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FUTEBOL & OUTRAS HISTÓRIAS

CIP- Brasil. Catalogação-na- fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros,


RJ.
Saldanha, João, 1917
Futebol & outras histórias / João
Saldanha. - Rio de Janeiro: Record,
1988.

S154f

(Coleção Adão Juvenal de Souza)


1. Crônicas brasileiras. I. Titulo. 88-0683 CDD - 869.98 CDU -
869.0(81)-82

Copyright @ 1988 by João Saldanha Capa: Bob Gueiros

Direitos exclusivos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE


SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua
Argentina 171 - 20921 Rio de Janeiro, RJ - Te!.: 580-3668 Impresso no Brasil

ISBN 85 -1- 03'f132-X

PEDIDOS PEW REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922

***

JOÃO SALDANHA - FUTEBOL & OUTRAS HISTORIAS

Edição especial, fora do comércio, especialmente preparada pela Editora Record


para a MPM Propaganda.

***

SUMÁRIO

Aos Nossos Amigos 7


FUTEBOL & OUTRAS HISTÓRIAS Churrasco em Pigalle 11
Invasão em Varsóvia 17
A Liga das Mães Solteiras23
Operação Aniquilamento31
A Fronteira 43
O Jagunço 'Celestino 49
Liu Chao-si nos Tapeou 67
O Ministro do Câncer 85
Começou na UNE, Terminou em Pequim 89
Mr. Goncalves 97
O Intérprete 105
Maragatos e Chimangos121
O Cristo 131
A Silhueta 139
A COPA DA ESPANHA
Caso de Polícia 147
O Bom Velhinho 149
Beco sem Saída 151
A Copa Vai Começar155
Também Quero 157
Jogos Horizontais 159
Eles Não Gostam de Futebol 161
Sapato Alto 163
Coisas desta Copa 165
Um Jogo Bem Latino167

5
o Craque da Copa 169
. Jogo Ficou Fácil 173
"Toma, Faz o Teu..." 175
A Festa Bonita 177
Nem Sempre se Agüenta 179
.A Itália Mereceu 181
Futebol Caipira 183
Nem Sempre É Pênalti 185
GATO PRETO EM CAMPO DE NEVE
Gato Preto em Campo de Neve 189
Compra-se ou Vende-se 191
Emancipação da CBD 193
"O que Segura Governo Não É Futebol. É Tanque!" 197
O Grande Clássico203
Futebol Olímpico205

Aos Nossos Amigos

Uma das boas coisas da vida para se fazer sem compromisso é bater papo com João
Saldanha. Nem todos, porém, têm esse privilégio. Uma alternativa é ouvi-lo pelo
rádio ou pela TV: a mesma inteligência, o mesmo entusiasmo, as mesmas opiniões
bem informadas.

Para o seu grande público, João praticamente só fala de futebol. E como fala!
Para
o público menor, o dos privilegiados, o dos seus íntimos, fala de muito mais
coisas.
E que coisas!

Prosseguindo na tradição de oferecer aos seus amigos um livro por ano de


presente
de Natal, a MPM Propaganda reuniu. aqui o melhor dos dois mundos: o João
público, com uma seleção de suas crônicas escritas ao longo do tempo, e o outro,

conhecido de quem priva com ele: o João Saldanha contador de causos, como se diz
no seu Alegrete. E que causos!

Política, viagens, .aventuras, conflitos de terras, mulheres e até futebol.


Histórias de
vida, de vida que segue, como gosta de dizer, da vida do Brasil como ele o
conhece
e ama.

Futebol e outras histórias passa a fazer parte da Coleção Adão Juvenal de Souza,
iniciada em 1973 por

outro gaúcho, este de Cruz Alta, Érico Veríssimo. A coleção foi inspirada e
criada pelo
nosso companheiro que, ao nos deixar, legou-lhe o nome. Além de Érico Veríssimo
(duas
vezes, Solo de Clarineta I e 11), publicou Carlos Dru!)1Ríond de Andrade, Mario
Quintana, Menotti dei Picchia, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Jorge Amado,
Fernando Sabino, Guimarães Rosa, Barão de Itararé, Monteiro Lobato e Luís
Fernando
Veríssimo: escritores, poetas, sociólogos, humoristas, jornalistas bissextos.

Agora um jornalista profissional, ex-jogador que nunca chegou a Nilton Santos,


uma das suas devoções, técnico eventual - do seu Botafogo e da seleção
brasileira mas,
acima de tudo, um ser humano magnífico, de bem com a vida em qualquer situação
política ou geográfica.
À vontade batendo papo na esquina da Rua Miguel Lemos, em Copacabana, ou num
debate, sobre futebol ou qualquer outra coisa, em Moscou, Pequim, Londres, Paris
e ondé mais os percalços ou as atividades do momento o levarem.

Meus amigos, como diz o João, é com grande prazer e grande orgulho que lhes
oferecemos este Futebol e outras histórias. Ninguém fica indiferente ao que João
Saldanha fala ou escreve. Este livro fará o seu Natal e o seu Ano Novo melhores.
São os nossos votos. E talvez os faça até repensar, rever alguns conceitos.
Inclusive
sobre futebol.

Futebol & Outras Histórias

// Churrasco em Pigalle

Já disse que andei na Copa'do Mundo na França, em 1938.


Perdemos, mas tiramos um bonito terceiro lugar. Ganhar era difícil, tanto do
time da
Itália quanto do da Hungria, que tirou o segundo. Eram duas paradas. E resolvi
ficar
por lá. Tinha passado já uns dois meses em Paris, e naturalmente gostei
bastante.
Garotão e coisa e tal, eu fui ficando. Havia alguns jogadores brasileiros que já
andavam se arriscando na Europa. Na Itália e Espanha então nem se fala. Mas na
França, que eu saiba, estiveram o Jaguaré e o Sílvio Hoffman. Voltaram mais ou
menos nesta época, e dépois apareceram lá o Russo e o Raul. Ambos tinham sido do
Fluminense, e o Fernando Giudicelli e um tal de Pepe Villengui os levaram. Mas a
França era muito nacionalista em futebol, e só permitia um estrangeiro como
profissional em cada equipe. O Russo foi para o Racing com documentos falsos. Se
chamava Sandos, ou qualquer coisa parecida. O outro, o Raul, foi para outro
clube.
Nunca mais soube dele. E eu, jogadorzinho regular, arrumei uma boca na equipe
secundária do Red Star, um time mais ou menos, uma espécie de Bangu. Como era
amador, não tive de falsificar documentos.

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E fui morar em Sentier, lá perto da Rue de Rome, subindo como quem sai da
Gare Saint Lazare, 8? Arrondissement. Lugar quente e de pura onda. Lá por cima
se
toma o Boulevard Clichy e se está na Place Pigalle, centro sexual de Montmartre.
Russo veio morar junto, e no prédio estava o argentino Oscar Tarrio, grande
zagueiro que tinha sido do San Lorenzo de Almagro. Se não me engano, foi da
seleção argentina e campeão junto com o Valdemar de Brito. Tarrio jogava como
estrangeiro e era o cobra do time. Mas o caso era outro. Todos 'os sábados,
madame
Tarrio, uma ítalo-argentina gorda, assava um churrasco... Carne não era
problema.
Pagando bem se compra na França, até hoje, carne de primeiríssima. De gado
"puro". Finíssimo. O churrasco era feito na brasa, na parrilla, como dizem os
gringos. E o cheiro exalava por todo o predinho de três andares. Velho e com um
elevador daqueles que só cabem duas pessoas e tinha uma corda forte que passava
por dentro da cabine. A tal corda acionava um vácuo, e o elevador subia. Assim
como "elevador" de posto de gasolina. Por baixo dele saía do solo, onde também
se
enterrava, um baita cilindro que empurrava o bicho para cima e controlava a
velocidade na descida. Nos primeiros dias fiquei cismado com o troço. Mas havia
tantos em Paris que acostumei fácil.
Este temor não foi só meu. Não é por nada não, mas no Rio tínhamos vários
mais modernos e velozes. Aquele até que descia mais ou menos. Mas a subida até o
segundo andar era triste. O bichinho ia bem devagar . No terceiro, mal
alcançava.
Mais garantido tomar a escada.
Nos sábados, sempre o tal churrasco e outras coisas na parrilla. Uma
verdadeira parrillada, como dizem os argentinos. .Em resumo, tratava-se de
carnes
grelhadas.

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Mas o cheiro era algo de fantástico. Não que a França não tivesse bons bifes.
Não
era isso. O caso é que a madame Tardo assava a carne com molhos especiais. Fazia
o braseiro e era na grelha mesmo. Eles, os franceses, estavam acostumados ao
fogão
a gás. E a grelha dava aquele cheiro que invadia todo o predinho de Sentier.
Os moradores ficavam loucos e não poupavam elogios e "lambe-beiços". Mas
nós no nem-te-ligo. Nunca nos convidaram para nada, - então o que queriam?
Conheci uma moça, filha de uma viúva da Primeira Guerra, que eu levava
sempre para jantar. Algumas vezes ela foi ao churrasco, pois morava ali mesmo
bem
perto. Eu a levava na porta a toda hora e nunca me ofereceu um copo d'água
sequer.
E as duas, porque às vezes eu também convidava a "velha" para comer junto,
vinham correndo. Mas nunca tive uma forra.
Assim é a natureza, e eu explicava pensando que era porque as duas, uma
pensionista de falecido na guerra e a outra simples funcionária de um
laboratório,
viviam na conta.do chá. Por isso eram tão econômicas. Mas aos poucos fui sabendo
quanto elas ganhavam, pagavam de apartamento e tudo. A fácil conclusão foi de
que
se tratava de duas sovinas, que ganhavam mais do que eu e eram mesmo unhas-de-
fome. Barrei as duas no churrasco. Mas ainda andei levando a garota para comer
por
aqui e por ali. Mas no churrasco não.
Moravam no prédio dois bonitões, de físico atlético. Bonitos demais e muito
produzidos, o que me fez chegar à fácil conclusão de que se tratava de dois'
'boizões" . Em outras palavras, eram duas bichas. Mas faziam papel de machões
num show pornõ no Caprice Viennois, um cabaré até que dos bonzinhos, da Rue
Pigalle. E os dois, ou as duas, faziam caras, bocas e gestos a respeito do
churrasco.

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A toda hora vinham com aquele' 'oh-Iálá" dos franceses, quando querem
exaltar alguma coisa. E sempre essa onda era no sábado do churrasco. Até parece
que ficavam vigiando quando a gente entrava ou saía para comprar algumas coisas.
Se insinuaram de todo o jeito, mas nós endurecemos.
Ao fim de algum tempo, num sábado, o churrasco soberbo. Madame Tarrio se
esmerou e fez misérias num molho que ela disse ter aprendido lá em Rosario,
cidade
às margens do rio Paraná. Grande centro de exportação de gado em pé. Gado ' 'em
pé" significa que os animais viajam vivos. E é naquelas enormes gaiolas que
descem
o rio na direção de Buenos Aires. Carne tão boa que até os ingleses por vezes
arriscavam que a "tropa" de exportação "em pé" morresse de pneumonia na viagem
transatlântica. Isto não era muito difícil, pois bastava uma chuva fria para
castigar os
animais, e tudo ia para o beleléu. Mas os ingleses milionários inportavam esse
gado
a todo risco. Às vezes essa carne chegava muito cara, outras não. Claro que os
frigoríficos já existiam, e há muito tempo. Mas essa carne era diferente.
E como cheirava na parrilla do assado de madame Tarrio! E o molho que ela
preparava! As duas bichas enlouqueceram, e nós fizemos chantagem: se eles
dissessem tomo era o show, inteirinho, nós daríamos parte do churrasco. Do
contrário não havia acordo.
. O show do Caprice Viennois era famoso e muito bem montado. Duas partes.
entretanto eram as mais famosas e causavam grande sucesso. Uma era a da "pornô"
,
onde os dois tomavam párte. Eu estava invocado. Como é que eles agüentavam o
lance? Afinal, duas sessões por noite, e ainda por cima sábado e domingo tinha
matinê. Era preciso fôlego e muita saúde. E como o espetáculo

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fazia sucesso, o dono apresentava sempre, sem descanso. E nós pensávamos: Não é
possível. E eles não brocham! Como? Isso nos invocava.
A outra parte do show também fazia muito sucesso. Consistia numa cena onde
um chimpanzé e uma loura muito bonita faziam sexo. A mulher se apresentava
primeiro. Ficava deitada numa chaise-longue e ali fazia seu strip-tease com
muita
classe, ao som de um blues bem malemolente do Louis Armstrong. E ia tirando a
roupa, bem devagar, ante o entusiasmo da platéia. Ao mesmo tempo, lá de cima, do
teto, aparecia uma gaiola dourada. Dentro dela o chimpanzé.
Quando a gaiola chegava embaixo o bicho endoidava. A mulher nua e se
contorcendo na chaise-longue. Virava pra lá e pra cá. O chimpanzé dava voltas
por
dentro da gaiola dourada. E dando volta sobre volta, de repente encontrava duas
barras que se soltavam. Saía da gaiola, pulava em cima da loura e lambia ela
toda. O
blues atacava mais alto e o macaco lambendo a mulher, que se contorcia e gritava
em êxtase, se virando pra lá e pra cá. E o macaco chupando tudo que podia.
O distinto público vibrava e batia palmas frenéticas. Um pau-d'água quis entrar
na gaiola. Foi preciso a "segurança" intervir. Como vi isso duas vezes, manjei
que
fazia parte do espetáculo.
Mas como o macaco fazia aquilo tão bem? E como os dois caras do prédio
agüentavam sua parte duas vezes por dia, e aos sábados e domingos com matinê?
Não. Não era possível, e daí a chantagem. Se quisessem comer o churrasco, tinham
de dar o "serviço". E da parte que faziam e da do macaco. Se não, não iriam ter
churrasco.
Mas nesse tal dia em que o churrasco estava estalando e o cheiro fazia o
"prédio" todo soltar suspiros,

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eles pediram arrego. Antes porém fizeram a gente prometer que guardaria
segredo. Prometemos e ainda nos fizeram jurar por Santa Genoveva, a padroeira de
Paris. Topamos, e aí eles contaram tudo, indo buscar seus apetrechos. Muito bem-
feitos. Se adaptavam completamente sobre o pênis. Por dentro dos falsos corriam
umas bolinhas de chumbo bem pesadas e presas a um elástico que esticava na
medida em que as bolinhas desciam para o escroto. O resto era fácil. As
mulheres,
bem treinadas, faziam o diabo. E eles, sempre em forma até o momento desejado.

era só espremer para sair o falso esperma. Um creme de chantilly ou coisa
parecida.
Fácil, não? Pois era muito bem bolado. Agora, na época da eletrônica, deve ser
mais
fácil ainda. E o negócio era perfeito. Aliás, essas casas de diversão vendem
tudo. E
parece mesmo muito real.
Mas e o lance do macaco chimpanzé? Como era feito? Muito fácil, disse um
deles: o chimpanzé é louco por mel. Naquela movimentação toda, ela vai se
contorcendo na chaise e passando mel por onde quiser. O chimpanzé só vai
lambendo. Simples não? E naquele dia o churrasco de madame Tarrio teve mais dois
convidados. Palavra é palavra, e palavra de homem não volta atrás...
Mas o Russo, o Adolfo Milmann, quase se estrepa. Estourou a guerra e Sandos
foi convocado logo de cara. O Russo se apavorou, mas um cônsul brasileiro o aju-
dou. Russo entrou num reservado, rasgou os documentos do francês convocado e
voltou a usar os seus. Estava vencido, mas deram um jeito. E até hoje estão
procu-
rando o insubmisso Sandos, que se recusou a se apresentar para defender a França
na Segunda Guerra Mundial.
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//Invasão em Varsóvia

Em Varsóvia, por onde passei também ali por 1950, fiquei de cara
no chão. Já tinha.andado por algumas cidades destruídas, mas como aquela não. Em
Stalingrado, por exemplo, não se podia quase ver dois tijolos juntos. A guerra
foi lá
dentro da cidade, casa por casa, entre dois exércitos com grande capacidade de
ex-
termínio. Mas Stalingrado nem existia mais. A reconstrução foi mais para um
lado.
Nem valeria a pena aproveitar nada. Mas Varsóvia era uma calamidade. A cidade
apertada pelo Vístula e separada por este rio, da outra cidade, menor, quase que

residencial, que se chama Praga. Um bairro mais propriamente dito.
Varsóvia antes da guerra era a capital, e continua sendo, mas antes de tudo era
uma cidade eminentemente cultural. Lindos parques e teatros, edifícios e monu-
mentos marcando as épocas de ouro e fausto da cidade. Era até perigoso andar
perto
daqueles pedaços de edifícios. A cada momento uma parede caía. Tinha apenas um
começo da reconstrução em melhor andamento. Foi no lugar chamado Praça do
Século XII, que também fora

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destruída, que começaram a reconstrução. A parte habitacional totalmente


arrasada.
Dizem que em Varsóvia, nessa época, moravam umas duzenta.s mil pessoas
que, aliás, já estavam voltando. Tinham fugido da destruição. Antes eram um
milhão
e oitocentas? E os verbotten ordenando a destruição da cidade diziam
implacavelmente: "Esta cidade deve desaparecer do mapa. Com ela tudo: os
costumes e a cultura." Não foram estas palavras. exatamente, mas era parecido. O
ódio do nazismo era dirigido principalmente contra os judeus, e os de Varsóvia
especialmente. Aliás, muitos anos antes da Primeira Guerra já tinham acontecido
os
pogroms antijudaicos. Não era aconselhável andar por ali sem ajuda dos
residentes.
No Parque Chopin ainda sobrou alguma coisa, mas bem que tentaram arrasá-lo.
Afinal de contas, uma parte bem importante da cultura polonesa estava ali
representada.
A reconstrução era febril. Todo mundo trabalhando. Mas os poloneses queriam,
em primeiro lugar, restabelecer a. antiga capital. Por isso, pelo menos as
fachadas
foram preservadas em suas características anteriores. Os arquitetos e
engenheiros se
valiam de velhas fotos de álbuns de família. Nosso alojamento foi no bairro de
Mokotuf, acho que é assim que se escreve. Eram residências de apartamentos
novinhos em folha, mas nem tudo funcionava. Muito menos o aquecimento, e está-
vamos quase no inverno, frio forte, e o jeito era ficar com boas roupas de lã e
cobertas. Pois o aquecimento central, de aquecedores e lareiras, nem sempre
funcio-
nava. O aquecimento elétrico idem'. Quem não tivesse um bom cobertor iria rachar
durante a noite, embora não fosse ainda inverno.
O Teatro da Ópera já estava reconstruído e lembro

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de ter ido lá uma meia dúzia de vezes para ver shows musicais, canto ou danças
folclóricas. Também atos políticos e outros. Quase tudo era lá. Eu era capaz de
ir de
olhos fechados. Quando aparecia um guia dizendo "Olha, hoje tem um..." , nem
terminava e eu já perguntava a que horas, pois o local só poderia ser o Teatro
da
Ópera. Não foi totalmente arrasado e o reconstruíram rápido.
Bem em frente à nossa casa havia um grande monumento em bronze que
serviria de material para um outro que deveria marcar a vitória final da
Alemanha
nazista nà guerra. Aliás, o monumento já estava quase pronto quando a guerra
tomou outro rumo. Então ali foi construído um bem diferente, saudando a vitória
contra o nazismo. No cimo do monumento, um jovem de fuzil em riste
representando a revolta do Gueto de Varsóvia. E o bairro de Mokotuf foi
edificado
precisamente sobre as ruínas do Gueto. Ali nós moramos uns tempinhos.
Havia poucos divertimentos, e se escutava muito música no rádio, pois o que o
locutor dizia era muito difícil de entender. Uma ou outra palavra eu me
lembrava,
porque na primeira vez que fomos morar no Paraná foi ali perto da colônia Afonso
Pena, onde fica o aeroporto de Curitiba, bem entre a colônia Murici e Roseira,
outra
colônia de polacos. E ali, no meio deles, sempre se aprendia muita coisa. Garoto
sempre aprende mais o que não serve. Mas em Varsóvia bem que servia. .
Na Polônia muitos podem pensar que o problema mais sério é o de comida e
habitação. Sim, é verdade. Mas havia um outro seriíssimo e que ninguém poderia
resolver a curto prazo. É que lá foram mortos seis milhões e meio de homens e
rapazes entre dezesseis e qua

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renta e cinco anos. Isto, de uma população aproximada de trinta milhões. Quer
dizer, a parte mais válida, o que criou um terrível problema social a que nenhum
plano poderia dar jeito. A não ser o tempo. E um tempo bem grande, até que novas
gerações. de homens crescessem e se tornassem adultos. Um dos problemas mais
sérios de uma guerra que, entre mortos, desaparecidos e inutilizados, somaram
quase
cinqüenta milhões, dos quais menos de um quarto foi de mulheres.
Niccolau Kornetchuk, intelectual ucraniano, dizia-nos em Praga: "Eu também
sou deputado ao Soviete Supremo. Este ano estive em Kiev, e um grande número de
mulheres invadiu nosso escritório. Chegaram agressivas e gritavam: 'Cadê os
homens para casarem com nossas filhas?'" E ele nos dizia: "Como responder a
elas?
O que falar?"
E o diabo era que éramos homens, e em certas horas não era fácil andar por
Varsóvia. Elas atacavam firme. Bonitas, meio bonitas, feias, magras e gordas, de
todo jeito. Uma vez, estávamos dormindo, e meu companheiro de quarto era
Mumuni, do Marrocos francês. Um negão alto e forte, muito simpático e alegre.
Ele
dizia: "Ei, Brasil (Brasil era eu), não agüento mais. Elas atacam de todo jeito.
Acho
que vou embora antes de terminar meu trabalho aqui. " De fato, e independente da
guerra, a "cor" agrada muito naquelas regiões. Em Moscou também, e lá não morreu
um quarto da população masculina.
Pobre do neguinho. E estávamos nesse papo, já meio sonolentos e para dormir,
quando arrebentaram a porta. Não era nada demais. Uma porta como outra qualquer
não era preciso arrebentar. Bastaria bater que abriríamos. E entraram,
"ferozes", três
mulheres, que "tararam" o crioulo. Embaixo, o vigia, um homem bem velho, ficou
sem sentidos. Elas entraram como invaso

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ras. Mumuni não ofereceu resistência e deixou o barco correr. Quando a que
sobrou me viu, partiu feroz.
E não era difícil se encontrar duas mulheres de braço dado ou se beijando na
boca. Este problema nem sei como resolveram. Ou nem sei como se acostumaram.
A minha experiência diz que o homem é o animal que mais capacidade tem se de
adaptar. Não sei se isso é muito certo. Mas fui forçado a encarar situações
muito
difíceis. E até já tinham me falado no problema que poderíamos enfrentar na
Polônia
daqueles tempos. Mas não pensei que fosse tão sério.
Enfim, já láse vão quarenta anos, e creio que o equilíbrio dessa parte da
ecologia deve ter sido resolvido. Épossível que alguém tenha encarado essa
situação
como engraçada. Não queiram se meter nela.

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// A Liga das Mães Solteiras

Foi na Suécia. A seleção brasileira jogaria lá, onde seu cartaz era
grande. A copa de 1958 e depois uma excursão do Botafogo, no verão seguinte. E
todos os suecos queriam ver Garrincha, "o aleijado gênio do futebol".
Pois é. Garrincha era o gênio. De cara um seriíssimo problema, e Sven
Lindquist se ofereceu para ajudar. Logo no dia seguinte, Lindquist, desta vez
acompanhado por Gunnar Goranson, reapareceu muito preocupado e disse: "A
questão é muito difícil. Aconselho-os a procurarem um bom advogado e também a
pedirem auxílio da sua embaixada." E saiu abanando a cabeça dizendo muito
baixinho: "É grave... é grave."
Claro que quem esclareceu isso foi um intérprete, se não como saberíamos o
que Lindquist estava dizendo no seu pensamento em voz baixa? É assim, sueco fala
em voz muito baixa. Uma vez eu e o Hílton Gosling estávamos preparando planos
para a enorme excursão pela Europa. Eram dezenove jogos, e o planejamento era
difícil. Mas não podíamos conversar direito. Estávamos numa sala do imenso hotel
onde os donos nos concede

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ram a honraria de ficarmos à vontade, separados do imenso restaurante do hotel


onde comiam no mínimo umas duzentas pessoas. Então, estávamos ali numa espécie
de reservado e, segundo eles, distinguidos pelo conforto maior de estarmos
separados da "multidão".
Mas era fácil de concluir que os espertos suecos estavam era defendendo a
multidão contra o nosso grupo de vinte e cinco pessoas. Não é por nada não, mas
a
"multidão" preferia comer sem barulho. E os vinte e cinco brasileiros ganhavam
fácil do ruído deles. Era tal a diferença que Hílton e eu fomos' para o
restaurante
grande porque. precisávamos fazer os tais planos. .
Os suecos são muito sabidos. Estão entre os povos mais sabidos do mundó,
facilmente um dos três primeiros. O primeiro, destacado, é o armênio. Tanto faz.
De
qualquer Armênia, a soviética ou a outra. Não se meta com eles. Observe se no
sobrenome tem no fim "ian": Kunetdgian, Gasparian, por aí. São de muito antes do
Antigo Testamento. Em segundo, os gregos. Fora da Grécia então, saia de baixo.
Foram os mais efidentes gângsteres de Chicago, os maiores banqueiros de jogo em
Londres e os maiores "armadores" do planeta. Grego é fogo. E não tem um que pode
ser o presidente dos Estados Unidos? Em seguida, cabeça com cabeça, vêm os
suecos, com aquela falinha macia e baixa. Quando se discute socialismo, logo -
aparece alguém para afirmar que os suecos são os mais perfeitos socialistas. E
quando se discute o capitalismo, também lá vêm eles em primeiro lugar. Não
perdem um lance, mas acreditam em coisas.
Na Suécia também existe uma Bahia de "Todos os Santos". Na deles se pode
acrescentar: Todos os Santos e Bruxas. É a Província da Dalicárnia, a oeste e na
fronteira com a Noruega. Bruxa lá tem até cartão de visita.

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No cimo de suas casas há sempre um corvo ou uma caveira. Bem em frente à porta,
um imenso tacho onde elas ficam fazendo e engarrafando poções que são boas para
tudo. As bruxas mais modernas exportam seus produtos. O símbolo principal dessa
província é o Dolos Hast ou "Cavalo da Sorte". É branco com arreios em ouro,
azul
e outras cores, ou é vermelho com arreios iguais aos do cavalo branco. Tem de
todos
os tamanhos. Desde pequenos, mínimos, de pouco mais de dois centímetros,
atégrandões, quase do tamanho de um cavalo normal. O mais comum é o que tem
uns dez ou doze centímetros.
Lindquist, o nosso esperto empresário, levou um para cada membro da
delegação. Um grande time, precedido da maior publicidade futebolística da
Suécia,
mas tínhamos perdido de um a zero nosso primeiro jogo em Estocolmo para o time
de um cantor de rádio. E quem fez o gol foi o cantor. Em seguida demos um pulo a
Copenhague,. onde empatamos com o time local e perdemos uma dúzia de gols
feitos. .Então o esperto empresário, não podendo levar-nos a Dalicárnia, um
pouco
longe, trouxe Dalicárnia até nós. Um Cavalo da Sorte para cada um. Do presidente
da delegação até o Aloísio, roupeiro, massagista, encarregado dos transportes
maríti-
mos, aéreos e terrestres. O sueco era prático e organizava tudo. Mas não custava
"calçar" seu negócio.
O fato é que jogamos mais dezessete partidas na Europa e não perdemos
nenhuma. E foram jogos contra seleções da Áustria, de Madri, contra o Milan em
seu campo,contra a da Bélgica, e ninguém se separou mais do Dalas Hast. .
Sueco é primeiro time na sabedoria mundial. Falase muito nos judeus. Pois
apesar de já terem comemorado cinco mil.e muitos anos, destes três eles perdem.
Ou

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so afirmar que o turco é capaz de chegar na frente dos judeus. É sim, são mais
"fortes". Dizem que uma das grandes características do sueco é a moita. Fazem
tudo
na moita e baixinho. Pude perceber isto, e então eu de propósito falava mais
baixinho do que eles. Só para ouvilos dizer: "Hein?" Aí, olhava com ar superior
e
não dizia mas pensava: "Aprendeu, seu merda..."
Mas o grande caso nessa viagem foi o julgamento que tanto preocupava os
homens de lá e os de cá. Garrincha estava indiciado, e me pareceu que estava em
ca-
na. Dizia ele que não, que era apenas um convite para esclarecer as coisas.
Então o
Dr. Gosling, para clarear tudo, disse a ele: "Se é assim, tenta sair daqui."
Mané
olhou para os dois guardas a seu lado, maiores çlo que um guarda-roupa e achou
melhor ficar quieto.
A questão era séria e o próprio advogado sueco, tal como o nosso, achava que
não tinha saída. O melhor seria assumir e pedir clemência ao juiz.
A sala do júri era solene. O meritíssimo togado e com roupas da Idade Média.
Tinha até a cabeleira, como os juízes ingleses. Seu semblante não demonstrava
ser
ele capaz de uma clemência. E o caso prosseguia com testemunhas, declarações e
tudo. Seguinte: quando o Botafogo estivera lá em Umea, cidade que fica a norte,
co-
mo quem vai para a Lapônia, na província de Vãsterbotten, fez um jogo de dia
contra um time bem veterano. Ouso afirmar que a média de idade daquele pessoal
andava ali pelos quarenta. Nem mais nem menos. Pois mesmo assim foi um custo
para ganhar deles. Dois a um ou três a um, no finzinho. Foi lá que Tião Macalé
virou
"ponto de história natural". Acho que nunca tinham visto negros e tão retintos.
Mas
ficamos lá mais de vinte e quatro horas. E pronto: bateu, valeu. Nunca vi tanta

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fertilidade. Aliás, aqui no Brasil, Mané Garrincha, segundo se propalava, tinha


dez ou onze filhos. Os oito da Nair e mais uns avulsos. E no hotel de Umea,
pequeno
mas confortável, foi só o Tomé sair do quarto que uma camareira, desprevenida,
entrou. Era baixinha, sardenta, muito vermelhinha e bem feinha. Mas estava'
'viva" .
E, na filosofia do Garrincha, o coração bateu, estava viva,. tudo bem.
Acontece que a suequinha engravidou. E não era só isso: tinha menos de
dezesseis anos. Por dificuldades particulares, a moça teve de doar a criança. Um
casal adotou no dia que nasceu, tudo engatilhado pelas senhoras da Liga das Mães
Solteiras. Essa entidade, benemérita por sinal, e muito eficiente, ajuda as
mães.
Longe de querer com isso estimular uma espécie de prostituição, fazem tudo com
um certo rigor. A criança, um garoto, estava prometida ao casal, que era louro e
queria adotar uma criança parecida. Mas, quando nasceu, notaram que a criança
era
muito branca. Uma cor branca meio cinzenta. Com o decorrer dos dias, a criança
ia
escurecendo e, por racismo ou não sei por quê, o casal devolveu a criança às
senhoras da Liga. Elas ficaram com a guàrda do bebê e enviaram sistematicamente
correspondência para o Brasil. Com endereço certo, mas nunca obtiveram resposta.
E de repente, dois anos depois do fato ou do ato, eis que aparece lá,
fresquinho,
Manuel Francisco dos Santos, o destinatário de toda aquela correspondência
sistemática e periódica enviada pelas senhoras da Liga das Mães Solteiras para
três
endereços: Confederação Brasileira de Desportos, Botafogo de Futebol e Regatas e
para a posta-restante da cidade de Pau Grande, raiz da serra de Petrópolis. Tudo
certinho.
O julgamento, rapidamente marcado, foi aquela cor

27

reria. Sven, que acompanhava tudo, e Gunnar Goranson disseram: "Ou terá de
indenizar a moça, e é uma fortuna, ou vai para a cadeia no mínimo por três
anos."
E explicavam a complicação: a moça era .menor. Tinha menos de dezesseis anos, e
as leis suecas são severíssimas neste caso. .Depois dos dezoito, cada um ou cada
uma que se cuide, e parece que depois dos dezesseis a coisa é menos dura. Mas
antes... é fogo.
E veio o julgamento. O libelo era forte. O promotor - acho que era promotor -
era fera. Os advogados de defesa estavam atordoados, sem saber o que fazer. A
única pes.soa calma e segura de si era o Garrincha. Nem piscava quando o
intérprete
ia traduzindo todos os lances do julgamento. Garrincha só se manifestou uma vez,
quando criticou o promotor: "Por que esse cara está tão brabo por uma coisinha
tão
à-toa? ..." O juiz levantou a cabeça e intimou o intérprete a traduzir o que o
acusado
estava falando. Mas o intérprete foi esperto e disse que não era nada relevante
em
relação ao processo. O juiz ainda olhou com severidade, e o negócio continuou.
Eu
só estava com medo de Garrincha perguntar ao juiz, com aquela enorme cabeleira,
a
qual escola de samba ele pertencia.
E o processo continuava. Pelo jeito Garrincha não tinha escapatória, quando a
Corte resolveu interpelá-Io sobre a questão e o que ele desejaria fazer para
resolver
tudo. Ou uma indenização fabulosa ou a cadeia. Garrincha começou a falar
sentado,
mas teve de levantar. E foi dizendo: "Pra que tanta onda? É por causa da garota
?Eu
levo ela comigo e boto um apartamento pra ela. Se quiserem eu caso, pombas. Lá
no
Brasil casei na igreja e posso casar de novo. Lá eu tenho dez meninas (oito com
a
Nair. O Bolacha só veio depois) e quero muito um

28

menino. Eu boto um apartamento pra ela em Botafogo e posso ficar com ela
uns dois dias por"semana. Nos outros eu vou lá pra Pau Grande ou durmo no
Botafogo. Por que tanta onda?"
Quando Mané falou que botava um apartamento pra ela, olhei para o Dr.
Gosling e ele já estava olhando pa ra mim. É que nós sabíamos que Garrincha
tinha tido uma garota que trouxe de Porto Alegre. E a garota teve um filho bem
magrinho. O menino adoeceu e o doutor foi ao "apartamento". Ficava nos fundos de
um quintal, não passava de um quarto úmido .e sem banheiro. A cama era um sumiê
velho. Na parede, um cabide de pendurar coisas e no chão, um fogão de uma boca.
Desses "jacaré", de carvão. A moça estava muito magra. O Botafogo pagou tudo e,
de acordo com sua vontade, mandou-a de volta para Porfo Alegre.
Por isso eu tremi, e o doutor também, quando ouvimos Mané dizer que casava e
botava um apartamento pra ela, que ficaria indo e, voltando para ver seus
filhos. O
doutor falou com Gunnar, eu não sei o quê. Gunnar arregalou dois olhos muito
grandes e falou com o advogado. O juiz estava prestando atenção em Garrincha
mas,
a essa altura, mesmo baixinho como sueco fala, .havia um burburinho na sala do
júri. Todos falavam ao mesmo tempo. A garota baixinha, as velhas da Liga, o pro-
motor, os advogados. O juiz quis saber o que estava acontecendo. A reunião foi
suspensa e o promotor esclareceu tudo.
Só havia uma pessoa calma naquela sala, e era Garrincha. Sua proposta firme
de casamento e de levar a mãe e a criança para o Brasil surpreendera a todos.
Inclusive a mim, que já tinha dito ao Mané: "Olha, você agora vai continuar
usando
a camisa do Botafogo. Mas é em

29

listras horizontais, seu torto de uma figa." Ele deu uma gargalhada. .
A idéia de virem para o Brasil, a proposta simples da bigamia, apavorou a todos
os suecos. A Liga das Mães Solteiras resolveu assumir todos os prejuízos.
Garrincha
caiu fora como se estivesse saindo de um cinema, e foi embora. E um rapaz
mulatão,
fortão, até hoje vive e trabalha lá no norte da Suécia...

30

//Operação Aniquilamento

Foi lá pelo sul da China, logo acima de Cantão. Que cidade


bonita! À beira de um lago cercado de montanhas não muito altas. Não sei o que
houve, mas o trem parou um pouco longe da cidade e tivemos de tomar um barco,
que foi por dentro do lago. Entrei e saí de lá sem entender a manobra. Talvez
fosse
por causa de reparos na linha férrea. De todo modo, foi bem agradável fazer umas
horas dentro do barco. A distância não era grande e poderia ser feita em meia
hora,
mas ficamos parados esperando qualquer coisa, e nos deram comida.
Eu sou meio simples para comer. A vida toda foi na base de feijão, arroz e
carne, ou vice-versa, e lá na China não é um prato que pode ser encontrado. O
arroz
sim. Muito. Mas sempre era apresentado, para facilitar ser comido, com aqueles
pauzinhos.
Aliás, é muito fácil. Os chineses, japoneses e alguns outros povos não iriam
inventar comer com pauzinhos se não fosse prático. O povão até hoje come assim,
e
creio que comerá ainda por várias centenas de anos. E a comida deles já é
preparada
para essa prática. Um dos pau

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zinhos fica firme, o de cima. É preso entre os dedos e a curvatura da mão. O


outro, o de baixo, é solto, e vai entre dois dedos. Não dá para explicar por
escrito. Só
mostrando ao vivo. Mas, para tentar facilitar, os dois pauzinhos funcionam como
dois maxilares. O superior, imóvel, e o inferior, móvel e que só serve de apoio.
Co-
mo nossa boca. A parte de baixo mexe e a outra não. Uma mandíbula é a idéia
milenar.
E a comida era toda assim. Claro que eu já enfrentara esse problema em outras
regiões, mas o peixe do barco não estava me parecendo muito fresco. Quase pedi
um
anzol. Cheguei mesmo a fazer gestos para um chinês. Ele se limitou a repetir o
que
eu fizera e ria muito. Como quebra-galho havia uma espécie de biscoito. Reparei
que eles molhavam num troço para amaciar. Mas o troço era o molho do peixe de
que eu desconfiava. E pensava comigo mesmo: É morte certa. Olhei para os lados e
o Dmitri, o grego, estava com o mesmo problema. De repente, ele teve a idéia de
molhar o biscoito dentro do lago. Era um pouco alta a borda do barco, mas ele
espetou o biscoito num ferro. Depois me emprestou. A água do lago não era bem
doce. Um pouco ou bastante salobra. Mas com ou sem sal, a água servia. No peixe
é
que eu não ia. E o peixe era de água doce, uma espécie de lambari dos grandes.
Depois eu até andei comendo. Mas aquele ali do barco, de jeito nenhum. Mais
tarde
andei levando sempre o "bolo alimentício" que nos davam para qualquer
emergência. Era desses comuns que os exércitos levam em longas jornadas. Dizem
que um daqueles dá para uma semana. Não comi mais de um dia porque não foi
preciso. Este negócio de fome a gente nunca sabe, e só apelei para o bolo quando
desconfiava da comida, que nunca faltou mas que a gente nem sabia o que era. Uma

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vez em Pequim, um dos nossos amigos perguntou pela tal "sopa de andorinha".
Um dos intérpretes respondeu, rindo: "Não é sopa de andorinha. Isso não existe.
É
sopa de baba do ninho da andorinha. E é este consomê que vocês comem quase
todos os dias." De fato, sempre vinha, e eu sempre comi aquele caldinho meio
amarelo e bem aceitável. Pensei um pouco, mas resolvi continuar comendo.
Muita coisa se diz a respeito da comida chinesa. Falavam muito de chineses
que eram capazes de comer ratos. E ainda explicavam: "Trata-se de um prato
sofis-
ticado, que as classes mais abastadas comiam metendo o rato num pote de mel."
Pois eu nunca vi isso, e perguntei. Pura onda. É claro que um homem morrendo de
fome come até cadáver de outro homem. A história está cheia disso. E um ratinho
com mel, nessa altura, pode até ser considerado um manjar requintado.
Um fato insólito foi a história que nos contaram e que se passou em Dairen,
aquela cidade que me pareceu Porto Alegre, importante porto do mar Amarelo. A
dominação japonesa ali foi ferocíssima. Nos passaram um filme do enterro de
gente
viva. Esse filme por sinal passou também como parte do filme O último imperador,
de Bertolucci, e mostra friamente autoridades ocidentais vendo o tal enterro.
Fui visitar um dos locais onde faziam issocomumente com os prisioneiros
políticos e de guerra. É uma região arenosa, e os próprios prisioneiros cavavam
o
grande buraco. O que vi era ou é redondo e com profundidade de pouco mais de
dois
metros. Os prisioneiros cavavam sua própria sepultura. Muitos reagiam, mas eram
mortos a tiros ou a ponta de "baioneta calada". Quando o tal buraco já estava
suficientemente grande para o en

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terro dos vivos, os soldados tocavam os prisioneiros lá para dentro e os


submetiam pela força das armas. Enquanto isso, outros prisioneiros, prisioneiros
comuns japoneses, chineses ou manchus, com umas pás enormes, enchiam o buraco
com aquela terra arenosa até sufocar os condenados. Uns cinco anos depois aquilo
ainda revoltava meu estômago e intestinos. Até o mau cheiro, que era apenas
normal, eu sentia como se fosse o mesmo do dia da execução monstruosa. E pensar
que havia até um palanque para os convidados de honra assistirem.
Outra vez que passei mal, mas isto aconteceu na Europa, foi quando fui visitar
o campo de concentração de Maidanek, logo ali perto de Lublin, na Polônia. Fica
mais ou menos a cinco minutos da cidade em direção sul. Ou melhor, quem sai do
centro toma aquele rumo e logo na saída da cidade está o mais terrível e
monstruoso
campo de concentração que vi depois da guerra.
É a tal coisa, estive visitando vários. O de Dachau, por exemplo. Fica a
quatorze quilômetros de Munique e está lá até hoje, como museu. Do campo de
extermínio resta apenas uma pequena parte de um forno crematório. As fotos do
museu são terríveis, mas o que resta éo conjunto de camas-beliches nos
diferentes
barracões, todas muito limpinhas e de madeira clarinha e bonita. Muito melhor do
que o albergue que a Legião da Boa Vontade mantém por aqui. Mas o de Maidanek
é diferente. Muito diferente, e está lá até hoje para quem quiser visitá-Io. Não
é
muito aconselhável. Em 1968, quando de uma excursão da seleção brasileira, fomos
por lá, juntamente com Leônidas da Silva, Rui Porto e Jorge Cúri. Íamos de
pavilhão
em pavilbão, os fornos crematórios pareciam ainda estar funcionando, e, ao lado
das
valas de fuzilamentos, várias pilhas de ossos. Este terrível

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"campo" foi pego intacto, e não deu tempo.de ser inutilizado, como os de
Dachau, Bushenwald, e mesmo o de Treblinka, dos quais restou muito pouca coisa.
O de Maidanek foi pego de surpresa, cercado por tropas soviéticas e
guerrilheiros
poloneses. Os prisioneiros chegaram a matar a dentadas alguns de seus algozes. E
o
Jorge Cúri, quando chegou a um pavilhão onde se encontram vestidos, cabelos,
sapatos e bonecas de crianças, e com aquele cheiro que ainda existe, teve um
princípio de desmaio. Começou a suar muito, ia caindo quando foi amparado por
nós. Em seguida pediu para cair fora da visita e não quis mais ver o resto.
Desta vez o nosso cicerone era o Afonso Celso, exilado brasileiro e mais tarde
secretário municipal aqui do Rio de Janeiro. Não deixa de ser uma visita
importante
para quem deseje conhecer os horrores da última guerra mundial. Não muito
aconselhável às pessoas mais sensíveis. Maidanek é hoje uma espécie de museu e
está aberto diariamente. Menos às segundas-feiras, e até às seis horas no verão.
Acho que mais cedo no inverno porque escurece logo. .
Mas meu negócio era o peixe a bordo do barco no lago. Comi muito peixe na
China e digo com toda a certeza que este é o prato nacional. E peixe de água
doce.
Tipo peixe-rei ou truta. Também o tallambari dos grandes. Há bastante arroz.
Como
aqui. Entretanto, é um prato que não pude ver muito. E eles cozinham o arroz
meio
pastoso, para facilitar comer com os pauzinhos. Fica uma espécie de bolo, é
facílimo
ingeri-Io. O gosto é o mesmo do nosso. É só botar sal. O duro era arranjar sal e
era
sempre bom levar um saquinho. O sal quebra todos os galhos. Lá no norte do
Paraná
a turma de jagunços do Celestino, e também a turma que fazia luta armada, dos

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posseiros, andava sempre com um saquinho de sal. E era bem como diziam:
"Com um saco de sal dá para ficar brigando a vida inteira."
Na China, apesar de superpopulosa, se encontra bastante comida. E uma coisa
curiosa. A não ser em Xangai, que é um grande conglomerado habitacional, nunca
pude ver muitos chineses juntos. Mesmo em Pequim, cidade que, na década de
1950, diziam que se poderia encontrar uns quatro milhões de chineses, nunca vi
muita gente aglomerada. Cheguei a me indagar: "Pombas, onde é que eles se
metem?"
Dizem que hoje em Pequim podem ser encontrados uns sete milhões de
habitantes. Cometeram o grave erro de concentrar lá várias indústrias. Lógico
que
isto atraiu muita gente.
Mas onde os chineses se encontram é na região dos campos de cultivo. Mas
será que alguém pode acreditar que, lá pelo norte e num trem em alta velocidade,
chegamos a passar um dia sem encontrar mais de uns poucos chineses, ou -melhor,
mongóis? E depois, mesmo na direção sul, através da Manchúria, passávamos muito
tempo sem encontrar viva alma.
Aqueles que Se baseiam na teoria de Malthus, a da superpopulação, podem
ficar tranqüilos. Por muitos séculos ainda caberá gente na China.
Mas que diabo íamos fazer lá pelo sudoeste chinês, região montanhosa e
pedregosa? É que nos avisaram e convidaram para ver uma grande operação de
"cerco e aniquilamento" de bandidos.
Tal operação consistia em estar perto de uma ação importante. Os "bandidos" já
não eram muitos. Mas foram muitíssimos. E poderosos. Formavam verdadeiros
exércitos. Um destes bandos tinha dois tanques, um avião

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meio velho mas que funcionava, vários caminhões de transporte e bastante


armamento. Poucos canhões, uns três ou quatro, segundo nos diziam. Mas muito
armamento "leve" de fuzis e metralhadoras, daquelas refrigeradas a água. Destas
mais. .modernas, portáteis, confesso que não vi em toda aquela montoeira de
troféus
de armas apreendidas.
Mas a tal operação era porque os bandidos estavam causando terríveis males
pela região, sendo remanescentes irrecuperáveis de toda uma época de dominação
altamente espoliadora. Dou um exemplo: O.general Chu-té, o general-chefe das
forças militares que derrotaram Chiang Kai-chek e os japoneses no fim da guerra,
era oriundo de uma família que dominara uma grande região ao sul de Sin-Kiang.
Dize~ que ele era muito duro. Mas veio para junto dos homens na Grande Marcha e
ficou com eles. Era considerado um gênio na arte militar. Também foi um grande
cozinheiro. Sabia preparar todas as imensas variedades,. Numa comida informal,
oferecida a nosso grupo, ele sempre rindo muito, desbancou o cozinheiro e foi
melhorar' a comida.
Mas Chu-té, o grande general-chefe das forças revolucionárias, tinha sido ele
mesmo remanescente de. uma família que dominava uma região inteira. Aliás, quem
pensar que a China era unificada e que foi dominada por uma família imperial,
das
diferentes dinastias, cai em tremendo erro. A China era fracionada por
diferentes
grupos de donos. Uns eram nobres, outros vinham não sei de onde. Aventureiros de
toda a espécie. E nas cidades, grandes comerciantes e banqueiros, como em
qualquer
parte. Um esclarecimento se faz necessário. É sobre os chamados mandarins. Muita
gente pensa que o mandarim era uma.pessoa muito importante. Um título de no
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breza ou algo assim que representasse um grande poder. Nada disso. Mandarim
significa apenas "capataz". Sim, é claro que havia capatazes mais importantes do
que outros. Mas a "importância" não era propriamente deles. A importância era de
seus patrões. Em alguns casos funcionavam como executores de ordens. Se esta
capatazia fosse grande, bem, o mandarim era mais importante. Em resumo, creio
que
algo assim como um leão-de-chácara. Como se sabe, os "leões" de gente muito
importante se tornam importantes também. Dou um exemplo, o Gregório do
Getúlio. Na China Imperial ele seria, sem dúvida, um importante mandarim. Mas
não é só este o significado da palavra. Quer dizer também o idioma falado na
China
propriamente dita. Rigorosamente, na China, dois idiomas são mais importantes: o
mandarim, o mais de todos, e o cantonês, falado ao sul. E na região sul era uni
buraco o negócio de intérpretes. De saída, eu mesmo falava em francês. Isto já
era
uma tradução nem sempre fiel. Depois daí, do francês para o mandarim. Lá no sul
o
mandarim era traduzido para o cantonês. Francamente, não sei o que chegava do
outro lado.
Uma vez mandei fazerem a tradução de volta, quer dizer, do cantonês para o
mandarim, daí para o francês e para mim. Eu tinha falado sobre a Revolução de
1930. Mas quando o cara começou, eu disse: "É melhor tratarmos de outro
assunto."
É que ele de cara foi dizençlo que eu havia dito que "os bandidos do Sul tomaram
o
governo do Norte". Então, daí em diante eu parei e ia falando e ouvindo o que
desse.
Sem preocupação de precisão de linguagem.
E fomos ver a operação de cerco e aniquilamento dos últimos remanescentes
mais organizados dos bandidos da região sudeste da China. Digo os grupos maio

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res, porque havia muitos grupos. E estes eram de camponeses foragidos de


regiões semi-escravistas e que abundavam por ali. Por exemplo, moça que se
recusasse a ser vendida para as cidades, para a prostituição ou o que fosse, não
tinha
remédio senão fugir. Ou com o pai, ou o irmão ou o namorado. Se ficasse, seria
condenada a castigos muito severos ou a ir para seu novo dono. Esta espécie de
escravismo durou até 1950. Daí, os "foragidos" formavam pequenos grupos de
bandidos ou assaltantes.
Alguns destes grupos cresceram muito, se fortaleceram e dominaram bem a arte
militar e a de bandoleiros. Mal comparando, talvez grupos parecidos com o de
Lampião. Ou-outros que fogem ou largam regiões mais pobres do Brasil e ~migram.
Como se sabe, fazem qualquer coisa. Já foi tempo em que a construção civil os
abri-
gou, principalmente os nordestinos. Ao término da obra eles se abrigaram em
favelas. Na China o processo não era muito diferente. Apenas mais medieval. A
verdade, entretanto, é que a - quase totalidade destes grupos, pequenos ou
relativamente grandes, acabou quando veio a reforma agrária. À medida que a
terra
foi sendo distribuída, eles reapareceram em suas localidades. Tenho a impressão
de
que e~ nosso país pode suceder algo parecido. A imigração desaparecerá, como
aliás
em todas as partes do mundo. Desde a Din~marca e Inglaterra como na China.
Ninguém vai para outras paragens a não ser em busca da sobrevivência. Os casos
isolados não contam, de gente com características aventureiras que vai em busca
do
"tesouro".
Entretanto, este grupo maior se considerava muito forte. Causara grandes
estragos tanto aos exércitos de Mao-Tsé-tung como aos de Chiang.
Tinham muita experiência de briga. Atacavam as re

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taguardas, principalmente onde se armazenavam mantimentos e munições para as


frentes de batalha. Caíam em cima, saqueavam e arrebentavam tudo o que podiam.
Durante a guerra propriamente dita não foram isolados os casos em que as duas
frentes de luta inimigas se juntaram para combatê-Ios. Era preferível assim do
que
serem surpreendidos, por vezes até aniquilados, pelos bandidos. Pois aquela era
uma
operação que diziam ser "terminal" e os bandidos estavam cercados e em fuga.
Foram levados para um autêntico "matadouro" naquela região pedregosa. Havia
falta de alimentos e água, o que os obrigava a tentativas desesperadas.
Aniquilaram
grupo por grupo, quase que um a um, e parece que já estavam fazendo aquilo há
muitos meses. Não esquentavam. Cercavam-nos devagar e com muita firmeza. O
principal objetivo era o de não perder gente. Puseram fim à guerra com o advento
da
reforma agrária, por um lado, e com o aniquilamento deste grupo de quase cem mil
homens, por outro.
Trouxeram alguns para que fizéssemos alguma matéria que julgássemos
interessante. Foi em vão. Os que vieram pareciam feitos de pedra. Os rostos
totalmente indiferentes, nem sequer olhavam em nossa direção. Alguns já brigavam
há vinte anos ou mais, e para eles inimigo era qualquer um que não fosse de seu
grupo. Apenas um falou, quase grunhindo: "V ocês têm vinho por aí?" Como
alguém tivesse respondido que não, virou a cara e fim de papo.
Mas na região, principalmente numa estrada que também vai para a Birmânia,
havia muitos cadáveres. Para evitar epidemias incineraram os corpos. E quando o
vento vinha daquela direção se podia sentir um cheiro de carne queimada.
Positivamente, não era de churrasco.

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Mais tarde lembrei desta passagem. Foi aqui no Brasil, lá perto de Boa Vista,
no território de Roraima. Todos se lembram do "fanático" sabido. O tal de
reverendo
Jim Jones, que massacrou cerca de oitocentas pessoas ao sul da Guiana Inglesa.

eles compraram ou arrendaram uma área grande e atraíram muita gente crente e re-
ligiosa. E ali, em plena selva da região amazônica, induziram os crentes a se
envenenar. O chefe, o tal do Jim Jones, também morreu na ação. A história é até
ho-
je controvertida. Ele e seus asseclas tentaram exterminar os crentes e fiéis.
Mas uma
das vítimas percebeu a trama e matou Jim, que na véspera havia fuzilado um
deputa-
do americano que lá estava numa investigação do Congresso. Este deputado e mais
três acompanhantes foram assassinados, perto. do pequeno avião que os conduziu,
por Jones e seu bando.
Bem, nossas organizações jornalísticas, como nos encontrássemos lá perto, em
Boa Vista, para um jogo do Flamengo, pediram matéria. O Hélio Cunha, deputado
federal, comandante da base aérea de Roraima, contou que dois filhos de Jim
Jones
haviam fugido para a fronteira do Brasil. Eles sabiam onde estariam enterrados
cin-
co milhões de dólares, parte da grande fortuna de Jones. Mas, segundo as
autoridades de Boa Vista, por mais que tivessem sido habilmente interrogados, os
dois "filhos" de Jones não disseram onde estariam os dólares.
Ingenuamente, os jornais do Rio de Janeiro mandaram telex a seus jornalistas
esportivos que cobriam a presença do Flamengo, pedindo para que fossem até a
fronteira com a Guiana, uns 180 quilômetros em estrada razoavelmente boa, e de

mandassem dizer onde J 0nes havia enterrado os dólares.
Viagem.totalmente inútil. Os "garotões" de Jones

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nem olharam os representantes da imprensa esportiva, e tenho a impressão de que


por detrás daqueles rostos que não moviam um músculo estaria uma pergunta ínti-
ma: "O que será que estes idiotas pretendem?" Pois foi a mesma sensação que tive
quando havia interrogado os bandidos na China. Lembro que, ingenuamente, ainda
perguntei "o que iriam fazer com aqueles prisioneiros, já que não me pareciam
muito capazes de recuperação" . O chinês a quem me dirigi olhou para aquelas
"pedras", encolheu os ombros e balbuciou "não sei" . Mas eu, particularmente,
pensei: "Não dou quinhentos réis por nenhum destes caras."

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//A Fronteira

Ainda lembro. Eu era apenas um guri e nós. estávamos do lado de


lá. Em linguagem da fron:teira isto significa que estávamos vivendo no Uruguai.
A
paz de Pedras Altas já estava sendo negociada, mas um ou outro entrevero, entre
maiagatos e chimangos, ainda ocorria. Aquele pessoal brigador, então, acho que
ja-
mais iria ensarilhar.
Mas unia coisa estava escasseando do nosso lado: munição, balas de
mosquetão, aquele fuzil curtinho que era o que mais se usava do lado maragato.
E&ta arma não era difícil de se encontrar. Vendiam e compravam muito no Uruguai,
e dali passavam fácil pela fronteira. Diziam que eram americanas e muito boas.
Mas
meu pai dizia que deveriam ser fabricadas por aqui mesmo em Santa Rita. Santa
Rita, como se sabe, existe em todos os estados do Brasil e tinha um peão que era
casado com uma mulher de Santa Rita. Daí o apelido do mosquetão. Era dar uns dez
ou doze tiros que ele descalibrava a ponto de fazer erro em distância curta. Um
tiro
daquelas armas vagabundas errava quase um metro na distância de uns dez. Mas era
o que se tinha e não havia jeito.

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Munição faltava sempre, e também era comprada do lado de lá. Teria a mesma
origem, pois umas balas negavam fogo. Talvez tenha sido bom porque muita gente
escapou com vida por causa delas. Então nos chamaram e foram dizendo:. "Olha aí,
piás, vocês levam e'stes dois embrulhos lá para Santana. Mas não vão ali pela
Sarandi, vocês farão a volta lá pelo Marco. " A Calle Sarandi, cheia de
plátanos, é a
que dava direto na Internacional, fazendo fronteira de Santana com Rivera, as
duas
cidades geminadas do Uruguai e Brásil. Naqueles tempos era fronteira "aberta", e
se
passava para lá e para cá, a pé, de cavalo, carroça ou automóvel. Bem,
automóveis
só tinham dois. Dois fordecos, e acho que eram dos dois prefeitos, o de Santana
e o
de Rívera. Quem mais iria ter um?
O movimento na Sarandi e na Internacional sempre foi muito intenso. Havia
um café que era metade lá e metade cá. Chamava-se Internacional, mas a
civilização
acabou com ele. E, como se sabe, o idioma ali era o "guasca", uma mistura de
espanhol e português. Isto ainda não mudou muito. Mas por ali não era
aconselhável
passar, então deveríamos ir lá pelo Marco.
O Marco era a marcação da divisa da nossa fronteira e a dos castelhanos. Fica a
uns dois ou três quilômetros do centro. E de longe até parece pequeno. Mas
quando
se chega perto o bicho cresce. Feito na base, de cimento. Redondo, e em cima uma
cruz de madeira bem grandinha. Fronteira seca e aberta.
E pegamos os embrulhos, bem grandinhos. Como eram pesados, pusemos
dentro de um carrinho destes que se faz usando rodas de qualquer coisa e um
caixote
de querosene Jacaré. E fomos em frente, eu e o guri que mandava, porque era mais
esperto. Gorducho e muito cheio de si. Bem queimado do sol, trajava como qual

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quer guri do campo. Uma camisa qualquer, bombacha quadriculada em listras


pequenas, tipo xadrez, eum chapelão com o barbicacho por debaixo do queixo. Eu
vestia igualou parecido.
Lá nos tocamos para entregar a munição na casa de Seu Arlindo em Santana. Mas
estávamos de pé no chão (descalços), o verão começava e o campo pelo qual tería-
mos de andar estava cheio de urtiga-espinho. Tivemos de voltar para botar as
alparcas (alpargatas) e levamos uma esculhambação do Seu Gabriel, pai do Beto,
meu cupincha.
Seu Gabriel não era qualquer um. Gabriel Portela era um caudilho brigador. Se
os veteranos da Guerra de Secessão, os do Sul e os do Norte, não se
reconciliaram,
os velhos maragatos jamais aceítaram um chimango na família. Moça que casava
com um tinha de fugir para o casamento e desaparecer. Seú Gabriel era assim.
Quan-
do falava de um chimango, falava resmungarido e blasfemando. Ele tinha ideologia
de maragato. E o seu filho, Beto, também era muito orgulhoso. Escutou a bronca
do
pai de cabeça baixa, reconhecendo o erro. Vestimos o calçado e partimos de novo
em direção ao Marco.
Lá fomos empurrando o carrinho, que chiava muito porque as rodas estavam
secas. O Beto só disse: "Eu devia ter posto graxa nesta porquera." E chegamos na
fronteira.
Ao lado do Marco existia uma pequena guarita que só dava para um. Lá dentro,
sentado, do lado do Brasil, um guarda fardado. Tipo preguiçoso, nem se mexia do
seu banco. Com as pernas para a frente, escancarado, o dólmã aberto na garganta
e
um pouco barbudo. Meio sonolento, quando nos viu perguntou por perguntar: "O
que é isso aí que vocês levam?" Beto, muito arrogante, foi logo gritando: "Isto
é
mosquetão pro meu pai." O

45

soldado se ajeitou depressa em seu assento, levantou em seguida e veio até o


carrinho. Meteu o dedo num embrulho, rasgou-o e viu que eram balas de mosquetão.
Botou o pé em cima do carrinho e foi gritando: "Isto não passa, está
confiscado..." O
Beto ainda quis reclamar, mas ele pegou do fuzil 1908 e ameaçou: "E tratem de
dar
o fora daqui, se não eu ainda prendo vocês."
Ne~ foi preciso repetir porque saímos correndo para o lado de lá. Dali até a
casa onde estava Seu Gabriel deveria ser uns quatro quilômetros. Chegamos
esbaforidos e Bcto foi dizendo: "Pai! O soldado tomou as balas..." Seu Gabriel
cer:rou o cenho e perguntou: "Quantos eram?" Nós respondemos em coro: "Um só.
Estava sozinho e ainda deve estar por lá ou perto. Ele não tinha cavalo." Seu
Gabriel
pensou rápido e deu um berro: "Kanti! Kanti!!!" Apareceu um baita de um homem.
Queimado do sol e destes meio índio charrua, meio branco. Isto podia se ver
pelos
olhos apertados. Sempre andava com o "Schimidte 45" no coldre aberto. O revolvão
carregado, e ele tinha umas dez balas na cartucheira. Naturalmente uma faca
"churrasqueira". Bombachas, botas sanfona meio baixas e um relho na mão; O
chapelão estava pendurado no pescoço pela parte de trás da nuca.
Seu Gabriel explicou com calma, mas se notava certa raiva: "Um pulicia tomou
as balas das crianças. Foi lá no Marco. Ainda deve estar lá..." Nem terminou e o
Kanti já estava pegando seu rifle, um Winchester americâno puro. Também apanhou
um punhado de balas e meteu num saquinho, que amarrou no cinto largo.
Os dois pularam nos cavalos e Seu Gabriel nos instruiu: "Montem e vão na
frente. Chegando lá, só peçam a munição de volta. Digam que é minha. Se ele for
bonzinho, entrega."

46

Nós fomos de galopinho. Olhei para trás e pude ver os dois nos cavalos
grandes, logo perto.
Chegando no Marco, o Beto foi falando: "Meu pai mandou eu vir buscar
aquelas balas de mosquetão... o senhor... "
O polícia já foi berrando: "Balas o quê, seu piá...vai dando o fora."
Mas nem chegou a terminar. De cima do cavalo Seu Gabriel disse forte: "Olha
aqui, os guris voltaram aqui para pegar aquelas balas que você guardou para
eles. É
só isso." O guarda olhou para ele e olhou para o Kanti, que estáva sentado no
selim,
preguiçoso e com o rifle no colo. O guarda repensou e disse: "Bem, eu sou guarda
da fronteira. Não sei se as balas de mosquetão..." "Tu não sabe mas vai
aprender.
Quando as bala forem minha, elas passam, não é?", disse seu Gabriel.
O Kanti apeou e foi para trás do cavalo com o rifle na mão... Eu e o Beto
corremos para trás do Marco. O guarda então disse logo: "É, pois é... elas estão
aqui... bem que eu precisava de algumas... o governo não manda nenhuma."
Seu Gabriel desceu do cavalo, pegou os embrulhos e nos deu, um para cada
um. Ainda disse: "Amarrem bem no tento."
O Kanti então falou para o guarda: "Mas tu tem mate aí, seo, vamos ferver... e
tomá uma chaleira. Olha, se o mate tiver bom eu te dou umas balas do meu. E olha
que são das boas. São americana e não são estas porquera que fazem por aí."
Montamos nos petiços e fomos em direção à casa
de Seu Arlindo, ali em Santana do Livramento. Quando andamos um pouco, olhei
para trás e vi os três homens de cócoras em roda, esperando o mate ferver na
chaleira.

47

//o Jagunço Celestino

Muita gente pensa que para se ir a Londrina, no Norte Novo do


Paraná e saindo de São Paulo, tem-se de tomar a direção sul. Pois quem fizer
isto
erra o caminho. Londrina fica um pouco ao norte de São Paulo. Pouca coisa, uns
trinta quilômetros, bem entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Isto é somente para
situar bem o Norte Novo do estado do Paraná, que forma mais ou menos a figura de
um jabuti. E o Norte Velho, ali onde tem café velho, na região de Jacarezinho,
Siqueira Campos, Cambará e outros, este sim, é que fica um pouco mais ao sul de
São Paulo. De São Paulo ou Rio para Londrina toma-se o caminho oeste.
As gloriosas forças revolucionárias de Getúlio Vargas em 1930 não foram por
este caminho e pararam para negociar com os legalistas de Washington Luís em
frente a Itararé, local da mais importante batalha da revolução, a batalha de
Itararé,
que não houve. Acho que até que foi bom negócio a solução. Quem não deve ter
gostado foi o presidente. Mas Tasso Fragoso, Klinger, Góes e outros resolveram
acabar com a República Velha. Comunicaram isto ao Washington, que foi com o

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cardeal Leme para o forte de Copacabana e dali para a Europa. Estava ganha a
famosa revolução de 1930. Poucos tiros, como é a praxe da casa, e um ou outro
sentinela desprevenido morrendo como herói.
Mas isto tudo é para diferenciar o Norte do Paraná do outro Norte do Paraná. O
Novo começou mais ou menos em fins de 1930. Eu era um garoto esperto e fui parar
lá em 1938, se não me falha uma boa memória. Fui lá de xereta, acompanhando meu
pai, que era considerado um grande perito em questões de registros de
propriedade
imobiliária: terras, casas, terrenos, prédios de apartamentos, grilos e outras
coisas do
ramo. Qualquer dúvida e chamavam ele, na época titular de um cartório de
registro
de imóveis. E sempre seu veredito era o mesmo: "É, os Camargo têm razão, mas a
razão que têm não vale muita coisa. Isto aqui é muito longe de tudo. É de quem
chegar primeiro e derrubar. este mato imenso. Como todos sabem, o que garante o
grilo é a posse.' ,
E fomos lá onde alguns começavam a brigar por glebas bem grandes. O local
mais perto para se ir com certo conforto era por Ourinhos, na fronteira de São
Paulo.
Dali a gente ia até Jataizinho, à margem do impetuoso rio Tibagi, afluente do
Paranapanema. Atravessava-se o rio numa balsa, e a razão desta balsa era
fundamentalmente transportar peroba. Porco e milho também vinham muito na
balsa.
Muito realista este tipo de produção: porco e milho. Seguinte: naquela região, a
oeste do Tibagi, minha nos- sa senhora, o que não era terra devoluta! Terra
devoluta
no Brasil quer dizer terra do governo. Terra da.viúva era terra "desprotegida".
Mas,.
ali mesmo onde fica Londrina hoje, havia um lugarejo de meia dúzia de casas, um
bo

50
licho que só tinha pinga fedorenta, umas rapaduras e uns três ou quatro sacos
onde
provavelmente estariam feijão, fubá e farinha. Pendurado tinha toucinho e
torresmo.
Por sinal bem bonitos. E ali estávamos com uma turma da Paraná Plantation e de
um
senhor que parecia o Hemingway quando morava em Cuba. Sempre de roupa branca
ou creme, camisa creme também e sapatos ou sandálias marrons. Muito sujo no
geral e com a barba sempre por fazer.
Era o Willie Davis, que estava comprando ou já comprara terras por ali. Tinha
alguns títulos de cartório, porém O mais era uma papelada infernal de posseiros
e outras espécies de grileiros que lhe haviam vendido pedaços grandes.
Um homem formidável o inglês, mas só fiquei sabendo disso depois, quando
fui morar lá logo que vim da China, ali por 1951. Willie Davis era um inglês
dife-
rente. Não reverenciava sua rainha e por isso não era lámuito bem visto pelas
autoridades de seu país. Não raro dizia, quando praguejava: "Ô, eu quero que a
rainha se foda. Ela nunca me deu nada. Nada mesmo. Dizem que ela só dá para o
pessoal da Corte... ah-ah-ah."
Mas era muito audacioso e empreendedor. Queria mais desbravar aquela região
fantástica e que produzia tudo do que enriquecer com seus planos de colonização.
Foi o responsável pela chamada "linha tronco". Fez um traçado mais ou menos a
olho em algumas linhas que mais tarde ficaram consagradas como divisas de muni-
cípios e zonas de alto progresso. Bolou uma estra<!a ali de Jataizinho ou de
Ibipora
e que passava por Londrina e seguia por Cambé, Rolândia, Arapongas, Apucarana, J
andaia do Sul, Marialva, Mandaguari, Maringá e acho que até Marilá. Lá pra cima,
a
noroeste do Norte Novo,

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onde fica Paranavaí, já foi outra gente. E para oeste, para o Paraná Grande,
também.
Willie Davis comprara o alqueire paulista, 2.400 metros, a oito mil-réis. E
vendia desde cento e cinqüenta até quatrocentos onde passavam as estradas.
Estradas
que eram picadas até mesmo depois da guerra, quando apareceu o jipe, o inglês
Land-Rover e o Willis, com tração nas quatro rodas e tudo. Pois mesmo de jipe
quem quisesse se aventurar nas estradas do Norte Novo do Paraná tinha de levar
pás,
picaretas, um mourão de no mínimo 1 ,80m e um cabo de aço. Isto era para fincar
o
mourão no barro e puxar o jipe pela polia que estava atrelada ao cabo de aço e
que
tinha no mínimo uns vinte metros. E o pessoal passava. Para se ter uma idéia,
depois
abriram estradas e picadas da região até Foz do Iguaçu, passando por Campo
Mourão, Paraná do Oeste, Campina da Lagoa e indo para o sudoeste, ali por
Cascavel e Toledo, dois lugarzinhos muito mixas e abandonados no meio daquele
matão imenso. Mas é a tal coisa: ali vivia gente e nunca se sabe como e por que
foram parar lá.
Lógico que o Willie Davis não atuava nestas regiões. Ficou nas cercanias de
Londrina, para leste e para oeste ou norte e sul, mas sem ir além de Maringá. E
por
todos os lados apareceram grandes e pequenos grileiros. Uma multidão de
paulistas,
mineiros, gaúchos principalmen"te, e os "baianos". Baianos eram os nordestinos.
Chegavam aos magotes e por todos lados. Muitos compravam terras direitinho.
Outros compravam terras dos espertalhões. A turma de "vendedores" vendeu até o
quinto andar de Londrina. Não sei até hoje como se acertaram. Um velho habitante
da região tentava me explicar: o "jacu" comprava vinte alqueires. Chegava lá com
seu pa-

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pel e encontrava outros, que também tinham comprado glebas por ali. Às vezes
saía
briga feia, mas a terra é tão boa queeles se acertavam e dividiam. O diabo é
quando
chegavam mais outras gentes.
Aconteceu de tudo, mas a região do inglês floresceu primeiro. E creio que todos
já perceberam por que a cidade mais importante e florescente da região se
chamava
e se chama Londrina. Pois se. fosse um francês o desbravador talvez o nome fosse
Parísia ou Parisienne, sei lá.
Willie Davis tinha algumas concepções engraçadas mas muito realistas do
empreendimento. Ele achava e assim fez com que para a região, nova e muito
agreste, primeiro viessem os homens, e depois de limpa a área é que trariam suas
famílias. Com paulistas e mineiros acertou em cheio. Com os "baianos" então nem
se fala. Os baianos vêm largando mulher pelo caminho e de Pirapora pra baixo já
vão se casando e descasando. Mas os gaúchos já vinham com toda a família. Como
diziam alguns, "Até a sogra veio". Mas a grande maioria era de solteiros, e
Willie
Davis calculava isso. Se muita terra era grilada de todo o jeito, as do inglês
eram
boas. Suas vendas e os títulos que dava eram bons. Eram "sãos". Então, a região
precisou de mulheres. Bem aí tem muita mentira espalhada no meio das verdades.
Dizem que o "velhão" botou escritório em São Paulo para contratar mulheres.
Prostitutas ou "precisadas", termo que se usou muito na região. E eram mulheres
moças, largadas dos noivos ou maridos, que também foram para lá. Pois olhem, co-
nheci muitas, muitas mesmo, que se tornaram gente de família e se entrosaram
perfeitamente com a sociedade. Mas o inglês sabia que não bastaria o bordel do
tipo
clássico. Claro que em Londrina tinha, localizados na rua Curitiba, onde logo
entraram em funcionamento os ba-

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res, botecos e cabarés. Mas tudo dentro de um respeito muito peculiar. Quando
saíam às ruas para as compras as mulheres se misturavam com as damas e pronto. E
não aparecia nenhum gaiato para bancar o engraçadinho e identificar a
companheira
da noite passada. Se alguém fizesse isso se dava mal. Muito mal.
Mas a visão de Davis era maior. Apareceram bancos e empresas que faziam
grandes empreendimentos. Na região e na cidade em formação este pessoal já
procurava formar clubes society. O bispo se instalou logo na zona chique. Davis,
com sua visão, bolou as "chacrinhas" e por todos os quadrantes, norte, sul,
saída
leste ou oeste, apareceram algumas. Nunca vi em parte alguma, e olhem que tenho
corrido mundo, "chacrinhas" daquele tipo. Gente muito fina. Ainda recentemente,
cheguei a Londrina e lá havia uma reunião de cartolas dos grandes clubes
brasileiros. Um carro particular estava no aeroporto - ainda era o aeroporto
velho. O
cafezal em volta ainda produzia muito. O carro nos levou e pensei que era um
hotel
moderno. O presidente do Vasco, que ia comigo, também; mas nem pudemos largar
as malas direito e nos levaram para um salão-refeitório. Só mulheres serviam e
eu já
estava achando que o melhor hotel era aquele. E eu, que morara lá, nem sabia?
Deveria ser novo. Era uma casa grande e bonita, estilo suíço, muita madeira
ornamentando e servindo de colunas ou vigas. O refeitório era assim, mais ou
menos
de estilo alsaciano. Mas em seguida nos levaram ao bar da piscina, onde também

moças serviam. E muito bonitas. Pronto. É aqui mesmo que vou ficar estes três
dias,
pensei. E quando manifestei este propósito ao dirigente vascaíno, ele respondeu
com
os olhos brilhando: "Claro, claro." Parecia um fauno falando.

54
Estávamos na beira da piscina, sem ser muito perto, quando chegaram correndo
alegres e dando gritinhos umas cinco ou seis moças, nuazinhas, que entraram
dentro
d'água. Um dos convidados não vacilou: pulou dentro d'água de roupa e tudo. Só
aí é
que percebi o "hotel" em que estávamos. O dono era importante dirigente do clube
local e estava fazendo as honras. O nosso "presidente" , que também descobriu
onde
estávamos, levantou-se muito digno, mas sem tirar. os olhos da piscina, e disse:
"Sinto muito. Sou um homem de negócios conceituado e não posso ficar assim
exposto." Manjei o bicho e vi que ele não tirava os olhos da piscina, .na
direção das
meninas. Dito isto, e sempre com a maior dignidade, deu o fora. Se voltou mais
discretamente não sei. Mas o entusiasmo era notório.
Bom, sem dúvida que aí já estávamos encontrando um aprimoramento das
idéias de Willie Davis. Em todo caso, sua idéia foi boa e muito útil naquele
início de
colonização.
Quem chegasse no norte do Paraná, na década de quarenta ou em princípios da
década de cinqüenta, creio que se julgaria naquela fase da "marcha para o oeste"
dos
Estados Unidos. Carroças e caminhões. Jipes e uns cavalos magrelos. Faziam casas
de madeira num abrir e fechar de olhos. Já na década de cinqüenta, Paranavaí era
de
se ver. No meio da rua central havia de tudo. O barbeiro que ainda não tivera
tempo
de ,construir o salão tinha uma cadeira velha. Quem segurava o espelho era o
freguês. Logo adiante uma espécie de "casa de ferragens" ao ar livre onde
vendiam
de tudo. Ferramentas, pás, enxadas e também material doméstico de cozinha e
copa.
Quando chovia era um lamaçal, mas a vida não parava. Até cinema já tinha. Vez
por
outra, o gerador

55

pifava e a turma dava vaia. VoItava de novo, aos trancos, mas até que se podia
entender o filme em preto e branco e remendado. Outras vezes não muito bem, pois
partes do começo apareciam no meio e no fim.
Outras cidades e vilarejos se formaram assim. Municípios se avantajaram e
fizeram eleições com vereadores, juiz de comarca e tudo. Outros eram mais ou
menos em formação. Mas uma coisa é verdade: impossível encontrar um trouxa
naquela região. Parece que os sabidos de todo o Brasil marcaram encontro ali. Em
Londrina já havia algumas ruas calçadas de paralelepípedo, agências bancárias às
dúzias, bons restaurantes e uns três hotéis de primeira. Bom, não eram cinco
estrelas, mas confortáveis e com cozinha excelente.
Algumas regiões se desenvolviam pacificamente. Eram as regiões de pequenas
propriedades. Propriedades de dez, quinze ou até mais alqueires. Algumas
fazendas
grandes de produção de café também prosperavam. Mas uma coisa é certa: cidades
cercadas de pequenos proprietários ou sitiantes foram para a frente. As outras,
cer-
cadas por grandes fazendas e latifúndios, marcam passo até hoje.
O café ali foi uma loucura. Enquanto o café velho da Alta Paulista ou da
Mogiana não dava mais do que um saco para doze pés, ou mesmo quinze, no Norte
do Paraná se conseguia um saco de coco para cada três pés. Um saco de coco dá
meio de grão. Havia mesmo o caso da Fazenda Maravilha, dos Rocha Loures, que
todos comentavam que dava um saco por pé de café. Pudera, o café do homem era
tratado mesmo. Faziam ali três, quatro"carpas" por ano. E nos carreadores,
nenhuma
plantação. Explico: os proprietários de pequenas glebas, no meio do café, no
carreador, plantavam ou plantam uma

56
fieira de milho, às vezes uma carreira de feijão ou algodão. Um ou outro
plantava
arroz seco. Isto era para se defender da intempérie ou da broca mineira, que
apare-
ceu por lá. Mas na "Maravilha" nada disto acontecia. E tome café por todos os
lados.
Ainda não tinha soja, mas a cana-de-açúcar apareceu em bruto na região de
Bandeirantes e nas "terras de areia" de Porecatu e Centenário.
Nesta zona tinha café e muito. Meio falhado, um "talhão" ou outro não dava
bem, mas deveria ser compensador. Os bancos emprestavam dinheiro na "florada"
de outubro para receber o café em março. Um que outro na entressafra, mas não
valia como peso. Os juros eram relativamente bons e a zona voando para frente.
Isto
atraía cada vez mais gente de todos os lados e de todos os feitios. Uns
compravam
glebas e outros simplesmente invadiam. Na região de Porecatu e Centenário as
contradições foram sérias entre os grandes grileiros e os pequenos e médios. Uns
eram também grileiros e outros haviam comprado suas terras. Os conflitos se
generalizaram e apareceram grandes proprietários amparados pelo dinheiro, sem
dúvida um forte argumento, mas também pelos governos de São Paulo e do Paraná.
Ademar em São Paulo e Lupion no Paraná apoiavam de todas as maneiras os
grandes proprietários, que também se diziam donos da área de Porecatu e
Centenário. Lunardeli, Jeremias Lunardeli, era o mais forte de todos. Afirmava
que
tinha comprado as terras. Chegou a ter ali três imensas fazendas que produziam
muito café. Eram fazendas de mais de "mil pés". A Ibi, a Ibiá e a Ibianê. As
relações
de trabalho eram com "colonos" que recebiam casa, ferramentas e tinham direito a
uma pequena roça perto da casa. Depois isto desapareceu. O café

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não era dos mais produtivos e agora creio que não tem mais nenhum pé. Tudo virou
cana-de-açúcar.
E os grandes proprietários associados a Ademar e Lupion tentaram expulsar os
pequenos e médios proprietários. Esta posição fez detonara mais feroz luta pela
posse da terra no Brasil. Talvez nem o Contestado tenha movimentado tanta gente,
tanta arma e tanta munição.
É muito difícil se saber quantos morreram ou quantos foram expulsos e não
voltaram mais. Mas a luta teve fases distintas. Bem distintas.
Entre os posseiros havia alguns que se revelaram grandes mestres da arte
militar. E não eram homens de pequenas posses. Um deles, conhecido como
Espanhol, se dizia dono de dois mil alqueires. Tinha um trator e dois caminhões
de
segunda mão, mas eram bons. Não sei quanto mato estava derrubado, mas pela
"pelada" bem uns quatrocentos àlqueires. E os caminhões não paravam de
transportar peroba e outras madeiras de lei para Assis ou para São Paulo. Outros
proprietários também tinham áreas de grande plantio. Não muito café, mas o milho
era uma festa. Os porcos também.
E as brigas eram ferozes. Gente morria e os soldados das polícias do Paraná não
estavam muito felizes. Apesar de bem pagos, tinham de enfrentar um inimigo
feroz,
que às vezes saía de um lugar e aparecia no outro com mais raiva e mais munição.
Creio que é impossível bater gente que luta por sua propriedade. Poderiam ser
até
pequenos grileiros, mas já estavam ali radicados há mais de dez anos. Alguns até
vinte.
A política fez Ademar e Lupion caírem fora da luta, pelo menos
ostensivamente. A política e alguns reveses acachapantes.
Uma vez o Ademar resolveu mandar a célebre Polí-

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cia Marítima de Santos. Era uma ' polícia" especial" e muito bem treinada no
manejo
do cassetete e de armas leves. Muito bons para acabar com comícios ou mani-
festações na cidade. A revista O Cruzeiro da época fez uma imensa reportagem com
eles. Todos perfilados, rigorosamente perfilados. Os uniformes de "briga", botas
curtas e mangas arregaçadas. Cada um portava uma metralhadora Ina daquelas
pequenas e que dão rajadas de uns trinta ou quarenta tiros. O "cabo" de aço e
sem
miolo. Dobra por cima da parte de tiro e se transforma numa pequena arma a
tiracolo. Muito boa para tiro rápido e para acabar com comícios ou manifestações
de
estudantes nas cidades. Foram muito cumprimentados na saída e tinham a missão de
acabar com os posseiros do Norte do Paraná. Segundo declarações do comandante,
tinham todos os mapas dos pequenos e grandes caminhos e das casas dos renitentes
posseiros. "Se não desocuparem as terras por bem,- terão de sair por mal." Eta,
ferro.
Brancaleone não faria um discurso diferente. E partiram, gloriosos. .
Sem dqvida eram homens atléticos e muito bons em saltos e em dar socos e
pontapés. Depois era só expulsar quem estivesse pela frente. Mas a coisa no mato
é
um pouco diferente. Não tinham pela frente estudantes gritando por anistia nem
trabalhadores reivindicando salários. Ali estavam cerca de oitenta mil pessoas
que
resolveram só sair mortas. "Esta terra tem dono" , diziam eles. E os valorosos
homens da Polícia Marítima de Santos chegaram lá. Não eram muitos. Uns noventa,
confortavelmente instalados em três enormes caminhões muito bem calçados com
pneus antiderrapantes e especiais para rodar no barro, barracas e um caminhão
pequeno que era a cozinha. Boa comida e sem dúvida estavam prepa-

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rados para o "piquenique". Se apresentaram a um chefete local e foram logo em


frente. Tinham pressa em voltar logo. Ah, havia também duas motocicletas. Eram
boas, mas faziam muito barulho. Na imensidâo e no silêncio da mata poderiam ser
ouvidas a quilômetros de distância.
Não andavam sem o exame aprofundado dos batedores. Acho que não
contavam com aquele barro tão forte e pegajoso e nem com a mata muito fechada.
Em bom português, uns anjinhos. Deu até pena. Os batedores passaram pelos
posseiros entrincheirados em cima e nomeio das árvores. A noite muito escura. As
latas de gasolina espalhadas por toda a passagem da floresta e uma falsa picada
levaram os ingênuos e inexperientes rapazes da Polícia Marítima de Santos a
tomar
o caminho da emboscada. Algumas fanfarronadas tinham provocado mais ainda os
homens.E entraram por aí. Chico Bilar, filho do Espanhol, comandava a emboscada.
Queimaram as latas de gasolina, uns dois ou três tambores de querosene e fizeram
o
clarão iluminar. Um cerrado tiroteio fez os passageiros dos caminhões pularem
para
todos os lados. A ordem era de não matar nenhum. Mas eles não estavam para isso.
E se mandaram em todas as direções. Um até apareceu dois dias depois na casa do
Espanhol para comer e beber água. O Espanhol deu-lhe comida e disse: "Meu filho,
é bom você tirar esta roupa. Eles são bandidos sem alma". O rapaz topou
imediatamente e esta roupa, como se fosse um uniforme destes que a gente vê em
museus, até hoje está lá pelos lados de Iporã, como um troféu.
Os três caminhões grandes e o "cozinha" foram semi-inutilizados, e depois a
polícia veio buscar. A turma do Rambo também não entendeu que os vietnamitas
estavam defendendo suas famílias e suas terras.

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As eleições se aproximavam, Bento Munhoz e sua turma cascavam Lupion, e


em São Paulo Ademar não queria mais encrenca por causa de umas' 'terrinhas de
valor duvidoso". É, as uvas estavam verdes! No âmbito nacionai Getúlio também
soube aproveitar bem as coisas da luta. Não prometia nada, mas era contra o
pessoal
que protegia os grandes grileiros. E Ademar e Lupion tiraram o time do campo.
Aí é que a luta pela posse da terra no Norte do Paraná recrudesceu. Os grandes
grileiros não desistiram e tiveram uma idéia terrível, tenebrosa até.
Contrataram
Celestino, o mais feroz jagunço de toda a região. Uns diziam que tinha vindo do
Mato Grosso. Outros queCelestino era "correntino" da fronteira e falava
português.
Era um homem grande, pele queimada de caboclo. Olhar frio e feroz. Muito rápido
com qualquer arma. Comandava um grupo de jagunços, desalmados, uns quinze,
que vendiam seu trabalho a quem desse mais. Um deles, um lugar-tenente, era o
Paraguaio, índio guarani. Este grupo se caracterizava pela violência de suas
ações e
pelo profundo conhecimento da região. Até onde estavam as perobas derrubadas
eles
sabiam. Conheciam cada picada, cada pé de árvore e bastava, para esta gente, um
sa-
co de sal para ficarem mais de um mês no meio do mato. E contrataram estes
cabras.
E parece que a história do Brasil estava querendo incluir um novo grupo de Lam-
pião. Vi estes caras pessoalmente em Centenário, centro da zona conflagrada.
Onde
entravam causavam medo. Mas também ódio. Eram cruéis. Mataram e torturaram
muita gente. Andavam como bandidos mexicanos: de arma à bandoleira, e duas
cartucheiras entrelaçadas pelo peito. Celestino também andava assim. Todos eles
levavam um rifle papo-amarelo na mão. Celestino usava tam-

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bém uma Ina rápida de quinze ou dezoito tiros. Nunca foram vistos andando sós.
No
mínimo uns quatro.
O que fizeram é inenarrável. Apesar de os colonos e posseiros esconderem,
sabia-se de um enorme número de mulheres estupradas. Destelharam, queimaram e
jogaram em cima das carroças mais de duzentas casas. E o número de jagunços foi
aumentando. Calculava-se que tinham formado um bando de cerca de duzentos
homens, todos sob as ordens do Celestino. Mas o ódio crescia e ninguém lhes dava
nem bom-dia. Sem dúvida que eram protegidos dos pequenos delegados ou das
forças policiais de menos de meia dúzia de gente. Faziam e desfaziam. O império
destes homens na região sem dúvida foi uma interminável noite de São Bartolomeu.
Um dia, Getúlio ganhou a eleição e um posseiro da região de Cornélio
Procópio résolveu ir ao Rio de
Janeiro para expor a situação. Getúlio ainda não tinha tomado posse, mas
recebeu e ouviu o homem. Não lembro bem seu nome, mas na região ficara
conhecido como Salustiano. E o homem voltou muito contente com a promessa
formal de Vargas, que disse que resolveria a questão em seus primeiros atos.
E na ponte que atravessa o rio Paranapanema, ali em Ourinhos, do lado de São
Paulo, e do caminho para Cornélio, no Paraná, Celestino e seus homens aguardavam
o pacífico posseiro. Pegaram o homem, amarraram numa árvore, e na frente de todo
mundo o espancaram de chicote. Bateram tanto que o homem morreu. Alguns
jornais se ocuparam do caso, que levantou uma onda de indignação na região do
Norte do Paraná.
Espanhol exigiu dos seus filhos e da turma mais ativa: "Se não pegarmos este
bandido estaremos desmoralizados." O pessoal logo topou e muitos planos foram

62

feitos. Mas CeIes tino cada vez ficava mais forte. Armas modernas e mais gente
ao
redor. E sempre chegando de surpresa em qualquer lugar.
O Espanhol resolveu firme: "É besteira fazer planos de Dom Quixote. Temos
de ter paciência. Este bandido tem de ter um lado fraco. Onde ele mora? Onde ele
tem mulher? Por que ele usa esporas se só anda de jipe? Não terá um cavalo no
meio
disso?"
E a turma caiu em campo. Não se tratava de pegar Celestino diretamente. E isso
era quase impossível. O jagunço estava sempre arisco. Ele bem que sabia o que
que-
riam com ele. Tratava-se de localizar seu pouso. Também era praticamente
impossível.
Mas um dia o vento veio em direção favorável. Dois posseiros, Pedrão e
Jacinto, estavam na casa de um âmigo quando entram dois garotinhos. Uns oito ou
nove anos. Pedrão estava lendo um jornal velho, do tempo da morte de Salustiano,
quando um dos garotos exclamou: "Olha aqui o retrato do Seu Tibúrcio! É ele... é
ele sim." O retrato era o do Celestino, e Pedrão, como quem não quer nada, foi
questionando o menino: "Escuta, de onde você conhece ele?" O piá respondeu: "Ele
é muito brabo. É namorado da irmã do Bagaroni, mas ele não gostou da gente estar
lá. Depois se acostumou e até nos deu bala." Pedrão então perguntou ao menino:
"Onde é que você mora, garoto?" "É lá pra.baixo, lá perto da fazenda do Alemão,
que tem uma enorme serraria. Eu moro bem perto dali."
Pronto, tratava-se de localizar a fera e isso levou quase mais um mês. Celestino
chegava lá perto num jipão, até uma picada meio fechada. Ali o estava esperando
um garoto com um cavalo castanho, meio baio. Ele mandava o jipe embora,
montava no cavalo e o garoto

63

ia na garupa, até a casa da cabocla, onde passava a noite. Ia lá uma vez em cada
dez
dias, no máximo. E o filho do Espanhol e mais o lacintão organizaram o negócio.
Pedrão, que era bom de rifle, também foi. Ao todo nove homens. O caso não era
fácil. Tratava-se de pegar um homem que sabia tudo de coitar alguém. Bandido
desde nascença. Desconfiava de tudo e era extremamente hábil no manejo de armas.
E o plano foi formado. Nove homens bem espalhados pelo caminho do jipe, o que
não era difícil. Ali havia uns empreiteiros desmatando uma área. Quando o jipe
passasse, então a trama era ir para o local da espera. Uma peroba de um lado e
um
morrinho de nem um metro do outro. Cinco de um lado e quatro do outro.
Logo de madrugada, não seriam cinco horas, e lá veio o jagunço no seu cavalo
a passo. Como era madrugada, o resfolegar do animal despejava aquela fumaça das
narinas. Estava um pouco frio e o cavalo seguia no passo, e chegando perto
estava
tudo combinado. O fogo seria cruzado entre a peroba e o morrinho. O primeiro
tiro
seria dado pelo Espanhol filho. Mas, em cima da hora, todos avistaram o garoto
na
garupa e houve uma fração de segundo de indecisão. lacintão disse: "É comigo!" E
tacou um tiro no peito do cavalo, que estaria no máximo a uns três metros dele.
O
animal empinou e o moleque deu um pulo para trás e saiu correndo.
Celestino quis fazer o mesmo, mas levou uma saraivada de tiros cruzados por
cima. O jagunço era tão ágil que pulou do cavalo atirando com sua arma. Mas os
tiros saíram perdidos. Mais uma saraivada e um total de 42 buracos, todos pelo
peito
e uns dois na cabeça. Três metros, não tinha escapatória.
Em seguida o jagunço foi sangrado e embrulhado

64

numa velha lona de caminhão, que veio logo em. seguida numa perua.
Os homens do Celestino, ouvindo o tiroteio, arrancaram no jipe e
desapareceram na poeira da estrada. Uns homens que estavam indo para o eito
ainda
deram uma de curiosos, mas Pedrão deu dois berros e eles se mandaram. Celestino
na sua guaiaca tinha 17 notas novas de um cruzeiro, bem embrulhadas, e no fundo
da perua foi transportado lá para o norte. E num cruzeiro enorme que tinha ou
ainda
tem na encruzilhada que aponta a estrada para Porecatu e para Centenário, foi
dependurado na cruz e amarrado bem no alto. Embaixo escreveram um cartaz de
madeira: "Morte aos Jagunços no Norte do Paraná." E isto apareceu escrito por
todos os lados nas porteiras e nas pedras. Tinha mais desta inscrição do que os
anúncios das Casas Pernambucanas e das Casas Buri.
Andaram pegando mais um ou dois jagunços e o resto se mandou.
Getúlio cumpriu sua promessa. Bento Munhoz da Rocha, apesar de ser da
UDN, também topou o negócio. Deram aos posseiros terras muito boas, e com escri-
turas ou títulos bons, firmes e valiosos. O Espanhol que se dizia titular de
dois mil
alqueires nas terras de areia, recebeu uns quatrocentos em terra roxa dos novos
mu-
nicípios. E os outros posseiros também. Sempre em quantidade menor, mas de terra
garantida. E os municípios de Bentópolis, Lupianópolis e Iporã, principalmente,
re-
ceberam toda aquela gente. A luta acabou. Ainda houve um pequeno grupo que
tentou manter o "fogo sagrado". Mas era falso. A luta foi pela posse da terra.
Sustentar posições "mais altas e elevadas" não passava de quixotismo. E assim
terminou uma das mais belas páginas das lutas pela posse da terra no Brasil.

65
//Liu Chao-si nos Tapeou

Fiquei pela China, entrando e saindo bastante tempo. O objetivo


inicialmente seria o da chegada do exército de Mao em Pequim. Mas me atrasei um
pouco na viagem. Saí de Paris para Praga. De lá a Moscou e daí, pelo
Transiberiano,
até perto de Mukden, capital da Manchúria. Como havia sido uma zona conflagrada,
o trem parava às vezes vários dias em um local qualquer.
Entrei na China pela Mongólia Interior, onde fica Chitá. Dali, parando e
andando de trem para Po-he-tu, Tsar-Lan-Dum, Tsi-tsi-ha.
Até Harbin o trem foi relativamente rápido. Aliás, na frente do trem ia uma
locomotiva e um vagão com um grupo especializado em várias coisas. Às vezes eu e
outros jornalistas achávamos que o tal grupo não examinava direito as coisas.
Manifestei esta apreensão a Ebels, um australiano que escrevia para jornais
londri-
nos, e ele concordou.
Mais tarde, pude verificar que a apreensão era de todos. Os sapadores eram
muito jovens. Várias vezes, quando o trem estava parado, ficavam brincando. A
brin

67

cadeira favorita era a de pegar. Sempre quatro contra quatro. Por que, não sei,
nem
fiquei sabendo apesar de ter perguntado. Eles riam muito e continuavam em seu
joguinho. Nosso consolo era que, se houvesse alguma mina no caminho, eles iriam
para o espaço primeiro. Mas, como afirmava um húngaro que fizera toda a Segunda
Guerra, a mina poderia falhar no primeiro trem e explodir no segundo. Aí, era o
nosso, que também não formava uma composição muito grande. Na Sibéria chegou
a ter uns trinta vagões e mais os de carga. Mas quando pulamos para a Mongólia,
numa bitola bem mais estreita, não passava de cinco ou seis carros. A comida...
bem,
a comida era a tradicional comida de trem de segunda. Bem ruinzinha na parte
chinesa. Na soviética, que ia para Vladivostok, era boa. E se pagássemos mais
caro
era bem boa.
Os guardas chineses que gostavam de brincar de pegar tinham razão. Não
aconteceu nada de anormal e fomos tomar um ônibus velho, já perto de Chang-
Chung, aliás estava bem destruída, as casas e edifícios da bela cidade
seriamente
danificados. A retirada dos exércitos de Chiang ali foi na briga. Mas em outras
cidades não. Custava de 20 a 50 mil dólares o suborno de um comando. E, caramba,
já tínhamos passado por várias cidades grandes, principalmente na Manchúria, que
estavam praticamente intactas. Harbin, importante entroncamento ferroviário,
Mukden uma cidade moderna. Dali demos um pulo até a península da China, que dá
para o Mar da China, e pude ver Port Arthur e Dairen. Confesso um grande
desapontamento. Eu esperava encontrar uma China com chineses de rabicho,
quimonos, sapatos tipo alpargatas, as mulheres de pés pequenos e deformados e
nada disso eu estava vendo. Sim, nas cidades mais a norte

68
da Mongólia Interior o pessoal trajava costumes curiosos e com muitas cores
vivas.
Os cavalos que eles montavam eram pequenos e peludos. Lá fazia muito frio. No
inverno a temperatura cai até quinze abaixo de zero e dizem que até mais.
Mas o que me impressionou na Manchúria, mais abaixo do que a Mongólia,
foram as grandes cidades bem modernas. Aquela região esteve tradicionalmente
ocupada pelos russos e pelos japoneses, que andaram por ali desde 1911. E mais
tarde, desde 1930.
Eles consideraram aquele imenso território definitivamente japonês e
instalaram fábricas bem modernas. Vi em Mukden fábricas de tecidos equipadas
com teares Toyoda bastante modernos. Um trabalhador tocava 24 teares sozinho
porque eram automáticos. Na indústria metalúrgica também estavam bem
equipados. Parece que os japoneses chegaram a considerar a Manchúria defini-
tivamente como território japonês. Do contrário a ShogoTosho não teria investido
daquela maneira. Shogo- Tosho era ou é a organização dos grandes impérios
econômicos do Japão. Ouso dizer que Dairen, por exemplo, cidade de um milhão de
habitantes na época, era muito parecida com Porto Alegre. Seus habitantes com
roupas bastante iguais às nossas. Mas muitos já estavam usando aquela espécie de
uniforme que os chineses usam até hoje. Há quem pense que trata-se da
"uniformização" da população. Nada disso. Assim como aqui se usava paletó,
calça,
colarinho e gravata, os chineses, e também japoneses ou manchus, faziam a mesma
coisa sem a gravata. Concordo totalmente com eles. Só uso gravata sob tremenda
pressão.
As roupas variam de cor. Parda, cinza e azulmarinho são as mais comuns.
Alguns, poucos é verda

69

de, usavam cores mais vivas. O jeito deles não enganava. Puxa, os gays estão por
todos os quadrantes do mundo. E por ali, muitos. Talvez a guerra explicasse o
fenômeno, que é raro em outras regiões do centro e do sul da china. Ou é raro ou
eles são muito enrustidos por ali.
Tínhamos três intérpretes muito bons. Chegamos a ser quinze, mas
normalmente não passávamos de seis. Os outros foram até Pequim, no dia 2 de
outubro de 49 e se mandaram de volta. Os intérpretes falavam bastante bem
francês
e inglês. Um deles falava russo, mas o soviético que foi conosco no trem tinha
gente
de sua embaixada ou legação por onde andasse.
Então tínhamos três intérpretes para cinco, o que dava de sobra. Além da
mímica internacional.
A chegada em Pequim das tropas de Mao foi muito bem programada. Quando
lá aportamos, no dia 2 de outubro, eles já estavam lá há muito tempo e Chiang
Kai-
chek tinha escapado para Hainam, ilha perto de Cantão, no extremo sul. Gozado
que
de lá expediu "energicamente" um mandado de prisão para Mao Tsé-tung, Chu En-
lai, Liu Chao-si, Chu-té e para madame Shung Sin-lin, viúva de Sun Yat-sen, o
pai
da república chinesa e chefe da revolução que eliminou da China os velhos
impera-
dores e as chamadas dinastias. Dizem que até hoje ainda existem resquícios, e
não
duvido. Afinal de contas, com uns cinco mil anos de tradição, muita coisa fica,
de
qualquer maneira.
As mulheres de pés pequenos, por exemplo. Sun Yatsen, em 1911, baixou o
decreto proibindo esta prática tenebrosa e que consistia no seguinte: ao chegar
aos
quatro anos, eles colocavam nas meninas sapatos de couro cru que evitavam o
crescimento dos pés. Uma terrível de

70
formação. As crianças sofriam muito nos primeiros meses, mas depois se
acostumavam. Claro que nunca mais podiam andar direito. Os pés disformes e
retorcidos obrigavam-nas a caminhar aos pulinhos e pisar nos calcanhares. Correr
era impossível. Pois olhem que até hoje ainda existe isto; pouco, mas existe.
Ficou
sendo uma espécie de religião, e principalmente os camponeses bem atrasados e
não
atingidos pelo progresso, até pouco tempo mantinham esta prática punida com
severas penas. Não se admirem. Na Suíça, entre Berna e Zurique, quem sair da
moderníssima auto-estrada e subir a montanha à direita que a circunda, ainda
pode
ver algumas espécies de tribos ou clãs que vivem como na Idade Média. Embora por
cima de suas aldeias passem fios de alta tensão, se recusam a usar luz elétrica.
São
fedorentos e comem e plantam como se estivessem há quatrocentos anos atrás.
Na imensa China, muitos costumes e práticas religiosas ou outras ainda
persistem. Creio que as mulheres de pés pequenos já estão acabando ou acabarão
fatalmente em mais uma geração. Mas esta prática era fundamentalmente de
exploração das mulheres pelos seus donos. A poligamia era a tônica e ainda
existe
regularmente em bom número. Basta que o cidadão possa sustentá-las. Eles fazem
isto, mas escravizando-as. Os chineses ficam brabos quando se fala nisto, mas
eles
sabem que ainda não resolveram todos os problemas, principalmente o das culturas
milenares.
Mas na China nosso principal trabalho foi a Coréia. Explodiu o negócio do
paralelo 38. Eu ainda estava no Brasil para ver a Copa de 1950. Meus amigos
diziam: "Cuidado, se eles te pegam vais ficar uns cinco anos." Pois eu adiava
que
não tinha ninguém atrás de mim e

71

nem dos outros. Claro que, se déssemos muita sopa, nos enjaulariam. Mas atrás
mesmo, nunca senti. E eu não era muito conhecido fora da zona da praia onde
jogara
futebol até 46 ou 47. Nosso time, o Copacabana Clube, remanescente do "Posto 4"
era uma seleção. Nele jogavam Tim, Heleno, Jaime, Pirica, Sérgio Porto, o nosso
goleiro, Vivinho. Uma seleção. E éramos bem populares no bairro. Eu também
jogara nos juvenis, "amadores" e segundos times do Botafogo. Se não era muito
conhecido, era razoavelmente manjado. E o Maurício Grabois, deputado cassado e
caçado e morto na guerrilha do Araguaia, dizia: "Te cuida bem. E sabe de uma
coisa, agora que você vai voltar para a China e a Coréia? Pois eu acho que esta
guerra saiu de uma encrenca de fronteiras entre dois exércitos inimigos. Vão
ficar
para cima e para baixo e no fim ficarão de novo no paralelo 38." Ainda perguntei
em
que se baseava e ele respondeu: "Isto nasceu de uma grossa piroquetagem. O Mac-
Arthur, muito reacionário e belicoso, está querendo invadir e ocupar a Coréia do
Norte. Claro que os soviéticos, chineses e coreanos do norte não permitirão a
escalada. Mas no fim vão voltar todos para a divisa que foi aprovada pela ONU. E
do outro lado? Será que MacArthur ou os Estados Unidos se conformam em sair
daquela cabeça-de-ponte? Será que o outro bloco vai abandonar a Coréia do Norte?
Duvido."
Esta análise me orientou durante toda a cobertura. A Guerra da Coréia foi
muito dura em algumas fases. Mas em outras mais parecia um desfile de tropas.
Muitas armas novas estavam sendo experimentadas, e Truman chegou a
ameaçar com a bomba atômica, igual à de Hiroshima e Nagasaki. A tensão foi
grande, pois MacArthur queria ir muito longe e chegou até as fron

72

teiras do rio Yalu, divisa da Coréia do Norte com a China. Ali foi meu pouso
durante algum tempo. E também em Pequim, onde se tinha mais noticiário do que
em Piongiang ou em Seul.
E foi em Pequim, pela manhã, nos primeiros dias de outubro, que lemos num
release em inglês uma declaração de Chu En-Iai, o ministro do Exterior e membro
importante do Politburo do Partido Comunista Chinês. Dizia Chu En-Iai em sua
declaração: "A China não suportará ver seus amigos invadidos. Tampouco a presen-
ça de forças hostis em nossa fronteira."
O negócio era sério e pedimos uma audiência a Liu Chao-si, segundo homem
da China e que sempre estava conosco. Muito simpático e sorridente como todos os
chineses. Mesmo Mao Tsé-tung, que vimos umas quatro vezes, era um homem bem
alegre. Mao era alto e"nada tinha de "amarelo". Era bem rosado, com as maçãs do
rosto salientes e até avermelhadas. Aliás, este troço de raça amarela eu acho
que já
acabou. Estive no Japão mais tarde e não vi nenhum amarelo. Me parece que,
anteriormente, eram opilados. Com a melhoria de vida e muita comida os
"amarelos" são muito poucos.
Então, fomos entrevistar Liu Chao-si. A questão era delicada. As declarações
do ministro do Exterior eram muito incisivas e até belicosas. Então achei que
tinha
de dar uma volta na pergunta e disse: "Ministro, as declarações de Chu En-Iai
esta
manhã significam uma mudança radical na política externa e de paz da Nova
China?" Eu queria apenas perguntar sobre o que lera e dar margem a qualquer
resposta. Liu Chao-si riu e disse: "Todos que tentaram invadir a China vieram
pelo
norte. Pela Manchúria ou pela Mongólia. Ora, para tomar a China, vindo do mar, é
necessário ocupar a Coréia. Isto eles já

73

fizeram. Depois a Manchúria e finalmente chegar em Pequim. Qualquer menino da


escola primária sabe isto. O barão de Tanake, o célebre ministro japonês,
percorreu
este caminho. Agora é MacArthur. Não terá chance, como nenhum dos seus
antecessores." E aí veio a bomba: "Antes do fim da segunda quinzena de dezembro
expulsaremos os invasores e os devolveremos ao mar."
Raios! Saímos correndo à procura de telex, telefone ou o que fosse para mandar
a notícia-bomba. Puxa, o telex dava volta ao mundo para chegar em Paris ou Roma.
Explico, estávamos trabalhando para o "velho"
Savério, que por sua vez vendia os serviços de duzentos ou trezentos repórteres
espalhados pelo mundo inteiro para as agências internacionais, especialmente as
da
Europa.
Foi uma parada mandar a notícia-bomba. No dia seguinte conseguimos falar
com a agência central. O telefone estava horrível, mas dava para entender quando
ele falou de Paris: "lmbecile. Os chineses invadiram a Coréia ontem, com dois
milhões de homens. Já atravessaram o Yalu, estão a mais de trinta por hora em
dire-
ção a Piongiang." Dito isto, nos chamou ainda de idiotas e completou: "Isto está
em
todos os jornais do mundo inteiro. E nós já distribuímos a notícia desde ontem,
meia
hora depois da invasão chinesa, estão ouvindo, seus imbecis?" E desligou. Era
assim
o velhão. Sempre nos tratava bem, mas quando a gente dava mancada ele es-
culhambava firme.
Eu fiquei muito pê da vida com o chinês que nos dera aquela derrubada. É
verdade que ele não mentira. Foi mesmo antes do fim da segunda semana de
dezembro. Mas foi naquela tarde mesmo, em outubro de 1950. Chinês filho da mãe.

74

Mais tarde, alguns anos mais tarde, li as memórias de Molotov sobre a guerra.
Havia nelas muita correspondência trocada entre os altos comandos. Uma delas - e
está lá no livro - é a de Franklin Roosevelt e Winston Churchill para Stalin,
onde diz
textualmente: "Necessitamos que o exército soviético antecipe seus planos de
contra-ofensiva. Nossas tropas estão sendo seriamente castigadas numa contra-
ofensiva nas Ardenas, deflagrada pelo general alemão von Rundsted." Tratava-se
de
corrigir um erro sério do fanfarrão general Patton, que atirou o exército
invasor da
segunda frente numa aventura que causou muitas mortes e quase entorna o caldo no
final da guerra. A correspondência foi dirigida a Molotov e a Stalin e a
resposta foi
quase igual à que o desgraçado do chinês nos dera. Disseram Stalin e Molotov:
"Estamos em certas dificuldades e um ataque prematuro poderá nos causar muitas
perdas. Mas dentro de dois meses, antes do fim da segunda semana do segundo mês,
desencadearemos a ofensiva solicitada por nossos amigos e aliados. Até a vitória
final e a incondicional rendição de nossos inimigos e inimigos da humanidade."
Tudo bem. A ofensiva foi desencadeada quase no dia seguinte. Não mentiram e
Molotov disse que Churchill e Roosevelt eram aliados. Mas não era necessário que
soubessem o dia certo. Quer dizer, na guerra não se confia em ninguém.
A notícia da invasão chinesa explodiu em todo mundo, na hora mesmo, e nós
ficamos sabendo, nós que estávamos lá, por um telefonema do dia seguinte e vindo
de Paris. Até em Alegrete ou Cachoeiro do Itapemirim já sabiam. Filho da mãe de
chinês, sempre sorrindo e com aquela carinha de anjo.
A verdade é que na Coréia, andando pra lá e pra

75

cá, em verdade nunca passamos perigo. Sempre achei mais perigoso atravessar a
avenida Rio Branco do que Seul ou Piongiang. Foi na época do Lotação. E eles
sem-
pre proibiam os correspondentes de chegar mais perto do que umas seis horas das
frentes de combate. As notícias mais quentes foram sem dúvida as da guerra
bacte-
riológica. A guerra da Coréia foi um campo experimental de armas inventadas no
após-guerra. Porém as que mais sensação causaram foram as armas da "guerra
química" e da "guerra bacteriológica". Fui a Piongiang para isso. Estavam lá
diferentes comissões internacionais. A Cruz Vermelha Internacional,
principalmente. Não foi difícil constatar a presença das tais armas
bacteriológicas.
Milhares de insetos contaminados foram encontrados. A guerra química creio que
não chegou a ser detonada, mas não faltaram os insanos para tentarem a guerra
bacteriológica. Entretanto, a presença na Coréia das diferentes organizações
impediu
que alguns malucos tentassem suas experiências. A gritaria foi grande e a tal
guerra
não se consumou. A outra, a do conflito entre as duas Coréias também não durou
muito. MacArthur seguiu até a fronteira da China, mas depois foi empurrado de
volta até o mar. No final, os dois lados voltaram para a fronteira demarcada na
ONU
e em Yalta em 1945, paralelo 38, onde estão até hoje, não muito pacificamente.
Entretanto, me parece que o desejo dos coreanos éo de formarem um único país.
Isto
aliás ficou evidente com a falta de entusiasmo deles pela guerra das fronteiras.
Brigaram mais americanos e chineses do que propriamente os coreanos, que
deveriam estar interessados. A guerra não passou de um conflito de fronteiras
que se
alastrou. Dizem que morreram cerca de cento e cinqüenta mil. Outros afirmam que
foram duzentos. Não

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importa, morreram inutilmente. Mas acho, e quando não sei, que as duas Coréias
são
uma só e cedo ou tarde se unificarão. Têm a mesma cultura, o mesmo idioma, a
mesma divisão geográfica milenar e não deve demorar muito que se acertem no
mesmo tipo de economia.
Esta guerra que vi bem de perto me ensinou muita coisa. A mais importante é
que a vida não pára. Eu já tinha estado na Europa logo em seguida à guerra e
ficara
admirado com os escombros. "Fiz" para a imprensa várias cidades destruídas e
alguns campos de concentração também totalmente destruídos. O único que estava
tenebrosamente intacto era o de Maidanek, perto de Lublin, na Polônia, a uns
seis
quilômetros da saída sul da cidade. Os demais que vi tinham apenas pequenos
restos
de fornos crematórios e de um ou outro pavilhão de presos. Minha admiração é de
como aqueles povos sobreviveram. As cidades da Holanda, a~ da Alemanha, como
Hamburgo, Berlim, Bremen, Hanover, e um monte de outras, como Karkov,
Stalingrado, Kiev, Varsóvia, Gdansk, e muitas e muitas outras. O espetáculo era
o de
destruição por todos os lados. E eu pensava como aquelas populações tinham
sobrevivido. Soube que em Leningrado, cercada pelo inimigo durante quase três
anos, comeram até cola de parede fervida e cadáveres. Fantástico, mas é incrível
a
capacidade de sobrevivência e de continuar a vida das populações.
Isto pude sentir em Piongiang logo após um bombardeio. Não morreu muita
gente, pelo que soubemos, mas um distrito inteiro ficou arrasado. Fomos ver e lá
estava a vida continuando. Gente pra lá e pra cá. Mulheres com crianças no colo
e
nas costas, comércio abrindo de novo, os transportes se ajeitando e as ruas
sendo
limpas imediatamente. A vida continuava e acho que é

77

inútil tentar acabar. Quem quiser que dê um pulo a Hiroshima e Nagasaki, ou a


Hamburgo ou Volvogrado (Stalingrado) e me diga que ali existiu uma guerra.
Costumo brincar e dizer que Niterói tem mais buracos que em Hiroshima, que
parece que a bomba caiu aqui. Não deixa de ser uma espécie de verdade. Mas é
impressionante a atividade de uma população após um bombardeio, apesar dos
estragos e das vítimas. Talvez tenha sido isto que me impressionou mais do que
tudo
naquela guerra estúpida. Aliás, me parece que todas são.
Nós perdemos um companheiro em dois anos. Foi um acidente, se pode chamar
assim, e o Dmitri não respeitou as regras do jogo. Aliás não foi só ele. Nós
todos já
tínhamos feito aquilo. Seguinte: a defesa antiaérea anunciou um ataque. Era meio
rotina, às vezes jogavam bombas e outras não. Só passavam por ali, bem alto para
evitar as baterias. Então fomos para os abrigos. Perto de nosso alojamento havia
um,
regular e não muito fundo. Teria uns seis metros de fundo, se tanto. Eu até que
não
gostava muito. Achava que uma bomba maior, de quinhentos quilos, arrebentaria
aquilo. Mas eles diziam que não. E descemos. É desagradável sim. Um subterrâneo
de terra que estava firme sobre traves de cimento em formato de baliza de
futebol. O
odor não era dos melhores, muita gente, mas era suportável. O chato era subir,
descer, e nada acontecia. Neste dia o alarme funcionou. Pelo barulho e
persistência,
era dos ataques maiores. Mas não era para ali e sim para algum objetivo mais a
norte. Mesmo assim jogaram algumas bombas. Nas instruções estava dito que se não
houvesse tempo para descer aos abrigos que se protegessem atrás dos sacos de
areia
que havia por todos os lados. Mas descemos calmamente como quem vai tomar um
metrô. O grego disse que

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ia ficar lá em cima. Parece que foi para um bar ou restaurante, desses de beira
de
rua. Voltanios, uns vinte minutos depois, e ele estava morto. O Dmitri tinha o
ape-
lido de Dmitri Macropulus (gigante, grandão) mas porque era exatamente o
contrário. Baixinho e muito alegre. Emérito contador de piadas. Falava francês,
mas
aquele sotaque dava mais graça a tudo o que ele dizia.
. Aconteceu simplesmente que onde ele sentou havia um carro velho por perto.
Os estilhaços provocados por uma bomba que caiu a uns trezentos metros dali é
que
o atingiram. Bomba nenhuma cai em cima de alguém. Puxa, seria muito azar. O caso
é que provoca ruínas, destruição e estilhaços. Estes sim são muito perigosos.
Quem
ficar atrás dos sacos de areia ou atrás de alguma coisa sólida, dificilmente
sofrerá
alguma coisa. Ele estava perto de um carro velho que se arrêbentou pela explosão
da
bomba.
Esta imprudência causou a única perda em nosso grupo em quase dois anos, pra
lá e pra cá. Depois e durante esta estada, excluindo os dois meses em que voltei
ao
Brasil, dei várias voltas pela China para conhecer melhor. Ou tentar conhecer,
pois
acho que para os ocidentais tão cedo não será fácil entender bem aqueles povos.
Como todos sabem, são culturas milenares. Costumes arraigados de tal forma que
eles próprios, de um lugar a outro, não entendem muito bem.
A ópera, por exemplo. Para eles a ópera é um valetudo. Claro que tem as mais
sofisticadas, como a famosa Ópera de Pequim, que já andou por aqui. Mas a ópera
popular, do povão e das aldeias e cidades menores, eu juro que é de lascar. Mais
vinte minutos e eu confessava tudo. Foi em Paoting, em Hopei, que é a província
de
Pequim. E lá, fui homenageado com uma "ópera".

79

Tinha de tudo. Acrobatas, cantores, orquestra típica, lutadores, o diabo. Tudo


bem,
alguns números eram fantásticos. Os mágicos e os ilusionistas, que eram parte do
espetáculo, faziam "desaparecer" um cavalo. Até aí ótimo, pois pareceu mais uma
sessão de circo.
O duro foi a música e os cantores. Um barulho infernal e os cantores davam
agudos muito agudos que seriam muito bons, pois a platéia vibrava. Eu e o amigo
quase enlouquecemos.
E de outra vez, lá pelo sul, nos convidaram para um espetáculo em Cantão.
Demos no pé e alegamos que tínhamos nos perdido numa volta pela lindíssima
cidade à beira de um enorme lago. Creio que para eles seria o mesmo que assistir
a
um ensaio de uma escola de samba. A turma bate a noite inteira. Para nós cada
samba é diferente, mas para eles e para muitos estrangeiros é tudo igual.
.
Lembro que uma vez, ainda na Avenida, um grupo de turistas ficou perto de
mim. Uma senhora me perguntou qual seria o próximo número. Eu disse-lhe que era
outra escola desfilando. Ela assistiu um pouco e se mandou dizendo "Rut
they.look
aU the same!" (Elas parecem todas a mesma coisa), e se mandou com sua turma.
Entretanto, tinham passado duas, e seria a terceira escola com sambas e desfile
que nos extasiavam. Por isto refresquei os chineses com a sua ópera.
Em todo o caso vale.contar uma coisa. Foi.no Palácio de Verão, onde o
Bertolucci filmou uma cena e disse que era no Tien-nam-Men. Mas no teatro os
arquitetos encontraram uma dificuldade muito séria. Como o imperador poderia
estar sob o mesmo teto que os artistas, míseros plebeus, para quem ele jogava
umas
moedas no fim do espetáculo? Não, não podia ser. Mas o impera

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dor gostava de ver toda sorte de espetáculo. Então foi resolvida a questão.
Entre o
camarote do imperador, bem na frente, e a ribalta, construíram uma "rua", de uns
cinco ou seis metros de largura, calçada de pedra e tudo. Por sinal que de
pedras
grandes, daquelas do calçamento de Ouro Preto. Então, o imperador e sua corte
esta-
vam separados dos artistas plebeus por uma rua que vinha desde lá de fora do
teatro.
Este teatro está lá até hoje. E qualquer turista que for a Pequim e ao Palácio
de Ve-
rão pode visitá-Io. A não ser que esteja preservado. A abertura aos turistas
causou
muitos prejuízos. Andaram quebrando muita coisa. Como nos famosos castelos da
Europa. Em Fontainebleau, por exemplo, os aposentos de Napoleão e os do papa
Leão XIII estão quase impossíveis de se visitar. Os franceses estão certos. Em
1938
o Everardo deu uma sentadinha rápida numa bergere do imperador enquanto o guia
estava mais na frente. Se ficasse como era antigamente, os aposentos de Napoleão

tinham ido para o brejo. Agora tem cordas por todos os lados e algumas partes
definitivamente fechadas.
Outra coisa engraçada ou tragicôinica se passou em Xangai. Nos chamaram lá
para ver os resultados da reforma agrária, ali perto. Se a reforma agrária, logo
ao
norte da grande cidade, deu certo eu não sei. O terreno era muito acidentado e
meio
pedregoso, misturado com areia. Deram a cada família de três pessoas um mu qua-
drado, medida que é quase a de um alqueire, um pouco menos. Dizem que mais
tarde deu bode. As terras não prestavam e os camponeses chiaram muito. Não sei
se
foi ali mesmo, mas a chiadeira aconteceu. Mas não é por este lado a coisa. Eu
havia
estado em Xangai um ano e pouco antes, e fiquei assombrado com o que vi. Uma ci-
dade imensa com cinco ou seis milhões de habitantes e

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havia gente que dizia que eram sete. Ainda era uma terrível balbúrdia, e ali
vários
países tinham seu pedaço: ingleses, franceses, inclusive alemães que desde 1945
tinham saído, dinamarqueses e outros. Sei lá. Mas quando cheguei tinham caído
fora, ficando uma ou outra legação ou representantes.
A cidade ainda estava muito complicada. A parte pior era a das margens do
Yang-pu. E ali mesmo, no delta deste rio, e não do Yang-tse, como muitos dizem,
havia talvez a favela mais infecta do mundo. A nossa incrível e malcheirosa
favela
da Maré, perto daquela parecia a avenida Vieira Souto. Nem eu nem ninguém
sabíamos ao certo quantos habitavam aquela imundície na beira do rio e da lama
quando a maré baixava. Gente que nem formiga e muito andrajosa andava por ali.
Na maré baixa um mau cheiro horrível de detritos e tudo. E ninguém pensou em
reformar aquilo. Mas a chamada para a reforma agrária, acho que não muito longe
dali, ou mesmo em aldeias mais afastadas, milagrosamente limpou a área em um ano
mais ou menos. Os pouquíssimos remanescentes foram retirados para outro lugar. A
favela mais suja do mundo acabou. Por isto digo: não sei se a reforma agrária
feita
apressadamente naquela época deu certo. Mas a favela acabou. O prefeito de
Xangai
na época era o general Cheng- Yi, um chinês grande, gordão e de óculos, muito
alegre, dizia que seus objetivos eram tomar Formosa e acabar com a favela. Um
foi
conseguido. O outro parece que foi abandonado.
Mas ali mesmo, no 16º pavimento do hotel que nos hospedava, eu e um
italiano que também se chamava Saverio tivemos uma experiência amarga.
Estávamos sem ver mulher há uns cinco ou seis meses. E na China não é fácil.
Elas
não gostam dos "narigudos" e os narigu

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dos somos nós, os ocidentais. Nada feito. Mesmo entre as prostitutas, que eram
seriamente perseguidas mas que ainda se podia encontrar, não tivemos sorte. Elas
também não queriam nada com os narigudos.
Mas no hotel havia umas dinamarquesas de uma legação ou coisa parecida. Não
me pareceram do corpo diplomático, pois tinham as mãos muito grossas. Quem sabe
eram do corpo de domésticas dos dinamarqueses? De qualquer maneira, isto era
irrelevante. Falavam mal o inglês, e na base da mímica nós as convidamos para
uma
cerveja. Toparam e foram topando as coisas. Dali fomos à boate do hotel e depois

para cima, para o 16º andar. Bom, as duas juntas deviam pesar uns duzentos
quilos.
Uma cento e vinte e a outra uns oitenta. Guerra é guerra. A mais volumosa nós
chamamos de Miss Dinamarca. Elas não entendiam; mas riam muito. O caso é que
estávamos há muitos meses sem ver muÍher e ninguém conseguia um resultado mais
digno sexualmente. Ao contrário, fomos um fracasso. O italiano, exagerado como
os
italianos, exclamava: "Não é possível... estou liquidado... vou me atirar pela
janela."
Elas riam muito e nós naquele constrangimento. Nada feito. Mas chegamos à
conclusão de que o longo prazo de abstinência conduzira ao inevitável fracasso.
Mas Saverio não se conformava e ficou atrás das duas. A Miss Dinamarca
topou e levou a outra. Tudo bem. Mas palavra que chegamos a temer a circunstân-
cia. Ele dizia a toda hora: "Será que não foi a comida? Ou o chá... dizem que
muito
chá acalma a gente..." De repente, sem mais nem menos, exclamou: "Já sei... é a
tal
da água quente que nos dão todas as manhãs. É isso, é isso! Não tomo mais esta
droga."
É que os chineses nos recomendaram só beber água

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fervida. A gente deixava esfriar, mas eles diziam que água morna era muito bom
para o funcionamento do organismo, intestinos e tudo. De fato era. Todos os
dias,
em jejum, um copo de água quente. Mas o italiano estava achando que também era
bom para o não funcionamento de certas partes do organismo. Foi a um médico que
afirmou que isto era besteira. A China toda estava bebendo água quente o dia
inteiro
e isto não impedia que nascesse um chinês por décimo de segundo. Felizmente não
era a água morna. Era falta de treino.

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//o Ministro do Câncer

A conteceu em 1950, no apogeu do Stalin. Eu estava indo para a


China com mais uns quinze jornalistas, através da Sibéria. Estávamos .em agosto
para setembro, mas mesmo assim faz muito frio em algumas partes da Sibéria. Eles
chamam de "Outono Dourado" mas para mim já era um bom inverno. E foi na
República dos Buriato-Mongóis, em Ulan-Ude, que estávamos passando. Em todas
as cidades mais importantes apareciam nas estações umas cinqüenta pessoas para
nos saudar. Não raro tínhamos pelo menos dois discursos. Um deles e outro nosso.
Estava voltando para a China, onde teria de chegar antes do 2 de outubro. Dava
tempo de sobra, e isto realmente aconteceu. O trem era bem grande, uma
composição de mais de cinqüenta vagões e puxado por duas imensas locomotivas.
Bem confortável. E viajávamos durante a noite para durante o dia visitarmos as
diferentes cidades da Sibéria, de diferentes nacionalidades.
A gente tem idéia da Sibéria gelada. Mas fui surpreendido por uma região bem
adiantada e com belos campos e bosques. Aquele filme, Dersu Uzala, apesar de

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parcialmente rodado na Espanha, retrata bem a região. Garanto que é muito


bonita.
Passei por ali quatro vezes, para lá e para cá, em viagens de Moscou a Pequim,
pa-
rando, é verdade, em mais ou menos de quinze a vinte e três dias. Pare:e que a
viagem normal é de cinco ou seis dias. O trem é muito confortável na parte
soviética. A bitola da estrada de ferro é de 2,10 m, o que permite que os leitos
fiquem perpendiculares à linha férrea. Isto dá um excelente conforto. A comida
muito boa, embora principalmente à base de peixe, o que não é do meu agrado
particular. Mas os outros gostavam muito. Os doces e o pão muito bons. Aliás, na
União Soviética o pão é magnífico. Como o nosso era antes da guerra. Lembram que
coisa gostosa? O pão francês, o pão alemão e o pão "provença" que saíam de
noite,
ali pelas onze horas, em qualquer boteco do Rio de Janeiro? O nosso pão era uma
maravilha e custava a envelhecer. O pão deles é assim.
Mas em cada lugar que o trem parava e antes da visita à cidade, tome uma
manifestação de cerca de cinqüenta pessoas. Quando o trem chegava, ali pelas dez
da manhã, tinha mais gente. E assim foi em Danilov, Uralski, em Magnitogorski,
onde fomos dar uma volta logo atrás dos Urais. E a parte que o trem atravessava,
embora precisasse de mais uma ou duas locomotivas, não era uma montanha
íngreme. Muito bonito. Os discursos é que eram meio chatos. A verdade é que não
havia muito a dizer e todos já .sabiam que a Alemanha e a Itália fascistas
tinham
sido derrotadas. Eu compreendo que eles estivessem muito orgulhosos da vitória
na
guerra. As tropas siberianas tiveram uma grande participação, em Stalingrado
principalmente, derrotando o poderoso exército de von Paulus, que, segundo
dizem,
chegou a contar com quase dois milhões de homens. Alemães, húngaros, ro

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menos, a famosa divisão italiana, também chamada, como o time de futebol, de


azurra, austríacos e tchecos. Eram a maioria. Dizem que alemães teriam sido
apenas
meio milhão. O resto, "aliados" ou "submissos". E me disse um capitão austríaco,
ótimo cara e excelente jornalista, que nenhum dos "aliados" brigava com muito
entusiasmo, o que deixava von Paulus sempre muito enfurecido.
Então, em 1950, os siberianos ainda estavam muito orgulhosos de sua
participação. E ao longo da estrada, por Sverdlovski, Krasnoiarsk, Omsk, Tomsk,
Irkutski, eles lá estavam para ouvir e fazer discursos. O diabo é que passei por

quatro vezes, e em três, em quase todas as cidades, ouvi os mesmos discursos da
turma. Claro que respondíamos.
O italiano Bocara já tinha um pronto. Mas uma vez se enganou no nome da
cidade e todos gozaram muito. Mas em Ulan-Ude, capital da República dos Buriato-
Mongóis, chegamos e a turma não aparecia. Chemitchasni, nosso vigoroso e severo
guia, e responsável por tudo, ficou furibundo. Pegou o telefone que ligava em
toda
parte onde parávamos e esculhambou o mongol local. Era cedo, nem sete horas, e o
frio já apertava. Bocara ainda disse' 'não tem importância..." , mas
Chemitchasni se
enfurecia cada vez mais. Pegava o telefone e esbravejava muito. Mais tarde, na
década de sessenta, ele chegou a ministro da Justiça. Sem dúvida era importante.
Eis que chegaram os manifestantes, descendo às pressas dos caminhões,
carregando umas flores meio amassadas. O nosso homem estava no telefone e não
viu sua chegada, e esbravejava cada vez mais. Então fui avisar e disse-lhe:
"Olha,
cara, chegaram aí dois caminhões de opinião pública. Já podemos começar o
comício?"

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Tive de sair correndo. O que ele disse não sei, mas calculo.
Os mongóis souberam do troço, gozaram muito e até confraternizaram com a
gente naquela estada de umas quatro ou cinco horas. Fomos a uma comida e em
1950 um professor muito engraçado e inteligente falou-nos sem muita cerimônia e
sem demonstrar medo de nada: "Saibam que muita gente aqui acha que cometemos
um erro sério em manter Stalin de primeiro-ministro. Os ingleses têm mil anos
mais
de experiência de poder do que nós e apesar do Churchill ter sido ídolo e grande
herói na guerra, eles o aposentaram na paz. Não quiseram um homem belicoso à
frente do governo. Nós aqui deveríamos ter feito o mesmo com Stalin. Brigou
muito, perdeu filhos e amigos..."
Alguém ainda disse: "Mas Stalin é bem mais jovem, tem apenas setenta anos e
Churchill já estava com no. venta..." O professor não se abalou e retrucou:
"Sim, não
duvido da capacidade de Stalin... é um gênio... Eu o aproveitaria de ministro do
Câncer. (!!!) Ele acabaria com o câncer em dois meses..." Não sei que fim levou
o
simpático professor. Mas o espírito crítico dos russos sempre foi muito
acentuado.
Tolstoi já afirmava isto. Entramos no trem e fomos em direção à China. Os dois
ca-
minhões de opinião pública estavam lá para a despedida.

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//Começou na UNE, Terminou em Pequim

No ano de 1950 resolvi por conta própria dar um pulo no


Brasil. Pombas, Copa do Mundo? Eu tinha assistido à de 1938 todinha. Na de 1934
vi apenas um jogo por culpa do jornal esportivo francês L 'Auto, um jornal
amarelo
que era especializado em esportes mas fundamentalmente em automobilismo e ci-
clismo. Era muito francês, e mesmo na época da Copa Mundial de Futebol,
paciência. CoinCidia com o "Tour de France" de ciclismo e azar do futebol que,
apesar da Copa na Itália, não merecia mais que algumas linhas. Eu estava em
Paris e
comprava este jornal para ler as coisas do esporte e da Copa. Nem sempre tinha
notícias. O "Tour de France" das bicicletas dominava tudo.
Fiquei sabendo que, apesar da cisão violenta no futebol, o Brasil mandara um
time e que o time jogaria em Gênova na quinta-feira, obedecendo à tabela
sorteada.
Eu era garoto, mas sempre muito esperto. Convenci meus parentes e amigos, e com
mais um cara da nossa embaixada que sabia tudo, pegamos um trem para ir lá.
Nosso amigo, sempre muito econômico, sugeriu a

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seguinte viagem: sairíamos quarta de noite de Paris, atravessaríamos o túnel


Simplon, que leva uns vinte minutos, ou levava, e chegaríamos em Gênova por
volta
das nove ou dez da manhã. O jogo era mais tarde, lá pelas quatro.
Estava tudo sob controle. Não havia problema de ingressos porque o jogo entre
Brasil e Espanha n..ão estava sendo muito cotado. Tudo em cima. Mas quando che-
gamos a Gênova é que ficamos sabendo no hotel, quando estávamos saindo para o
estádio, que o jogo tinha sido um dia antes! E ainda mais: o resultado tinha
sido de
três a um para a Espanha. Com este resultado, o Brasil estava fora da
competição.
Nos olhamos com cara de besta e chegamos à conclusão de que o L 'Auto também
cometia erros. O jeito era sentar no meio-fio. Meu amigo disse: "Volto hoje
mesmo
para Paris, cancelo o hotel e durmo no trem de volta. " Fiquei com raiva,
comprei
um jornal italiano com retratos do Mussolini em todas as páginas, conclamando a
massa para ir ver o time da Itália. "O time fascista contra o time comunista da
Espanha republicana." Pensei: "A Espanha já entrou pelo cano." Mas fui ver.
O Estádio Flaminio estava superlotado e lembro que paguei três vezes o preço
da arquibancada. A Espanha fez o primeiro gol, mas Mussolini não se conformou.
Do seu palanque comandava a torcida. A massa gritava sem parar: "Itália!
Itália!" E
Mussolini emendava: "A noi! A noi!" Parecia um alto-falante. O um a zero para a
Espanha foi até o fim dos noventa minutos, mas o juiz agüentou as pontas. Os
espanhóis corriam desesperados para perto do homem e mostravam o pulso,
imitando o relógio. Já deveriam ter passado uns quatro ou cinco minutos quando
veio uma bola alta e jogaram o Zamora

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para dentro. Deu a impressão que até o Duce estava no lance. Um a um. Veio a
prorrogação e deu o que tinha de dar: Itália. E Mussolini, da tribuna de honra
do
estádio, berrando "A noi... A noi..." E só deu isto, até a final contra a
Tchecoslováquia. Um a zero para os tchecos, um a um e na prorrogação o argentino
Raimondo Orsi, que mais tarde veio para o Flamengo, fez o gol da vitória. Eu já
tinha me mandado no jogo Itália e Espanha. Qualquer observador neutro
verificaria
com facilidade que a Itália ganharia a final. Além do mais, o time da
Tchecoslováquia na semifinal e na final chegava em frente à tribuna e fazia com
toda a energia a saudação fascista.
Bolas, eu só não assisti a todas as Copas porque preferi uma corrida de cavalos,
e~ cancha reta. E a Copa de 1930 era perto de onde morávamos. Eu era um garo-
tinho e todo o mundo foi ver a final Uruguai e Argentina. Menos os carreiristas
que
preferiam a mais célebre e importante "cancha reta" da história das carreiras da
fronteira. "Fronteira", para nós, era a do Uruguai. Apesar de Argentina,
Paraguai,
Bolívia, Colômbia, VenezueIa e Guianas, fronteira para qualquer gaúcho significa
a
do Uruguai. E os "castelhanos" levavam de barbada o cavalo Remendado, um filho
de Vai Dór, o célebre pai de Sim Rumbo, avô do Santarém e da cavalhada dos PauIa
Machado. Eu ia perder uma cancha reta dessas? Nem todas as Copas do Mundo
juntas.
Uma carreira como aquela não era assim qualquer coisa. O páreo entre os dois
cavalos era para as quatro horas. Mas desde cedo, quando clareava o dia, saíam
car-
reiras de todo o jeito. Pegavam a gente, os guris que ficavam sentadinhos perto
do
"vencedor" ou chegada, para montar. A gente gritava, cada um com um chicoti

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nho na mão: "Eu! Eu!" Os gaúchos velhões desatrelavam cavalos até das carroças e
desafiavam um outro carroceiro: "Sou mais meu zaino contra qualquer bagual de
carroça..."
Havia espertalhões que traziam "parelheiros" (cavalinhos corredores) atrelados
nas carroças para comer um páreo. O pessoal não era trouxa e chiava: "Já vi este
burro correndo no Quaraí. É cavalo de vinte e dois." Isto queria dizer que era
um
cavalo que "metia patas" em trezentos e sessenta ou três quadras de campo, páreo
normal na cancha reta. Uma carreira de cancha reta que se preze tem de ter de
tudo.
E tem. Churrasco e vinho a valer; e se o páreo principal é de muito dinheiro, o
chur-
rasco é oferta da casa. Mas tem de tudo e a peãozada se diverte o dia inteiro.
Quer
dizer, até a hora do grande p,áreo entre o Clarim, um baio de Bagé, tão veloz
que até
se "tocava nos machinhos" (dizem que era dos Mércio) e o Remendado, um puro-
sangue, uma' 'bala" e recordista em Marofias dos páreos de velocidade. Até os
1.400
metros era barbada para ele. Daí em diante, "morria" . Só correu os 1.500 uma
vez e
chegou lá nos troços. Nos últimos cem a "tropa" passou por cima. E o jogo
campeando. Jogo do "osso", mas o principal era o "sete em porta". Uma mesa
comprida e a turma senta de um lado e do outro nos bancos de madeira. O "sabô",
isto é, a caixa de baralhos,.é muito alto. Carrega 32 baralhos. Ganha a parada
maior
de cartas combinadas, assim mais ou menos como no bacará, sem "pedida". Dois ou
três crupiês com suas pás, conforme o tamanho da mesa. E a turma faz escrita. O
banqueiro só "puxa" quando dá o encarte. Quem jogar aquilo uns três "baralhos"
fica
duro na certa. Mas enche de gente apostando, e o banqueiro só com aquela
conversa:
"Façam jogo,

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minha gente... o banqueiro paga e recebe com um sorriso nos lábios."


Às quatro horas, o páreo grande. A largada era no "grito", e os dois cavalos
bem mansos. No uruguaio, um jóquei de Maronas. Muito bom largador e que se cha-
mava Marcelino Coll. Dizem que era um tremendo ladrão. Morreu pobre, mas foi o
melhor e mais rápido largador de Maronas. Antes do starting-gate aparecer,
Marcelino largava por baixo da fita. O cavalo Clarim, o baio de Bagé, tinha como
jóquei o "negro" Conceição, parece que lá dos lados de Piratini, perto de
Pelotas.
Também era famoso largador nos Moinhos de Vento.
Mas o páreo tinha seu trato especial. Só seria declarado vencedor o cavalo que
livrasse luz no "vencedor". Explico, "luz" quer dizer que é necessário mais de
um
corpo. Tem de haver "luz" entre um e outro. Nas apostas tinha de tudo. Mas a
aposta
grande era de cinqüenta contos; e para se ter uma idéia, o "Bento Gonçalves", o
maior prêmio do Rio Grande, era de vinte. O próprio Grande Prêmio Jóquei Clube
do Rio de Janeiro era de cinqüenta contos. E lá na fronteira dois fazendeiros
cria-
dores de gado estavam apostando, só eles, cinqüenta contos. Era a segunda
carreira
que disputávamos. A primeira, em Taquarembó, ganhou o cavalo uruguaio por meio
corpo. Não valeu, pois não livrou luz. E na corrida da fronteira, lá em
Livramento, o
cavalo Clarim, o baio de Bagé, chegou na frente. Palheta mais ou menos. Mas
também não livrou luz. As outras carreiras, atadas ali na hora, ainda foram até
escurecer. Mas a maioria do povão se mandava logo depois do Grande Páreo. E por
isto eu não fui ver a Copa do Mundo de 1930, ali pertinho. Se tivesse ido teria
assistido a todas e também seria um dos recordistas mundiais desta competição.

93
Então eu vim ao Brasil, desde a China, só para ver a Copa de 50. Aqui eu e
outros estávamos condenados a cinco ou seis anos. Foi por causa de um
"bochincho"
na UNE. O Dr. Mário Fabião disse: "Declaro aberto o 1º Congresso dos Partidários
da PAZ." E aí foi que começou um tremendo tiroteio com a polícia, em abril de
1949. Fui ferido, mas tive sorte. O cara deu um tiro à queima-roupa, nas costas.
A
bala calibre 32 bateu na ponta da costela do lado esquerdo. O cara tentou dar no
co-
ração, mas a bala resvalou no osso, atravessou a parte côncava da coluna fazendo
risco preto, e foi se alojar na pleura do pulmão direito. Não pude fugir na hora
e fui
parar no pronto-socorro. Estava cheio de gente. Fomos dezenove feridos. Entre
nós e
eles, dois mortos, um de cada lado. Mas no hospital, na hora de extrair a bala,
o
médico exigiu raios X. Era no andar de cima e fui num carrinho. A camisa estava
furada e ficou lá embaixo na Emergência, mas o paletó, com um baita furo nas
cos-
tas, foi pendurado na maca. Subi e fui para a sala de raios X." Apareceu um cara
e
disse que voltava. Na porta ficou um tira. Mas havia uma janela que ,dava para a
va-
randa do segundo andar. Ou era o terceiro. Senti o drama, pois já sabia do
resultado
do "entrevero". Pulei da maca e doeu um pouco as costas. Mas não era dor muito
forte. Eu estava meio escabreado, pois passei as mãos pelo ferimento e senti o
buraquinho. Como não tinha saída pelo lado da frente, percebi que a bala estava
pelas costas. Onde, eu não sabia. Mas sangrava um pouco. A dor era fraca e
resolvi
sair da maca e ver a tal janela. Abri devagar para não atrair o "sentinela" que
estava
do lado de fora no corredor da frente. A janela dava para a varanda que
circundava,
lá por cima, o pátio interno. Não vacilei e me mandei por ali, fazendo a

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volta na tal varanda. Fui até o outro lado. Havia uma escada de ferro, dessas em
caracol. FuÍ descendo até o térreo e tentei fugir pela saída das ambulâncias.
Mais lá
estava coalhado de soldados do exército e de tiras, comandados por um general,
Zenóbio da Costa, que gritava muito com o povo que estava na rua.
Dei para trás, e no pátio havia um muro não muito alto. Não tive dúvida: pulei o
tal muro e mais um outro que dava nos fundos de uma casa velha que era ao lado
do
Souza Aguiar, como se chama hoje o antigo prontosocorro.
Na tal casa havia uma porta que estava fechada. Tive a idéia e bati na porta
umas duas vezes e bem forte. Veio um homem, abriu e perguntou de onde eu saíra.
Olhei para dentro e vi que era uma casa funerária e que estava preparada para um
velório. Então eu disse: "Saí ali para mijar e fecharam a porta." O cara ainda
esbravejou: "A porta já estava fechada, onde é que..." Já nem escutei mais e fui
saindo fora. Passei pelo caixão prontinho e acho que ainda pensei: "Puxa, podia
ser
o meu." Mas fui me mandando e o cara atrás, fazendo "psiu, psiu, ei..." Ganhei a
rua
e corri na direção da Gomes Freire.
Eu estava com o paletó mas sem camisa, o que dava uma aparência estranha.
Mas que remédio? Era a roupa que eu tinha. A camisa um pouco ensangüentada
tinha sido garfada no hospital. Praxe da casa. Então fui na direção de um táxi.
O
chofer ainda olhou meio apalermado, mas dei a ordem firme: "Toca para o
Flamengo, rua Paissandu." Dei a ordem assim como marginal e acho que ele achou
melhor obedecer e tocou para o Flamengo. Meti a mão no bolso e achei uma nota de
vinte. O táxi foi doze e dei quinze para o chofer. Então fui à casa de um amigo
ali na
rua Barão do Flamengo, arrumei ou

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outra camisa e um médico que veio examinar o ferimento. Acho que era o Mílton
Lobato, mas não perguntei. Dali, claro que não fui para casa. Eles tinham me
tirado
os documentos dos bolsos e foram aonde eu morava. Reviraram tudo, quebraram
alguma coisa, levaram outras, e eu fui para a Europa. Em seguida para a China,
fazer
a cobertura jornalística do final da guerra. Mao Tsé-tung já havia tomado Chan-
chung e se dirigia para Tien-tsin, onde começa a Grande Muralha. Dali a Pequim
era
um pulo. Além do mais, as tropas de Chiang Kai-chek estavam se "retirando
velozmente. Se eu quisesse acompanhar Mao antes de chegar a Pequim teria de ir
muito depressa.

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//Mr. Goncalves

Eu e o Cúri fomos de automóvel para Liverpool. Ou melhor,


tentamos. O Cúri disse: "Ora, dirigir na Inglaterra é mole. É só colar um papel
vermelho do lado 'podre' e vamos em frente."
A discussão começou por causa da idéia de alugarmos um carro. O carro não
era difícil. O caso era a "mão inglesa". Lá é ao contrário e eles estão firmes
na
parada até hoje. Acham que todo o resto do mundo está errado e eles estão
certos.
Então, paciência. Inglês é o maior cabeça-dura do mundo.
Na cidade ainda foi fácil. Saímos pelas avenidas de mão única e não tinha erro.
Tomamos por Euston e depois havia um grande túnel. Nós temos mania de dizer que
o Rebouças é o maior do mundo. Mas com aquele o Rebouças não pega nem juvenil.
Deve ter uns quatro quilômetros.
A coisa ia bem. Cúri sempre atento no papel vermelho pregado no pára-brisa e
que significava "Muita atenção". A toda hora o turco dizia: "Mole, mole... deixa
comigo que o papai é internacional..."
E tudo ia bem. Pegamos a estrada e fomos em fren

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te. Sempre pela esquerda. Os caras que queriam mais velocidade obviamente
ultrapassavam pela direita. Confesso meu desconforto, e cada vez que passava
gente
a mais de cem por hora eu me encolhia.
De repente, pintou um baita viaduto. É fogo este negócio de "mão inglesa". Até
para pedestres. Nas calçadas cheias de Londres, eles, disciplinadamente, vão
pela
esquerda da gente. Aqui não há mais disciplina. Mas em São Paulo, naquelas ruas
mais congestionadas podem reparar que o povão vai "pela mão direita". Lá eles
fa-
zem a mesma coisa.
Mas é fogo se atravessar uma rua. A gente está acostumado a virar a cabeça
primeiro para a nossa esquerda e depois para a direita. Pombas, lá é ao
contrário, e
se alguém bobeia pode até morrer atropelado. E isto já aconteceu. Eu estava
muito
"cabreiro" , e o Austin dirigido pelo Cúri mandando brasa. Éramos quatro e
quando
o turco passava de cinqüenta lá vinha o coro: "Aqui o velocímetro é em milhas.

estamos a mais de oitenta."
E veio o tal viaduto. Bem no meio do bicho, que fazia um "oito", um conserto
na estrada. Os guardas desviaram a gente e o Cúri mandou brasa. Quando fomos
fazer a primeira curva lá vinham "eles" em nossa direção. Foi aquela gritaria:
"Lá
vêm eles contramão."
Um guarda chegou apitando feroz e foi logo pedindo documentos. Tentamos
explicar com aquele papo de Copa do Mundo, jornalistas brasileiros e não sei o
quê.
O guarda, com um gesto enérgico, fez o Cúri sair do lugar. Pegou o volante e
fez a volta completa. Um outro guarda paralisou o trânsito enquanto ele nos
tirava
da sinuca. Encostou o carro fora da estrada e perguntou para onde Íamos.
Dissemos:
"Liverpool... Copa do Mundo." Ele mandou a gente calar a boca e disse: "Não

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posso ir até lá. Nem os senhores. Se querem um chofer, podemos pedir pelo rádio.
Ou então deixem o carro aqui e tomem um ônibus ou táxi." E fim de papo. Cúri
achou que deveríamos ir de ônibus, mas colocamos em votação e achamos que
melhor seria contratar um chofer. Chegamos em Liverpool, entregamos o carro com
o papel vermelho colado e pronto.
Fomos dormir. Pensei: "O resto da viagem se faz calmamente por outros meios.
A mão inglesa é só para inglês. Está tudo resolvido."
Mas não estava tudo resolvido. O Mário Vianna havia preferido economizar
mais. Contratou uma companhia de turismo, que aliás fez tudo certinho, e ele foi
parar em Liverpool. Estávamos num hotel muito grande e bo
nito, que tinha o nome de AIkron. E com este negócio de "pacote" de turismo
era mais ou menos o que o Mário ViaNNa, com dois enes, estava pagando. Mas
onde estava o Mário que não aparecia? De repente entram no hotel dois gaúchos,
contando que acharam Mário dormindo de madrugada debaixo de uma marquise de
uma loja. Chamaram o Mário e ele explicou: chegando ao hotel, se registrou e
sentiu
fome. Nada para comer e ele saiu à procura de um sanduíche. Liverpool é uma
cidade cheia de "voltinhas" e ruas estreitas e apertadas, em contraste com
avenidas
iluminadas e largas. Mário achou o sanduíche. Escolheu na base do "dedão".
Depois
quis voltar para seu hotel. Onde era? Tentou perguntar a um guarda mas não saía
nada. Além do mais, deixara tudo no hotel. Passagens, estadia paga, passaporte,
tudo. Como dizer ao guarda onde estava hospedado se nem sabia o nome do hotel?
Mário só sabia que era: "Chuvusti... qualquer coisa."
O guarda se chateou e deixou o Mário, que andou

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quilômetros, segundo ele, e sempre atrás de um local mais iluminado. A rua de


seu hotel era bem iluminada. Anda pra lá, anda pra cá, e f01 parar na Zona. É,
Zona
mesmo. Lugar brabo, segundo nos disseram. Mas lá estavam os dois gaúchos.
Escutaram a história e o mandaram esperar. Mário sentou no meio-fio. Os gaúchos
trataram qualquer coisa com duas mulheres, entraram num hotelzinho rotativo,
demoraram uma hora e o Mário esperando, sentado no meio-fio. Já estava
amanhecendo quando trouxeram o Mário até nosso hotel, o Alkron, que hospedava
dezenas de jornalistas. Neste mesmo hotel, por dois ou três dias hospedou-se o
primeiro-ministro inglês na época, Harold Wilson. Gozado que fazia refeições no
hotel apenas acompanhado por sua senhora e um homem de terno escuro que dava a
pinta de ser um secretário. Wilson sempre vestia um terno cinza, camisa azul-
clara e
gravata grená. Sua senhora aparecia sempre com um tailleur meio bege e muito
simples. O ajud.ante sempre naquele terno azul-marinho, camisa branca e gravata
escura. Acho que os três em três dias não gastaram mais do que um turista comum.
Ainda por cima ocupavam aposentos standard. Pensei no Brasil, quando o pre-
sidente da República sai de Brasília para visitar uma capital estadual. Esqueci
de
dizer que Harold Wilson, o primeiro-ministro inglês, foi de Londres a Liverpool
no
trem da carreira e almoçou no vagão-restaurante muito simplesmente, como um
qualquer. Bem, mas a Inglaterra deve ser um país pobre.
Mas onde estava hospedado Mário Gonçalves Vianna com dois enes? Eis a
questão. Discutimos aprofundadamente o caso e resolvemos ir ao Press Center. Lá
pensávamos que seria mais fácil. Se falhasse, o jeito era ir à polícia.

100

Saímos do Alkron em três táxis, pois nesta altura éramos uns dez. A caravana
chegou ao Centro de Imensa. Pusemos uma senhora que era chefe do setor de
Djamentos a par da questão. Não foi fácil fazê-la entender. Só dizia
delicadamente:
"No... no... impossible." E dali, com ela à frente, fomos ao setor de
comunicações,
onde trabalhava muita gente. Contamos de novo a história e eles riam de
mansinho.
Mário Vianna, todo barbado e com a camisa suja com que tinha vindo do tio de
Janeiro, já estava se invocando: "Eu amasso um nglês desses..." Acalmamos o
Mário, e a chefe sugeriu :telefonar para os hotéis. Era uns cinqüenta na lista e
as
mocinhas da comunicação ajudaram. A pergunta era uma só: "Está hospedado aí
Mister Vianna?" E a resposta também era uma só: não. A lista inteira foi
percorrida
e nada feito: Mister Vianna não estava registrado em nenhum hotel. Mário se
enfurecia cada vez mais. Xingava desde a rainha Elizabeth até o ponta-esquerda.
Nisto, Mário deu um salto e seus olhos brilhavam... "Aquele cara... cara... ele.
está
no meu hotel. " E já em cima do cara, mas nós seguramos. Fui indicado para
perguntar onde ele estava hospedado. E isto não é fácil. Creiam. Imagine alguém
chegar para o senhor, num país estrangeiro, e perguntar onde está hospedado?
Pode
parecer à primeira vista que não tem importância. Mas a pergunta éde invocar.
Então, eu, muito metido a lorde, cheguei perto do cidadão e fui falando em meu
inglês que positivamente é mais da "Mauá Square" do que de Oxford ou Cambridge.
Mas cheguei perto do cara, mostrei minha credencial da Copa e disse o mais
docilmente possível o que se passava. Que nosso companheiro, o ex-árbitro inter-
nacional Mário Vianna, não sabia onde estava hospeda

101

do. O cara, grosso como um estivador, grunhiu: "E que tenho eu com isso?" Então,
timidamente, eu disse: "É que ele está hospedado no seu hotel. Ele viu o senhor

ontem quando chegou." O cara era realmente inconfundível. Cara grande, fortão,
barba ruiva e torta para uril lado. Usava um paletó horroroso, xadrez meio sobre
o
amarelo, vermelho e preto. Sapatos"enormes de sola grossa. Quem visse aquela
fera
uma vez jamais o esqueceria. E perguntei onde ele estava hospédado. Virou bicho
e
respondeu, com seu grunhido quase ininteligível: "No... No." E foi embora
dizendo:
"Let me alone." Mário já queria briga. Seguramos o Mário e ainda bem que éramos
uns nove ou dez. O "Leão" nos arrastou alguns metros e berrava: "Eu mato este
cara... eu mato este cara... "
E o Centro de Imprensa inteiro veio ali. Perguntavam o que era. Tentei explicar,
mas
não consegui. Ninguém entendia como um jornalista não sabia onde estava hos-
pedado e nem o nome do hotel. Nisso, apareceu o Peter Lorenzo, nosso velho
conhecido de outras Copas. Peter é um gentleman e resolvi pedir-lhe socorro. Ele
nos saudou carinhosamente e comecei a contar a história, a "Odisséia Mário
Vianna". Peter gentilmente prestou atenção, mas no fim também disse, incrédulo:
"No... no... it's impossible!" Aí apareceu lá na porta o tal cara do paletó
horrível. O
barba-ruiva. E eu disse: "Olha, Peter, aquele cara, aquele ruivo está no hotel
do
Mário. Se ele disser onde é, a pátria está salva." Peter olhou, olhou outra vez,
e nos
disse: "Aquele é o jornalista mais grosso do Império Britânico. É um galês... um
animal... eu nem sei como insistir em perguntar."
Dissemos que dávamos cobertura e fomos em direção ao cara. Quando ele viu o
grupo chegando, já começou a grunhir. Peter, então, seu velho conhecido, foi

102

perguntando onde ele estava hospedado, A resposta veio mais alta e mais
agressiva
que da primeira vez, e acho que o "No" foi ouvido na França. E saiu porta afora.
Mário ainda tentou pegá-lo, mas pulamos em cima.
Nesta altura, o Centro de Imprensa estava em polvorosa. Então, veio uma
mocinha e disse: "Isto é irregular, mas acho que posso ver onde aquele galês
mal-
educado está hospedado, já que não encontramos o registro de Mister Vianna.
Nesta
altura, Mário já estava mais conhecido em Liverpool do que Harold Wilson. A moça
foi aos registros, a chefe fez que não sabia de nada, fechou os olhos. A garota
voltou
triunfante: "Aquele animal está hospedado no Shaftsbury Hotel. Ele deveria estar
é
no Jardim Zoológico."
Mário disse, triunfante: '.'É este hotel mesmo. Eu sabia que era um nome
assim... como é mesmo? Chivistibur... " Não aceitamos a pronúncia e fizemos
vários
papeizinhos com o nome do hotel. Demos um "hurra" para a moça e fomos em
frente. Ainda olhei a Lista Telefônica. O Shaftsbury era logo um dos mais
cotados.
Estava em negrito. Como é que não achamos o registro?
Chegando lá, o homem da portaria estava intrigado. Mário chegara, assinara o
registro, nem subiu ao quarto e desapareceu. Mas o registro ficou esclarecido.
Completamente esclarecido. O sobrenome saliente não era Vianna. Era Goncalves.
Sim, Goncalves com C e não com C-cedilha. Então era Mister Goncalves e não Mis-
ter Vianna. O nome de Mister Goncalves valeu até o fim da Copa de 1966. "O
senhor vai bem, Mister Goncalves?" "Agora vai falar Mário Goncalves ViaNNa com
Dois enes e com C sem cedilha!" ... E nós quase rompemos relações com o Reino
Unido da Grã-Bretanha por causa destá cedilha.

103

//o Intérprete

o futebol brasileiro faz muitas excursões ao exterior,


principalmente à Europa. Em algumas, com notáveis exibições, deixou saudades.
Em outras, não fez notáveis exibições e não deixou saudades.
Europa desta vez. Fui para rádio e jornal e um ou outro VT de televisão, pois
não havia transmissão direta. Ainda não tinham bolado os satélites de
comunicação
e não dava para transmitir jogos diretamente. A primeira transmissão de Copa foi
a
de 1970. Antes, só videoteipe.
Então, a saída da seleção parecia mais a saída de um corpo expedicionário para
a Segunda Frente. Não, Segunda Frente já tinha sido aberta na Segunda Guerra
Mundial. Então poderia ser a Terceira.
O aeroporto do Galeão estava em polvorosa. Todas as organizações de rádio
que iam viajar estavam lá com seus fios e microfones. E não eram somente as do
Rio de Janeiro. As outras, as dos diferentes estados, não iriam deixar de cobrir
a
saída de uma seleção. Ainda mais que desta vez a viagem era das grandes.
Não sei se consigo contar a história daquela saída.

105

Os fios de microfone pareciam uma imensa macarronada. "Cuidado com meu fio!",
berrava um. O outro remendava: "Este fio é meu, vai te criar e não enche." No
meio
disso o Caçapa, eficiente operador da Rádio Mundial, gritou: "Estou preso... me
tirem daqui... posso morrer... aqui também tem fio de força da Light." (A Light

tinha saído do Brasil na década de 40, mas Caçapa queria era socorro urgente.)
O homem do Galeão, que já tinha pedido socorro à PM, não conversou. Foi ao
comutadore desligou a luz geral. Pra quê... A berraçada aumentou. Alguns na
certa
pensavam que poderiam chegar aos ouvintes diretamente, no .grito.
Chegou alguém com uma lanterna e um alicate. Cortou os fios e livrou Caçapa.
Ligaram a luz e começaram as duas berraçadas. A da turma que estava transmitindo
e a outra, a que não estava mais, porque seus fios tinham sido cortados.
Conserta
daqui e dali, e recomeçou a balbúrdia. O alto-falante tentava gritar mais alto
ainda
sua mensagem: "Senhores... senhores! Tenham paciência... nosso vôo nº 700 para
Lisboa já está chamando há meia hora. Senhores passageiros, dirijam-se urgente
para o embarque no portão 7... por favor... Senhores membros da delegação de
futebol... nosso avião..."
Mas não adiantou. muito. Não valeu muito o "último aviso" . Ainda tiveram de
dar mais uns oito "último aviso". E quando um dos rapazes da Companhia Aérea
tentava tirar um dos jogadores do meio de um bolo de microfones um dos
repórteres
gritou: "Estão impedindo nossa missão de bem informar. Isto é uma censura...uma
ditadura... uma arbitrariedade. Estamos aqui há várias horas... nao pode... é...
Até que apareceu alguém da delegação e foi tirando

106

os jogadores das entrevistas. Mas veio a réplica: "Este cara não joga nada...
não
passa de um carona~.. e carona que recebe para viajar... este cara viaja à custa
do
contribuinte brasileiro!" Mas o cara era enérgico, o avião já estava atrasado
uma
hora, os outros passageiros reclamavam e uma mãe gritava quase em desespero:
"Isto é falta de respeito... aqui tem senhoras e crianças... aqui..." Não
adiantava.
Uma "rádio" entrara no avião e lá de dentro o repórter gritava: "A única
emissora
que entrou no avião da Seleção..." Um passageiro que já estava cheio de esperar
corrigiu: "Ué, e eu que pensava que este avião era da Varig..." O repórter ficou
fera
e disse, sem se lembrar que estava de microfone aberto: "Ora, não enche e vai
tomar
banho, seu engraçadinho! Vai ver a mamãe em Portugal?" No dia seguinte se soube
que vários ouvintes se julgaram ofendidos e reclamaram à emissora.
"Senhores passageiros, apertem os cintos e boa viagem", disse finalmente o
comissário e o avião se dirigiu para a pista. Eu sempre invoquei com este
negócio de
apertar cintos. E se a barriga doer? Não bastaria dizerem "coloquem os cintos de
segurança" ou algo assim? Já vi passageiros apertarem tanto que se sentiram mal.
Tem coisas que precisariam ser mais bem estudadas.
Por exemplo, quando a gente chega em São Paulo, no aeroporto de Congonhas,
e desce, bem em frente, em letras enormes e no topo do prédio mais alto está
escrito
"São Paulo". Pombas, se ali não. for São Paulo o aviador cometeu um terrível
engano, não é? Por que não botam "Aeroporto de Congonhas", ou "Afonso Pena"?
Ah, por falar neste, no Afonso Pena, que serve a Curitiba, é um aeroporto bem
grande, com uns doze mil metros quadrados. E nesta área toda, lá dentro, uma
salinha

107

de três metros por quatro, no máximo, onde escreveram em cima "Recinto reservado
aos não-fumantes". E ali apertadinhos, às vezes se empurrando e se acotovelando,
ficam encurraladas umas trinta ou quarenta pessoas. Mulheres, crianças de colo,
os
não-fumantes. Nos outros onze mil e tantos metros, os fumantes saboreiam
cigarros
e charutos à vontade. E muitas vezes, só de molecagem eu brinco com a mocinha
que marca lugar para a gente. Ela pergunta, delicada e solícita: "O senhor
passageiro
deseja assento de não-fumante ou de fumante?" Finjo inocência e respondo:
"Filha...
me dá um não-fumante, mas com a janela aberta... tá?" Ela responde:
"Engraçadinho..." E dá qualquer um.
São coisas da era moderna, da comunicação, e a gente vai aprendendo. Lá em
Lisboa, o aeroporto Portella de Sacavém fica bem ao lado do mar. Bonito lugar, e
os
portugueses são encantadores. Mas um deles, quando a pista acaba e onde tem um
murinho, escreveu "Fim da Pista". Bom, se o aviador não parar a aeronave, o
bicho
vai para dentro d'água. E se o aviador for inglês ou sueco? Como é que fica?
Todo
molhado?
Fizemos fotografar a inscrição e também uma plaquinha que existia na avenida
da Liberdade, bem perto do monumento ao marquês de Pombal. Lá estava, em letras
brancas sobre a plaquinha preta de uns vinte centímetros de altura sobre
cinqüenta
de largura: "É proibido pisar na grama. Quem não souber ler pergunte ao guarda."
E
agora? Mandei as fotos para o Samuel Wainer no Última Hora, que publicou.
Tiraram a placa imediatamente. Mas a inscrição do aeroporto ainda ficou.
Os portugueses sempre nos recebem com muito carinho, em todos os aspectos.
O primeiro jogo daquela seleção foi na cidade do Porto. Nosso time era bem fra

108

cote. Um a zero para eles e eu achei bom negócio. Os portugueses estavam no


campo com Eusébio, Coluna, Vicente, Costa Pereira, Germano, Simões, todos
afri.canos de Lourenço Marques e Angola. Um timaço que mais adiante foi terceiro
na Copa da Inglaterra. E se a Copa não fosse na Inglaterra duvido um pouco que
aquele time tivesse perdido para os ingleses na semifinal, apesar dos ingleses
terem
formado na época uma grande seleção.
Mas o caso é que enquanto nosso time era formado à base de muitos
preconceitos, o deles era apenas à base de grandes jogadores. Aquele time e o do
Benfica, que era sua quase totalidadô, foram das melhores coisas que o futebol

produziu.
Nós estávamos cheios de concepções incrivelmente falsas, mas que
prevaleceram por algum tempo. A do racismo foi muito séria, principalmente num
país como o nosso, onde negros e mestiços constituem maioria.
Pois há ou havia na CBD um relatório que teve origem numa excursão bem
ruinzinha da seleção brasileira à Europa em 1956. Lá estava bem escrito que "os
jogadores de raça negra perdem sua maior potência em competições mundiais
importantes" . E davam alguns "fatos" como a participação de Bigode, Juvenal e
Barbosa na-final de 1950. Na Copa de 54, todo ou quase todo o bestialógico de
João
Filho, que escreveu um livro protestando a nossa derrota ante a Hungria de
Puskas,
Kocsis, Grosics, Czibor, Hidegkuti, Bozick, Lanthos e vai por aí afora, um dos
maiores times da história do futebol. Pois a análise, entre outras coisas,
culpava a
mestiçagem de nossos jogadores. E depois, em 1958, quase se entorna o caldo com
tal concepção. Didi estava barrado. Havia um bom meio-campo: Dino e Zito. Mas,
alternadamente, sempre um dos dois estava contundido,

109

e teve de jogar Didi. E após o jogo cpm a União Soviética, o primeiro jogo fácil
e
que ganhamos por dois a zero, com fantástica exibição de Garrincha, o dirigente
máximo de nossa equipe afirmava em sua conferência de imprensa após o jogo: "E
ganhamos com quatro reservas... "
É sim, mas felizmente os "quatro reservas" não saíram mais do time até o final.
Eram simplesmente o mulato Garrincha, que estraçalhou, o negro Pelé, o crioulo
Didi, que foi cognominado pela imprensa internacional de "Mister Futebol" e o
mestiço Zito. A idéia inicial, que os fados impediram, era a de manter De Sordi,
o
pequenino lateral que felizmente a "onda" fez sair para a entrada do negro
Djalma
Santos. Os demais brancos; e creio que todos se lembram que o ataque iniçial da
seleção era Joel, Dida, Mazzola e Zagalo. Este ataque, depois do terceiro jogo,
ficou
constituído com a entrada dos "reservas" Garrincha, Vavá e Pelé...
Isto está até hoje gravado em várias transmissões e nos anais da Copa de 58. E
mesmo depois da vitória de 62, onde o mulato Garrincha foi o grahde herói, em
1966 e comigo, em janeiro de 69, foi apresentado o tal relatório, onde estava
escrito
que "os jogadores de raça negra...."time brasileiro de 1970 tínhamos os
seguintes ne-
gros, mulatos e mestiços: Carlos Alberto, Brito, Everaldo ou Marco Antônio,
Clodoaldo, Jair, Pelé, e mais Edu e Paulo César, que substituíam o efetivo
Rivelino.
Pois saibam que esta mentalidade ainda nos prejudica até hoje. Ésó perdermos um
jogo ou uma Copa que ressuscitam o relatório que está na CBF, subscrito e
assinado.
Nas competições olímpicas de atletismo temos dois vencedores unicamente: Ademar
e Joaquim Cruz. Um negro e um mestiço.

110

Mas o time da seleção portuguesa não tinha nada com isso e lá não havia
preconceito na formação da seleção. O mulato Oto Glória foi durante anos o
laureado treinador.
Então eles nos meteram um a zero no estádio das Antas, no Porto. O jogo foi
"abafado ao alho", realizado durante os festejos de São João. E os portugueses
fazem a festa dando porradas na cabeça de quem estiver sem chapéu com um bom
dente de alho-poró. Levei duas ou três e voltei ao hotel para me cobrir. O Jorge
Cúri
rpe perguntou: "Ué, já estás de volta? É a festa de São João!?" Fiquei na moita
sobre
a "festa", mas disse: "Depois da esquina é que é o quente." Alguém que também
estava voltando, ao ver a careca do Cúri, uma bola de bilhar e bem limpinha,
reforçou: "É, é ali mesmo... ali que é o bom da festa."
Jorge chegou na esquina com aquela linda cabeça e os gajos caíram-lhe em
cima. Diziam, entusiasmados: "Ai, que rica carequinha..." E tome porrad~ com o
alho. O Cúri não esquentou, voltou para o hotel, botou um gorro de lã e entrou
na
festa. No dia seguinte, aquela rua e as vizinhas estavam cobertas de alho. Ali
pelo
meiodia estavam limpas. Mas o cheiro ficou.
Íamos saindo do estádio, com o um a zero no "coco" , quando chegaram dois
brasileiros em um carro que vinha veloz. Frearam de repente e dele saltaram os
dois
passageiros, perguntando ansiosos pelo resultado. Respondemos: um a zero para
eles! Os dois aumentaram seu ar de desapontamento e confessaram: "Olha, saímos
do Brasil ontem à noite. Atrasou tudo e chegamos em Lisboa um pouco tarde.
Fretamos um avião, alugamos um carro e mandamos brasa... mas não deu tempo esó
agora..." Pombas, gastar uma nota daquelas de avião, fre

111

tar outro avião; alugar um carro no aeroporto e chegar depois do jogo!? Era
dose.
Mas o Antônio Carlos de AImeida Braga, que era um deles, pediu encarecidamente:
"Não digam nada... não digam que chegamos atrasados... não espalhem... estávamos
batendo um papo ontem lá em casa, no Rio, quando resolvemos ver o jogo... puxa,
não deu jeito." O outro era o jornalista Armando Nogueira, que implorou: "Não
digam nada, se não vão nos gozar até o J uízo Final."
Todos prometeram não mandar nada a respeito. Mas com a derrota... e a falta
de notícias... acho que nem todos cumpriram o prometido.
Logo depois do jogo voltei para o hotel. Tive sorte e nem bem saía do estádio
das Antas apareceu o Pimenta num carro muito bonito e me deu carona. No caminho
ele disse: "Aluguei isto. Eú queria um Mercedes, mas eles não tinham."
E fomos flanando pelas ruas do Porto. Mal chegamos ao hotel, uma senhora
chegou-se e me reconheceu: "Conheço-o da televisão, quando lá estive no Rio de J
aneiro." E despencou uma saraivada de palavras e de críticas ao nosso time.
Achava
que fizemos. péssima partida. Eu tentei dizer-lhe que a seleção portuguesa era
muito
boa, mas não pude nem respirar. A dona falava como metralhadora e me abafou. E
ia dizendo: "O sr. Feola que me perdoe, deveria ter mandado marcar os dois prin-
cipais jogadores nossos, o Eusébio e o Coluna. Foi um erro... foi um erro." "Mas
minha senhora...", tentei argumentar. "Não, não e não, cavalheiro. Isto foi um
tre-
mendo erro tático..." Concordei e ia dizendo: "É isso, mas..." "Não, não é isto
coisa
alguma", dizia ela, entrando de sola. E desceu a ripa no nosso time, do goleiro
ao
ponta-esquerda.

112

Continuava falando sem parar quando chegou o resto da turma, em um ônibus


especial. Iam entrando no saguão e sentando nas confortáveis poltronas. Ninguém
conseguia dar um pio. A Dona Frances de Vasconcelos era só quem falava.
Então, um dos colegas da imprensa brasileira perguntou: "Mas quem é ela, que
entende tanto de futebol?" Aí respondi: "Meus amigos, apresento-Ihes a
Portuguesa
de Desportos..." Não sei se ela gostou muito. Afinal, sabia tudo de futeboL..
Uma viagem da seleção é uma viagem da seleção, e não é assim coisa comum.
A nossa delegação, ou melhor a delegação da CBD, tinha tudo. O chefe era o
Mendonça Falcão, deputado paulista e homem de experiência. Muito viajado
também, e não foi por sua causa que tivemos algumas derrotas meio contundentes.
Ele bem que avisou antes de irmos para a Bélgica: "Perdemos em Portugal e agora
teremos uma parada duríssima: os 'belgicanos' em casa jogam muito."
Mendonça tinha razão. Meteram cinco a um na gente, o que foi a maior
derrotada seleção brasileira na Europa em todos os tempos. Depois fomos à forra;
metemos cinco a zero neles no Maracanã.
Mas foi no jogo de Bruxelas que cometi uma mancada que saiu caro. Ora,
nosso time tinha saído do Brasil com grande alarde. Parecia a saída dos
Descobridores. Mas acho que ganhamos de qualquer manifestação da Torre de
Belém. Creio até que andávamos diferentes dos outros povos. Meio assim com
aquela banca de "mocinho" entrando no saloon. Mais até. O Liberato, que veio do
Maranhão, pisava mais forte do que um gigante. Aliás, era este seu apelido:
Gigante.
Exatamente porque não tem mais de um metro e meio, se tanto.

113

Pois o Giga entrou num restaurante, com aquele andar de machão. Sentou-se,
amarrou o enorme guardanapo em torno ao pescoço e fez o pedido em puro francês:
"Messiê, moi quer um bife e petit-pois." E olhou para nós com um ar de vitória.
O
garçom era francês mesmo, e entendeu ser chamado de "garçom" e também o pedido
do bife. Bife é internacional. Pode pedir assim até em Moscou. Mas o diabo foi o
petit-pois. Bom, o nome é francês, mas não há garçom francês no mundo que en-
tenda o que é petit-pois. Então ele fez um gesto de ignorância, abrindo os
braços
como quem pergunta o que é. Giga virou-se para nós e disse: "Eu acho que este
cara
não é francês. Deve ser um imigrante qualquer. Aqui tem de monte." E fez um
gesto,
ou gestinho, apertando o dedo polegar com o indicador. Assim em curva. O que ele
queria era mostrar uma pequena bolinha, uma espécie de rodinha, sei lá. Ele
tentava
mostrar ao homem o petitpois. Um colega ainda gozou e disse: "Olha, isso que
vocêestá pedindo eu também gosto... mas em restaurante não sei se tem."
O Gigante se enfureceu, xingou a.mãe de todos edisse peremptório ao garçom:
"Escuta, cara... moi champion du monde, tá bom? E eu quero bife competit-pois,

bom?" O garçom fazia um gesto de ignorância total e procurava saber: champion du
monde de quê? Como poderia saber que o Giga também se julgava campeão do
mundo em futebol?
Então eu saí de detrás do toco e ajudei: "Giga, pede arricot-vert. Quem sabe ele
traz o teupetit-pois?" Gigante ainda fez cara de brabo, eu pedi e o garçom deu a
maior gargalhada. Veio o prato escolhido e bateram palmas.
Mas isso foi na passagem por Paris, onde fomos dar

114

uma volta e espairecer os cinco a um. E lá, na hora do jogo, eles já estavam
ganhando de quatro a zero e o Darcy Reis, locutor da "Cadeia Verde-Amarela
Norte-Sul do Brasil", 42 estações sob o comando da Rádio Bandeirantes, ia
transmitindo. Para abrilhantar as apresentações da gloriosa seleção brasileira,
que
estava desbravando a Europa, seguiram duzentos e poucos jbrnalistas e uns
trezentos
radialistas. A Rádio de Ponta Grossa estava presente e também uma de Recife, que
dizia com aquela voz grave de locutor de rádio que se preza: "De Recife, para o
Brasil e para o muuuundo!" Eta, ferro! E o Darcy transmitindo.
Na praça da Sé, em São Paulo, o Eli Coimbra acionava um enorme "campo de
futebol eletrônico" que acompanhava a transmissão. O time do Brasil em luz
amarela. O dos "belgicanos" em luz vermelha. A bola era uma luzinha móvel, que
andava para todos os lados, passando pelos "jogadores". De repente, a bolinha
que
era verde entrava num dos gols. O diabo é. que o Darcy ia transmitindo e um tal
de
Stockmon, atacante belga, dava cada porrada que a bolinha ia lá dentro. Com
tanta
força que a rede esticava e a bolinha voltava quase fora da área. Lá em
Bruxelas,
claro que não sabíamos dos detalhes. Mas o Eli entrou na linha de retorno e
disse,
choroso: "Pombas, vê se transmite um gol do Brasil, se não a massa aqui na praça
da
Sé vai me tascar."
Nesta altura, o Darcy, muito coloquialmente, me perguntou: "Saldanha, que tal
este jogo?" Eu nem percebi que estávamos no ar e respondi: "Nosso time está uma
bosta." O microfone quase caiu das mãos dele e então me toquei que estávamos no
ar. O Darcy tentou consertar e ainda emendou, para ajeitar o troço: "Quer dizer
que
você não gosta", e repetiu: "...não gosta?" Percebi

115

tudo, mas repeti: "Não adianta, velho, nosso time está uma bosta mesmo. " E dei
outra vez ênfase no BOSTA.
No dia seguinte, recebemos um telegrama de São Paulo, assim: "Darcy Reis
VG Bruxelas VG Bélgica PT Transmissão boa VG som local PT Avise Saldanha
contenção nos termos PT ConteI multou em 25 mil PT Entretanto praça da Sé
vibrou PT Murilo Leite PT Melhores dias virão PT"
Mas não vieram. Dali fomos para a Yolanda, como disse Mendonça Falcão,
conclamando o time para uma reação. Também não foi desta vez e nem na Itália,
onde perdemos feio por três a zero. Na Holanda, tínhamos perdido por um a zero
ou
dois a um. E apesar de tudo estar previsto na delegação. Menos o time. Foi um
dos
piores que já saiu do Brasil, com Pe~é e tudo. Mas a organização era perfeita.
Quem
quisesse saber o hotel da seleção, hora de chegada ou saída dos vôos,
temperatura
dos locais dos jogos, tudo enfim, era só perguntar que eles sabiam. Eles da
delegação, é claro.
Levaram uns dez ou onze "especialistas", inclusive um intérprete. Havelange
disse aqui no Brasil: "São vários países diferentes e necessitamos de gente que
saiba
esclarecer as coisas. Por isto a CBD leva um intérprete." É. Nosso primeiro jogo
foi
na cidade do Porto e o intérprete foi perfeito. Nota dez. Entendia tudo. Mas o
se-
gundo jogo foi na Bélgica e o intérprete ficou mudo. Depois Holanda e mais mudo
ainda. Daí Alemanha, Itália e Moscou. Lá sim é que era preciso um intérprete.
Mas
ele garantiu que "o idioma russo ele não dominava". Paciência, o jeito era
apelar
para a mímica ou para algum brasileiro do local. E como tem brasileiro por aí
afora.
Ainda não tinham espalhado o tal de "Ame-o ou deixe-o". Mas em Moscou o
intérprete se apavorou.

116

Contaram-lhe algumas histórias tenebrosas sobre os russos. Até antropofagia foi


aventada. E o intérprete resolveu precaver-se. Foi a um magazine ou supermercado
e
logo ali adiante do Hotel Nacional tem-um baita, o Gum, que se gaba de ter
intérpretes em todos os idiomas. Mole, mole. Entre intérpretes tudo é mais
fácil. E o
nosso comprou várias ferramentas e uns parafusos grandes. Na hora de dormir
aparafusou a porta, bem aparafusada, bem apertada com a grande chave de fenda.
O Hotel Nacional, bem no centro de Moscou e ao lado da embaixada
americana, é uma velha construção. Alguns quartos são exageradamente luxuosos.
Nem sei se ainda funciona como hotel. Há ou havia apartamentos com coisas
douradas. As torneiras das banheiras, de bronze. No alto da lareira um samovar.
Poltronas, uma imensa bergere com um estampado um tanto ou quanto forte para
meus olhos. Coisas de asiáticos, pensei. Luxo de mongóis. E vai por aí, notando-
se
que o chão é de pinho-de-riga. Aliás, os pisos dos hotéis antigos da Europa e
daqui
do sul da América do Sul também são de pinho-de-riga. De Porto Alegre pra baixo
é
só o que se encontra. Portas e janelas, enormes e com ferragens muito
sofisticadas,
eram de madeira de lei., Não sei do quê. Mas no mínimo de carvalho. O hotel era
o
mais luxuoso de Moscou na época dos Romanos. E o intérprete aparafusou a porta.
Os russos poderiam atacar durante a noite. Ele tomara muito pivo e vodca. Era
bom
não arriscar e tacou ferro.
De manhã, quem disse que ele abria? Tentou o telefone, mas que desgraça!
Quem atendeu só falava outras línguas. Várias, menos português. O pobre homem
desesperou. E estávamos da rua ali em frente, fazendo hora na calçada e vendo a
banda passar, quando escutamos

117

uns gritos surdos e um pouco longínquos. Olhamos para cima e o intérprete estava
lá, sem camisa e fazendo sinais. Custou um pouco, mas deu para perceber que algo
estava se passando. E ele chamando.
Subimos a seu quarto, mas quase não se ouvia nada. O quarto era assim
mesmo: para ninguém ouvir nada. Mas, encostando o ouvido, sentimos que ele
estava preso. Chamamos a gerência e veio a gerente. Uma mulher que só falava
russo. Ela chamou um cara e explicamos a ele que havia um nosso companheiro
detido ládentro. Então chamaram um chaveiro. O cara mexeu, mexeu e nada. A
porta não abria. Veio um carpinteiro que, sob protestos da gerente, fez um
buraquinho com uma enorme verruma. Aquilo já era uma pua. Pelo buraquinho foi
mais fácil se saber das coisas. Mas havia uma visita ao Kremlim programada e
ninguém queria ficar ali. Explicamos ao carpinteiro o que se passava e caímos
fora.
Depois fomos almoçar em outro hotel e mais tarde voltamos. O intérprete estava
solto. Conseguiram tirá-lo. A madeira era muito dura e os parafusos não saíam.
Descobriram o troço todo, mas a gerente não deixou abrir um buraco maior na
porta
que talvez tivesse servido a Catarina a Grande.
Mas pela janela do outro apartamento ao lado, provavelmente o do czar
Nicolau, por ali entrou alguém e conseguiram salvar o homem. O melhor intérprete
de português que já saiu do Brasil.
Na saída de Moscou, Pimenta filosofava. Pimenta era um senhor muito bem
educado. Educadíssimo, aliás. Amigo do pessoal da CBD e muito rico. Sempre que
saía a seleção, lá ia o bom Pimenta junto. Sempre solitário e não chateava
ninguém.
Pimenta sabia sair de qualquer situação, homem viajado que era. Vestia-se
elegantemen
118

te. Comprava suas roupas em Lisboa, mas de uma alfaiataria que só o nome bastava
para sentir o peso da bola: The London Tailors. E mais embaixo de um leão
britânico estava escrito: "English Spoken." Mas ficava em Lisboa, e lá o Pimenta
anualmente renovava seu guarda-roupa. Saiu de Portugal ainda jovem. Vindo da
província, deu muito duro no Brasil. Ganhou dinheiro honradamente, e como era
celibatário gastara muito pouco para sua imensa fortuna. Pimenta era o tipo do
ho-
mem para uma delegação de futebol. Recebia uma taça com aquelas roupas inglesas
que fariam inveja ao príncipe de Gales. Apenas aquele gesto fidalgo de agradeci-
mento e ali ficava, firme e durinho, até que executassem os hinos ou qualquer
coisa
que indicasse o fim da cerimônia. Pimenta era um craque em comemorações, bustos
inaugurados, enfim, falava sempre corretamente em português em qualquer país e
pronto. Ninguém melhor.
Mas a excursão estava terminando. Mais de dois terços das organizações de
rádio e jornal já tinham voltado às bases, chamados pelas editorias, que
cansaram de
convencer o "Homem" a manter um pessoal passeando pela Europa. Já não era mais
aquela pomposa delegação que saíra do Rio ao som das fanfarras. O jeito era
filo-
sofar e tentar aproveitar um ou dois dias de folga para sair à toa e voltar ao
Brasil.
Todos um tanto derrotados e humildes, menos o Pimenta, que estava lá, firme como
no dia da saída. Firme e impecável, desta vez no seu terno britânico azul-
marinho.
Discreto, mas uma tremenda pinta de lorde. E vem um e diz: "Vou sair pela
Itália. É
mais perto." Outro preferia voltar via Paris e assim ia a coisa. Alguém
perguntou: "E
você, Pimenta, o que vai fazer?" Pimenta fez aquele ar sério mas calmo e disse:
"Bem, daqui da Rússia vou dar uma volta pelos paí

119

ses israelitas. Primeiro vou ao Líbano em Beirute, depois a Damasco, depois


Istambul e ainda vou passar por Antenas.
Enquanto Pimenta estava pelos "países israelitas", tudo bem. Mas Antenas era
um pouco forte. Alguém então perguntou, admirado: "Antenas?.. Antenas? ... Onde
é que fica isso?" Pimenta, com um ar de superioridade, respondeu: "Pombas, então
não sabes? É lá onde existiram todos os grandes filósofos, os das fábulas...
Júlio
César, Napoleão e outros." Alguém quis sacanear e emendou: "Giuseppe-
Garibaldi..." Pimenta apenas respondeu: "Este não conheço." E, com aquela
fleugma, deu os bons-dias e sumiu no horizonte.

120

//Maragatos e Chimangos

A Camuja entrou aos berros dentro de casa: "Dona Jenny...


Dona Jenny... Dona Jennyêê!" "O que é, diabo? Não precisa gritar desse jeito..."
A Camuja era uma mulata grande que tinha vindo lá do Ibirocaí para o
Alegrete. Filha do Três, o ladrão mais "honrado" daregião. Quando desaparecia
uma
galinha gorda ou alguma roupa do varal, era só dar queixa ao delegado. que ele
mandava prender o Três. E se ele dissesse que não tinha sido ele, podiam
acreditar
que não tinha sido mesmo.
O Três levou a Camuja lá pra nossa casa e pediu à mamãe que tomasse conta.
Não sei que ídade tinha, mas deveria andar ali pelos quinze. Muito esperta,
sabia de
tudo. Desde tirar leite de uma vaca braba em campo aberto ou cuidar das coisas
de
uma casa. Para nós cinco, era uma espécie de babá. Muito passeadeira, gostava de
sair com a gente só para sair. Mas nos tempos da revolução, meu pai sendo chefe
político e de tropa, a mãe não deixava a gente sair assim. Mas a Camuja se
virava e
vira e mexe estava na rua. Era só saber que precisavam de alguma coisa e a
negrinha
se apresentava. A Chata, uma

121

índia charrua meio velha, sempre reclamava, resmungando: "Eta, cafuza enxerida,
qualquer coisa ela se mete!" E se metia mesmo.
Numa noite saiu um tremendo entrevero na Prefeitura. Era dia de eleição. Se
arrastou noite adentro. Lá pelas tantas, contestaram os votos e começou o
tiroteio.
Os dois grupos queriam a posse da Prefeitura, cor-derosa, bem na esquina da
praça.
Para quê não sei. Mas sei que queriam. A noite inteira se escutava o barulho dos
tiros. E vira e mexe a Camuja ia até a esquina e levava umas coisas para encher
uma
cestinha de mantimentos. E a cestinha ia e voltava a noite toda, quando, já de
madrugada, a negrinha disse: "Esperei na esquina, mas ninguém trouxe a cesta."
As balas tinham parado de pipocar e um silêncio invadiu a madrugada do
Alegrete por mais de meia hora. Daqui a pouco espocaram os gritos de "Viva o
Assis". Era o Assis Brasil, líder dos maragatos. Perderam a eleição, mas tomaram
a
Prefeitura. Só saíram quando o prefeito e uns "brigada provisório", exército de
farda
azul, do Borges de Medeiros, abandonaram o prédio e fugiram. Aí terminou a
briga.
Brigar mais para quê, se ninguém estava lá dentro? Positivamente não foi vitória
eleitoral. Mas era uma vitória dos maragatos. E meu pai dizia: "Uma vergonha!
Nos
roubaram de novo. Eles têm o dinheiro fácil e compram os votos e fazem as melan-
cias com proteção do juiz eleitoral." As melancias eram as cédulas envelopadas
obrigatoriamente pela Lei Eleitoral. E os cabos eleitorais do Borges usavam
envelopes iguais aos do Assis. Por dentro estavam as cédulas do candidato dos
chimangos. Como a melancia. Uma cor por fora e outra por dentro. Descobriram o
negócio, protestaram e tome bala. E a vitória ficou sendo a da expul

122

são dos "provisório" da sede da Prefeitura. Por isto eles voltaram dando hurras
a
todo mundo. Foi apenas razoável a "vitória". Um morto e poucos feridos. E a
Camu-
ja com os olhos acesos anunciou a volta dos revolucionários para casa.
E a polícia? Ora, a polícia não era besta de se meter nas lutas políticas. O
último delegado a tentar fazer isto... bem, virou nome de rua e sua viúva vivia
pedindo pensão. O que naquela época não era muito comum. Só aos veteranos da
Guerra do Paraguai.
Mas desta vez foi diferente e a negrinha vinha esbaforida e foi dizendo:
"Balearam o dr. Olavo... balearam o dr. Olavo." Mamãe perguntou: "Mas onde foi
isto, sua escandalosa? Precisa berrar tanto?" A Camuja respondeu: "Foi lá no
Quaraí, perto da Assunção. Ele vinha voltando a cavalo e pegaram ele." A velha
não
se abalou e disse: "Foram os Chamorro, aqueles índios safados." E foi logo dando
ordens: "João, vai ali na farmácia do seu Quintana* e traz uns quatro rolos de
atadura, um vidro grande de iodo, uns três rolos de algodão e linha de sutura.
Agulha
eu tenho." Eu ia começar a correr para cumprir a ordem, mas a Camuja exclamou:
"Mas Dona Jenny, foi lá no Quaraí que aconteceu! Daqui lá tem mais de duzentos
quilômetros e..." Nem terminou e a velha foi logo dizendo: "Pára de ser
bobagenta,
sua metida... a briga foi com os Chamorro outra vez e tem dois deles que andam
aqui pelo Alegrete. Nós somos capazes de precisar de material." E berrou de
novo,
mas desta vez foi comigo: "João, vai lá e diz para seu Quintana que depois eu
pago.
Manda botar no caderno."

*Farmacêutico mais antigo do Alegrete e pai do grande poeta gaúcho.

123

E a mamãe, com sua experiência, não estava longe da verdade. O Alegrete fica
longe do Quaraí. Mas no dia seguinte um outro tio, o Alípio, encontrou um
Chamor-
ro na praça e se pegaram a bala. O índio foi ferido e a velha mandou umas
ataduras,
dizendo: "Eu preferia ter mandado uma coroa." Isto ficou famoso no Alegrete. Mas
o negócio da briga com os índios Chamorro rendeu mais.
A briga com os Chamorro era mais antiga. Já vinha de algum tempo atrás. Seu
Olavo não perdoava uma coisa: "Uma vez estes índios sem-vergonha pegaram o Seu
Francelino, um velho amigo da gente, e esfaquearam ele até a morte. Seu filho, o
Coralino, foi em socorro. Matou um, mas também foi morto a facadas. Pelearam
muito, mas eram quatro contra dois. E o pai e o filho foram desde o bolicho até
os
cavalos lá fora para pegar as armas. Pois desde aí foram levando facadas."
Seu .Francelino uma vez foi a Porto Alegre para conhecer a capital. Pegou um
bonde aberto para dar umas voltas. De repente, deu falta do seu relógio. Não
duvi-
dou. Segurou o cobrador pelo cangote. O pobre do homem deixou espalhar níqueis
dos bolsos por todos os lados. O bonde parou e seu Francelino dizia: "Na certa
foi
este sujeitinho. Ele é que está andando pra lá e pra cá." Foi um buraco tirar o
cobrador do bonde das mãos do Francelino. Mas ele também tinha rixa com os
índios e desta vez pegaram ele e o filho. Depois, gente do Francelino pegou um
deles. Tio Olavo tinha uma tremenda raiva deles. Era só se encontrar. Os índios
eram atrevidos e também brigavam. Desta vez que a notícia chegou lá no Alegrete,
tio Olavo tinha levado um balaço bem ruim. Pegou na virilha. Era um tiro
perigoso.
O lugar era capaz de se arruinar. Uma vez extraída a bala, o jei

124

to era meter iodo, e também usavam malvona. Foi bem antes dos antibióticos.
Uns tempos depois, meteram bala nos Chamorro de novo e eles desapareceram
da fronteira.
Muito especial aquela briga. Havia certas coisas de espírito altaneiro. A tomada
do Alegrete pelos maragatos foi assim. Até que podiam tomar lá de dentro. Mas
não
ficava bem. Era assim como dar um tiro pelas costas. Então os revolucionários
saíram da cidade e depois voltaram e entraram vitoriosos, pela rua Ipiranga.
Naquela revolução houve combates muito sérios. Cruéis até. Como se sabe,
como uma bala custasse quase um mil-réis, eles não prendiam ninguém e nem
fuzilavam os presos mais importantes. Foi a terrível época da degola. Um golpe
de
facão bem afiado e pronto. Muitos pensam que as cabeças rolavam. Nada disso. Era
apenas uma secção da carótida. E isso não começou entre os maragatos e
chimangos, brasileiros. O Borges, tendo dificuldade de combater os maragatos
somente com suas forças dos brigadianos, contratou os serviços profissionais de
dois
caudilhos castelhanos. Uns diziam que os castelhanos Gumercindo e Nepomuceno
Saraiva eram dali de perto, do norte do Üruguai. Outros afirmavam que eram
correntinos, lá da província de Corrientes, na Argentina. Tanto faz. Eram
bandidos e
o fato é que eles iniciaram a degola. Claro que levaram a volta. Entre os
brasileiros
havia uma certa fidalguia no trato com os presos. Mas quando pra um castelhano,
não tinha perdão. A questão era fazer o reconhecimento. Duas práticas foram
adotadas. Uma era a de obrigá-Ios a dizer "queroquero". O quero-quero é um
pequeno gavião que anda sempre em dupla com a companheira. Às vezes anda em
bandos pequenos. Se acomoda fácil e até toma conta das

125

estâncias. Bastava chegar alguma pessoa nas porteiras e eles começavam a gritar.
"Davam o aviso" como se dizia por lá. Mas os castelhanos não conseguiam dizer
"quero-quero" com o E bem aberto, como nós dizemos. Eles diziam ou "quiêro-
quiêro'.' ou no máximo saía um "quêro-quêro". Pronto, era um deles. Outros
preferiam fazer os presos dizerem "dezessete". Não há castelhano que consiga.
Nem
aqueles que moram no Brasil há muitos anos. Eles dizem sempre "dezessiête" ou
"dezassiête" ou o que seja. Mas dezessete, não. De jeito algum. Então, pronto. A
degola vinha certa porque ninguém tinha pena dos mercenários bandidos do
Gumercindo e do Nepomuceno Saraiva. Correu muito sangue. Não havia perdão.
Uma vez, três irmãos ali do Alegrete foram degolados por eles. Os trouxeram em
"cama-de-vento" para lá. Tia Odith pegou a gente e mais uns dois guris da
redondeza e nos levou para ver os corpos. Lá estavam os três irmãos,
estrebuchados
e com o pescoço quase decepado. Dizia ela que era só para a gente ficar com mais
raiva daquela gente carnicera.
A revolução ia feia, mas os combates não eram dos mais ferozes. Muitos anos
de luta, que vinha desde o tempo dos republicanos contra federalistas. Mas o
curioso
é que havia maragatos federalistas e republicanos.. Entre os chimangos também.
Mas uma vez saiu um combate sério. Ficou célebre, pois foi muito feroz. Bem
pertinho passa o rio Ibirapuitã. Riozinho sem-vergonha. Às .vezes enche e invade
tudo, outras vezes parece mais um riachuelo. Aconteceu que por ali, quase no
meio
da ponte, duas forças antagônicas se encontraram: as do Borges, comandadas por
Flores da Cunha, e os maragatos do Honório Lemos, o "Leão do Caverá" (Meu pai
se queimou e chamou o Honório de "leão de tapete" .), e mais a tur

126

ma do Alegrete, onde estavam meu pai e outros parentes. Pois se encontraram, sem
patrulhas nem nada. Tiro e lança por todo o lado. Não dava para piscar ou se es-
conder. O rio, que estava baixo, ficou tinto de sangue. Foi um horror. Ninguém
ganhou, ninguém perdeu. A briga foi tão séria que, creio, apressou a Paz de
Pedras
Altas.
Em meio a isso tudo aconteciam fatos pitorescos, mas sem dúvida eram de
gente que tomava partido. Por exemplo: a linha do trem. Ali era federal e o
governo
federal não se metia na encrenca. Mas também não permitia que suas linhas de
trem
ou do telégrafo fossem atingidas. E bem no Cacequi, onde o trem bifurca de um
lado
para o Alegrete e Santana, na fronteira do Uruguai, do outro o trem toma a
direção
de Uruguaiana, na fronteira de Paso de los Libres, na Argentina. Nós estávamos
nele
e os chimangos souberam. Tentaram fazer o trem tomar um desvio que saía da zona
federal para nos pegar. Éramos cinco crianças e a mãe. Num instante o trem ficou
em pé de guerra. Os homens maragatos se entrincheiraram e ameaçaram os
chimangos: se desviassem o trem ia sair fogo.
O chefe do trem foi enérgico e parece que veio ordem superior e eles recuaram.
Não sei o que queriam. Talvez fazer chantagem com o velho Gaspar, meu pai,
fazendeiro rico, deputado, advogado e veterano de guerra. Tinha um grupo de
cerca
de trezentos homens bem armados, uma metralhadora Hotchiss, bastante munição
para ela, e trezentos fuzis tipo 1908 novos, além de farta munição para eles.
Acho
que ninguém sabia usar a metralhadora, que era refrigerada a água. Mas ela
estava
lá.
E estas armas tiveram uma história curiosa. O Mi
127

guel Costa, o próprio, era amigo de meu pai. Naquela época creio que era apenas
capitão. Mas era bem simpático aos maragatos. Ele dizia que os maragatos defen-
diam as liberdades e o borgismo era o despotismo. E numa conversa informal com
nossa gente ele se lamentava da falta de segurança com que as munições e armas
vinham para o exército. E disse: "Agora mesmo, um comboio de carros vem vindo
por Santa Catarina e vai entrar por Passo Fundo. O comboio vem bem protegido por
uma força bem armada. Mas acontece que um carro desgarrou e parece que ficou
sozinho. Ele vem por uma estradinha, lá por perto de Passo Fundo. Só tem dois
sol-
dados. Se cai nas mãos de alguém, vai ser um buraco para explicar ao estado-
maior."
O papo acabou na hora. O pessoal que estava escutando,.inclusive meu pai, se
man-
dou e sumiu na poeira. Talvez esta tenha sido a origem principal de tanta arma e
munição. Pois é, talvez mesmo um ano ou dois mais tarde, Miguel Costa mandou
um homem levar um bilhete lá em casa em Porto Alegre. Dizia mais ou menos o
seguinte: "Uma vez eu ajudei. Agora preciso daquelas armas, que podem ser
entregues em Santo Ângelo." Depois mandou dizer a quem. As armas foram atrás do
Miguel Costa, mas ele não veio. Serviram também para armar um grupo que foi
muito eficiente em 1930, já no Paraná. Até bem pouco tempo se encontravam
enterradas na antiga granja da Roseira, a dezoito quilômetros de Curitiba, no
município de São José dos Pinhais. Foram embrulhadas em capim, bastante palha,
óleo grosso de carroça, mais palha e capim. E por cima de tudo envoltas em lona
de
barraca. Não sei, mas se não encontraram até hoje estão lá, no mesmo lugar.
Em seguida, ali por fins de 1927, o Getúlio foi can

128

didato. Formou a Aliança Liberal. Perdeu a eleição para o Júlio Prestes,


paulista e
candidato do governo federal. Fomos miseravelmente roubados e não teve jeito.
Outra revolução. Minha mãe, sempre forte aliada, desta vez disse: "Olha, Gaspar,
esta é a última. Estou nisso desde 1912 e tu desde o 93. Desta vez chega. Ou
ensari-
lha ou volto para o Rio Grande com a criançada. Já estou ficando cansada."

129

//o Cristo

Passei pela Tchecoslováquia, onde aliás tive de passar várias


vezes. Umas com a seleção de futebol, por Praga e Bratislava, e outras de
passagem
para a China, via Brno e por ali.
É um país admirável. Os tchecos, antes da Segunda Guerra, perceberam com
facilidade que não poderiam competir com a Alemanha, França, Inglaterra e outros
países mais fortes industrialmente. Então se especializaram em indústria de
perfeição. Seus produtos são famosos. O aço e os cristais então, são da melhor
qualidade. E é um país lindo. Praga pode ser uma das mais belas cidades da
Europa.
Castelos medievais, logo ali por onde passaram muitas guerras e lutas. Tiveram
cidades inteiramente arrasadas. Lídice, por exemplo, pequenina, de pouco mais de
mil habitantes, foi completamente arrasada nesta última guerra. Fica logo ali de
quem sai do aeroporto internacional. Poucos quilômetros, dois ou três. E se pode
ver
apenas um monumento e uma placa com dizeres lacônicos explicando que ali existia
antes uma cidade chamada Lídice.
Como se sabe, a Tchecoslováquia foi invadida pela

131

Alemanha já em 1938, antes da guerra. Creio até que invasão é um pouco forte.
Diria melhor que foi ocupada pelas tropas nazistas de Hitler.
E deve ser dito que muita gente do povo tcheco saudou efusivamente a entrada
das tropas. Logo depois, quando Hitler andou por lá, foi saudado com o povo
aglomerado na praça Wiascheslavka e na Prikope, de braços erguidos, fazendo a
saudação nazifascista. Eu diria que foi uma invasão pacífica e bem tolerada,
menos
por uma parte, que lutou muito pela libertação do país, novo de formação mas uma
das mais antigas civilizações da Europa. Há castelos e torres em Praga que datam
de
mil anos e estão bem conservados. É uma cidade limpíssima e o povo muito
ordeiro.
Os tchecos têm coisas bem engraçadas, pelo menos para nós. Já nem falo do
idioma, que sofrendo a influência de tantas guerras e invasões que assolaram o
país,
ganhou uma acentuação tônica bem esquisita para nossos ouvidos. O idioma é
eslavo e se pareceria muito com o russo, não fosse o diabo da acentuação. As
palavras em tcheco são quase todas proparoxítonas. Se um russo diz "narôdni"
(nacional), o tcheco diz "národni" com a última sílaba aguda e "desaparecendo".
Mas a gente se vira.
Outra coisa peculiar é a comida. Parece que eles não gostam muito de açúcar.
Os doces, que são lindos na vitrine, não têm gosto de doce! Talvez isto fosse
porque
a guerra mal havia terminado e o açúcar estivesse racionado. Pode ser, mas então
por que fazer doce sem açúcar? Não dá, não é? Mas os doces não são tudo, a
comida
também é diferente. O prato nacional é o tal de Kendly, que consiste num pedaço
de
pão de fôrma, fatia grossa, com um molho de carne ensopada. Lenin, de passagem
por Praga, disse aos camaradas num restaurante após co

132

mer o "prato nacional": "Meus amigos, com esta comida vocês jamais farão uma
revolução socialista." Depois Lenin explicou que para se ter uma boa comida, uma
comida internacionalmente saboreada, era necessário se ter tido um grande
império.
Acho que tinha razão.
Mas Praga é linda e deve ser roteiro importante em qualquer visita à Europa. E
assim as demais cidades. Bratislava, às margens do Danúbio e na fronteira da
Áus-
tria, é outra cidade que vale a pena ver. Por sinal que acho que quem puder
fazer
uma viagem folgada e muito gostosa não deve perder o roteiro do Danúbio. O rio
não é mais azul, mas os naviozinhos que fazem a rota são bem gostosos. Podem
sair
de Viena, Bratislava, Belgrado, Budapeste e desembocar no mar Negro, em Cons-
tança. Eu garanto.
Mas Lídice é apenas uma placa rememorando uma das mais cruéis façanhas do
nazismo. Como se sabe, foi lá que os partisans pegaram Heidrych, conhecido como
"Herr protector Heydrich", ou ainda como o "carrasco Heydrich". Contam que ele
ia
passando num carro . ali perto, numa floresta muito bonita que ainda existe. Uma
bomba eliminou o carrasco, que era o Quisling da Tchecoslováquia. Prenderam
todos os habitantes da cidadezinha, e de cada dez presos matavam um para saber
quem tinha sido. Acontece que ali em Lídice ninguém sabia, pois tinha sido gente
de
fora. Foram até o fim na chacina de um pouco mais de cem pessoas entre homens,
mulheres e crianças. Não perdoaram nada. E um Verbotten que ainda estava lá
afixado mandava eliminar a cidade do mapa. Isto foi feito e ali hoje é apenas um
campo aberto onde plantaram flores.
Ficou muito bonito, mas a história é tenebrosa.
E por lã passei quando voltava da China e aprovei

133
tei para visitar o Jorge Amado, que lá vivia em Dobris, um castelo perto de
Praga,
cerca de uma hora de ônibus e meia hora de carro, que até podia ser um Porsche
pois
o engenheiro Porsche, o genial inventor do Volkswagen alemão, era tcheco e foi o
primeiro a fazer um motor direto nas rodas e com refrigeração a ar. Não tenho
necessidade de propaganda e não entendi por que pararam de fabricar o Fusca-
Besouro, o melhor carro que já vi. Uma vez, estando em Mendoza, na Argentina, e
querendo atravessar a cordilheira dos Andes pelo Paso de Cumbre, me disseram que
era necessário fazer uma adaptação ao carro. Algo de um filtro de ar antes do
carburador e não sei o que mais. Fui buscar o carro, um Fusca, e o mecânico de
Mendoza foi logo dizendo: "Neste não precisa fazer nada. É refrigerado a ar.
Passe
tranqüilo." E fui em frente sem nenhum problema. Na estrada, subida da
cordilheira,
encontrei vários carros enguiçados. E eu passava orgulhoso. O Porsche também era
o construtor do Tatra, o carro grande tcheco. Um gênio que Hitler tratou logo de
aproveitar. E saiu o Fusca.
Mas lá de Praga fui até o castelo onde morava o Jorge. Não, ele não ocupava o
castelo. Só um quarto. Era apenas hóspede da Associação de Escritores da
Tchecos-
lováquia, presidida na época por Jan Drda, um gorducho muito simpático que,
segundo soube mais tarde, caiu em desgraça. Agora, com a Peristroika, não sei.
Mas
lá estavam vários escritores famosos porque realizavam um Congresso de
Escritores.
Fiquei conhecendo vários, como Ilia Eremburg, que era um grande escritor
interna-
cional e um fabuloso contador de anedotas. Quando contava alguma dos dirigentes
do Kremlin sempre dizia, sorridente: "Não digam que fui eu que contei." Era
muito
amigo de Stalin, mas contou a todos os presentes aque

134

la anedota que eu ouvira na Sibéria, em Kraonoiarsk: o melhor seria botar Stalin


de
ministro do Câncer... ele acabaria com a moléstia em menos de um mês.
Também estava a Anna Seghers, a famosa escritora de a Sétima cruz, que nos
contou ter estado no mesmo campo de Olga Benário, e que uma vez tinha consegui-
do livrar Olga dos fornos crematórios. Mas da outra as mulheres do campo de
concentração apenas conseguiram retirar a menina Anita. Anna Seghers já estava
meio velha e combalida, falava muito espaçadamente mas com muita segurança.
Outras pessoas ilustres eram Kornetchuc, escritor ucraniano, e sua mulher, Wanda
Wasilievska, o Pietro Neni, o famoso dirigente do Partido Socialista italiano.
Falaram muito de comida, o que é papo permanente entre intelectuais famosos. E a
Zélia Amado, para os tchecos, era "Amádova". O final ova é peculiar. Uma vez
veio
aqui uma seleção de basquetebol da Tchecoslováquia e quase todas tinham nomes
que terminavam em "ova". Ora, foi um prato para alguns locutores bem conhecidos,
daqueles que afirmaram que a Torre de Belém era em Belém do Pará. Diziam eles;
às gargalhadas: "Lá vai uma OVA com a bola... passa para outra OVA..." E mais
gargalhadas. O sufixo ova em tcheco quer dizer apenas" senhora de tal" . Assim
Zélia
Amado era "Amádova". E ela me pediu para ir ali perto buscar uns dois quilos de
feijão. Estranhei um pouco, mas fui. Falei vários idiomas e o homem, um gordão
bem corado, apenas sacudia os braços e os ombros como quem diz que não tinha o
que eu queria. Era logo ali perto o armazém e voltei ao castelo. Lá Zélia me
explicou
que eu tinha que pedir comida para porco. Falei em inglês com o homem: "Pig...
pig..." Fiz sinal de comida e imitei o porco. Ele riu muito e veio lá de dentro
com um

135
enorme saco que deveria pesar no mínimo uns vinte quilos. Expliquei que
precisava
de apenas uns dois. Ele pensou, pensou e nem quis cobrar: me deu uns dois quilos
de excelente feijão-preto, meio roxo. Uma delícia. Mas lá é comida para porco.
Não
se assustem, em vários países o feijão serve apenas para alimentar certos
animais.
O resto tinha, e muito bom. Salsichas, carne de porco e o diabo. Faltava, como
sempre falta, a farinha. Mas a feijoada saiu excelente. Pelo menos pra nós.
Mas eu estava com um problema sério, que veio desde a China. Era uma
lembrança da viagem: um baita busto do Mao Tsé-tung. Sei lá. Ainda era o Dutra o
governo do Brasil. Dutra tinha manifestado sua formação de direita várias vezes.
E
com muito vigor. E eu estava achando que o busto não seria bem recebido no
Brasil
pelas autoridades policiais e aduaneiras. Eu tinha andado metido nas encrencas
da
UNE e... sei lá. Falei com o Jorge e ele tentou me convencer do contrário.
"Afinal,
que mal faria o busto?", disse Jorge Amado. E eu perguntei: "Bem, eu também acho
que um busto não faz mal a ninguém. O problema não é o que eu acho. É o que
'eles'
podem achar, não é?" E emendei: "E você, por que está há tanto tempo na Europa?
Você estava em Paris no hotel da 'Madame' na 'Rue Cuja' e agora tem de estar
aqui."
O Jorge pensou e disse: "É, acho bom não arriscar. O busto pode esperar aqui e
não
vai cansar."
Passado um tempo, não muito, eu estava num avião não sei para onde e vi uma
revista O Cruzeiro na bolsa do avião. Aquela que fica bem na frente da gente.
Pe-
guei a revista ao acaso e logo na capa um retrato conhecido. Era do busto do Mao
Tsé-tung. Dizia: "Ampla reportagem na página doze."

136

Fui lá depressa e uma página inteira de fotos. O busto de novo e, sentados numa
poltrona, duas figuras bem conhecidas. Um era o Fernando Pedreira, conhecido
jor-
nalista, mas naquele tempo estudante recém-formado, e que estava em Praga para
tratár de coisas da UNE e da União Internacional dos Estudantes. O Pedreira
estava
desconsolado com cara de brocoió. O outro, um cidadão com um baita bigode, terno
branco e dando a pinta do personagem do coronel Limoeiro. Mas era o hoje de-
putado federal pela Bahia Fernando Santana. Os dois estavam em cana e tinham de
explicar onde tinham arranjado aquilo. A polícia tinha mandado traduzir as
inscri-
ções chinesas, onde se podia ler: "Tudo pelo socialismo." E assinado: Mao Tsé-
tung.
Os dois foram em cana. Jorge Amado os tinha convencido a trazer o busto, e que
aqui não daria nada. Afinal de contas, quem iria reconhecer o revolucionário
chinês?
Pois é, mas a polícia reconheceu. Os dois foram soltos dias depois, mas o busto
ficou em cana. Deve estar lá até hoje.

137

//A Silhueta

Toda cidade que se preza tem uma esquina, uma praça, um largo
onde se reúnem turmas. Em Porto Alegre o largo do Medeiros, onde desde a revolu-
ção entre chimangos e maragatos está o Beregaray, que veio de Uruguaiana para
Porto Alegre. É o "prefeito" do largo, onde atende seu expediente. Sempre de
chapéu gelo!, mas nem sempre de gravata sobre a camisa listrada. Às vezes de
sobretudo. Comanda o papo com certa soberba. Deve ser muito amplo aquele papo
do largo do Medeiros, pois resistiu a vários governos e a algumas ditaduras
gaúchas
e federais. Em Florianópolis lá estão os barrigas-verdes, fazendo onda. Aquela
com
o Figueiredo nasceu ali. Até ovos apareceram não se sabe como. Em Curitiba é a
famosa Boca Maldita. Importante organização, muito peculiar. É presidida por uma
carismática figura da Lapa, o Anfrísio Siqueira. A Boca ficou célebre quando, só
falando mal, derrubou o governo León Peres. Sua sede fica no largo Luís Xavier.
Ali
fizeram um obelisco de mármore cinzento. E falam mal de todo o Brasil e do
mundo. Reúne gente de toda a estirpe: juízes togados e de futebol, médicos e
cirugiões con

139

sagrados. O Félix de Almeida já operou quase todos, mas nunca recebeu de nenhum.
Esta importante organização de rua faz de escritório uma agência do Bamerindus,
onde sem a menor cerimônia entram e saem para usar a mesa do gerente e o
telefone
local e interurbano. Quem quiser escrever para a Boca basta colocár o endereço:
"Boca Maldita, agência Bamerindus da praça Luís Xavier, Curitiba, Paraná,
Brasil."
Para teste mandei um cartão ao Anfrísio, de Tóquio, com este endereço, e batata:
chegou lá.
No inverno eles vão para dentro do saguão de um hotel. Lá em Porto Alegre a
turma do largo do Medeiros também entra para um local daqueles. Em São Paulo o
pessoal é mais civilizado. Ou mais rico. Sentam num bar e fazem despesa. Turma
de
esquina era a dos cariocas, que se reunia na esquina da São João com Ypiranga.
Parece que a barra pesou ali: um assalto em cima do outro, e saíram.
No Rio vários e vários pontos ficaram famosos. Mas nenhuma esquina seguiu a
fama da esquina da rua Miguel Lemos com avenida Copacabana. O prefeito no co-
meço era o Cristiano Lacorte, já falecido. Cristiano, paraplégico, usava cadeira
de
rodas mas comparecia a tudo. Futebol, turfe, samba, comícios, tudo. A turma re-
solveu e Cristiano foi um dos vereadores mais votados do Rio de Janeiro. Depois,
aquela esquina elegeu o Paulo Alberto, o Artur da Távola, e o Edson Khair.
Nestas
últimàs eleições, Macaé, o atual "prefeito", apoiou Brizola, depois Saturnino e
a
Alice Tamborindegui. Todos foram eleitos. Não que a esquina tenha sido decisiva,
mas de qualquer forma demonstra sua profunda sabedoria e experiência política.
Uma série de fatos e ocorrências fizeram a esquina

140

sempre mais famosa. Ali teve e tem de tudo. Andou sendo proibido o carnaval
organizado nos bairros. Menos alit onde começaram bailes infantis e depois com
tablado orquestra e tudo bailes de marmanjos. O futebol é um dos grandes
assuntos
da esquina, mas nunca saiu briga séria por este lado. Uma democracia plena
existe
láaté hoje. Os mais consagrados craques do futebol, locutores esportivos e
outros
fazem ponto na esquina. E personalidades de "alto bordo", como juízes,
dirigentes
de clubes e das principais entidades esportivas do país. A esquina sempre esteve
presente, ora por uns ora por outros, a todos os grandes fatos ou eventos
nacionais e
internacionais. E quando apareceu no Rio de Janeiro um programa de televisão
chamado o "Céu É o Limite" vários representantes da esquina foram lá ganhar
prêmios grandes. Havia piadas, apelidos sérios, e mesmo quando após a revolução
de 64, mandaram espiões para evitar qualquer propagação de idéias, em pouco
tempo os "espiões " estavam integrados ao espírito comunitário e democrático da
esquina. Houve um importante delegado especializado em política que dizia,
quando
o papo esquentava: "Bem, tenho de ir andando porque minha velha está me
esperando". E caía fora. De fato não seria conveniente ficar ali. Denunciar
quem?
E depois ter de sair dali?
Um dia, a esquina inteira se mobilizou. Foi quando um edifício ali perto foi
apelidado de "edifício Silhueta". Já era mais de meia-noite quando chegou na
roda
um garoto, com os olhos maiores do que um pires e disse, gaguejando: "Ali
naquele
edifício tem um casal... eu acho. Estão lá dentro, mas se vê tudo da rua". Era
sábado
e a roda estava imensa. Até dividida em duas ou três rodinhas de papo. Um
fundador
do Botafogo, um

141

dirigente atuante do Fluminense, ex-jogadores do Flamengo, do Botafogo, e do


Vasco, médicos, advogados, dentistas - dentistas então sempre estavam uns três
ou
quatro - estudantes de várias escolas, comerciários e comerciantes, todo mundo.
Casa cheia. Todos correram na direção que o tal garoto indicara. A avenida
Copacabana encheu. Veio o ônibus e teve de parar. Passar como? O chofer ia
entrar
na bronca, mas um dos organizadores da pequena multidão, que já estava se
acotovelando, com gestos bem significativos, fez ver ao chofer do ônibus o que
se
passava. O chofer entendeu logo e ficou na paquera do lance. Algum passageiro
estrilou, mas ele, sem tirar os olhos do lance, mostrou o que se passava. E o
casal
mandando brasa. A porta estava fechada. Mas a luz do saguão ou hall de entrada
estava acesa. Bem acesa e forte. A porta era vidro fosco. Ora, a luz por trás do
casal
transmitia para a turma da rua a mais perfeita silhueta que se poderia desejar.
E foi
juntando gente. Um gaiato quis fazer onda, mas um tremendo e severo "psssssiu"
lhe
tapou a boca. Parecia uma tropa de comandos ou de assalto pretendendo pegar o
inimigo desprevenido. Com o ônibus parado e mal parado, os carros iam parando e
as indicações sempre diretas apontando para o evento e pedindo silêncio. Todos
compreendiam logo e até casais que iam passando paravam para olhar a cena
inédita. De repente, o casal lá de dentro parou rapidamente. A mulher, que
estava
sempre abaixada, meio de quatro, se arrumou depressa. A rua ficou no mais
profundo silêncio. Um segurando o outro para ninguém invadir o lugar
privilegiado
de alguém que chegara primeiro. Mas não era nada de mais. O elevador fora acio-
nado, o ca~al atuante teve de parar e de dentro do prédio saiu um cidadão. Uma
vaia
chegou a ser ensaiada, mas

142

o "sinal" de silêncio foi mais forte. O cara saiu, ficou meio atônito de ver a
rua tão
cheia. E, ante os gestos e vozes surdas de "cai fora... cai fora..." , olhou
para trás e
entendeu tudo. Procurou se ajeitar ali pela frente, mais foi energicamente
barrado.
Arrumou um lugar mais atrás e toda aquela pressa da saída do edifício
desapareceu.
O casal lá dentro engrenou de novo. Do começo. Fizeram tudo e de repente
terminou. Um "oh... oh!" se fez ouvir. O cara do casal se arrumou, ela também.
Ele
deu um beijinho e veio para a rua. Mal a porta se abriu, uma tremenda ovação.
Bateram palmas e saudaram o cidadão. Ele, meio aturdido, tomou a rua e se
mandou, sumindo na primeira esquina da rua Miguel Lemos em direção à rua Barata
Ribeiro. Desapareceu na noite e o papo bem entusiasmado voltou para a esquina. O
ônibus foi embora e os carros puderam passar.

143

///A Copa da Espanha

//Caso de Polícia

La Paz - Com esse resultado o Brasil não está virtualmente


classificado não, está mesmo éclassificado, porque fez quatro pontos, a Bolívia
tem
dois, a Venezuela não tem nenhum, e faltam dois jogos no Brasil contra esses
dois
times que são pernas-de-pau. E esse jogo de hoje engrossou única e
exclusivamente
por culpa do problema antiesportivo da altitude, muito bem explorado por outros
três países, México, Equador e Colômbia.
Eles têm estádios grandes para jogar ao nível do mar, e isso era uma questão
unicamente de lealdade com os adversários. Mas as eleições da FIFA se sobrepõem
a tudo isso. A FIFA do tempo em que a entidade era modesta e tinha apenas uma
salinha em Paris, no tempo do velho lules Rimet, dirigia o futebol com mais
lealdade e não permitiria a realização desse jogo aqui, a mais de três mil
metros de
altitude. Hoje, no entanto, a FIFA está mais preocupada em se transformar num
poderoso veículo de publicidade de materiais esportivos.
E por isso tivemos de vir jogar aqui; as concessões foram feitas, e vimos um
time de futebol infinitamente

147

superior caindo aos pedaços contra um, time .medíocre , contra um time que só
soube dar botinadas e ainda foi apoiado pela polícia que achou de bater em
fotógrafo, achou de pedir massagista e médico para não atender jogadores fora do
campo. Eles não conhecem sequer a lei do jogo, e foi necessária a intervenção de
um
delegado para que o Sócrates, que saíra de campo e tinha o direito de ser
atendido,
pudesse ter um médico perto dele, sim, porque, àquela altura, até os guardas
queriam
fazer gols.
O time da Bolívia é fraco, não é nada no ranking mundial e nem vai ser
enquanto pretender ganhar apenas nessa base, enquanto não sair para o futebol
puro,
enquanto estiver importando jogadores. O futebol nacional de cada país só é bom
quando praticado nacionalmente. Claro que a seleção boliviana é de bolivianos,
mas
a grande estrela deles agora é o Jairzinho, que foi um grande jogador, mas está
em
final de carreira.
Então, o que dificultou realmente foi o medo da altitude. Nos primeiros 15
minutos, quando os dois times estavam inteiros, foi uma brincadeira. Pena que
não
tivéssemos feito os gols necessários para liquidar este jogo em 15 minutos.
Oportunidades não faltaram, e os gols só não surgiram por falta de sorte e pelos
belos chutes que demos na trave.
Mas, no final, o jogo só pôde ser vencido pela alta qualidade dos jogadores
brasileiros, pela enorme diferença de técnica entre os dois times. Tivemos o
Sócrates
caminhando em campo e chupando laranja, mas ditando o ritmo apesar de estar
,sentindo falta de ar. Sentiu falta de ar, mas teve uma categoria fabulosa para
levar o
jogo dentro daquilo que nos interessava.

Jornal do Brasil, 23/02/81


148

//o Bom Velhinho

La Paz - Com a classificação da seleção brasileira em seu grupo,


porque evidentemente agora jogaremos duas barbadas em casa, ainda devem ser
postas outras questões que são importantes para os rumos do futebol. Creio que é
uma hora mais justa de protestar porque já estamos com passagem para a Espanha.
Do contrário, poderia parecer apelação. Todos viram, ouviram e leram o
sacrifício
de um time para poder agüentar 90 minutos. Somente a marcha difícil de um placar
e o fato de termos marcado na frente, nas duas vezes, fizeram com que o time
agüentasse o rojão, mesmo caindo aos pedaços nos últimos 20 minutos. Retifico:
nosso time já estava meio sobre o bagaço desde os 25 do primeiro tempo. O caso é
que ainda alguns tinham gás. Mas seguinte: nossa vitória só fortalece nossa
posição
de desagrado ante a programação da FIFA, obrigando alguns países a sacrifícios
físicos e financeiros. Estes jogadores, ainda bem que tem um carnavalzinho pela
frente para descansar(?), já entrarão novamente na batalha do futebol
brasileiro.
Mas me recordo saudosamente da FIFA de Jules Ri

149

met, o bom velhinho, que de suas duas salinhas de Paris dirigia com firmeza o
futebol internacional, depois Suíça e sempre a FIF A, na sua modéstia, levando
cada
vez mais alto suas competições e gastando pouco. De repente, e lembro a história
daquele padre malandro que chegava num vilarejo e logo dizia: "E bisogno
edificare
una chiesa", quer dizer: é preciso construir uma igreja. E tome rifa, flâmula,
livro de
ouro, e vida que segue. Agora a FIF A tem uma sede enorme. Os dois funcionários
parece que agora se multiplicaram, e a FIFA é hoje também uma poderosa
organização que veicula publicidade e materiais esportivos. A Copa da Espanha
terá
24 concorrentes. Os tradicionais quatro grupos acabaram. Claro que é mais fácil
agradar 24 do que 16. E nós subindo e descendo morro porque não pudemos fazer
valer nossos antigos propósitos de entrar sempre com espírito altamente
esportivo
nas competições. E acho que "non era bisogno edificare Ia chiesa". Francamente
temo que o futebol tome os rumos do boxe profissional, principalmente nos pesos-
pesados. E vejam bem: quanto mais comércio dentro dos clubes e entidades, quanto
mais entradas na contabilidade, o prejuízo é maior. Como eles gostam dos cargos
de
sacrifício!

Jornal do Brasil, 24/02/81

150

//Beco sem Saída

Sevilha - Enquanto o Telê não dá o time que todos já sabem, mas


que somente será confirmado no dia do jogo, as coisas vão andando. Como se sabe,
a vida não pára, e os homens que trabalham numa competição como o Mundial já
estão a postos. Não me refiro somente ao pessoal indispensável à organização,
imprensa, jogadores e técnicos. Estes estão em todas. Acontece que também vieram
para a Espanha, ou alguns já estavam, outros trabalhadores hábeis em assaltos,
pe-
quenos e grandes roubos. A polícia se mobilizou e publicou um vade mecum com 18
itens muito conhecidos dos brasileiros, principalmente os do Rio e de São Paulo.
Apesar dos esforços, eles aqui ainda não pegam nem juvenil com os nossos.
Mas as instruções da polícia me parecem um pouco contraditórias. A primeira está
em que não se deve recorrer a desconhecidos se estamos utilizando um veículo
particular. Bem, no meu caso estou, quer dizer, estou num alugado, e de vez em
quando me estrepo. Sevilha é uma cidade antiga. Bem em frente a meu hotel tem
uma muralha construída por Júlio César, bota tempo nisso.

151

Mas como toda cidade antiga, nem sempre as ruas têm placas, além disso, dão
mil voltas. Ruas pequenas. Algumas não têm saída, nem o aviso de rua sem saída.
O
remédio é perguntar, mas não tem gente conhecida por perto. Pergunto a qualquer
um. Pois todos foram amabilíssimos e solícitos. Várias vezes saíram de seus
lugares
e de sua direção para ensinar o caminho, quando o negócio complicou. Teve um que
desviou o seu itinerário e me levou a domicílio. Isso, de carro. Quando andamos
a
pé, são mais atenciosos ainda. Posso mesmo garantir que nunca vi tanta gente
disposta a ajudar como aqui ou em Moscou. Lá também. Se um tem dúvida,
aparecem uns cinco ou seis, discutem e, no mínimo, um leva até o objetivo. Não
raro, vão os cinco ou seis.
Claro que posso dar azar e perguntar logo ao Ali-Babá e ele me levar para a
toca. Mas até agora, repito, só tivemos amabilidades dos sevilhanos. Não tenho
re-
médio, senão perguntar. Ou teria de abandonar o carro, voltar para o Rio e tomar
mais precauções ainda. A vantagem daqui é que não matam. Bondosamente, só le-
vam a grana, um reloginho. Paciência. Mas a polícia coloca um item impossível de
ser obedecido, embora tenhamos o máximo de boa vontade. Seguinte: caminhe em
direção contrária aos veículos, situando sua carteira ou bolso (deve ser o do
dinheiro) na parte interior.
Dificílimo atender. Imagine o amável leitor , se um cara me diz: "É pra lá que
fica o restaurante." E se o trânsito vier ao contrário? Ainda teria o recurso de
ir
comer num restaurante favorável ao trânsito. Mas se não tiver nenhum? Acho que
se
eu seguir rigorosamente a instrução, sou capaz de ir parar em outro país. Ou

152

tra recomendação diz para evitar aglomerações. Como creio que haverá bastante
gente nos jogos, como deverei proceder? Não ir aos jogos? Positivamente estou
me-
tido numa encrenca. Logo eu que sempre me amarrei em Sevilha.

Jornal dos Esportes, 10/06/82

153

//A Copa Vai Começar

Sevilha - Muito sapato alto é dificílimo de escrever uma lauda. Pura


moleza. Entretanto, curioso, ainda temos gente com certo nervosismo. O Leandro
me parece um deles. Mas, ao mesmo tempo em que tinha gente rebolando, podia ser
vista a aplicação maior de alguns, notadamente Zico, quem sabe perseguindo a
artilharia na disputa com Rummenigge.
No começo não aconteceu muita coisa mesmo. Com a facilidade que o
adversário dava, achei até um pouco de brincadeira. No segundo tempo,
entretanto,
foi visível a tentativa de aprimoramento de jogadas com muitas inversões de
posições de nossos jogadores. Principalmente Sócrates, Zico, Cerezo e este
Falcão,
que eu até gostaria ver participando de uma maratona com o Cerezo.
Correm uma barbaridade. O time da Nova Zelândia bate duro. Nos dois jogos
anteriores, contra escoceses e soviéticos, andaram trocando botina. Mas no nosso
jogo temi apenas que o pequeno Mckay desse uma firme. Apesar do esforço, pegou
somente Júnior, mas sem grande prejuízo.
155

A fraqueza do adversario leva a que se analise com prudência o que vem por aí.
Para mim, agora é que vai começar a Copa. Foram desclassificados aqueles que
mais ou menos se esperava. Talvez certa surpresa com o Peru, mas mesmo este não
duraria muito.
No final do jogo, entraram Edinho e Isidoro. Gostei muito da personalidade de
Edinho. Joga uma bola fina e quando necessário engrossa bastante bem.. Sabe
atacar. Também com Isidoro, apesar de pouco tempo, o time se mexeu com mais
facilidade, mas é justo que se diga que Serginho neste jogo fez boa partida. Mas
quando falo em Isidoro no time é porque isto permite que Zico ande mais pelo
meio
da área., e ali o Galinho é fogo. O cobra do jogo foi o Falcão. Mas o Doutor
Sócrates e Cerezo também ajudaram muito ao pessoal da frente. Outro grande no
time foi Júnior, um extra-série, sem dúvida alguma. Seu excepcional controle de
bola levantou a torcida várias vezes.
Em resumo, nosso time foi muito bem e.muito aplaudido. Também o homem da
pipa que, em certos momentos, chamava mais atenção do que o jogo. Chegou a ser
ovacionado quando o árbitro tentou pegar a pipa e levou um drible.

Jornal dos Esportes, 24/06/82

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//Também Quero

Sevilha - A Colômbia foi mesmo confirmada como realizadora da


Copa do Mundo de 1986. Muito certo. Certíssimo. Seria uma tremenda injustiça
com a atual geração. O povo colombiano vivo jamais assistiria a uma Copa do
Mundo. Mas é importante que os futuros responsáveis se mirem no exemplo desta
Copa da Espanha, que teve tudo, mais do que nenhuma antes realizada, para fazer
a
mais grandiosa de todas. Sem dúvida, a mensagem de paz do primeiro dia füi uma
demonstração inequívoca dos anseios e desejos de paz do povo espanhol.
Mas a excessiva comercialização da Copa deve servir aos colombianos de mau
exemplo. Não há condição de um país organizador, digo, de uma federação
organizadora, perder dinheiro. Mas não se trata de fazer um superlucro, como se
estivessem fazendo uma competição financeira. Façam uma concorrência para no
máximo um ou dois anunciantes trazerem sua .publicidade. Isto evitará este
triste
espetáculo visual que impede os espectadores de verem se a bola entrou ou se foi
camuflada pelos cartazes.
No campos onde existe apenas o espaço essencial para jogo de fútebol, com a
colocação dos horrorosos

157

cartazes, muitas vezes impedem a cobrança esportiva dos córneres, por exemplo.
Digo e repito: A Espanha possui os melhores estádios do mundo para se jogar e
ver
futebol. Mas em alguns, como em Málaga e no magnífico Villamarin, ficou
prejudicada a cobrança dos escanteios porque os tais cartazes colocados entre a
mureta e o campo espremeram o espaço. Mas o pior de tudo é o visual.
O pessoal de Wimbledon optou por um anúncio caríssimo em vez daquela
bagunça que se verifica atualmente nos campos de futebol e por um dinheiro que
em
nada ajuda a despesa, que não é tão grande assim. Estão propalando os exageros.
Não são absolutamente necessários cinco mil guardas de trânsito para organizarem
apenas dois ou três mil veículos. Se tanto. Nem tantas mocinhas e rapazes para
mostrarem que a saída é ali onde está escrito saída. Coisas da vida onde a
política
eleitoral se mete.
Claro que os colombianos vão estudar bem isto. Lá como cá também existem
eleições. Por isso, fizeram na Espanha dezessete cidades-sede quando bastariam
oito
ou dez. Na Colômbia, fazer mais de quatro ou seis, se forem mesmo vinte e quatro
disputantes, o que foi uma boa idéia, seria um erro e uma complicação.
Já pensaram se toca ao Brasil organizar 1986? Todos gritando: "Também
quero, também quero". A FIFA deve sim tomar a frente com sua larga experiência
positiva e negativa. Por toda parte existem o PSD e a UDN querendo prefeitos e
governadores. Não há mal nisto absolutamente. O mal é prejudicar o espetáculo
esportivo, transformando-o em simples objeto de proselitismo, ganância e de
interes-
ses mesquinhos. A Colômbia tem todas as condições para fazer uma magnífica
Copa. Mas que sirvam os exemplos.

Jornal dos Esportes, 25/06/82

158

//Jogos Horizontais

Barcelona - Estão acontecendo coisas nesta Copa que a própria


FIFA terá de estudar muito para evitar que o futebol se avacalhe. O resultado de
Alemanha e Áustria foi escandaloso. No próprio boletim da entidade, o comentário
oficioso diz claramente que "foi um jogo que provocou a ira do público presente
que
não aceitou ver uma partida horizontal".
Os gritos de "roubo", "trapaça", "fora", "viva a Argélia" colocam mal o
campeonato que já tinha ficado meio esquisito com o pênalti no jogo entre
Iugoslá-
via e Espanha. O famoso pênalti que o coronel da fazenda mandou bater dentro da
área. Isto tudo e a entrada espetacular do xeque do Kuwait anulando aquele gol
colo-
cam a Copa à beira do ridículo.
Podemos dizer que se isto acontece ainda em 1982, é porque o regulamento
continua teimoso ao formar grupos de quatro países de onde dois ficam fora. As
marmeladas se sucedem com o beneplácito da organização mundial de futebol. Nós
mesmos já participamos duas vezes de jogos eliminatórios amolecidos. A primeira
foi em 1954, na Suíça, quando forçamos o empate com a

159

Iugoslávia. Foi até engraçado porque nossa gente não conhecia o regulamento e os
jogadores da Iugoslávia, no campo, é que nos fizeram compreender que o empate
classificaria os dois times. O outro, não menos famoso, foi o da Copa de 1962.
No jogo de classificação, nosso grupo estava composto com a Tchecoslováquia,
México e Espanha. Foi naquela partida em que Pelé sofreu seriíssima distensão
muscular que o afastou do resto da competição, entrando depois Amarildo em seu
lugar. Ficamos com 10, mas os tchecos não vieram para cima e propuseram o empa-
te. Dessa vez aceitamos imediatamente e foi a partida mais horizontal da
história das
Copas, desde 1930 até hoje. A Espanha entrou pelo cano e teve de voltar.
Protestou,
mas como diz o célebre ditado cearense: "Quem protesta já perdeu."
Agora a Argélia foi prejudicada, pois qualquer outro escore classificaria seu
time. Mas o que pode a FIFA
fazer se não dizer que recebeu e anotou o protesto? A Argélia vai voltar, como
a
Espanha em 62, esperneando em árabe, mas isto continuará a acontecer até que mu-
dem o regulamento.

Jornal dos Esportes, 26/06/82

160

//Eles Não Gostam de Futebol

Barcelona - Sou obrigado a relembrar um problema que tomou


conta de meu pensamento ao ver o excesso de preocupação com o lucro no futebol.
Não ter prejuízo é muito lógico. Mas proceder como aquele rei ambicioso que
pediu
a seu deus a graça de transformar tudo o que pegava em ouro?
Os organizadores deste Mundial também parecem querer se transformar em
modernos deuses do ouro. Mas e depois? E se não pudermos mais ver a bola
escondida atrás das montanhas de dinheiro? Dizem alguns que o "futebol é um
negócio empresarial como outro qualquer". Isto é absolutamente falso.
Profissionais
poderão ser apenas as relações entre jogadores e clubes ou entidades, ou entre
estes
e seu pequeno núcleo de trabalhadores. Tudo o mais, dirigentes, árbitros, sim,
principalmente estes se quiserem ser sempre dignos da confiança popular, terão
de
ser eminentemente amadores, esportistas.
Mas um jogo hoje em dia mais parece uma corrida de automóvel de Fórmula-I.
Cada centímetro custa tanto, pois o concessionário dos bochornosos cartazes que

161

cercam o campo de jogo não foi ao ponto de querer mandar tirar as faixas dos
torcedores? Faixas que incentivam seu time e que dão colorido honesto à festa?
O jogo não chega a parar ao ser dado um dose nesta ou naquela chuteira,
calção, ou marquinha de um uniforme? O próprio árbitro, às vezes, não está
fazendo
publicidade em seu uniforme? E a majestade do cargo? A Copa foi seriamente
atingida pela ganância dos homens que dirigiram o negócio hoteleiro a ponto de
vá-
rios donos de hotel, homens honestos, serem também altamente prejudicados em seu
negócio permanente e que não necessita de Copa alguma para progredir.
Em Valência, exatamente onde estava a seleção da Espanha, os hoteleiros
protestaram contra o que eles disseram ser "o pior mês de junho dos últimos.
anos" . Na
região da Costa do Sol, ao redor de Málaga, para Norte e Sul e mesmo até as
praias
do Atlântico, perto de Huelvas e Cádiz, bastou um telefonema ou simplesmente
che-
gar, em hotéis de qualquer qualidade, para se ter alojamento sem problemas. Os
malandros espalharam o pânico.entre os turistas convencionais e afastaram muitos
de suas visitas normais. Extorquiam os que vieram assistir à Copa, os
torcedores,
obrigando-os a tais pacotes, vendidos a preços tão exorbitantes que escandalizam
os
próprios hoteleiros.
Ainda por cima de tudo, veio o jogo da Áustria e Alemanha. A fabulosa
adjetivação do rico idioma espanhol, depois de vários sinônimos, chegou a um
acordo para definir a partida: imoral. Cuidado, senhores dirigentes. O futebol
não
pode seguir os tristes rumos do boxe internacional que está visivelmente
desacreditado e avacalhado.

Jornal dos Esportes, 27/06/82

162

//Sapato Alto

Barcelona - Muita gente, brasileiros, é claro, a toda hora


pergunta quantos gols fez Rummenigge ou Maradona e quantos Zico já conseguiu.
Sabem até melhor do que eu, pois basta comprar qualquer jornal e lá está,
diariamente, a estatística dos goleadores. Confesso minha total despreocupação
pelo
assunto ou, inversamente, um tipo de certa preocupação.
Que tal pensarmos juntos? Já tivemos dois ou três artilheiros em outras Copas.
Dois grandes craques pelo menos estou recordando. Leônidas, em 1938, e Ademir,
em 1950. Lembram o resultado final?
Just Fontaine até hoje figura como o goleador máximo de todas as Copas: 13
gols. E notem que naquele tempo a Copa era disputada em menor número de parti-
das. Quantas vezes a França foi campeã?
E o Brasil? Bem, conquistamos três títulos e em nenhum deles tivemos
artilheiros destacados. Os gols foram tão divididos que, sei lá, para cada um
tivemos
três ou quatro gols naquelas competições. Acontece que nosso saldo de gols,
tanto
em 1958 como em 1962 ou 1970, foi o maior de todos.

163

E a estatística de todas as Copas nos dá ampla vantagem sobre qualquer equipe.


O que significa isto? Bem, isto significa claramente que a melhor maneira de se
ga-
nhar uma Copa é a de se contar com jogadores altamente imbuídos do espírito de
equipe, capazes de entregar a bola a quem melhor estiver colocado e não entrar
na
disputa estúpida e egoísta de artilheiro individual.
Por isso me agradaram as declarações de Zico quando disse alto e bom som:
"Não quero saber quantos gols eu tenho. Quero ganhar os jogos e mais nada." Pois
tomara que seja assim com todos "em todos os jogos. Reafirmo minha posição de
que não somos obrigados a ganhar. Apenas fazer um papel condigno com nosso fu-
tebol três vezes campeão.
Em grande parte, isso já foi alcançado. Temos conseguido apresentar os
melhores espetáculos, e o público e os comentaristas de toda parte não têm
poupado
justos elogios. Estão esportivamente muito satisfeitos com nossa gente.
No jogo da Nova Zelândia, entretanto, pôde ser notado um pouco de "sapato
alto". Pois bem, se evitarmos isto e ninguém tiver preocupações individualistas,
poderemos conquistar um magnífico triunfo. Como vencedor ou como time que
proporcionou o melhor futebol do mundo. Confesso que isso me satisfaria
amplamente.

Jornal dos Esportes, 28/06/82

164

//Coisas desta Copa

Barcelona - o jogo de Polônia e Bélgica demonstrou muito


claramente a importância da modéstia como virtude essencial no futebol. Nada de
mais a Polônia vencer o jogo. Sempre figurou bem nas Copas. Mas a Bélgica
começou como se estivesse jogando contra um time mais fraco. Tomou o primeiro
gol e desarvorou, tentando ir com quase todos para a frente. Cometeu um
verdadeiro
suicídio, pois o time polonês tem exatamente dois dos melhores jogadores do
mundo
para organizar contra-ataques. Logicamente tratam-se de Boniek e Lato. Boniek,
como se sabe, vai para o Juventus, atual campeão italiano. É um grande jogador,
e
os belgas fizeram exatamente o que os poloneses queriam. Este resultado deu à
Polônia uma posição muito importante no grupo e a cômoda situação de esperar o
resultado do jogo entre União Soviética e Bélgica. O grupo é dificílimo, e sair
assim
com três gols é um grande fator positivo.
E hoje Itália e Argentina estarão começando a primeira de nosso grupo, um dos
mais fortes de todas as Copas do Mundo. Dou como exemplo que exatamente três
finalistas da última, a de 1978, estão reunidas. A Ar

165

gentina, campeã, Brasil em terceiro e Itália, quarta colocada e vencedora da


Argentina. Um grupo carne de pescoço. Penso que nosso time está bem, mas estará
melhor se compreender em toda a extensão a importância da modéstia e da
seriedade
de jogar. O último jogo, o da Nova Zelândia, um dos mais fracos dos 24
disputantes
na Espanha, foi meio sobre o rebolado. Não estarei muito errado se, achar que ao
pesarmos este grupo duríssimo teremos tudo para ganhar, apesar do excelente
futebol que estão praticando a Inglaterra, com seu time muito profissional e
seguro,
e a França, que na sua nova fase abandonou o defensivismo e percebeu que jogando
para trás dificilmente se pode ganhar uma competição de curto prazo.
Só não pude entender foi a escolha do fabuloso estádio do Barcelona para o
grupo mais fraco e o menor, e o do Espanhol para o grupo que vai ter mais gente.
Enfim, coisas da Copa da Espanha.

Jornal dos Esportes, 29/06/82

166

//Um Jogo Bem Latino

Barcelona - Tão surpreendente como o jogo Bélgica e Polônia, o


da Argentina e Itália. Isto absolutamente não significa que a Pôlonia não
poderia
ganhar. O jogo provou exatamente o contrário. Era favorita a Bélgica, como a
Argentina também contra a Itália. Me parece que a Argentina foi surpreendida por
uma modificação tática feita pelos italianos no segundo tempo. No primeiro,
somente se defenderam. E no segundo foram firme à frente, exatamente pele; setor
mais débil da defesa Argentina, pelo lado de Olguin e Galvan. Pegaram o time
argentino de surpresa, embora fossem dominados todo o primeiro tempo. Talvez
esteja enganado, mas a marcação de Gentile sobre Maradona foi demasiado fácil.
Muito provavelmente o argentino não estaria em suas melhores condições físicas.
E
apesar da excepcional partida jogada por Ardiles no primeiro tempo, a verdade é
que
o goleiro Dino Zoff não teve trabalho muito sério. Não gosto de Bertoni quando
vai
pela esquerda, e jogadores como Kempes e Diaz estiveram abaixo da crítica e
mereceram a substituição. A Itália se atirou pelo lado direito da defesa
argentina e
encontrou

167

caminho fácil. Quase que intuitivo. Saíram dois gols e outro foi desperdiçado. A
Argentina tentou reagir, mas não ameaçou muito. O gol saiu de falta muito bem
co-
brada por Passarela, quando os italianos tentavam burlar a distância obrigatória
da
barreira. O árbitro teve uma dificílima partida. Muito temperamental, muito
latina,
com jogo de cena digno de uma prima-dona. Quando expulsou o Gallego, o fez
corretamente. O jogo, embora com boa dose de violência, foi leal, ninguém bateu
pelas costas, a não ser o que foi expulso.
Eu teria preferido um empate, pois entraríamos com melhores condições. É
verdade que nosso próximo adversário, o perdedor, tem de nos atacar
obrigatoriamente, e isto já determina a nossa tática com facilidade. Espero que
saibamos aproveitar tal vantagem. Os italianos, apesar de terem começado a se
preparar mais tarde, estavam melhores fisicamente do que os argentinos,
visivelmente cansados no final do jogo. Os grandes da partida foram Conti,
Antognoni, Tardeli e Gentile pela Itália. Na Argentina, Ardiles.e Passarela. O
árbitro, imparcial e muito frio, acho que fez uma excelente interpretação quando
os
dois times se atiravam no chão como se fossem cachorro atropelado.
Inegavelmente,
a Itália jogou melhor.

Jornal dos Esportes, 30/06/82


168

//o Craque da Copa

Barcelona - Este é um tema sempre muito discutido e discutível.


Mas antes desta competição quatro nomes despontavam, bem destacados. Pelo
Brasil, Zico; pela Argentina, Maradona, este com a vantagem de ter sido comprado
pelo Barcelona e estar sendo visto com olhos de um lado bastante compreensivos
e de outro com a mais intensa expectativa. Os ingleses têm seu candidato em
Kevin
Keegan, o baixinho que sempre esteve acostumado a ganhar títulos. Tem três cam-
peonatos ingleses pelo Liverpool, foi para a Alemanha e o Hamburgo, que o
comprou e que há muitos anos não formava, também ganhou. Duas vezes, melhor da
Europa. Mas Keegan não apareceu para jogar, e dizem que voltará na próxima
partida da Inglaterra. Bem que estão precisando dele. O alemão Rummenigge, balão
de ouro, bola de ouro, craque de ouro e coisa e tal, realmente um jogador
excepcional. Mas apareceu com um problema de contusão em um joelho (?) ou algo
assim e está jogando todo empapelado e em ritmo bem baixo. Em média, sem terem
sido excepcionais, o melhor foi Zico. Não sou eu apenas quem afirma isso. Deixo
para os

169

espanhóis, que estão neutros, pelo menos enquanto seu time não melhora. Eles
tinham fumaças com Juanito, o cobrinha do Real Madri. Mas no duro, no duro, até
agora o melhor atacante da competição foi o polonês Boniek. Seu jogo contra a
Bélgica e as partidas anteriores o qualificaram assim. Não sei se irá mais
longe, mas
foi o melhor de todos, inclusive do que Blokhin, o excelente atacante soviético.
Falta
muita água correr por debaixo da ponte. Mesmo o polaco, que para mim foi, se não
o melhor, o que chamou mais atenção, talvez veja despontar outro. De nossa
gente,
Júnior, Sócrates e Éder, se não foram mais consagrados, pelo menos chamaram mais
atenção. A verdade é que o craque da Copa ainda não pintou.
Até agora não me assusta o que tenho visto e creio que aí no Brasil tampouco.
A impressão deixada pelos jogos de televisão não deve ser muito diferente da
minha.
Apenas a Polônia apresentou um jogo mais solto e desenvolvido. Será que isso
quer
dizer que a Copa é uma barbada, e que os adversários não são de nada?
Creio que pensar assim seria cometer um erro bastante sério. O que se podê ver
acima de tudo é que as equipes européias, todas, sem exceção, estão jogando na
boca de espera. Defensivamente. Mesmo a Polônia, que apresentou mais gols, fez
tudo o que a Bélgica queria fazer: jogou de contra-ataque. Quer dizer que quem
saiu
mandando bala caiu do cavalo? É verdade. Vejam a Argentina contra a Itália. No
primeiro tempo, a Argentina atacou bastante. A Itália se fechou em seu ferrolho,
agüentou o primeiro tempo inteiro e pegou a Argentina, que desesperou e tomou
outro. O jogo de Alemanha e Inglaterra parecia jogo de xadrez com saída
siciliana.
Todo mundo trancado, não arriscando sequer o avanço de

170

um peãozinho. Nem Trevor Francis, pelos ingleses, nem Rummenigge tentou mais
coisa. Apenas o alemão, assim mesmo de longe, chutou aquela que bateu na trave.
A
atividade dos goleiros tem sido quase nula.
As fases de classificação geralmente são assim, muito cuidadosas. O Peru, que
vinha bem, foi ingênuo e perdeu sua classificação nada difícil. Saiu atacando
sem
mais nem menos e não agüentou o rojão. Com isto, não quero dizer que devemos
sair defendendo. Isto seria fazer o que eles fazem: jogar apenas para não
perder.
Nossa chance de sair vencedor da competição é a de arriscar, e acho que
poderemos
fazer isto sem temer muito. A única coisa que temo tem sido o excesso de
contusões
ou dodóis que alguns dos nossos apresentam. Então, trata-se de amainar o
treinamento. O que não foi feito até agora não será conseguido mais. De qualquer
maneira, o nosso time já foi apontado como o melhor, e isto é altamente
gratificante
para nosso futebol alegre e com características nacionais próprias. Estamos no
grupo
mais difícil, mas nossa chance é muito boa.

Jornal dos Esportes, 02/07/82

171

//Jogo Ficou Fácil

Nitidamente foi uma partida nervosa. Os dois times sentiam esse


problema. Mais a Argentina, evidentemente. Necessitava da vitória de qualquer
maneira, e se atirou em cima desde o começo, com marcação severa. Chegou mesmo
a dominar o jogo. Veio a falta e o chutaço do Éder. O juiz botou Serginho na
súmula
mas foi o Zico, e todos viram. Daí em diante o jogo ficou bem melhor para o
Brasil.
Nós, que não estávamos com o meio-campo em boa ordem, pudemos aproveitar o
descontrole do time argentino. Se precisavam de um gol para ganhar, passaram a
ter
de fazer dois. É verdade que nossos armadores não estavam muito bons.
Isto no caso do Zico e Sócrates. Mas Falcão jogou o dobro e equilibrou
bastante. Cerezo esteve mais preocupado em marcar, daí alguma dificuldade
encontrada. Mas os argentinos tinham de vir atacar de qualquer maneira, e nosso
time estava bem na retaguarda. Oscar e Luisinho muito firmes, Júnior idem, e
teve
de ficar plantado muito tempo porque Bertoni jogava aberto e pela extrema.
Creio que, apesar de uma vitória que chegou a ficar fácil, não jogamos certo no
ataque. Está bem que não

173

tenhamos ponta-direita, mas não é proibido que alguém utilize este importante
espaço de campo. Todas as vezes que alguém apareceu por lá, fIzemos coisas muito
boas, inclusive aquela magistral entrada do Falcão que deu o passe de bandeja
para o
Serginho fazer o segundo gol do jogo. Esse era o nosso maior problema, mas se
tínhamos dois ou três que não jogavam bem, os argentinos tinham uns cinco ou
seis.
Excluídos Passarela, Maradona, Ardiles e Filol, os outros estiveram perdidos.
Entraram no campo precisando de muita coisa, e o gol levou-os a total
descontrole.
Já nem falo da entrada desleal de Passarela em Zico, que foi imperdoável. Mas a
entrada de Maradona sobre Batista é realmente o retrato de um descontrole
emocional total.
O time argentino também faz parte de um povo que atravessa momentos
difíceis. Sempre achei nosso time superior. Mas o jogo chegou a ficar tão fácil
que
pensei em uma escandalosa goleada. Francamente, não gostei de uma ou duas
firulas. Time que está disputando Copa do Mundo não pode fazer isto. Dar show é
uma coisa, rebolar é outra, e nunca dá bom resultado. De qualquer maneira, penso
que o Brasil já apresentou o nível superior de seu futebol. Apenas algumas
jogadas
táticas devem ser melhor acertadas para uma harmonia em nosso ataque. Zico,
visivelmente, ficou contrariado em ser o principal responsável pela direita, e o
revezamento com Sócrates, e uma ou duas vezes com Falcão, idealmente pode ser
bom, mas na prática não foi. Felizmente o desenvolvimento da partida facilitou
bastante, e pudemos obter uma vitória justa e incontestável. O grau de exigência
que
se apodera de nós está intimamente ligado à dificuldade cada vez maior de um
final
de Copa.

Jornal dos Esportes, 03/07/82

174

//"Homa, Faz o Teu..."

o que é craque, afinal? Será aquele cara que pega a bola na


defesa e dribla todo mundo, vai lá do outro lado, dribla também o goleiro e faz
o
gol? Tem gente que pensa assim e não aceita que craque jogue mal uma partida. E
às
vezes o craque joga mal uma série de partidas. Já vi até cobrões posteriormente
glorificados serem vendidos e mandados embora de seu clube como caras que não
querem nada ou que não jogam mais nada.
Lembro de Garrincha no Botafogo. O próprio treinador o achava maluco e não
o estava querendo mais no time. O Didi na sua fase do Fluminense. O Brasil
perdeu
a Copa de 1954, e Didi foi tachado de apático, viciado, medroso e o diabo a
quatro.
Chegou o ano de 1958, e Didi foi o Mister Football, considerado unanimemente o
melhor jogador da Copa. Garrincha fez grandes jogos, mas Didi foi o maior.
Depois,
mais tarde, gente nova fez outra história. Didi foi para a Espanha, e parece que
a
Espanha ficou com raiva: "Para ser craque tem de jogar na Europa." Pois é. Didi
voltou e foi campeão do mundo outra vez. E o maluco do Garrincha? O dono

175

absoluto de 62? É isto o craque. Em uma jogada define tudo. Pelé em 1970 fez seu
mais bonito gol de todos e o mais importante da Copa de 1970. Pois foi
exatamente
o gol que não entrou. É sim, o gol mais bonito dos mil e tantos não foi gol.
Aquele
em cima do Viktor, da Tchecoslováquia, lá no meio do campo. Aquele chute fez to-
dos os adversários se encolherem. Se sentirem pequeninos ante o nosso time. Um
time capaz de surpreender de qualquer lugar. Um futebol criador.
Nosso melhor jogador é o Zico, e da Argentina o Maradona. Zico não foi tão
brilhante no jogo da Argentina. Mas fez somente isto: o primeiro gol e depois o
passe para o Falcão, que matou a defesa argentina, no gol do Serginho. Logo em
seguida, fez a jogada manjada do Flamengo, dando ao Júnior uma daquelas: "Toma,
faz o teu..." E o Maradona? Não é mais craque? .Então por que toda vez que
Maradona pegava na bola toda a torcida brasileira se sentia mãe? É um garoto.
Perdeu a cabeça porque não esperava ser derrotado, e de tanto lhe pegarem.
Pelé respondia de outro jeito. O Didi também e o Gérson e Zizinho também.
Mas o craque é assim. Em uma jogada decide o jogo, e é por isto que é melhor do
que os outros. O craque nem sempre é o melhor em campo, mas é o mais importante
da partida. É o que ocupa mais espaço nas crônicas mesmo para dizerem que não
jogou bem. Craque é craque.

Jornal dos Esportes, 04/07/82

176

//A Festa Bonita

Barçelona - Pois querem saber se fico nervoso na hora de jogos


de Copa do Mundo? Fico sim. Mas só no começo. Já assisti a quase todas. Menos à
primeira e apenas a um jogo da outra. Mas na "outra", o Brasil perdeu e eu
cheguei
atrasado no jogo. O jornal dava o jogo para quarta-feira e foi na terça. Algo
assim.
Fiquei fulo da vida. Mas só tremo na primeira fase eliminatória, que pode ser
vexaminosa. E sabem por quê? Porque a gente sempre diz, afirma e reafirma que
nosso futebol é o melhor do mundo. Pois acho que é e não tenho a menor dúvida.
Daí o medo em perder logo de cara. Lembram em 1966? Ou antes, em 1934, com
Leônidas, Valdemar de Brito, Patesko, Martim? Aí sim, é fogo. A gente perde,
volta
melancolicamente porque os patrocinadores marcam logo a passagem. As compa-
nhias de aviação, sempre quando se pede passagem, dizem que precisam confirmar,
que precisam computar e o diabo a quatro. Mas para o time que perde jogo na Copa
é só chegar no balcão que a mocinha diz logo: "Tem sim, o avião está vazio."
Bandida. Parece que faz parte da turma dos carrascos do futebol.

177

Então é assim. Fico nervoso, mas só no começo. Agora tiro de letra. Agora já
pudemos provar a todos e principalmente aos nossos torcedores, isto é o mais im-
portante, que nosso futebol, o futebol brasileiro é o maior espetáculo da terra.
Damos alegria ao espectador que entra e sai do campo satisfeito. Claro que com
uma
derrota logo na cara a gente fica sem argumento. Com cara de besta. Mas ninguém
tira mais: o melhor time que está disputando esta Copa, com qualquer resultado,
é o
nosso. E é tão bom que se dá ao luxo de dar vantagem aos outros. Estamos jogando
torts, sem que ninguém avance pela direita.
Já disse e repito: não é necessário ter o ponta especialista, mas é
imprescindível
que alguém vá por ali. Zico, disciplinadamente, obedientemente vai. Mas os
outros
não fazem o rodízio. Contra a Itália, até que não tem muita importância. Eles
marcam homem a homem, e se nós não tivermos ninguém ali, eles também não
terão. De qualquer maneira, estou satisfeito e feliz. O futebol arte se impôs, e
creio
que definitivamente. Lembram de 1978? Sabíamos que seríamos derrotados. Poderia
ter sido no primeiro turno mas escapamos. Estávamos jogando o "futebol-força",
para mim o futebol estúpido e pouco inteligente. Agora, tudo é lucro. Já fizemos
a
festa mais bonita.

Jornal dos Esportes, 05/07/82

178

//Nem Sempre se Agüenta

Barcelona - Ontem falávamos sobre a importância da


desmistificação do charlatanismo no futebol brasileiro. Daria para se fazer uma
enciclopédia sobre as barbaridades cometidas contra nossos jogadores. Uma
preparação de intensa tortura e do nervosismo. Horas de sono perdidas por causa
de
uma competição entre os que muito justamente pretendem entrar no time mas sem
que saibam se seu lugar é de efetivo ou, inversamente, se é no banco. O jogador

conhece que papel estará desempenhando. .
Mas todos eram "efetivos" e todos "reservas". Pura conversa, sem valor. Em
que hora Zicó, Sócrates, Falcão, Júnior ou Cerezo eram reservas?
Mas, e a decantada preparação física de nosso time? Pois foi visível que apagou
no jogo da Itália, exatamente quando empatamos. Os cobras, os que são
responsáveis para aparar tolices e empáfias, correram o dobro, o triplo do que
podiam. Isso aconteceu precisamente com Júnior, Zico, Falcão e Sócrates. A tal
ponto que Éder teve de ir para o meio do campo tentar guarnecer o ponto que era
o
nosso forte mas que, exausto, nada podia fazer.

179

o time cansou na tal preparação física que exigia toalhas quentes quase que
diariamente e os boletins acusando sempre dores musculares neste ou naquele
joga-
dor. O Careca não estourou na tal preparação?
Dou um exemplo que deve entrar na antologia da preparação física negativa. Se
Sérgio Porto fosse vivo, o seu Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País)
ganharia mais uma. Leiam com atenção o que vai aqui repetido. Antes, vou contar
a
anedota do português, não, perdão, do espanhol, que se gabou de ser capaz de
deitar
com 20 mulheres na mesma noite.
O negócio foi espalhado, tomou conta da cidade e marcaram o Maracanã para
palco da façanha. Na décima nona mulher, o nosso herói fracassou e foi estron-
dosamente vaiado. Quando saiu, se queixava a um amigo: "Não compreendo o que
se passou comigo. Hoje de tarde fiz um treino com 20 mulheres e tudo foi bem.
Não
posso entender meu fracasso."
Bem, está aqui guardada a declaração de nossos preparadores, sem tirar nem
pôr: "Submeti os jogadores a um trabalho semelhante ao esforço que fariam no
cole-
tivo. Isto para saber sua reação. Se estiverem bem, estarão liberados. Como o
Zico e
o Falcão agüentaram até o fim, sem reclamar, creio que não serão problemas..."
E vai por aí afora este excelente material para o Febeapá. Zico e Falcão não
agüentaram de noite o que tinham feito naquela tarde.

Jornal dos Esportes, 07/07/82

180

//A Itália Mereceu

E duro ter de assistir a uma semifinal com um futebol pobre. O


melhor time? O da Itália, sem dúvida. Pena que exatamente seu melhor jogador, o
Antognoni, tenha ficado de fora numa jogada acidental. Mas a Polônia, sem
Boniek,
ficou apenas com Lato lá na frente, fazendo boas coisas mas sozinho. Curiosa a
simpatia que o público de Barcelona teve pela seleção polonesa. Também era fator
positivo no time da Polônia o Smolarek, jogador catimbeiro e que obrigou sempre
o
time italiano a uma atenção especial. A Itália fez o gol de uma falta duvidosa,
mas
esteve sempre superior.
Verdade, entretanto, que até a saída do gol de Paolo Rossi cada time que
pegava na bola encontrava todo o time adversário recuado do meio do campo para
trás. A Itália trouxe grande torcida e a Polônia, contando com a simpatia dos
espanhóis, igualava o entusiasmo. Mas a saída de Antognoni enfraqueceu muito as
jogadas organizadas. Com o um a zero e a obrigação da Polônia de atacar, o jogo,
soporífero, ficou melhor. Pelo menos mais agressivo, mas é duro ficar de fora
ante
tanta mediocridade. A Polônia em cima, atacando, jogando

181

para o Lato, mas sem grande perigo, além da bola na trave depois da cobrança de
uma falta. Os italianos são mestres na cera, mas com isso fizeram os poloneses
ganharem mais torcedores. Os neutros tomaram partido ante a passividade do
árbitro
uruguaio, que aceitou o retardamento.
Aqui uma digressão: Não deve mais ser organizada nenhuma Copa de mais de
três semanas. Ninguém agüenta. E aproveito para outra reclamação, já que o jogo
não me entusiasmava até certa altura. Seguinte: Os cartazes de publicidade, que
tanto enfeiam e poluem a visão do jogo, mais uma vez se fizeram sentir obrigando
jogadores a pulos e pinotes, e ao italiano, que me pareceu ser Scirea, a quase
sair do
jogo. Mas até aos 25 minutos do segundo tempo a Polônia, embora atacasse com
desespero, não conseguiu fazer Dino Zoff ter trabalho sério. Com a torcida
obrigando os poloneses a atacarem, veio um outro contra-ataque, muito à feição
do
futebol italiano, que colocou três contra dois defensores. Conti bateu, e Paolo
Rossi,
comodamente, fez outro gol. Isso liquidou o jogo. De qualquer forma, os
poloneses
foram bravos na luta. Chegaram em colocação altamente honrosa na semifinal da
mais longa Copa do Mundo.

Jornal dos Esportes, 09/07/82

182

//Futebol Caipira

Madri - Jogam Alemanha e Itália a grande final de um


exaustivo campeonato. É demais 40 dias. Todos estão cansados. Jogadores,
imprensa e público local. Mas aparecerá hoje no Bernabeu sangue novo vindo de
perto, da Itália e da Alemanha. Perderemos o título de único time três vezes
campeão, mas já estava para acontecer desde outras épocas. A Itália já foi
finalista
ou semifinalista várias vezes, e a Alemanha também. Formam na primeira turma do
futebol mundial. Gastam fortunas com seu jogo e isto de dizer que no Brasil
existe a
maior onda futebolísttca é uma grande balela. Maior barulho não discuto. Um
grande barulho. Mas o futebol brasileiro entrou em ritmo de alucinação oficial e
per-
deu o rumo. Fazemos estádios imensos em cidades pequenas e pobres em tudo. Em
futebol e em riqueza. Jogos quase todos os dias e ainda um presidente da
República
criticava o Sr. Heleno Nunes porque não fazia jogos "também" nas segundas e
sextas-feiras.
O futebol brasileiro está se transformando apenas em um jogo de apostas, e a
fabulosa quantia arrecadada pouco nos ajuda em termos clubísticos. A televisão
tomou conta dos espetáculos e o torcedor antigo, já meio transforma

183

do em apostador, porque às vezes joga na loteria contra seu time do coração,


também está transformado em telespectador, pelo menos dos gols. Ora, já jogou
seu
talão lotérico e está participando do espetáculo com a chance de até ganhar um
caraminguá. Chance remotíssima, mas para quem já está duro o que é que custa?
Esta autêntica masturbação futebolística satisfaz de certa forma o torcedor que
enchia nossos estádios. Atualmente, mesmo antes da Copa, não levavam em média
mais de onze mil torcedores no Campeonato Nacional. Na Alemanha, na Segunda
Divisão, temos jogos de trinta e quarenta mil a toda hora, embora eles também se
queixem de uma certa crise de gente, mas que está intimamente ligada à recessão
mundial. Os alemães diminuíram os números profissionais, para dezoito em cada
clube, e se algum jogador quer muito dinheiro, não dificultam e deixam que vá
para
a Espanha ou para a Itália que fazem loucuras latinas. Mas também levam muita
gente aos estádios.
Jogar bem não é privilégio de ninguém, temos melhores condições porque
nosso clima permite jogar o ano inteiro, e temos o aquecimento natural para
nossos
jogadores. Embora tenhamos também prepiuadores que mais parecem estar fazendo
galinha desossada para aquecer um jogador, quando os outros times fazem isto sem
nenhum show de palhaçada, ainda mais numa temperatura de quarenta graus à
sombra. Ao sol, quase cinqüenta.
Nada demais que dois países, já duas vezes campeões mundiais e várias vezes
finalistas e campeões da Europa estejam na final. Poderíamos estar sem dúvida.
Mas
não com futebol caipira. Ainda vou escrever muito sobre esta peculiaridade.

Jornal dos Esportes, 11/07/82

184

//Nem Sempre É Pênalti

Como jogo de fim de ano, confraternização entre sindicatos,


ainda dá para fazer. Antes, em outras épocas, parava tudo. Cariocas e paulistas
iriam
jogar. Ali estava a hegemonia do futebol brasileiro. A única maneira era fazer
melhor de três, e uma vez fizeram até melhor de cinco. Parece que nem acabou. Um
ficou famoso, aquele do campo de São Januário, com a presença do presidente da
República, Exmo. Senhor Doutor Washington Luís Pereira de Souza, paulista na
certidão, mas que muitos afirmavam ser de Macaé.
Lá pelas tantas, aconteceu um pênalti contra os paulistas. O grande Amilcar
Barburi, center-half e capitão da seleção, mais tarde cobra na Itália e também
de
seleção, botou a bola embaixo do braço e disse: "Não foi pênalti." O juiz tentou
tomar a bola, mas não conseguiu. Amilcar jogou para Feitiço e este para o
Araken.
O jogo parou e expulsar era perigoso. Mas na tribuna o presidente se irritou e
mandou seu ajudante-de-ordens para mandar bater o pênalti. Que falta de
respeito.
Amilcar e Feitiço disseram: "Ele que venha bater!" Deram bananas, reuniram o
resto
e foram embora. Cisão, o diabo

185

a quatro, mas o pênalti não foi batido. Washington Luís nunca mais compareceu a
um jogo de futebol.
Os jogos regionais de seleção eram o ponto máximo. Um juiz que apitou em
Pernambuco o jogo contra a Bahia era carioca. A Bahia perdeu e o juiz voltou de
navio, a única condução. Mas o navio tinha de parar em Salvador. Uma multidão
foi
ao cais, e o delegado disse ao capitão do navio que se considerava impotente
para
conter a ira dos torcedores. O capitão afirmou que o juiz não estava no navio.
Invadiram o Ita que vinha do norte e revistaram tudo. Não encontraram nada. De
fato não estava. O capitão sabido fez arriar um escaler, meteu o juiz no barco e
mandou sair lá para longe, perto de Itaparica. Quando zarpou para o Rio, pegou o
juiz de novo, que aqui era considerado o"apito de ouro", e chegou são e salvo em
São Sebastião do Rio de Janeiro.
Estes jogos perderam muito. Os jogadores andam por toda parte. O
Internacional de Porto A1egre ganhou um campeonato com apenas dois gaúchos no
time: o Cláudio e o Vacaria. Os gremistas chamavam "o time de Pernambuco" por
causa do Manga, do Lula e mais um outro que acho era o Ramon. Assim como
Tancredo chama PDS de partido nordestino. E se botarem uni baiano numa seleção
gaúcha, o pessoal do CTG (Centro de Tradições Gaúchas) encilha os cavalos,
agarra
as lanças, mete o relho no "chimango" e não deixa o time sair. Já viram? Baiano
num time gaúcho? Assim o campeonato regional acabou. O time da Bahia hoje teria
pouca gente autenticamente baiana. Mas é válido para que os jogadores
confraternizem. E pênalti é pênalti e o juiz não necessita ir parar em Niterói
dentro
de um barquinho.

Jornal dos Esportes, 20/12/82

186
//Gato Preto em Campo de Neve

Está causando estupefação o fato de o Paulo César ter ido almoçar


no restaurante parisiense Maxim's. Só falta o Itamarati dar uma nota dizendo que
"o
governo brasileiro desconhece o assunto, que é de inteira responsabilidade do
senhor
Paulo César Lima" .
A França não precisou de princesa Isabel. Assim, lá, qualquer um pode entrar
nos restaurantes. Retifico, qualquer um não. No próprio Maxim'.s, muitos
fregueses,
alguns brasileiros, foram barrados por espeto ou cartões de crédito vencido. É
um
restaurante como outro qualquer e não chega a ser da primeira turma de Paris.
Mas é
lá que brasileiros adoram se encontrar uns com os outros e escrever
imediatamente,
contando quem estava ou quem não estava.
Neste sentido, o antigo restaurante - que já foi melhor e já andou fechado
algumas vezes - guardadas as devidas proporções, se parece com os restaurantes e
bares do Castelinho, onde os mineiros vão se encontrar com os paulistas e com o
pessoal da ZN. Não seria melhor irem os mineiros a São Paulo e os paulistas a
Minas?

189

No caso do restaurante francês, a questão é mais séria. Custa uma nota a viagem.
Mas, por falar em viagem, um atleta só se recupera depois de uma Rio-Paris,
em cinco dias. Atualmente, são cinco horas de fuso horário. E cada hora,
cientifica-
mente, obrigada um dia de reparação. Se o Paulo César fosse um cachorro (também
poderia comer no Maxim's, porque eles sempre arranjam um meio de ajeitar o cão
conforme o dono. É sabido o fato de que muitos cães, na França, recebem melhor
tratamento do que negros em outras partes do mundo); repetindo: se o Paulo César
fosse um cachorro, teria fome na hora do Brasil, até se adaptar ao horário. O
caso é
que se fosse o Edinho ou o Leão que tivesse comido no restaurante, não seria
notícia. Observou bem Érico Veríssimo - um gato preto em campo de neve chama
atenção. Em todo o caso, aviso mais uma vez ao Paulo César que há dois diretores
do clube francês em cana, por escritas falsas e roubo de dinheiro. Mas nisto o
Paulo
César é teimoso. No Marseille, também o ex-presidente estava em cana.

Jornal do Brasil, 20/05/78

190

//Compra-se ou Vende-se

Há tempos escrevi um artigo sobre o temor de que o futebol


tomasse os rumos do boxe profissional. Foi a propósito do jogo final da Copa da
Eu-
ropa entre o Internazionale de Milão e o Benfica de Portugal, acho que em 1966.
O
Benfica foi vencedor em Lisboa e o Inter, em Milão. A terceira partida, pelo re-
gulamento da UEF A, tería de ser decidida em um país neutro. Acontece que um
comendatore qualquer mandou brasa e comprou o jogo para ser disputado na sede
do Inter. O Benfica vendeu. Fiz um protesto no almoço oferecido à imprensa,
antes
do jogo, lamentando que a partida não teria conteúdo esportivo porque o Benfica,
em Milão, não tinha nenhuma chance. Claro que perdeu. Fui aplaudido pelos
colegas portugueses, os de Angola, Moçambique e também pelos colegas franceses,
um deles o Jacques Ferrand, outro o François Thebaud. Também pelo Arthur
Agostinho, naquele tempo locutor da Rádio Nacional de Lisboa e, hoje, de corpo e
vida presentes na Rádio Globo do Rio de Janeiro. Realmente assistíramos a um
escândalo e a um esbulho nos torcedores portugueses, principalmente nos do
Benfica.

191

Depois deste jogo, vários outros foram trocados de local com o mesmo
expediente. Aqui, lembro bem que o Botafogo aceitou uma inversão de tabela com o
Atlético Mineiro e se estrepou em Belo Horizonte, quando perdeu pelo sorteio a
decisão do título, vendido pelos chamados interesses financeiros maiores. Agora,
depois da magnífica vitória de Bjorn em Wimbledon, chega-nos a apreensão dos
dirigentes do maior torneio de tênis, que estão sem saber se poderão continuar
elevando bem alto o grande espírito esportivo da competição, ou se acabam com a
disputa ou, pior de tudo, se deixam avacalhar a guerra pelo excesso de
explorações
em nome de tamanho profissionalismo, que só tem arrasado vários esportes. O
boxe,
o basquete profissional, o futebol americano e, em boa dose, o beisebol sofreram
grande desgaste e alguns estão em véspera de sucumbir. Os empresários? Bem, se
mandam com o dinheiro no bolso. Agora estão vorazmente se dirigindo para o
futebol, para o atletismo e para a natação. Cuidado. Eles vendem e compram quase
tudo.

Jornal do Brasil, 13/07/78

192

//Emancipação da CBD

Finalmente vem aí a Confederação Brasileira de Futebol para o


lugar da CBD. É uma boa. A atual entidade já está superada há muitos e muitos
anos. As entidades ecléticas só tinham sentido no amadorismo puro. A burocracia
era feita pela dona Marina e mais dois. A tesouraria, com o lrineu.
Mas o lrineu só tinha de dar bichos a alguns jogadores de futebol. Bichos e
algum por fora. Mais tarde, com o profissionalismo, a CBD teve de aumentar
muito.
a tesouraria. Não tanto pelos profissionais. Para estes a mesma programação do
Irineu bastava. O caso eram os atletas amadores. Caríssimos e muito ,exigentes.
Por
exemplo, a turma do pingue-pongue (também chamam de tênis de mesa) só arranja
disputa na Índia, Filipinas, Coréia, China e outros lugares onde a passagem
custa o
mesmo do que a da volta ao mundo. E tome jogo de futebol para pagar tais
competições. A natação, também com nadadores caríssimos. O Fiolo ganhava mais
do que seu contemporâneo de clube, o Gérson, armador de time de futebol. O
water-
pólo também não era barato. Perguntem ao Havelange, que o conhece como jogador
e

193

como dirigente. Como é um esporte que nunca empolgou muito aqui no Brasil, não
adiantava cobrar entrada. Mesmo de graça, pouca gente comparecia. Então a CBD
sempre lidou com esportes altamente deficitários. É verdade que à medida que
alguns foram formando suas federações, independentes da CBD, não só
progrediram, mas passaram a arranjar verbas por todos os meios e modos. Os que
ficaram na CBD têm-se atrofiado. Cada dia estão mais distantes dos índices já
alcançados na década de 30, por exemplo.
Um deles e bem importante é o atletismo. Sempre pendurado nos clubes de
futebol, até regrediu. As pistas em torno de campos de jogo só são feitas para
conseguir verbas para a construção do estádio e para o futuro. Em Caio Martins,
a
pista só serve para os caminhões de cerveja e refrigerantes chegarem mais perto
dos
bares. No Mineirão, com exatamente 13 anos de vida, nunca aconteceu competição
naquela pista demagógica. Talvez agora, com uma federação independente, as
coisas
melhorem para o esporte olímpico.
Só uma coisa não me parece certa: o futebol de salãofica na CBD, com o
futebol de campo. Não tem nada a ver. O futebol de' salão, bem como este futebol
society de fim de semana, está para o futebol de campo assim como o pingue-
pongue está para o tênis. Borg e Connors ficariam furibundos se lhes dissessem
que
o tênis estava integrado ao pingue-pongue.
Evidentemente não basta que a CBD se especialize só em futebol. Os clubes
que são eminentemente de futebol também têm de fazer isto. O esporte não pode
mais ser eclético. O certo é que o remo seja de um clube de remo ou, no máximo,
de
náutica (já pensaram André Richer com sua fabulosa experiência de coisas do remo
di

194

rigindo somente remo?), como o Hindu Clube de Buenos Aires. Clubes


exclusivamente de vôlei, basquete, enfim como em todo o mundo. Esta a única
maneira de um progresso na lenta evolução de nosso esporte de competição. É
claro
que me recuso a chamá-Io de esporte amador. Esporte amador só criancinha fazendo
marrémarré ou coroa fazendo Cooper.

Jornal do Brasil, 06/10/78

195

//"O que Segura


Governo Não É Futebol. É Tanque!"

Em torno da CBD e na própria CBD há uma intervenção da


Arena, aberta e escandalosamente. V ocês podem entrevistar o Heleno Nunes e ele
vai dizer: "Não, eu tomei conta disso aqui e tal." Ele é um sujeito franco e
diz: "Eu
protejo os interesses do meu partido." Ele é interventor.
Eu não vejo mal no Heleno Nunes ser presidente da CBD para cabalar votos
para o partido dele. Não vejo mal nisso desde que permitissem à gente também
usar
dos veículos. O fato de os homens se aproximarem das massas não faz mal nenhum.
Tomara que permitissem que a gente se aproximasse das massas em todos os sen-
tidos e não apenas através de carnaval, futebol.
Há uma tendência a eleger pessoas ligadas ao futebol que vem muito do Estado
Novo. É que nós aspiramos muito pouca democracia aqui. Nesse meio século eu

197

me lembro de termos tido democracia entre 8 de maio de 1945 e 29 de dezembro do


mesmo ano.
Tudo indica que a escolha dos clubes do Campeonato Nacional está feita em
bases político-partidárias além dos aspectos esportivos. Agora, o resultado
disso eu
acho que é duvidoso. Talvez, face aos resultados eleitorais, a Arena mude de
idéia e
deixe o Campeonato Nacional em paz.
Posso dar um exemplo: a Ponte Preta. Fizeram a Ponte entrar no Nacional e já
tinha o Guarani de Campinas também. Os dois clubes têm méritos para entrar no
Nacional. Não é favor nenhum colocar clubes desse quilate porque são clubes de
primeira grandeza de uma cidade rica, com torcida, estádios, vida própria.
Nas últimas eleições, u~ dos candidatos a prefeito da Arena - eram 4 ou 5 da
Arena e um do MDB - era
o presidente da Ponte Preta. Então eles fizeram o último dia da classificação no
dia
14 de novembro, com a Ponte jogando em Campinas. No dia seguinte seria a
eleição.
A Ponte ganhou, como era natural e normal. Agarraram o presidente, levaram
até a porta da prefeitura, aquele negócio de "já ganhou", "viva o prefeito". O
MDB,
que estava cindido, sem organização nenhuma, tinha o candidato que era quase que
ele, a mulher e os filhos pregando umas faixas vagabundas pela cidade. Veio a
eleição e esse cara deu de 10 a O em todos os candidatos da Arena.
Depois a Ponte se deu mal com essa aliança. Por ser arenista, aceitou jogar a
final do campeonato paulista com o Corinthians no Morumbi. Eu não juro que foi o
Paulo Egídio que forçou, mas ele estando lá com a camisa do Corinthians, o
calção
do Corinthians - ele era

198

Flamengo, de repente virou corinthiano - é de se supor que ele tenha influído.


Como
é que a Ponte Preta aceita um negócio desses? Porque ela podia fazer dinheiro do
mesmo jeito, vendendo transmissões de rádio e TV. Nesse caso, a Arena
prejudicou.
Os fatos históricos desmentem que futebol sirva para escorar governos. O que
escora governo é tanque.
Agora, a ligação entre futebol e governo é muito estreita. As normas do
Conselho Nacional de Desportos são as do decreto 3.149 ou 3.199. O parágrafo 2
do
artigo 2? dessa lei diz que o ministro da Educação é o 'responsável pelos
esportes e
tal, e tal, e tal, uma vez submetido à anuência das Forças Armadas.
Se eles quiserem acabar com um clube acabam no mesmo momento. E a
política partidária oficial está fazendo exatamente isso. Eles não estão
percebendo,
porque isso não tem resultado imediato, mas a longo prazo os craques vão
desaparecer. Os craques surgem das multidões que praticam o futebol.
O clube de futebol, cOmO entidade, está definhando. Todos os clubes, sem
exceção, estão alienando patrimônio para poder melhorar, agüentar, embora esse
patrimônio tenha sido um patrimônio doado, emprestado, cedido, porque sempre no
início pertenceram ao poder público. Em todas as partes do mundo o poder público
cedeu e cede cada vez em escala maior.
Por exemplo: na Holanda hoje existem mais campos de futebol que no Brasil, e
a Holanda cabe dentro de um espaço de Alagoas e Sergipe somados.
Estamos caminhando num terreno muito perigoso, está definhando o negócio
porque a política está que nem chupim (o passarinho que bota ovo no ninho do
tico-
tico e se manda). Só tira, não bota nada. Quando o tico-tico

199

acorda, bica o ovo, sai um chupim lá d~ dentro. Ele não tem nenhum lucro. Não
reproduz a espécie.
Vou dar outro exemplo, na Bahia. Os dois clubes principais de lá, o Bahia e o
Vitória, não queriam jogar lá a classificação pelo Campeonato Nacional. Lá é en-
joado jogar. Aí o Feira de Santana topou jogar lá, para prestigiar a Arena.
O primeiro jogo que teve em Feira de um time grande foi com o Flamengo. Na
hora, o Flamengo não queria entrar em campo, porque não tinha luz e isso e
aquilo.
Quer dizer, tinha, mas não era das melhores.
Aí foram até o prefeito, que era do MDB, eleito pelo Chico Pinto (deputado
cassado) com 800/0 dos votos. O prefeito disse: "Eu não tenho nada que ver com
isso, que se dane o estádio. Não pedi, não botei time em Campeonato Nacional.
Isso
não é comigo. Eu tenho pouco dinheiro na prefeitura e o dinheiro é para obras
prioritárias, esgoto e saneamento que eu tenho que fazer em dois bairros. V ocês
vão
lá ver os dois bairros e vão me dar razão. Tem esgoto correndo pelo meio da rua
e eu
não vou gastar dinheiro em fanfarronada de futebol."
Mais escandaloso foi o caso de Otávio Pinto Guimarães (presidente da
Federação Carioca de Futebol hámais de uma década). Lembra que na loteria
esportiva tinha o Torneio OPG? Era ele. Otávio Pinto Guimarães. Fez um torneio
para ser candidato pelo MDB. Perdeu, perdeu feio.
Depois, para continuar na presidência da Federação, virou Arena. O mesmo
aconteceu com Rubens Hoffmeister, presidente da Federação Gaúcha, e com Rubem
Moreira, da Federação Pernambucana.
Eu acho que o torcedor, o torcedor não, o eleitor, prefere que o político seja
político partidário. Porque po

200

líticos todos somos desde quando escovamos os dentes. Política é a vida. O fato
de o
político se meter no futebol não é mal nenhum. Ele vai aonde está a massa
porque,
afinal de .contas, ele é o representante das massas.
A forma de comunicação de um deputado antigamente, que eu me lembro -
tenho uma excelente memória, pois já faz tanto tempo - era o comício. Era a
forma
direta de protesto. Quando tinha um galho, o político ia lá e fazia um discurso.
Podia
ser demagógico ou não. A forma de comunicação de um deputado era o comício, era
o jornal.
O que acontece hoje é a falta de abertura, falta de democracia no Brasil. Por
isso os políticos estão se dirigindo para o setor do futebol, das escolas de
samba. Um
dia, escola de samba vem' 'piriri piriri eu sou o Figueiredo, piriri piriri eu
sou o
Magalhães". Escola de samba canta o que encher a bola.
Como a Mangueira, que num desses anos saiu puxando a bola aí de um
ministério - ah, da aviação. O Juvenal, diretor da escola, chorava. Entrou em
quinto
ou sexto lugar na classificação. Aí eu disse para o Juvena!: também, você queria
o
quê? As baianas de avião na cabeça, levantando vôo? Ele dava risada e dizia que
es-
tavam precisando de uma "erva" e eles ajudaram, coisa e tal, estávamos devendo
muito a eles.
Leônidas da Silva, Garrincha, Pelé foram todos expoentes de suas gerações.
São raros, como é raro todo expoente. Como é raro um Cassius Clay, sem comparar
esses três caras ao Cassius Clay, homem que luta pelos direitos humanos. O
Leônidas da Silva também, mas os outros não eram muito de lutar por direito
nenhum.
Esses expoentes surgem, inevitavelmente, porque são o ponto máximo de uma
atividade. Mas, em matéria de

201

qualidade, é obvio que a Europa nos últimos dez anos. avançou muito.
A África tem todas as condições étnicas e etnológicas para se desenvolver no
futebol. A agilidade de uma raça, que lutou mais tempo num meio primitivo e que
tinha como meios de defesa apenas a agilidade das pernas e dos braços. Não é por
acaso que os crioulos são recordistas de atletismo, os melhores jogadores de
futebol,
e quando se dedicam ao tênis também são os melhores, quando deixam eles
entrarem. Como acontece também nas piscinas: branco pode, crioulo não. Como no
golfe também. O cobrão era um crioulo: acabaram com os torneios só para ele não
aparecer. Você não vê crioulo com um taco de golfe. Quando vê, pensa que ele
roubou o taco.
Eu nunca disse que o Pelé era míope. Não sou burro nem idiota nem
oftalmologista. Depois quiseram jogar o Pelé para cima de mim. Eu encontrei com
ele e disse: o que que há, negão? E ele disse: "Não tem nada, estou por fora
disso,
não tenho nada a ver com isso." Eu ainda disse: "Mas você está aceitando." Ele
disse: "Não, isso é coisa desses caras aí, não tenho nada com isso.' ,
Esses caras contavam com a ajuda de alguns coleguinhas insatisfeitos que
falavam nas colunas. Essas colunas de jornal que são cheias de anúncio, sabe
como
é? Esses caras são do tipo que não reivindicam aumento de salário nem precisam.
Não mexem no dinheiro do jornal.

Rep6rter, fevereiro de 1978

202

//o Grande Clássico

Eram dez horas da manhã, eu já tinha tomado café e estava lendo


o jornal. Lembrei do jogo e liguei para cá, para o Esporte. Bateu, bateu e nada
feito.
Então, liguei para a Manchete, no Esporte também. Era cedo ainda e nem o P. C.
tinha chegado. Me veio a idéia e liguei para o Jornalismo. Atendeu uma garota e
eu
perguntei o resultado do jogo entre o Brasil e Argentina, lá na Austrália. A
garota
disse: "Eu, hein? Jogo a esta hora? E que jogo?"
Eu expliquei que era o grande clássico, Brasil e Argentina na Austrália e que,
lá, eles são meio esquisitos. Fazem jogo às duas da manhã, tá bom? Ela
respondeu:
"Engraçadinho. Sabe d~ uma coisa?..." Senti que ela ia me xingar e fui logo
dizendo: "Tá bem, tá bem. Eu ligo pra TV Globo e garanto que eles sabem." Ela,
aí,
me deu o troco feroz: "E você sabe o nome do Bispo que foi excomungado? Ah ah
ah." E eu, na bucha, dei a volta: "Antonio Meyer." Em matéria de bispo excomun-
gado, papai aqui é fogo.
Então liguei para a TV Globo e lá uma outra garota, com ares de que sabe tudo,
me esculhambou. Eu ain

203

da tentei explicar que australiano é maluco, aí ela me descobriu e disse: "Olha,


JoãQ
Saldanha, não enche, tábom? Vai te divertir com a Fórmula L" Liguei para o
Esporte
e nem deram bola. Estavam ligados na corrida das baratinhas.
Sou tinhoso e liguei para a TV Bandeirantes. Atendeu um cara brabão e eu fui
perguntando já meio tímido. "O senhor porventura sabe o resultado do jogo Brasil
e
Argentina?" A fera respondeu berrando: "QUE JOGO?" Só tive tempo de dizer:
Nada não, nada não, e desliguei rápido, antes de qualquer coisa. Mas, aí, me
queimei, peguei o caderninho e comecei, rádio por rádio. Rádio Nacional, neca;
Rádio Globo, idem; Tupi, idem; Tropical, nada. E como eu estava na letra R do
caderninho e nas Rádios, liguei Rádio Táxi! Aí me dei conta e já ia pedir
desculpas
mas a garota estava tão amável que ganhei coragem e perguntei: "Olha, querida.
Eu
sei que não é bem aí, mas você sabe por acaso o resultado do jogo Brasil e
Argentina, lá... e já ia dizendo Austrália quando a garota respondeu firme:
"Zero a
Zero", às suas ordens. E agora? Só pedindo demissão.
A garota da Manchete tinha apostado que na Globo também não sabiam e eu
topei. Perdi e perderia mais uma dúzia de apostas e ficaria sem saber o
resultado se
não fosse a garota do Rádio Táxi. Pombas... e aí fiquei pensando. Em outros
tempos,
se fosse no time do Garrincha e do Pelé mesmo que fosse Tailândia bastaria
chegar
na janela para saber a resposta.

Jornal do Brasil, 11/07/88

204
//Futebol Olímpico

Uma questão que vai explodir cedo ou tarde começa a ser


levantada no setor olímpico. É o futebol. Como fazer as competições, daqui por
diante, sem conflitar com os interesses da Fifa? Antes, até 1930, não havia
problema. O campeão olímpico era o campeão do mundo. É que a Copa do Mundo
não começara. Depois de 30, apareceram as dificuldades ou problemas que existem
até hoje e agora tendem a se agravar. Diz o portavoz da Fifa que é inaceitável a
sugestão de ser disputada uma competição olímpica entre jovens de menos de 22 ou
23 anos. Então, diz o homem: "A competição de futebol seria um campeonato
juveniL" E tem razão.
Os homens do Comitê Olímpico fizeram restrições ao futebol desde o começo
da era profissionalista, embora sempre houvesse profissionalismo em todos os
setores. Mas eles mascaravam hipocritamente os competidores profissionais. E
sempre existiu uma espécie de restrição ao futebol, restrição esta que se
estendeu ao
Brasil. Então, inventaram a solução paliativa de hoje, quer dizer: podem jogar
todos
os que não participaram das finais da Copa. Bolas, nos outros esportes não
existe
isto. Então, por que só no futebol? Bem se sabe que sempre houve um

205

profissionalismo aberto e escancarado, que nos demais esportes sempre foi


hipocritamente escondido. Agora não dá mais. Carl Lewis e Ben Johnson só entram
na pista por um bom contrato em dólares, e o Comitê Olímpico tem de aceitar. Os
mesmos homens que tomaram a medalha daquele pobre índio vencedor da maratona
e que foi a um circo fazer levantamento de peso por 20 dólares para comprar
comida
para sua família faminta. Mas era apenas um pobre índio, e os Pierre de
Coubertin e
Haverin Brandadge, embora soubessem que milhares de outros atletas eram
profissionais, mantiveram sua atitude cínica, mas irredutível. Depois, não
tiveram
jeito e se curvaram à realidade. Hoje um atleta vai ao pódio com um enorme
anúncio
em cima ou embaixo de sua figura. Os anúncios imensos se confundem com os anéis
olímpicos e a tal pureza do esporte amador foi para o brejo. Claro, era esporte
elitis-
ta. Somente ricos ou sustentados pelos ricaços poderiam competir. Os outros, a
imensa maioria era o quê? Ladrão? Vagabundo ou o quê? De que poderia viver um
atleta? Para ser cobra, tem de treinar o dia inteiro e sem trabalhar? Então, as
restrições atingiram o futebol. Depois, como tudo ficou escancarado, o futebol é
aceito, mas agora quem não quer que fique inteiramente liberado é a própria
Fifa,
pois não lhe agrada que o título de campeão do mundo seja disputado de dois em
dois anos, alternando Olimpíada e Copa do Mundo. O futebol foi, nas três últimas
Olimpíadas, longe dos outros, o esporte com mais gente, e já estava resolvido
qu~
acabaria, como esporte olímpico, em Barcelona. Agora, reabriram a questão. Te-
remos Copa do Mundo de dois em dois anos? Ou como vai ficar a coisa?

Jornal do Brasil, 20/09/88

206

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