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SABUCALE - Revista do Museu do Sabugal, 10 (2018-19)

Cruciformes rupestres do Baraçal (Sabugal)


M a r c o s O só r i o ( * )

A descoberta das gravuras


No decurso da referência popular à existência do Penedo dos
Namorados nas proximidades do Baraçal e do excelente estudo sobre
este monumento apresentado no fascículo n.º 7 da Sabucale (Almagro-
Gorbea e Torres, 2015), fomos também informados pelo Sr. Carlos
Afonso Borregana (atual Presidente da Junta de Freguesia do Baraçal)
do achado de algumas cruzes gravadas nas proximidades do referido

Fig. 1 - Localização do Penedo dos Namorados e dos respetivos cruciformes rupestres na


Carta Militar de Portugal nº 215.

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penedo, casualmente detetadas ao entardecer, com o sol rasante a


incidir na laje granítica.
Esta descoberta arqueológica, já referida anteriormente (Idem,
2015: 13), não fora ainda objeto de um merecido levantamento. Trata-
-se de uma ocorrência rara, pois apenas se conhecem, no concelho
do Sabugal, os cruciformes da Pedra das Cruzinhas da freguesia da
Bendada, também já publicados nas páginas da Sabucale (Caninas et
al., 2011).
O painel de gravuras rupestres agora identificado constitui
um achado de grande interesse, não só pelo valor gráfico, mas pelo
contexto onde se situa, contribuindo para a interpretação do “lugar”,
no sentido antropológico do termo. A sua publicação merecia ser feita
conjuntamente com a nova abordagem ao Penedo dos Namorados
apresentada nesta mesma revista (Clamote et al., 2018-2019: 73-100).
Para este estudo, procedeu-se à limpeza da totalidade da superfície
granítica, retirando os líquenes e musgos existentes, para permitir a
correta visualização da área gravada (Fig. 2). Seguidamente, realizou-se
o levantamento fotográfico sistemático de toda a laje, em dia de pouca
luminosidade, com vista ao tratamento fotogramétrico através do
software 3DF Zephyr Free. Com a aplicação dos filtros de sombreamento,
próprios deste recurso computacional, juntamente com o levantamento
noturno com luz artificial, foi possível detetar o conjunto de elementos
gravados e decifrar o seu desenho, conforme mostramos na Figura 7.
Os resultados do diagnóstico noturno e da renderização informática da
imagem superaram as nossas expectativas e expuseram a existência de
mais cruzes, para além das que se observavam com a luz solar.
Infelizmente, o grau de meteorização da superfície e a própria
natureza grosseira do granito impediram a preservação do conjunto
gravado, na sua fisionomia original, encontrando-se o painel
bastante apagado e até danificado em algumas áreas pontuais. Ainda
recentemente, no incêndio do verão de 2019, tivemos conhecimento do
movimento de máquinas pesadas de rescaldo do fogo, nas imediações,
que deixaram marcas no rochedo.

Descrição do painel gravado


O afloramento com gravuras fica a 40 metros para noroeste do Penedo
dos Namorados, numa área denominada pelo topónimo Prado Velho
na carta militar n.º 215 (Fig. 1). O achado situa-se nas coordenadas
geográficas (WGS84) 40.391109 / -7.116655, à cota de 850 metros,
numa linha de festo, divisória das bacias da ribeira do Bezerrinho (que
corre para NE, desaguando na ribeira do Boi) e da ribeira do Couço (que
corre para sul e vai desaguar na ribeira da Paiã). Esta crista topográfica
prolonga-se, para leste, pela serra do Baraçal, que tem um máximo

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geodésico de 886 metros (Fig. 1). O terreno apresenta-se atualmente


inculto, revestido por alguma vegetação rasteira, mato e escassas
árvores (carvalhos e pinheiros). O potencial estratigráfico é bastante
reduzido e, devido às formações rochosas filonianas e aos aglomerados
de aplitopegmatitos existentes, o solo encontra-se coberto de inúmeros
fragmentos de quartzo e feldspato (ver melhor descrição em Clamote et
al., 2018-2019: 78).

Fig. 2 - Uma perspetiva geral do painel de gravuras rupestres.

Estas gravuras rupestres distam 1,5 km para oeste da povoação


do Baraçal (Fig. 1) e 3 km para sul do castelo de Vila do Touro. O local
tem algum domínio visual da paisagem a norte e, embora o Penedo
dos Namorados não se situe em lugar proeminente, nem se encontre
propriamente escondido, ele é dificilmente distinguível desde os
núcleos populacionais vizinhos.
É possível aceder ao sítio praticamente numa hora de caminhada
desde Vila do Touro, estando no limite natural do território de exploração
do povoado da Idade do Ferro que aí existiu (ver mapa em Almagro-
Gorbea e Torres, 2015: 15). A 200 metros para oeste das gravuras,
passava o antigo caminho medieval de ligação entre Vila do Touro e
Sortelha, que constituía uma importante via de comunicação entre os
dois castelos da linha fronteiriça portuguesa, que faziam frente aos
redutos leoneses da margem direita do rio Côa, em momento anterior ao
Tratado de Alcanizes (1297). Este trajeto viário pode ser bastante antigo
e recuar aos tempos romanos e pré-romanos. Portanto, a localização
deste penedo emblemático, e das respetivas gravuras, não é aleatória e
está seguramente associada a estas duas condicionantes espaciais.

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A laje gravada encontra-se rente ao chão, orientada ligeiramente


a nordeste, com uma extensão máxima de 7X3 metros, ganhando maior
proeminência do lado setentrional e atingindo, a partir de aí, 1 metro de
altura acima do solo (Fig. 2). Na zona existem outros pequenos penhascos
sobrelevados, não sendo fácil perceber o motivo por que foi escolhido
este, a não ser pelo facto de se tratar de uma superfície rochosa bastante
ampla e alisada, que permitia um esquema compositivo adequado.

Fig. 3 - Fotogrametria do painel de cruciformes rupestres, visto desde sudoeste.

O granito destes afloramentos é muito grosseiro, tipo dente de


cavalo, composto principalmente por biotite, quartzo e feldspato de
elevado calibre (ver comentários de Clamote et al., 2019-2020: 81). O
afloramento soerguido, a sul da laje, está profundamente afetado pela
erosão, mostrando a sua superfície áspera, discordante do alisamento
geral onde se encontram os cruciformes (Fig. 2). Não sabemos, porém,

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se esse acabamento resulta de algum tratamento prévio ou se foi apenas


fruto do desgaste natural e antrópico.
O painel de gravuras reparte-se em três grupos distintos, tendo
em conta o seu posicionamento na laje, as características dos motivos
representados e o tipo de traço. O local escolhido para a gravação
de cada conjunto foi intencionalmente diferenciado, consoante as
determinações ideológicas, iconográficas e, talvez, cronológicas.
O Grupo A situa-se numa espécie de recanto natural, na
extremidade setentrional, onde o afloramento se eleva acentuadamente.

Fig. 4 - Recanto natural do afloramento onde se localizam as gravuras do Grupo A.

Fig. 5 - Pormenor das gravuras do Grupo A.

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O seu traço é pronunciado e está menos erodido, mas encontra-se


bastante deteriorado, nessa área, por intrusões minerais de elevado
calibre (Fig. 5).
O conjunto encontra-se apartado das restantes gravuras e
parece-nos mais antigo. Aí assinalam-se 6 motivos homogeneamente
agrupados (Fig. 6), compostos por duas cruzes, três semicírculos e uma
covinha com 6 cm de diâmetro e 1,5 cm de profundidade (Fig. 5). As
figuras denotam um esquema compositivo uno, arrumadas com uma
lógica própria, ao contrário dos restantes cruciformes.

Fig. 6 - Fotogrametria e interpretação dos motivos gravados do Grupo A.

A covinha chamou-nos a atenção por ser a única e pela forma


intencional como se associa aos motivos representados. É um elemento
frequente em painéis de gravuras rupestres peninsulares, em grupo ou
isolado, com morfologias díspares e cronologias muito variadas. Vários
investigadores tentam interpretar, sem sucesso, estas representações
constantes nas rochas decoradas, atribuindo-lhes carácter lúdico ou
funcional, como sinais demarcadores de zonas sagradas/funerárias ou
ligadas a rituais de carácter socio-religioso, designadamente oracular.
Contudo, o seu verdadeiro significado e simbologia continuam a ser
desconhecidos (Henriques et al., 1995; López Plaza, 1999: 302; González
Cordero e Barroso Bermejo, 2003: 89-90; Martins, 2006: 66).
As cruzes distinguem-se das restantes, especialmente pela base
subtriangular, havendo ainda os motivos semicirculares, com pontos
ou traços no interior, que se identificam nos painéis de arte rupestre
esquemática da região envolvente, datáveis da Idade do Bronze, e
são denominados como ferraduras (Santos, 2006; Santos, 2008;
Lima, 2008-2009: 118; Reis, 2013; Santos, 2016). Os cruciformes e
as ferraduras serão, provavelmente, os elementos gráficos rupestres

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mais frequentemente
associados na arte
rupestre, independente-
mente da cronologia.
Na parte central,
ocupando a maior
extensão da laje gravada
(numa área de 2,5X1 m),
encontra-se o Grupo B,
constituído por 17 motivos
cruciformes. São figuras
compostas por dois meros
traços cruzados, feitos por
abrasão, tratando-se de
cruzes de tipologia latina
simples (em que o traço
vertical é maior), que são
as mais comuns na arte
rupestre (Valdez, 2010:
68). Quatro cruciformes
possuem uma base de
configuração circular,
atravessada a meio pelo
traço vertical, idênticos
ao tipo 6 do quadro 1 de
Javier Fortea (1970-1971:
155). Nenhuma das cruzes
tem hastes elaboradas e
as bases não são muito
complexas. Além das
cruzes sem base existe,
aparentemente, uma base
sem cruz.
Os motivos
cruciformes estão hoje
bastante esbatidos, com
pouca profundidade
(fruto do posterior
desgaste natural e
antrópico), mas são as
figuras de maior tamanho
no painel, permitindo a
Fig. 7 - Fotogrametria e interpretação completa do
sua descoberta com a luz painel de gravuras.

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rasante solar. Existem cruzes com a dimensão máxima de 36X18 cm e


outras, mais pequenas, apenas com 20 cm de altura, atingindo algumas
2 cm de espessura máxima do traço, tendo originalmente sido bastante
impactantes para quem as observasse na laje granítica.
A sua dispersão pelo espaço livre não parece aleatória. Apesar
do aspeto caótico, denota-se uma certa organização ao longo de dois
principais eixos. Talvez não seja uma gravação realizada em momento
único, mas uma composição faseada. A repetição do gesto deu-se nos
espaços vazios, imediatamente ao lado das gravações preexistentes,
sem quaisquer sobreposições, o que explicaria as duas principais
orientações das cruzes, viradas a sul (7 casos) e a oriente (10 casos).
Esta última orientação dos motivos cruciformes é a mais adequada para
quem estivesse de frente para o Penedo dos Namorados (Fig. 10).
Por fim, mais descaído para o lado sul da superfície historiada,
encontra-se um terceiro conjunto de sinais diferenciados e de traço
mais fino, gravados com instrumento metálico aguçado (Grupo C). Os
motivos não são percetíveis, parecendo representar letras ou números,
dependendo da perspetiva posicional do observador.

Fig. 8 - Fotogrametria e interpretação dos motivos gravados no Grupo C.

A primeira hipótese, para quem se encontre a poente da laje,


olhando para o Penedo dos Namorados, sugere uma data, talvez 161(…),
mas a sequência numérica é muito indefinida. Se nos colocarmos de
costas para o Penedo dos Namorados, esses mesmos motivos gravados
parecem definir letras ladeadas por uma moldura. Com alguma
dificuldade julgamos divisar um J e um S, talvez ainda um T. A ser
verdade esta proposta alternativa, tratar-se-ia da sigla do nome próprio
de uma pessoa ou de um lugar. Não havendo nenhum topónimo nas
imediações que o justifique, o mais certo é que se trate da designação de

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um indivíduo, para o qual existem muitas possibilidades.


Efetivamente, as representações alfabetiformes de cronologia
moderna são comuns em muitos contextos rupestres (Caninas et al.,
2012: 321), e muitas vezes são acrescentadas aos próprios painéis de
gravuras proto-históricas, como aconteceu no Fial (Tondela) (Santos,
2008: 54) ou em Góios (Caminha) (Valdez, 2010: 68). São marcações
mais recentes, por sujeitos que detetavam as primitivas gravuras
existentes e deixavam a sua marca pessoal no painel, por razões
diversas, como aconteceu nos desenhos e assinaturas cinzeladas por
Alcino Tomé nos painéis de arte pré-histórica do Vale do Côa (Luís e
García-Diez, 2003: 212).

A interpretação do achado arqueológico


Os cruciformes gravados na rocha são um fenómeno recorrente no
território português e podem ter várias cronologias, contextos e
significados. A cruz foi empregue desde tempos pré-históricos em
diversas representações de arte rupestre, mas é o símbolo cristão por
excelência, seja em contextos arquitetónicos antigos ou modernos ou
em ambiente natural (Fortea, 1970: 152; Gómez-Barrera, 1993: 447;
Jacobs, 2017: 175;). Mais do que a identificação da crença religiosa
do autor, a cruz tem um carácter apotropaico, como meio de proteção
divina das propriedades, dos edifícios e dos espaços públicos, o que
explica a sua abundância (Osório, 2014: 162).

Fig. 9 - Marca cruciforme do termo de Vila do Touro, gravada num penedo junto ao
caminho de ligação a Sortelha.

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A cruz é um dos motivos de época moderna mais frequentemente


gravado, por exemplo, nos painéis do Vale do Côa (Baptista e Reis,
2006: 76) e os estudiosos galegos de arte rupestre atribuem geralmente
os cruciformes rupestres a períodos históricos (Lorenzo-Ruza, 1952:
139; Vázquez Várela, 1983: 46; Costas e Pereira, 1998: 131-173; Estévez,
2008: 127).
Longe de toda a simbologia judaica que se tem atribuído a
estas cruzes de base circular, quando aparecem gravadas nos vãos
dos edifícios (Balesteros e Santos, 2000: 333), elas encontram-se
isoladas ou em numerosos conjuntos nas mais diversas situações e,
frequentemente, nos próprios afloramentos rochosos (Fortea, 1970:
152). Por exemplo, junto à Igreja da Misericórdia de Sortelha (fora de
portas) conhece-se uma laje de granito rasante ao solo com 6 cruzes
gravadas, semelhantes a estas (Osório, 2012: 186). Ao mesmo tempo, na
face ocidental do penedo onde assenta a torre de menagem do castelo
de Sortelha, identificaram-se igualmente 7 cruzes gravadas, junto com
figuras humanas e um nome, datadas dos séculos XV-XVI (Osório,
2012: 145, fig. 146). São situações muito específicas e perfeitamente
integradas em contextos habitacionais medievais/modernos.
No presente caso estudado, é preciso ter em consideração a sua
localização numa área isolada e afastada dos núcleos de povoamento
histórico existentes na região. E, para estes cruciformes rupestres
apenas se avançam duas hipóteses explicativas, geralmente aplicadas
em outros casos conhecidos (Beltrán, 1989: 102):

1. Marcações do termo municipal


A primeira conjetura para o significado destas cruzes é que elas tivessem
sido gravadas na laje granítica no decurso da definição da extrema
administrativa entre os municípios de Vila do Touro e de Sortelha, pois a
sua posição geográfica não dista muito do limite atual entre as freguesias
do Baraçal e das Quintas de São Bartolomeu, que originalmente era a
extrema entre os dois primitivos concelhos medievais do vale do Côa.
Nas imediações deste local, mais para sul, a população indicou-
nos a existência de cruzes gravadas em penedos, isoladas (Fig. 9), que
assinalam os primitivos limites concelhios e devem recuar a 1508,
quando se fez a delimitação rigorosa do termo com marcos e cruzes
(conforme documento do Tombo da Vila: Osório, 2012: 52).
As marcações dos limites administrativos na pedra foram
comprovadas em inúmeros locais, mas poucos casos foram publicados,
conhecendo-se um raro exemplo, bem próximo daqui, no sítio do
Fontão (concelho da Guarda), num conjunto de afloramentos gravados
com cruciformes, com três datas (1699, 1700 e 1855) e a indicação
expressa da freguesia da «Vela» (Caninas et al., 2011: 50). A hipótese

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da presença de uma eventual data no painel do Baraçal (habitual nestas


definições de extremas), junto aos cruciformes, permitiria sabermos o
momento cronológico de confirmação do termo concelhio.
A utilização de símbolos cruciformes rupestres como balizas
municipais, ou até na demarcação de simples propriedades privadas, é
sobejamente conhecida (Ripoll Vivancos, 2014: 481), não só porque é
mais simples de executar na rocha, mas também porque a delimitação
das fronteiras sempre foi um ato com alguma componente simbólica
associada. Estas marcas resumem-se especialmente aos cruciformes
e covinhas (Afonso, 1993: 98; González Cordero e Barroso Bermejo,
2003: 98-99) e coincidem muitas vezes com painéis de gravuras pré
ou proto-históricas (por exemplo Caninas et al., 2011: 50; Lima, 2008-
2009: 115; Valdez, 2010: 68), com a plena consciência da preexistência
de outras figuras mais antigas (Baptista e Reis, 2006: 72).
No caso do Baraçal, esse ato poderia revestir-se ou não
de uma apropriação moderna da composição preexistente, pela
circunstância de esta se situar muito próximo do local onde foi, mais
tarde, estabelecido o limite administrativo entre os dois municípios.
Contudo, é questionável o termo estar assinalado numa laje ao nível
do chão e não num ponto elevado, bem como a sua marcação a cerca
de 200 m para sul da linha de festo que marcava o limite natural. Seria
apenas por ter havido uma associação do termo municipal a um local
mágico preexistente?
Assim, as diferenças morfológicas observadas entre estas cruzes
e as dos restantes penedos do limite municipal, a existência de dois
núcleos de gravuras no painel, um deles provavelmente mais antigo (o
Grupo A), e a proximidade ao Penedo dos Namorados, leva-nos a optar
por outra explicação.

2. Cristianização do rito pagão do Penedo dos Namorados


A possibilidade que estamos a considerar é a da reconversão do espaço
ritual proto-histórico, tendo em conta a natureza das práticas que se
realizaram neste local (Almagro-Gorbea e Torres, 2015: 16), dando
forma material a novos significados e funcionalidades que o local
ganhou pela sua cristianização (Gómez-Barrera, 1993: 447; Sanches
et al., 1998). Os textos clássicos de S. Martinho de Dume (séc. V) são
explícitos sobre estas questões, censurando o culto pagão das pedras e
os ritos de adivinhação pré-cristãos, no qual se enquadra este lugar, e
recomendavam a imposição de uma identidade cristã a estes espaços
cultuais (Baptista, 1983-1984: 76; Almeida, 2014: 188).
Assim, estamos perante a provável repetição das gravações, em
momentos distanciados no tempo, que ocorre em outras situações
conhecidas da arte rupestre galaico-portuguesa (Vázquez Várela, 1983:

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Fig. 10 - Uma perspetiva da laje gravada defronte do Penedo dos Namorados do Baraçal.

46; Sampaio e García-Diez 2000: 199; Martins, 2006: 68; Santos,


2008: 104-105; Lima, 2008-2009: 116; Caninas et al., 2011: 50).
O primeiro momento estaria pautado pelo conjunto de gravuras,
mais a norte, na superfície inclinada do afloramento, ocupando um
nicho natural afeiçoado (Fig. 4), virado para o Penedo dos Namorados.
Os motivos aí representados, como vimos, poderiam facilmente
enquadrar-se em outros ambientes rupestres proto-históricos (Figs.
5 e 6), contemporâneos aos ritos de índole céltica aqui praticados
(Almagro-Gorbea, 2015: 374).
Nesse caso, a explicação mais interessante seria a de um
testemunho de rituais oraculares e divinatórios, com ênfase na
fertilidade, com grafismos associados aos conceitos prevalecentes
nesses ritos, dando uma ancestralidade ao lugar, que se coaduna com
o contexto proto-histórico das duas estelas de guerreiro identificadas
nesta mesma freguesia (Santos et al., 2011) e a rede de povoamento
conhecida, remetendo os restantes cruciformes para momento
posterior, ao sabor dos novos conceitos e ideologias dominantes, mas
sempre em torno do Penedo dos Namorados.
Com a cristianização da sociedade, estes locais de práticas
mágicas pagãs foram frequentemente destruídos ou simplesmente
reconvertidos ao culto cristão, pela colocação de cruzes nos locais ou
nas imediações, ou pela edificação de pequenas ermidas (Sanches, et
al., 1998: 93; Almagro-Gorbea, 2015: 371; Almagro-Gorbea et al., 2017:

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23). Este fenómeno, recorrente por todo o ocidente peninsular, poderá


estar pautado, aqui no Baraçal, pela criação de um segundo momento
de gravação com cruzes na parte central da laje granítica.
A confirmar-se a proposta, este passaria a ser um dos locais que
melhor testemunha a reconversão religiosa das práticas associadas a
estas “penhas sagradas”, para além da mera gravação de 1 ou 2 cruzes
isoladas, como ocorre nos casos já conhecidos de Peña Carnicera de
Alcântara (Cáceres) (Almagro-Gorbea et al., 2017: 106-107), la Peña
de Gete (Burgos) (Almagro-Gorbea et al., 2018: 222-223), o Canto
de los Responsos de Ulaca (Ávila) (Almagro-Gorbea, 2006) e a rocha
dos Namorados de São Pedro do Corval (Reguengos de Monsaraz)
(Almagro-Gorbea e Torres, 2015: 13).
Os cruciformes mais recentes podem até ter adaptado motivos
esquemáticos preexistentes, sobrepondo-se e sofrendo acrescentos.
Uma das maiores cruzes do grupo central parece partir de uma figura
antropomórfica em phi, frequente nas gravuras proto-históricas
peninsulares. Por outro lado, sabe-se que as cruzes representaram
a figura humana, de forma estilizada, para diversas comunidades
pretéritas, e a própria origem do motivo cruciforme deve ser procurada
em momentos pré-históricos, resultante da síntese formal de figurações
antropomorfas (Fortea, 1970: 148; Baptista, 1983-1984: 76-77; Valdez,
2010: 32). Essa explicação poderia aceitar-se para os dois cruciformes
do Grupo A.
Concluindo, estamos perante um lugar com um enorme potencial
para o estudo dos ritos de origem celta no ocidente peninsular, à
medida que vamos fazendo observações e descobertas na envolvência
do Penedo dos Namorados, que conformam uma «paisagem sacra»
(Almagro-Gorbea et al., 2017) para as primitivas comunidades que
residiam nas atuais freguesias de Vila do Touro e Baraçal.
O sítio encontra-se já devidamente sinalizado por um painel com
texto explicativo, enquadrado num percurso pedestre promovido pela
Junta de Freguesia do Baraçal. Trata-se de um bom exemplo de estudo
e valorização turística de diversos patrimónios naturais, arqueológicos
e antropológicos, neste concelho, que esperamos seja replicado em
outros locais.

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