Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CRÔNICA 1
Fábio Porchat
Por favor, não urine no chão
Não sei se você reparou, mas agora, banheiro público vem com manual de
instruções. Dentro de qualquer um há uma placa ensinando o usuário a se comportar
no banheiro. "Por favor, não urine no chão", geralmente, é a primeira "dica". Eu, particularmente gosto muito
do toque "por favor". Como se fazer xixi na privada fosse um favor que a pessoa que vai ao banheiro pudesse
fazer pro restante da humanidade. Um sacrifício. Eu sei que é super difícil não urinar no chão, todos nós
adoraríamos urinar no chão, eu mesmo se pudesse só urinaria no chão.
Mas dessa vez, "Por favor, não urine no chão". Que tipo de informação é essa? Alguém chegou a ter
essa dúvida: Onde será que eu vou, no vaso ou no chão? Quem achou que podia urinar no chão? E mais:
alguém que estava prestes a urinar no chão, se sentiu impedido de urinar no chão por conta de uma placa que
diz "não"? Se fosse assim, bancos nunca seriam assaltados. Era só colocar na porta giratória: "Por favor, não
assalte esse banco". O que me assusta não é existir uma placa "Por favor, não urine no chão", mas pensar que
alguém achou melhor explicar esse detalhe porque as pessoas não estavam entendendo o funcionamento do
dia a dia de um sanitário.
O próximo passo é o quê? Um aviso de "inspire, expire"? Que pessoas somos nós que não sabemos
que urinar no chão do banheiro está errado? Se você não sabia, passe a saber que não pode. Inclusive, se você
é o cara que mija o banheiro masculino todo, parede, chão, pia, eu te peço: pare! Aliás, só pra você saber,
muita coisa não se pode fazer no banheiro. O banheiro não é uma terra de ninguém. Você não pode matar
ninguém no banheiro, por exemplo, não pode atear fogo no banheiro, não pode sublocar o banheiro pra sem
terras e você não pode urinar no chão do banheiro. Por favor! Será que precisa colocar tudo isso numa placa
também?
De repente, por via das dúvidas, é melhor, em cada banheiro, afixar na parede uma cópia da
Constituição Brasileira. Vai que, né? Quem são essas pessoas que não sabem fazer xixi? Devo colocar essa
placa no banheiro da minha casa? Devemos diminuir a maioridade penal dos mijões? Eu não sei, estou
confuso. No Brasil precisamos explicar as regras o tempo todo pras pessoas. No trânsito: não feche o
cruzamento. No aeroporto: exploração sexual de menores é crime. No elevador: verifique se o mesmo
encontra-se nesse andar. A gente não pensa mais? Somos guiados por placas?
E pra que servem essas placas de conduta que dizem aquilo que todos nós já sabemos? Me parece que
a discussão sobre o aborto está anos luz da discussão sobre não urinar no chão. Será que são essas placas que
nos dão o senso de certo e errado? Se não houver uma placa no metrô me dizendo pra ceder o lugar pra
idosos e gestantes eu não vou me levantar mais? Entendi.
Agora, se não tem placa, não é comigo. O governo que passe a explicar melhor as coisas através de
placas! É mais uma vez o brasileiro dizendo: não é comigo. Mas, no fundo, é assim mesmo. Precisamos que
nos digam o que podemos e o que não podemos fazer. As leis são isso. Os Mandamentos. Todo mundo sabe
que temos que respeitar o próximo. Mas vamos colocar isso no papel, só pra garantir.
Acho melhor começar a andar com uma placa pendurada no pescoço dizendo: por favor, não urine
em mim!
CRÔNICA 2
Antonio Prata
FLAVONOIDES!
Uns creem em Deus, outros no Diabo e há até quem espere do capitalismo a
redenção de nossas pobres almas: eu acredito em substância. Analiso a tabela
nutricional no rótulo de um chocolate com a seriedade de um exegeta*, procuro
verdades obscuras por trás da quantidade de calorias ou carboidratos de um suco de
laranja como um rabino cabalista. Sei que, pela interpretação correta daqueles míseros gramas de fibras, sódio
ou fósforo, pode-se vislumbrar a verdadeira face de Deus ou do Diabo. Se, na boca do povo, o demônio
atende por nomes como Tinhoso, Belzebu e Lúcifer, nas tabelas nutricionais esconde-se sob a alcunha de
gorduras saturadas, fenilalanina, colesterol, sódio e, de uns tempos para cá, gordura trans (não se deixe
enganar por esse nome simpático, com ar de disco do Caetano em 79: as gorduras trans, dizem os
especialistas, colam feito argamassa nas paredes das artérias).
Comecei a temer as substâncias com a fenilalanina. Não tenho a menor ideia do que seja, mas faz
alguns anos que a Coca-light traz o aviso, misterioso, soturno: contém fenilalanina. O McDonald’s, ainda mais
incisivo, colou um adesivo no balcão de suas lanchonetes: “Atenção, fenilcetonúricos: contém fenilalanina”.
Desde então, toda noite, ao pôr a cabeça no travesseiro, imagino diálogos como: “... pois é, menina, o Antonio!
Era fenilcetonúrico e não sabia. Fulminante. Tão novo, judiação...”
O cidadão atento deve ter notado que o glúten, de uns anos para cá, também ganhou uma certa
notoriedade nos rótulos. “Contém glúten”, dizem embalagens de uma infinidade de alimentos, sem mais
explicações. Qual é a do glúten? Faz bem para a vista? Ataca o fígado? Derrete o cérebro? Podem os
fenilcetonúricos comer glúten sem problemas?
Como bom crente, sei que as substâncias matam, mas também podem salvar. Pelo menos é o que
espero do chá verde e seus incríveis flavonoides, que venho consumindo com fervor e regularidade nas
últimas semanas. Você sabe o que são flavonoides? Pois é, eu também não, mas o rótulo do tal Green Tea
avisa, com grande júbilo (um pequeno gráfico), que uma garrafinha tem quatro vezes mais flavonoides do
que o suco de laranja e treze vezes mais do que o brócolis. Diz ainda, à guiza de explicação, tratar-se de um
poderoso antioxidante. Fico muito tranquilo: posso cair fulminado pela fenilalanina ou sofrer as insuspeitas
mazelas do glúten, mas de enferrujar, ao que parece, estou a salvo.