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Criatividade

e ensino*
Eunice M. L Soriano de Alencar
Professora do Depto. de Psicologia da
Universidade de Brasilia.

O
interesse da Psicologia pelo va a qualquer pessoa, ao passo que a ções entre criatividade e inteligência;
estudo da criatividade é rela- criatividade, acreditava-se, era uma bem como as principais barreiras a
tivamente recente. Nas pri- prerrogativa de apenas alguns poucos seu desenvolvimento.
meiras décadas após a fundação privilegiados. Esta era vista como um Paralelamente às pesquisas realiza-
do laboratório de Wundt, na Ale- dom divino, presente em apenas um das, os psicólogos, tanto da corrente
manha, marco do início da Psicologia grupo seleto de sujeitos, supondo-se humanista como da psicométrica,
como ciência, predominou um inte- que nada poderia ser feito no sentido passaram a ressaltar a necessidade e
resse pela investigação de processos de incrementá-la no indivíduo. Para urgência de se criarem condições mais
relativamente menos complexos, co- muitos, a criatividade implicava ape- favoráveis à manifestação e desenvol-
mo sensação, percepção e motivação. nas um lampejo de inspiração, que vimento da criatividade. Neste senti-
Nesse período, observaram-se tam- ocorria em determinados indivíduos do, Rogers, já na década de cinqüenta
bém as primeiras indagações sobre a sem uma razão explicável. Por outro (Rogers, 1959, p.69) afirmava: "Eu
natureza da inteligência e as primeiras lado, a mensuração da inteligência assevero que há uma necessidade so-
tentativas de desenvolver instrumen- era algo aceito e valorizado, o QI era cial premente do comportamento
tos de medida deste construto. um termo que se tornou popular e criativo por parte dos indivíduos".
Durante toda a primeira metade do largamente difundido, acreditando-se Em sua proposta de uma teoria de
presente século, foi a investigação da que inteligência era uma dimensão criatividade, sustentou Rogers a ne-
inteligência que predominou entre os passível de ser medida e avaliada sem cessidade de se conhecer melhor a
psicólogos interessados no estudo dos maiores problemas. Idéias opostas natureza do processo criativo, as con-
processos de pensamento. Nesta épo- predominavam, entretanto, com res- dições que podem favorecer a emer-
ca, prevaleceu um consenso de que peito à criatividade. Nenhum instru- gência do comportamento criador e
criatividade não apresenta nenhum mento era disponível nesta área. O os meios que favorecem o desenvolvi-
problema especial, uma vez que o processo criativo era visto como ina- mento da criatividade construtiva.
conceito de inteligência era considera- cessível a uma investigação empírica e Paralelamente às contribuições de
do por muitos psicólogos como sufi- impossível de ser medido ou avaliado. Rogers, outros psicólogos humanis-
ciente para explicar todos os aspectos A partir da década de cinqüenta, tas, como Rollo May e Maslow, tam-
do funcionamento mental, presumin¬ um interesse crescente por criativida- bém passaram a ressaltar a importân-
do-se ainda que os testes de inteligên- de se fez notar e inúmeros aspectos cia de se criarem condições mais favo-
cia poderiam medir qualquer proces- passaram a ser pesquisados, como ráveis à manifestação da criatividade,
so que ocorresse na mente (Getzels e por exemplo, as características cogni- a qual estaria vinculada à tendência
Csikszentmihalyi, 1975). Por algum tivas, motivacionais e de personalida- do homem para se auto-realizar, para
tempo nesse período, predominou de de indivíduos altamente criativos; concretizar suas potencialidades.
também a idéia de que a inteligência os fatores ambientais que facilitam o Também Guilford, que na década
era fixa e unidimensional, subesti¬ seu desenvolvimento e manifestação; de cinqüenta desenvolvia estudos na
mando-se a contribuição do ambiente a relação entre a criatividade durante área da inteligência, muito contribuiu
e da experiência. a infância e na vida adulta; as rela¬ para estimular o interesse dos psicólo-
Outras idéias eram também co- gos pela área da criatividade. Um dos
muns na primeira metade do século, aspectos salientados por ele e que efe-
ajudando a explicar o domínio da tivamente teve um impacto muito
inteligência como o aspecto de maior *Uma parte do presente artigo foi publicada no grande, foram alguns pontos que res-
interesse pela Psicologia. Uma dessas livro Psicologia e educação do superdotado, da saltou em seu discurso como presi-
idéias era que a inteligência se aplica- autora (Alencar, 1986). dente da Associação Americana de
Psicologia, em 1950. Talvez o princi- Guilford contribuiu ainda com mas dessas condições se relaciona-
pal deles foi chamar a atenção para a duas hipóteses muito importantes riam com o "zeitgeist", com o espírito
área da criatividade que, até então,era com relação à criatividade: a primeira da época, com o clima psicológico ou
pouco pesquisada, pouco conhecida e delas é que a criatividade envolveria social que predomina em uma deter-
mesmo ignorada pelos psicólogos. processos diversos daqueles envolvi- minada sociedade ou entre um deter-
Em seu discurso, ele chegou a afir- dos no conceito tradicional de inteli- minado povo.
mar: (...) "eu discuto o tema criativi- gência. A segunda é que a criatividade Tais condições estariam também
dade com considerável hesitação, constituiria uma variável multidimen- relacionadas aos valores dominantes
pois ele representa uma área em que sional e que implicaria diferentes tra- na família, aos traços de personalida-
os psicólogos, de modo geral, sejam ços, como sensibilidade para proble- de e características aí reforçados e
anjos ou não, têm grande receio de mas, flexibilidade de pensamento, cultivados. Os objetivos propostos
tratar" (em Taylor e Getzels, 1975). fluência de pensamento, originalida- pela escola em termos de aprendiza-
Neste seu discurso, Guilford ressal- de, entre outros. De forma similar aos gem e ensino, de forma similar, tam-
tou, ainda,que os testes de inteligência psicólogos da corrente humanista, bém poderão favorecer ou, pelo con-
estariam avaliando apenas respostas Guilford salienta também o papel do trário, dificultar o desenvolvimento
relativas ao que o indivíduo teria pensamento criativo na resolução dos do potencial criador.
aprendido e conhecimentos assimila- problemas vividos pelo homem na so- Em termos das características de
dos anteriormente e que seria capaz ciedade contemporânea (Guilford, um contexto social propício à criativi-
de reproduzir na situação de testes. Já 1970). dade, salienta-se a extensão em que as
a criatividade implicaria um tipo de Um dos aspectos mais enfatizados, contribuições criativas de seu povo
pensamento divergente, que seria esti- desde então, tem sido a necessidade são bem aceitas e valorizadas, bem
mado pela capacidade do indivíduo de se promover condições adequadas como a existência de condições que
de inventar novas respostas. à manifestação da criatividade. Algu- estimulem a inovação, a exploração
de idéias e a criação de novos produ- uma série de idéias errôneas a respeito gos, se aproximam de um objeto es-
tos. Na medida ainda em que traços de criatividade entre educadores — tranho e potencialmente ameaçador
associados à criatividade, como es- como por exemplo, de que a criativi- mesmo com risco de perder a própria
pontaneidade, curiosidade, indepen- dade ocorre nas artes e é na área de vida para saciar a sua curiosidade; as
dência, iniciativa, forem cultivados e educação artística que é possível de- pesquisas com ratos e macacos cha-
reforçados no meio social onde o in- senvolvê-la (e outras idéias comuns mam também a atenção para o com-
divíduo se acha inserido, produções na primeira metade do século, explici- portamento exploratório dos ani-
criativas t e r ã o mais chances de tadas anteriormente neste artigo). Te- mais), tende a ser altamente desesti¬
ocorrer. mos observado ainda que o aluno mulado pelos agentes socializadores.
Neste sentido, é necessário ressal- mais criativo não é reconhecido na Sabemos, entretanto, que no bebê
tar, pois, que o desenvolvimento e escola e nem tampouco tem recebido humano uma das características mais
manifestação da criatividade não de- uma atenção por parte de seus profes- notáveis é a sua busca incessante, a
pendem somente dos esforços do pró- sores. Dado o programa extenso a sua ânsia pela descoberta, levando-o
prio indivíduo. Tanto fatores intra- cumprir, aliado ao curto período de a examinar detidamente cada objeto
pessoais quanto interpessoais, tanto tempo que o aluno permanece na es- do ambiente, buscando construir a
fatores do próprio indivíduo quanto cola, tende-se a desenvolver e favore- natureza de cada um deles. Fraiberg
de natureza social poderão favorecer cer apenas o desenvolvimento de um (1980, p. 65) descreveu esta caracte-
ou dificultar a emergência do proces- número muito reduzido de habilida- rística em seu livro "Os anos mági-
so criativo. Comentando a respeito de des cognitivas. cos", comentando, (...)"Este bebê tra-
alguns desses fatores sociais que favo- Dentre os aspectos que temos cons- balha sem descanso em suas desco-
recem a criatividade dos indivíduos tatado em nossos estudos, um dos que bertas. Está inebriado com o mundo
ou facilitam a aceitação de pessoas tem chamado a nossa atenção diz res- recém-descoberto: ele o devora com
criativas, Stein (1974. p. 285) enfati- peito ao pouco incentivo direcionado todos os órgãos dos sentidos. Um pe-
za, entre outros, os seguintes pontos: ao desenvolvimento de características daço de papel celofane, um fragmento
• Uma sociedade favorece a criativida- de personalidade que se relacionam à de metal, uma tira de cetim vão deixá-
de na medida em que dá chances ao criatividade. Dentre estas característi- lo extasiado. Ele se diverte nos armá-
indivíduo de ter experiências em inú- cas, salientam-se a independência de rios da cozinha, sai em busca dos
meras áreas. Uma sociedade que limi- pensamento e de julgamento, a curio- tesouros escondidos nas gavetas, ces-
ta a liberdade da pessoa para estudar, sidade, a imaginação, as quais não tas de papel e latas de lixo. Esta ânsia
questionar, ou ter experiências diver- têm sido encorajadas em sala de aula. pela descoberta é como uma fome
sas, restringirá as suas oportunidades Outros traços como obediência, aten- insaciável que o impele incessante-
e conseqüentemente diminuirá a pro- ção para com os colegas, autoridade e mente para a frente. Está caindo de
babilidade de contribuições criativas. conformismo tendem a ser mais acen- sono mas não pode parar. A fome
•Uma sociedade favorece a criativida- tuados, talvez por facilitar a discipli- pela experiência sensorial é tão inten-
de na medida em que encoraja uma na, o bom desempenho exigidos pelos sa e consumidora quanto a fome físi-
abertura a experiências internas e ex- professores, e o alcance dos objetivos ca dos primeiros meses de vida."
ternas. Desta forma, uma sociedade propostos pelo sistema educacional, Mas não é apenas na escola que a
onde predomina " n ã o faça isto", que, em larga escala, enfatiza o domí- curiosidade, a espontaneidade e ou-
"não tente aquilo", restringe a liber- nio de conhecimento, criando-se pou- tros traços associados à criatividade
dade de questionar e a autonomia cas oportunidades para o desenvolvi- são desestimulados. Também nos li-
necessária à criatividade. mento da habilidade de solucionar vros de contos endereçados às crian-
•Uma sociedade encoraja a criativida- problemas de uma forma criativa. ças, tende-se a enfatizar uma criança
de na medida em que valoriza a mu- O que os nossos dados de pesquisa passiva, obediente, onde uma atitude
dança e a originalidade. têm indicado é que, apesar da criativi- de curiosidade é quase sempre punida
• A criatividade é encorajada em uma dade ser algo valorizado pela socieda- e a desobediência invariavelmente
sociedade onde os indivíduos criati- de, o indivíduo criativo não é bem castigada. Este aspecto foi constatado
vos são reconhecidos socialmente e aceito e nem tampouco é estimulado por Abramovich (1983), através de
encorajados em suas pesquisas e inda¬ em nosso meio. Isto porque apresenta uma análise dos livros que as nossas
gações. traços de personalidade e característi- crianças lêem, levando-a a concluir
Apesar do reconhecimento de que cas que são incompatíveis com aque- que a nossa literatura infantil é dire-
mais do que nunca necessitamos de las mais enfatizadas pelos agentes so¬ cionada no sentido de fortalecer
condições mais favoráveis ao desen- cializadores, pais e professores. Haja aqueles mesmos traços enfatizados
volvimento do pensamento criador, vista a curiosidade da criança, que pela família e pela escola, de obediên-
temos observado que muito pouco tende a ser bloqueada tanto no lar cia, de conformismo e de passividade.
tem sido feito no sentido de se promo- quanto na escola. Este traço, que é Esta curiosidade e busca incessante
verem condições mais favoráveis ao uma característica observada não de novos estímulos tendem a ir decli-
desenvolvimento e manifestação da apenas na espécie humana, mas tam- nando progressivamente. Como não
criatividade nos meios educacionais. bém entre outros mamíferos e aves são encorajadas, sendo mesmo puni-
Isto se deve, em parte, à existência de (os pássaros, segundo alguns etólo¬ das em muitas ocasiões, tendem a per¬
manecer bloqueadas ou inibidas em dos valores dominantes em nossa es- • Hostilidade com relação ao aluno
muitos contextos e situações. Neste cola, onde a tônica é a reprodução do que questiona, que critica, que dis-
sentido, observamos que, em um estu- conhecimento e a memorização de fa- corda.
do junto a professores de 1° grau tos e conceito apenas. Pouco ou quase •Pressão ao conformismo, que se ma-
(Alencar, 1984), onde eram solicita- nada se faz no sentido de levar o nifesta através de um currículo infle-
dos a indicar os traços mais marcan- aluno a pensar criativamente ou criti- xível, e de uma rotina em sala de aula
tes de seus alunos, poucos foram camente, ou treiná-lo nos passos a se- que não se altera.
aqueles considerados curiosos por rem seguidos diante de um problema, •Ênfase exagerada na reprodução do
seus professores. Tal fato possivel- para o qual não tem uma solução conhecimento em detrimento da pro-
mente reflete os valores dominantes pronta e imediata. Tais habilidades dução do conhecimento.
em nossa escola e as características de são, entretanto, de crucial importân- •Ausência de uma preocupação em
nosso ensino, o qual muito raramente cia no processo de preparar os nossos favorecer o desenvolvimento de um
canaliza a curiosidade da criança para alunos para lidar com um mundo autoconceito positivo e sentimentos
explorar, para questionar, para esti- complexo e cheio de desafios, onde de competência escolar.
mular seus interesses, para desvendar tanto as tarefas da ciência, quanto da •Baixas expectativas tanto com rela-
o desconhecido e para levantar e tes- tecnologia, da produção e da lideran- ção ao potencial criador do aluno,
tar hipóteses. ça estão se tornando progressivamen- quanto com respeito às suas habi¬
Em função de uma ausência de um te mais complexas e exigindo progres- lidades de análise, síntese e avalia¬
esforço sistemático para o treino de sivamente mais que os indivíduos fa- ção.
habilidades criativas e do pensamento çam uso de suas habilidades críticas e Na medida em que estas barreiras
crítico, ouve-se com freqüência uma criativas. É necessário que voltemos forem sendo gradativamente elimina-
queixa por parte dos professores, os olhos para esta dimensão e passe- das e técnicas de ensino criativas fo-
mesmo daqueles que lecionam em mos a investir maciçamente em seu rem implementadas, estaremos pro-
universidades, de que os alunos não desenvolvimento. movendo o comportamento criativo
sabem pensar, e que tendem, na maio- Para tal, é necessário que algumas em nossas escolas. É nossa responsa-
ria das vezes, a simplesmente repetir o barreiras à manifestação da criativi- bilidade, como estudiosos do com-
que lêem nos livros ou o que o profes- dade do aluno sejam conhecidas e portamento humano, sensibilizar
sor diz em sala de aula. A grande progressivamente suprimidas. Dentre educadores no sentido de que criem
maioria tem dificuldade em definir elas, se destacam: condições favoráveis ao desenvolvi-
problemas e em argumentar com cla- • Atitudes autoritárias por parte do mento do potencial pleno de cada
reza. Isto possivelmente é um reflexo professor. indivíduo e, especialmente, de seu po-
tencial criador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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