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FROMM, Erich. A Arte de Amar. I (Escaneado) PDF
FROMM, Erich. A Arte de Amar. I (Escaneado) PDF
CONSELHO EDITORIAL
Niels Bohr, Richard Courant, Hu Shih, Ernest Jackh, Robert M.
Maclver, Jacques Maritaim J. Robert Oppenheimer, Radhakrishnan,
Alexander Sacha, L I. Rabi
A
1. ARTE
DE AMAR
TRADUÇÃO DE
MILTON AMADO
OS EDITORES
IMPRESSO NO BRASIL
Pfl/NTE0 8.211,
O que esta Coleção significa
P
ERSPECTIVAS DO MUNDO é um plano de apre-
sentar livros sucintos sôbre setores variados, de
autoria de pensadores contemporâneos dos mais
responsáveis. Seu objetivo é revelar novas tendências
básicas da civilização moderna, interpretar as fôrças
criadoras que agem no Oriente assim como no Ocidente,
e apontar a uma nova consciência aquilo que possa con-
tribuir para mais profunda compreensão das relações
mútuas entre o homem e .o universo, o indivíduo e a
sociedade, e dos valores de que todos os povos compar-
tilham. PERSPECTIVAS DO MUNDO representa 'a
comunidade mundial de idéias num universo de debate,
acentuando o princípio da unidade na humanidade, da
permanência dentro da mutação.
Desenvolvimentos recentes em muitos campos do
pensamento abriram possibilidades insuspeitadas de mais
profunda compreensão da situação do homem e de mais
adequada apreciação dos valores e aspirações humanos.
Tais possibilidades, ainda que produto de estudos pura-
mente especializados em setores restritos, exigem, para
ser analisadas e sintetizadas, nova estrutura, novo en-
quadramento, em que possam ser exploradas, enriqueci-
das e levadas avante em todos os seus aspectos, para pro-
veito do homem e da sociedade. Tal estrutura e tal
A ARTE DE AMAR 9
enquadramento, PERSPECTIVAS DO MUNDO procura a inflexível necessidade de descobrir um principio de
defini-los no esperançoso rumo de uma doutrina do diferenciação, e contudo de relação, bastante lúcido para
homem. justificar e purificar o conhecimento científico, filosófico
Pretende ainda esta Coleção : vencer uma enfermi- e qualquer outro, ao mesmo tempo que aceitando sua
dade principal . da humanidade, a saber, os efeitos da mútua interdependência. Esta é a crise da consciência
atomização do conhecimento produzida pela acabrunhante que se articula através da crise da ciência. É o novo
acumulação de fatos que a ciência criou; esclarecer e despertar.
sintetizar idéias por meio da profunda fertilização dos Esta Coleção se dedica a reconhecer que tôdas as
espíritos; mostrar, de diversos e importantes pontos de grandes mudanças são precedidas de vigorosa reavaliação
vista, a correlação de idéias, fatos e valores que estão em e reorganização intelectuais. Nossos autores estão cons-
perpétuo jôgo mútuo; demonstrar o caráter, a conexão, cientes de que o pecado da arrogância pode ser evitado
a lógica e a operação do organismo inteiro da realidade, mostrando-se que o próprio processo criador não é uma
mostrando ao mesmo tempo a persistente interrelação atividade livre, se por livre entendermos o arbitrário ou
dos processos da mente humana e, nos interstícios do o não relacionado com a lei cósmica. De fato, o processo
conhecimento, revelar a síntese interior e a unidade or- criador na mente humana, o processo de desenvolvimento
gânica da própria vida. na natureza orgânica e as leis básicas do reino inorgâ-
PERSPECTIVAS DO MUNDO sustenta a tese de nico podem ser apenas expressões variadas de um pro-
que, apesar da diferença e diversidade das disciplinas cesso formativo universal. Assim, PERSPECTIVAS DO
representadas, existe forte acôrdo comum entre seus au- MUNDO espera mostrar que, embora o presente período
tores, no que diz respeito à esmagadora necessidade de apocalíptico seja de tensões excepcionais, também existe
contrabalançar a multidão de incitantes atividades cientí- em ação um movimento excepcional no rumo de uma
ficas e investigações de fenômenos objetivos, da física à unidade compensadora que não possa violar o derradeiro
metafísica, da história e da biologia, relacionando-as com poder moral que embebe o universo, êsse mesmo poder
experiências significativas. A fim de oferecer êsse equi- de que todos os esforços humanos devem, afinal, depen-
líbrio, é necessário estimular a compreensão do fato bá- der. Dêsse modo, podemos chegar a compreender que
sico de que, afinal, a personalidade humana individual existe uma independência de crescimento espiritual e
deve atar tôdas as pontas sôltas em um conjunto orgâ- mental que, embora condicionada por circunstâncias,
nico, deve relacionar-se consigo mesma, com a humani- nunca é pelas circunstâncias determinada. De modo
dade e com a sociedade, ao mesmo tempo que aprofunda idêntico, a grande pletora de conhecimentos humanos pode
e incentiva sua comunhão com o universo. Alicerçar êsse ser correlacionada com a penetração na natureza da na-
espírito e gravá-lo na vida espiritual e intelectual da tureza humana, ao ser sincronizada com a ampla e pro-
humanidade, nos que pensam como nos que atuam, é em funda escala do pensamento e da experiência humanos.
verdade enorme e desafiante tarefa, que não pode ser
Realmente, o que falta não é o conhecimento da estrutura
deixada totalmente à ciência natural, de um lado, nem à
do universo, mas a consciência da unicidade qualitativa
religião organizada, do outro. Confronta-nos, realmente,
da vida humana.
12 ERICH FROMM
Preâmbulo
A ARTE DE AMAR 15
conhecer-lhe os óbices, assim como as condições
de sua realização, para evitar complicações des-
necessárias, tentei tratar do problema em lin-
guagem que, tanto quanto possível, não é técnica.
Pela mesma razão, também reduzi ao mínimo as
referências à literatura sôbre o amor.
Para outro problema não encontrei solução
completamente satisfatória: foi o de evitar re-
petição de idéias expressas em anteriores livros
meus. O leitor familiarizado, especialmente, com Quem nada conhece, nada anut.
Evasão da Liberdade, O Homem para Si Mesmo Quem nada pode fazer, nada compreende.
e A Sociedade Sadia encontrará neste livro mui- Quem nada compreende, nada vale. Mas
tas idéias manifestadas nessas obras precedentes. quem compreende também ama, observa,
vê. . . Quanto mais conhecimento houver
Contudo, A Arte de Amar de modo algum é prin-
inerente numa coisa} tanto maior o
cipalmente uma recapitulação. Apresenta muitas
amor... Aquele que imagina que todos
idéias além das prèviamente expressas e, muito
os frutos amadurecem ao mesmo tempo,
naturalmente, mesmo idéias antigas às vêzes ga- como as cerejas, nada sabe a respeito
nham perspectivas novas pelo fato de se centra- das uvas.
lizarem tôdas em tôrno de um tópico, o da arte
de amar. PARACELSO
16 ERICH FROMM
É o Amor uma Arte?
A Teoria do Amor.
A ARTE DE AMAR 27
volvendo sua razão, encontrando uma nova har- as coisas e as pessoas, de modo ativo; signi-
monia, que seja humana, em lugar da harmonia fica que o mundo nos pode invadir sem que
pre-humana irrecuperavelmente perdida. tenhamos condições para reagir. Assim, a se-
Quando o homem nasce — a raça humana paração é a fonte de intensa ansiedade. Além
assim como o indivíduo — é lançado fora de unia disso, ela dá origem à vergonha e ao sentimento
situação que era definida, tão definida quanto de culpa. Esta experiência de culpa e vergonha
os instintos, para uma situação indefinida, incer- ria separação está expressa na história Bíblica
ta e exposta. Sómente há certeza com relação de Adão e Eva. Depois que Adão e Eva come-
ao passado — e, quanto ao futuro, apenas com ram da "árvore do conhecimento do bem e do
relação à morte. mal", depois que desobedeceram (pois não há
bem nem mal a menos que haja a liberdade de
O homem é dotado de razão; é a vida cons-
desobedecer), depois que se tornaram humanos
ciente de si mesma; tem, consciência de si, de
por se terem emancipado da original harmonia
seus semelhantes, de seu passado e das possibi-
animal com a natureza, isto é, depois de seu nas-
lidades de seu futuro. Essa consciência de si
cimento como seres humanos, — viram que "es-
mesmo como entidade separada, a consciência de
tavam nus e ficaram envergonhados". Devería-
seu próprio e curto período de vida, do fato de
mos imaginar que um mito tão antigo e elementar
haver nascido sem ser por vontade própria e de
como êste tenha a moral pudica da concepção do
ter de morrer contra sua vontade, de ter de
século XIX e que o ponto importante que a his-
morrer antes daqueles que ama, ou êstes antes
tória deseja mostrar-nos é a confusão por esta-
dêle, a consciência de sua solidão e separação,
rem visíveis seus órgãos genitais? Dificilmente
de sua impotência ante as fôrças da natureza e
poderia ser assim e, se entendermos a história
da sociedade, tudo isso faz de sua existência
com espírito vitoriano, perderemos o ponto prin-
apartada e desunida uma prisão insuportável.
cipal, que parece ser o seguinte: depois que o
Êle ficaria louco se não pudesse libertar-se de
homem e a mulher ficaram conscientes de si mes-
tal prisão e alcançar os homens, unir-se de uma
mos e cada um do outro, tiveram a consciência
forma ou de outra com êles, com o mundo ex- de que eram separados, de sua diferença, tanto
terior. quanto de pertencerem a diferentes sexos. Mas,
A experiência da separação desperta a an- ao reconhecerem sua separação, permaneceram
siedade; é, de fato, a fonte de tôda ansiedade. estranhos, porque ainda não haviam aprendido
Ser separado significa ser cortado, sem qualquer a amar um ao outro (o que é também tornado
capacidade de usar os poderes humanos. Eis claro pelo fato de que Adão se defende culpando
porque ser separado é o mesmo que ser de- Eva, em vez de tentar defendê-la). A consciên-
samparado, incapaz de apreender o mundo, cia da separação humana, sem a reunião pelo
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eles a forma de um transe auto-provocado, às
socialmente modelada, tais indivíduos sofrem sen-
vêzes com a ajuda de drogas. Muitos ritos de timentos de culpa e remorso. Ao tentarem fugir
tribos primitivas oferecem vivo quadro desse tipo
da separação pelo refúgio no álcool e nos entor-
de solução. Num estado transitório de exaltação,
pecentes, sentem-se ainda mais separados depois
o mundo externo desaparece, e, com êle, o senti-
que termina a experiência orgíaca, e assim são
mento de estar dele separado. E como êsses ritos
levados a recorrer a ela com freqüência e inten-
são praticados em comum, acrescenta-se uma ex-
sidade aumentadas. Pouquíssimo diferente dis-
periência de fusão com o grupo qúe dá a tal
so é o recurso a uma solução orgíaca sexual. Até
solução o máximo de eficiência. Estreitamente
certo ponto, é uma forma natural e normal de
relacionada com essa solução orgíaca e muitas
superar a separação e uma resposta parcial ao
vêzes mesclada a ela está a experiência sexual.
problema do isolamento. Mas, em muitos indiví-
O orgasmo sexual pode produzir um estado se-
duos em que a separação não é aliviada por outros
melhante ao produzido por um transe, ou pelos
meios, a procura do orgasmo reveste-se de uma
efeitos de certas drogas. Ritos de orgias sexuais
função que não a faz muito diferente do alcoo-
comunitárias faziam parte de muitos rituais pri-
lismo e do vício das drogas. Torna-se uma ten-
mitivos. Parece que, depois da experiência or-
tativa desesperada para fugir à ansiedade en-
gíaca, o homem pode continuar por algum tempo
gendrada pela separação e resulta num sempre
sem sofrer demais com sua separação. Vagaro-
crescente sentimento de separação, visto como o
samente, a tensão da ansiedade sobe, e é de novo
ato sexual sem amor nunca lança uma ponte sôbre
reduzida pela realização repetida do rito.
o abismo entre dois seres humanos, senão mo-
Enquanto êsses estados orgíacos forem motivo
mentaneamente.
de prática comum numa tribo, não produzem eles
ansiedade ou culpa. Agir de tal modo é reto, Tôdas as formas de união orgíaca têm três
virtuoso mesmo, pois é um modo de que todos características: são intensas, violentas até; ocor-
compartilham, aprovado e requerido pelo pagé rem na personalidade total, no corpo e no espírito;
ou pelos sacerdotes; daí não haver razão para são transitórias e periódicas. Exatamente o opos-
que alguém se sinta culpado ou envergonhado. to é verdadeiro quanto àquela forma de união
que é, em muito, a solução mais freqüente esco-
Bem diferente é o caso quando a mesma solução
é escolhida por um indivíduo em uma cultura lhida pelo homem no presente e no passado: a
união baseada na conformidade com o grupo, seus
que deixou para trás essas práticas comuns. O
costumes, práticas e crenças. Aqui, mais uma
alcoolismo e o uso de drogas são as formas que
vez, encontramos considerável desenvolvimento.
o indivíduo escolhe numa cultura não orgíaca.
Em contraste com os que tomam parte na solução Numa sociedade primitiva o grupo é peque-
no; consiste daqueles com que alguém compar-
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A ARTE DE AMAR 35
gioso, sermos todos filhos de Deus, participar- mas idéias. A este respeito, deve-se também
mos todos da mesma substância humano-divina, olhar com certo ceticismo certas conquistas que
sermos todos um. Significa também que as pró- são costumeiramente louvadas como marcos de
prias diferenças entre indivíduos devem ser res- nosso progresso, tais como igualdade das mulhe-
peitadas, pois, se é verdade que somos todos um, res. É desnecessário dizer que não estou falan-
não menos verdade é que cada um de nós é uma do contra a igualdade das mulheres; mas os
entidade única, um cosmos por si mesmo. Tal aspectos positivos dessa tendência para a igual-
convicção da singularidade do indivíduo é mani- dade não devem enganar ninguém. Ela é parte
festada, por exemplo, na afirmativa Talmúdica: da inclinação para a eliminação de diferenças.
"Quem salva uma só vida faz como se salvasse A igualdade é adquirida exatamente a este pre-
o mundo inteiro; quem destrói uma só vida faz ço: as mulheres são iguais, porque já não são
como se houvesse destruido o mundo inteiro". mais diferentes. A proposição da filosofia das
Igualdade como condição para o desenvolvimento Luzes, l'âme n'a pas de sere, a alma não tem
da individualidade era também a significação sexo, tornou-se a prática geral. A polaridade
desse conceito na filosofia ocidental das Luzes. dos sexos está desaparecendo, e com ela o amor
Significava (mais claramente formulada por erótico, que se baseia nessa polaridade. Ho-
Kant) que nenhum homem deve servir de meio mens e mulheres tornam-se os mesmos polos,
para os fins de outro homem; que todos os ho- e não polos como opostos. A sociedade
mens eram iguais visto como eram fins, ~ente contemporânea advoga êsse ideal de igualdade não
fins, e nunca meios para qualquer outro. Acom- individualizada, porque necessita de átomos hu-
panhando as idéias da Filosofia das Luzes. pen- manos, cada qual o mesmo, a fim de fazê-los
sadores socialistas de várias escolas definiram a funcionar numa agregação de massa, suavemente,
igualdade como a abolição da exploração, do uso sem fricções, obedecendo todos ao mesmo coman-
do homem pelo homem, não importando que esse do e, contudo, convencido -cada qual de estar se-
uso fôsse cruel ou "humano". guindo seus próprios desejos. Assim como a mo-
Na sociedade capitalista contemporânea, o derna produção em massa exige a padronização
significado de igualdade transformou-se. Por dos artigos, também o processo social requer a
igualdade, faz-se referência à igualdade dos autô- padronização do homem, e tal padronização é
inatos, dos homens que perderam sua individua- chamada "igualdade".
lidade. igualdade, hoje significa "mesmice", em
vez de "unidade". É a mesmice das abstrações, A união pela conformidade não é intensa e
dos homens que trabalham nos mesmos serviços, violenta; é calma, ditada pela rotina e, por essa
têm as mesmas diversões, lêem os mesmos jornais, mesma razão, é muitas vêzes insuficiente para
experimentam os mesmos sentimentos e as mes- apaziguar a ansiedade da separação. A incidên-
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cia do alcoolismo, do vício de drogas, do sexua- os filmes pelos donos dos cinemas e pelas su-
lismo forçado e do suicídio na sociedade ocidental gestões de anúncios que êles pagam; o resto é
contemporânea é sintoma dessa falência relativa também uniforme: o passeio dominical de auto-
da conformidade de rebanho. Além do mais, tal móvel, a sessão de televisão, o jôgo de cartas, as
solução diz respeito principalmente à mente e festas sociais. Do nascimento à morte, de se-
não ao corpo e, por essa razão, é demasiado falha gunda a segunda-feira, de manhã à noite, tôdas
em relação às soluções orgíacas. O conformismo as atividades são rotinizadas e prefabricadas.
Como poderia um homem apanhado nessa rede
de rebanho tem apenas uma vantagem: é perma-
nente e não espasmódico. O indivíduo é intro- de rotina deixar de esquecer que é um homem,
duzido no padrão conformista com a idade de um indivíduo único, alguém a quem só é dada
esta oportunidade única de viver, com esperanças
três ou quatro anos e daí por diante nunca perde
e decepções, com tristezas e temores, com a ânsia
o contacto com o rebanho. Mesmo seu funeral,
que êle antevê como o último de seus grandes de amar e o horror ao nada e à separação ?
eventos sociais, está em estreita conformidade Terceiro meio de alcançar a união está a
com os padrões. atividade criadora, seja ela a do artista ou do
Além da conformidade como meio de aliviar artesão. Em qualquer espécie de' trabalho cria-
a ansiedade que nasce da separação, outro da dor, a pessoa que cria une-se a seu material, que
vida contemporânea deve ser considerado: o papel representa o mundo que lhe é exterior. Faça
do trabalho de rotina e do prazer de rotina. O um marceneiro uma mesa, ou um ourives uma
homem torna-se "sujeito a ponto", é parte da joia, cultive o camponês seu cereal, ou pinte o
fôrça de trabalho, ou da fôrça burocrática de pintor um quadro, em todos os tipos de obra
escreventes e gerentes. Tem pouca iniciativa, criadora o trabalhador e seu objeto tornam-se
suas tarefas são prescritas pela organização do um, o homem se une ao mundo no processo da
trabalho; existe mesmo pouca diferença entre os criação. Isto, porém, só permanece verdadeiro
que estão no alto da escada e os que ficam em para o trabalho produtivo, para a obra que eu
baixo. Todos realizam tarefas prescritas pela planejo, produzo e em que vejo o resultado de
estrutura total da organização, a velocidade pres- meu trabalho. No moderno processo de trabalho
crita, da maneira prescrita. Mesmo os sentimen- de um escrevente, do operário na plataforma sem
tos são prescritos: cordialidade, tolerância, leal- fim, pouco resta dessa qualidade unidora da obra.
dade, ambição e capacidade de conviver com todos O trabalhador torna-se apêndice da máquina ou
sem atritos. A diversão é rotinizada de maneiras da organização burocrática. Deixou de ser êle
semelhantes, embora não de todo tão drásticas. mesmo; daí porque não se verifica outra união
Os livros são escolhidos pelos clubes de livros, fora da do conformismo.
A ARTE DE AMAR 69
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consciência paterna sôbre sua razão e julga- pessoa transferir a necessidade de proteção ma-
mento. Além disso, a pessoa amadurecida ama terna para seu pai e as subseqüentes imagens
tanto com a consciência materna quanto com a do pai, caso em que o resultado final é seme-
paterna, apesar do fato de parecerem elas con- lhante ao do anterior, ou em que se desenvolverá
tradizer-se mütuamente. Se quisesse reter ape- numa pessoa de orientação unilateralmente pa-
nas a consciência paterna, tornar-se-ia áspera e terna, completamente entregue aos princípios da
inumana. Se quisesse apenas reter a consciên- lei, da ordem e da autoridade, faltando-lhe a
cia materna, estaria em condições de perder a capacidade de esperar ou receber amor incon-
capacidade de julgar e de impedir o desenvol- dicional. Tal desenvolvimento é ainda mais in-
vimento seu e dos outros. tensificado se o pai fôr autoritário e, ao mesmo
Nessé desenvolvimento do afeto centralizado tempo, fortemente ligado ao filho. Caracterís-
na mãe para o afeto centralizado no pai e em tico de todos êsses desenvolvimentos neuróticos
sua síntese ulterior reside a base da saude men- é o fato de que um princípio, o paterno ou o
tal e da completação da maturidade. Nas falhas materno, deixa de se desenvolver, ou — e é o
de tal desenvolvimento acham-se as causas bá- que ocorre no desenvolvimento neurótico mais
sicas da neurose. Embora esteja fora dos alvos grave — de que os papéis do pai e da mãe se
deste livro o trato mais amplo de tal tendência tornam confusos, tanto com relação às pessoas
do pensamento, algumas breves observações po- exteriores quanto com relação a êsses papéis no
dem servir para esclarecer esta afirmativa. interior da pessoa. Mais extenso exame pode
Uma causa de desenvolvimento neurótico mostrar que certos tipos de neurose, como a
pode residir no fato de ter um menino uma neurose obsidente, desenvolvem-se mais sôbre a
mãe amorosa, mas ultra-indulgente ou domina- base de um afeto paterno unilateral, ao passo
dora, e um pai fraco e desinteressado. Neste que outras, como a histeria, o alcoolismo, a
caso, pode êle permanecer agarrado a um afeto incapacidade de afirmar-se e de enfrentar a vida
materno antigo, desenvolvendo-se numa pessoa realisticamente, e as depressões, resultam da cen-
que depende da mãe, que se sente desamparada tralização na mãe.
e tem as características de empenho da pessoa
receptiva, isto é, receber, ser protegida, ser 3 — DOS OBJETOS DO AMOR
cuidada, faltando-lhe as qualidades paternas:
disciplina, independência, capacidade de domi- O amor não é, primacialmente, uma relação
nar a vida por si mesma. Pode tentar encon- para com uma pessoa específica; é uma atitude,
trar "mães" em tôda gente, às vêzes em mulhe- urna orientação de caráter, que determina a re-
res, às vêzes em homens em situação de auto- lação de alguém para com o mundo como um
ridade e poder. Se, por outro lado, a mãe fôr todo, e não para com um "objeto" de amor. Se
fria, sem correspondência e dominadora, pode a uma pessoa ama apenas a uma outra pessoa e é
A ARTE DE AMAR 71
70 ERICH FROMM
indiferente ao resto dos seus semelhantes, seu o teu próximo como a ti mesmo. O amor fra-
amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou terno é amor por todos os seres humanos; ca-
um egoismo ampliado. Contudo, a maioria crê racteriza-se pela própria falta de exclusividade.
que o amor é constituido pelo objeto e não pela Se desenvolvi a capacidade de amar, então não
faculdade. De fato, acredita-se mesmo que a posso deixar de amar meus irmãos. No amor
prova da intensidade do amor está em não amar fraterno há a experiência da união com todos
ninguém além da pessoa "amada". Êste o mes- os homens, da solidariedade humana, do sincro-
mo equívoco de que acima já falamos. Por nismo humano. O amor fraterno baseia-se na
não se ver que o amor é uma atividade, uma experiência de que todos somos um. As dife-
fôrça da alma, acredita-se que tudo quanto é ne- renças de talento, inteligência, conhecimento são
cessário encontrar é o objeto certo — e tudo o mesquinhas em comparação com a identidade do
mais irá depois por si. Tal atitude pode ser núcleo humano comum ,a todos os homens. A
comparada à de alguém que queira pintar mas, fim de sentir essa identidade é necessário pe-
em vez de aprender a arte, proclama que lhe netrar da periferia até ao núcleo. Se percebe
basta esperar pelo objeto certo, passando a pin- em outra pessoa principalmente a superfície,
tá-lo belamente quando o encontrar. Se verda- percebe principalmente as diferenças que nos
deiramente amo alguém, então amo a todos, amo separam. Se penetro até ao núcleo, percebo
o mundo, amo a vida. Se posso dizer a outrem, nossa identidade, o fato de nossa fraternidade.
"Eu te amo", devo ser capaz de dizer: "Amo Essa relação de centro a centro, em vez da de
em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me periferia a periferia, é "relação central". Ou,
a mim mesmo em ti". como Simone Weil expressou com tanta beleza:
Dizer que o amor é uma orientação que se "As mesmas palavras (por ex., um homem diz
refere a todos e não a um não implica, entre- à sua espôsa, "Eu te amo") podem ser lugares
tanto, a idéia de que não haja diferenças entre comuns ou extraordinárias, de acôrdo com a ma-
vários tipos de amor, que dependem da espécie neira por que sejam faladas. E essa maneira
de objeto que é amado. depende da profundidade da região de um ser
humano de que procedam, sem que a vontade
a) Amor fraterno. seja capaz de fazer qualquer coisa. E, por um
A mais fundamental espécie de amor, que maravilhoso concerto, elas alcançam a mesma
alicerça todos os tipos de amor, é o amor fra, região em quem as ouve. Assim, o ouvinte pode
terno. Entendo por isto o sentimento de res- discernir, se tiver algum poder de discernimento,
ponsabilidade, de cuidado, de respeito por qual- qual é o valor das palavras". (Gravity and
quer outro ser humano, o seu conhecimento, o trace, Simone Weil, Londres, Routledge, 1955).
desejo de aprimorar-lhe a vida. Desta espécie O amor fraterno é amor entre iguais; mas,
de amor é que a Bíblia fala, quando diz: ama na verdade, mesmo como iguais não somos sem-
80 ERICH FROMM
A ARTE DE AMAR 81
significando afeição possessiva. Muitas vezes temporânea, esta idéia parece inteiramente falsa.
encontramos duas pessoas "amando-se" uma à Supõe-se que o amor seja o resultado de uma
outra, sem sentirem qualquer amor por mais reação espontânea, emocional, quando alguém é
alguém. Seu amor, de fato, é um egoismo a de súbito apanhado por um sentimento irresis-
dois; são duas pessoas que se identificam mutua- tível. Neste conceito, apenas se vêem as peculia-
mente e que resolvem o problema da separação ridades dos dois indivíduos envolvidos — e não
ampliando em dois o singular individual. Têm o fato de serem todos os homens parte de Adão
a experiência de superar a solidão e, contudo, e tôdas as mulheres parte de Eva. Deixa-se de
por estarem separadas do resto da humanidade, ver um fator importante no amor erótico, o da
permanecem separadas uma da outra e alienadas vontade. Amar alguém não é apenas um senti-
de si mesmas; sua experiência de união é uma mento forte: é uma decisão, um julgamento, unia
ilusão. O amor erótico é exclusivo, mas ama na promessa. Se o amor apenas fôsse um sentimen-
outra pessoa tôda a humanidade, tudo quanto to, não haveria base para a promessa de amar-se
vive. É exclusivo apenas no sentido de que só um ao outro para sempre. O sentimento vem
me posso fundir plena e intensamente com uma e pode ir-se. Como posso julgar que ficará
pessoa. O amor erótico apenas exclui o amor para sempre, se meu ato não envolve julgamento
aos outros no sentido da fusão erótica, da plena e decisão?
entrega em todos os aspectos da vida, mas não no Levando essas opiniões em conta, pode-se
sentido do profundo amor fraterno. chegar á posição de que o amor é exclusivamente
O amor erótico, se é amor, tem uma premissa um ato de vontade e entrega, e portanto, funda-
que eu ame da essência de meu ser e experi- mentalmente, não importa quem sejam as duas
mente a outra pessoa na essência do seu pessoas. Seja o casamento arranjado por outros,
Em essência, todos os seres humanos são idênti- ou resultado de escolha individual, uma vez con-
cos. Somos todos parte de Um; somos Um. cluido, o ato da vontade assegurará a continuação
Sendo assim, não fará qualquer diferença quem do amor. Esta concepção parece desprezar o
amemos. O amor será essencialmente um ato caráter paradoxal da natureza humana e do amor
de vontade, de decisão de entregar minha vida erótico. Somos todos Um — e contudo cada um
completamente à de outra pessoa. Isto é, em de nós é uma entidade única, induplicável. Em
verdade, o que existe de racional por trás da nossas relações com os outros o mesmo paradoxo
idéia da indissolubilidade do casamento, como se repete. Por sermos todos um, podemos amar
por trás das muitas formas de matrimônio tra- a todos do mesmo modo, no sentido do amor
dicional, em que os dois participantes não se fraterno. Mas, por sermos todos também dife-
escolhem um ao outro, mas são escolhidos um rentes, o amor erótico requer certos elementos
para o outro — esperando-se contudo que específicos, altamente individuais, que existem
mutuamente se amem. Na cultura ocidental con- entre certas pessoas, mas não entre tôdas.
A Prática do Amor