nessa monstruosa
noite da criação.

Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida


mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar
na minha confusão. Eu era um homem
e tinha na boca o ofício de sorrir
o fluxo encantado
das imagens. E tinha palavras que um homem
tem para acender, como fogueiras,
nas margens cantantes e frias das águas
do mundo.

Vejo a minha vida agitada, as pequenas folhas


do rosto, minha dor e idade
de homem,
debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste,
e poderoso e vazio
como uma guitarra, uma coluna de obscuridade
que dormia, que não podia jamais dormir
entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite
que iria e viria sobre a paisagem
de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos
e ocos.

Às vezes eu levantava um braço que deixava arder


ou pensava como era forte
a torrente do meu silêncio. Pensava
como poderia desfazer-se a carne sem que eu
gritasse. A minha voz era esplêndida.
Os mortos poderiam erguer os corpos
submersos na grande ideia
universal, poderiam ouvia a minha voz
tão límpida de terrível
alegria.

A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam


as aves, os montes atingiam
as corolas celestes, nunca deixavam correr
as águas que atravessam os povos mais puros do mundo.

Era tenebroso e doce que a loucura me viesse


deste lugar, que fosse uma árvore sustentando
a minha idade.

Chegava um dia em que ela devia ser obscura,


e o meu coração ressoava. Minha dor de homem
de novo se inclinava sobre as formas mudas.
Porque a terra trabalhava para acender
aquela cidade, porque ela mesma cantaria então,
iluminada e humilde
debaixo da noite rolante, da estupenda noite
inspiradora. Mas somente para mim
o vento circulava com seus archotes
rápidos rápidos.
Minha cabeça estremecia contra a almofada
de fogo, e o sangue despedaçava as portas,
e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se
batidos pelos raios.

Sabia agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a obra era então -
mais que o mundo e as fontes e os leitos
dos poderes -
eu, um homem disposto sobre si
como a luz se dispõe sobre a luz
e as palavras são em si mesmas dispostas
no renovo das palavras.

Sobre a sombra de um mês confuso e rápido,


eu era um homem -
e um homem beija a sua própria boca.
AS MUSAS CEGAS IV

Mulher, casa e gato.


Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e na minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que vou ser
são minuto a minuto mais concretos.

A pedra cai na cabeça do gato e o peixe


gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram
palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.

Palavra abstracta que arrefeceu no gato


e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.

Deito-me e amo a mulher. E amo


o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo, com o amor do amor,
não só a palavra mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro da casa.

No mundo tão concreto.

AS MUSAS CEGAS V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira


e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre,
com suas lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis, e tensos na música.

Esta linguagem era o disposto verão das musas,


o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
- Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira.
- Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto -
e doado às coisas mínimas.

Na treva de uma carne batida como um búzio


pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.

Essa mulher cercou-me com as duas mãos.


Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.

Toda a água descendo é fria, fria.


Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas
da carne,
tudo o que húmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
- não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.

E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo


lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.

Toda a juventude é vingativa.


Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito
nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado.
- E é uma pedra celeste.

Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia


de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.

AS MUSAS CEGAS VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis..
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina
os meus espinhos frios, a lua que inclina
meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.

Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas,


bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
É uma coisa estupenda a primavera que trabalha
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante.
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água
atenta, e amo a loucura -
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.

Tenho medo de erguer a voz mais alto


que o meu coração, onde uma candeia
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato.
Que a tristeza me ajude, que me ajudem
os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos,
todos os mortos, todos os que amam
entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas.

Sinto os ossos ascenderem às cobras da cabeça -


e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem,
fundo-me no verbo interior da primavera
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte.
Cantavas o que já se não quebra com o uso
das vozes. Porque tu eras a minha
água salgada.

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam


e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos.
Primavera, como cresces.

Desespero ou alegria, como correm


nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, evocar
tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite
com uma porta no coração para passar
num tremendo silêncio.

Ressuscitar uma vez com a cara extrema


junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras
evaporam-se, reaparecem em espírito
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.

Falo tão devagar que mal distingo


a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar - como quem ressuscita.

AS MUSAS CEGAS VII

Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.


Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,
ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando.
É uma doce pancada à porta, alguma coisa
que desfaz e refaz um homem. Uma pancada
breve, breve -
e eu estremeço como um archote. Eu diria
que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade.
Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente
ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima
como a minha face.

Essa criança tem boca, há tantas finas raízes


que sobem do meu sangue. Um novo instrumento,
uma taça situou-se na terra, e há tantas
finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia,
uma flor, uma pequena lira,
podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo -
um novo instrumento rodeado de campânulas
inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,
pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo
as grandes cabeças sonhadoras.

Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva.


Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me
tantas vezes dos mistérios dessa porta.
Porque então é muito estreita com os seus espelhos
detrás, com o vestíbulo frio.
Mas é tão belo uma criança ainda enevoada,
uma criança que ascende com uma
grande música
desta rede de ossos, deste espinho de sexo,
da confusa pungência, escuta: da pungente
confusão
de um homem restrito com a sua vida tão lenta.

Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos;


às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens,
e as virilhas em chama.
É a minha vida. Mas essa criança
é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta
o meu coração.
No outono eu olhava as águas lentas,
ou as pistas deixadas na neve
de fevereiro, ou a cor feroz,
ou a arcada do céu com um silêncio completo.
Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se
a ciência da minha carne
atónita. Escuta: cada vez a minha vida
é mais hermética.
Essa criança tem os pés na minha boca
dolorosa.

Se ela um dia adormecer com cerejas junto à respiração


pequena, e sonhar
estes imensos arcos que os séculos vão colocando
sob os astros - e se de tudo
a sua cabeça estremecer como numa loucura,
com altos picos em volta, com enormes faróis
acendendo e apagando - escuta: se essa criança
imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente
para que ela invente o seu próprio rio
sem nome -
será ainda que do meu sangue se erguem finas
raízes, e o tenebroso tumulto das minhas sombras
está no fundo, no fundo da sua ingénua vida,
da sua terrível vida sem remédio.
Se ela morrer, escuta, será que a minha boca
diz lá em baixo
essas majestosas e violentas palavras
dos poemas.

Essa criança que aperta as veias que iluminam


a minha garganta. Ela dorme. Escuta:
a sua vida estala como uma brasa, a sua vida
deslumbrante estala e aumenta.
Se um dia os archotes incendiarem essa boca,
e as faúlhas cercarem
o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta:

a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.

AS MUSAS CEGAS VIII

Ignoro quem dorme, a minha boca ressoa.


Despedir-se dos meses é uma nova tarefa, um ofício
inquieto. Às vezes na noite
veja as casas pequenas, as rosas que se voltam
para o subterrâneo e subtil
ruído da seiva. Penso nas mulheres
de pálpebras descidas, no seu espírito
expansivo que repousa. Nas crianças que enlouquecem
silenciosamente dentro da sua inocência.
Às vezes na noite ainda jovem, mas
que principia a engolfar-se no seu doce
hermetismo - tantas vezes
penso na chuva, e nos corpos, e nas pontes onde
se encontra alguém
com as cegas mãos escorrendo para o fundo
o sangue de uma imensa
inspiração. Eu sei: despedir-se dos meses
é um ofício inquieto.
As luzes, as mesas, as armas antigas, os jardins debruçados
nas violas paradas. Não sei o que há
tão veloz e tão firme
na base de um homem. Às vezes vejo
que é uma invencível doçura, um espanto
colorido em redor de uma casa, uma raiva
generosa nas mãos iluminadas.
Mas no fundo, no fundo,
é a boca desmanchada que sangra devagar.
Ignoro quem dorme, é um ofício novo e louco,
uma tarefa perene do coração
sobre quanto se ignora. Minha boca ressoa.
Os próprios meses ressoam com espelhos ardentes,
como telhados, cúpulas, livros,
como objectos ardentes.

Sobre um rosto eu diria: é um rosto? Sobre


uma vida eu perguntaria se era
a força de uma vida. Porque os ossos e as veias
vão de corpo para corpo,
e despedir-se de tudo é um ofício inquieto.
Tudo isto é uma musa, um poder, uma pungente
sabedoria. As rosas que há
nas palavras, as palavras que estão
no alto como fungos luminosos, as palavras
que gravitam em baixo
no instável momento que avança e recua
ao pé da eternidade - as mãos
rodeando uma lâmpada, essas mãos
docemente cobertas de sangue - tudo isso
disposto para a inquietação de um ofício.

Eu sei: as vigas da cabeça estremecem um pouco.


Partem-se, aqui e ali,
alguns arcos secundários. Uma vida pode tremer
do princípio ao fim. É instantâneo,
eterno. Mas é o homem
que recebe a inspiração violenta.
Ignore quem dorme, a minha boca está no fundo,
móvel, coberta de sangue, a minha
boca ressoa como as cavernas de um barco,
a minha boca da minha vida
é um ofício. O meu ofício de despedir-me
um pouco engolfado na loucura.
A minha tarefa inquieta de pôr a vida
na sua oculta loucura.

Tudo isto canta na galeria dos meses


ornados de delgados mastros
acesos. E despedir-se dia a dia
desta torrente de pequenas imagens alucinadas e mansas
é um mester ainda jovem,
algo que se aprende lentamente com as mãos
e a garganta e a testa
e o marulho das águas que correm profundamente
em lugares inacessíveis,
sem nomes nem janelas por onde surja a cabeça
coroada de violinos.
É um violento ofício, e no fundo desse ofício
violento e puro,
a boca está coberta de um perturbado sangue
masculino.

FONTE

II

No sorriso louco das mães batem as leves


gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e
apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.

BICICLETA

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção


ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais -
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor


confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e desaparece
uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre


tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.

O bico do poeta corre os pontos cardeais.


O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,


e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
O poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,


é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

O DIA ORDENA OS CÂNTAROS UM A UM EM FILAS VIVAS

O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas.


A noite cerra-lhes os corações que sorviam
o caos
pelas aortas
de argila. Flancos contra flancos.
O tempo só existe por estes corpos selados.
E o azeite repousa. O vinho ensombra-se.
O mel amadurece com a voltagem de uma jóia
onde mergulha a lua.
Se alguém se fecha com a noite por cima.
Estou cheio desta noite, deste sono, desta riqueza
côncava,
arrefecida.
Ordena a luz o que o escuro tranca, o sonho
atado ao sono numa imagem concêntrica
radiando
dentro. A imagem diurna ordena
em filas que respiram as palavras
profundas, as crateras,
os cântaros
- profundamente.
As palavras encostadas ao papel. E o barro
suspira. O peso dessa
vida insondável: vinho,
azeite, mel – o caos que se transforma em número.
A imagem multiplica a consciência.
A jóia sazonada contra a morte.
Uma a uma, as coisas do mundo, as noites desarrumadas,
as mãos que as arrumam
entre chama e sono, as bilhas uma a uma do tesouro,
uma a uma
as palavras contra o papel profundo que suspira
- bilhas profundas na casa mais profunda
ainda.

OS ANIMAIS CARNÍVOROS

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida
multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante
um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado
completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a
boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era
belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor,
mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias
cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites
trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e
desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma
criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e
vermelhas todas desabotoadas.

Luiza Neto Jorge

MINIBIOGRAFIA

Não me quero com o tempo nem com a moda


Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.
Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda

E se nave vier do fundo espaço


Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:


Meia palavra a bom entendedor.

A MAGNÓLIA

A exaltacão do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem a forma
o meu esplendor.

Um diminuto berço me recolhe


onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico


desfolhando relâmpagos
sobre mim.

AS CASAS

I
As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite


sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis


que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro


no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

II
Prometeu ser virgem toda a vida
Desceu persianas sobre os olhos
alimentou-se de aranhas
humidades
raios de sol oblíquos

Quando lhe tocam quereria fugir


se abriam uma porta
escondia o sexo

Ruiu num espasmo de verão


molhada por um sol masculino

V
Louca como era a da esquina
recebia gente a qualquer hora

Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens

A CASA DO MUNDO
Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante


arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.


O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.


Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval


é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.

AS SOFRIDAS AMORAS

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos

Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.
RECANTO 18

Desses «em guerra» vos falo falo dos que me seguem


não os chamámos seguiram-nos
todos descremos e rimos por dinheiro não trocámos
projectados para a morte não traímos

Eu e ele somos a espaços


improváveis veículos (eu e vós)
mestres voadores numa convulsão de cigarros mestres
reptantes redemoinho meu ressaca viva oculto vinho
oculto amor

o nosso vedado o mundo tão exíguo e o dos outros


(luzes água planetas mecanismos ambíguos) mais
exíguo

Amamos o mundo (quem?) o tempo (qual?) a luz (quando?)


a treva (onde?) tudo (?) todos (?!)
trepidantes trémulos
com a ajuda mental de partículas
de merda

ou simples estados, frenesis, convulsivos, objectos,


alibis, a pique, patológicos,
risos, redundâncias, aços, lascados, alarmados,
conhecemos — além de nós, reais, —
os reis, os resíduos, o dente liliputiano
no sorriso do arcanjo.

RITUAL

a jarra tombou
a água correu sobre a mesa

as flores calaram-se aos poucos


o espantalho tocou o acordeão

a criança cansou-se do vento


desatou as sandálias
o mar meditou duas vezes
qual o horizonte

do sotão a galinha presa


viu um avião voar

uns quantos vestiram-se de negrfo


viveram da morte dos outros

suicidou-se uma sombra


debaixo do meu pé

a mulher calçou-se de branco


para a ressurreição

Jorge de Sena

UMA SEPULTURA EM LONDRES

No frio e no nevoeiro de Londres


numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping,
de Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. - Eu quero ver publicadas
as suas obras completas - diz-lhe o discípulo.
- Também eu - responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura - Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e reescritas! Como
Não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite - creiam - a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu - ó Spartacus -
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião de amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
Que mais precisamos de saber?

António Ramos Rosa

NÃO POSSO ADIAR O AMOR

Não posso adiar o amor


para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque
na garganta
ainda que o ódio estale
e crepite e arda
sol montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não, não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar


ainda que a noite pese
séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore,
não posso adiar
para outro século
minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de
libertação
Não posso adiar o coração

POEMA DE UM FUNCIONÁRIO CANSADO

A noite trocou-me os sonhos e as mãos


dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

José Régio
CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Miguel Torga

ORFEU REBELDE

Orfeu rebelde, canto como sou:


Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...


Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Daniel Filipe

A INVENÇÃO DO AMOR

Em todas as esquinas da cidade


nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho


do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura


e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna


Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia


colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos


Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los


antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo


protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e
aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos


o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

...

É possível que cantem


mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

...

Procurem a mulher o homem que num bar


de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia


de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

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