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Poesia Surrealista Portuguesa PDF
Poesia Surrealista Portuguesa PDF
ÍNDICE
Alberto Pimenta
PORCO TRÁGICO I
BALADA DITIRÂMBICA DO PEQUENO E DO GRANDE FILHO-DA-PUTA
Alexandre O'Neill
ADEUS PORTUGUÊS
A MEU FAVOR
SABER VIVER É VENDER A ALMA AO DIABO
POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO
AGORA ESCREVO
PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL
SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS
PENSANTES
POIS
VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
PERFILADOS DE MEDO
O REVÓLVER DE TRAZER POR CASA
ANIMAIS DOENTES
PELA VOZ CONTRAFEITA DA POESIA
O QUOTIDIANO "NÃO"
EM PLENO AZUL
AO ROSTO VULGAR DOS DIAS
O BEIJO
UM CARNAVAL
Cruzeiro Seixas
EPITÁFIO
ANDAM DESCALÇOS OS PEIXES
A TUA BOCA ADORMECEU
Herberto Helder
SOBRE O POEMA
O AMOR EM VISITA
SÚMULA
(A CARTA DA PAIXÃO)
AS MUSAS CEGAS
FONTE
BICICLETA
O DIA ORDENA OS CÂNTAROS UM A UM EM FILAS VIVAS
OS ANIMAIS CARNÍVOROS
Jorge de Sena
UMA SEPULTURA EM LONDRES
José Régio
CÂNTICO NEGRO
Miguel Torga
ORFEU REBELDE
Daniel Filipe
A INVENÇÃO DO AMOR
Alberto Pimenta
PORCO TRÁGICO I
conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.
o pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.
no entanto, há
filhos-da-puta
que nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o pequeno filho-da-puta.
o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno filho-da-puta.
no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o pequeno filho-da-puta.
todos
os grandes filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.
é o pequeno
filho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja, o pequeno filho-da-puta.
II
o grande filho-da-puta
também sem certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande
filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.
por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.
todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.
é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.
de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multipliccação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta.
Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas cicatrizes frescas todas as
manhãs, nem estas palavras que envelhecem no curto espaço de um dia. A noite recebe as nossas
mãos como se fossem intrusas, como se o seu reino não fosse pertença delas, invenção delas. Só a
custo, perigosamente, os nossos sonhos largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. A nossa
miséria vive entre as quatro paredes, cada vez mais apertadas, do nosso desespero. E essa miséria, ela
sim verdadeiramente nossa, não encontra maneira de estoirar as paredes. Emparedados, sem
possibilidade de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso amor, assim vivemos. Procuramos a
saída - a real, a única - e damos com a cabeça nas paredes. Há então os que ganham a ira, os que
perdem o amor.
A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude
intransigente,para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a
sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica.
MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO no meu desespero e na minha
revolta. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que
se extingue em cada homem à vista dos massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram,
pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da infância, por um estandarte negro sobre o
coração, pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos, pelas cidades que chegam durante as
tempestades, pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite - um a um mordem os
pulsos e cantam - sei pelos animais feridos, pelos que cantam nas torturas.
Por isso, para que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a minha revolta, o meu
desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho e que
ninguém se aproxime para aquém dos mil passos
MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar
O POETA EM LISBOA
entra no café.
abre um livro fantástico, impossível.
mas não lê.
trabalha - numa música secreta, inaudível.
sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.
seis da madrugada.
a luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.
UM HOMEM
De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda
RESERVADO AO VENENO
Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar
POEMA
AZULIANTE
Este poema é da AIdina
Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte
LIBERTAÇÃO
MEMORIAL
As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira
o teu nome que os teus irmãos gastaram
dia a dia e que por fim morreu
atravessado na tua própria garganta
as tuas pernas os teus cabelos percorridos
rato após rato tantos anos
durante tanta alegria que não era tua
os teus olhos mortos eles também
na primeira ocasião do teu amante
assim como as palavras ainda fumegando docemente
sob as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus ombros
tudo finalmente soterrado
para descanso de todos
- mesmo dos que estavam ausentes
O BOM ARTÍFICE
Entretanto
dez séculos mais tarde no local do drama
o diabo
diante do seu fomo
levanta por instantes seus doces olhos
para quatro mil cadafalsos
Vêde
mais além o bom artífice
mostrando
anjos
ou
batéis
1.
Ó Estado, mais uma vez podes limpar as mãos à parede
do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus
crimes. Ó partidos, da esquerda e da direita, mais uma vez
podeis beijar os pés ao papa, ficareis com a boca abençoada
para mentir melhor. Explorados, escolhei o crime, escolhei a
mentira. Sois livres. Tu poeta, range os dentes e indigna-te.
2.
Que o Estado venere a Deus na figura do papa, que os par-
tidos venerem o Estado na figura do papa; que os explorados
venerem a Deus, o Estado, o Partido – a trindade omnipotente.
Enfim, o poder temporal subordinado ao poder sobrenatural.
Nem Deus nem senhor? Maldita incurável doença infantil do
Comunismo. Explorado, escolhe o explorador.
3.
O Estado que te submete é republicano e reverencia a
Igreja, o Partido em que militas é marxista e felicita o papa, o
Sindicato onde estás inscrito é revolucionário e saúda a reac-
ção. A greve geral é uma arma que não deve ferir o papa.
Nada contra o obscurantismo. Paz ao inimigo. Quem disse
que a religião é o ópio do povo? Explorados, que escolheis?
4.
Sobretudo, nada de escândalo. Uma pedra branca sobre o
crime, uma pedra negra sobre a crítica. Ecrasez l´infâme, dizia
Voltaire. Uma pedra negra sobre Voltaire. O silêncio dos ateus
é o ouro do Vaticano. Explorado, escolhe a pedra para a tua
cabeça.
5.
Conquistar a liberdade de expressão para não usar a liber-
dade de expressão. Não denunciar o opressor, não ousar ati-
rar-lhe à cara a revolta, sequer na forma de um cravo. Ver,
ouvir, receber o papa com o medo do 24 de Abril. Explorado,
por que não vomitas?
6.
Explorado, sê manso e obedece. Pode ser que entres no
reino dos céus, de camelo ou às costas de um rico. Obedece.
Pode ser que vás para a cama com a Pátria. Obedece. Pode
ser que o teu cadáver ainda venha a ser estandarte glorioso
do Partido. Nunca percas a esperança, explorado, jamais.
7.
Abaixo a união livre. Viva a coexistência pacífica. O casa-
mento do capital e do trabalho vai ser o grande casamento do
Século. Não haverá oposição dos pais nem da polícia. Sobre-
tudo, tudo menos a erotização do proletariado. Felicidades,
explorado.
8.
Ouvi falar de luta de classes e da revolução e do mundo
que o proletariado tem a ganhar e nada a perder. Ouvi falar das
armas da crítica e da crítica pelas armas. Ouvi falar em trans-
forar o mundo e mudar a vida. Ouvi falar de que enquanto
um homem, um só que seja, e ainda que seja o último, existir
desfigurado, não haverá figura humana sobre a terra. Nunca
tinha ouvido uma sereia assim. Ouviste, explorado?
9.
O diálogo? Que diálogo pode haver entre o condenado à
morte e o carrasco que o conduz ao patíbulo? O diálogo é
entre amantes, entre amigos, entre camaradas. Fora disso não
há diálogo. Tens a plavra, explorado.
Lisboa, 1982
EXPOSIÇÃO DADA
Quando em 1922 Dada foi atirado vivo e nu ao Sena, não era para que fosse pescado. Também não era
para ser servido como dobrada à moda do Porto fria. Dada cavalo marinho voador alemão de 1918
nunca foi para vir a ser para concursos hípicos. Dada dador de sangue e barbeiro de Mona Lisa nunca
foi para coisa nenhuma, pela simples razão de ser Dada. Dada quer dizer: uma forma de matar para não
morrer. Nunca foi portanto para aparecer de suicida, de artista maldito, de monstro querido, de vampiro
arrependido, e muito menos de cadáver esquisito.
Se houvesse cadáver de Dada, mas não há, o que vai chegar agora aí embalsamado seria um falso
cadáver. Se houvesse cadáver insepulto de Dada, cheirava mal num continente inteiro. Se houvesse
cadáver de Dada enterrado em vala comum, havia ainda hoje fogo-fátuo que dava para iluminar uma
cidade - exemplo, Lisboa. Como não cheira e tudo permanece muito às escuras, segue-se que não há
cadáver de Dada.
Se houvesse fantasma de Dada, mas não há, já todos os museus do mundo teriam ardido. Como ainda
não ardeu nenhum, é que não há fantasma de Dada.
Dada nunca foi goraz, por isso não pode ser agora peixe frito. Também nunca foi rei do petróleo, não
pode agora pela mesma razão ser irmã de caridade. Se nunca foi ao dentista por causa dos dentes
podres, não pode ter agora o sorriso de Mona Lisa, mesmo com bigode.
Se Dada fosse anti-Dada, estava tudo certo. Como não é, tudo está errado. Só o Surrealismo, que foi
um erro próprio de Dada, é ainda Dada. Só Dada é surrealista, e o humor e o amor o surreal Dada.
O Dada surrealista e o Surrealismo Dada não são formas para arrancar os cabelos da arte, mesmo a
mais cabeluda, se a arte não estivesse irremediavelmente careca, e fosse a cantora que se sabe. Não
são também para efeitos de luz de museu.
A cadaverização de Dada é um segredo que nem Dada conhece, quanto mais quem não. Donde: o
inimigo morto que se vai exibir, para pasto dos gorilas da cultura, não é cadáver de Dada. Porque a
pintura Dada nunca foi pintura, a escultura Dada nunca foi escultura, a poesia Dada nunca foi poesia, e
por aí fora até ao infinito: Dada.
Houve a revolução Dada que ainda está a haver, mas não haverá nunca exposição de Dada.
DE PROFUNDIS AMAMUS
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Eu, nada. Eu, eu, é claro...Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante alto
Penso que a questão é esta: a gente, certa gente
sai para a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem
glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante
altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a...Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou
inteiramente o gato
mas de gato para cima nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira
me o estômago só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão belo
cosida. tão ininteligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por cento hipócritas.
Recomecemos: Um:
Estes versos não querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em Portugal quer de algum modo
fazer versos versos
está em muito maus lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)
Segundo:
Apesar de tudo, saí para a rua com bastante natu-
ralidade
e que vi eu? Que é isto? (E que esperava eu ver?)
Terceiro:
(e aqui começa, talvez, o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com ele
mas não sou um proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado quem é que disse que pode?
AUTOGRAFIA
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no sentido mais enérgico da palavra
na carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!
PASTELARIA
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
TANTOS PINTORES...
TODOS POR UM
Santos
Mártires
e Heróis
DO CAPÍTULO DA DEVOLUÇÃO
Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito , um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível
esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos , olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela , aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece , apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado
depois olhas para mim , olhas as tuas mãos , e elas ambas , tão claras ,
tão seguras , são as mãos de um soldado a arder em febre ,
aves a percorrer o seu novo deserto
OUTRA COISA
O HOMEM EM ECLIPSE
Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar
o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
O POETA CHORAVA...
O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
nelas buscava Uma estrela talvez a salvação?
O poeta era sinceríssimo
honesto
total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões
POEMA
Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos
Alexandre O'Neill
ADEUS PORTUGUÊS
A MEU FAVOR
A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.
SABER VIVER É VENDER A ALMA AO DIABO
Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...
Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...
AGORA ESCREVO
E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir ,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza , a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!
Flechas Velocíssimas
Nos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar!
Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar " em obras", de instalar
Em cada dia um " problema"
E de dourar
O " problema" de cada dia ...
Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento um silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos
1
Não te ataques com os atacadores dos outros.
E com os botões.
2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.
3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.
4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...
5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.
6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.
7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.
9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece.
10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem
de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.
11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.
POIS
(-Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
PERFILADOS DE MEDO
ANIMAIS DOENTES
Ou então as orgulhosas
Palavras raras
Plumas de cores incandescentes
Altos gritos no aviário
E o branco sem uso
Imaculado
De certas aves da solidão
Para dizer
Queria palavras tão reais como chamas
E tão precárias
Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte
No discurso de fogo
Logo extintas na combustão das próximas
Palavras que não esperassem
Em sal ou em diamante
O minuto ridículo precioso raro
De sangrar a luz a gota de veneno
Cativa das entranhas ociosas.
O QUOTIDIANO "NÃO"
recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão
a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,
até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...
O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam
Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono
Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo
Impossível
Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação
Impossível
Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes
Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor
EM PLENO AZUL
Visivelmente sossegadas
é a hora de não cumprir
de recomeçar cantando
calamidades desastres
ruínas por decifrar
E as mães
onde estão elas?
O BEIJO
UM CARNAVAL
PROJECTO DE SUCESSÃO
E o homem
sua esfera perdida em mãos alheias
é o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o límpido cristal corrompido
o defunto.
EPITÁFIO
Atravessam os ciprestes
bicicletas
com cidades velozmente antigas
na memória.
A hora indefinida
tem um lago em cada face
e para lá da linha esticadíssima do horizonte
há túmulos esventrados até ao infinito.
Herberto Helder
SOBRE O POEMA
O AMOR EM VISITA
SÚMULA
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
(A CARTA DA PAIXÃO)
AS MUSAS CEGAS
AS MUSAS CEGAS I
AS MUSAS CEGAS II
Sabia agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a obra era então -
mais que o mundo e as fontes e os leitos
dos poderes -
eu, um homem disposto sobre si
como a luz se dispõe sobre a luz
e as palavras são em si mesmas dispostas
no renovo das palavras.
AS MUSAS CEGAS V
AS MUSAS CEGAS VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis..
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina
os meus espinhos frios, a lua que inclina
meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna.
FONTE
II
BICICLETA
OS ANIMAIS CARNÍVOROS
Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida
multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante
um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado
completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a
boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era
belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor,
mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias
cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites
trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e
desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma
criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e
vermelhas todas desabotoadas.
MINIBIOGRAFIA
A MAGNÓLIA
A exaltacão do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem a forma
o meu esplendor.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
AS CASAS
I
As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir
Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios
II
Prometeu ser virgem toda a vida
Desceu persianas sobre os olhos
alimentou-se de aranhas
humidades
raios de sol oblíquos
V
Louca como era a da esquina
recebia gente a qualquer hora
Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens
A CASA DO MUNDO
Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
É a casa do mundo:
desaparece em seguida.
AS SOFRIDAS AMORAS
As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos
Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.
RECANTO 18
RITUAL
a jarra tombou
a água correu sobre a mesa
Jorge de Sena
José Régio
CÂNTICO NEGRO
Miguel Torga
ORFEU REBELDE
Daniel Filipe
A INVENÇÃO DO AMOR
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