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Série Clássicos da Saúde Coletiva

Ricardo Bruno Mendes Gonçalves

Saúde, Sociedade e História

Colaboradores:
Naomar de Almeida Filho
José Ricardo Ayres
Everardo Duarte Nunes
Dina Czeresnia
Lilia Blima Schraiber
Semiramis Melani Rocha
Regina Garcia
Organizadores Jairnilson Paim
Carmen Teixeira
José Ricardo Ayres
Liliana Santos
Liliana Santos Isabela C. M. Pinto

HUCITEC
E D I TO R A
Coordenador Nacional da Rede UNIDA
Júlio César Schweickardt Série Clássicos da Saúde Coletiva
Coordenação Editorial
Alcindo Antônio Ferla

Conselho Editorial
Adriane Pires Batiston – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Alcindo Antônio Ferla – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Àngel Martínez-Hernáez – Universitat Rovira i Virgili, Espanha
Angelo Steffani – Universidade de Bolonha, Itália
Ardigó Martino – Universidade de Bolonha, Itália
Berta Paz Lorido – Universitat de lesIlles Balears, Espanha Ricardo Bruno Mendes Gonçalves
Celia Beatriz Iriart – Universidade do Novo México, Estados Unidos da América
Denise Bueno – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
José Ricardo Ayres
Dora Lucia Leidens Correa de Oliveira – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Liliana Santos
Brasil
Emerson Elias Merhy – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Organizadores
Francisca Valda Silva de Oliveira – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Izabella Barison Matos – Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil
João Henrique Lara do Amaral – Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Julio César Schweickardt – Fundação Oswaldo Cruz/Amazonas, Brasil
Laura Camargo Macruz Feuerwerker – Universidade de São Paulo, Brasil
Laura Serrant-Green – University of Wolverhampton, Inglaterra
Leonardo Federico – Universidade de Lanus, Argentina
Lisiane Böer Possa – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Liliana Santos – Universidade Federal da Bahia, Brasil
Luciano Gomes – Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Mara Lisiane dos Santos – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Márcia Regina Cardoso Torres – Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Brasil
Saúde, Sociedade e História
Marco Akerman – Universidade de São Paulo, Brasil
Maria Luiza Jaeger – Associação Brasileira da Rede UNIDA, Brasil
Maria Rocineide Ferreira da Silva – Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Ricardo Burg Ceccim – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Rossana Staevie Baduy – Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Simone Edi Chaves – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Sueli Goi Barrios – Ministério da Saúde – Secretaria Municipal de Saúde de Santa
Maria/RS, Brasil
Túlio Batista Franco – Universidade Federal Fluminense, Brasil
Vanderléia Laodete Pulga – Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil
Vera Lucia Kodjaoglanian – Fundação Oswaldo Cruz/Pantanal, Brasil
Vera Rocha – Associação Brasileira da Rede UNIDA, Brasil 1ª Edição
Porto Alegre/RS, 2016
Rede UNIDA
Comissão Executiva Editorial Diagramação
Janaina Matheus Collar Luciane de Almeida Collar
João Beccon de Almeida Neto Arte da Capa
Projeto gráfica Capa e Miolo Imagem: Angelus Novus. Paul Klee, 1920
Editora Rede UNIDA Acervo José Ricardo
Revisão
Colaboradores:
Naomar de Almeida Filho Denise Maria de Almeida
José Ricardo Ayres
Copyright © 2016 by
Everardo Duarte Nunes
Dina Czeresnia José Ricardo Ayres e
Lilia Blima Schraiber Liliana Santos.
Semiramis Melani Rocha APRESENTAÇÃO
Regina Garcia
Jairnilson Paim
Carmen Teixeira José Ricardo Ayres
Liliana Santos
Isabela C. M. Pinto
Liliana Santos

É com a alegria de trazemos a público uma


DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO-CIP mostra parcial, mas muito significativa, da rica
produção intelectual de Ricardo Bruno Mendes
Gonçalves (1946-1996), um dos “construtores da
Saúde Coletiva”.
Espaço para Ficha Catalográfica
Mestre querido e saudoso, que nos deixou pre-
cocemente mas marcou fortemente o pensamento
e as práticas de toda uma ge-
ração que teve o privilégio de
com ele conviver, Ricardo pode
Bibliotecária responsável:
ser considerado um dos gran-
des intelectuais do campo da
Todos os direitos desta edição reservados à Associação Brasileira Rede UNIDA
Rua São Manoel, nº 498 - CEP 90620-110, Porto Alegre – RS Fone: (51) 3391-1252 Saúde no Brasil e na América
www.redeunida.org.br
Latina. Sua inteligência aguda,
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
sua ampla e profunda erudição e a dedicação de mos em nossos ofícios cotidianos, incitando-nos
corpo e alma a um trabalho teórico de forte senti- a explorar seus potenciais emancipatórios, em
do ético e compromisso político nos deixaram um quaisquer escalas em que se apresentem, talvez
rigoroso e fecundo quadro conceitual, legado que possamos resumir assim a contribuição particular
ainda tem muito a nos dizer e estimular, especial- de Ricardo Bruno a essa tradição acadêmica. É esse
mente nesse presente de incertezas e perplexida- sentido geral que esperamos ter representado no
des que enfrentamos. material que compõe esta coletânea.
Neste ano, em que celebramos o 70º aniver- A escolha e disposição dos textos seleciona-
sário de seu nascimento, “fazer falar de novo” sua dos procurou retratar a trajetória de construção de
produção, mais que uma (justa) homenagem, é seus conceitos, do primeiro trabalho de fôlego, o
uma resposta à necessidade de adensar o debate seu mestrado, nos anos 1970, até suas últimas re-
e a reflexão para ação em um momento em que a flexões, nos anos 1990, buscando privilegiar os ma-
Reforma Sanitária brasileira passa por um balanço teriais de mais difícil acesso. Nesse percurso vamos
crítico e atravessa um cenário de grandes desafios vê-lo partir de uma profunda análise, de inspiração
políticos. marxista, sobre o caráter social do trabalho médi-
Muitos foram os temas trabalhados por Ricar- co até chegar a uma discussão mais ampla acerca
do, seguindo a trilha aberta por uma valorosa gera- das práticas de saúde de modo geral e seus com-
ção, que inclui nomes como Guilherme Rodrigues promissos com a emancipação humana, em deba-
da Silva, Sérgio Arouca, Cecília Donnangelo, que, te especialmente com proposições habermasianas
em contexto ainda mais grave do que o vivido hoje, aplicadas ao campo do planejamento. No caminho,
acharam caminhos para construir uma Saúde mais além de inúmeros e preciosos aportes específicos
justa e solidária em nosso país. Desconstruir a na- em epistemologia, história e sociologia da saúde,
turalização das práticas de saúde, convidando-nos vai tomando forma a sua Teoria do Processo de Tra-
ao estranhamento de seus dogmas conservadores balho em Saúde, que segue alimentando investiga-
e opressores, e apontar a socialidade e historicida- ções teóricas e práticas de inúmeros pesquisadores
de consubstanciadas nas tecnologias que maneja- dentro e fora do Brasil. Com base neste quadro, têm
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
sido explorados, por exemplo, as bases históricas e cardo, desde suas diferentes perspectivas teóricas
características epistemológicas da Epidemiologia, e diversos nichos de atuação prática.
da Clínica, da Enfermagem e dos saberes sanitários Com exceção dos organizadores, discípulos
de modo geral; a profissão médica e as demais pro- diretos e indiretos de Ricardo, que se encarregam
fissões de saúde, assim como os alcances e limites aqui muito mais de testemunhar a história de efei-
do trabalho em equipes; a formação de profissio- tos de seu trabalho que debatê-lo, os demais par-
nais em saúde; a questão da constituição de sujei- ticipantes foram convidados à tarefa nada simples
tos, subjetividades e intersubjetividades nas práti- de tomar para exame crítico esse trabalho, em suas
cas de saúde; a organização da atenção à saúde, diferentes facetas. Seja explicitando e esclarecen-
em particular a atenção primária, e seus alcances e do seus conteúdos mais densos e herméticos, seja
articulações técnicas e política; as necessidades de apreciando o alcance e pertinência atuais de suas
saúde; a gestão e a avaliação de programas e tec- construções, seja problematizando com e para
nologias; a experimentação de modelos de cuidado além das suas proposições alguns dos grandes te-
em serviços de saúde. mas tratados por Ricardo, esses grandes e queridos
Claro que há pontos polêmicos e passíveis de professores e colegas, que tão generosamente ade-
crítica em sua produção. Claro também que os 20 riram a este projeto editorial, vão levar você, leitor
anos que se seguiram à sua morte trouxeram rápi- e leitora deste livro, a participar de um vivo e fasci-
das transformações nos cenários de prática, ponto nante diálogo. Todos eles foram interlocutores mui-
de partida insistentemente destacado por Ricardo to próximos de Ricardo, e pelos quais nutria grande
como a fonte mais legítima de qualquer investimen- respeito e afeto. É, assim, além de tudo, emocio-
to teórico. E não se pode fazer maior homenagem nante vê-los dialogar novamente!
a um pensamento qualquer do que submetê-lo à Mas não devemos reter por mais tempo nossos
crítica fundamentada e ao cotejamento com sua leitores e leitoras. Aqueles que só agora entrarão
coerência interna e externa. Por isso temos aqui em contato com Ricardo Bruno já devem estar com
o privilégio de contar com importantes nomes da a curiosidade aguçada. Os que já conhecem esse
Saúde Coletiva, que vêm dialogar com a obra de Ri- pensamento, certamente estarão também impa-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves
cientes para revisitar esse autor, sempre boa com-
panhia – embora nem sempre fácil de acompanhar
– e também participar do diálogo renovado com
sua obra, facilitado pelos comentadores convida-
dos. Resta-nos, então, apenas desejar uma leitura
produtiva e festejar esses encontros e reencontros
a um modo muito ao gosto do nosso autor, com
poesia: SUMÁRIO
DIANTE DO TEU ROSTO TARDIO,
Único – PREFÁCIO ......................................................................................15
caminhando entre noites que tam- Naomar de Almeida Filho
bém me transformam, algo veio para
ficar que já esteve uma vez conosco,
intocado por pensamentos. 1. RICARDO BRUNO: História, processos sociais e práticas
de saúde.........................................................................................55
Celan P. Atemkristall. Apud Gadamer
HG. Quem sou eu, quem és tu? Rio José Ricardo de C. M. Ayres
de Janeiro: EDUERJ, 2005.
2. MEDICINA E HISTÓRIA: Raízes sociais do trabalho médico
(1979).............................................................................................87

3. TEXTO E CONTEXTO: A Prática médica como trabalho - a


narrativa de RB Mendes Gonçalves .........................................185
Everardo Duarte Nunes

4. REFLEXÃO SOBRE A ARTICULAÇÃO ENTRE A INVESTIGAÇÃO


EPIDEMIOLÓGICA E A PRÁTICA MÉDICA A PROPÓSITO DAS
DOENÇAS CRÔNICAS DEGENERATIVAS (1984).....................207

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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

5. REFLEXÃO A PROPÓSITO DO TEXTO DE RICARDO BRUNO 13. CRISE, CRÍTICA E ESPERANÇA NA CONSTRUÇÃO
MENDES GONÇALVES: 30 anos depois ..............................301 DA COERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO E VIDA: A atua-
Dina Czeresnia lidade da reflexão de Ricardo Bruno Mendes Gonçal-
ves sobre “razão e planejamento” de Edmundo Gal
lo
6. PRÁTICAS DE SAÚDE E TECNOLOGIA: Contribuição para a
reflexão teórica (1988)..............................................................317 Carmen Fontes de Souza Teixeira

14. PRÁTICAS DE SAÚDE E FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS:


7. A TECNOLOGIA NO PENSAMENTO DE RICARDO BRUNO
Os desafios contemporâneos e as contribuições da obra de
MENDES GONÇALVES................................................................419
Ricardo Bruno
Lilia Blima Schraiber
Liliana Santos e Isabela Cardoso de Matos Pinto

8. TRABALHO EM SAÚDE E PESQUISA: Reflexão a propósito


SOBRE OS ORGANIZADORES
das possibilidades e limites da prática de enfermagem (1988)
SOBRE OS COLABORADORES
9. CONTRIBUIÇÕES DE RICARDO BRUNO PARA COMPREEN-
DER A PRÁTICA E A PESQUISA EM ENFERMAGEM
Semiramis Melani de Melo Rocha e Regina Aparecida Garcia de Lima

10. PRÁTICAS DE SAÚDE: Processos de trabalho e necessida-


des (1992)

11. DA TEORIA DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE AOS


MODELOS DE ATENÇÃO
Jairnilson da Silva Paim

12. SERES HUMANOS E PRÁTICAS DE SAÚDE: Comentários


sobre “razão e planejamento” (1995)

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PREFÁCIO

POR UMA EPISTEMOLOGIA BRUNIANA:


Dilemas de um prefácio

Naomar de Almeida Filho

Sou um confesso e reconhecido discípulo de


Ricardo Bruno. Durante quase uma década, com
certa dose de ousadia somente compreensível pela
minha pouca idade na época e pelo contexto po-
lítico de então, pretendi seguir os passos daquele
jovem scholar sutil, rigoroso e relutante; relutante
porque, com fortes doses de ironia e sempre cari-
nhoso, resistia a ser tomado como mestre e mentor
de aspirantes a formuladores de teorias críticas. Em
sua modéstia insistente e quase inflexível, Ricardo
inutilmente tentava esconder seu grande carisma
e sua impressionante capacidade de explicar e ar-
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
gumentar com clareza, tornando fáceis e simples Maria Volonté tornava possível entender como os
questões difíceis e complexas. Quando ministrava fenômenos do mundo histórico se encadeavam,
aulas, fazia conferências ou simplesmente orienta- como os processos naturais e sociais se articulavam
va algum estudante ou colega, Ricardo mostrava-se num todo, como a dialética operava no fluxo das
tão competente e brilhante na construção de cum- ocorrências nos universos possíveis. Acho que isso
plicidades, sinergias e sintonias que todos saíamos ajudou a alimentar minha fascinação pelo nosso
com a certeza da elucidação dos problemas, apesar Bruno, mais ainda ao identificar que Giordano e Ri-
de muitas dessas certezas se dissiparem logo de- cardo compartilhavam poderes bruxos.
pois de escaparmos da esfera de influência ou do Minha iniciação como bruniano se deu em
encantamento do bruxo Bruno. 1984, quando cometi um texto de juventude sobre
Esse talento ou dom de fazer os outros com- aspectos epistemológicos da Epidemiologia, inspi-
preenderem (e se motivarem a estudar) a impla- rado e influenciado pela leitura, na época para mim
cável complexidade dos seres, dos pensamentos radicalmente iluminadora, do ensaio “Reflexão so-
e dos mundos sempre me fascinou desde que co- bre a articulação entre a investigação epidemioló-
nheci um outro Bruno, Giordano, antes de Ricardo gica e a prática médica (a propósito das doenças
(talvez por essa referência renascentista, ao referir- crônicas degenerativas)”, republicado neste vo-
me à sua obra, sempre me senti mais à vontade em lume. Considero esse ensaio uma obra-mestra,
usar os dois prenomes – Ricardo Bruno – em vez um dos textos fundantes da Saúde Coletiva. Não
do solene sobrenome composto: Mendes-Gonçal- somente pioneiro na temática da epistemologia
ves, R.B.). Giordano Bruno tornara-se um dos meus da Saúde em nosso país, mas também uma fonte
heróis intelectuais e políticos depois que assisti à profícua do que, em pouco tempo, constituiria ele-
obra-prima do diretor Giuliano Montaldo (1972), mento diferenciador do que se pode considerar,
expoente do cinema engajado italiano do pós-Maio com justiça, uma escola de Epidemiologia original-
de 1968. O filme havia sido criticado como panfle- mente brasileira. O meu pré-texto, revisado e res-
tário, demagógico ou pedagógico em demasia, po- peitosamente criticado pelo relutante mestre, viria
rém, para mim, a interpretação do excepcional Gian a se tornar embrião de dois pequenos livros meus,
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
intitulados Epidemiologia sem Números (ALMEIDA subsequente, a “medicina social” vai
FILHO, 1989) e A Clínica e a Epidemiologia. (ALMEI- estruturar-se sobretudo a partir das
práticas clínicas, como se viu, fican-
DA FILHO, 1997) No primeiro, tive a honra de rece- do as práticas epidemiológicas em
ber um prefácio gentil, cuidadoso e encorajador do uma posição claramente suplemen-
próprio Ricardo. No segundo, pretendi, sem muita tar. (p.281)
sofisticação nem sutileza, desdobrar uma hipóte- Ao publicar A Clínica e a Epidemiologia em se-
se originalmente formulada por Ricardo Bruno a gunda edição, dediquei-o à memória de Ricardo,
respeito das contradições e complementaridades incluindo o seguinte trecho no prefácio:
entre a prática clínica e a ciência epidemiológica,
apresentada em diversos momentos de sua obra: O primeiro a ler por inteiro A Clínica
e a Epidemiologia foi Ricardo Bru-
A Epidemiologia, se filha da Clínica, no Gonçalves, a quem dedico este
é também sua herdeira, e não pode volume. Lembro-me bem. Depois
estar isenta das mesmas determina- de tremenda correria para apron-
ções. (p.101) tá-lo em tempo para o congresso,
O saber epidemiológico é uma ex- incluindo o trabalho editorial e a
tensão do saber clínico; a prática impressão no Rio, só fui receber os
epidemiologicamente instrumentali- primeiros exemplares em Belo Hori-
zada é uma extensão da prática clíni- zonte, entregues em mãos pelo infa-
ca. (p.103-4) lível Peco. Apressei-me em dar um
exemplar para Ricardo, no primeiro
Houve um tempo, até aproximada-
dia do pré-congresso. No dia seguin-
mente a passagem do século XIX
te, durante o café da manhã, fiquei
para o século XX, em que essa inte-
sinceramente orgulhoso quando ele
gração [dos modelos clínico e epi-
me disse que pretendia apenas fo-
demiológico] se deu por mera jus-
lhear e que terminara por lê-lo intei-
taposição de práticas, sendo nesse
ro. Tinha anotações, havia gostado
período a efetividade das práticas
da mistura de rigor metodológico e
epidemiológicas muito maior do que
estilo despojado, facilitando a dis-
a das práticas clínicas, em relação
cussão de questões complexas, mas
àquelas necessidades; no período
achava que seria mal interpretado
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
pelos maniqueístas de plantão. Por de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves. Entretanto,
isso, gostaria de ter tido a chance de ao constatar que Ricardo não escrevia prefácios
escrever um prefácio como o fizera
para o meu primeiro ensaio, o Epi- normais, assumi o desafio de escolher o caminho
demiologia Sem Números. Combina- mais difícil e buscar elaborar um texto na medida
mos que o faria, caso houvesse uma das escalas brunianas.
segunda edição. Mas Ricardo se foi,
deixando muita saudade e um vazio Inicialmente, pensei em explorar um ponto
imenso na Saúde Coletiva brasileira que, conforme verifiquei ao ler os textos de meus
e latino-americana, obrigando-me,
com tristeza, a escrever este prefá-
companheiros, unifica os comentários sobre os
cio em seu lugar. (ALMEIDA FILHO, textos que compõem esta coletânea-homenagem.
1997, p.7-8) De fato, quase como padrão geral, usamos o ter-
Essas considerações iniciais me colocam numa mo ‘rigor’ para descrever Ricardo Bruno Mendes
situação difícil frente à honrosa convocatória que Gonçalves e sua obra. Mas o que caracteriza um
José Ricardo e Liliana me fizeram. Encontro-me dado autor como rigoroso? Certamente a consis-
num grande dilema: escrever um prefácio “normal” tência, a persistência na delimitação das categorias
ou tentar uma contribuição original de reflexão crí- e dos conceitos, cujos sentidos se mantêm estáveis
tica. ou avançam em argumentos e análises realizadas.
Também rigor quer dizer exaustividade, busca insis-
O que seria um prefácio normal? Após algumas tente do esgotamento de todas as alternativas ana-
considerações biográficas, uma pitada de análise líticas possíveis. Rigor significa ainda detalhismo,
do contexto da obra e uma súmula sobre a temá- no sentido de tratamento cuidadoso, minudente e
tica geral do volume, simplesmente acrescentaria até obsessivo das muitas e diversas nuances exigi-
comentários antecipatórios aos textos da coletâ- das pela abordagem lógico-filosófica de questões
nea, reiterando de modo justo e preciso a análise conceituais. Rigor implica também sistematicidade,
dos autores presentes. Poderia então fazê-lo de significando competência em criar e operar mode-
modo parecido aos introitos de tantas coletâneas los amplos, efetivos e interarticulados para lograr
do tipo desta que nos permite agora reler a obra entendimento de problemas complexos. Finalmen-
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te, o termo ‘rigor’ indica integridade intelectual de conhecimento, demarcada pelo materialismo-his-
um autor, plena fidelidade frente a princípios éticos tórico, pela epistemologia histórica de Canguilhem
e observância de valores filosóficos, políticos e aca- e pela arqueologia foucaultiana.
dêmicos. Comecemos por uma anotação metodológica
Nenhuma dúvida de que nosso homenageado prévia. Como método para identificar na obra bru-
preenche todas as condições de demarcação da niana uma aproximação capaz de apreciar a ciência
rigorosidade, em qualquer das suas modalidades, em sua complexidade, pensei em utilizar ampla-
porém creio que tal constatação pouco acrescenta- mente o recurso à analogia. Nos textos compilados
ria a este esforço, oportuno e delimitado, demons- neste volume, Ricardo Bruno se dispôs a estudar
trativo da importância da obra de Ricardo Bruno conhecimentos operadores do campo da Saúde –
para a construção da Saúde Coletiva brasileira. Medicina, Epidemiologia, Clínica, Tecnologias de
Então, no processo de conceber um prefácio Cuidados, Planejamento em Saúde – como rede de
possível, ao alcance dos meus limites, encontrei conceitos, como normas de conduta, como prática
o foco do presente texto, agora especificado de social e como processo de trabalho. Por analogia,
modo mais claro. A partir da análise da produção autorizada e ilustrada pelo que identificamos la-
selecionada nesta coletânea, proponho fazer uma tente em seus escritos, este passo metodológico se
breve exposição de um conjunto de elementos aplica igualmente às ciências, o que nos permitirá
conceituais explícitos, implícitos e em potência, ca- considerar fatos e feitos retomados como deveres,
pazes de vislumbrar, visibilizar e justificar um pen- saberes e fazeres.
samento filosófico original sobre ciências, conheci- Como linha de base, este ensaio segue o mes-
mentos e saberes. Como hipótese, postulo que tais tre Ricardo e rejeita com ironia aquela “tradição
elementos, formulados a partir de uma abordagem volumosa” de interpretação histórica que reduz
crítica e (mais uma vez!) rigorosa de conceitos de o passado à crônica dos lances de “genialidade”
saúde e correlatos desenvolvidos na obra de Ricar- onde a Medicina “posa sempre de heroína bem-
do Bruno, permitem articular uma teoria geral do comportada”, em incansável luta contra uma natu-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
reza ameaçadora da sobrevivência humana. Para no conceito de ‘doença’ assumiu, numa perspecti-
cumprir esse papel e caber nesse molde mítico, “a va ontológica, intensa naturalização para, com isso,
medicina é retirada de sua condição de trabalho e justificar a expressão “verdade cientificamente pro-
transformada em ciência, e como ciência é desvin- vada”, basilar de uma ideologia vulgar e abusiva,
culada de suas relações com o trabalho para ser si- utilizada para legitimar socialmente proposições
tuada numa terra-de-ninguém de paisagem quase testadas em abordagens científicas da saúde. Com
divina” (p.48). base nesse argumento de crítica à naturalização,
Então, primeiramente, vamos aos fatos. Ricardo rejeita pensar a história do conhecimento
– sobre saúde-enfermidade-cuidado, neste caso –
como um “desenvolvimento linear” ou um “pro-
De fatos, coisas, objetos e dados gressivo desvelamento de um objeto natural anis-
tórico” (p.109).
Nos seus primeiros textos, ao comparar modos
diferenciados de produzir conhecimento sobre saú- Tardiamente em sua obra, Ricardo Bruno nos
de, Ricardo Bruno afirma que a Epidemiologia e a apresenta uma teoria do objeto, focalizando o pro-
Fisiopatologia partem do mesmo “dado de realida- cesso de trabalho em geral (que, usando o método
de”, designado como “fato-doença” (p. 125). Dessa da analogia, aplicamos ao trabalho de pesquisa),
forma, aparentemente postula a ocorrência de ‘fa- no qual estabelece com mais precisão que se trata,
tos’ reais e concretos e, consequentemente, con- ao mesmo tempo, de um “objeto” da natureza e
sidera a possibilidade de existência de um objeto de um objeto “não natural”, portanto, um “objeto
natural, substrato do “objeto de trabalho e de sua humanizado”. Este objeto vive, habita, encontra-se
necessidade (que se expressa enquanto projeto e, e atua na natureza concreta e não se diferencia, se-
modificada, como produto)” que poderá se consti- quer pode ser concebido, fora de suas relações com
tuir em objeto de conhecimento (p.52). a rica complexidade do mundo. Por isso, rigorosa-
mente falando, não é “natural” pois tem que ser
Comenta ainda Ricardo Bruno que o fenômeno delimitado e separado do todo para entrar no pro-
biológico morfofuncional e individual manifestado cesso de trabalho; “vem a ser um objeto somen-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
te quando um sujeito o delimita e desprende” da sujeito, para o qual ela se realiza como objeto. Para
realidade donde se origina e do contexto onde se Ricardo, essa inter-ação inapelavelmente vincula
insere (p.221). subjetividade e objetividade, dado que, “se esse su-
Dessa forma, não é possível conceber uma teo- jeito transformar a si próprio enquanto se reproduz
ria do objeto desvinculada de uma teoria do sujeito às custas de sua metabolização da natureza, ambos
que, com seu projeto, sua teoria, seu olhar e sua tornar-se-ão históricos” (p.?). Porém, a transforma-
ação transformadora desnaturaliza o objeto natu- ção do ser humano encontra limites também nas
ral. A noção de fazer ciência como ação de coletar possibilidades de produzir para si novos “objetos
dados e daí produzir conhecimentos pode ser útil naturais”, apesar da historicidade dos sujeitos e das
para indicar aqueles momentos em que as teorias coisas ser necessariamente aberta, porque a natu-
são contrastadas com a realidade, através de um reza permite produzir infinitos fatos, suporta infini-
trabalho planejado e executado de produção de da- tos sujeitos e acolhe infinitos projetos.
dos destinados a se tornarem evidências e indícios. Ao analisar o trabalho médico em outros mo-
“Obter o dado – na verdade, mais rigorosamente, mentos importantes de sua obra, Ricardo indica
produzi-lo – eis o conteúdo mais essencial do ter- que o objeto corpo (e, por analogia, qualquer dado
mo ‘pesquisa’, quando utilizado neste contexto” fenomênico que se constitua como foco do traba-
(IDEM). Assim, o procedimento complementar de lho de pesquisa) não pode resultar do apagamen-
analisar sistematicamente o dado para, a partir de to das conexões naturais de um objeto de conhe-
sua transformação e ressignificação, torná-lo em cimento, síntese de múltiplas determinações. Na
baseline imprescindível para obter informação e medida em que nada é mais “natural” que um cor-
daí produzir conhecimento científico faz parte do po em sua existência social, tomar como fonte de
mesmo conjunto significativo. conhecimento absoluto uma Ciência una e unívoca
Nessa perspectiva, a objetividade potencial da aplicada sobre um corpo biológico e por definição
natureza não se define pela existência concreta da material, tomando como fundamentação ideias tão
“coisa-em-si”, mas decorre da presença ativa de um metafísicas como “coisa em si”, verdades factuais e,
podemos acrescentar, evidências científicas, “colo-
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ca sob suspeição não a ciência da Patologia, mas a mental na “coisa em si”, enquanto ente dotado de
ideologia que a usa, distorcendo-a, como justifica- legalidade própria em “esferas autônomas de reali-
ção.” (p.158-9). dade”, incluindo a esfera do labor científico (p.140).
Para Ricardo Bruno, seguindo Canguilhem, o Porém, o dilema dualista concernente à distinção
conceito constitui uma apropriação intelectual uni- entre objetividade e subjetividade é, desse ponto
lateral e parcial do real. Na medida em que concei- de vista, um falso dilema. As soluções propostas
tos resultam de condensações e segmentações, o para superá-lo têm partido da aceitação de ciência
real “reduzido à sua conceituação também se torna como conhecimento das “coisas em si”, divergin-
fragmentário, coleção de “coisas em si” justapos- do apenas em duas vertentes: considerar objetos
tas umas às outras” (p.156). Apesar de sua reflexão como coisas, isto é, radicalmente como existentes e
ter como referência a historicidade dos processos não produzidos; ou aceitá-las relativamente, como
de trabalho, que criam objetos para necessidades produto de um processo de elaboração racional.
humanas, ele admite que a ciência resulta do “es- Comenta Ricardo que,
quadrinhamento da natureza” e que no geral com- ao conceber a Ciência (o conheci-
põe “a base ontológica mais profunda para dife- mento científico) como referida a
renciação histórica da razão humana” (p.222). Em objetos rigidamente segmentados
uns dos outros e do sujeito que os
paralelo, o processo de delimitação e determina- conhece procede-se como para fazê
ção de um objeto compreende supostos definidos, -lo esquivar à descoberta da Verda-
conteúdos objetivados, conhecimento acumulado, de natural e definitiva das coisas. As-
sim sendo, atribui-se ao trabalho de
conceitos demarcados e modelos construídos, num produzir conhecimentos, a partir das
processo que ele denomina de objetualização. características supostas como rela-
tivamente autônomas que o gover-
A partir de uma concepção dialética da relação nam – afinal a própria Ciência seria
entre objetividade e subjetividade, posiciona-se uma “coisa em si” – o papel principal
contra os “fantasmas do dualismo epistemológico“, na gênese daquilo que aparece com
única vertente onde faria sentido a crença funda- o desvelamento das potências pro-
dutivas da natureza (IDEM).
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Nesse peculiar percurso teórico, Ricardo Bruno tes no essencialismo político-filosófico próprio do
desenvolve uma abordagem crítica das tecnologias materialismo-histórico. Desdobrando e justifican-
na formação social capitalista, refutando perspecti- do um repertório de categorias essenciais, já num
vas essencialistas que consideram os objetos ditos momento de autoavaliação do seu legado, declara
tecnológico como “coisas em si”, aos quais se pode que foi assim “que me aproximei, desigualmente,
atribuir “uma realidade dotada em si mesma de das outras categorias igualmente fundamentais, a
sentido essencial” (p.324). Tecnologia, nessa pers- saber, a socialidade, a historicidade, a consciência,
pectiva, implica potências produtivas descobertas a universalidade e a liberdade, em meus próprios
e liberadas pela ciência (que, nesse caso, reconhe- trabalhos teóricos e em minha prática de educar”
cida como instituição da cultura ocidental, devesse (p.367).
ser escrita com C maiúsculo), alienada de sua re- A partir dessa linha de base decorrente da des-
lação com a historicidade, nomeadamente o tra- construção do dualismo fundante das epistemolo-
balho, a produção, a sociedade e a própria história gias herdadas, a obra de Ricardo explora as possibi-
humana (p.130-1). lidades de incorporação teórica de uma dimensão
Apesar de demonstrar forte rejeição ao essen- normativa da ciência e de uma dimensão praxioló-
cialismo em diferentes momentos da sua obra, Ri- gica do conhecimento.
cardo Bruno não consegue evitar um deslizamen-
to contraditório no que se refere a essa questão
de princípio epistemológico. De fato, na primeira Dos deveres: normatividade
etapa de sua construção conceitual, considera de
modo axiomático a história como “essência da hu- Objetos peculiares (fenômenos, eventos, fatos,
manidade” (p.149); mais tarde, reconhece “o tra- sistemas, processos etc.), construídos mediante
balho como categoria fundamental da essência hu- um processo histórico de objetualização, passam
mana” (p.367). Enfim, de muitas maneiras, Ricardo a ser considerados como conhecimento científico
destaca o trabalho (ou a produção) e a história (da somente quando, validados por conjuntos diversi-
luta de classes) como elementos centrais, presen- ficados de normas, regulações e deveres, recebem
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
algum grau de reconhecimento formal da rede ins- na constituição da ciência médica como ideologia
titucional (composta por lugares, órgãos, agentes, científica em O Normal e o Patológico. (CANGUI-
marcos simbólicos, ritos, registros etc.) das ciências. LHEM, 1978)
Para indicar este segundo plano de constituição de O recurso a Canguilhem ajuda Ricardo Bruno
uma possível epistemologia bruniana, o plano da a delinear uma concepção normativa da ciência,
normatividade, escolhi o termo ‘deveres’ como re- fundada nas categorias de ‘conceito’ e de ‘teoria’.
ferência sintética de uma dimensão axiomática da Vejamos cada uma dessas categorias na sequência.
ciência como sistema de explicações que “deve”
obedecer a lógicas compartilhadas, “deve” explici- Canguilhem afirma que “teoria e conceito são
tar postulados e “deve” cumprir regras de valida- coisas diferentes” e define o conceito como “um
ção. Nesse sentido, a institucionalidade da Ciência nome dotado de um sentido [que] define a raciona-
(com C maiúsculo e no singular, reitero, indicando-a lidade do discurso científico” (p.22-24). O conceito
como instituição social-histórica) depende da ins- evidencia relações permanentemente revistas e re-
trumentalização de suas práticas, mediante movi- validadas entre os produtores da ciência e os ob-
mentos e protocolos comumente designados como jetos de sua prática (p.28-9). A mera aplicação do
método ou metodologia, orientadas pela normati- conceito a problemas concretos impõe o reconhe-
vidade na constituição de seus objetos e definidas cimento de uma legalidade (no sentido associado
pela historicidade de seus sujeitos. ao termo ‘lei’ em filosofia da ciência – e nisso Ricar-
do aproxima-se da analogia jurídica de ciência de
O exame das condições de possibilidade des- Juan Samaja) intersubjetivamente definida no real
sas dimensões – normatividade do conhecimento e e, portanto, articuladora de um objeto de conheci-
historicidade da ciência – constitui o segundo eixo mento original (p.166). Como ilustração, considerar
conceitual da epistemologia de Ricardo Bruno. Para a patologia na condição de tratamento positivo de
primeiro compreender a dimensão da normativi- fenômenos reais permite identificar seu objeto (de
dade, Ricardo inicialmente recorre a Georges Can- conhecimento) como um conjunto de ritmos e re-
guilhem, particularmente sua análise do conceito gularidades permanentes (p.27).
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Em vários dos seus textos, Ricardo reforça uma ricamente geradas e referidas a ob-
concepção normativa de teoria, originária de Can- jetivações, todas as esferas da prá-
xis relacionam-se de algum modo
guilhem, traduzida ao referencial materialista-his- com as antinomias nelas inscritas
tórico atualizado por Agnes Heller (1998), segundo de modo positivo, isto é: as neces-
o qual o sujeito da mudança histórica (incluindo a sidades radicais são necessidades
de objetos reais, estão referidas às
produção do conhecimento socialmente relevan- “necessidades existenciais”, à cultu-
te) compreende uma “práxis coletiva que assume ra, ao descanso, ao relacionamento
como dever a superação das condições objetivas interpessoal afetivo e sexual, à edu-
que bloqueiam a satisfação das necessidades ra- cação, à saúde etc. (p.287).
dicais” (p.287). O conceito de “dever coletivo” do A utilidade da teoria, ainda segundo a releitura
sujeito histórico na realização dos processos de de Canguilhem por Ricardo, compreende constru-
produção de conhecimento permite superar a frag- ção de saberes, “mesmo que apenas em consen-
mentação das demandas sociais em inúmeras ne- so provisório, [sobre] o que somos, como somos,
cessidades particulares, reunidas pela pesquisa em o que podemos ser, como podemos ser, o que de-
um conjunto orientado para a formação social, o vemos ser, como devemos vir a ser, e então nos
que define a própria teoria como necessidade radi- disponhamos às relações discursivas e práticas”.
cal. Conforme comenta Ricardo: Entretanto, a teoria não pode servir para fixar es-
[...] como no capitalismo se estabe-
sas relações pois, “assim fazendo, estaria negando
lecem mediações entre a produção a pluralidade e a si mesma, pois sem pluralidade a
da teoria e sua utilização na práxis, razão comunicativa é um absurdo lógico” (p.307).
entretanto, a teoria vê-se obrigada No plano formal, a ciência enfrenta, portanto, uma
a “seguir a pista” das necessida-
des humanas concretas, e a só sa- impossibilidade original: a ela não cabe ditar nor-
ber ex-post sua qualidade de teoria mas à vida, na medida em que a vida se apresenta
verdadeiramente objetiva. Como como uma ação polarizada de conflito do ser hu-
as necessidades radicais não são mano com o ambiente, fazendo-o sentir-se ou não
fantasmagóricas, mas necessidades
conscientes, individuais, socio-histo- normal conforme se sinta ou não em posição nor-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
mativa. Ricardo insiste, porém, que a ciência serve duas faces de uma mesma moeda:
para realizar deveres que decorrem desse dilema: não é possível teorizar senão a partir
da experiência relativamente bruta,
normalizar ou naturalizar. da vida e de seus obstáculos, inicial-
A partir dessa linha de base, a epistemologia mente reconhecidos intuitivamente
e ideologicamente sob a forma apa-
bruniana, em sua vertente ontológica, toma o con- rente de “fatos”; inversamente, só é
ceito de ‘ciência’ como sinônimo de ‘investigação possível produzir “fatos” científicos
científica’, e de ‘pesquisa’ como processo produtivo (dados) olhando para a realidade
de dados e teorias. Trata-se aqui de um momento com um ou outro viés fornecido por
uma ou outra Teoria (IDEM).
geral da produção do conhecimento que implica
articulação de dois momentos, nas palavras de Ri- O recurso a Canguilhem sem dúvida ainda per-
cardo: mite justificar a postulação axiomática, quase tau-
tológica, de que a investigação científica tem por
[...] um primeiro, mais abstrato, em objetivo produzir conhecimento científico. Mesmo
que armada de toda a experiência
e de toda a evidência acumulada e quando se trata de ciência “aplicada”, nos casos
apostando em sua capacidade de em que o conhecimento se refere a um conjunto
melhorar a satisfatoriedade das ex- de fatos ou a um fato singular, o trabalho de pes-
plicações disponíveis sobre qualquer
aspecto, menos ou mais amplo, da
quisa deve ser pensado como utilização da ciência.
realidade, a Razão se lança sobre o Esses movimentos deslocam o problema para uma
futuro e o desconhecido e constrói a questão ontológica: de que é mesmo que se trata
Teoria; um segundo momento, me- quando se fala de ‘ciência’? Ao tomar ciência como
nos abstrato, em que a partir de uma
certa Teoria, a Razão busca recolher um complexo significativo de eventos e efeitos si-
argumentos, sob a forma de evidên- multâneos no plano da realidade social e da cons-
cias, para falsear ou para confirmar trução ideológica em determinado campo, a noção
aquela mesma Teoria. Chamou-se de “pesquisa” equivale ao trabalho de investigação
esses dois aspectos de “momentos”
para indicar que só têm existência científica, assumido como “componente ideológi-
concreta juntos, como se fossem co fundamental das representações que se fazem
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
os agentes da ciência sobre si mesmos, bem como Subordinada dessa maneira à práti-
das representações sociais mais gerais de que são ca, para cada momento histórico de
existência desta, que corresponde a
objeto” (p. ?). Sobre esse ponto, comenta ainda Ri- uma forma de organização social (ou
cardo: a uma etapa de realização histórica
de uma forma de organização social)
Expressões extremamente duvido- à ciência correspondeu um momen-
sas e precisamente do ponto de vis- to histórico em sua própria estrutu-
ta científico ilustram bem esse uni- ração. Em outros termos, a estrutura
verso ideologicamente estruturado do conhecimento, os objetos para
em que ‘ciência’ e ‘pesquisa’ entram ele apontados a conhecer, os mé-
como componente de uma visão ao todos e técnicas de investigação se
mesmo tempo justificativa e norma- conjugam de formas históricas mais
tizadora: “...foi provado cientifica- ou menos individualizáveis, e que
mente que...”, “...tal coisa não tem correspondem a outras tantas for-
base científica, e portanto..., etc.” mas históricas assumidas pela práti-
(IDEM). ca (p. IDEM).
No foco do interesse de análise de Ricardo, O sujeito da ciência é, portanto, um sujei-
trata-se aqui particularmente de um corpo de co- to coletivo operador de um conjunto explícito e
nhecimentos científicos referentes ao corpo hu- consciente de normas e deveres perante múltiplas
mano normal (anatomia, fisiologia e disciplinas instâncias de constituição de valores históricos ob-
correlatas) e patológico (patologia, microbiologia e jetivos. Trata-se de compromissos frente ao arca-
ramificações) como resposta às necessidades e aos bouço lógico-teórico ao qual se vincula como sujei-
problemas formulados por uma prática médica que to a/de uma ideologia científica. Do mesmo modo,
procurava responder a demandas reais e a matrizes compreende regras referentes à normatividade das
ideológicas de um dado contexto histórico. Confor- necessidades e demandas a que responde, iden-
me Ricardo, tificáveis em princípio por referência à estrutura
capitalista de reprodução da sociedade. Tais deve-
res, normas e contingenciamentos corresponden-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
tes pautam processos de trabalho que operam por cada por uma prática social que procura responder
mediações entre critérios gerais de cientificidade a situações e problemas concretos. Em sua traje-
e formas particulares e individuais de objetivação, tória histórica, a prática científica sistematiza as
“sempre se considerando que só esse último nível questões colocadas pelas teorias explicativas, sem-
corresponde ao concreto, em relação ao qual o ‘ge- pre limitadas pelas racionalidades vigentes, o que
ral’, se fixado em oposição a ele, não será mais do possibilita a instrumentalização de novas técnicas
que uma abstração não razoável”. de atuação, mas não permite desconhecer a “na-
tureza peculiar da prática, dada por sua condição
Enquanto abstração razoável, contu-
do, tais generalidades servem, como de trabalho humano imbricado em uma estrutura
se afirmou ao início deste texto, de social e pela natureza particularizada de seu obje-
começos de caminhos. Ou seja, pre- to” (p. ?).
sume-se que o movimento seja con-
tinuado em direção ao concreto, na
descoberta das formas particulares
(os sujeitos, os instrumentos, os ob- Dos fazeres: ciência como prática social
jetos, suas representações simbóli-
cas e interacionais, sua configuração Ricardo Bruno afirma como “suposto heurísti-
sob a forma de normatividade e de co” de sua obra que “a ciência constitui, a um só
legalidades jurídicas etc.) assumidas
por cada individualidade concreta,
tempo e no mesmo movimento, uma prática técni-
em si mesma e em suas relações de ca e uma prática social (portanto histórica)” (p.148)
conjunto (p.247). Desse modo e com esse foco, vai além de Cangui-
Para estruturar com rigor e precisão uma epis- lhem e recorre a Michel Foucault, especialmente
temologia subsidiária de da epistemologia históri- em O Nascimento da Clínica (Foucault, 1980), por
ca de base canguilhemiana, Ricardo formula uma ele considerado “o trabalho mais esclarecedor e es-
hipótese central: o desenvolvimento histórico de timulante da área da Medicina Social” (p.?). Como
um corpo de conhecimentos abstratos de natureza estratégia metodológica, propõe-se a revelar os as-
científica ocorre como resposta à necessidade colo- pectos fundamentais das ciências (no plural) como
práxis histórica e, ao fazê-lo, busca delimitar a di-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
mensão da historicidade na constituição dos sabe- ao “pesquisador-trabalhador”, agente do processo
res científicos como processo sistemático e organi- de produção científica. Nesse registro semântico
zado de fazeres. preciso, a elaboração de teorias sociais da saúde,
Para incorporar a dimensão central da histo- da doença e da ciência não se restringem a instru-
ricidade das ciências, em movimento analógico mentalizar as respectivas práticas para intervir so-
consciente, Ricardo Bruno propõe uma equivalên- bre o plano social mas, de fato, trazem para dentro
cia entre medicina e ciência como modalidades da rede institucional científica as complexas deter-
simétricas de uma “prática político-ideológica” minações sociais e culturais dos processos de pro-
característica da modernidade. Nessa formulação dução social de saberes (p.103).
específica, o trabalho de pesquisa ou ‘investigação Afirma Ricardo que “o trabalho social humano
científica’ tendencialmente não se diferencia de é inconcebível separado da investigação cientifica,
outras atividades que compõem a produção social quer sob sua forma já dividida e desenvolvida, quer
em geral nas sociedades complexas do mundo con- sob sua forma primitiva, ainda interna ao proces-
temporâneo, identificadas como ilustração da so- so de trabalho” (p.200). Dessa forma, a divisão de
ciedade do conhecimento (p.183-4). trabalho tende a gerar graus de autonomia relati-
Inicialmente, no ensaio intitulado “Práticas va entre as funções de investigação e as funções
de saúde: processos de trabalho e necessidades” propriamente produtivas nos processos de aten-
(1992), Ricardo Bruno avança na concepção da ciên- dimento de necessidades. Numa perspectiva mais
cia como trabalho, articulado a processos produti- ampla da prática científica, no processo de trabalho
vos peculiares dentro de um modo de produção de dos cientistas, trabalhadores coletivos que produ-
conhecimentos e saberes. Numa perspectiva prag- zem teorias, conceitos, métodos, conhecimentos,
matista, assumindo ‘pesquisa’ como equivalente ideologias e tecnologias, tanto na ciência quanto
de “prática de investigação científica”, os termos na saúde, associam-se de variadas formas práticas
‘pesquisador’ e ‘cientista’ seriam intercambiáveis, profissionais à prática da pesquisa, simultaneamen-
ao menos no discurso social comum, por referência te produzindo serviços e conhecimento.

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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Desde o final do século XVIII, etapa decisiva ou mesmo atribuída a outros. É ini-
de desenvolvimento histórico da ciência moderna, cialmente o próprio executor do tra-
balho que conhece as características
ocorreu superposição das funções de trabalho e dos objetos sobre os quais atua e
de investigação no mesmo sujeito social, dos en- com os quais atua, mas justamente
genheiros militares e boticários-alquimistas aos a possibilidade de separar o pensar
e o fazer no trabalho é a base para
primeiros médicos. Exercendo essa dupla compe- o surgimento gradativo de uma divi-
tência, dividido em seu tempo de trabalho, o “tra- são de trabalho mais radical em que
balhador-cientista foi construindo seu objeto de pensar e fazer se dividem entre tra-
conhecimento e ao mesmo tempo conhecendo balhadores diferentes (p.198).
seu objeto de trabalho” (p.228). No caso dos en- Para Ricardo, a prática de pesquisa não consti-
genheiros, desenvolveram-se conhecimentos físi- tui um “caso particular” da teoria, dado que não se
co-químicos e aplicações militares da mineralogia, constrói o objeto do conhecimento a partir de uma
da metalurgia e da balística. No caso dos clínicos fórmula geral na qual “casos particulares” seriam
naturalistas, criaram-se as ciências que embasam enquadrados (p.149-30). A prática de pesquisa in-
os procedimentos singulares das artes médicas da tegrada na prática profissional indica “um momen-
semioprática e da terapêutica. to parcial do processo mais geral de conhecer, des-
Durante muitas épocas históricas o
crever e explicar a realidade em seus fragmentos
conhecer não esteve separado do ou na sua totalidade” (p. ?), mediante um proces-
ato imediato do trabalho, pois é im- so de trabalho peculiar sob uma forma particular
possível trabalhar sem conhecer; o dada. Trata-se de um modo de conhecer diverso
que especifica o trabalho humano
em contraste com o trabalho animal, da investigação científica convencional, orientada
diferenciando-os de modo radical, é exclusiva ou predominantemente por uma teoria
exatamente o fato de que o homem geral (ou unificada) de cada campo científico, sob
é capaz de separar o conhecer do a forma de uma grande narrativa. Nesse caso, além
fazer, estando no conhecer a antevi-
são de que ele quer fazer, cuja exe- de “pequenas teorias” que permitem organizar
cução pode ser protraída no tempo evidências significativas, importa mais a pesquisa
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

aplicada como ferramenta para atuação imediata. Trata-se de projeto tão amplo e ambicioso que,
Dessa maneira, o conhecimento resultante mostra- na prática, implica formular uma teoria geral do
se imediatamente instrumental, tornando-se real- conhecimento, articulada a uma teoria restrita da
mente um instrumento de trabalho, ou melhor, um tecnologia como vetor axial do modo de produção
peculiar meio de produção. em geral. Do ponto de vista metodológico, Ricar-
do pretende explicitar uma relação dialética entre
marcos teóricos vinculados a perspectivas distintas,
Pauta para uma epistemologia bruniana em que o método representa a expressão de um
dos projetos políticos possíveis, vinculando objeto
O projeto teórico identificado neste conjun- e sujeito do conhecimento numa mesma totaliza-
to de reflexões se anuncia, desde o início, como ção dotada de sentido. O próprio Ricardo adverte
promessa consistente e rigorosa que se desdobra que esta vinculação se dá “não formalmente, mas
em um vigoroso programa de trabalho intelectual, no movimento histórico, na produção do conheci-
implicando uma pauta política capaz de, bem re- mento enquanto integrante do movimento históri-
solvida, superar ou evitar dilemas de uma eventual co” (p. ?).
epistemologia bruniana. Tal pauta se concretiza nas
seguintes metas/ações: Os textos de Ricardo Bruno e os valiosos co-
mentários de seus discípulos (dentre os quais me
a) Combater qualquer visão imobilista da ciên-
cia, incluo) compilados nesta coletânea sem dúvida nos
permitirão refletir mais amplamente e de modo
b) Desmistificar a noção ideológica de que a
ciência existe para trazer respostas necessárias mais profundo sobre as ciências e suas formações,
para o futuro da humanidade, e sobre as transformações no mundo e na socie-
dade que elas propiciam. Passeando pelos textos
c) Retomar a própria ciência não como fato,
dado pronto, mas como problemas em aberto, desta coletânea, busquei identificar uma matriz
epistemológica própria nesse esboço inacabado de
d) Reabrir e reconstituir o espaço da ação políti-
ca através da ciência (p. 192). um ambicioso modelo teórico sobre saúde-doen-
ça-cuidado e, reflexivamente, sobre as ciências da
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
saúde. Assim, ao reunir indícios e fragmentos dis- improvável: a necessidade de emancipação de to-
persos, vi elementos da epistemologia histórica de dos os seres humanos” (p. ?).
Canguilhem e da arqueologia foucaultiana, orienta- Nas palavras de Ricardo:
dos, articulados e de certa forma organizados pelo
materialismo-histórico, tomado como marco refe- [...] embora fosse quase intuitivo re-
conhecer nas categorias utilizadas e
rencial prioritário. Não obstante, desde o início de no seu modo de emprego que este
seu esforço de construção teórica, com clareza, ri- estudo se inspira no materialismo
gor e consciência analítica, Ricardo problematiza o histórico, não é propósito do autor
próprio marxismo, considerado por ele como “fre- manter nenhuma fidelidade doutri-
nária de caráter dogmático a qual-
quentemente impotente para tematizar e trabalhar quer versão cristalizada de interpre-
aspectos do real que se impõem como relevantes” tação da realidade, de tal modo que
(p.114). essa classificação carece de maior
importância. O que realmente deve
Nesse percurso, Ricardo Bruno rejeita soluções ser esclarecido diz respeito às re-
fáceis e explicações simplificadoras de abordagens lações entre um trabalho teórico
que denunciam evidentes injustiças inerentes às como este e a explicação de reali-
dades concretas e a gênese de pro-
sociedades capitalistas, “substituindo uma abor- postas transformadoras, no contexto
dagem científica ideologicamente comprometida dessas realidades (p.129).
por uma ideologia cientificamente revestida” (p. ?). Em suma, sempre tomando a problemática
Não propõe, contudo, adotar qualquer relativismo saúde-enfermidade-cuidado como marco de refe-
histórico radical, dado que a ciência “não pode fi- rência, a epistemologia bruniana tem como ponto
xar-se em nenhuma forma clássica de utopia, como de partida uma teoria do objeto como produto re-
o comunismo, por exemplo, mas deve permanecer sultante de um processo de objetualização próprio
rigorosamente aberta à pluralidade” (p.308). Isso ao campo científico. Daí, articula uma abordagem
não significa abdicar de um projeto político explí- crítica das tecnologias orientadas pela ciência, to-
cito, porque a produção de conhecimento significa- mando como base os conceitos de historicidade e
tivo precisa “fixar-se sobre um pilar extremamente
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de trabalho. Nesse patamar, mesmo se autodecla- por uma ontologia realista e um relativismo epis-
rando parte de uma perspectiva filosófica anti-es- têmico, o que permitiria o recurso a um pluralismo
sencialista, numa refutação liminar de qualquer metodológico ampliado.
versão do empirismo clássico, mesmo aquelas ins- Na perspectiva dessa epistemologia, mesmo
piradas no materialismo histórico, a epistemologia que formulada apenas parcialmente, a ciência com-
de Ricardo Bruno parece ainda aderir a uma con- preende um complexo processo social-histórico,
cepção substancialista da realidade, referindo-se protagonizado por trabalhadores, criadores e agen-
a elementos materiais e imateriais como parte de tes atuantes em uma rede institucional própria,
uma matriz natural, de uma essência humana e de mediante condições materiais, determinações so-
uma teleologia histórica. ciais e instâncias político-ideológicas particulares.
Ao analisar modelos explicativos na saúde, Ri- Rigorosamente, trata-se de um modo de produção
cardo Bruno aproveita para discutir a natureza do de conhecimento sobre os processos de produção
processo de produção da ciência: trata-se de um dos fenômenos, eventos e processos na natureza e
processo de trabalho que tem como produto teo- na sociedade, a partir da exploração dinâmica dos
rias científicas, na forma de uma expressão articu- recursos cognitivos e tecnológicos disponíveis aos
lada de discursos sistematizados sobre conceitos, cientistas de uma dada época. Nesta visão, os meios
modelos de produção de dados, modos de inter- de produção do conhecimento constituem recursos
pretação, além de pautas tecnológicas correlatas e que a ciência pode empregar enquanto opera seu
seus protocolos de aplicação. Por sua vez, os dis- trabalho de conhecimento para a transformação do
cursos científicos e seus respectivos campos con- mundo e da sociedade.
ceituais se desenvolvem como uma contínua e in- Espero que estas anotações possam contri-
cessante extensão metafórica (ou metonímica) na buir para destacar, ainda que de modo preliminar
construção dos conceitos, mediante processos e ci- e superficial, os principais eixos de um programa
clos de objetualização e teorização. Nessa perspec- filosófico-teórico-metodológico-político em cons-
tiva, uma epistemologia bruniana se caracterizaria trução, urdido em torno de feitos e fatos, normas
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

e devires, fazeres e saberes. Registro ainda – para Referências


posterior desenvolvimento em momento futuro –
que os elementos epistemológicos do pensamento ALMEIDA FILHO, N. Epidemiologia sem números.
de Ricardo Bruno se mostram, em muitos pontos, Rio de Janeiro: Campus, 1989.
convergentes e antecipatórios dos estudos socio ______. A Clínica e a Epidemiologia. 2. ed. Salva-
-antropológicos dos lugares e olhares da ciência dor/Rio de Janeiro: APCE/Abrasco, 1997.
(LATOUR, 2001) que, mais recentemente, vieram a
compor uma abordagem inovadora e radicalmen- CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de
te crítica das ciências e tecnologias. Doutra parte, Janeiro: Forense Universitária, 1978.
esse esboço de epistemologia, mesmo sem decla- FOUCAULT, M. O nascimento da Clínica. Rio de
ração explícita do seu autor, permite a visão de um Janeiro: Forense Universitária, 1980.
mundo dinâmico, composto por sistemas abertos,
totalizantes, relativamente interdependentes, do- HELLER, A. Teoria de las necesidades en Marx.
tados de complexidade, não-antropocêntricos, Barcelona: Península, 1998.
ecologicamente sensíveis. Enfim, o principal legado
LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaios
de Ricardo Bruno para uma epistemologia do ma-
sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru:
terialismo-histórico consiste no reconhecimento
EDUSC, 2001.
da ciência como peculiar modo de produção de co-
nhecimento e tecnologia, herança do movimento MENDES-GONÇALVES, R.B. Práticas de saúde:
histórico de expansão pós-industrial do modo de processos de trabalho e necessidades. São Paulo:
produção capitalista, principal plataforma político CEFOR, 1992. (Cadernos CEFOR – Texto 1).
-ideológica das formações sociais da modernidade
e matriz cultural hegemônica da sociedade globali- MONTALDO, G. Giordano Bruno. Filme drama/fic-
zada, nesta contemporaneidade tão rica e comple- ção histórica. (França/Itália) 1973.
xa quanto fluida e incerta.

______________________________ _______________________________
52 53
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves
SAMAJA, J. Epistemología y metodología: elemen-
tos para una teoría de la investigación científica).
Buenos Aires: Editorial EUDEBA, 1993.

1. RICARDO BRUNO: História, proces-


sos sociais e práticas de saúde1
José Ricardo Ayres

Angelus Novus

Quando Paul Klee (1879-1940) criou o seu An-


gelus Novus, em 1920, certamente não poderia
imaginar que essa imagem se tornaria mundial-
mente conhecida como símbolo da história. Essa
identidade, que imortalizaria o desenho como o
“Anjo da História”, decorreu do fascínio que a obra
produziu em Walter Benjamin (1892-1940) e da
interpretação que o filósofo e escritor alemão da-
ria a ela nas suas “Teses sobre o Conceito de His-
1.
Texto originalmente publicado como Ayres, J. R. C. M. Ricardo Bruno: his-
tória, processos sociais e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20,
n.3, p.905-912, 2015.
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54
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
tória”, redigidas 20 anos depois. (BENJAMIN, 1987, sível para nós. Embora suas asas estejam paralisa-
p.222-232) Esse profundo pensador leu nos olhos das pela força do vento, elas estão assim mesmo
escancarados, na boca dilatada e nas asas abertas porque opõem resistência ao vento; o anjo não se
e imobilizadas do Anjo o horror de um progredir in- deixa levar dando as costas para o passado. O Anjo
cessante e implacável, que, como um vento forte caminha para o futuro à medida mesma que vai
que sopra desde o passado, empurra-o, de costas experimentando a força do passado em suas asas.
para o futuro, fazendo-o testemunhar a barbárie Como anjo, ele é mensageiro, ele encarna a men-
que se acumula e impedindo-o de resgatar aqueles sagem. E não há como não ver nas feições quase
que vão sucumbindo sob seus destroços. pueris do Anjo de Klee/Benjamin um frescor de
Não posso deixar de me remeter a essa forte renovação, uma esperança de superar a barbárie,
imagem de Klee e sua inspiradora interpretação sem dar as costas à história, ou exatamente por não
por Benjamin no momento em que revisito a obra dar as costas à história.
de Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, ou simples- Há, assim, um compromisso com o Bem no
mente Ricardo Bruno, como era conhecido na Saú- Anjo da História. Mas um Bem que não é uma ideia
de Coletiva brasileira. Esta associação decorre me- abstrata, nem uma vivência individual, e sim uma
nos de lastros conceituais da tradição intelectual construção contrafática, resistente ao mal que se
de Benjamin na produção de Ricardo Bruno que de materializa no sofrimento do outro, no padeci-
uma vinculação estética e ética. mento das pessoas de carne e osso atingidas pelas
Na contemplação da imagem do Anjo, ao con- violências e negligências de ações concretas acu-
trário do que se poderia supor em um primeiro mo- muladas na e pela história. O que nos une, com a
mento, experimenta-se um sentimento que não é mediação do Anjo, na preocupação em resgatar es-
o do horror imobilista frente à visão da barbárie, sas pessoas dos destroços da barbárie, não é outra
muito menos o da indiferença. Não é mero deta- coisa que a comunidade de origem e destino que
lhe o fato de ser um anjo aquele que nos revela a nos vincula a elas como humanos, que nos identifi-
história. O Anjo encarna a história, ele a torna vi- ca como gênero humano, de onde vem a esperança
de superação do mal.
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Eis aqui as afinidades com a contribuição de ral, mas, ao contrário, que sejam um estímulo a que
Ricardo Bruno à construção do campo da Saúde novas leituras e releituras venham imprimir reno-
Coletiva no Brasil. De um lado, por seu esforço de vadas potências ao diálogo a que não nos cessa de
trazer a história, em sua materialidade radical, para convidar a poderosa construção intelectual desse
dentro do pensamento social em saúde. De outro saudoso mestre.
lado, sua determinação de fazê-lo sem nunca per-
der de vista o sentido ético desse resgate histórico
e da práxis científica de modo geral. Historicidade, Breves notas biográficas e bibliográficas
materialismo, saúde como valor concreto para o
gênero humano, a esperança como virtude a ser Ricardo Bruno nasceu em 2 de agosto de 1946,
perseguida na práxis científica da Saúde Coletiva: na cidade de São Paulo. Aluno destacado em to-
essas são as ideias que me parecem caracterizar das as fases de sua formação, ingressou na Facul-
mais fortemente o legado de Ricardo Bruno à “es- dade de Medicina da Universidade de São Paulo
cola” (MENDES-GONÇALVES, 1995a) que ele aju- (FMUSP) entre os primeiros lugares, posição que
dou a construir na Saúde Coletiva. manteve durante toda sua graduação. Formou-se
em Medicina em 1971 e, durante os anos de 1972
Embora, pela natureza deste ensaio, seja man-
a 1974, cursou a Residência Médica em Medicina
datório trazer ao leitor alguns dados biográficos e
Preventiva e Social no Departamento de Medicina
notícias sobre o conjunto de sua obra, não tenho
Preventiva da FMUSP (DMP). Integrou a esta for-
a pretensão de percorrer aqui a totalidade da pro-
mação o Curso de Especialização em Saúde Pública,
dução e esgotar a pluralidade das contribuições
ministrado, em 1977, pela Faculdade de Saúde Pú-
de Ricardo Bruno. O leitor perceberá que a ênfase
blica da USP.
recairá sobre alguns trabalhos considerados mais
expressivos e sobre determinados constructos teó- Já no ano de 1975, ingressou na carreira do-
ricos ali difundidos. Espero que essas escolhas não cente no DMP, vindo a trabalhar com importantes
enviesem demasiadamente a leitura de sua obra, docentes desse Departamento e figuras de grande
empobrecendo a compreensão do seu sentido ge- importância na construção acadêmica da Saúde
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Coletiva brasileira, como o Professor Guilherme cola de Enfermagem de Ribeirão Preto e desenvol-
Rodrigues da Silva (1928-2006) e a Professora Ma- veu também intercâmbios importantes com a Uni-
ria Cecília Ferro Donnangelo (1940-1983). (AYRES; versidade Federal da Bahia e a Escola Nacional de
MOTA, 2012) Saúde Pública. Contribuiu significativamente para a
Foi Donnangelo (DONNANGELO; PEREIRA, formação de quadros, internamente à Universidade
1976), sem dúvida, a principal interlocutora em sua e em atividades de extensão. Especialmente rele-
trajetória acadêmica, não apenas pelos laços insti- vante, nesse aspecto, foram suas atuações junto ao
tucionais estabelecidos por sua condição de mais Curso de Aperfeiçoamento e Desenvolvimento de
próximo colaborador intelectual, mas, especial- Recursos Humanos (CADRHU), elaborado em 1987
mente, por ter estabelecido com sua obra principal a partir de parceria entre a Organização Pan-ame-
um diálogo teórico que jamais abandonaria: a in- ricana de Saúde, o Ministério da Saúde e diversas
vestigação da consubstancialidade tecnosocial das instituições acadêmicas, e ao Centro de Formação
práticas de saúde e a busca da apreensão e manejo de Recursos Humanos da Secretaria Municipal de
desta nos saberes aplicados às ações técnicas e po- Saúde de São Paulo (CEFOR), durante o governo de
líticas voltadas à saúde coletiva. Luiza Erundina à frente da Prefeitura do Município
de São Paulo (1989-1993).
Ricardo Bruno defendeu seu mestrado em
1979, publicado em livro alguns anos depois, e em Ricardo faleceu por aids em 1996, mesmo ano
1986 seu doutorado, também publicado posterior- em que chegava ao Brasil a terapia antirretroviral
mente. (MENDES-GONÇALVES, 1994; 1986; 1984; combinada, o chamado coquetel, infelizmente não
1979) a tempo de beneficiá-lo. Por ironia do destino, o
elaborador da Teoria do Processo de Trabalho em
Ao longo de sua carreira docente, teve ativa Saúde deixou-nos justamente no dia 1 de maio, em
atuação em diversos fóruns de construção acadê- que se comemora no Brasil o Dia do Trabalho.
mica e política do campo da Saúde Coletiva, junto à
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). A obra escrita que Ricardo Bruno deixou não
Conduziu regularmente grupos de estudo com a Es- é muito volumosa e alguns materiais são de difícil
acesso – uma compilação desta produção encon-
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60 61
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

tra-se no Quadro 1. Sua influência foi, não obstan- (continuação)


te, muito expressiva e se faz sentir até hoje, com 1985. Mendes-Gonçalves, R. B. Reflexão sobre a arti-
seus trabalhos sendo ainda citados quase 20 anos culação entre a investigação epidemiológica e a prá-
após sua morte. Partindo da consubstancialidade tica médica a propósito das doenças crônicas dege-
tecno-social das práticas de saúde, Ricardo desen- nerativas. In: Carvalheiro, J. R. (Org.). Textos de Apoio
volveu sua Teoria do Processo de Trabalho em Saú- – Epidemiologia I. Rio de Janeiro: ABRASCO, PEC/
de, quadro conceitual que, a partir de premissas do ENSP, p. 31-88
materialismo histórico e do estruturalismo gené- 1986. Mendes-Gonçalves, R. B. Tecnologia e organi-
tico, forneceu bases consistentes e profícuas para zação social das práticas de saúde: características tec-
nológicas do processo de trabalho da rede estadual
uma ampla gama de estudos no campo da saúde.
de Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo [Tese de
Quadro 1. Bibliografia de Ricardo Bruno Mendes Doutorado – Faculdade de Medicina da USP], 416 p.
Gonçalves (1979-1996). 1986. Pellegrini FO., A. et al. Pesquisa em Saúde Cole-
(continuação) tiva. Estudos de Saúde Coletiva 4: 41-52.
1986. Silva, J. A.; Mendes-Gonçalves, R. B.; Gol-
1979. Enfoques alternativos para ações integradas de
dbaum, M. Atenção primária em saúde: avaliação da
saúde em medicina de primeira linha – simplificação
experiência do Vale do Ri- beira. Brasília: Ministério
e participação (Mimeo).40 p.
da Saúde, 173 p.
1979. Mendes-Gonçalves, R. B. Medicina e história:
1987. Mendes-Gonçalves, R. B. O campo de atuação
raízes sociais do trabalho médico. São Paulo [Disser-
do médico sanitarista. In: Formação, aperfeiçoamen-
tação de Mestrado – Faculdade de Medicina da USP],
to e campo de atuação do médico sanitarista (VI En-
209 p.
contro de Médicos Sanitaristas). São Paulo: Associa-
1984. Mendes-Gonçalves, R. B. Medicina e história: ção dos Médicos Sanitaristas do Estado de São Paulo.
raíces sociales del trabajo médico. México D.F.: Siglo Associação dos Médicos Sanitarista, p. 5-9.
Veintiuno, 1984 (publicação em espanhol da disserta-
1987. Mendes-Gonçalves, R. B., Elias, P. E. M.; Marsi-
ção de mestrado de 1979), 204 p.
glia, R. G. Contribuição para o debate sobre residência
em Medicina Preventiva e Social. Estudos de Saúde
Coletiva 5: 41-52.
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

Quadro 1. Bibliografia de Ricardo Bruno Mendes (continuação)


Gonçalves (1979-1996). 1990. Mendes-Gonçalves, R. B. Reflexão sobre a arti-
culação entre a investigação epidemiológica e a prá-
(continuação) tica médica a propósito das doenças crônicas dege-
1988. Mendes-Gonçalves, R. B. Práticas de saúde e nerativas. In: Costa, D. C. (Org.) Epidemiologia: teoria
tecnologia: contribuição para a reflexão teórica. Bra- e objeto. São Paulo: HUCITEC, p. 39-86 (reedição do
sília: Organização Panamericana de Saúde (Série De- texto publicado em Textos de Apoio – Epidemiologia
senvolvimento de Sistemas de Saúde No. 6), 68 p. I, em 1985).
1988. Mendes-Gonçalves, R. B. Processo de trabalho 1990. Mendes-Gonçalves, R. B.; Schraiber, L. B.; Ne-
em saúde. São Paulo: Departamento de Medicina Pre- mes, M. I. B. Seis teses sobre a ação programática em
ventiva (Texto de apoio ao CADRHU). [mimeo] 22 p. saúde. In: Schraiber, L. (Org.). Programação em saúde
hoje. São Paulo: HUCITEC, p. 37-63 (também editado
1988. Mendes-Gonçalves, R. B. Trabalho em saúde em Espaço para a Saúde 1(1), em 1989). 1991. Men-
e pesquisa: reflexão a propósito das possibilidades e des-Gonçalves, R.B. A saúde no Brasil: algumas carac-
limites da prática de enfermagem. In: Anais do V Se- terísticas do processo histórico nos anos 80. São Paulo
minário Nacional de Pesquisa em Enfermagem. Belo Em Perspectiva. 5(1):99-106.
Horizonte: Centro de Estudos e Pesquisas em Enfer-
magem, p. 27-39. 1991. Mendes-Gonçalves, R. B. O processo tecno-
lógico do trabalho em saúde. Divulgação em Saúde
1989. Mendes-Gonçalves, R. B. Prefácio. In: Almeida para Debate. 4:97-102 1991. Marsiglia, R. G.; Men-
Fo., N. A. Epidemiologia sem números: uma introdu- des-Gonçalves, R. B.; Carvalho, E. A. A produção do
ção crítica à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: conhecimento e das práticas. Terapia Ocupacional.
Campus. 2(2/3): 114-126.
1989. Mendes-Gonçalves, R. B.; Schraiber, L. B.; Ne- 1992. Mendes-Gonçalves, R. B. Cecília Donnangelo
mes, M. I. B. Seis teses sobre a ação programática em hoje. Saúde e sociedade 1(1):3-5.
saúde. Espaço para a Saúde. 1(1): 34-43.

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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

Quadro 1. Bibliografia de Ricardo Bruno Mendes (conclusão)


Gonçalves (1979-1996).
1995. Mendes-Gonçalves, R. B. Seres humanos e prá-
(continuação) ticas de saúde: comentários sobre “Razão e Plane-
jamento”. In: Gallo, E. (Org.) Razão e planejamento:
1992. Mendes-Gonçalves, R. B. Práticas de saúde: reflexões sobre política, estratégia e liberdade. São
processos de trabalho e necessidades. São Paulo: CE- Paulo: HUCITEC, p. 13-31.
FOR (Cadernos CEFOR – Textos 1), 53 p. (versão am-
pliada do texto de apoio produzido para o CADHRU 1996. Schraiber, L. B.; Nemes, M. I. B.; Mendes-Gon-
em 1988). çalves, R. B. (Orgs.) Saúde do Adulto: ações e progra-
mas na unidade básica. São Paulo: HUCITEC, 1996.
1994. Mendes-Gonçalves, R. B. “O médico e seu tra-
balho: limites da liberdade, (Resenha). História, Ciên- 1996. Schraiber, L. B.; Nemes, M. I. B.; Mendes-Gon-
cias, Saúde – Manguinhos. 1(1):176-177. çalves, R. B. Apresentação. In: Schraiber, L. B.; Nemes,
M. I. B.; Mendes-Gon çalves, R. B. (Orgs.) Saúde do
1994. Schraiber, L. B.; Médici, L. B. Mendes-Gonçal- Adulto: ações e programas na unidade básica. São
ves, R. B. El reto de la educación médica frente a los Paulo: HUCITEC, p. 23-28.
nuevos paradigmas económicos y tecnológicos. Edu-
cación Médica y Salud 28(1): 20-52 1996. Schraiber, L. B.; Mendes-Gonçalves, R. B. Ne-
cessidades de saúde e atenção primária. In: Schraiber,
1994. Mendes-Gonçalves, R. B. Tecnologia e organi- L. B.; Nemes, M. I. B.; Mendes-Gonçalves, R. B. (Orgs.)
zação social das práticas de saúde: características tec- Saúde do Adulto: ações e programas na unidade bási-
nológicas do processo de trabalho em saúde na rede ca. São Paulo: HUCITEC, p. 29-47.
estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo:
HUCITEC-ABRASCO. 278 p.
1995. Mendes-Gonçalves, R. B. Prefácio. In: Ayres, J.
R. C. M. Epidemiologia e emancipação. São Paulo: HU-
CITEC, 1995, p. 13- 20.
1995. Mendes-Gonçalves, R. B. Epidemiologia e
emancipação (Resenha). História, Ciências, Saúde -
Manguinhos, 2(2): 138-141. (reprodução parcial do
Prefácio a Epidemiologia e Emancipação).
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Teoria do Processo de Trabalho em Saúde da vida social (política, econômica, cultural) e a
convicção de que não se poderia alterar a primeira
Para melhor compreender a produção intelec- sem transformar a segunda.
tual de Ricardo Bruno, cabe lembrar, especialmen-
te aos leitores das novas gerações, o contexto em Nesse sentido, a Medicina e suas tecnociências
que foi produzida. Como o próprio movimento da precisavam ser despidas de sua aura de neutrali-
Reforma Sanitária Brasileira (RSB), Ricardo iniciou dade e o fazer dos médicos (e de outros profissio-
seu desenvolvimento acadêmico no período da nais de saúde) de seu caráter quase “sacerdotal”,
ditadura militar, juntando-se a um conjunto de in- para serem entendidos como práticas sociais que
telectuais e profissionais da saúde que criticavam eram. Eles precisavam ser compreendidos como
a situação de exceção, de cerceamento das liber- elementos estruturados historicamente no âmbi-
dades democráticas e perseguição política, e as re- to de interesses de sujeitos concretos, temporal e
percussões dessa situação sobre o quadro sanitário geograficamente localizados, que os construíram
do país, marcado por profundas desigualdades e segundo possibilidades material e ideologicamen-
dificuldades. Neste contexto, não é de se estranhar te delimitadas. Somente esta apropriação crítica
que a tradição discursiva da Medicina Social, origi- poderia trazer à luz seus vieses políticos e limites
nada na Europa revolucionária do início do século práticos, criando condições para sua reconstrução
XIX, tenha se tornado uma forte influência na saúde de forma consubstanciada à reconstrução da vida
pública brasileira. (NUNES, 1983) Deste movimento social de modo mais geral. Os trabalhos de Sérgio
de ideias, atualizado em terras brasileiras pelos de- Arouca (1975) e Cecília Donnangelo (DONNANGE-
senvolvimentos teóricos vindos do marxismo e do LO; PEREIRA, 1976) foram paradigmáticos desse
estruturalismo da primeira metade do século XX, movimento no Brasil, e são considerados canôni-
pela experiência local de pobreza e desigualdade cos de um conjunto de estudos teóricos e aplicados
social e pela resistência política ao regime militar, que foram se desenvolvendo no contexto da RSB.
reteve-se a firme percepção das relações entre as Na trilha destes estudos, Ricardo Bruno produziu
condições de saúde da população e a organização seu mestrado sobre “Medicina e História” (MEN-
DES-GONÇALVES, 1979), a que nos referiremos, a
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
partir de agora, pela sigla MH. Apesar de, na maior preocupação com a definição do caráter produtivo
parte das vezes, o doutorado marcar a contribuição (ou improdutivo) do trabalho em saúde (foco de
particular de um autor para seu campo de atuação um debate com Arouca) que hoje parece completa-
e, no caso de Ricardo Bruno, ter sido, talvez, seu mente ociosa frente às transformações pelas quais
trabalho mais difundido e impactante, julgo que passa a vida social no capitalismo tardio – no qual
MH tem um papel central no conjunto de sua obra. a progressiva e ilimitada incorporação de tecnolo-
Embora relativamente pouco lido e citado, sem MH gia material aos processos de trabalho, a extensiva
não haveria a Teoria do Processo de trabalho em mediação institucional das relações de produção
Saúde e toda a derivada gama de investigações dela e a mercadorização da noção de bem-estar social,
desdobrada. entre outros aspectos, tornam cada vez mais imbri-
Essa afirmação pode ser conflitante com a im- cados e interdependentes os diversos momentos
pressão causada por uma primeira leitura (ou relei- da reprodução material das sociedades contempo-
tura) desse estudo hoje. Ao percorrermos as pági- râneas.
nas de MH ele parece um estudo datado. A filosofia No entanto, não deixa de impressionar até hoje
marxiana que lhe sustenta está bastante presa à o rigor teórico e a competência com que Ricardo
leitura estruturalista dos anos 1970, sem sinais, desconstrói a imagem do médico (e, com ele, do
ainda, das reconstruções metacríticas que iriam trabalhador da saúde de modo geral) como alguém
lhe dar novas feições nos anos 80 e 90 – inclusi- colocado à margem da história, produzindo e usan-
ve na produção do próprio autor. As relações entre do saberes racionais, objetivos e verdadeiros em
infraestrutura e superestrutura são interpretadas prol de um bem universal e abstrato chamado saú-
de forma ainda algo mecânica, determinista, pou- de. Rigor e competência que, por outro lado, man-
co sensível a outras fontes de normatividade social; têm sua argumentação a salvo de qualquer deslize
pouco atenta aos processos comunicativos dinâmi- panfletário ou maniqueísta, que precise reduzir o
cos e tensionadores das instituições, especialmen- médico a um mero “intelectual orgânico da bur-
te facilitados pelos rápidos e capilares meios de co- guesia” ou a Medicina a uma construção ideológica
municação da era digital. Há, por fim, uma grande estritamente voltada ao controle da força de traba-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

lho e legitimação de sua dominação (sem, contudo, De forma brilhante, Ricardo Bruno desenvol-
deixarem de sê-lo também). ve em MH a caracterização da dupla posição dos
médicos nas sociedades capitalistas. De um lado,
Talvez essa característica tenha custado a MH pertencem à elite intelectual que formula os pro-
a pouca popularidade que alcançou à época de sua jetos sociais hegemônicos, baseados na legitimida-
publicação, em um tempo tão polarizado politica- de e poder prático das ciências médicas. De outro
mente. Mas o fato é que, com a paciência histórica lado, são trabalhadores que produzem serviços e,
do trabalho teórico, a perspectiva conceitual al- enquanto tal, são dominados não apenas pelas re-
cançada por Ricardo Bruno contribuiu para a cons- lações de produção que progressivamente definem
trução de aproximações ao estudo das práticas de seus modos de trabalho e de vida (por regimes de
saúde no Brasil nas quais o materialismo e a histó- formação e emprego, remuneração, status social,
ria passaram a ser não apenas formas de expressar etc.), mas também pelo progressivo poder da tec-
uma tomada de posição política, de denúncia críti- nologia em determinar o valor das ciências (das
ca, mas configurou positivamente possibilidades de quais os médicos seriam os supostos senhores) e
pesquisa teórica e aplicada de caráter reconstruti- o lugar dos profissionais nos processos de trabalho
vo. A influência de autores como Antonio Gramsci em saúde concretamente operados. Ora, é exata-
(1891-1937), inicialmente, e György Lukács (1895- mente nesta situação contraditória que Ricardo
1971) e Lucién Goldmann (1913-1970), mais adian- Bruno enxerga as potencialidades emancipadoras
te, talvez explique sua sensibilidade ao devir histó- de uma prática teórica que se dedique a explorar
rico e ao papel dos sujeitos e suas interações nesse o modo como as tecnologias se relacionam com as
devir, permitindo não apenas escapar de dogma- ciências da saúde e seus sujeitos. Apostar em uma
tismos marxistas como apostar nas possibilidades compreensão cientificamente sólida e politicamen-
reconstrutivas pelo interior mesmo das práticas de te consciente destas tecnologias pode tensionar e
saúde. transformar posições de sujeitos, relações de po-
der e, portanto, projetos coletivos de saúde e de
sociedade.
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Com isso, MH termina deixando aberta mais SCHRAIBER; NEMES; MENDES-GONÇALVES, 1996;
que uma linha, um verdadeiro programa de inves- NEMES, 1996; AYRES, 1995; BARISON, 1995; TEI-
tigações, capaz de estimular e subsidiar diversas XEIRA, 1993; SCHRAIBER, 1990; 1993; DALMASO,
escolas dentro da Saúde Coletiva brasileira e latino 1991; GALLO, 1991; MENDES-GONÇALVES, 1986)
-americana. Em um breve e não exaustivo inventá- No seu doutorado, sobre a “Organização Tecno-
rio dessas investigações em sua própria escola, vale lógica do Trabalho” nas unidades básicas do Estado
destacar, além de seu próprio doutorado (MENDES- de São Paulo, que abreviaremos por OT, o quadro
GONÇALVES, 1986), estudos de colegas, colabora- conceitual construído no mestrado foi amadure-
dores e alunos sobre trabalho médico (SCHRAIBER, cido a ponto de configurar uma Teoria do Proces-
1993) , tecnologias médicas (DALMASO, 1991), ava- so de Trabalho em Saúde. (MENDES-GONÇALVES,
liação de tecnologias de atenção básica (NEMES, 1994) Além do desenvolvimento conceitual, um es-
1996), planejamento em saúde (GALLO, 1991), as- tudo empírico qualitativo, que combinou a obser-
pectos epistemológicos e filosóficos das práticas vação de serviços com entrevistas a profissionais,
de saúde (TEIXEIRA, 1993; AYRES, 1995; BARISON, buscou apreender a materialidade e a historicida-
1995; CZERESNIA, 1996) e os diversos estudos apli- de das práticas de saúde no contexto concreto da
cados ao serviço experimental de atenção primá- saúde pública paulista. O quadro teórico foi, então,
ria que Ricardo ajudou a implantar e desenvolver, posto à prova, e de modo bem-sucedido. Ricardo
o Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, Bruno identificou nesse estudo a polarização dos
ou Centro de Saúde Escola do Butantã (SCHRAIBER, saberes operados concretamente nas unidades de
1990; SCHRAIBER; NEMES; MENDES-GONÇALVES, saúde em torno de duas modalidades-tipo de ra-
1996), onde a experimentação de modelos tec- cionalidade aplicada: a clínica e a epidemiologia.
nológicos alternativos segue em seu propósito de Demonstrou como esses polos abstratos estão rela-
colaborar para a construção de práticas de saúde cionados a processos de trabalho que implicam ob-
inclusivas e emancipadoras. (CENTRO DE SAÚ- jetos, instrumentos e finalidades estruturalmente
DE-ESCOLA SAMUEL BARNSLEY PESSOA, 2010; interdependentes, mas diversos o suficiente para
CZERESNIA, 1996; MENDES-GONÇALVES, 1986;
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sancionar ou obstaculizar diferentes perspectivas também as evidências de fragilidades, lacunas e in-
subjetivas e projetos tecnopolíticos em confronto suficiências da Teoria do Processo de Trabalho em
na organização da atenção à saúde em construção Saúde. Infelizmente Ricardo não viveu o suficiente
no país. para trabalhar sobre elas, mas chegou a nos deixar
Nesse sentido, OT constitui-se como potente alguns indícios do modo como as interpretava e os
crítica tanto ao empobrecimento da incorporação caminhos pelos quais poderiam ser elaboradas.
da racionalidade epidemiológica à atenção básica,
onde ela teria um papel fundamental a cumprir,
quanto à proposição de ações voltadas à saúde De necessidades e esperança
coletiva insensíveis à importância da racionalida-
À medida em que se foi aplicando, criticando
de clínica na construção de práticas efetivamente
e desenvolvendo a Teoria do Processo de Trabalho
capazes de dialogar com as populações e suas ne-
em Saúde, e à medida em que, simultaneamente,
cessidades de saúde. Em outras palavras, descon-
foi-se modificando o contexto social, político e
truiu o tecnicismo conservador que autonomiza e
acadêmico no seu entorno, Ricardo Bruno foi se
polariza essas duas esferas de saber e apontou para
interessando cada vez mais pelo que se poderia
a integração clínico-epidemiológica como um hori-
chamar do momento do “consumo” nas relações
zonte de superação de compreensões individualis-
de produção. Ou seja, mais e mais a dimensão das
tas, naturalizadoras e tecnocráticas da organização
necessidades de saúde e suas implicações sobre
tecnológica da atenção primária.
a demanda por atenção e respostas dos serviços
Desnecessário enfatizar as aberturas trazidas de saúde, mais que os aspectos estruturais dos
por OT ao campo da Saúde Coletiva, que se estende, processos de produção em si mesmos, foram do-
como apontado nos trabalhos acima citados, das minando o seu interesse. Este movimento fica claro
possibilidades de revisita histórico-epistemológica quando comparamos seu primeiro texto sistemáti-
aos saberes da saúde à proposição de novos arran- co de difusão da Teoria do Processo de Trabalho em
jos entre saberes e tecnologias (e seus sujeitos) nos Saúde com sua versão ampliada, reeditada alguns
serviços de saúde. Mas dessas aberturas surgiram anos depois._______________________________
(MENDES-GONÇALVES, 1992; 1988)
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
A influência teórica mais importante nesse mo- ciais – de qualquer construção científica sobre as
vimento foi, sem dúvida, o trabalho da filósofa neo- bases materiais e históricas das práticas de saúde.
marxista, discípula de Lukács, Agnes Heller (1986). (SCHRAIBER; NEMES; MENDES-GONÇALVES, 1996)
Na revisita que a autora faz às obras filosóficas de Ricardo Bruno também chegou a entrar em
Marx, em uma busca dos sentidos aí encontrados contato, por intermédio da produção de seus alu-
para a noção de necessidades humanas, Ricardo nos, com outras propostas reconstrutivas do ma-
Bruno enxerga uma produtiva atualização da onto- terialismo histórico, especialmente a produção da
logia marxiana, de certa forma depurando-a da rigi- “Escola de Frankfurt” e da “Teoria da Ação Comu-
dez das leituras estruturalistas. A recuperação por nicativa”, de Habermas, e chegou a se posicionar
Heller de um sentido forte de história como devir e positivamente em relação a elas. (MENDES-GON-
a abertura que dava à presença positiva dos valo- ÇALVES, 1995a; 1995b) Viu nestas proposições uma
res e sua construção intersubjetiva, sustentada na efetiva tomada de posição em relação a valores e,
dialética entre “necessidades necessárias” e “ne- ao mesmo tempo, a fortes potencialidades para re-
cessidades radicais”, parece ter respondido à auto- sistir a atitudes totalitárias e messiânicas na defe-
crítica que Ricardo fazia, então, ao que chamou de sa de posições normativas, por conta de seu forte
“concepção negativa de historicidade”, “funciona- embasamento na relação dialógica de abertura ao
lismo a contragosto” e “insuficiências do conceito outro. Não deixou de demonstrar um certo ceticis-
de estrutura” nos estudos da Teoria do Processo de mo, contudo, em relação ao caráter algo abstrato
Trabalho em Saúde. (MENDES-GONÇALVES, 1995a) da ideia reguladora de uma “comunidade ideal de
Apreender a organização tecnológica das ações de comunicação” implícita no conceito de razão co-
saúde pela via das necessidades, tais como enxer- municativa. Mas formulou esta crítica não como
gadas pelos profissionais e pelos seus potenciais desqualificação, senão como um desafio, quase um
beneficiários, mostrava-se um caminho fecundo convite a que se buscasse encontrar as bases con-
para dar positividade à presença inexorável do cretas para a construção de processos comunicati-
sentido ético, do valor normativo – enquanto tal, vos efetivos. (MENDES-GONÇALVES, 1995b)
sempre em disputa na concretude das relações so-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Nos dois textos acima citados, que são comen- Referências
tários sobre trabalhos de alunos seus e, ao mesmo
tempo, uma espécie de balanço de sua própria AROUCA, A.S.S. O dilema preventivista: Contribui-
obra, o que fica como principal legado, porém, não ção para a compreensão e a crítica da Medicina
é nenhum tipo de cobrança ou prescrição, mas Preventiva. 1975. Tese (Doutorado em Medicina)
uma espécie de confidência. É como se, de toda - Faculdade de Medicina, Universidade Estadual de
sua trajetória, Ricardo quisesse compartilhar uma Campinas, Campinas, 1975.
descoberta em especial, que ele entendeu que de- AYRES, J.R.C.M. Ação comunicativa e conhecimen-
via acompanhar toda a prática teórica e técnica da to científico em epidemiologia: Origens e signifi-
Saúde Coletiva: a esperança. Esperança que ele vê cados do conceito de risco. 1995. Tese (Doutorado
como virtude, que julga provir não de um precei- em Medicina) - Faculdade de Medicina, Universi-
to moral abstrato, como um tipo de fé, mas como dade de São Paulo, São Paulo, 1995.
valor histórico objetivo para os seres humanos. É a
mesma esperança, diria eu, que lemos no Anjo de AYRES, J.R.C.M.; MOTA, A. Medicina Preventiva. In:
Klee/Benjamin e que surge transparente das pala- MOTA, A.; MARINHO, M.G.S.M.C. (Org.). Departa-
vras de Ricardo: mentos da Universidade de São Paulo: Memórias
e Histórias. São Paulo: CD.G Casa de Soluções e
A esperança não é um estado de es-
pírito dogmático do qual partimos Editora, 2012. p.124-137.
para a vida, mas um ponto de che-
gada em permanente fuga [...] é a BARISON, E.M. Processo saúde-doença e causali-
condição ideal na qual os seres hu- dade. Uma arqueologia das relações entre a clínica
manos podem ter motivações reais e a saúde-pública. 1995. Tese (Doutorado em
ao se dirigirem comunicativamente Medicina) - Faculdade de Medicina, Universidade
aos outros seres humanos. (MEN-
DES-GONÇALVES, 1995b, p.14) de São Paulo, São Paulo, 1995.

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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

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84 85
2. MEDICINA E HISTÓRIA:
Raízes sociais do trabalho
médico1

A. A prática médica como trabalho

“A articulação da medicina com as demais prá-


ticas sociais constitui o ponto estratégico do qual
melhor se pode aprender o seu caráter histórico.”
(DONANNGELO; PEREIRA, 1976, p.15) Essa proposi-
ção sintética permite uma aproximação adequada
ao objetivo acima indicado por duas vias só analiti-
camente distinguíveis que serão então exploradas,
– estudar a medicina como prática social e estudá
-la como processo de trabalho.

1.
Excertos do texto originalmente publicado como Mendes-Gonçalves, R. B.
Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico. São Paulo, 1979 [Dis-
sertação de Mestrado – Faculdade de Medicina da USP] (p.11-86), e reedi-
tado como Mendes-Gonçalves, R. B. Medicina e historia: raíces sociales del
trabajo médico. México D.F.: Siglo XXI Editores, 1984.
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Em primeiro lugar, independentemente de toda fação de necessidades ‘materiais’ e
conceituação mais precisa do seu conteúdo, a me- ‘não-materiais’ historicamente mol-
dadas e produzidas [...]. (PEREIRA,
dicina aparece como prática reiteradamente efeti- 1965, p.31-32)
vada nas sociedades humanas, como ação humana,
como atividade de uma parte dos membros de uma Para operar como fonte de obtenção dos meios
sociedade através da qual se definem como perten- de existência para quem o desempenha o trabalho
centes a ela, na medida em que através dessa ati- precisa, entretanto, estar relacionado com o con-
vidade logram reproduzir sua existência valendo-se junto dos outros trabalhos através de seus produ-
dos meios nela produzidos em conjunto para esse tos.
fim. A medicina aparece então, em primeiro lugar, Na sociedade, porém, a relação do
como trabalho. produtor com o produto, quando
este está pronto, é exterior, e seu
Desta categoria (do trabalho) partici- retorno ao sujeito depende das
pa toda e qualquer atividade institu- relações do sujeito com os outros
cionalizada (no sentido de achar-se indivíduos. Ele não se apodera ime-
validada, fixada e normativamente diatamente do produto. Portanto,
regulada, ou seja, integrada a um a apropriação imediata do produto
sistema social) que opera como fon- não é o fim que o sujeito procura
te direta de obtenção, por quem a quando produz em sociedade. Entre
desempenha, dos meios naturais de o produtor e os produtos intervém a
existência produzidos ou dos equi- distribuição, que fixa, por leis sociais,
valentes destes (dinheiro, por exem- a parte que lhe cabe no universo dos
plo), indispensáveis à satisfação das produtos, e se coloca, portanto en-
necessidades ‘materiais’ e ‘não-ma- tre a produção e o consumo. (MARX,
teriais’ de quem a executa e de seus 1965, p.247)
dependentes diretos ou não, a fim
de que seu desempenhante produ- Isto significa dizer, em outras palavras, que a
za e reproduza a existência histórica relação técnica que se estabelece no interior de
sua e de seus dependentes sociais, cada processo de trabalho entre o produtor e as
existência essa significando a satis-
condições em que trabalha está subordinada à re-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
lação social que se estabelece entre os produtores anteposição desta ou daquela coisa,
através do conjunto de seus produtos. e, de outro, o trabalho como ativi-
dade orientada para a obtenção da
Essa subordinação não deve, entretanto, coisa anteposta. Do mesmo modo
ser compreendida como contingencial, como o como o trabalhador antevê a casa,
seu trabalho se determina como
estabelecimento de uma relação de justaposição trabalho de arquiteto. Nessa instân-
entre duas ordens de exigências, em ambas se pro- cia, a ideia dá um conteúdo mutável
cessando adaptações uma à outra. O produto não e particular à carência e ao próprio
objeto. E graças a essa particulariza-
é apenas um resultado ao qual se chega “depois”, ção ele é valor-de-uso. Não se identi-
mas enquanto necessidade já está presente “an- fica inteiramente com a coisa natural
tes”, e por isso, enquanto resultado é valor-de-uso. resultante de um processo qualquer
da natureza, [...], mas se dá com o
Em vez de consistir, porém num objeto que afirma e encontra sua
mero sistema circular de obtenção e objetividade precisamente na medi-
dispêndio de forças, o ciclo técnico da em que satisfaz e determina um
aparece condicionado pela antepo- carecimento. (GIANOTTI, 1973, p.27-
sição do produto, pela ante- presen- 28)
ça muito humana da coisa, o que lhe
empresta desde logo uma finalidade Uma vez que o carecimento satisfeito e deter-
própria. Mas a ideia neste nível é tão minado não é essencialmente o do próprio produ-
somente carecimento, impulso de tor, o produto pronto se lhe escapa: por ser social o
obter algo que o organismo neces-
sita. [...] Como condição do proces- produto anteposto, é social o produto posto.
so de trabalho (o carecimento) im- Observe-se que o trabalho assim definido, en-
porta apenas enquanto lhe confere
movimento teleológico. [...] E essa quanto categoria social das ações humanas, não
dependência se inscreve nesse orga- tem o mesmo significado de ação humana em geral.
nismo como ausência, uma não-ob- Friedmann (1970) considera necessário distinguir
jetividade que há de ser preenchida. essas duas categorias na medida em que a primeira
Nessa relação se imprime a teleolo-
gia propriamente humana, determi- “implica em um constrangimento (contrainte)” e
nando de um lado a ausência como
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90 91
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
[...] se diferencia da ação, que é li- o trabalho não se confunde com a atividade huma-
berdade. O trabalho pode ser ação na em geral, e que precisamente esse elemento de
desde que se nutra de uma discipli-
na livremente consentida, como é o “contrainte”, essa vinculação que acarreta entre os
talvez o do artista que realiza uma trabalhadores no âmbito da sociedade permite dis-
obra ao longo prazo, sem ser pres- tingui-lo das demais formas de atividades e afirmá
sionado pela necessidade. (FRIED-
MANN, 1970, p.14)
-lo como critério objetivo básico de estruturação
das práticas sociais.
Essa noção de constrangimento, compulsão, o
autor a tipifica como de origem interna (uma vo- Em segundo lugar, contrapondo a interpretação
cação a serviço de um ideal, uma necessidade de desse autor sobre o caráter predominantemente
criação artística ou de invenção científica) e externa psicossocial dessa “contrainte” às ideias expressa-
(compulsão ao trabalho pela força física, pela per- das no texto anteriormente citado, procurar exor-
suasão moral ou pela sociedade econômica), em cizar do conceito de trabalho toda dimensão psico-
todos os casos prevalecendo o caráter psicológico lógica enquanto dimensão substantiva. É ainda em
da motivação, como se percebe por exemplo na Gianotti (1973, p.28) que se encontra a explicitação
oposição entre satisfação e constrangimento: desta ideia:
Mas a ideia (o projeto que preside
Mas a satisfação no trabalho, expe-
o trabalho) [...] é tão somente ca-
rimentada apesar dos inevitáveis
recimento, impulso de obter algo
constrangimentos que este implica,
de que o organismo necessita. É de
não pode – a longo prazo – se man-
notar que o carecimento não deve
ter sem uma certa adaptação do
ser dotado de todas as conotações
indivíduo e suas tarefas e um grau
psicológicas correntes. Como condi-
mínimo de “engagement” da perso-
ção do processo de trabalho importa
nalidade. (FRIEDMANN, 1970, p.24)
apenas enquanto lhe confere movi-
O recurso a Friedmann (1970) tem duas finali- mento teleológico. A satisfação, o
reforço, são qualidades que, embora
dades, no caso em que aqui se trata. Em primeiro presentes, deixam de possuir o con-
lugar, o de buscar sanção para a proposição de que teúdo invariável, desde que se insi-
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ram na reiteração do processo anco- romanesca história em que a medicina posa sem-
rado no metabolismo animal. pre de heroína bem comportada. Para caber nesse
A medicina se determina então enquanto traba- molde a medicina é retirada de sua condição de tra-
lho, e por isso cabe nas formulações apresentadas balho e transformada em ciência, e como ciência é
como qualquer outro trabalho (não como qualquer desvinculada de suas relações com o trabalho para
outra atividade), mesmo porque tais formulações ser situada em uma terra-de-ninguém de paisagem
abstratas só são válidas porque, construídas a par- quase divina.
tir dos trabalhos particulares e de sua organização Ao definir a medicina como trabalho é neces-
em um conjunto articulado, permitem critério de sário pois, – mesmo deixando provisoriamente de
inteligibilidade capazes de presidir a sua apreensão lado a questão que envolve sua dimensão científi-
mais concreta. ca, questão a que se voltará mais adiante –, enfati-
Em um sentido geral, a tentativa (bem sucedida, zar que sua articulação com o conjunto do trabalho
já que transformada em concepção predominante; social não é acidental ou “externa”, na medida em
mal sucedida, já que não explica nada, ainda que que seu produto é um carecimento exterior que ne-
leve a muita satisfação autocomplacente) de isen- cessariamente precisa interiorizar, na medida em
tar a medicina da “contrainte” do trabalho pode ser que seu objetivo se define duplamente no produto
identificada na base da tradição mais volumosa en- em si e na obtenção dos produtos dos outros tra-
tre seus intérpretes, aquela corrente de interpreta- balhos que o produto em si exteriorizado lhe pro-
ção histórica que reduz o passado à crônica dos lan- porciona, com o que se pode reter inicialmente a
ces de “genialidade” que permitiram os avanços da ideia de subordinação do seu conteúdo técnico às
ciência (nessa óptica não falta lugar também para exigências que aquela articulação lhe impõe.
os “retrocessos”) em sua luta heroica contra a na- Daí se segue que é preciso não a confundir
tureza e apesar da oposição (ou do favorecimento) com uma atividade criadora livre, à semelhança
do ambiente social, até chegar ao glorioso presente das concepções românticas vulgarizadas sobre a
em que os problemas ou estão resolvidos em uma criação artística e a investigação científica. Donnan-
generalidade ou esperam o próximo capítulo dessa gelo (DONNANGELO; PEREIRA, 1976, p.17) chama
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94 95
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
a atenção para o fato de que, por via dessas con- em perspicácia clínica a seus clien-
cepções, os meios de trabalho empregados na tes habituais ou ocasionais. Houve
sempre um momento no qual, afinal
medicina tendem a ser compreendidos como um de contas, a atenção dos práticos
conjunto de recursos tecnológicos menos ou mais foi atraída para determinados sin-
complexos cuja historicidade se perde tanto no ca- tomas, inclusive puramente objeti-
vos, por homens que se queixavam
ráter científico em si, suposto como fruto de um de que não estavam normais, isto é,
desenvolvimento linear, como no obscurecimento idênticos ao que tinham sido no pas-
que esse caráter científico, conceitualmente simpli- sado, ou que sofriam. Se na atuali-
ficado, promove da sua função de “instauração de dade o conhecimento da doença por
parte do médico pode prevenir sua
uma relação particular entre o médico e o objeto experiência por parte do enfermo,
de sua prática”. isto se explica porque no passado a
segunda chamou, suscitou o primei-
Procurando explicar melhor o que foi dito ro. Portanto, certamente, sempre de
acima se pode aqui lançar mão de um texto de direito – se não de fato, atualmente
Canguilhem (1971, p.64-65) que permite apreen- – existe uma medicina porque há ho-
der como a dimensão técnico-científica do trabalho mens que se sentem doentes, e não
porque há médicos vêm os homens
médico se subordina lógica e historicamente às ne- a se inteirar por eles de suas enfer-
cessidades que o justificam: midades.

Médicos e cirurgiões possuem uma Pode-se aí claramente perceber como este es-
informação clínica e utilizam às vezes pecífico trabalho, a medicina, recebe pronto, ainda
técnicas de laboratório que lhes per- que sob a forma bruta de uma necessidade que só
mitem saber que pessoas, que não
se sentem tais, estão doentes. Este é se reconhece no plano da sensibilidade (que não
um fato. Porém um fato que deve ser precisa ser confundido com o plano da biologia) o
interpretado. Pois bem, unicamen- carecimento que deve transformar em projeto de
te porque são os herdeiros de uma
cultura médica transmitida pelos
produto. Pode-se também perceber aí, de forma
práticos de ontem, podem os práti- igualmente inequívoca, como a reiteração do tra-
cos de hoje adiantar-se e superar balho médico – que é apenas uma das formas de
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
sua “contrainte” – promove a reposição de seus Diz-se “momentos” porque são aspectos de um
pressupostos em um nível sempre progressivo, vale mesmo processo que se iluminam reciprocamente,
dizer que a medicina não apenas satisfaz necessida- que derivam seu significado de sua posição rela-
des, mas igualmente cria necessidades novas. tiva. A atividade, uma vez dada sua subordinação
Partiu-se, portanto de uma das dimensões da ao fim útil que a motiva2, discrimina no objeto as
articulação da medicina com as demais práticas so- características que permitem a efetivação daquele
ciais, o seu caráter de trabalho com o propósito de fim, dentre o conjunto das características que o de-
demonstrar o seu caráter histórico. As formulações finem na natureza: enquanto objeto do trabalho a
que se seguiram permitiram ver esquematicamen- matéria à qual se aplica a atividade existe, portanto
te como se dava aquela articulação nessa dimen- já de forma “humanizada”, isto é, iluminada pela
são. A demonstração fica ainda por se completar, atividade que dela se apropria. (GIANOTTI, 1973,
dependendo da exploração das demais dimensões p.20-21) Essas características do objeto, por seu
em que a articulação pode ser analisada. Proceda- lado, impõem à atividade que o transforma uma
se então à continuidade dessa análise. maneira de se aproximar dele; induzem também o
desenvolvimento de meios, instrumentos de pro-
ceder a essa aproximação de forma a potenciá-la.
B. O processo de trabalho médico. O objeto (GIANOTTI, 1973, p.20-21) O instrumento, por sua
de trabalho vez, representa “o ponto de encontro da finalidade
2.
É conveniente ressaltar que não se trata de uma motivação de caráter psi-
Se a medicina pode ser concebida como traba- cológico, conforme já foi discutido acima, mas importa ainda acrescentar que
a vontade, quaisquer que sejam os seus móveis, é subordinada no próprio
lho, há que necessariamente distinguir nesse traba- processo, o que permite pensar a atividade operante como um “momento”:
lho, como em qualquer outro, os seus três momen- “No término do processo de trabalho surge um resultado que já estava pre-
sente idealmente desde o início na representação do trabalhador. Não é que
tos essenciais: “a atividade adequada a um fim, isto ele apenas efetue uma alteração de forma do natural, mas efetiva do natural,
concomitantemente, seu fim, que é conhecido por ele e que determina o
é, o próprio trabalho; a matéria a que se aplica o tra- modo e a maneira de seu fazer como lei, e ao qual deve subordinar sua von-
balho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho, tade” (texto citado de Marx, em “O Capital”, extraído do capítulo 5 do Livro 1,
conforme a tradução encontrada em Gianotti, (1973, p.19-20), e é aqui utili-
o instrumento de trabalho.” (MARX, 1968, p.202) zada porque contraposta à tradução de Reginaldo Sant’Anna, editada pela Ci-
vilização Brasileira, melhor serve para apoiar o texto em que se insere aqui).
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
do trabalho e do determinismo da natureza, o lugar O objeto de trabalho, em qualquer caso, não
de sua determinação recíproca” (GIANOTTI, 1973, é um objeto natural, fato a que se aludiu mais aci-
p.22): a discriminação das características do objeto ma. Nem mesmo o mais simples objeto do trabalho
que permitem a consecução da finalidade é aper- mais simples:
cebida através de sua mediação, potenciadora – no
O peixe a ser preso não é apenas um
sentido em que amplia o rendimento da atividade organismo natural que recorta na
e diminui a resistência do objeto –, restritiva – na paisagem sua própria identidade, ou
medida em que reduz a múltipla funcionalidade da forma que o observador discrimina e
reconhece. Enquanto objeto de tra-
atividade a um só desempenho. balho e primeira condição dele, in-
Entretanto, é necessário reter que o processo corpora as propriedades necessárias
para a efetivação desse mesmo tra-
todo é determinado “de fora” pela finalidade, pela balho. Existe um elemento determi-
idealização do produto que o antecede e que lhe nado, em águas rasas ou profundas,
serve de fio condutor, e, por sua via, pelas relações com hábitos próprios, alimentação
sociais que situam cada trabalho na divisão social peculiar. Cada uma dessas deter-
minações obriga o pescador a agir
do trabalho. Isto posto, apresenta-se para a com- adequadamente [...] A coisa pronta,
preensão do processo de trabalho médico uma separada por um processo natural
particularidade que se transforma muitas vezes em em que o homem não intervém, não
causa de contradições, não só no sentido de incoe- ganha logo novas dimensões ao pe-
netrar no ciclo do trabalho humano?
rências teóricas, mas, e sobretudo, no sentido de (GIANOTTI, 1973, p.20-21)
polarização da prática, – daí inclusive se originando
as eventuais ambiguidades em sua apreensão pelo Enquanto objeto de trabalho a coisa natural se
pensamento, ao menos parcialmente. Trata-se de redefine como virtualidade do produto, constituin-
seu objeto, e da característica especial que o marca do-se essa aproximação intelectual do objeto em
enquanto portador indissociável da própria neces- um comportamento tão essencial à operação quan-
sidade que, tornada finalidade, motiva o trabalho. to sua posterior manipulação.

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Ora, o objeto de trabalho de que aqui se tra- Ao proceder a essa adaptação, o trabalho mé-
ta também passa por essa apreensão intelectual, dico modifica, portanto, um objeto natural, mas
essa adaptação do natural ao projeto, e, uma vez aqui se impõe sobre ele a natureza desse objeto:
que se trata sempre de um processo reiterado, aos mesmo modificado, segue indissociável do porta-
instrumentos que se constituíram para efetivá-lo. dor da necessidade que o designou como um ob-
Desprender seu objeto de suas conexões naturais jeto possível, e ao prosseguir em seu trabalho, o
se apresenta pois como o primeiro momento deste médico continua se defrontando com essa necessi-
trabalho, momento duplamente determinado pela dade na figura material desse portador. O que entra
finalidade que o trabalho escolheu e pelos instru- no processo de trabalho é o portador da necessida-
mentos que utilizará; o objeto assim desprendido, de só parcialmente transformado em objeto, e não
na medida em que perde sua naturalidade e se con- um objeto unilateralmente apropriado pelo traba-
forma ao processo em que entra, se determina en- lho. Ao terminar o processo, o que dele sai não é
tão como objeto de trabalho. apenas um produto que deve poder corresponder
Ao ser assim tomado para o processo de tra- a necessidades, mas igualmente o portador das ne-
balho, o objeto sofre, pois, uma modificação. Se se cessidades então atendidas durante o processo.
conceituar aqui muito provisoriamente o “corpo A coexistência no mesmo espaço do corpo de
humano doente” como objeto de trabalho médi- um objeto de trabalho e de sua necessidade (que
co, sem prejuízo de voltar posteriormente a uma se expressa enquanto projeto e, modificada, como
caracterização mais precisa e adequada, tem-se produto) implica em pelo menos em duas conse-
que há uma modificação necessária na passagem quências: em primeiro lugar, a medicina tende a
do “corpo humano doente do doente” para o “cor- confundir variavelmente seu objeto e sua finali-
po humano doente do médico”, com a condição de dade, – quando se concebe como “arte de curar”
que os elementos de toda natureza que caracteriza enfatiza essa última, quando se proclama conheci-
a necessidade inscrita no primeiro reapareça no se- mento da doença e dos modos de terminá-la salien-
gundo, já trabalhados: nessa medida aparecem en- ta o primeiro, e, mais frequentemente, ao se dizer
tão como objeto de trabalho do trabalho médico. “arte e ciência de curar” mistura os dois; a questão
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seria ociosa se, como já se viu, a confusão do traba- produzem bens que se destacam, no espaço e no
lho médico com a ciência que lhe é correlata não ti- tempo, da necessidade que os motivou: o trabalho
vesse quase sempre por efeito obscurecer suas ca- do agricultor ou do artesão se orientam igualmente
racterísticas de prática social. Em segundo lugar, as para necessidades “externas”, e o conhecimento do
origens e características das necessidades que jus- mercado delimitando a qualidade e a extensão do
tificam o trabalho médico penetram-no igualmen- trabalho a empreender explicitam essa orientação,
te, e ainda que variavelmente conceituadas (ou até mas apenas dessa forma mediatizada as necessi-
conceitualmente omitidas) não podem deixar de dades se expressarão ao nível interno do próprio
ser consideradas na prática. Não é correto, portan- processo de trabalho, – o agricultor nunca se con-
to, dizer-se como acima que o objeto do trabalho ceberia como um trabalhador “da alimentação”, a
médico resulta do desprendimento de um objeto não ser talvez, em uma forma de organização do
de trabalho de suas conexões naturais, pois, na me- trabalho social anterior a sua divisão.
dida em que objeto e necessidade se confundem Ao conceituar o objeto de trabalho médico
em um mesmo corpo, não é “natural” o objeto que é necessário pois dar conta dessa peculiaridade:
a medicina toma para o trabalho, mas carregado mesmo distinguindo-se em um primeiro momento
já de todas as determinações que marcam o corpo o objeto da necessidade (ou de sua expressão ao
em sua existência social. Desse modo, o social está nível do processo de trabalho, – a finalidade) é pre-
presente no trabalho médico de forma imediata, ciso em um segundo momento dar conta concei-
ainda que as formas históricas dessa “invasão” va- tualmente do fato de que na realidade se identifi-
riem3, em relativo contraste com os trabalhos que cam, e de como se dá essa identificação. Em outros
Por exemplo, analisando uma das características dos projetos de Medicina
3.

Comunitária, a manipulação do comportamento social dos grupos humanos, termos, ao passar do plano da socialidade, em que
Donnangelo aponta uma das formas pelas quais a medicina procurou dar
conta dessa “invasão”: “Esse social de que a prática médica se dá conta e
se procurou situar a medicina como um trabalho,
com o qual opera, mesmo quando não o conceptualiza, será objeto de for- para o plano da técnica, em que se pode analisar
mas específicas de conceptualização e tratamento que permitirão, em outra
parte, que o domínio do saber biológico que compõe a medicina e as práti-
internamente (e parcialmente, por certo) esse tra-
cas tecnológicas que ela sucessivamente incorporou, sigam liberados de uma balho é necessário reter aquelas determinações
permanente intrusão histórica do social, diversamente conceptualizado no
campo da prática médica.” (DONNANGELO; PEREIRA, 1976, p.72) mais gerais, que aqui aparecerão reespecificadas,
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traduzidas, mas nunca totalmente abstraídas. Não a necessidade médica como componente essencial
se deve, contudo, compreender esta assertiva do homem, ficando para a história a explicação da
como se se quisesse afirmar que o “consumo” (que diferenciação dessa necessidade, preferencialmen-
aqui seria representado pela necessidade) deter- te sob a forma de efeitos da ignorância que a cada
mina unilateralmente a “produção” (representada época histórica pode ser imputada por referência
pelo processo de trabalho, em seu sentido técnico), às que a sucedem: as necessidades sempre teriam
mas, pelo contrário, o processo de trabalho no sen- estado presentes na sua forma “pura”, ainda que
tido social determina a necessidade que o mantém, encobertas, tanto pelas estruturas culturais que
mas só o faz porque a repõe como necessidade sa- não permitem sua manifestação, como pelo des-
tisfeita nos seus termos próprios, isto é, segundo a conhecimento que cegava os olhos que poderiam
lógica dele próprio. tê-las reconhecido.
A necessidade que engendra a medicina como É nessa direção que aponta Canguilhem (1971,
trabalho humano não deve ser compreendida .
p 174) quando discute a objetividade da patologia:
como uma necessidade natural, característica on-
Não se ditam cientificamente nor-
tológica do ser humano enquanto tal. A medicina mas à vida. A vida é a atividade
sempre tendeu para essa concepção, e esta ten- polarizada de conflito com o meio
dência é decorrente em boa parte daquela caracte- ambiente que se sente ou não nor-
mal conforme se sinta ou não em
rística peculiar de seu objeto referida mais acima: posição normativa. O médico tomou
ao aproximar-se dele precisa sempre conceituá-lo, partido pela vida. A ciência lhe ser-
elaborando uma teoria do objeto, e dado que o ob- ve para realização dos deveres que
jeto carrega consigo a necessidade, a teoria do ob- decorrem dessa opção. O eco deste
chamado patético é que faz qualifi-
jeto se transforma em teoria da necessidade, a pa- car de ‘patológica’ toda ciência que
tologia assume a função de definir onde e quando a técnica médica utiliza para auxiliar
a necessidade se justifica. O conceito de “doença” a vida. Assim é que existe uma ana-
ganha assim uma objetividade que permite enten- tomia patológica, uma fisiologia pa-
tológica, uma histologia patológica,
dê-lo para além dos limites da prática até fundar
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uma embriologia patológica. Porém a presumível legitimidade da extensão da teoria do
sua qualidade de patologia é algo objeto (a patologia) à condição da teoria das neces-
que provém da técnica e, por isso, é
de origem subjetiva. Não existe uma sidades e a concepção dessas como naturais, uma
patologia objetiva. (p.174) vez que a patologia enquanto tratamento positivo
de fenômenos reais não pode identificar seu objeto
Isso ainda que “uma patologia possa estar me-
(de conhecimento) senão com um conjunto de re-
todológica, crítica e experimentalmente armada”
gularidades permanente do ser humano.
(CANGUILHEM, 1971, p.176) e:
Essa objeção é ao mesmo tempo falsa e ver-
[...] por referência ao médico que
a pratica seja possível qualifica-la
dadeira. Sua verdade decorre do fato, já apontado,
de ‘objetiva’. Porém a intenção do de que a coexistência no “corpo” de uma necessi-
patologista não determina que seu dade médica e de um objeto de trabalho acarreta
objeto seja uma matéria vazia de a particularidade para a prática de que todas as de-
subjetividade. (CANGUILHEM, 1971,
p.1976)4 mais determinações que definem esse “corpo” no
mundo real em que existe concretamente sejam
Mas poder-se-ia argumentar que a distinção a trazidas para seu interior, onde não podem ser ig-
que se procedeu entre necessidade e objeto é ar- noradas, mas têm de ser trabalhadas de uma for-
tificiosa, uma vez que a necessidade é o próprio ma ou de outra (DONNANGELO; PEREIRA, 1976)5,
objeto da prática: a medicina não se propõe na daí que efetivamente a prática se dirija ao mesmo
prática a lidar com outra coisa senão com as pró- tempo sobre aquele objeto e sobre aquela neces-
prias necessidades que levam o doente até ela. Daí sidade. Isto qualifica o procedimento aqui adotado
4.
Há certamente o que criticar em Canguilhem, e, em relação ao ponto de vis-
ta aqui adotado, o “vitalismo” radical desse autor aparece como a divergên- de artifício, certamente, mas no sentido de recur-
cia mais notável, conforme se pode, por exemplo, ver no próprio texto citado so metodológico, e o recurso metodológico se dis-
(“[...] a vida [...] se sente). Para uma formulação inicial dessa crítica veja-se
o prefácio de Lecourt (1971) na mesma edição; aqui não serão explicitados tingue do mero verbalismo enquanto é capaz de
tais reparos metodológicos não só por impertinência em relação ao objetivo
deste estudo como porque diante das dimensões da obra de Canguilhem tais
interpor uma mediação necessária para a apreen-
reparos, se não amplamente fundamentados e desenvolvidos, soariam como “[...] a prática médica manipula o caráter histórico de seu objeto sem ne-
5.

mero pedantismo, – procedimento largamente utilizado atualmente, mas a cessariamente conceptualizá-lo. O momento da anamnese clínica permite
que falta todo sentido de honestidade intelectual. percebê-lo com suficiente clareza”. (DONNANGELO; PEREIRA, 1976, p.25)
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são progressivamente mais concreta do objeto de gia, cujo objeto é um fato que se apresenta origi-
conhecimento. Sua falsidade deriva do esqueci- nalmente como um juízo de valor.
mento do fato de que ao nível da própria prática Daí que se possa pretender dizer que “a doença,
a necessidade é compreendida como acidental por que nunca existiu na consciência do homem, come-
referência ao caráter essencial que é atribuído ao ça a existir na ciência do médico”; mas, se é verda-
objeto com base na patologia: a medicina apreen- deiro que “há uma medicina porque há homens que
de a doença, lê no doente o discurso que a doen- se sentem doentes”, “não pode haver nada na ciên-
ça pronuncia, e se as particularidades daquele são cia que não tenha aparecido antes na consciência.”
levadas em conta na terapêutica, em princípio são (CANGUILHEM, 1971, p.64-65) E na consciência do
quaisquer, portanto fortuitas, variáveis, não tendo homem a doença é um juízo de valor, a apreciação
a ver com a substância do objeto. A manifestação negativa de “uma redução na margem de tolerância
grosseira e extremada deste fato, pelo menos no com respeito às infidelidades do meio ambiente”,
jargão técnico utilizado no Brasil, é o emprego indi- uma qualificação do “modo de andar a vida” que
ferente dos termos “doença” e “patologia”, este úl- o põe em confronto com uma norma e verifica a
timo não tendo por função a designação da ciência sua transgressão. (CANGUILHEM, 1971, p.151) Não
da patologia, mas a da própria enfermidade; esse se quer negar a partir dessas formulações tomadas
procedimento é duplamente revelador: de um lado de Canguilhem (e mesmo esse autor não se propõe
demonstra a afirmação que se faz acima acerca do a isso, até pelo contrário) a possibilidade de uma
papel incidental que desempenham na prática as patologia que ultrapasse essas limitações, mas essa
características originais do doente, que de objeto remodelação é tarefa para o futuro, onde a sua
concreto da prática tende a ser reduzido ao con- possibilidade se inscreve na existência de relações
ceito abstrato que a instrumentaliza; de outro lado, também reformuladas entre os portadores da
ainda que paradoxalmente (ao pretender afirmá-la ciência e os objetos de sua prática. O que se nega,
como disciplina científica, acima de toda considera- e é preciso fazê-lo enfaticamente, é a pretensão
ção particularizante que se possa fazer depois), trai de estender as teorias, que a medicina constituiu
o caráter muito particular dessa ciência, a patolo- sobre seu objeto, de forma a recobrir e explicar
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também as necessidades que a mantêm como tra- de suas complicações. Que é um sin-
balho. Ao mesmo tempo, é preciso sempre reter toma sem um contexto ou um pano
de fundo? Que é uma complicação
que, ao nível da prática, a medicina sempre se deu separada daquilo que ela complica?
conta da diferença. Quando se qualifica de patológico
um sintoma ou um mecanismo fun-
Toda apreciação do objeto do trabalho médi- cional isolado, se esquece que aqui-
co que se detenha no corpo anátomo-fisiológico se lo que os torna patológicos é sua
equivoca, portanto, ao despir o conteúdo técnico relação de inserção na totalidade
indivisível de um comportamento
desse trabalho de sua natureza imediatamente so- individual. De tal maneira que, se a
cial, pois esta imediatez se manifesta precisamente análise fisiológica de funções isola-
no fato de que esse objeto se superpõe a uma ne- das sabe que está em presença de
cessidade que o antecede. É sem dúvida artificioso fatos patológicos é porque o deve
a uma informação clínica previa, é
reduzir essa necessidade a uma teoria daquele ob- porque a prática põe o médico em
jeto, enquanto pelo contrário, a teoria se funda na relação com indivíduos completos
necessidade: e concretos, e não com órgãos ou
com suas funções. A patologia... só
Não conviria dizer, afinal de contas, pode saber que é patológica, estu-
que o fato patológico só é captável do dos mecanismos das enfermida-
como tal, isto é, como alteração do des, porque recebe da prática essa
estado normal, ao nível da tota- noção de enfermidade, cuja origem
lidade orgânica, e tratando-se do tem de ser buscada na experiência
homem, ao nível da totalidade indi- que os homens têm de suas relações
vidual consciente aonde a enfermi- de conjunto com o meio ambiente.
dade esse converte em uma espécie (CANGUILHEM, 1971, p.60-61)
de mal? Estar doente significa para
o homem viver uma vida diferente, “Uma espécie de mal”, “viver uma vida diferen-
inclusive no sentido biológico da te”, “redução na margem de tolerância em relação
palavra. [...] Pareceria que de um às infidelidades do meio ambiente” são expressões
modo muito artificial a enfermidade
é dividida em sintomas ou abstraída
de que Canguilhem lança mão para procurar definir
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essa necessidade que ao nível do processo de tra- da jurisdição do saber na medida em que este se
balho aparece como objeto, e que define por com- coloque em oposição a essa normatividade:
paração à finalidade útil desse trabalho. Citando
Ao fim e ao cabo são os doentes que
Leriche (1936 apud CANGUILHEM, 1971, p.63) “a na maioria das vezes julgam – e a
enfermidade é aquilo que molesta os homens no partir de pontos de vista muito di-
exercício normal de sua vida e de suas ocupações, versos – se já não são normais ou se
voltaram a sê-lo. Voltar a ser normal
e sobretudo aquilo que os faz sofrer”, Canguilhem para um homem cujo futuro é ima-
(1971, p.63) faz notar que essa espécie de definição ginado sempre a partir da experiên-
é a do doente, não a do médico, de onde decorre cia passada, significa retomar uma
que sua inteira validade ao nível da consciência não atividade interrompida ou ao menos
uma atividade que seja julgada equi-
se traduz de forma imediata em validade científi- valente (à interrompida), de acordo
ca. O processo de desumanização dessa “doença com os gostos individuais e os valo-
do doente” a que se recorreu na medicina forne- res sociais do meio ambiente. [...] o
ceu-lhe uma ciência que, independentemente de homem retomará o ofício que havia
escolhido ou que as circunstâncias
quaisquer vantagens ou desvantagens, reservou lhe haviam proposto – quando não
para o homem doente um papel aleatório: “já não imposto –, no qual, em todo caso,
são a dor, a incapacidade funcional ou a insegu- punha ele uma razão, inclusive me-
díocre, para viver. Inclusive se este
rança social que constituem a doença, mas sim a homem obtém de agora em diante
alteração anatômica ou a perturbação fisiológica.” resultados técnicos equivalentes
(CANGUILHEM, 1971, p.64) Entretanto, questio- mediante procedimentos diferentes
nando o estatuto científico das noções de “altera- de gesticulação complexa, seguirá
sendo apreciado socialmente de
ção anatômica” e “perturbação fisiológica”, Can-
guilhem (1971) demonstra que a patologia segue
tratando de um objeto cuja emergência e designa-
ção no real é sempre um procedimento normativo
do homem que o porta, o que restringe a margem
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acordo com as normas de antes [...] . 6
culações que em estado de anquilose não se produ-
(CANGUILHEM, 1971, p.86-87) ziria vem reduzir o comportamento do organismo
A norma científica tem sempre que se curvar a uma incessante ingestão de analgésicos e a uma
diante da norma “vital”. Uma limitação motora de interminável série de exercícios de reabilitação7.
caráter indiscutivelmente patológico pode desapa- A transgressão da normatividade “vital”, que
recer na normatividade do “modo de andar a vida”: não precisa ser reduzida a uma normatividade bio-
[...] o doente perde de vista o fato de lógica, como por vezes procura fazer Canguilhem,
que, por causa de seu ferimento, lhe – ainda que em inúmeros contextos de sua obra o
faltará de agora em diante uma am- caráter imediatamente social de toda norma bio-
pla margem de adaptação e de im- lógica humana seja igualmente explicitado –, já
provisação neuromusculares, isto é, por só ser cabível no plano da totalidade individual
a capacidade que talvez não tivesse
utilizado nunca – porém só por fal-
consciente apresenta-se como atributo da situação
ta de oportunidade – para melhorar histórica particular em que essa totalidade pode
seu rendimento e superar-se. (CAN- instituir suas normas.
GUILHEM, 1971, p.87)
A necessidade com que se defronta a medicina
Desde que para sua normalidade essa limita- só pode ser pensada, portanto, como particularida-
ção seja superável. Inversamente, uma mobilidade de historicamente determinada de seu objeto mais
articular quase fisiológica pode resultar francamen- restrito, o corpo humano portador dessa necessi-
te insatisfatória e uma dolorosa mobilidade de arti- dade, já então distinto do corpo anátomo-fisiológi-
6.
Observar a ressalva que é feita no texto “[…] na maioria das vezes julgam
co. E ao defrontar-se com essa necessidade assim
[…]”, resultante da hesitação do autor em incluir as doenças neuropsiquiá- determinada a medicina dá sempre conta de suas
tricas em seu estudo, o que deriva por outro lado do papel privilegiado que
a categoria de “consciência” deveria assumir em seu trabalho, o que pode determinações, na prática, apesar das possíveis res-
ser atribuído por extensão ao conteúdo vitalista que essa categoria sempre trições de sua teoria do objeto – a patologia. Toda
encerra. Não há, entretanto, porque fazer essa ressalva se se admite que a
consciência individual em larga medida pode ser pensada como a manifesta- vez que se instaura um hiato entre tais determina-
ção concreta da consciência social, e é sempre no plano desta que a doença,
inclusive neuropsiquiátrica, é primeiro designada. Ver a propósito dessa hesi- Uma discussão das relações entre o trabalho médico e a dor pode ser en-
7.

tação a nota à página 174 da mesma obra. contrada em Conti (1972).


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ções e a capacidade da medicina de manipulá-las, tê-lo normal, socialmente legitimadas também, de
esta se reorganiza e, sintomaticamente, é a prática que se lança mão. Sigerist (1974) descreve uma tra-
e não a patologia que é reformulada. jetória da posição social do doente na história em
Se o objeto do trabalho médico não pode, por- que se aprende uma das dimensões dessa normati-
tanto, ser reduzido ao corpo anátomo-fisiológico, vidade social: maldição e possessão demoníaca são
porque esse corpo é o de um homem historicamen- as maneiras de conceber o estado do doente nas
te determinado, tampouco pode sê-lo à consciên- sociedades tribais primitivas; nas culturas semíticas
cia psicológica que esse homem tem de seu corpo, a enfermidade já irá aparecer como castigo pelo
pois esta também só é concebível como historica- pecado cometido, e o Antigo Testamento contém
mente determinada. inúmeras referências ilustrativas e esse respeito;
entre os gregos, a doença aparece como imperfei-
Na medida em que a multiplicidade ção entre os cidadãos da pólis, que devem cultuar
das determinações que marcam o
corpo diz respeito à forma pela qual
a sua própria saúde enquanto buscam a perfeição
o homem se relaciona com o meio integral, e como consequência natural da imper-
físico e com os outros homens, e feição inevitável para os trabalhadores artesãos
ainda às formas assumidas histori- e escravos, – “o autor do tratado hipocrático ‘Peri
camente por essas relações, o corpo
anátomo-fisiológico aparece como diaites’ prescreve normas dietéticas especiais para
um corpo investido socialmente. aquelas pessoas que, devido às suas ocupações,
(DONNANGELO; PEREIRA, 1976, não podem dedicar o devido tempo à sua saúde”
p.25) (SIGERIST, 1974, p.65); nas sociedades cristãs me-
Analisando a normatividade social, Donnange- dievais, a enfermidade assume o caráter de ascese
lo procura chamar a atenção para o fato de que esta mística; nas sociedades modernas se transforma
não deve ser reduzida à sua expressão genérica, às em perigo social (sua capacidade de transmitir-se,
concepções presentes em toda sociedade sobre a a insegurança que gera para o “normal” funciona-
normalidade do funcionamento do corpo em seus mento da sociedade na medida em que pode com-
usos legitimados e às medidas correlatas para man- prometer o horizonte de cálculo econômico) e em
______________________________ direito social a atenção a ela.
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Canguilhem (1971, p.121) expressa essa nor- Ficar nesse plano de generalidade, contudo,
matividade social genérica através de suas análises leva à identificação de corpos próprios de cada so-
da duração média da vida: ciedade como um todo ou a variações sociais des-
ses corpos conforme grupos ou estratos sociais:
[...] quando se fala em vida média,
para aludir ao seu progresso cres- [...] ao tratar dessa normatividade
cente, relaciona-se esse valor com social e ao toma-la como ponto de
a ação que o homem, considerado referência para o objeto da prática
coletivamente, exerce sobre si mes- médica, é necessário precisar o sen-
mo. Nesse sentido, Halbwachs trata tido dessa normatividade para uma
da morte como fenômeno social, es- dada forma de organização social
timando que a idade em que se pro- e identificar os níveis da estrutura
duz é em grande parte o resultado social a partir dos quais o corpo é
de condições de trabalho e de higie- fundamentalmente determinado.
ne, de atenção à fadiga e às enfermi- (DONNANGELO; PEREIRA, 1976,
dades, logo, tanto das condições so- p.25)
ciais como das fisiológicas. Tudo se
passa como se cada sociedade tives- Se o sentido da normatividade social dever ser
se a mortalidade que lhe convém, buscado na forma de organização da sociedade,
posto que a quantidade de mortes
e sua distribuição nas diversas ida- não deve sê-lo, contudo, de forma restrita, como
des representam a importância que que buscando adjetivações que um corpo anáto-
uma sociedade dá ou deixa de dar à mo-fisiológico natural ganhasse por sua existência
prolongação da vida; [...] nesse nú- acidental neste ou naquele tipo de sociedade, –
mero abstrato que é a duração mé-
dia da vida humana está expressado observação que remete a um tema já tratado sob
um juízo de valor. A duração média outra forma neste trabalho. Para dar coerência à
da vida não é duração da vida bio- noção de “normatividade social”, ou se rompe radi-
logicamente normal, mas, em certo
sentido, é a duração da vida social-
calmente com as concepções biológicas a respeito
mente normal. Também neste caso do objeto e das finalidades da medicina ou apenas
a norma não se deduz da média, se- se acrescentam detalhes àquelas concepções. A
não nela se traduz [...].
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condição de normalidade é o resultado da combi- dessa normatividade antes que modificações que
nação, no mesmo movimento, de todas as deter- a transcendem de muito levem esses padrões a se
minações que especificam o ser humano, e não se desvalorizarem, o que não significa por certo uma
reduz nunca a nenhuma dessas; só é reconhecida correção de padrões inadequados, mas substitui-
como tal nas condições originais em que os padrões ção de padrões socialmente adequados por outros,
de referência instituídos que permitem assim julgá que o serão igualmente. A maior parte das conse-
-la permanecem válidos, e enquanto permanecem. quências biologicamente nocivas das atividades do
O corpo não é biologicamente normal “primeiro” trabalho ainda permanece na obscuridade, poden-
para submeter-se “depois” a um teste social em que do apenas ser estimada por analogia, e a medicina
pode perder essa condição; mesmo em situações não se ocupará delas até que os próprio agentes
que significam a terminação mais rápida da própria expressem essa problemática sob a forma de doen-
vida segue sendo normal se esse fim mais preco- ças, isto é, de “modos de andar a vida” socialmen-
ce é estimado como o “modo de andar a vida” so- te desvalorizados; a história da maneira pela qual
cialmente adequado. Inversamente, em condições a medicina teve de dar conta da pouca patologia
nas quais não se pode evidenciar qualquer espécie profissional conhecida atesta o papel da atividade
de transgressão de uma pretensamente autônoma social, relevando nela o desempenho dos próprios
normatividade biológica é possível distinguir “mo- trabalhadores que, em condições históricas bem
dos de andar a vida” socialmente desvalorizados. determinadas, obtiveram o direito de verem reco-
Pode-se tomar desse fato alguns exemplos, en- nhecidas as condições de trabalho como “patológi-
tre muitos outros possíveis: os padrões de alimen- cas”. No polo oposto, todas as condições estéticas
tação e exercício de uma parte da população urbana socialmente desvalorizadas adquirem o estatuto do
nas sociedades industrializadas atuais implicariam patológico: a cirurgia plástica propõe como objeti-
em uma clara transgressão da “normatividade bio- vo terapêutico o cânone estético onde o social se
lógica”, a julgar por suas consequências mórbidas, manifesta em sua forma mais superficial; a cirurgia
e tomando a patologia como juiz; não obstante, a restauradora evolui
medicina jamais conseguirá prescrever a correção
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[...] da concepção de ‘normalidade físicas e materiais, existentes no corpo e na perso-
da forma’ para a de ‘normalidade da nalidade viva de um ser humano, as quais ele põe
função’, (como se) constata na evo-
lução das próteses: houve um tempo em ação toda a vez que produz valores-de-uso de
em que eram construídas de acordo qualquer espécie.” (MARX, 1968, p.187) Essa força
com um determinado padrão estéti- de trabalho só existe, entretanto, em condições his-
co... hoje se convertem em funcio-
nais, inclusive com suplementos de
toricamente determinadas, bem definidas, em que
partes para substituição que por sua é posta em funcionamento; conforme o significado
forma se diferenciam muito mais da que adquire por sua situação em cada uma dessas
forma do membro humano. (CONTI, estruturas de produção historicamente verificadas,
1972, p.290)
o corpo (força de trabalho) se reveste de significado
O ponto de partida do qual se pode encami- diferente também para a medicina.
nhar a análise do sentido da normatividade social
Se ao olhar para seu objeto, o trabalho já o vê
é dado pela forma como toda sociedade dispõe do
de conformidade com a finalidade útil a que se pro-
corpo, e,
pôs, o vê desse ângulo especial que lhe é fornecido
[...] na sociedade, o corpo é disposto pelo projeto de produto que tem idealizado, e se
antes de tudo como agente de traba- o trabalho médico é especial, entre outros, recebe
lho, o que remete à ideia de que ele
adquire seu significado na estrutura
concomitantemente no objeto a finalidade, na for-
histórica da produção: significado ma de uma solicitação, segue-se que, ao se dirigir
que se expressa na quantidade de ao corpo tomado como força de trabalho, a medi-
corpos ‘socialmente necessários’, cina tem que incorporar as determinações especifi-
no modo pelo qual serão utilizados,
nos padrões da ação física e cultural cas dessa força de trabalho como características de
a que deverão ajustar-se. (DONNAN- seu projeto e de seu objeto, o que na prática, como
GELO; PEREIRA, 1976, p.25-26) já se viu, deve coincidir.
Em um primeiro nível, o objeto da medicina se Pode-se distinguir dois níveis em que essas con-
determina então enquanto força de trabalho, a ca- siderações se devem dar. O trabalho médico deve
pacidade de trabalhar, “o conjunto de faculdades discriminar na força de trabalho a que se dirige as
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suas características especiais de produtividade, isto rejeitar em nome de “sua objetividade” as manifes-
é, as características particulares de utilização do tações de irregularidades das doenças nos doentes
corpo no concreto trabalho útil em que se empre- como impertinências toleráveis, ossos do ofício.
ga, e tomá-las como referência para a execução da Não obstante, só chega a conhecer o patológico,
terapêutica. Esta consideração não é senão o refle- nos casos citados como exemplo, porque a espe-
xo no projeto terapêutico da manifestação diferen- cífica utilização de cada um daqueles corpos induz,
cial da situação designada como doença conforme em tempos só secundariamente relacionados com
as diversas estruturas de normatividade peculiares as alterações anátomo-fisiológicas, a necessidade
a cada forma de atividade. do seu trabalho. Não obstante, de forma também
Assim sendo, uma artropatia não existe em só secundariamente relacionada ao grau de aco-
si, mas no pianista, no velho aposentado, na dona metimento que diagnostica, verifica adesões aos
de casa, no torneiro mecânico, etc. Manifesta-se programas terapêuticos que sugere e recuperações
como patológica de forma diferente nesses casos da “normalidade anátomo-fisiológica” que não ex-
diversos, aparece apontada como necessidade com pressam mais do que a gravidade da transgressão
distintas ênfases, repercute nas “personalidades vi- das normas conforme o julgamento que se dá no
vas” totais com ressonâncias sempre originais. Não próprio ser humano que as instituíra. É claro, ainda
há paralelo entre o quadro “objetivo”, as caracte- uma vez se saliente, que tal julgamento não é efe-
rísticas de severidade e extensão do acometimento tuado à base de critérios psicológicos puramente;
tais como podem ser detectadas e classificadas com esses são os reflexos na consciência e nas emoções
base nos critérios clínicos e laboratoriais do médico de um julgamento que o próprio “modo de andar a
e o quadro objetivo de sua existência enquanto nor- vida” já realizara; uma decorrência deste fato é que
ma patológica, – as percepções e reações concretas o custo do cuidado médico, aí incluídas as medidas
dos indivíduos trabalhadores afetados. O médico materiais (exames, drogas, aparelhos, dietas, etc.)
individual nem sempre – poder-se-á até suspeitar e não materiais (reorganização da distribuição das
que raramente, – se dá conta desta objetividade de atividades no tempo), implica em possibilidades di-
forma sistemática; está propenso, pelo contrário, a ferenciadas de realização por parte das diferentes
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forças de trabalho, o que traduz, não só através de produção, – como classe social. Há que se explicitar
seus recursos econômicos mas também pelo que melhor este passo, entretanto.
se vem chamando normatividade social, a situação Por situação do trabalho na estrutura produtiva
diferencial que, dado o seu caráter útil específico, se deve entender a posição relacional que conjun-
ocupam na estrutura social. tos de agentes sociais – distintos enquanto grupos
Por outro lado, o trabalho médico deve então precisamente por isso – mantêm reciprocamente
discriminar também, na força de trabalho, a marca nas sociedades, no que diz respeito à produção, na
que lhe é dada por sua situação econômica na es- medida em que mantêm com os objetos de traba-
trutura produtiva: os corpos do escravo, do servo, lho e com os meios de trabalho postos a funcionar
do proletário, do camponês, do artesão, do senhor relações diferenciadas de propriedade econômica
feudal e do capitalista se revestem de significados e de posse8. Meios e objetos de trabalho não são
econômicos distintos; a medicina deve dar conta manipulados no processo de trabalho independen-
dessa diversidade através de um cuidado necessa- temente de tais relações que os homens (trabalha-
riamente diverso, qualitativamente. Aqui se trata dores e não trabalhadores) mantém entre si, atra-
do reflexo, no projeto terapêutico – e especialmen- vés de suas relações com esses meios e objetos: o
te nas formas de organizar a produção e a distribui- processo de trabalho, tal como pode ser analisada
ção do trabalho médico – das estruturas de norma- fora dessas relações constituindo-se, portanto em
tividade peculiares a cada situação econômica da 8.
“As relações de produção são constituídas, numa sociedade dividida em
classes, por uma dupla relação que engloba as relações dos homens com a
força-de-trabalho. natureza na produção material. As duas relações são relações dos agentes
da produção com o objeto e com os meios de trabalho (as forças produtivas)
Tomando a situação do trabalho na estrutura e, assim, por tal distorção, as relações dos homens entre si, as relações de
produtiva como o critério fundamental na deter- classe. Estas duas relações referem-se então: a) à relação do não-trabalha-
dor (proprietário) com o objeto e com os meios de trabalho; b) à relação do
minação, em cada forma de organização social, produtor imediato (ou do trabalhador direto) com o objeto e com os meios
do lugar social dos indivíduos, o objeto da medi- de trabalho. Estas duas relações comportam dois aspectos: a) a propriedade
econômica: significa o controle econômico real dos meios de produção, isto
cina se determina então já não apenas como for- é, o poder de afetar os meios de produção para determinadas utilizações a
dispor assim dos produtos obtidos; b) a posse: significa a capacidade e di-
ça do trabalho, mas como força de trabalho posta namizar os meios de produção, isto é, o domínio do processo de trabalho.”
em funcionamento sob determinadas relações de (POULANTZAS, 1975, p.19)
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abstração, necessária ao conhecimento, mas que também, portanto, a ideia de relações de produ-
não dá conta do real. À unidade do processo de ção, e, por via dessas últimas, o político-ideológico,
trabalho com essas relações (relação de produção) articulando-se (não “sobrepondo-se”) ao econômi-
aplica-se o conceito de processo de produção. co no próprio processo produtivo. Ora, o conceito
Na medida em que a produção é uma manifes- que dá conta desses lugares na estrutura produtiva,
tação humana, tais relações de produção, “no seio desde que as relações político-ideológicas façam
desta unidade (com o processo de trabalho, consti- parte integrante de sua determinação (com o que
tuindo o processo de produção) [...] dominam sem- se especificam então os lugares na estrutura social)
pre o processo de trabalho... (imprimindo-lhe) seu é o conceito de classe social. (POULANTZAS, 1975,
traçado e seu modo de proceder.” (POULANTZAS, p.13-38) Por isso, se pode dizer que, ao dirigir-se à
1975, p.22) Ainda na medida em que tais relações força de trabalho posta em funcionamento no pro-
de produção não são relações “naturais” nem de- cesso de produção, isto é, sob determinadas rela-
rivam de nenhuma necessidade imperiosa inscrita ções de produção, a medicina toma como objeto as
no econômico, o processo de produção aparece classes sociais.
também como processo de reprodução das rela- Duas observações se fazem aqui necessárias.
ções de produção, em que são forças de natureza Em primeiro lugar, não se trata neste trabalho de
política e ideológica que as constituem. (POULANT- sociedades primitivas, em que o desenvolvimento
ZAS, 1975, p.22)9 Ao introduzir a ideia de situação da produção ainda não ensejara a acumulação e a
do trabalho na estrutura produtiva introduz-se apropriação de um excedente econômico suficiente
9.
“É deste papel dominante das relações de produção sobre as forças produ- para dar início à divisão social do trabalho. Em tais
tivas e o processo de trabalho que decorre o papel constitutivo das relações
políticas e das relações ideológicas na determinação estrutural das classes sociedades não há uma medicina no sentido aqui
sociais. As relações de produção e aquelas que as compõem (propriedade tratado, não há uma separação entre o corpo que
econômica/posse) traduzem-se sob a forma de poderes daí decorrentes, em
suma, pelos poderes de classe: como tais, esses poderes estão constituti- transgride normas e o trabalho de restauração des-
vamente ligados às relações políticas e ideológicas que os consagram e os sas normas, a consciência individual difusa no social
legitimam. Essas relações não se sobrepõem simplesmente às relações de
produção ‘já existentes’, mas estão presentes, sob forma específica em cada que verifica a transgressão e aquela que determina
modo de produção, na constituição das relações de produção.” (POULANT-
ZAS, 1975, p.22)
o modo de correção, não há trabalho médico como
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trabalho separado. É certo que em sociedades ainda rentes à situação da força de trabalho na estrutura
bastante primitivas, povos nômades de caçadores e produtiva, à sua determinação estrutural de clas-
pescadores e culturas agrícolas de subsistência, se se11, sobredeterminam as estruturas de normativi-
pode ver já a medicina caracterizada na figura do dade que se referem ao caráter útil específico da
“xamã”, mas, nesse caso, o objeto deriva sua he- força de trabalho. (POULANTZAS, 1975, p.14) Desta
terogeneidade ainda apenas dos substratos físicos forma, um mecânico de automóvel é sempre um
originais da divisão social do trabalho, – sexo e ida- trabalhador qualificado de uma certa maneira,
de e sua relação com a utilização dos corpos em ta- capaz de uma atividade útil determinada, quer a
refas diferenciadas. Trata-se de sociedades comuni- exerça em uma pequena oficina própria de repa-
tárias em que os agentes sociais não se diferenciam ros, quer a exerça como assalariado de uma grande
enquanto classes sociais. Tal diferenciação só se dá indústria; mas a virose que ameaça suspender essa
com o advento dos modos de produção tributários10 atividade assume significados distintos nas duas si-
e só a partir de então, correlatamente, à medicina o tuações. A diferença, contudo, só chega a manifes-
objeto aparecerá assim caracterizado. Em segundo tar-se em toda a sua plenitude quando se tomam
lugar, note-se que as observações precedentes so- os conjuntos de mecânicos de automóveis proprie-
bre as características do objeto da medicina ainda tários de pequenas oficinas de reparos e, daqueles
se situam em um nível de abstração que faz valer assalariados de grandes indústrias, pois o significa-
suas conclusões para todo o período histórico de do das estruturas de normatividade referentes às
existência das sociedades divididas em classes, não classes sociais só pode ser apreendido no mesmo
apenas para uma qualquer das estruturas de histo-
ricidade verificadas nesse período. 11.
“Pode-se assim dizer que uma classe social define-se pelo seu lugar no
conjunto das práticas sociais, isto é, pelo seu lugar no conjunto da divisão
Recuperando a noção acima citada, de que as social do trabalho, que compreende as relações políticas e ideológicas. A
relações de produção dominam o processo de tra- classe social é, neste sentido, um conceito que designa o efeito da estrutura
na divisão social do trabalho (as relações sociais e as práticas sociais). Este
balho no seio do processo de produção, se pode lugar abrange assim o que chamo de determinação estrutural de classe, isto
afirmar que as estruturas de normatividade refe- é, a própria existência da determinação da estrutura – relações de produção,
lugares de dominação-subordinação política e ideológica – nas práticas de
10.
A expressão é tomada de AMIN (1976, capítulo I). classe: as classes só existem na luta de classes.” (POULANTZAS, 1975, p.14)
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espaço dessas, e este é o espaço da sociedade, não abrevie e não sofra intercorrências, condições que
o do indivíduo12. se obtém com repouso e boa alimentação, a me-
A medicina, ao apreender estas estruturas de dicina apreende na prática o significado que essas
normatividade, também não o faz predominante- doenças simples assumem por referência à estru-
mente ao nível individual, e as adaptações que se tura de normatividade relativa às classes sociais,
devem verificar entre a historicidade da medicina no modo de produção capitalista, por exemplo, e
e as modificações históricas de seu objeto enquan- opta, nesta mesma prática, por modificar o objeto
to classe social, melhor são apreendidas, correla- central da terapêutica, que passa a ser identificado
tamente, ao nível do relacionamento de conjunto como o “apagamento” mais perfeito possível dos
da prática médica com as estruturas de classes. Por sintomas, de forma tal que, ainda que para o mé-
esta razão se salientou acima o papel estratégico dico a infecção continue existindo, para o seu por-
do estudo das formas de organização da produção tador ela não existe mais, pois não se manifesta, e
dos serviços médicos para a compreensão do refle- a atividade produtiva não precisa ser interrompida.
xo das estruturas de normatividade referentes às As recomendações que sua própria ciência afirma
classes sociais no projeto terapêutico. Um exemplo como básicas, o médico vai encontrar oportuni-
entre muitos se pode derivar da mesma ilustração dades diferentes de lembrar-se delas e de poder
empregada acima: as viroses. Mesmo tendo em dispender parte de seu tempo (empregar-se nis-
conta que o melhor a fazer diante de uma virose, to, portanto; trabalhar nisto, ser médico fazendo
dada a “objetividade” do conhecimento de sua fi- isto) com elas, conforme o lugar, na organização da
siopatologia, é oferecer ao corpo as melhores con- produção dos serviços em que esteja trabalhando,
dições possíveis de defesa para que seu curso se lugar que equivale de forma muito fiel às caracte-
rísticas do objeto que estará manipulando. As ins-
12.
“O aspecto principal de uma análise das classes sociais é bem aquele de tituições destinadas às diferentes classes sociais
seus lugares na luta de classes: não é dos agentes que as compõem. As clas-
ses sociais não são grupos empíricos de indivíduos – grupos sociais – ‘com- têm entre suas características a previsão do tempo
postos’ pela adição desses indivíduos. [...]a questão pertinente que deve ser que deve durar o cuidado, não por nenhuma ma-
colocada na relação das classes sociais e de seus agentes não é aquela da
classe a que pertence este ou aquele indivíduo determinado (o que importa quiavélica “intenção institucional” de diferenciar
são os conjuntos sociais), [...].” (POULANTZAS, 1975, p.17-18)
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os cuidados oferecidos, mas por uma adaptação rer segui-las, buscando impor à vida a sua própria
que se vai produzindo na prática às estruturas de normatividade, decorrente sem dúvida daquelas
normatividade da classe social que atendem. Como mesmas condições de vida, mas sadia como qual-
corolário, se, contrariando tais determinações es- quer outra. No filme, ele o faz, mas aqui acaba o
truturais, o médico procura ser fiel à sua “objetivi- paralelismo entre a vida e a arte: esta imita aquela,
dade científica” e empreender um discurso norma- mas não pode reproduzi-la, e na vida, a imposição
tivo sobre a importância do repouso e da dieta para da normatividade não passa apenas pela consciên-
a superação da virose, verificará que o proletário cia do indivíduo, mas, antes de aí se apresentar está
que atende não pode ouvir tal discurso pela razão já constituída na consciência do grupo social que as
objetiva de que não pode atendê-lo. Chaplin mos- porta, e ao qual ele pertence.
trou didaticamente o sentido desta impossibilidade Não se quer evidentemente afirmar uma ge-
em “Tempos Modernos”. Após a clássica sequência neralidade ilegítima e gratuita tal como a sugestão
inicial, em que a revolta de seu personagem diante de que essa classe em especial (ou qualquer outra)
das condições de trabalho resume, com a capacida- apresenta características tais ou quais de inteligên-
de sintética de que só a expressão estética é capaz, cia ou de cretinismo, barreiras culturais ou aber-
o sentido da loucura, este é internado em um hos- turas intelectuais que a tornam mais simpática ao
pital com o “diagnóstico” de esgotamento nervoso. discurso normativo do médico. De resto, qualquer
Repousado, o personagem tem alta em plena re- discurso normativo só é compreensível, no sen-
cessão econômica, desempregado, sem habitação tido de absorvível, quando corresponde a valores
e fichado pela polícia como arruaceiro; o médico “pré-normais” já instaurados, e, neste caso, tem
que o despede do hospital dá-lhe um encorajador sido bem escassa a plateia adequada da medicina
tapinha nas costas e recomenda: “Take it easy and ao longo da história; por outra parte, a consciência
avoid excitements”. Não se trata apenas, para o per- que uma classe pode ter da “objetividade” da pato-
sonagem, de não poder seguir as recomendações logia só pode ser constituída em conjunto, através
devido à precariedade de suas condições de vida, das mesmas práticas político-ideológicas que facul-
mas, trata-se também – e sobretudo – de não que- tam outra consciência qualquer.
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A medicina toma para si como objeto, portanto, das práticas, e enquanto persiste, com o grau de
as estruturas de normatividade das classes sociais. reiteração e de estabilidade que permite apreciar
Tais estruturas, convém notá-lo, não são “puras”, as sociedades como estruturadas, impõe um sen-
no sentido de que refletiriam, como um espelho, tido obrigatório às práticas que a produziram. Em
as condições objetivas da existência de cada clas- outros termos, submete à ideologia da classe cuja
se que as porta, mas são o resultado da filtragem hegemonia se constituiu naquela organização da
desse reflexo através de uma estrutura de normati- sociedade segundo seus interesses, as práticas e
vidade dominante. A normatividade, enquanto dis- representações das outras classes em presença. A
posição de instaurar valores como normas e ajuizar prática médica deve, pois, alinhar-se – e a história é
as variações dos critérios que serviriam para aque- testemunha de bem poucas situações em que esse
la instauração em função das normas instauradas13, alinhamento não se tenha dado suave e funcional-
se constitui, portanto, em um conjunto de práticas mente, o que tem a ver com as características pró-
materiais referentes a, e indissociáveis de um con- prias de seus agentes, a que se voltará posterior-
junto coerente e organizado de concepções. Trata- mente – com esse conjunto organizado de práticas
se, pois de uma prática político-ideológica. sociais, e fazê-lo subordinando-se ao sentido que
São, portanto, também práticas político-ideo- preside à própria organização. Em outras palavras,
lógicas que a medicina toma como objeto. E aqui a prática médica necessariamente se polariza em
aparece, através de seu objeto, a dimensão talvez relação à contradição fundamental de classes que
mais relevante da articulação da prática médica caracteriza cada forma de organização social, e o
no conjunto organizado das demais práticas so- faz necessariamente orientando-os de forma posi-
ciais. Porque esse conjunto não é naturalmente tiva para aquela classe fundamental que se cons-
organizado; sua organização é o resultado con- titui em dominante em cada uma dessas formas:
traditório que se produz pela própria articulação a este fato se chama articulação no conjunto das
práticas sociais, e nada diferencia a prática médica
Por normativo se entende em filosofia “todo juízo que aprecia ou qualifica
13.

um fato com relação a uma norma, mas esta modalidade de juízo se encon-
de outra qualquer sob este aspecto, exceto a muito
tra subordinada no fundo a aquela que institui normas. No pleno sentido da particular especificidade de seu objeto. Uma orien-
palavra, normativo é aquele que institui normas.” (CANGUILHEM, 1971, p.92)
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tação diferente descaracterizaria a prática médica C. O processo de trabalho médico. Os instru-
como articulada, e, na medida em que não é pos- mentos de trabalho
sível conceber-se uma prática desarticulada, o que
seria o mesmo que autonomizá-la, só se verificam Por um exame das características gerais de his-
historicamente ambiguidades nessa polarização da toricidade do objeto da prática médica foi possível
medicina quando uma forma de organização social referir já algumas das características gerais de his-
atinge a exaustão, e a crise da hegemonia funda- toricidade dessa prática mesma, através da dupla
mental abre a possibilidade de sua substituição por determinação que esse objeto lhe impõe: enquan-
uma nova forma de organização. A reorientação da to material cujas modificações obrigam o trabalho
prática médica na França, no fim do século XVIII, a novos modos de aproximação e de manipulação,
tal como analisada por Michel Foucault (1977)14, dá enquanto finalidade distinta que subordina a von-
bem a medida das condições em que é possível e tade, no trabalho, a diferentes fios condutores.
do alcance de que é capaz a reorientação da prática Já que o trabalho não se confunde, entretanto,
médica em uma situação revolucionária. Sob uma com a observação especulativa, mas define toda
perspectiva de análise diversa, mas igualmente aproximação interpretativa como momento de seu
ilustrativa Navarro (1976, p.33-66) mostra a traje- lidar transformador, há que desenvolver meios de
tória da medicina chilena no governo Allende. encaminhar essa aproximação e meios de efetivar
Dessa forma, ao lidar com estruturas de nor- essa transformação. As características do objeto
matividade, e, portanto, com práticas político-ideo- de um lado, a finalidade do trabalho de outro, de-
lógicas, a medicina contribui para a reprodução de terminam as características desses meios de apro-
relações de classe, e o faz desenvolvendo e am- ximação e de transformação, – meios de trabalho.
pliando de forma coerente com os princípios gerais Toda historicidade verificada no objeto e na finali-
de organização da supra estrutura os materiais que dade deve ser reencontrada, portanto, nos meios
lhe são trazidos pelas diversas classes que atende. de trabalho. Enquanto resultado histórico, contu-
do, isto é, como solução técnica encontrada para a
14.
Especialmente capítulos II e V.
recíproca determinação da finalidade do trabalho e
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do determinismo da natureza, os instrumentos de volvimento progressivo das trevas do passado para
trabalho exprimem um modo de existência históri- a luminosidade da era científico-tecnológica. Ao
co do trabalho, por eles dinamizado em uma certa mesmo tempo, se tende a negar, com igual empe-
direção, por isso mesmo restringindo em outras di- nho, a historicidade enquanto significado consubs-
reções. Sendo os modos históricos de existência do tancial com os objetos e as finalidades entre as
trabalho, por outro lado, definidos pelas relações quais estabelecem o modo do trabalho. Isto signifi-
sociais que os trabalhadores estabelecem entre si, caria marcar os meios de trabalho pelas estruturas
pode-se concluir que os instrumentos de trabalho históricas em que se inserem, procedimento que,
exprimem não só soluções técnicas encontradas para a época em que se vive, é duas vezes indescul-
pelo homem para suas relações com a natureza, pável: em primeiro lugar, em um sentido genérico,
mas sobretudo soluções técnicas adequadas a de- tende à demonstração de que a técnica se deter-
terminadas relações sociais, organizadas segundo mina como modo de adequar o trabalho à racio-
as quais os homens então se relacionam com a nalidade socialmente determinada da produção,
natureza. Desta forma, como expressão adequada com o que se pode estar melindrando a moderna
dessas relações sociais, os instrumentos de traba- mitologia do desenvolvimento técnico-científico;
lho são resultados históricos, e como tais determi- em segundo lugar, no caso específico da medicina,
nam, no quadro de uma dada forma de organização prática cujas articulações supra estruturais estão
social, o modo de preceder do trabalho. Vale dizer, amplamente fundamentadas na sua legitimação
indicam as direções nas quais estes podem orientar como técnica potencialmente dotada da capacida-
suas finalidades e os aspectos segundo os quais os de de resolver todos os problemas referentes ao
objetos serão desprendidos no natural para serem estado de saúde do homem15, significa nada menos
nele integrados. do que desampara-la de sua talvez mais sólida base
Aos instrumentos de trabalho da medicina se de sustentação. Significa questioná-la pelo lado em
concede, de modo contrastante com o que ocor- “À medida em que a medicina aprimora os meios para ‘conhecer e tratar as
15.

doenças’, no século XIX, desponta a dimensão em que se fundamenta toda


re para os objetos e as finalidades, a historicidade, sua contribuição político-ideológica à reprodução das relações sociais capita-
listas: a crença na eficácia da técnica e em seu ilimitado poder de produzir ou
sob a forma de diversificação progressiva, desen- de devolver o bem-estar ao homem.” (NOGUEIRA, 1977, p.68)
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que se representa como inatacável, até quando se tar compreendê-la de uma perspectiva científica.
procura reformá-la. Entretanto, tomados do ângulo Se é verdade que, de uma parte, como força produ-
do processo de trabalho, os instrumentos da medi- tiva potencial, sua potencial subordinação aos inte-
cina não se distinguem em substância de quaisquer resses dominantes pode torná-la em instrumento
outros, e só podem ser compreendidos com base de reprodução de relações sociais, isto está longe
nos mesmos critérios que procuram examiná-los a de significar – e a história é testemunha – que o
partir de sua necessária inserção histórica na práti- conteúdo do conhecimento científico e os métodos
ca social. de investigação elaborados encontrem seus limites
Convém aqui, todavia, abrir um parêntese para restritivamente no quadro de uma determinada
explicitar os limites da posição que se adota por re- forma de organização social. Por outro lado, essa
ferência à técnica, no que diz respeito a sua relação persistência histórica não pode ser tomada de tal
com a ciência. Não sem a consciência de que se está forma que eleve a ciência à condição de “bruxaria
resvalando por um terreno extremamente comple- superior”16, entidade supra-histórica e mitológica
xo e movediço. Não se trata aqui, evidentemente, da qual se deve esperar por uma espécie de nova
de dissertar sobre esse assunto, mas na medida em Revelação, a solução para os problemas da huma-
que parte dele diz respeito ao tema abordado, é nidade.
inevitável ao menos delimitar as fronteiras. Escla- Enquanto corpo de leis e abstrações produzido
reça-se para esse fim que não se adota aqui a tese a partir da prática concreta dos homens na história,
de que os conhecimentos científicos são, enquanto a ciência certamente guardará relações com essa
parte das supra-estruturas, redutíveis integralmen- “A superstição científica leva consigo ilusões tão ridículas e concepções tão
16.

infantis que a própria superstição religiosa acaba enobrecida. O progresso


te – e funcionalmente – à concepção do mundo das científico fez nascer a crença e a espera de um novo Messias…; as forças da
classes dominantes; tampouco se aceita a ideia de natureza, sem intervenção alguma da fadiga humana, mas por obra de me-
canismos cada vez mais aperfeiçoados, darão abundantemente à sociedade
identificação entre ciência e “verdade objetiva”. todo o necessário para satisfazer suas necessidades e viver comodamente.
Ambas as proposições remetem a questões não […] Na verdade, como se espera demasiadamente das ciências, se a concebe
como uma espécie de bruxaria superior, e por isso não se consegue valori-
formuladas mas implícitas acerca do caráter e do zar com realismo o que a ciência oferece concretamente.” (GRAMSCI, 1974,
papel bom ou mau da ciência que desistem de ten- p.362) (Tradução livre da citação em espanhol no original de Mendes-Gon-
çalves).
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prática: é muito fácil demonstrar tais relações, e a Para os fins deste trabalho, importa reter en-
própria medicina oferece eloquentes exemplos; en- tretanto duas ideias mais importantes: em primeiro
quanto interpretação do mundo real, a ciência será lugar, o desenvolvimento de um corpo de conhe-
sempre uma região da ideologia, bastando lembrar cimentos abstratos de natureza científica referen-
para sustentar essa ideia que o obscurecimento da tes ao corpo humano normal (anatomia, fisiologia
investigação científica esteve sempre relacionado e suas ramificações) e patológico (patologia e suas
com a preponderância de outras regiões ideológi- ramificações) se deu sempre como resposta à ne-
cas, especialmente a religião, ou que, inversamen- cessidade colocada pela existência de uma prática
te, o paroxismo do cientificismo no mundo contem- que procurava dar conta das situações, historica-
porâneo capitalista tem muito a ver com o papel mente variáveis, como se viu, designadas como
que a ciência representa na elaboração de suas “modos de andar a vida” socialmente desvalori-
supra-estruturas. Todavia, apesar de ancorada na zados. Essa resposta científica sistematizava as
prática, a ciência guarda em relação às determina- questões colocadas pela prática e possibilitava a
ções que daí lhe advém uma relativa autonomia de instrumentalização de novas técnicas de atuação,
desenvolvimento; apesar de se caracterizar como mas não desqualificava a natureza toda peculiar da
região da ideologia não pode ser reduzida a essa prática, dada por sua condição de trabalho humano
forma histórica de existência, com o que não se po- imbricado em uma estrutura social e pela natureza
deria compreender que uma classe social utiliza a particularizada de seu objeto. Subordinada dessa
ciência “de” outra, despindo-a do envoltório ideo- maneira à prática, para cada momento histórico
lógico que a reveste17. de existência desta, que corresponde a uma forma
de organização social (ou a uma etapa de realiza-
17.
“[...] a ciência mesma, em que pesem todos os esforços dos cientistas, não
se apresenta nunca como uma pura noção objetiva; aparece sempre reves- ção histórica de uma forma de organização social),
tida por uma ideologia, e a ciência é concretamente a união do fato objetivo à ciência correspondeu um momento histórico
com uma hipótese ou um sistema de hipóteses que superam o mero fato ob-
jetivo. É verdade, porém, que neste campo torna-se relativamente fácil dis- em sua própria estruturação. Em outros termos,
tinguir entre a noção objetiva e o sistema de hipóteses, mediante um proces-
so de abstração que se encontra na metodologia científica mesma, de modo
a estrutura do conhecimento, os objetos para ele
que é possível acolher uma e rechaçar a outra.” (GRAMSCI, 1974, p.361) apontados a conhecer, os métodos e técnicas de
(Tradução livre da citação em espanhol no original de Mendes-Gonçalves).
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investigação se conjugam de formas históricas mais tras um conceito qualquer sem proceder às devidas
ou menos individualizáveis, e que correspondem mediações. Ilustrando com um exemplo tomado de
a outras tantas formas históricas assumidas pela Arouca (1975, p.2-3) a ideia, de “conduta preven-
prática. Seria ocioso investigar as sequências cro- tiva” carrega especificidades totalmente diversas
nológicas dos eventos que marcaram as etapas nos quando apreendida em cada uma dessas estruturas
desenvolvimentos paralelos da ciência e da técni- epistemológicas da ciência médica e o procedimen-
ca médicas, pois a questão aqui colocada diz res- to de rastrear uma história da medicina preventiva
peito ao tempo histórico desse desenvolvimento. que vê na concepção que os gregos faziam de “pre-
Neste caso, e a título de ilustração, a análise das venção” uma precursora da que seria desenvolvida
relações entre a Revolução Francesa, a prática mé- no século XX é carregado de uma arbitrariedade
dica e a ciência médica empreendida por Foucault que não permite compreender nem a racionalida-
(1977) segue sendo o exemplo mais luminoso. Si- de da ideia clássica, nem a da ideia contemporânea,
gerist (1974) apresenta também um estudo das re- dissolvendo os conceitos em seu aspecto formal e
lações entre o desenvolvimento da ciência médica esvaziando-os de toda significação concreta.
e as condições históricas da existência da prática Em segundo lugar, ao tratar-se dos meios de
que mostra essa dependência, ainda que para esse trabalho médico, a ciência médica se torna secun-
autor as condições históricas sejam apresentadas dária em relação à técnica que se constitui em sua
como “obstáculos” ou “favorecimentos” ao desen- fonte de emulação e em sua aplicação instrumen-
volvimento de uma ciência que, vista do futuro pa- tal. Ingênuo seria supor-se que essa instrumentali-
rece ter estado sempre orientada para lá. zação se pudesse dar de forma controlada a partir
Cada um desses momentos históricos de estru- do conhecimento científico; mais uma vez, e agora
turação do saber se distingue de outro enquanto por via da ciência, se cederia à tentação de auto-
constitui um todo organizado, um contexto, uma nomizar a técnica em relação à prática concreta
estrutura do conhecimento em que cada conceito que a utilize. Particularizando uma afirmação geral
ganha um significado original. É necessário, portan- que se fez acima, os instrumentos de trabalho da
to, não transpor de uma dessas estruturações a ou- medicina exprimem antes de mais nada a instau-
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ração de uma relação adequada entre os agentes [...] Ao transformar o pedregulho
e os objetos desse trabalho, relação adequada às bruto de sílex num instrumento de
percussão, este (o trabalhador) o
finalidades que a este trabalho são determinadas toma no sentido longitudinal de for-
pelo sentido que sua prática deriva de sua articu- ma a aproveitar ao máximo sua re-
lação com o conjunto organizado das práticas so- sistência; qualquer outra direção o
ciais. No âmbito de uma modalidade de articulação lascaria ou diminuiria seu efeito. Ao
converter um galho de árvore numa
historicamente dada, tais instrumentos favorecem alavanca, transforma-o em braço
a maior eficácia do trabalho (em relação aos obje- indeformável em torno do qual faz
tivos socialmente definidos; mas não necessaria- girar um sistema de forças. Nesse
mente, em uma perspectiva técnica que avalie essa sentido, pedregulho e alavanca são
objetos isolados da natureza para
eficácia por parâmetros internos à própria prática), que uma denominação natural pos-
ao mesmo tempo em que restringem a multiplici- sa ser aproveitada em virtude desse
dade de formas possíveis de execução (possíveis isolamento. Mas, ocorre então na
coisa um verdadeiro processo de
em um sentido abstrato). abstração. Para percutir, não impor-
Ao tratar das características gerais do proces- ta o pedregulho como um todo, mas
apenas sua resistência e as condi-
so de trabalho, Marx (1968, p.203) define o instru- ções de sua manipulação; para le-
mento de trabalho como “uma coisa ou um com- vantar, a barra não se dá como galho
plexo de coisas, que o trabalhador insere entre si de árvore de uma espécie determi-
mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para di- nada, mas unicamente como braço
indeformável que pode imiscuir-se
rigir sua atividade sobre esse objeto”, utilizando as nos interstícios das coisas e, desde
propriedades mecânicas, físicas, químicas das coi- que encontre um apoio adequado,
sas para deixar que atuem como meio de potência faça mover um complexo de forças
(Machtmittel) sobre outras coisas, conforme seu no sentido previsto. O instrumento é
assim apropriado pelo trabalhador,
fim. (MARX, 1968 apud GIANOTTI, 1973, p.21) Essa que transforma a coisa encontrada
coisa apropriada como instrumento revela-se, as- na natureza no prolongamento de
sim como o objeto, uma coisa humanizada: seu próprio corpo. (GIANOTTI, 1973,
______________________________ p.21-22)
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O trabalho médico se apropria também de coi- “modo de andar a vida” socialmente desvalorizado)
sas e complexos de coisas que utiliza como forças para o produto desejado (“modo de andar a vida”
eficazes de conformidade com seus fins. Há que normal socialmente). O primeiro grupo de instru-
distinguir dois grupos de instrumentos que dessa mentos apenas permite um passo intermediário,
forma potenciam esse trabalho: aqueles que lhe que não interfere com a natureza do objeto a não
servem para se apropriar do objeto e aqueles que ser na consciência que o trabalho toma dele. Con-
lhe servem para efetuar nele a transformação de- tudo, é claro que não se pode admitir aqui dois pro-
sejada. Por ter que destacar o objeto de suas cone- cessos de trabalho justapostos, um que se aplicasse
xões sociais, o trabalho médico desenvolve, como sobre um objeto de trabalho natural, outro que se
se viu, uma teoria do objeto: a instrumentalização aplicasse sobre uma matéria-prima já trabalhada,
dessa teoria se encontra nos instrumentos do pri- pois não há como admitir que um objeto apreen-
meiro grupo, que permitem elaborar o conheci- dido no primeiro momento pelo trabalho se cons-
mento do objeto de trabalho por particularização titua em um produto acabado: permanece então
de leis gerais. Destacado (conhecido) o objeto, o inalterado em relação à necessidade que o caracte-
trabalho se aplica a sua transformação, de onde riza como objeto.
se origina uma teoria das transformações, mais ou Esse primeiro momento de trabalho se de-
menos imbricada na teoria do objeto conforme as termina, pois, com o procedimento que permite
épocas históricas, e cuja instrumentalização resulta adequar um objeto “natural” às características do
no segundo grupo de instrumentos. modo de proceder do trabalho, como a contrapar-
Aqui se revela sob nova forma a importância da tida no interior do processo das características do
compreensão adequada das características do ob- seu objeto, que são em cada caso particularizadas
jeto de trabalho médico, pois, a um primeiro olhar, a partir de leis gerais:
apenas o segundo grupo de instrumentos parece
Sucede com a medicina o mesmo
compor-se naturalmente com o trabalho: são as que com todas as técnicas. É uma
coisas cujas propriedades permitem a este efetuar atividade que se enraíza no esforço
o movimento do objeto designado (apontado como espontâneo do ser vivo para domi-
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nar o meio ambiente e organizá-lo tigação científica. No processo de trabalho médico,
conforme seus valores de ser vivo. este segundo grupo de instrumentos corresponde
Eis aqui porque, sem ser uma ciên-
cia, a medicina utiliza o resultado de de forma mais aproximada à dimensão manual do
todas as ciências para servir às nor- trabalho, fato que deve também ser levado em con-
mas da vida. (CANGUILHEM, 1971, ta na interpretação das formas históricas de exis-
p.176)
tência desse trabalho.
Nesse sentido, os instrumentos do primeiro Um terceiro grupo de instrumentos de traba-
grupo correspondem de forma mais imediata à di- lho deve ser considerado ainda, aquele composto
mensão intelectual do trabalho médico, e essa par- por “todas as condições materiais seja como for
ticularidade terá, como se verá adiante, importân- necessária à realização do processo de trabalho”,
cia acentuada, no papel que lhe cabe nas formas que “não participam diretamente do processo”,
históricas da existência do trabalho médico, em mas se caracterizam por “este ficar sem eles total
especial na sua articulação no modo capitalista de ou parcialmente impossibilitado de concretizar-se.”
produção. (MARX, 1968, p.205) Entre esses, o local de traba-
O segundo grupo de instrumentos, que per- lho aparece como o mais importante, e, entre os
mite a efetivação da transformação no objeto, locais onde se desenvolveu o trabalho médico na
corresponde de forma mais imediata, portanto, às história, um deles assume por referência ao próprio
finalidades do trabalho que às características de processo de trabalho uma posição tão fundamen-
seu objeto, e só a utilização conjunta, no mesmo tal que sua importância dificilmente pode ser exa-
trabalho, desses e dos primeiros pode dar conta ao gerada: o hospital. (FOUCAULT, 1977; NOGUEIRA,
mesmo tempo das finalidades e do determinismo 1977)18 Analisando as relações entre a medicina e
do objeto, o que obriga a compreender o empre- a cultura em dois períodos históricos da realização
go dos dois grupos de instrumentos de forma tal A este respeito, as análises de Foucault em O Nascimento da Clínica (1977,
18.

a constituírem um só instrumento, sempre que se capítulo V) mostram como os hospitais possibilitaram uma nova forma de
organização do saber; Nogueira (1977, capítulo 4) demonstra a rearticulação
trata do trabalho médico, não do trabalho de inves- das práticas da medicina interna (física) e da cirurgia no espaço “democrati-
zante” do hospital, em que o saber já não encontrava meios de sustentação
senão na demonstração de sua possível aplicação eficaz.
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da sociedade grega clássica, Vegetti (1972) oferece um papel ativo de compreensão e de transforma-
uma interessante oportunidade de verificação das ção da natureza[...]” (VEGETTI, 1972, p.23-24)
formas de adequação que os instrumentos de tra- Dessa forma, a escola médica de Cnidos utiliza-
balho efetivam, tanto nas relações entre o agente va apenas os instrumentos de trabalho do próprio
de trabalho e o objeto como em relação ao proces- corpo do agente de trabalho na observação passiva
so de trabalho tomado como um todo, em sua su- e desarmada de quaisquer instrumentos concei-
bordinação e finalidades que lhe são derivadas de tuais, para produzir um cuidado cuja finalidade era
seu significado no conjunto do trabalho social. Em apenas ritual:
primeiro lugar, esse autor caracteriza as escolas mé-
dicas de Cnidos e sicilianas, inscritas na preferência Tudo isso comportava obviamente
uma excessiva simplificação dos fa-
do mundo grego e submetidas à dupla pressão da tores etiológicos e dos meios tera-
metrópole e das sociedades adjacentes, persa e pêuticos; e comportava sobretudo,
itálica. Nesse ambiente, as “nascentes burguesias [...], a absoluta impossibilidade do
estavam confinadas a atividades meramente arte- prognóstico, que só pode apoiar-se
em uma elaboração metódica dos
sanais e comerciais”, sem “qualquer responsabili- dados observados no presente que
dade por seu destino histórico”, e se esse desen- permite projetar suas tendências no
volvimento das atividades urbanas despertava um futuro. (VEGETTI, 1972, p.22)
crescente interesse no conhecimento da natureza e É claro que a elaboração de qualquer
das técnicas, “a experiência de impossibilidade por prognóstico, pelas próprias razões apontadas pelo
parte do homem de controlar um mundo histórico autor, não entrava nas cogitações desse trabalho,
-político dirigido desde fora” influía de modo deci- pois não correspondia às necessidades socialmente
sivo nas dimensões teórica e metodológica daquele moldadas.
conhecimento e daquelas técnicas, caracterizadas
como “um comportamento defensivo frente à na- Em oposição, à sociedade ateniense do sécu-
tureza, que se expressava na submissão à observa- lo V, caracterizada pelo definitivo afastamento da
ção empírica e na renúncia por parte da técnica a ameaça persa e pela ampliação quase ilimitada do
comércio marítimo que possibilitaram o apogeu
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dos tempos de Péricles, engendraria uma nova fór- natureza passa de passiva a agressiva e empreen-
mula de articulação da medicina. Tal modificação dedora, e à medicina (é sempre da medicina para
é apreendida por Vegetti (1972, p.27) ao nível da esta classe social de que se está tratando) se im-
reelaboração da filosofia da ciência efetuada a par- põem, no conjunto geral do conhecimento e da téc-
tir de Anaxágoras, que reservava um local absoluta- nica, novas finalidades. Os instrumentos de traba-
mente original para a técnica: lho da medicina hipocrática vêm se adequar a essas
finalidades e à posição social do médico, subordi-
[...] para Anaxágoras o saber tinha
sua continuação nas técnicas, en- nado, mas identificado com o filósofo, incumbido
tendidas como práxis e racional de de produzir e reproduzir as relações de dominação/
compreensão e de transformação de subordinação político-ideológicas próprias daquela
natureza. É fácil intuir, agora, como
havia de completar-se o ciclo: como
sociedade. Nesse sentido, a medicina hipocrática
devia ser precisamente a atividade desenvolve uma anamnese capaz de dar conta do
técnica que proporcionaria aque- enfermo como uma totalidade individual na qual a
le material de experiências sobre o irregularidade patológica é concebida tão só com
qual se fundariam memória e saber,
a experiência perdia assim os vagos uma perturbação funcional da natureza do ho-
contornos e se aproximava cada mem19, e enquanto perturbação dinâmica é tam-
vez mais daquela experiência que o bém “esforço da natureza no homem para obter um
cientista encontra diante de si atra- novo equilíbrio... reação generalizada com inten-
vés do filtro da técnica.
ção de cura.” (CANGUILHEM, 1971, p.18) A técnica
Entre os cidadãos livres da polis e aqueles das médica, portanto, deverá copiar e impulsionar essa
sociedades jônica e siciliana não haveria modifi- ação médica natural (“vis medicatrix naturae”), de-
cação de estatuto enquanto classe dominante em
uma formação social fundada na escravidão e no 19.
“A medicina grega […] apresenta […] uma concepção […] dinâmica da en-
fermidade, já não localizacionista, mas totalizante. A natureza (physis), tanto
comércio, mas tão somente uma possibilidade di- no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A enfermidade é a per-
versa de desenvolvimento das potencialidades turbação desse equilíbrio, dessa harmonia. Nesse caso, a enfermidade não
está em parte alguma do homem. Está em todo o homem e lhe pertence por
dessa formação social: a posição assumida face à completo.” (CANGUILHEM, 1971, p.18) (Tradução livre da citação em espa-
nhol no original de Mendes-Gonçalves)
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senvolvendo uma posição solidária com o doente divisão urbana do trabalho o médico
face a uma concepção do patológico que deve ser nada mais é que um servidor des-
sa ideologia. Depende da eficácia
compartilhada, tendencialmente entre iguais:
de sua ‘tekhné’ para a subsistência
Para Hipócrates, o médico deve ser como produtor independente: deve
sempre consciente de que o pacien- saber não só curar uma febre, que
te é antes de tudo um homem, que enfraquece o corpo, como também
há de respeitar e compreender; um reduzir uma luxação acidental, pro-
homem ao qual o médico deve exor- vocada pela prática esportiva nos gi-
tar para que seja ele o protagonista násios. A ‘cura pelos medicamentos’
da luta contra o mal, ajudando-o, estava assim associada à ‘cura pela
com a anamnese e o prognóstico a mão’. (NOGUEIRA, 1977, p.65-66)
compreender a enfermidade, edu- Em contraste com esse modo histórico de exis-
cando-o com vistas à cura. (VEGETTI,
tência da medicina, o estudo de Nogueira sobre a
1972, p.36)
medicina medieval permite apreender uma outra
É compreensível, outrossim, que os conjunção dos médicos com seus instrumentos de
instrumentos de caráter manual e intelectual trabalho, determinada por uma outra finalidade
não devessem estar separados nesse modo atribuída ao trabalho médico em sua articulação na
de existência histórico da medicina; em que o estrutura social. Segundo Sigerist (1974, p.40-48),
médico se colocava como um “igual diferenciado”, enquanto a doença assume, na Europa Medieval, o
cuja eficiência imediata era o penhor de seu caráter da expiação de pecados, e o seu cuidado se
reconhecimento público: reveste em uma aura caritativa, a eficácia técnica
A medicina aparece [...] como su-
imediata perde sua função de critério avalizador da
prema técnica do corpo e está au- prática. Diante de um objeto que se apresenta as-
torizada a controlar e dosar todas sim desvalido e que deve ser mantido nesse desva-
as atividades do desenvolvimento limento como expressão particular de sua posição
somático, ginástica, atletismo, ba- social caracterizada por relações de dependência
nhos, massagens, equitação, etc. Na pessoal, a medicina “reforçada pelas representa-
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ções de caráter religioso que lhe serviam de base, condição de intelectual, que se apre-
[...] cumpria o papel político-ideológico de perpe- sentava revestida de um mito de es-
piritualidade. Este era a garantia de
tuar a subordinação dos camponeses ao senhorio seu domínio pessoal e corporativo.
[...].” (NOGUEIRA, 1977, p.7) Essa finalidade predo- [...] Portanto, tal atitude, antes de
minantemente ideológica da prática médica levou ser um mero e casual esnobismo,
tinha raízes profundas da materiali-
a uma teoria do objeto em que causas misteriosas dade da organização social da medi-
e mecanismos ocultos, só acessíveis ao alto saber cina.
(não importa absolutamente ao caso que a maior
Paralelamente, o trabalho dos cirurgiões re-
parte desse saber apareça hoje como imaginária)
presentava a dimensão manual do trabalho médi-
quase teológico do médico, apareciam como res-
co, separada e hierarquicamente subordinada ao
ponsabilizados na causação das enfermidades. A
trabalho intelectual caracterizado no físico. Aqui,
um tal objeto não havia que opor instrumentos de
por força da restrição do objeto (feridas superfi-
trabalho diversos dos discursivos, daí que o período
ciais, abscessos, fraturas, lacerações, ferimentos
seja tão pobre em termos de desenvolvimento téc-
de guerra), concebido como alteração da superfí-
nico. E é importante notar, para evitar uma valori-
cie sem relação com a recôndita internalidade do
zação negativa dessa medicina, por contraste, quer
espaço aonde se davam as doenças do físico, não
com a hipocrática, quer com a moderna, que essa
havia teoria do objeto a desenvolver, e a prática
pobreza técnica associada ao ocultismo da ciência
se reduz à repetição de uma técnica destituída de
era perfeitamente adequada ao papel social da prá-
base conceitual elaborada. Para este trabalho su-
tica, conforme faz ver Nogueira (1977, p.54):
balterno a eficácia técnica imediata mantinha seu
Quando se negava a realizar atos estatuto de critério de validade, e, embora lenta-
manuais nas dissecções públicas, mente, emperrado pelas condições institucionais –
no exame de pacientes, etc., o físico
não apenas mimetizava o comporta- as corporações e guildas cirúrgicas – a que esteve
mento da aristocracia. Com efeito, o amarrado, o desenvolvimento de instrumentos de
desdém pelo trabalho manual – fictí- trabalho se dava na direção do aperfeiçoamento de
cio ou não – servia de suporte a sua materiais de manipulação direta, desvinculado da-
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queles instrumentos capazes de apreender antes o promove a interação de suas técnicas”, com o que
objeto, próprios do trabalho intelectual. A ausência “findam as contradições sociais entre o cirurgião e
de uma verdadeira teoria do objeto ao nível do tra- o médico”, “cirurgia e medicina interna (passando)
balho dos cirurgiões é consequência, portanto, de a ser apenas duas variedades técnicas de uma mes-
um lado, da sua posição subordinada na hierarquia ma prática social.” (NOGUEIRA, 1977, p.37, 67-68)
de divisão do trabalho (a posse do conhecimento Esses exemplos não devem sugerir, entretanto,
abstrato socialmente legitimado, tal como era ensi- que através dos percalços que lhe foram impostos
nado nas faculdades era a garantia de uma posição pela necessidade histórica, a medicina foi acumu-
privilegiada na divisão social do trabalho), de outro, lando linearmente um certo arsenal de recursos
de natureza conceitualmente simplificada de seu cada vez mais capaz de dar conta de seu objeto.
objeto; como consequência o desenvolvimento dos Isto faria supor a existência de um só objeto, em
meios de trabalho refere-se quase exclusivamente primeiro lugar, e já se discutiu o equívoco de uma
ao trabalho manual e é bastante retardado. tal premissa; em segundo lugar, levaria também
Essas posições sociais diferentes do físico e do ao erro de se compreender um meio de trabalho
cirurgião viriam a perder seu sentido gradualmente qualquer de forma desvinculada da prática em que
com o desenvolvimento do capitalismo mercantilis- se insere e da ciência historicamente determinada
ta. Tanto a medicina interna se reorienta em uma que instrumentaliza. Dizer, por exemplo, que o olho
direção mais explicitamente técnica como a cirur- foi “o primeiro” instrumento de trabalho que a prá-
gia se norteia para um embasamento científico, até tica médica utilizou parece inadequado, não por ter
que Quesnay, “um dos líderes do movimento ‘inte- sido eventualmente a mão “o primeiro” recurso,
lectualizante’ da cirurgia” pudesse concluir que “os mas porque o olho de Hipócrates, o olho de Pinel,
conhecimentos que cercam e fundamentam o ato o olho de Bichat e o do médico moderno guardem
cirúrgico são mais importantes que a operação em entre si, enquanto meios de trabalho, tão somente
si mesma”, e que “os dois profissionais (encontrem) analogias fisiológicas, e já se disse que é mister não
no hospital um campo comum de experiência e (se- impor ao processo de trabalho uma óptica biofisio-
jam) chamados a colaborar um com o outro, o que lógica, pelo risco de chegar-se somente a um mode-
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lo ideal que não resulta de abstração de processos outras espécies e pode socializar sua atividade de
reais, mas da concretização arbitrária de categorias metabolização da natureza; mas essa separação e
abstratas. Como instrumentalização de conheci- as consequências que dela derivam não subtraem o
mento que não surgiu dos instrumentos, mas da saber – a não ser no plano das representações –, da
própria prática como um todo, os meios de trabalho prática da qual representa a característica humana,
não podem ser corretamente compreendidos nem isto é, a ultrapassagem do estatuto do instinto para
fora dessas práticas nem muito menos das estrutu- ganhar o de atividade proposital.
ras epistemológicas desse conhecimento. O olho é, Nada permite compreender melhor essas re-
dessa forma, indissociável do olhar. Mas não se de- lações entre a estrutura do conhecimento e sua
preenda daqui que a técnica material é gerada pelo instrumentalização do que as magníficas análises
discurso: ela encontra sua matriz no saber, que, se de Foucault em “O Nascimento da Clínica”. Mesmo
não se quiser conceber como entidade fantasma- que esse não tenha sido o objetivo central desse
górica, consiste precisamente em generalizações autor, e mesmo que as relações entre conhecimen-
conscientes e estruturas obtidas a partir da prática, to e práticas ocupem em seu trabalho uma posição
e que expressam tanto nos instrumentos como nos secundária, e a hierarquia, para o conhecimento,
discursos a sua materialidade, sob forma diversa. dessas ordens de questões não seja explicitada
Por isso o saber é histórico, por ser uma dimensão sem certa ambiguidade, “O Nascimento da Clínica”
da prática: o fato de que seja possível separá-lo da seguirá sendo ainda por algum tempo o trabalho
prática e apropriar-se dele decorre da própria ca-
sob a forma de instinto, a humanidade é capaz de infinita variedade de fun-
racterística do trabalho humano, em que a vonta- ções e divisão de funções com base nas atribuições da família, do grupo e
de do trabalho pode ser desvinculada do trabalho sociais. Em todas as demais espécies, a força diretriz e a atividade resultante,
instinto e execução, são indivisíveis. A aranha tece sua rede de acordo com
em si mesmo20, no que o homem se distingue das a incitação biológica e não pode delegar esta função a outra aranha; ela de-
sempenha essa atividade porque é de sua própria natureza. Mas quanto a
“O trabalho que ultrapassa a mera atividade instintiva é assim a força que
20.
homens e mulheres, quaisquer padrões instintivos de trabalhos que possam
criou a espécie humana e a força pela qual a humanidade criou o mundo
ter possuído nos indícios de sua evolução, há muito foram atrofiados ou afo-
como o conhecemos. A possibilidade de todas as diversas formas sociais, que
gados pelas formas sociais. Assim, nos seres humanos, diferentemente dos
surgiram e que podem ainda surgir, depende, em última análise, desta carac-
animais, não é inviolável a unidade entre a força motivadora do trabalho e o
terística distintiva do trabalho humano. Onde a divisão da função no seio de
trabalho em si mesmo. A unidade de concepção e execução pode ser dissol-
outras espécies animais foi atribuída pela natureza e impressa no genótipo
vida.” (BRAVERMAN, 1977, p.53)
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mais esclarecedor e estimulante da área da Medi- da doença viabilizada pela anatomia patológica23:
22

cina Social. Que este elogio não seja tomado por


Durante séculos, a medicina pro-
submissão a um modismo, pelo qual, ao contrário, curou o modo de articulação que
se nutre a mais absoluta aversão, mas possa expri- poderia definir as relações da doen-
mir honestamente, a vocação para um alinhamen- ça com a vida. Só a intervenção de
um terceiro termo pôde dar a seu
to intelectual – não importam para nada aqui as encontro, sua coexistência e suas
divergências metodológicas – que, se pudesse ser interferências uma forma que fosse
minimamente alcançado seria certamente muito fundada, ao mesmo tempo, em pos-
proveitoso. sibilidade conceitual e na plenitude
percebida: esse terceiro tempo é a
Contrapondo, por exemplo, no significado di- morte. A partir dela, a doença toma
ferente que as noções sobre a ordenação do de- corpo em um espaço que coincide
senvolvimento das doenças adquirem para os pré- 22
“O ‘nominalismo clínico’ deixava, paradoxalmente, flutuar no limite do
clínicos21 as distintas possibilidades de percepção olhar médico, nas cinzentas fronteiras do visível e do invisível algo que era
tanto a totalidade dos fenômenos de sua lei, seu ponto de concentração,
do patológico e de utilização do olho como instru- quanto a rigorosa regra de sua coerência; a doença só tinha verdade nos
mento de trabalho, Foucault demonstra a modifi- sintomas dados em sua verdade. A descoberta dos processos vitais como
conteúdo da doença permite lhe dar um fundamento que, entretanto, nem é
cação do estatuto epistemológico dos fenômenos longínquo nem abstrato: fundamento o mais próximo possível do manifesto;
a doença será apenas a forma patológica da vida. As grandes essências noso-
lógicas, que planavam acima da ordem e da vida e a ameaçavam, são agora
contornadas por ela: a vida é o imediato, o presente e o perceptível além da
doença; e esta por sua vez reencontra seus fenômenos na forma mórbida da
vida.” Ibidem.
23
“Entendamo-nos bem: conhecia-se, bem antes da anatomia patológica, o
caminho que vai da saúde à doença e desta à morte. Mas esta relação que
nunca tinha sido cientificamente pensada, nem estruturada em uma percep-
ção médica, assume, no início do século XIX, uma figura que se pode analisar
em dois níveis. O que já conhecemos: a morte como ponto de vista absoluto
21
“O que é novo não é o fato da ordenação, mas seu modo e seu fundamen- sobre a vida e a abertura (em todos os sentidos da palavra, até no mais técni-
to. De Sydenham a Pinel, a doença se originava e se configurava em uma co) para sua verdade. Mas a morte é também aquilo contra que, em seu exer-
estrutura geral de racionalidade em que se tratava da natureza e da ordem cício cotidiano, a vida vem se chocar; e a doença perde seu velho estatuto
das coisas. A partir de Bichat o fenômeno patológico é percebido tendo a vida de acidente para entrar na dimensão interior, constante e móvel da relação
como pano de fundo, ligando-se, assim, às formas concretas e obrigatórias da vida com a morte. Não é porque caiu doente que o homem morre; é fun-
que ela toma em uma individualidade orgânica.” (FOUCAULT, 1977, p.175) damentalmente porque pode morrer que o homem adoece.” Idem, p.177.
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com o organismo; ela segue suas li- teórico importante, a descoberta,
nhas e o recorta; se organiza segun- relativamente antiga e esquecida, de
do sua geometria geral; se inclina Auenbrugger - a percussão. (FOU-
também para suas singularidades. A CAULT, 1977, p.185, grifo nosso)
partir do momento em que a morte
foi tomada em um ‘organon’ técni- O tema do ‘precursor’ aparece assim reduzido
co e conceitual, a doença pode ser, à sua apropriada dimensão, que tampouco pode
ao mesmo tempo, especializada e ser simplificada a uma apreciação genérica sobre a
individualizada. (FOUCAULT, 1977,
p.181, grifo nosso) maturidade das condições econômicas que permi-
te ou exclui a possibilidade de utilização dos aper-
A essa modificação na estrutura do conheci- feiçoamentos tecnológicos. O passo intermediário
mento se deve seguir uma nova forma de instru- através do qual tais condições econômicas (inegá-
mentalização, necessariamente. Foucault mostra veis, por outro lado) chegam a se realizar implica
como se dá o passo através da análise do significa- a consideração de seu reflexo sobre as formas de
do diferencial do “signo” para os primeiros clínicos consciência, informais ou formalizadas no saber,
e para o método anátomo-clínico. Sinteticamente, que reelaboram a prática através de uma nova ins-
tais modificações de significado podem ser apreen-
didas no fato de que trumentalização. Prosseguindo com Foucault:
Era normal que a medicina clínica,
[...] o signo não fala mais a lingua- no final do século XVIII, deixasse na
gem natural da doença; só toma sombra essa técnica (a percussão)
forma o valor no interior das interro- que artificialmente fazia aparecer
gações feitas pela investigação mé- um signo onde não havia sintoma
dica. Nada impede, portanto, que e solicitava uma resposta quando
seja solicitado e quase fabricado por a doença não falava de si mesma:
ela. Não é mais no que se enuncia clínica expectante tanto na leitura
espontaneamente da doença; mas quanto na terapêutica. Mas a partir
o ponto do encontro entre os gestos do momento em que a anatomia pa-
da pesquisa e o organismo doente. tológica prescreve à clínica interro-
Assim se explica que Corvisart te- gar o corpo em sua espessura orgâ-
nha podido reativar, sem problema
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nica e fazer aflorar à superfície o que ça que fazia. Partindo da noção “dinâmica” que
só se dava em camadas profundas, fazia da pneumonia, como desarmonia de um dos
a ideia de um artifício técnico capaz
de surpreender a lesão volta a ser quatro humores naturais, a fleugma, que eventual-
uma ideia cientificamente profunda. mente se converte em pus, o qual, acumulado na
O retorno a Auenbrugger se explica cavidade pleural, ou se exterioriza pelas próprias
pela mesma reorganização de estru-
turas que se encontra no retorno a
reações de auto-curação do organismo ou, mais
Morgagni. Se a doença é constituída frequentemente, leva à morte, o problema que
apenas por uma trama de sintomas, se coloca para o médico hipocrático é o de favo-
a percussão não se justifica; ela se recer esse impulso natural curativo, propiciando
torna, porém necessária se o doente
é quase somente um cadáver inje- uma via artificial para a saída do pus. Para fazê-lo é
tado, barril cheio pela metade. Es- necessário localizar a coleção purulenta, contudo;
tabelecer esses signos, artificiais ou se esta era concebida como uma inflamação, nada
naturais, é lançar sobre o corpo vivo mais apropriado do que procurar, na superfície do
uma rede de demarcações anátomo
-patológicas: esboçar, em pontilha- corpo, o calor. Para nada serviria aqui a percussão,
do, a futura autópsia. O problema se esta não se fundamenta em uma ciência para a
é, portanto, fazer aflorar na superfí- qual a localização é uma característica essencial da
cie o que se dispõe em camadas na
profundidade; a semiologia não será
enfermidade, mas pelo contrário, sua acidental for-
mais uma leitura, mas o conjunto ma de existência. Desenvolveu-se então uma téc-
de técnicas que permite constituir nica apropriada: “misturavam areia fina com água
uma anatomia patológica projetiva. e aplicavam a suspensão rapidamente às costas;
(FOUCAULT, 1977, p.185-186, grifo
nosso) o ponto em que secava primeiro devia ser o mais
quente e era o então o local eleito para a incisão.”
Um relato de Sigerist permite compreender (SIGERIST, 1974, p.129)
como a medicina hipocrática daria conta do mes-
mo problema da patologia pulmonar dispensando Se as estruturas epistemológicas se manifestam
a percussão, embora a conhecesse, e optando por assim de forma quase imediata na instrumentaliza-
uma técnica coerente com a concepção de doen- ção do trabalho intelectual de apreensão do objeto
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da prática médica, nem por isso deixam também ria tirados das receitas vegetais tra-
de definir de forma inteiramente diversa os meios dicionais; mas o 15º apresenta uma
estranha alquimia do contra-amor;
do trabalho manual de transformação do objeto é preciso pegar ‘mercúrio revificado
em produto. Se o olho é indissociável do olhar, a com zinabre’, fragmentá-lo com dois
mão é indissociável do gesto, o medicamento de dracmas de ouro, isto cinco vezes su-
cessivas, depois aquecê-lo com espí-
sua conceituação no quadro mais amplo em que a rito de vitríolo, destilar o resultado
doença recebe de uma forma determinada o seu cinco vezes antes de esquentá-lo até
nome e a sua forma. Destarte, é conveniente com- o rubro por cinco horas sobre carvão
preender o aparente exotismo dos medicamentos em brasa. Pulveriza-se e dá-se três
grãos à jovem cuja imaginação esti-
utilizados nos séculos XVII e XVIII para o tratamen- ver inflamada por quimeras. Como
to das “doenças nervosas”, por exemplo, menos é que todos esses corpos precisos e
como reflexo de atraso e ignorância do que como violentos, secretamente animados
contrapartida de uma concepção simbólica do mal. por imemoriais ardores, tantas vezes
aquecidos e levados ao fogo de sua
Veja-se então este outro texto de Foucault (1978, verdade, poderiam deixar de triun-
p.304): far sobre os calores passageiros de
um corpo humano, sobre toda essa
Contra os males dos nervos, a ima- ebulição obscura dos humores e dos
ginação desregrada e os furores do desejos – e isto em virtude da antiga
amor, os valores simbólicos mul- mágica do ‘similis similibus’?
tiplicam seus esforços. Somente o
ardor pode extinguir o ardor, e são Relação coerente da prática consigo mesma
necessários corpos vivos, violentos e através do saber, o meio de trabalho não esgota
densos, mil vezes levados ao ponto suas determinações nesse esforço de compatibi-
de incandescência nos fogos mais
vivos, para apaziguar os apetites lização. Só é possível limitar-se a esta perspectiva
desmesurados da loucura. No ‘Apên- se a própria prática for concebida em sua dimen-
dice de Fórmulas’ que acompanha são puramente técnica, e já se disse que, enquanto
o seu ‘Traité de la Nymphomanie’,
Bienville propõe 17 medicamentos
solução técnica, a prática está antes determinada
contra os ardores do amor, a maio- pelas relações sociais que através dela se estabe-
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lecem e reproduzem. Neste sentido, o instrumento Entretanto, não é possível restringir o conhe-
de trabalho serve à prática médica antes de mais cimento de quaisquer práticas ao de suas funções
nada como meio de adequá-la às suas funções in- “externas” referentes à reprodução das estruturas
fra-estruturais e supra-estruturais, tais como foram sociais. É necessário acrescentar a esse conheci-
genericamente apreendidas acima, ao se tratar do mento a investigação das formas pelas quais, ao
objeto de trabalho enquanto classe social. São as desempenhar e para desempenhar essas funções,
características especiais das classes sociais aten- cada prática se determina também como parte des-
didas pela medicina, enquanto se refletem neces- sa estrutura social reproduzida. Aí se deve buscar o
sariamente na prática, que geram essas funções, núcleo da articulação de uma prática qualquer com
e consequentemente o saber e os instrumentos. aquele conjunto estruturado: na articulação entre
Não se deve esquecer o fato de que essa situação suas funções “externas” e sua organização “inter-
de objeto do trabalho médico, entretanto, se co- na”, dado que então é possível compreender como
locou só excepcionalmente para as classes sociais os agentes dessa prática se determinam igualmen-
das formações sociais históricas: a medicina grega te como classe social.
se dirigia fundamentalmente aos cidadãos livres; a Conforme as proposições apresentadas aci-
medicina medieval aos nobres, ao clero e aos esta- ma24, os agentes diretos da produção estabelecem
mentos urbanos, e só em muito pequena escala à relações de propriedade econômica e de posse com
população camponesa dispersa; só com o desenvol- os instrumentos e objetos de trabalho, relações es-
vimento do modo de produção capitalista a medi- sas que podem variar25, estando essa variação na
cina se generaliza, ao menos tendencialmente. Daí base das estruturas históricas de organização so-
ser possível ter como regra geral que ao longo de cial, na medida em que exprimem relações sociais
sua história no mundo ocidental a medicina se te- variantes entre esses agentes e os não-trabalhado-
nha progressivamente visto acumulada de funções 24
Vide supra, nota 9.
sociais cada vez mais complexas, e também, dada a 25
Não se tome em sentido literal essa forma de expressão, utilizada aqui devi-
dinâmica geral das sociedades de classe, envolvida do à extração dessa formulação de Poulantzas: quando se diz “podem variar”
se descreve um fato ocorrido, mas não se sugere que existam combinações
em contradições cada vez mais insolúveis. ou variações em si, das quais os modos de produção seriam “casos particu-
lares.”
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res (tendencialmente), relações de produção. Tais ciedade”, função que no modo de produção feudal
proposições não podem ser aplicadas à medicina se ligava à reprodução e à defesa da ideologia reli-
sem que se proceda a certas especificações, na giosa e dos laços de dependência pessoal entre os
medida em que o produto deste trabalho não é estamentos. (NOGUEIRA, 1977, p.67) A esse signi-
passível de existência autônoma no mundo real na ficado “externo” corresponde o desenvolvimento
forma de mercadoria, representando a cristalização de uma “patologia” em que a enfermidade tem
do trabalho, mas pode-se reter de qualquer forma necessariamente uma concepção ontológica27, mal
a ideia de que formas diferentes de relações entre que redime dos pecados e cujo desígnios são com-
os agentes do trabalho médico e seu objeto e seus preensíveis apenas ao nível do espiritual, daí que
meios de trabalho fundamentam formas diversas a técnica privilegiada para seu manuseio seja uma
de estruturação interna da prática médica, ressal- não-técnica: a observação distanciada e o pronun-
vando-se que se voltará posteriormente a discutir ciamento de um prognóstico que mais tem o cará-
com mais detalhe a dificuldade acima apontada26. ter de um vaticínio que o de uma projeção lógica.
Dessa condição de substrato da prática o ins- Internamente à organização social da prática
trumento de trabalho médico deriva, portanto o a correspondência se instala na apropriação dessa
seu significado “interno”. Significado onde se deve não-técnica por essa fração hierarquicamente su-
encontrar, por outro lado, a forma de articulação perior de agentes, que ao mesmo tempo repudiam
com o “externo”. Os agentes da medicina na Europa a posse dos meios de trabalho em que efetivamen-
medieval, conforme o trabalho citado de Nogueira, te se pode verificar uma técnica. Essa apropriação
se subdividem em diversos estamentos hierarqui- é garantida institucionalmente pela restrição à
camente relacionados. A uma dessas frações, aque- posse do conhecimento através das Universidades
la compreendida pelos “físicos”, correspondia com 27
É interessante observar a esse respeito que o dogma da homogeneidade
qualitativa do normal e do patológico analisado por Canguilhem pode ser
maior ênfase a função supra-estrutural de “propa- compreendido também, em uma perspectiva histórico-cultural de mais longo
gação” e “dinamização ideológica para toda a so- prazo, como parte do amplo movimento de rejeição da explicação religiosa
dos fenômenos naturais iniciado com o Iluminismo, e que na medicina se
traduziria mais tarde pelo rechaço de toda teoria ontológica da enfermidade,
26
Nota do editor: Essa discussão é retomada na segunda parte do texto origi- primeiro em Broussais, logo, às últimas consequências, com Claude-Bernard.
nal da dissertação, não reproduzida neste volume. Ver a propósito: Canguilhem (1971, p.43,74).
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e pelos regulamentos corporativos que proíbem através de sua caracterização como processo de
a execução de uma série de trabalhos por agen- trabalho e da caracterização dos momentos desse
tes não-qualificados. Ademais, como a execução processo teve dupla finalidade. Em primeiro lugar,
de qualquer trabalho médico fica subordinada à demonstrar a esterilidade do seu estudo desvincu-
posse desse saber, os demais agentes, deles des- lado de toda historicidade, tal como se acha ampla-
tituídos, ficam igualmente subordinados aos que o mente difundido nas “histórias” da medicina, e ne-
possuem. Tal é a relação que se estabelece entre cessidade de encontrar a adequada perspectiva da
físicos de um lado, e, do outro, cirurgiões, medida qual captar essa historicidade, aqui fornecida por
por suas relações com o conjunto dos instrumentos sua articulação em estruturas de historicidade. O
de trabalho. Nos termos de Nogueira (1977, p.67), próximo capítulo28 tratará de proceder a este estu-
do, mas advirta-se desde já de suas limitações: por
as relações político-jurídicas, im-
plantadas pelas corporações, refle- referência à exposição até aqui efetuada, o que se
tiam e simultaneamente reforçavam seguirá não deve ser compreendido como um estu-
a predominância do físico e facilita- do de prática médica em sociedades concretas, mas
vam-lhe o desempenho das tarefas
ideológicas.
antes, ao nível ainda abstrato de uma estrutura de
historicidade determinada, o modo de produção
Em um só movimento, portanto, a existência capitalista. E ainda, repetindo uma ressalva antes
de determinados instrumentos de trabalho e a for- já feita, todas as dimensões constitutivas da prática
ma de sua posse indicam o nível de articulação “ex- médica são nesse trabalho estudadas de forma su-
terna” da prática médica na estrutura social, o nível bordinada à finalidade mais restrita de analisar as
da organização “interna” da prática e a articulação determinações de seus agentes no interior daquele
entre os dois. modo de produção.
A análise que se efetuou sobre a historicidade
da prática, através da indicação genérica nos nexos
de sua articulação com o conjunto organizado das
práticas sociais, tais como podem ser apreendidos 28
Cf. Nota anterior do Editor => Mantemos?
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cina y sociedad. Barcelona: Editorial Fontanella, çalves, com trinta e três anos de idade, defendia a
1972. dissertação de mestrado Medicina e história: raízes
sociais do trabalho médico. (MENDES-GONÇALVES,
1979) A dissertação não foi publicada em português
e somente em 1984 a Siglo XXI editores publicaria
o texto integral, na sua Coleção Salud y Sociedad,
onde figuravam nomes consagrados como Bastide,
Foucault, Navarro, Canguilhem e outros. (MENDES-
GONÇALVES, 1984)

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Como grande parte das dissertações e teses, a do panorama social e histórico” e que aparece em
sua leitura, em uma época onde não havia a divul- seus trabalhos, ou da chamada “tradição narrativa
gação digitalizada, tinha como recurso fazer uma marxista.” (MELO, 2014; LEVINE, 1997)
xerocópia que passava a circular entre os interes- Ricardo Bruno relata que inicialmente a pro-
sados. posta era “esclarecer as determinações estruturais
Assim, retomar este trabalho e publicar excer- do trabalho médico no modo de produção capita-
tos do original constitui uma importante e louvável lista”, mas foi ampliada, não se limitando aos seus
iniciativa, procurando apreender a narrativa, seu agentes [médicos], e partindo do trabalho médico
contexto, a sua orientação teórica e complementar para “uma perspectiva de análise que pareceu ca-
com alguns comentários feitos na atualidade. paz de proporcionar novas contribuições à com-
preensão crítica da prática médica como um todo.”
(MENDES-GONÇALVES, 1979, p.10-11) Com esse
1. O texto ponto de partida, o autor, na intencionalidade e na
intertextualidade, fundamentos da elaboração de
A primeira observação é que se trata de um um texto, cria a sua narrativa que divide em duas
texto que aborda um tema complexo – a pratica so- partes: história e medicina e medicina e capitalis-
cial da medicina – traçando um caminho coerente mo.
de exposição, com profundidade, mas não se per-
Embasado em autores franceses Ricardo Bruno
dendo em excessivas referências. Isso, até certo
situa o polo epistemológico que irá orientar a sua
ponto, facilita a leitura de um trabalho denso que
análise. Como outros trabalhos escritos na década
aborda, como está em seu subtítulo, as raízes so-
de 70 – por exemplo, as teses de Arouca (1975),
ciais do trabalho médico, referenciado em Marx e
Tambellini Arouca (1976) e Donnangelo (1976), –
em alguns de seus comentadores. Ou seja, traba-
Canguilhem (1904-1995) aparece como referência
lhar com Marx e textos marxistas que foram criados
fundamental. Desse autor a principal leitura era O
a partir do que alguns denominam “estratégia dis-
normal e o patológico, no original (1943) ou em ou-
cursiva que Karl Marx utiliza para discorrer acerca
tras edições francesas, ou na tradução espanhola
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(1971), visto que a edição brasileira data de 1978. 1. Dentro da racionalidade científica proposta
(CANGUILHEM, 1978) Incluem-se, ainda, ao lado por Canguilhem, especialmente no que se refere à
da leitura do original, a leitura das análises de seus formação de conceitos, o que chamo de “história
discípulos, no caso do texto de Ricardo Bruno, Do- teórica da prática”;
minique Lecourt (1944), que escreveu o prefácio da 2. A “história social da prática” onde se cruzam
edição mexicana do clássico de Canguilhem. Outro socialidade e historicidade, filosofia e práxis.
célebre francês que será referenciado é Jean-Paul
Sartre (1905-1980) e seu não menos celebrado Estas são questões postas pelo próprio Cangui-
Questions de méthode, ensaio escrito em 1957. Tra- lhem, pois além do caráter epistemológico, o tra-
ta-se de uma única passagem, mas expressiva para balho que desenvolve é “um esforço para integrar
o enfoque do trabalho de Ricardo Bruno. Nela o à especulação filosófica alguns dos métodos e das
filósofo situa a abrangência do que se deve enten- conquistas da medicina. É preciso dizer que não se
der por “orientação metodológica”, ou seja, seu ca- trata de dar nenhuma lição, nem de fazer nenhum
ráter de “totalização concreta e ao mesmo tempo julgamento normativo sobre a atividade médica.”
de projeto abstrato” (...) “método de investigação (CANGUILHEM, 1978, p.16) Estudiosos de Cangui-
e explicação” (...) “arma social e política.” (MACHA- lhem salientam essa relação ciência e filosofia da
DO, 1982) Apesar de referidas diretamente à filoso- sua obra, característica amplamente apreendida
fia, as ideias sartrianas estendiam-se à compreen- por Ricardo Bruno ao tratar do trabalho médico.
são dos mais diversos campos do conhecimento. (CZERESNIA, 2010; MACHADO, 1982) Nesse sen-
(MENDES-GONÇALVES, 1979, p.6) tido, ressalta-se a observação feita por Machado
Como poderá ser observado em toda a disser- (1982), presente no trabalho de Czeresnia (2010,
tação, e meus comentários vão se dirigir somente p.711), que a reflexão de Canguilhem não tem a
à primeira parte, Ricardo Bruno trabalha dois mo- pretensão de elaborar uma filosofia da vida capaz
mentos: de propor uma “biologia de filósofo”, a fim de de-
fender teses filosóficas sobre a vida, a existência,
o homem. “Ela contém uma reflexão sobre a vida,
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mas se exerce de forma indireta, mediante a análi- para fora de sua região de origem,
se da racionalidade das ciências que a constituem tomá-lo como modelo ou, inversa-
mente, fornecer-lhe um, em resu-
como objeto e não anulando a operacionalidade mo, dar-lhe progressivamente a fun-
que caracteriza estas ciências”. ção de uma forma. (CANGUILHEM,
1975, p.256)
Além desse ponto, chama a atenção que Ricar-
do Bruno irá trabalhar em toda a dissertação com Destaco esse aspecto epistemológico, fundan-
uma das principais vertentes do pensamento de te da dissertação, porém ela avança na construção
Canguilhem – a do conceito. Como assinala Macha- de uma “história social da prática médica”. Não se
do (1982, p.22): trata de (re)escrever a história da medicina, mas a
historicidade da sua prática. Nesse sentido, duas
Existe uma normatividade interna vertentes são referidas por Ricardo Bruno. A pri-
do discurso científico e se a história
das ciências deve ser uma história meira recupera a conferência feita por Henry E. Si-
conceitual é porque é o conceito que gerist (1891-1957), em 1933, sobre A profissão de
exprime primordialmente essa nor- médico através das idades, sendo que no desenro-
matividade; ou, em outros termos é
porque é a formação dos conceitos
lar da dissertação outros textos desse historiador
que define a racionalidade. serão citados (História social da medicina e Ciência
e história). A segunda fonte vem de Vicente Navar-
Para Canguilhem (1978, p.22-24) o conceito “é ro (1937) e seu estudo sobre as relações medici-
um nome dotado de um sentido”, “define a racio- na e capitalismo, de 1977. Mas, quanto a Sigerist,
nalidade do discurso científico”, “a manifestação cuja relação com a obra de Canguilhem vem sen-
mais perfeita da atividade científica”, mas estabe- do retomada atualmente de forma mais detalhada
lece que “teoria e conceito são coisas diferentes”. graças às pesquisas feitas nos arquivos do filósofo
Para o filósofo francês francês, conforme Almeida (2015), a crítica refere-
[...] trabalhar um conceito é fazer se à interpretação da articulação entre medicina e
variar sua extensão e compreensão, sociedade. Ricardo Bruno aponta em Sigerist uma
generalizá-lo mediante a importa- interpretação “essencialmente culturalista e an-
ção de traços de exceção, exportá-lo
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tropológica” que “o faz oscilar irremediavelmente ideias, “os momentos históricos de estruturação do
entre um relativismo total” ou “utilizando um ’mo- saber” da arqueologia foucaultiana são retomados,
delo’ geral válido presumivelmente para todas as juntamente com as observações sobre a perspec-
épocas e sociedades” que o faz proceder “a uma tiva de Sigerist, mas ressaltando as “devidas me-
delicada matização desse modelo, referenciando-o diações”, especialmente, quando se analisam os
às citadas estruturas culturais.” (MENDES-GONÇAL- instrumentos de trabalho médico. (MENDES-GON-
VES, 1979, p.3) Nesse sentido, Ricardo Bruno (MEN- ÇALVES, 1979, p.59-60)
DES-GONÇALVES, 1979, p.4) acompanha a crítica Para Ricardo Bruno a historicidade da prática
de Lecourt ao assinalar que não se pode reduzir a médica, nesta dissertação, será a dos agentes des-
história da medicina à “história da transmissão dos sa prática, especificamente no âmbito da produção
conhecimentos consagrados e dos problemas em capitalista, partido da narrativa marxista e das aná-
suspensão de uma geração a outra”. Da mesma for- lises de Poulantzas, Gramsci, Laura Conti, Luiz Pe-
ma, Ricardo Bruno, não invalidando a metodologia reira, Castells, Donnangelo.
de Navarro ao estudar a medicina nas sociedades
capitalistas, relativiza a determinação estrutural Três momentos serão destacados com o obje-
da prática médica, pois “perde-se com isso a pos- tivo de propor um quadro de referência: a prática
sibilidade de apreender um desenvolvimento his- médica como trabalho – a atividade adequada a
tórico que não seja mais que o reflexo da história um fim; o seu objeto – a matéria a que se aplica o
daqueles jogos de interesse [capitalistas].” (MEN- trabalho;as suas ferramentas – os instrumentos ou
DES-GONÇALVES, 1979, p.5) Sem dúvida, a leitura meios do trabalho. A citação de Donnangelo que
de Foucault ‘O Nascimento da Clínica’ ilumina esta abre a primeira parte orienta o leitor para entender
dissertação, lembrando que Ricardo Bruno consi- a medicina como prática social e ao mesmo tem-
dera que essa obra “seguirá sendo ainda por algum po como processo de trabalho: “A articulação da
tempo o trabalho mais esclarecedor e estimulante medicina com as demais práticas sociais constitui o
da área da Medicina Social.” (MENDES-GONÇAL- ponto estratégico do qual melhor se pode apreen-
VES, 1979, p.75) Em sua dissertação, dentre outras der o seu caráter histórico.” (MENDES-GONÇALVES,
1979, p.11) Ponto fundamental refere-se à forma
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como Ricardo Bruno concebe esses três momen- Bruno com origem nos clássicos do pensamento so-
tos. Ao adotar a expressão “momentos”, conforme cial, situando alguns dos importantes discursos de
é traduzida por Gianotti, em lugar de “elementos” interpretação desse pensamento, mas estruturan-
na tradução de Reginaldo Sant’Anna d ‘O Capital’ do um discurso próprio e original – o conceito é o
(GIANOTTI, 1973, p.202), enfatiza que “são aspec- de trabalho, mas o campo é a prática médica.
tos do mesmo processo que se iluminam reciproca-
mente.” (MENDES-GONÇALVES, 1979, p.19)
Deixo ao leitor o prazer de acompanhar o tex- 2. O contexto
to original e resgatar a narrativa erudita de Ricardo
Ao iniciar a contextualização pelos aconteci-
Bruno a partir das narrativas marxistas. Na atualida-
mentos mais próximos à época de defesa da disser-
de a leitura dos clássicos da sociologia tem passa-
tação, lembro que exatamente dois meses antes ha-
do por novas abordagens e uma questão presente
via sido fundada a ABRASCO – Associação Brasileira
quando se trata de Marx refere-se à “impressionan-
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, cuja Ata é de
te bateria de tradições intelectuais” associadas ao
27 de setembro de 1979. Numa trajetória de cres-
seu pensamento (Hegel, Kant, Rousseau, Spinoza,
cente desenvolvimento, a Saúde Coletiva encontra-
etc.) e às “diferentes coordenadas” de interpreta-
va-se em franco processo de institucionalização, no
ções, o que levou Peter Baehr (2002, p.19-20) a di-
qual os cursos de pós-graduação e a produção de
zer que as prioridades interpretativas devem consi-
teses e dissertações traçariam suas bases teóricas.
derar a transição dos trabalhos de Marx (o que ele
Certamente, essa trajetória já vinha sendo marca-
realmente escreveu, em termos de conceitos e teo-
da, em especial a partir da metade dos anos 1970.
rias) e o discurso (ou discursos) sobre os seus traba-
Quando Ricardo Bruno apresenta o seu trabalho,
lhos. O mesmo pode-se dizer de Canguilhem, Sige-
no mesmo ano, são defendidas no Departamento
rist, Foucault e outros referenciados na dissertação
de Medicina Preventiva/FMUSP três dissertações
de Ricardo Bruno. Esta aparente digressão é para
em diferentes temáticas: integração docente assis-
situar um ponto que procurei marcar neste ensaio:
tencial, medicina comunitária, trabalho médico e
a construção de uma narrativa por parte de Ricardo
______________________________ um doutorado abordando desnutrição e estrutura
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social. O curso de pós-graduação havia sido cria- funcionalistas em saúde estava em pauta desde o
do em 1973 e as primeiras dissertações datam de início dos anos 1970, recebendo forte influência,
1976. No período de 1976-79 foram defendidas 13 entre outros, do médico e sociólogo argentino Juan
dissertações de mestrado. (NUNES, 1977) César García (1932-1984) e dos diversos seminários
Se, institucionalmente, era possível realizar no organizados pela OPAS - Organização Pan America-
interior de uma Faculdade de Medicina uma for- na da Saúde, especialmente o realizado em Cuenca
mação pós-graduada com os referenciais das ciên- (Equador) em 1972.
cias sociais, embora aberta somente para médicos Tem sido analisado e documentado que não
(atualmente estende-se a todos os profissionais da foi fácil o percurso da intelectualidade que vindo
saúde), outro cenário que se projetava na década da profunda repressão em consequência do golpe
de 1970 era o do enfoque sociológico nos estudos militar de 1964, sofreria ainda mais, especialmente
de medicina/ saúde/doença/práticas médicas. Te- a partir de 1968, com o Ato Institucional no 5, que
ses e livros sobre o trabalho médico na cidade de baixado em dezembro desse ano, vigoraria até de-
São Paulo e sobre a medicina comunitária, sobre o zembro de 1978. Mesmo convivendo com as arbi-
discurso da medicina preventiva e social, sobre a trariedades da ditadura militar, parte expressiva da
história da constituição da medicina social no Bra- produção científica das ciências sociais em saúde e
sil, sobre a enfermagem como profissão e outros da saúde coletiva foi elaborada durante esse perío-
trabalhos assentam-se em sólidas bases teóricas do. Produção com alto teor teórico e inovador.
e de pesquisas histórico-documentais, quer sejam Uma oportuna observação de Donnangelo
marxistas, foucaultianas ou funcionalistas. (MA- (1982, p.4-19), no início dos anos 1980 narra que
CHADO et al., 1978; DONNANGELO; PEREIRA, 1976; nos anos 70, o social assume na pesquisa em saúde
DONNANGELO, 1975; AROUCA, 1975; FERREIRA- a sua especificidade e deixa de ser simplesmente
SANTOS, 1973) Ricardo Bruno junta-se a essa temá- uma “variável a ser adicionada” com reduzido valor
tica que iria se adensar nos anos seguintes, partíci- explicativo nos estudos epidemiológicos e sobre as
pe de uma profunda reflexão sobre o saber médico práticas de saúde.
e suas práticas. Lembro que a crítica aos modelos
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Também nos anos 70, a sociologia médica da sociologia, como o escritor, editor, ativista e
pós-parsoniana encontra-se em pleno desenvolvi- teórico marxista norte-americano Harry Braverman
mento nos Estados Unidos e Freidson (1970), cujos (1920-1976) e o sociólogo francês Georges Fried-
trabalhos haviam sido iniciados na década anterior, mann (1902-1977).
marcava sua presença com a obra que se tornaria Muitas são as vozes que ecoam nesta disserta-
referência nos estudos da profissão médica – The ção, mas, sem dúvida, a voz que ecoa fortemente,
Profession of Medicine. Mas, não é no campo estri- não somente pelo fato de ser a orientadora, mas
to senso da sociologia das profissões que eu situo o pela pesquisa e análise teórica pioneira da prática
trabalho de Ricardo Bruno, e sim na interface com médica em São Paulo e das relações saúde-socie-
a sociologia do trabalho. Estudiosos da antropo- dade, é a de Maria Cecília Ferro Donnangelo (1940-
logia e sociologia da saúde, como Queiroz (1991, 1983). Interessante que nas conclusões de ‘Medi-
p.318-319), apontam que entre os clássicos da so- cina e Sociedade’, Cecília (DONNANGELO, 1975,
ciologia somente Durkheim teve interesse nesse p.171) destaca dois pontos que, na minha leitura,
tema “uma vez que tanto Marx como Weber não são partes do diálogo que a mestra e o discípulo
chegaram, por diferentes motivos, a prestar aten- trocaram ao longo do mestrado e em trabalhos
ção nesse âmbito.” Para Burnham (1998, p.120), foi posteriores. Cecília escreve que em seu estudo ti-
“Na década de 1970 [que], neo-marxistas voltaram nha abordado “a ocorrência de diferentes formas
seu interesse para os profissionais e chamaram a sociais do trabalho médico” e que o trabalho médi-
atenção para o conflito em torno das profissões”. co representava “apenas um dos componentes do
Ressalte-se que a dissertação de Ricardo Bruno processo de produção dos serviços de saúde”, mas
recorre à literatura sobre a sociologia do trabalho que oferecia um “ângulo estratégico” para se ana-
produzida no período em que elaborou a sua dis- lisar as formas de organização desse setor e como
sertação, ver, por exemplo, as referências à coletâ- se inseria na estrutura da sociedade. No diálogo,
nea organizada pelo antropólogo argentino Eduar- Ricardo Bruno não somente apresentaria de forma
do L. Menéndez (1934) e outros autores dessa área refinada os conteúdos teóricos do trabalho médico,

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como, posteriormente, desenvolveria e ampliaria [...] a perspectiva conceitual alcan-
as questões sobre o processo de trabalho, agora, çada por Ricardo Bruno contribuiu
para a construção de aproximações
em saúde e não apenas na medicina. ao estudo das práticas de saúde no
Anos mais tarde, Ricardo Bruno (MENDES- Brasil nas quais o materialismo e a
história passaram a ser não apenas
GONÇALVES, 1995; 1992), em dois momentos, es- formas de expressar uma tomada de
creveria sobre Cecília, destacando a importância posição política, de denúncia crítica,
dos seus aportes a fim de “compreender e explicar, mas configurou positivamente possi-
bilidades de pesquisa teórica e apli-
apreender e transformar as práticas de saúde, es- cada de caráter reconstrutivo.
pecialmente a prática médica tomando-as como
práticas constitutivas da socialidade” e ao prefaciar Ayres (2015, p.910), profundo conhecedor da
‘Epidemiologia e emancipação’, de José Ricardo obra de Ricardo Bruno, ao percorrer os seus tra-
Ayres, didaticamente, estende as marcas da “esco- balhos desde a dissertação de 1979 até os seus
la” criada por Cecília além da socialidade, a histo- últimos trabalhos, assinala as transformações pe-
ricidade, a estrutura e a totalidade, fundamentos las quais passou o seu pensamento. Destaca as in-
teórico-conceituais . Na sua arguta observação fluências exercidas pela leitura de Agnes Heller na
mostra como essas marcas se desdobraram e re- qual Ricardo Bruno “enxerga uma produtiva atuali-
criaram novas possibilidades de pesquisas. zação da ontologia marxiana, de certa forma depu-
rando-a da rigidez das leituras estruturalistas”.
Mas, voltando a ‘História e Medicina’, ao tra-
balhar o seu texto dentro de uma perspectiva Muitos outros aspectos podem, sem dúvida,
marxista, assentada também em literatura que se ser destacados deste primeiro trabalho de Ricardo
orientava na análise dessa perspectiva, que de um Bruno, mas ao ressaltar alguns momentos dessa
modo geral pode ser denominada de estruturalis- construção procurei mostrar a importância da fun-
ta, a dissertação traz as marcas dos anos 1970, po- damentação epistemológica e conceitual tão bem
rém como já foi assinalado por José Ricardo Ayres apreendida pelo seu autor.
(2015, p.909),
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pinas, 1976. [Tese de Doutorado – Universidade quais a questão referida no título deste texto pode
Estadual de Campinas]. ser apreendida, diversos ângulos a partir dos quais
se pode ir procedendo, aproximativamente, à sua
cercadura, de forma a esgotá-la. Não é essa a in-
tenção deste trabalho: a de recuperar, no conjunto
dos estudos até hoje desenvolvidos, em uma espé-
cie de “revisão” (no peculiar sentido dado a este
termo na literatura médica), o conjunto de sentidos
assumido pelas doenças crônicas degenerativas en-
quanto problema ou campo problemático.
1
Texto originalmente publicado como Mendes- Gonçalves, R. B. Reflexão so-
bre a articulação entre a investigação epidemiológica e a prática médica a
propósito das doenças crônicas degenerativas. In: ABRASCO. Textos de Apoio
– Epidemiologia 1. Rio de Janeiro: PEC-ENSP; Abrasco, 1985, p. 29-86 e ree-
ditado como Mendes- Gonçalves, R. B. Reflexão sobre a articulação entre
a investigação epidemiológica e a prática médica a propósito das doenças
crônicas degenerativas. In: Costa, D. C. (Org.). Epidemiologia: teoria e objeto.
São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1990, p. 39-86.
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
O que se pretende é procurar captar o sentido jetividade, como motivação genérica diante da vida
de conjunto da questão das doenças crônicas dege- e diante da ciência, mas um pensar que exige de
nerativas por referência à prática social em que se si mesmo coerência e consistência exige, ao mes-
coloca como questão, a prática médica – escusado mo tempo, um quadro referencial de objetividade
o gosto pelo jogo de palavras, o recurso ao qual só que lhe possa garantir pelo menos a possibilidade
tema aqui a função de exacerbar ao máximo a dife- de organicidade por referência à situação histórica
rença de perspectivas. em que se localiza e diante da qual se orienta. A
Partindo desta maneira de colocar as coisas, garantia dessa possibilidade, essa virtualidade de
não há inclusive que aceitar sem prévio exame a pensar socialmente significativo só pode ser dada
noção de que a “questão” seja constituída nuclear- pela coerência metodológica.
mente pelas doenças crônicas degenerativas em si De metodologia, entretanto, obviamente não
mesmas; se refira a elas, ainda que variavelmente se tratará aqui, a não ser aplicadamente, mas de-
conceptualizadas ou redefinidas no espaço social. ve-se reter como resultado de procedimentos
É perfeitamente viável, e necessita consideração, metodologicamente justificáveis a colocação da
portanto, a suposição de que há uma questão perspectiva geral que orienta a reflexão: localizar a
prévia, um problema posto para a prática médica “questão das doenças crônicas degenerativas” no
enquanto prática social, cuja denominação sob a contexto da prática médica enquanto prática social,
forma de “questão das doenças crônicas degene- e fazê-lo em uma perspectiva particular, qual seja
rativas” se constitua já em forma determinada de a da articulação de um momento específico des-
tratamento dessa questão prévia, que certamente sa prática – o da elaboração do saber através da
comportaria entendimentos alternativos. pesquisa epidemiológica – no conjunto de outros
Esse sentido geral desta reflexão, por sua vez, momentos que a configuram como uma estrutura
não deve ser atribuído ao gosto pessoal, ou a um parcial em curso.
esforço de originalidade, quase sempre difícil de Tais observações encaminham uma última
distinguir do prazer da extravagância. Talvez seja advertência preliminar, antes talvez um esclare-
até possível partir de tais fontes, marcadas de sub- cimento: este texto está marcado sobretudo, em
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seu conjunto, por um esforço de recolocação de Isto posto, digam-se algumas palavras a res-
problemas. Sempre que possível, se reiterará esse peito do plano de exposição, que possam inclusive
compromisso durante a exposição, na medida em auxiliar a orientação dessa leitura crítica. Assumin-
que representa o objetivo principal que aqui procu- do a relação entre investigação epidemiológica e
rar-se-á alcançar, na medida em que se tem cons- prática médica como sendo de tal natureza a de-
ciência da dificuldade em alcançá-lo, desde quando finir a primeira como um momento da segunda,
se utilizarão durante todo o trabalho termos que procurou-se em primeiro lugar demarcar, em linhas
se buscou extrair de um universo estático de sig- gerais, como pode ser definida a partir da prática
nificação, e redefinir, mantendo ao mesmo tempo médica uma questão como a “questão das doenças
o sentido “velho” cuja superação foi tentada. Esse crônicas degenerativas.” Em segundo lugar, tratou-
processo de descontextualização/recontextualiza- se de apresentar algumas considerações acerca do
ção não se faz sem riscos consideráveis para a cla- caráter da mesma “questão”, quando reposta para
reza da exposição, e antes disso, é claro, em relação a pesquisa epidemiológica, e, derivadamente, su-
às possibilidades de elaboração intelectual preten- gerir alguns tópicos para o debate em torno das
didas. Que não se tomem estas palavras como um reorientações em curso nesse âmbito mais restrito
prévio pedido de desculpas pela insuficiência do da Epidemiologia.
texto, mas como indicação de uma causa genérica
de tais insuficiências que transcende as peculiari-
dades de um autor qualquer. Neste exato sentido, Prática médica e doenças crônicas degenerativas:
como dificuldade metodológica que expressa no integração de conceitos e práticas
interior do trabalho intelectual a rede de conexões
O pensamento médico oscilou sempre, até o
sociais a que ele se prende, foi que se optou por
século XIX, entre duas formas polares de repre-
apresentar esta advertência previamente, como
sentação da enfermidade. Em um primeiro caso, à
forma de solicitar uma crítica não posterior ao tex-
enfermidade foi atribuído um estatuto de entida-
to, mas contemporânea com ele.
de com existência própria, uma espécie de forma
do mal, o homem doente sendo aquele ao qual se
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agregou um ser (a Doença). O mais acabado esfor- ontológica mas dinâmica de enfer-
ço decorrente dessa concepção ontológica talvez midade, já não localizacionista se-
não totalizante. A natureza (physis),
tenha sido a elaboração da exaustiva classificação tanto no homem como fora dele, é
nosográfica a que se deu ulteriormente o nome de harmonia e equilíbrio. A enfermida-
Medicina das Espécies. As enfermidades, como os de é a perturbação desse equilíbrio,
dessa harmonia. Neste caso, a enfer-
animais e os vegetais, eram pensadas como seres midade não está em parte alguma
cujo conhecimento correspondia a uma descrição do homem. Está no homem todo e
classificatória em espécies, gêneros, e famílias, lhe pertence por completo. [...] A
segundo critérios que caberia discernir nelas pró- doença não apenas é desequilíbrio
ou desarmonia, mas é também – e
prias: o tratado médico aproximava-se daquele do pode ser principalmente – esforço
naturalista. Dessa forma de pensamento herdou da natureza no homem para obter
a medicina moderna não poucos vícios de lingua- um novo equilíbrio. A enfermidade
gem: os clínicos contemporâneos falam em “en- é uma reação generalizada com in-
tenções de cura. O organismo de-
tidades mórbidas” e em “manifestações clínicas” senvolve uma doença para curar-se.
dessas “entidades”, por exemplo, embora não adi- A terapêutica tem que tolerar, antes
ram à ideia de que a doença tenha existência pró- que tudo, e se necessário reforçar
tais reações hedonistas e terapêuti-
pria; utilizam inadequadamente esses termos ape- cas espontâneas. A técnica médica
nas em consequência, aparentemente, da relativa imita a ação médica natural. (CAN-
continuidade histórica mantida entre a sua prática GUILHEM, 1971, p.18)
e a de seus predecessores. Ambas as concepções referidas sobre a doença,
Mas há uma concepção de enfermidade oposta a ontológica e a dinâmica, comportando evidente-
a essa e que não é estranha, ainda que possa pare- mente variações, eram genericamente apropriadas
cer paradoxal, à história do conhecimento médico: para todas as épocas históricas nas quais a inter-
venção eficaz do homem sobre a natureza – a res-
A Medicina grega [...] apresenta
– nos escritos e nas práticas hipo- tauração da saúde no sentido de uma ação contra
cráticas – uma concepção já não a natureza – não poderia ser uma pretensão com-
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patível com as formas de organização social e com Supondo-se que a elaboração de representa-
suas correspondentes concepções de mundo. Por ções, concepções sobre o objeto sobre o qual se
isso, deram lugar, no século XIX, a uma concepção atuará – independentemente do caráter menos ou
nova da qual se tratará adiante. O que se pode ve- mais científico de que elas se possam revestir – seja
rificar a partir da identificação de modificações tão um passo necessariamente prévio à atuação pro-
radicais do saber médico, no entanto, é a coerência priamente dita, é natural que teorias tão opostas
entre tais rupturas e os universos historicamente como a ontológica e a dinâmica tenham em comum
estruturados de pensamento e de prática que as esse caráter instrumental. O que é mais importante
contextualizaram. O conhecimento, em outras pa- reter nessa subordinação lógica e histórica do co-
lavras, tem uma história na qual se pode verificar, nhecimento médico às necessidades postas para a
muito para além do pretenso desenvolvimento lou- prática médica no plano do social é menos a pos-
vado em tantas historiografias, a viva rearticulação sibilidade de atribuir-lhe essa instrumentalidade
da prática da medicina em estruturas de historici- intrínseca do que a possibilidade de pensar essa
dade qualitativamente distintas. Georges Cangui- elaboração conceitual como vinculada às variações
lhem (1971) aponta para a convergência dessas do objeto sobre o qual atua a prática que dela se
concepções aparentemente tão opostas na direção vale, na medida em que essas variações podem ser
do otimismo técnico inerente à própria constituição verificadas como históricas.
da medicina como um trabalho possível e legítimo, Não é necessário interpretar essa última afir-
podendo-se verificar como ambas as formas de re- mação como equivalendo a dizer que o conheci-
presentação da doença propiciam a constituição de mento médico se subordina às variações históricas
um projeto terapêutico, facultam o desenvolvimen- das doenças, no sentido de seu aparecimento e de-
to de técnicas de intervenção reconhecidas como saparecimento, do aumento e da diminuição de sua
capazes de atuar sobre a doença, mesmo quando frequência, da menor ou da maior importância que
dessa situação não se esperasse necessariamente a adquirem em variadas formas de organização so-
restauração da saúde, no sentido que hoje pode ser cial. Tal interpretação implica o compromisso pré-
associado a essa expressão. vio com uma noção “quase-ontológica” de doença,
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que existiria enquanto tal fora de qualquer deter- um objeto natural anistórico. Não apenas os obje-
minação histórica, para depois “variar” conforme tivos da prática médica pensada dessa maneira –
essas determinações; esquece que o objeto da prá- curar a doença – são anistóricos, como aponta Lau-
tica médica é sempre o homem doente, o homem ra Conti (1972), mas também a historicidade que
concreto cuja existência está alterada de algum essa autora vê conceder-se aos meios utilizados
modo o qual, conceitualmente apenas, é possível para atingir tais objetivos tem apenas o significado
reduzir a uma concepção teórica a que se chama de menor ou maior adequação, apropriado à ideia
Doença. Afirmar que tudo se reduz ao fato de as de “desvelamento progressivo”, vale dizer, tampou-
doenças variarem corresponde, assim, a reduzir co tem substância propriamente histórica. Alter-
as determinações históricas que incidem sobre os nativamente, concebe-se2 a história como social-
homens que ficam doentes no sentido de torna-las mente estruturada, e constituída pela sucessão de
contingenciais e vazias de sentido histórico subs- qualitativamente diferentes estruturas de historici-
tantivo: como corolário, é possível chegar à ideia dade, sucessão que não é meramente diacrônica,
tão bem aceita quanto carente de fundamentação mas sim o resultado de práticas sociais que operam
de que “a Medicina é uma só”, já que a Doença, nos limites dessas estruturas, portanto sucessão
promovida da condição de instrumento conceitual que obedece a certas leis necessárias – neste caso
à de objeto do trabalho médico seria uma só, em- é preciso propor uma reinterpretação da história
bora comportasse variações tais como as acima re- do conhecimento médico de modo a dar-lhe um
feridas. sentido e uma explicação, além de, ao descrevê-lo,
O transcorrer histórico se reduziria dessa ma- ultrapassar os limites das aparências que assume
neira a um mero diacronismo em que a substân- ao ser olhado com as viseiras das teorias contem-
cia da história seria sempre de mesma qualidade, porâneas.
com a consequência de se poder pensar a história
do conhecimento – médico, neste caso – como um 2
Nota dos editores: Altera-se aqui o texto original, já que com o verbo no
“desenvolvimento”, o progressivo desvelamento de gerúndio (concebendo), além da estranheza provocada pela construção sin-
tática, perde-se o sentido geral da argumentação, que é o de se contrapor à
abordagem “anistoricizante” das variantes históricas da medicina.
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Neste quadro teórico de referência, o objetivo ainda que devesse reclamar explicação, em outro
geral – curar – da prática médica só adquire sentido contexto, a redução do objeto de trabalho à sua
quando qualificado pelas determinações históricas teoria, tão completamente operada pela medicina
que a articulação dessa prática em distintas estru- contemporânea.
turas de historicidade faz incidir sobre ele. Enquan- Partindo dos apontamentos feitos anterior-
to finalidade geral, o “curar” não passa de abstra- mente, é possível talvez recolocar as questões re-
ção, e desde que a compreensão se desenha nessa ferentes às doenças crônicas degenerativas de um
abstração, não consegue senão o obscurecimento modo tal que permita encaminhamentos alternati-
de suas significações históricas particulares. vos para o seu tratamento, inclusive, no limite, no
Assim como o objetivo da prática médica, abs- sentido estritamente terapêutico deste último ter-
tratamente associável à ideia de curar, deve ser mo. É o que se tentará fazer a seguir, mesmo sem
mais concretamente apreendido observando a pretender sequer se aproximar de tal limite.
significação diferencial – e não a variação – dessa O ponto de partida dessa recolocação já está
ideia geral, correspondentemente, as teorias que expresso implicitamente, de certo modo, no pa-
os médicos elaboraram com o fim de tornar exe- rágrafo anterior, e consiste da necessidade de se
quível esse objetivo geral não podem pretender identificar adequadamente a situação contradi-
ser, tampouco, teorias sobre a Doença em geral, tória na qual se coloca quem pretende dar conta
como se um mesmo problema engendrasse variá- (mesmo que, como é aqui o caso, em um nível de
veis explicações, mas sim teorias diferentes sobre generalidade que isenta de muitos compromissos)
problemas diferentes; certos sofrimentos de ho- de um “problema” cuja definição, cuja delimitação
mens historicamente determinados que em situa- enquanto questão foi efetuada dentro de um qua-
ções históricas particulares são legitimamente pos- dro conceitual cujas características se entende que
tos para a prática médica. As concepções de doença contribuem no essencial para dar ao “problema” os
se constituem nessas teorias, elaboradas sobre tais contornos verificados, e supondo que se discorde
problemas e que permitiram trabalhar sobre eles, de tal referencial teórico. Isto é: o termo “doenças
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crônicas degenerativas” não é, em primeiro lugar, (ou tentativa de) teórica capaz de instrumentalizar
livre de compromissos teóricos que é preciso veri- uma intervenção coerente com a articulação des-
ficar; não designa, por consequência, um “proble- sas práticas na estrutura social.
ma” ao qual se aplica o conhecimento que o utiliza Tais proposições devem levar à conclusão de
sem comprometer em certa direção, já nessa apa- que qualquer designação alternativa deve passar
rentemente simples designação, todas as relações pela terminologia sob crítica, tomando-a como
entre esse conhecimento e o conjunto de questões constitutiva do objeto que se quer reconstruir: se
que o suscitarem. o conceito através do qual esse objeto é apreen-
Não se trata de examinar as críticas, sem em- dido parece insuficiente – insuficiente a partir do
bargo pertinentes, mas certamente de detalhe, que ponto de vista oferecido por um quadro conceitual
apontam para a impropriedade do termo “doenças alternativo –, nem por isso esse conceito terá sido
crônicas degenerativas” partindo de argumentos o produto de um livre-pensar, caso em que pouca
tais como a intuitiva necessidade de incluir certas valia teria considerá-lo e criticá-lo, mas represen-
doenças “agudas” no campo problemático desig- tará sempre a forma intelectual correspondente a
nado, ou, serem provavelmente ou comprovada- práticas em curso ao nível do real.
mente de origem infecciosa. Trata-se de indagar, Daí ser possível, e necessário dizer, ao mesmo
isto sim, da razão pela qual a designação de um tempo, que um tal conceito é “inadequado” para
campo problemático através desse termo dá con- designar a realidade a que esteve referida sua ela-
ta, ao nível global da prática médica, das necessi- boração, por não dar conta dela satisfatoriamen-
dades e possibilidades de intervenção sobre esse te, ou por obscurecer ou deformar as caracterís-
campo. Em outros termos, investigar por que foi ticas dessa realidade, e, por outro lado, afirmar
elaborado o conceito em foco para designar uma também que esse mesmo conceito é “adequado”
situação histórica particular posta para as práticas desde quando se articule e se integre nas práticas
de saúde, compreendendo essa forma de designa- nas quais sua elaboração se pôs como necessária,
ção – arbitrária, como todo conceito delimitante, constituindo nesse conjunto uma totalidade nova
mas não casual ou pessoal – como uma elaboração por explicar.
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Ainda, em outras palavras, não teria muito produção daquela articulação, e essa característica
sentido recusar um conceito teórico vivo, como é fundamental em nada é alterada por sua menor ou
o de “doenças crônicas degenerativas” e substituí maior cientificidade, dado este, de resto, ampla-
-lo simplesmente por outro, no exclusivo âmbito mente questionável (Pinel seria “menos científico”
do saber, por mais explicativo e instrumental que do que Claude Bernard?).
pudesse parecer ser; o conceito “recusado” integra Enquanto instrumento de trabalho, o saber
práticas sociais em curso e não se reduz, portanto, médico opera, como qualquer outro instrumento
a um mero conhecimento do real, mas constitui o de trabalho, antes de mais nada e acima de tudo
real: fá-lo ao recortá-lo de um certo modo e ofere- pelo estabelecimento de relações particulares, his-
ce-lo à ação. O trabalho de substituição é, portanto, toricamente determinadas, de adequação entre o
totalmente, e deste fato decorre a maior parte de agente de trabalho e o seu objeto. Cabe indagar,
suas limitações, um trabalho de reorganização da portanto, como cumpre essa função o conceito de
prática como um todo. “doenças crônicas degenerativas” no quadro do
Retome-se agora a ideia de que o conceito de modo de produção capitalista, com o que será pos-
doença de que se vale a prática médica contempo- sível propor encaminhamentos para a compreen-
rânea, do mesmo modo que seus equivalentes de são dos compromissos teóricos a que fez alusão
que se valeram os médicos do passado, correspon- acima, e, por desdobramento, para a reelaboração
de ao trabalho de delimitar o objeto sobre o qual conceitual necessária a qualquer ensaio de prática
essa prática em um segundo momento atuará. Isto alternativa.
tudo de forma coerente com as características de Evidentemente, não serão tentadas aqui senão
que ela se reveste, dada sua articulação na estru- aproximações em relação a essa tarefa indicada,
tura social particular, historicamente determinada, sob a forma de uma síntese possível, tendo em vis-
que se pode identificar como modo de produção ta o estado do desenvolvimento do conhecimento
capitalista. Nesse âmbito histórico particular, o con- crítico até agora elaborado, e apenas tomando para
ceito de Doença consiste, antes de mais nada, em exame alguns tópicos que parecerem mais estraté-
um instrumento de trabalho apropriado para a re-
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gicos para o andamento desta reflexão. O conjunto Desde quando a ação humana passou a se legi-
de tarefa depende de substancial aprofundamen- timar pela capacidade de modificar o curso natural
to em direção à rica complexidade do conceito, só das coisas, contudo, dão-se as condições para a ree-
aproximável através da pesquisa empírica. Posto laboração conceitual da enfermidade. E essa reela-
este grave limite, prossiga-se. boração tomou como fulcro exatamente o modo de
Considere-se, em primeiro lugar, a caracterís- ser “natural” da doença, presente nas concepções
tica epistemológica fundamental do conceito de anteriores. Naquelas, a enfermidade era conside-
Doença subjacente ao de “doença crônica degene- rada como “uma situação polêmica, seja já como
rativa”, qual seja, o dogma da homogeneidade qua- uma luta entre o organismo e um ser estranho, seja
litativa entre a saúde e a doença. já como uma luta interna de forças opostas”, estan-
do sempre presente, portanto, a ideia de que “a en-
Conforme foi assinalado acima, tanto a concep- fermidade difere do estado de saúde, o patológico
ção ontológica quanto a dinâmica de Doença, ainda do normal, como uma qualidade difere de outra,
que opostas, apresentavam em comum a capacida- quer pela presença ou pela ausência de um princí-
de essencial de proporcionar uma base intelectual pio definido, quer pela reelaboração da totalidade
adequada para a prática, e também convergiam em orgânica.” (CANGUILHEM, 1971, p.19) Prosseguin-
sua dimensão “naturalística”. Isto é, tanto em um do com o mesmo autor:
como em outro caso, o evento conceptualização o
era no quadro mais geral oferecido pelo conceito Porém em uma concepção que ad-
mite e espera que o homem possa
de Natureza, este equivalendo ao de um sistema forçar a natureza a fazer com que se
harmônico em equilíbrio, quer este equilíbrio fosse dobre a suas intenções normativas,
concebido estática (concepção ontológica) ou dina- a alteração qualitativa que separa
micamente (concepção dinâmica). Neste contexto, o normal do patológico resultava
dificilmente sustentável” [...] e “go-
à ação humana interventora estava reservado um vernar a enfermidade significa co-
lugar essencialmente passivo, contemplativo, no nhecer suas relações com o estado
máximo potencializador de tendências naturais. normal que o homem vivo – e que
ama a vida – deseja restaurar”, [...]
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“daí a necessidade teórica, com data de ser: passo de método da direção proposta. Na
de realização técnica variável, de medida em que isso é possível, não se pretendeu
fundar uma patologia científica vin-
culando-a com a fisiologia. (CANGUI- dar nenhuma conotação valorativa, nem positiva
LHEM, 1971, p.19) nem negativa, à característica identificada. Aliás,
A característica epistemológica fundamental para manter a seriedade, se necessário fosse, por
do conceito de doença que a medicina moderna hipótese, assumir uma tal posição axiológica, mais
utiliza – nessa categoria cabendo certamente aque- coerente seria avalia-la positivamente do que pelo
la desenvolvida no Ocidente nos últimos dois sécu- contrário. Não se procure ler, pois, este texto, como
los – é, pois, a de que o Normal e o Patológico não se sugerisse que basta negar o conceito de doen-
se diferenciam senão enquanto quantidades diver- ça para evitar os impasses que ele acarreta: mais
sas de uma mesma qualidade: a vida (as constantes uma vez seja afirmado que a tarefa histórica, desta
vitais), no sentido mais estritamente biológico em vez como de outras, não é a de uma substituição
que a vida humana pode ser pensada. Sobre esta voluntária nem de uma negação idem, pois a supe-
hipótese se fundou a medicina experimental e se ração que a humanidade certamente fará de seus
ergueu um edifício que, se não parece isento de instrumentos conceituais demanda um movimento
compromissos com a construção e a reprodução da de totalidade no qual, menos do que desprezar o
ordem social, figura sem dúvida entre as mais ela- produto do trabalho acumulado, proceder-se-á a
boradas heranças do gênero humano. uma revolução nas suas formas de apropriação e
disposição técnica. Tais advertências se fazem ne-
Entre parênteses, cabe lembrar que, sem pre- cessárias antes que o prosseguimento do texto pos-
juízo de um melhor julgamento que se possa fazer sa levar à má interpretação do que se supõe serem
a respeito das conexões entre o âmbito puramente as limitações do conceito examinado.
conceitual e o âmbito mais inclusivo das práticas
em que o conceito vive, a identificação que aqui E prossiga-se então com Canguilhem (1971,
se faz de uma certa característica do primeiro deve p.74):
ser compreendida apenas como aquilo que preten-
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[...] a recusa da concepção ontológi- se a Natureza não é mais o fluxo harmônico do
ca da enfermidade, corolário negati- Todo, ela própria com caráter de diversidade, nem
vo da afirmação de identidade quali-
tativa entre o Normal e o Patológico, tampouco é mais obra dos obscuros desígnios da
é talvez antes de tudo o rechaço divindade, como fora na Antiguidade Clássica e na
mais profundo a reconhecer o mal. Idade Média, ao passar a ser o substrato da ação
Não negamos, por certo, que uma
terapêutica científica seja superior a
humana, ela perde tão somente o seu caráter in-
uma terapêutica mágica ou mística. controlável, mas ganha, em compensação, a con-
É verdade que conhecer é melhor cepção de campo organizado antes e fora da ação
do que ignorar quando é necessá- humana, cuja instrumentalização se dará precisa-
rio atuar, e nesse sentido o valor da
filosofia da Ilustração e do positivis- mente pelo reconhecimento do sentido dessa or-
mo, inclusive o cientificista, é indis- ganização. Quando a humanidade diz, através de
cutível. [...] Importa muitíssimo não Bacon, que só se governa a Natureza obedecendo
confundir a enfermidade nem com -a, reconhece o Natural como campo privilegiado
o pecado nem com o demônio”. [...]
Porém do fato de que o mal não seja de saber: a Doença, que não é mais um Todo nem
um ser não se segue que seja um um Ser, permanece sendo uma característica do ser
conceito privado de sentido, não se humano enquanto ser natural. Daí a possibilidade
segue que não existam valores ne-
gativos (inclusive entre os valores
de representá-la linguisticamente como se fora um
vitais), não se segue que o estado Sujeito, que expressa antes o reconhecimento de
patológico seja no fundo somente o sua característica de Objeto do conhecimento, ma-
estado normal. nifestação do Natural anterior à apropriação cogni-
A modificação na concepção da Natureza que tiva e dela independente.
subjaz às modificações no conceito de Doença ex- Dentre as muitas objeções possíveis de serem
plica, por outro lado, mais do que qualquer conti- levantadas por referência ao conceito de Doença,
nuidade histórica na prática dos médicos, a perma- ou antes, à postulação básica que orienta o saber
nência, referida em momento anterior deste texto, médico, apenas uma importa reter agora, na dire-
da linguagem quase ontológica na medicina. Pois
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ção da argumentação que vinha sendo apresenta- medida em que essa redução é operada através da
da. construção de conceitos estatuídos com o caráter
E não se trata propriamente de uma objeção, de constantes e invariantes, impõe-se reconhecer
mas antes de uma constatação. Uma constatação no procedimento de tal construção a função essen-
que pode ser compreendida examinando as rela- cial de abstrair. Importa aqui a abstração do concei-
ções entre o âmbito científico do conceito de Doen- to de Doença, embora o progresso se desdobre por
ça, a Patologia, e aquela do conceito de Normalida- toda a nosologia especial, de tal modo que se pode
de, a Fisiologia. É possível verificar3 que, construída dizer que o conceito de “doença crônica degenera-
sobre normas e transgressões da normatividade, a tiva”, ou os conceitos de “hipertensão arterial”, dia-
Fisiologia conserva como característica intrínseca betes mellitus”, etc., são igualmente marcados pela
sua o caráter valorativo que lhe advém de seu ob- mesma característica: evidentemente, entretanto,
jeto. Mesmo que estruturada conforme o cânone não se quer identificar a abstração ao imaginário
das ciências naturais, diferentemente do conjunto ou ao irreal, e com isto estar pretendendo fazer
destas, a Fisiologia tem por objeto algo que escapa qualquer crítica aos conceitos em questão. Abstra-
à jurisdição do saber, ainda que não escape ao seu ção aqui vale apenas no sentido de qualidade do
alcance: aquilo que Canguilhem (1971) chama de instrumento conceitual obtido a partir do real con-
normatividade dos modos de andar a vida, e que creto por sucessiva indeterminação e que, por isso
subtrai, em última análise, esse objeto para o cam- mesmo, vale o trabalho de explicar o real concreto
po das ciências humanas. Ora, constituída como reconstruindo-o como objeto pensado de um certo
extensão da Fisiologia, a Patologia não logra, nem modo, por sucessivas determinações, este “certo
busca lograr escapar a essa determinação. O objeto modo” correspondendo ao sentido cognitivo que
de conhecimento a que se aplicam essas disciplinas orienta o progresso de reconhecimento – melhor
estará marcado sempre por iniludíveis caracterís- seria dizer estabelecimento, pois se trata menos de
ticas de historicidade, não obstante sua evidente- um desvelamento do que de uma construção in-
mente bem acabada redução à “naturalidade”. Na tencional – das leis gerais abstratas que em corpo
constituem uma ciência.
3
Ver a obra citada de G. Canguilhem, na qual se sustenta esta argumentação.
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Possivelmente nada se acrescenta com a afir- “condicionantes” ou “moduladoras”, no melhor. O
mação de que o conceito de “doença crônica dege- modo pelo qual se abstraiu do real para construir o
nerativa” tenha natureza abstrata. O ponto central conceito de Doença e, por extensão, para elaborar
da argumentação não é este, entretanto, mas sim cada diagnóstico tem, portanto, a especificidade
o de que a mesma medicina que engendrou a pro- de fazê-lo reduzindo ao biológico um fenômeno no
dução desses conceitos como instrumentos para o mínimo... mais complexo. A essa opção, a esse des-
trabalho de conhecer o seu objeto utiliza-os, nesse dém, aplica-se a noção de “biologicismo”.
trabalho, reduzindo o objeto a esses conceitos abs- Dando sequência à argumentação, segue-se
tratos. que, desde quando se admita que o fato que se
A elaboração do diagnóstico médico, indepen- constitui em matéria-bruta para o trabalho médi-
dentemente de quaisquer méritos que tenha apre- co, isto é, o homem que se sente doente, quais-
sentado – e repita-se, para evitar mal-entendidos: quer que sejam os procedimentos analíticos que
não foram poucos esses méritos – é um processo se adotem para compreendê-lo, siga sendo uma
equivalente ao de abstrair das condições concretas totalidade integrada e articulada a outras totali-
e particulares em que se verifica, integrada nessas dades individuais em uma totalidade histórico-so-
condições, a transgressão da norma vital, para re- cial mais ampla, conclui-se que o procedimento da
duzi-la a uma variação fisiopatológica nomeável. Já abstração que o reconstitui (o constrói) como abs-
se disse que todo processo de abstração obedece a tração biológica, reduzindo-o ao mesmo tempo a
um sentido cognitivo intencional, segue certas re- essa abstração, tal procedimento no mínimo pode
gras postuladas previamente: neste caso, é possível ser caracterizado como obscurecedor das demais
identificar no sentido cognitivo que orienta a abs- dimensões em que essa realidade parcial – homem
tração que conduz ao diagnóstico pelo menos uma doente – se dá.
característica notável: a postulação da ilegitimida- É quase intuitivo perceber como esse
de das dimensões psicológicas e social, enquanto biologicismo exacerbado do saber médico serve
constitutivas do diagnóstico, sua redução à condi- para estabelecer relações adequadas entre o
ção de “contaminantes”, no pior dos casos, ou de
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seu portador, o agente do trabalho médico, e organismo humano individual: assim era, de fato,
seu objeto, o homem doente. É assim que se quando, tanto as doenças infecciosas como todas
fundamenta a pedra angular da estruturação social as outras eram concebidas ontologicamente; assim
da prática médica: sua capacidade de individualizar permaneceu sendo, marginalmente, nas teorias
o doente, rompendo legitimamente as relações que dos que procuraram resistir à introdução da clínica
mantém consigo mesmo e com os outros homens. e da medicina experimental: assim também parece
Quaisquer que sejam as causas daquilo que se cha- ser nos resquícios da velha linguagem, presentes
ma doenças, ou de sua distribuição, – e atente-se ainda na linguagem médica moderna. Contudo, a
para o fato de que na segunda metade do século XX teoria da doença infecciosa não é, por exemplo, a
se está muito longe de ignorar que a questão toda teoria de uma interação de populações, a humana
aponta, acusativa e ameaçadoramente, para a for- e a de um agente patogênico qualquer, mas nu-
ma pela qual os homens organizaram sua vida so- clearmente é a teoria das alterações das funções
cial –, uma vez doente, o homem é abstraído desse normais do organismo humano consequentes à
contexto mais amplo e recodificado inteiramente sua agressão por outros organismos vivos, segundo
por um saber autorizado a reduzi-lo a ele só, indiví- certos padrões gerais, é a teoria da infecção. Nesta,
duo despido de todas as conexões que constituem por mais importante que possa ser reconhecer as
em conjunto o significado de sua vida. características gerais e específicas dos agentes pa-
O conceito de “doença crônica degenerativa” togênicos, o que se constitui em núcleo é o modo
constitui-se em prolongamento dessa tese. Uma vez de reação, geral e específico do organismo humano
que a Doença é pensada como atributo individual, individual à agressão infecciosa. Lê-se, em tratado
como expressão de obstáculos às funções normais de patologia:
do organismo humano individual, sua classificação Os agentes biológicos, tais como as
terá, necessariamente, que recorrer ao rol dessas bactérias rickettsias, vírus e fungos
funções como critério. Pode parecer que o concei- são causas importantes de dano
tecidual e de doença. [...] Micror-
to de “doença infecciosa” se constitui em exceção, ganismos... causam doença apenas
desde quando aparenta expressar algo externo ao incidentalmente em sua luta pela so-
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brevivência, na competitiva biologia e à perda de peso, com o aumento
da vida (in the competitive biology da excreção urinária de nitrogênio
of life). [...]) Doença clínica resul- resultante. O hipermetabolismo
ta apenas quando o agente invasor em níveis elevados de temperatura
provoca dano anatômico e funcional causa o aumento da frequência do
no curso da obtenção daquilo de pulso, um aumento de frequência
que necessita para a sua sobrevivên- respiratória e um aumento dos re-
cia. (ROBBINS, 1967, p.227-278) querimentos calóricos, [...] O desen-
volvimento de leucocitose ou leuco-
Ainda: penia foi referido em outro capítulo.
(ROBBINS, 1967, p.281)
Essa toxemia clínica não específica,
tão característica da maioria das Os excertos citados, evidentemente que não o
doenças biológicas (biologic disea- foram com qualquer intenção crítica à sua lingua-
ses), manifesta-se por mal-estar, gem ou mérito técnico-científico, mesmo porque
aumento da fatigabilidade, dores e
dolorimentos generalizados, febre, fora de seus contextos isso não teria sentido. Pre-
calafrios, sudorese e, nos casos mais tendeu-se apenas mostrar, ou ilustrar, dois pontos
severos, prostração intensa. Asso- já discutidos: em primeiro lugar, a relação de ex-
ciada com a febre e possivelmente ternalidade entre o agente infeccioso e a Doença,
a causando, há uma redução intensa
no volume sanguíneo, com a pas- externalidade mediada pela ideia de causa: em se-
sagem do fluido intravascular para gundo lugar, o caráter pesadamente quantitativo
o espaço intersticial e os tecidos. A das alterações que descrevem a doença infecciosa,
hipovolemia leva a intensa oligúria.
Quando a temperatura volta ao nor-
que corresponde, neste caso particular, à homoge-
mal e o paciente melhora, os clore- neidade qualitativa entre o normal e o patológico
tos retidos e a água que os acompa- que se discutiu em outro momento deste texto.
nha são excretados através da pele e
dos rins sob a forma de sudorese au- Retomando a questão de classificação das
mentada e poliúria. A elevada tem- doenças a que se fez referência em parágrafo an-
peratura corpórea leva ao catabolis- terior, veja-se que a maioria dos tratados de me-
mo generalizado de todos os tecidos
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dicina as agrupa segundo critérios baseados nas saber médico passou a corresponder não apenas à
funções normais alteradas: separam-se as doenças base de legitimidade do trabalho médico mas a di-
infecciosas e aquelas outras que podem seguir um versas outras peculiaridades de sua articulação his-
modelo de causalidade assemelhado, tais como as tórico-social que não cabe aqui explorar, tornou-se
doenças causadas por agentes físicos e químicos, necessário matizar um pouco a crença genérica su-
e prossegue-se com uma classificação ora baseada pra-referida. Esta é a matriz do conceito de “doen-
em critérios morfológicos (doenças do tecido con- ça crônica degenerativa”: nas condições históricas
juntivo, por exemplo), ora funcionais (doenças do concretas em que a medicina opera, substitui-se o
metabolismo, por exemplo), ora morfofuncionais possível agente etiológico pela própria fatalidade
(doenças do aparelho cardiocirculatório, por exem- biológica, a efemeridade da vida. Crônicas degene-
plo). Excluídas as doenças “causadas por” algum rativas são aquelas doenças que são causadas pelo
agente etiológico conhecido, todas as demais ca- viver do organismo humano, que consome tempo
bem sob o rótulo de “causadas por” agentes etioló- enquanto se desgasta. É interessante notar que o
gicos ainda não conhecidos. A crença de que a cada dogma da homogeneidade qualitativa entre o nor-
doença corresponda algum agente etiológico, ou, mal e o patológico atinge neste caso as últimas con-
concessivamente, um grupo de agentes etiológicos sequências; as fronteiras quantitativas entre ambos
que poderão ser apontados como “causas”, corres- os estados se tornam evidentemente mais tênues,
ponde à concepção de que o organismo humano tanto para o saber médico, sem dúvida (tenha-se
é naturalmente normal (no sentido fisiológico do em mente o caso da hipertensão arterial), quanto
termo, e convenientemente esquecidas as origens para a humanidade como um todo, em consequên-
da normalidade de que trata a fisiologia), natural- cia das características específicas da articulação su-
mente torna-se patológico e, desde quando a natu- pra-estrutural daquele saber.
reza é o domínio da ação humana, artificiosamente Ao mesmo tempo em que conceitualiza certos
volta a ser normal. sofrimentos humanos como afinal normalíssimos,
Apenas neste século, a partir do momento his- pois não há como viver fora de toda dimensão tem-
tórico em que esse otimismo técnico inerente ao poral e nem há como viver sem envelhecer, o saber
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médico os exclui do estado normal, ou, o que dá na nica – tomando em seu sentido mais geral – como
mesma, os aponta como patológicos e se reserva o um fenômeno patológico. A relativa insuficiência
direito legítimo de reconhece-los, nomeá-los e agir de suas propostas é que foi tornando, com o tem-
sobre eles, mesmo quando essa atuação seja de po, tais fenômenos em um campo problemático.
eficácia duvidosa, mesmo quando a relação entre Se puder parecer, portanto, a um primeiro
os resultados da ação e os meios empregados pos- olhar, que a associação entre certos estados vitais
sa parecer aleatória. (as doenças crônicas degenerativas) e a substancia-
Mas, de uma perspectiva mais geral e distancia- lidade valorativa da vida humana, possivelmente
da, não são apenas esses sofrimentos que podem representada no seu transcorrer e na sua necessá-
ser caracterizados como “afinal normalíssimos”: ria terminação, agora tomados como consubstan-
todos os sofrimentos o podem, e a história teste- ciais com o conceito de Doença, se puder parecer
munha para mostrar que sofrimentos análogos se que essa associação aproxima tal forma de concep-
configuram como normais em certas épocas e/ou ção do caráter propriamente humano da vida hu-
sociedades, enquanto em outras se transformam mana, vale dizer, de seu caráter histórico e social,
em Doenças. Se não há como viver sem envelhecer, e representa uma reorientação da fisiopatologia
tampouco há como viver sem os microrganismos em direção à concretude, há que se advertir que
eventualmente “causadores” de doença. Ocorre, essa seria uma leitura completamente equivocada.
porém, que os processos de gênese das concepções A contradição apontada no parágrafo anterior mos-
do que é Doença deixam de se dar, nas sociedades tra bem que não há “humanidade” alguma nessa
modernas, fora do âmbito de jurisdição e legitima- vida que, ao transcorrer e cessar, se degenera: tra-
ção da prática médica, bem como perdem autono- ta-se da vida biológica, apenas, outra vez. Como
mia por referência à capacidade da medicina de em outras situações, o ardil reducionista leva aqui
suscitar e alimentar as concepções finalmente pro- também à legitimação da intervenção normativa, à
duzidas. E foi da lógica do saber médico definir e ruptura das conexões entre o fenômeno concreto e
difundir a ideia do fenômeno da degeneração orgâ- seu contexto histórico-social, ao mesmo tempo em

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que se submete à jurisdição do saber médico to- cas que instrumentaliza. Procurar-se-á encaminhar
dos os fenômenos que caracterizam o transcorrer essa proposta restringindo um pouco o referencial
da vida, atomizados agora em um sem número de e examinando como se colocam essas questões no
fatores isolados. campo particular da Epidemiologia.
Com essas considerações, pretendeu-se indicar Isto se justifica pelo fato de que, senão a teo-
o sentido com que é tomado pela prática médica ria das “doenças crônicas degenerativas”, fisiopa-
o problema (o conjunto de problemas, seria mais tológicas como todas as demais, mas a justificativa
correto dizer) conceptualizado como “questão da apresentada para assim circunscreve-la, ou seja, a
doença crônica degenerativa”, sentido contido pre- importância dessas doenças na estrutura de morbi-
cisamente nessa conceptualização. Cabe salientar, dade e de mortalidade verificadas nas sociedades
contudo, que essa indicação tem ainda um caráter modernas, e o impacto dos custos das ações a elas
muito geral: o biologicismo e sua contrapartida, a vinculadas, uma tal justificativa recebe importantes
individualização, que são características genéricas contribuições da investigação epidemiológica.
de que se reveste a prática médica no modo de pro- Gradativamente, mais e mais, é uma lógica
dução capitalista por referência a todos os proble- epidemiológica que justifica diagnosticar, tratar
mas de que trata. Em outros termos, conforme se e prevenir essas doenças, bem como fornece os
procurou indicar, o conceito de doença infecciosa parâmetros que delimitarão, na prática, as formas
comporta delimitações gerais idênticas a essas, o concretas assumidas pelos procedimentos de tra-
que também é verdade para todos os outros con- tamento e prevenção. Tal lógica toma o aspecto
ceitos derivado dessa mesma matriz básica: o con- formal consistente em um esquema de raciocínio
ceito de Doença. (medição e contraste de eficácias, eficiências e efe-
Para levar um pouco mais adiante esta contri- tividades) próprio da Epidemiologia.
buição, pretender-se-á daqui por diante explorar
um pouco mais a especificidade do conceito parti-
cular de “doença crônica degenerativa” e das práti-
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A epidemiologia e as doenças crônicas degenera- te definida como “clássica” , define-se a si mesma
4

tivas: história natural das doenças / história social como o estudo da distribuição e dos determinan-
dos doentes tes das frequências das doenças no homem. (MA-
CMAHON; PUGH, 1970) Pretende-se algumas vezes
Colocar as questões no campo particular da distinguir entre os dois aspectos dessa conceituação
Epidemiologia, em que consiste exatamente? O chamando de “descritiva” a parte da Epidemiologia
problema que se impõe, e que não pode ser elu- que se ocuparia em estudar apenas a distribuição
dido, diz respeito à possibilidade de compreender das frequências das doenças, parte que poderia ser
essa recolocação como particularização, isto é, ex- compreendida também como aplicação da demo-
tensão dos conceitos básicos que se vinham exami-
nando a um aspecto parcial ou, alternativamente, 4
Não se pretende dotar de nenhuma conotação pejorativa este adjetivo. Não
obstante, é necessário fazer um esclarecimento a respeito da posição ado-
compreendê-la como oferecendo oportunidade a tada neste ensaio em relação à polêmica corrente e que opõe com tanto
uma reorientação metodológica, neste caso sendo ardor quanto surdez os defensores da Epidemiologia “clássica” aos defenso-
res da Epidemiologia “alternativa”. Se, de um lado, é necessário opor-se aos
necessário indicar de que espécie de reorientação argumentos de uma parte dos primeiros, que por ignorância metodológica se
se trata. Claro está que em um ensaio destas pro- aferram às técnicas formais de quantificação e aos procedimentos de coleta
de dados empíricos como os critérios finalmente delimitadores da Epidemio-
porções, não se teria jamais a pretensão de resol- logia enquanto disciplina científica acabada, de outro lado é necessário igual
oposição àqueles dentre os segundos que deitam fora o bebê e a água do
ver este problema, central na Epidemiologia de banho, dispensando a busca de alternativas metodológicas da seriedade e
hoje, mas como ele está no âmago da questão mais do rigor contidos na formalização. Uns tendem a assumir a posição conser-
vadora e anticientífica de que a “Epidemiologia é uma só”, com isso negando
geral do que se vinha tratando, não há como dei- relevância às insuficiências detectadas pelos outros. Outros tendem a ver na
xar de fazer pelo menos alguns reparos e oferecer disciplina um aumento de ilusões mecanicamente comprometido com a do-
minação social, negando a evidência factual que constitui, nesse momento
algumas indicações acerca da forma pela qual será histórico, a investigação epidemiológica em única demonstração cientifica-
parcialmente tratado aqui, sem ser resolvido, sem mente estruturada a demonstrar as relações entre o campo da saúde e a
dominação social (as limitações dessa demonstração são um outro capítulo).
ser meramente contornado, se isso for possível. Optou-se pelo adjetivo “clássico” exatamente para enfatizar o relativo aca-
bamento e a razoável consistência da explicação epidemiológica. Além disto,
A Epidemiologia moderna, em sua vertente por analogia com o universo da cultura, esta adjetivação ressalta o compro-
misso necessário, na superação do “classicismo”, com a identificação rigorosa
mais ortodoxa, que será por isso daqui por dian- e crítica das premissas metodológicas fundamentais da disciplina, buscando
estabelecer um divisor de águas suficientemente claro com as “superações”
que antes consistem em acréscimos ou correções tópicas.
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grafia ao campo da saúde, e chamando de “ana- alterações do organismo normal em resposta a estí-
lítica” a parte da Epidemiologia que busca identi- mulos nóxicos, e com isso estabelece relações cau-
ficar determinantes dessas mesmas frequências, sais imediatas entre a agressão por tais estímulos e
explicando a distribuição verificada em termos de aquelas alterações; enquanto isso, a Epidemiologia
fatores causais, parte essa que constituiria o núcleo estuda as relações entre as variações na frequência
com que essas mesmas alterações aparecem em
próprio da disciplina. (MACMAHON; PUGH, 1970) indivíduos e as variações na exposição desses mes-
Tal modo de compreender as coisas aponta mos indivíduos àqueles mesmos estímulos, e infere
para três tópicos que permitem um primeiro enca- dessas relações a existência de associações causais
mediatas entre ambos os conjuntos que observa.
minhamento da questão posta acima, referente ao
Isto permite dizer que “muitas disciplinas procuram
estatuto teórico da Epidemiologia: aprender acerca dos determinantes das doenças; a
1º) Basicamente, trata-se da aplicação de certas contribuição especial da Epidemiologia é o uso que
ferramentas metodológicas (o que não implica ne- faz de seu conhecimento da frequência dos casos
cessariamente distinção de método) a um mesmo de doença nas populações e da distribuição dessa
problema comum a que se aplica o saber médico nu- frequência.” (MACMAHON; PUGH, 1970, p.1) Será
clear, qual seja, o da determinação da causação das preciso acrescentar que não é apenas o enfoque
doenças. Que a nível da Fisiopatologia essa questão populacional que distingue a Epidemiologia, mas
tenha sido restritivamente – embora não por aca- principalmente, neste específico aspecto, uma ca-
so – posta em termos de causalidade, trata-se de racterística metodológica daí decorrente: enquanto
uma outra questão, mas não indiferente ao fato de a cadeia de eventos estudada pela Fisiopatologia é
ter também a Epidemiologia buscando conhecer a imediatamente explicativa das relações causais que
determinação das doenças em termos relativamen- os ligam, isto é, enquanto as alterações sucessivas
te restritos, os proporcionados pela ideia de causa. são explicadas dedutivamente uma das outras, no
Mais restritos ainda, seria necessário reconhecer, caso da Epidemiologia, como se parte logicamen-
desde quando a noção de causalidade implícita na te sempre do caso de doença (mesmo nos estudos
maioria dos estudos epidemiológicos se constitui ditos “prospectivos” ou “quase-experimentais”), as
em quase uma vulgarização das possibilidades aber- relações de associação causal entre os eventos são
tas pela teoria do conhecimento para a instrumen- sempre assumidas por indução estatística, ficando
talização desse conceito. A Fisiopatologia estuda as por estabelecer os mecanismos que mediam a ex-
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posição ao estímulo nóxico e a doença: a explicação 2º) O que permite, o que autoriza a imputação de
é, portanto, mediata. Pode-se dizer, portanto, que a um nexo de causalidade a uma associação estatísti-
Epidemiologia e a Fisiopatologia partem do mesmo ca não é nunca o grau dessa associação (lembre-se
dado de realidade, o fato-doença, e encaminham Hume, a propósito) mas a legitimidade da conexão
explicações para esse fato que se deve ao menos proposta entre as variáveis associadas. O que legi-
distinguir: enquanto a primeira procura associações tima a influência, em todos os casos, é o postula-
desse fato com eventos antecedentes, a segunda do básico de que o fato-doença é constituído por
procura explicar as modificações que caracterizam um conjunto de alterações do organismo humano
o fato em si. É evidente a diversidade metodológi- em resposta à estimulação (única ou múltipla) “es-
ca: no primeiro caso, se é necessário admitir nexos tranha” (externa, no mais das vezes, mas poden-
com categoria de eventos antecedentes, necessá- do também ser interna): daí serem mais legítimas
rio se torna ampliar a abrangência do conceito de aquelas que se aproximam mais da possibilidade
Doença, que passa a circunscrever configurações e de oferecerem uma vinculação de caráter biológico
estados do organismo normal prévios à reação pa- estrito entre a variável causal e os processos fisio-
tológica, o que desemboca na elaboração do con- patológicos descritos da doença. Em outros termos,
ceito de “processo saúde-doença”, que se constitui é o conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos
em corolário significativo do dogma da homogenei- das doenças que permite deduzir enunciados sin-
dade qualitativa entre o Normal e o Patológico. No gulares passíveis de experimentação, referidos à
segundo caso, o conceito restringe-se ao período associação entre o desencadeamento dos mesmos
de tempo na vida do organismo normal em que as mecanismos fisiopatológicos e a exposição prévia
alterações patológicas são verificadas. A referida a estímulos nóxicos. Que os procedimentos envol-
diversidade metodológica se expressa na deduti- vidos na experimentação se tenham convertido à
bilidade dos eventos da cadeia fisiopatológica, a problemática do “indutivismo” não altera nada a
partir de uma teoria geral da Doença ou, alterna- natureza das coisas5: é o conceito de Doença que
tivamente, na indução de enunciados universais preside logicamente o raciocínio que permite im-
(as associações causais da Epidemiologia) a partir
de enunciados singulares (as evidências para che- 5
Ver, a propósito: POPPER, K. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Edi-
tora Cultrix – EDUSP, 1975, Parte I, Capítulo I. SUSSER, M. Causal Thinking
gar àquelas associações, recolhidas pelo método in the health Sciences: concepts and strategies of epidemiology. New York:
epidemiológico). Resta saber se a diversidade é de Oxford University Press, 1973. SUSSER, M. Procedures for establishing causal
grau ou de nível, ou se é de substância. associations. In: STEWART, G. T. (ed.). Trends in epidemiology. Springfield, III:
Charles C. Thomas, 1972. p.23-101.
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putar a umas associações o caráter de causais, a ou- e definir a doença. Sem tal defini-
tras o de moduladoras, a outra o de interferentes, ção, nenhuma determinação da
a outra o de espúrias, e assim por diante. E enfati- frequência das doenças pode ser
ze-se: não é um conceito qualquer de doença, mas feita. A referência já feita à impor-
precisamente aquele discutido no tópico anterior, tância dos métodos quantitativos
de cujas características uma assumirá aqui, outra no desenvolvimento histórico da
epidemiologia aponta para a bioes-
vez, o papel principal: o biologicismo. Admite-se,
tatística como uma terceira discipli-
portanto, que a diversidade metodológica entre a na sobre a qual repousa a investiga-
Epidemiologia e a Fisiopatologia é de nível, refe- ção epidemiológica. (MACMAHON;
re-se a momentos em que apreendem um proces- PUGH, 1970, p.15-16, grifo nosso)
so concebido da mesma forma; ambas espiram à
condição de ciências naturais, ambas se colocam Essa conceituação permite contornar a dificul-
na mesma postura metodológica em relação a seu dade que seria representada pela necessidade de
objeto, embora se valham de procedimentos me-
todológicos diferentes, por força de seu ângulo de procurar a explicação dos nexos causais entre as
incidência diverso. variáveis epidemiológicas, e substituí-la pela utili-
dade que a verificação de nexos mediados entre as
3º) Renunciando à elaboração de um conceito
próprio de doença, a Epidemiologia renuncia no variáveis oferece para a intervenção:
mesmo movimento à sua independência enquanto A epidemiologia tem o propósito
ciência e recai na categoria de disciplina auxiliar: prático de descobrir relações que
ofereçam possibilidades para pre-
A epidemiologia é uma disciplina venção de doenças e, para esse ob-
aplicada, – isto é, uma disciplina jetivo, uma associação causal pode
preocupada com a solução de pro- ser definida de forma útil como
blemas práticos. O epidemiologista aquela que ocorre entre categorias
precisa das contribuições de muitas de eventos ou características nas
outras disciplinas para constituir a quais uma alteração na frequência
sua própria. Dessas duas disciplinas ou na qualidade de uma categoria é
– a medicina clínica e a patológica seguida por uma alteração na outra.
– provém os meios para descrever (MACMAHON; PUGH, 1970, p.17)
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A renúncia à elaboração de um objeto de estu- cas degenerativas”, essas indicações gerais pare-
do significa, portanto, muito mais do que uma pre- cem suficientes para justificar a colocação de que
sumível impossibilidade epistemológica: subordina se trata antes de uma particularização, por referên-
o raciocínio epidemiológico às possibilidades prá- cia à Clínica e a Fisiopatologia, do que de uma rede-
ticas de intervenção; subordina o estudo da deter- finição metodológica. Entretanto, se uma espécie
minação das causas das doenças aos critérios que de “pax biologica” reina naquelas, preservando-as,
definem certas categorias de eventos antecedentes ainda, de qualquer forma de contestação, mera-
e associados à ocorrência das doenças como passí- mente polêmica ou cientificamente fundamentada,
veis de modificação, excluindo, ao mesmo tempo, o mesmo não se pode dizer da Epidemiologia, que
outras. É evidente que os critérios que permitem por razões derivadas de suas próprias peculiarida-
optar por umas ações, desdenhando ao mesmo des oferece atualmente oportunidades para um
tempo, necessariamente, outras, só podem ser cri- exame muito fecundo de seus pressupostos, méto-
térios de natureza política, e trarão consigo para dos e aplicações, de tal forma e com tal intensida-
dentro da Epidemiologia, portanto, o projeto políti- de que se pode dizer que não há uma, mas várias
co de reprodução social que tiver prevalecido, tor- Epidemiologias. E como nessa variedade parecem
nando-a dele caudatária. O instrumento conceitual dispostas fissuras, campos de incerteza nos quais é
que dá conta desse contorno das dificuldades pos- possível que a questão das “doenças crônicas dege-
tas pela causalidade é o de “risco”, que concentra nerativas” se possa redefinir, esta será a tarefa pro-
ao mesmo tempo, na possibilidade de identificação posta daqui por diante. Antes, contudo, tanto para
de “grupos de risco” e na possibilidade correlata de esclarecer melhor a posição que se adotou em re-
prescrição de ações preventivas, a derivação utili- lação à Epidemiologia clássica, como para propiciar
tária que caracteriza parcialmente a Epidemiologia uma menos inadequada compreensão dos campos
clássica. de incerteza que permitem falar em outras Epide-
Em relação ao problema de esclarecer, pelo miologias, procurar-se-á examinar mais de perto, e
menos em linhas gerais, a natureza do campo para de uma perspectiva histórica, as relações entre Clí-
o qual se quer trazer a questão das “doenças crôni- nica e Epidemiologia.
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Examinando o “background” histórico da Epi- tes. Greenwood atribuiu esse fato
demiologia clássica, MacMahon e Pugh (1970, p.4- àquele de que o termo operativo
em Hipócrates é considerar – e não
6) dizem o seguinte: contar. Por mais que as considera-
ções de um investigador possam
Alguns dos conceitos básicos sub- ser perspicazes, elas são insuficien-
jacentes à prática da epidemiologia tes para constituir-se em base para
podem ser ilustrados por referência as considerações das sucessivas
a episódios e personalidades histó- gerações de investigadores, se não
ricas. [...] A história da metodologia estiverem amparadas por observa-
epidemiológica é, em vasta medida, ções objetivamente registradas em
a história do desenvolvimento de termos quantitativos. [...] A introdu-
quatro ideias: (a) a doença humana ção de um método quantitativo em
está relacionada ao ambiente hu- epidemiologia – de fato, em biologia
mano; (b) a contagem dos fenôme- e na medicina em geral – é credita-
nos naturais pode ser instrutiva; (c) da a John Graunt, que publicou em
‘experiências naturais’ podem ser 1962 [...] [...] (Graunt) demonstrou
utilizadas para investigar a etiologia a ‘uniformidade e a predictibilidade
das doenças; (d) sob certas condi- dos [...] fenômenos biológicos toma-
ções, experimentos sobre o homem dos em massa’ e é assim encarado
pode também ser utilizados com como fundador da ciência da bioes-
esse propósito. [...] A ideia de que a tatística. Desde quando essas novas
doença pode estar conectada com o técnicas (desenvolvidas por Graunt)
ambiente em que as pessoas vivem não viram aplicação epidemiológica
foi exprimida por Hipócrates quase ulterior por quase 200 anos, Graunt
2.400 anos atrás. Hoje, esse concei- deveria ser mais apropriadamente
to parece evidente por si mesmo[...] encarado como um precursor do
[...] à luz desta clara e firme adver- que como um fundador da epide-
tência (de Hipócrates), partindo de miologia.
um mestre tão influente, é notável
que nada tenha sido descoberto a Eis aí, nesses excertos, um soberbo exemplo do
respeito das características espe- que não é uma perspectiva histórica: personalida-
cíficas dos ambientes insalubres
durante os 2.000 anos subsequen- des, episódios, percussores e, sobretudo, a inten-
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ção de ver o passado como um presente em que as ciável. Isto não significa que, depois
coisas estavam tão-somente mal vistas, equivoca- de especular durante muito tempo,
eles tenham recomeçado a perceber
damente compreendidas. E com isso admoesta-se ou a escutar mais a razão do que a
Hipócrates por não ter valorizado adequadamente imaginação: mas que a relação en-
a contagem. No Prefácio a “O Nascimento da Clíni- tre o visível e o invisível, necessária
a todo saber concreto, mudou de
ca”, Foucault (1977, p.X) recoloca este mesmo pro- estrutura e fez aparecer sob o olhar
blema em termos mais apropriados a nossa preten- e na linguagem o que se encontrava
são: aquém e além do seu domínio. Entre
as palavras e as coisas se estabele-
A medicina moderna fixou sua pró- ceu uma nova aliança fazendo ver e
pria data de nascimento em torno dizer; às vezes, em um discurso real-
dos últimos anos do século XVIII. mente tão “ingênuo” que parece se
Quando reflete sobre si própria, situar em um nível mais arcaico de
identifica a origem de sua positi- racionalidade, como se se tratasse
vidade com um retorno, além de de um retorno a um olhar finalmen-
toda teoria, à modéstia eficaz do te matinal.
percebido. De fato, esse presumido
empirismo repousa não em uma re- Tomando essa colocação como inspiração, é
descoberta dos valores absolutos do possível afirmar que a história da Epidemiologia
visível, nem do resoluto abandono não é, em nenhuma medida, a história do desen-
dos sistemas e suas quimeras, mas
em uma reorganização do espaço volvimento de ideias genéricas e descontextualiza-
manifesto e secreto que se abriu das, conforme sugerem MacMahon e Pugh (1970).
quando um olhar milenar se deteve A admissão da ideia de que a doença humana está
no sofrimento dos homens. O reju- relacionada com o ambiente humano, por exemplo,
venescimento da percepção médica,
a iluminação viva das cores e das coi- terá significados muito diferentes para Hipócrates,
sas sob o olhar dos primeiros clínicos para quem o “ambiente humano” se confundirá
não é, entretanto, um mito; no início com a natureza em fluxo, e seu conhecimento se
do século XIX, os homens descreve-
ram o que, durante séculos, perma-
imbricará na terapêutica através de prescrições
necera abaixo do visível e do enun-
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tendentes a prestigiar o bom fluxo natural para a Afirmar que a Epidemiologia é antiga, e que
saúde; e para os médicos classificadores do século claudicou durante a maior parte de sua existência
XVIII, para os quais o ambiente humano constituir- ou por falta de imaginação de seus cultores, ou
se-á de um conjunto sempre único de circunstân- pela falta da ideia de “contar”, ou pela “falta” de
cias a demarcar o núcleo das epidemias, muito mais qualquer outra ideia que tenha aparecido depois,
do que “fatores” a elas relacionados, portanto, ou, equivale à mesma a formação tão frequentemen-
já não para a medicina das epidemias, mas para a te encontrável sobre a antiguidade da medicina,
das espécies, configurará o conjunto de influências referida por exemplo no excerto citado acima, de
deletérias que modificam a manifestação clínica Foucault, ao lembrar que a medicina moderna ten-
das espécies mórbidas, prejudicando-lhes a pureza. de a se conceber a si própria como um “retorno” à
A presunção de que “contar os fenômenos clínica hipocrática.
naturais possa ser instrutivo” – para além da res- Não há como explicar a história de uma disci-
sonância de vulgarização dos pressupostos positi- plina que, como a Epidemiologia, tome por objeto
vistas que denota este modo de colocar as coisas – de conhecimento (a Doença) aquele produzido por
não tinha nenhuma significação parecida coma que uma outra, desvinculando-a da história dessa ou-
se lhe pretende atribuir; a quantificação não pode tra. Nestes termos, é lícito afirmar que a Epidemio-
ser confundida com o amontoamento caótico de logia só pode, lógica e historicamente, suceder ao
eventos cuja singularidade, cuja delimitação salte nascimento da Clínica.
aos olhos do “contador”. Só é possível contar após Nascida a Clínica, começa a gestar-se a Epide-
haver qualificado o evento de uma certa forma; é miologia: só uma concepção que admitia: 1) sua
perfeitamente compreensível que todas as qualifi- relação de externalidade com o agente patogênico
cações efetuadas antes que se houvesse qualifica- e 2) por decorrência, uma série temporal de even-
do, conceituado a doença da forma moderna, se- tos em que a estimulação patogênica antecedesse
jam inúteis, tenham sido incapazes durante 2.400 sempre à doença seria capaz de constituir-se em
anos de caracterizar um ambiente insalubre, de a priori para a colocação de perguntas a respeito
acordo com as conceituações moderna. das relações entre esses eventos consequentes (as
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doenças) e aqueles antecedentes (os estímulos pa- como eventos com característica
togênicos). Só uma concepção de doença fundada próprias antes da constituição dessa
disciplina que parece encarregada
no conceito fisiológico de “normalidade”, e dele se de, entre outras coisas, estudá-los.
constituindo em extensão sob a forma de alteração Terá havido um momento histórico
quantitativa, permitiria supor que aquelas relações em que, olvidada a medicina das
espécies, as epidemias deixaram de
entre a exposição a estímulos patogênicos e a ocor- ser “constituições”, agrupamentos
rência subsequente de doença pudesse ser pensa- singulares de uma espécie mórbida
da como “causal”. Só a partir desses pressupostos vinculadas à conjunção única de um
tornou-se possível, antes de “contar”, definir o que certo número de influências am-
bientais para tornarem-se “clusters”
contar. de doenças, distribuídos segundo
características pessoais, espaciais ou
Ocorre, porém, que a Clínica não é
temporais; em que se tornou neces-
redutível a um modo específico de
sário investigar quais teriam sido ca-
ver e nomear a doença, a um olhar,
pazes de aumentar a frequência das
no sentido de Foucault, que não
doenças. A utilização do termo “epi-
pode ser acusado de pretender essa
demiologia” esconde o fato de que
redução, embora o possa de induzi
as epidemias não eram mais concei-
-la. Antes de tudo, ela é um instru-
tuadas como antes, e aponta para o
mento de trabalho, e como tal supor-
fato de que foi inicialmente a propó-
ta e explica as articulações sociais da
sito das epidemias que se originou
prática médica, assunto de que já se
esta disciplina. Aliás, antes de quais-
tratou em tópico anterior. A Epide-
quer mudanças no saber e na prática
miologia, se filha da Clínica, é tam-
médica, a ocorrência das epidemias
bém sua herdeira, e não pode estar
suscitara já a institucionalização – na
isenta das mesmas determinações.
França, ao menos – de dispositivos
Para compreender tais determina-
de vigilância e contagem voltados
ções, é necessário lembrar que, se
para a população, institucionaliza-
a Epidemiologia enquanto disciplina
ção impensável fora do quadro so-
é relativamente nova, as epidemias
cial demarcado pela constituição
são fenômenos que, variavelmente
do Estado nacional absolutista. Fou-
conceituados, eram identificados
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cault (1977) chama a atenção para a divisão social do trabalho de possíveis desequilí-
o papel fundamental que o controle brios gerados pela insuficiência de um ramo qual-
– que os historiadores da medicina
desculpem a má palavra – das epide- quer dessa divisão de desempenhar suas funções.
mias desempenhou na constituição As epidemias constituíam-se obviamente em pro-
das condições históricas necessárias blemas desse tipo, e a localização das práticas ins-
ao nascimento da Clínica, através da
abertura do espaço da sociedade
trumentalizadas pela Epidemiologia no campo da
para o olhar médico, das modifica- “Saúde Pública”, vale dizer, no âmbito do Estado,
ções corporativas introduzidas na aponta para a complementaridade entre tais prá-
profissão médica e dos questiona- ticas e aquelas dos médicos que atuavam sobre os
mentos dos hospitais, alterações es-
sas fomentadas pelas atividades da indivíduos.
Sociedade Real de Medicina. Esta complementariedade estará garantida
Os instrumentos institucionais que permitiriam pela univocidade do conceito de Doença, que re-
desenvolver as técnicas de estudo das epidemias já presenta ao nível do saber a integração das práticas
existiam, portanto, quando a Epidemiologia se es- clínicas e de Saúde Pública. Essa integração não é
truturou com base na Clínica, e é bastante signifi- apenas a que se dá através da “proteção” que as
cativo que, na sociedade inglesa, tais instrumentos práticas sanitárias instrumentalizadas pela Epide-
e tais prática se tenham restringido ao âmbito res- miologia oferecem para a estabilidade relativa das
trito do Estado liberal, para indicar o tipo de rela- práticas clínicas frente a desafios que tendem a su-
ção que se pode identificar entre a construção do perá-las. É muito mais do que isso. Os séculos XVIII
saber e da prática da Epidemiologia e aqueles da e XIX assistiram ao amplo processo de rearticulação
prática clínica, da prática médica em sentido res- da prática médica na estrutura social que Foucault
trito. Ao mesmo tempo em que certas parcelas do (1979, p.79) chama de “nascimento da medicina
trabalho social eram atribuídas ao Estado por “não social”, querendo com isso identificar, por um lado,
poderem” ser executadas, dadas suas característi- que a medicina tomará, daí por diante, o espaço
cas, pelos “cidadãos”, pode-se também afirmar que inteiro da sociedade como objeto de seu trabalho
a execução desses trabalhos pelo Estado preserva – não se trata apenas da ampliação de um objeto
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unidimensional, mas da atribuição a esse objeto mente conceitual e analítica: ao nível do movimen-
de outras dimensões além das que ele tradicional- to histórico concreto, trata-se de um processo só,
mente tivera; não se trata de “mais espaço”, mas do qual os momentos distinguidos representam os
sobretudo da socialização do espaço, que o amplia polos de contradição. Assim sendo, a elaboração
– e, por outro lado, que a medicina que estende sua de uma teoria social da saúde e da doença não se
jurisdição ao social se vê no mesmo movimento in- restringe a instrumentalizar a prática médica para
vadida pelo social6 comprometida com o social. Do intervir sobre um social dado, mas incorpora neces-
primeiro aspecto do duplo significado dessa rearti- sariamente um compromisso político e ideologica-
culação social da prática médica – a que frequen- mente polarizado por referência à forma histórica
tes vezes se aplica a noção de “medicalização da de organização, segundo a qual aquele social se dá.
sociedade” – decorre a necessidade de construção Já se discutiu em outro momento acerca de
de uma teoria da saúde e da doença capaz de ins- como o biologicismo do conceito de Doença e de
trumentalizar a intervenção médica sobre o social; como a forma pela qual esse conceito instrumenta-
do segundo aspecto – ao qual corretamente se apli- liza a prática médica dão conta nuclearmente des-
caria a noção de “socialização da medicina”, que no sas necessidades historicamente postas. O saber
entanto tem seu significado corretamente asso- epidemiológico é uma extensão do saber clínico; a
ciado a outro tipo de questão – decorre a ameaça prática epidemiologicamente instrumentalizada é
potencial que as questões sociais (não só aquelas uma extensão da prática clínica. Mas o são precisa-
imediatamente associáveis à saúde e à doença, mente na medida em que os complementam na di-
mas quaisquer questões sociais) passam a repre- reção do social, em que desenvolvem as potencia-
sentar para a forma de organização social da prá- lidades de compreensão do social contidas apenas
tica médica, em um primeiro momento, para toda de forma negativa no conceito nuclear de Doença,
a articulação social da medicina, no limite. É claro e possibilitam uma intervenção legítima e explícita
que a distinção entre “medicalização da sociedade” sobre o social. Se disse legítima e explícita porque
e “socialização da medicina” é de natureza tão-so- a intervenção individualizada da prática clínica não
6
Esta ideia é desenvolvida por DONNANGELO, M.C.F; PEREIRA, L. Saúde e
sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976. Capítulo II, Parte 1.
deixa, em nenhum momento, já pelo simples fato
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de que seu objeto de trabalho não é uma abstração modificação daquela realidade social que fora a
biológica – embora possa ser reduzido a isso – mas matéria-prima para suas conceptualizações, sem
sempre um homem concreto socialmente determi- que houvesse necessariamente convergência de
nado, de ser uma intervenção sobre o social, e tam- sentidos a verificar por referência à história con-
bém evidentemente legítima, mas implícita: o fato creta. Independentemente da “qualidade” episte-
de que o social esteja presente na prática clínica mológica de seu saber, desde quando ele desça de
exatamente sob a forma de negação não significa um presumido reino de fadas em que ocorreria a
que não esteja presente. O “enfoque populacional” especulação científica e se integre às práticas so-
da Epidemiologia conserva a qualidade biologicis- ciais em curso – melhor seria dizer que fora dessas
ta do enfoque individual da Clínica, ao explicitar o práticas ele não tem existência histórica –modifica
social reduzindo-o ao coletivo, conjunto de indiví- a natureza dessas práticas e dos objetos sobre os
duos, conjunto de efeitos sobre os indivíduos ad- quais elas incidem.
vindos de sua vida coletiva, mediado ou não pelo Esta observação visa a afastar uma tendência
ambiente “externo” aos indivíduos, e produzido e frequentemente verificada de, ao identificar no
reproduzido em sua prática coletiva. Conservando “social epidemiológico” características tais como
o viés biologicista atinge muito além disso, desde o obscurecimento dos nexos sociais que, em outro
quando as concepções do social que elabora são contexto teórico, dão consistência ao social, procla-
também pensáveis, em uma perspectiva histórica, mar sua “insuficiência metodológica” e dela dedu-
como produto da prática médica em seu esforço de zir uma insuficiência tecnológica.
rearticulação social que transbordam de seu âmbi-
to estrito e vão fundamentar as próprias ciências Nada mais equivocado e míope: àquela “insu-
do homem. ficiência metodológica” que consiste em propor-
cionar apenas explicações parciais e “funcionais”
Isto quer dizer que, ao ter produzido concep- acerca das dimensões sociais dos fenômenos de
ções sobre o social de uma certa qualidade ao ter que trata corresponde uma comprovadamente
integrado tais concepções em práticas vivas, arti- brilhante suficiência tecnológica. Além de ter pro-
culadas e legítimas, a medicina contribuiu para a porcionado meios para a significativa alteração
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nos perfis qualitativos e quantitativos de morbi- da Clínica, como também sobre a articulação espe-
dade e de mortalidade que caracterizam parte da cífica entre esse saber reestruturado e o conjunto
assim chamada revolução sanitária, e nisto tendo de outros saberes e práticas no âmbito do social,
tido provavelmente um alcance muito maior do e tomar Broussais, dessa perspectiva, menos como
que a prática clínica – que, não obstante, levou os o momento em que se funda a medicina das rea-
louros, em mais uma demonstração da supracita- ções patológicas do que como aquele no qual se
da complementaridade, que portanto se redefine funda a medicina dos agentes patológicos. A esta
como complementaridade subordinada – a Epide- última corresponde, no plano tecnológico, o saber
miologia logrou efeitos “externos” à sua prática es- epidemiológico, e seu alcance vai muito além da
pecífica: obteve, ao mesmo tempo, a legitimação era bacteriológica para caracterizar a Epidemiolo-
da causalidade da distribuição das doenças como gia, no século XX, como muito mais próxima, no mí-
decorrente da distribuição de atributos individuais nimo, do núcleo de elaboração de representações
e a legitimação do social como unidimensional, ho- que instrumentalizam a prática médica (enquanto
mogêneo em substância mas heterogêneo quanti- prática social) como um todo. Que fique ao menos
tativamente, desprovido de historicidade, em uma a interrogação, portanto.
palavra: natural. De qualquer modo, é no saber epidemiológi-
Complementar e subordinada? A complemen- co que a medicina pronuncia seu discurso sobre o
taridade não implica necessariamente a valorização social, é nas práticas instrumentalizadas por esse
menor ou maior das partes, mas neste texto foi ob- saber que o social é legítima e explicitamente tra-
viamente utilizada como implicando a subordina- balhado. Assim como a Biologia é campo exclusivo
ção da Epidemiologia à Clínica. Tal postura deveu- de competência dos biólogos e assim como a Fisio-
se, ao menos em parte, à inspiração em Foucault, patologia é campo exclusivo de competência dos fi-
mas deve ao menos constar que uma leitura não siólogos e dos patologistas, pois enquanto ciências
tão “interna” ao discurso médico, talvez permitisse naturais positivas elas presumem uma competên-
nuclear a restruturação do saber que ocorreu nos cia técnica que além de legitimar viabiliza o traba-
séculos XVIII e XIX não tanto sobre o nascimento lho dos que a elas se aplicam, o saber epidemio-
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lógico deve pretender ser igualmente competente risco”, estabelecendo nexo de causalidade entre a
para dar conta das dimensões sociais da saúde e da exposição à atenção médica e a ocorrência de mor-
doença. Contudo, o social não é dócil como a vida, bidade e de mortalidade. É evidente que esse dis-
a normalidade e as reações patológicas, que se curso terá as mesmas limitações daquele que é alvo
conformam às representações que delas se façam. de sua crítica, dadas suas idênticas estruturas, mas
O social é por sua própria natureza múltiplo e con- a polemização a que procede trai suas limitações e
flituoso. Pode-se constituir uma ciência do social ao dá-lhe um alcance insuspeitado: Ivan Illich (1975) é
modo das ciências naturais, mas não se pode inva- o exemplo privilegiado desse movimento que, com
lidar completamente as outras ciências do social, menor grau de radicalismo, sustenta, por exemplo,
que representam outras posições em conflito no as versões tecnocráticas de projetos políticos acer-
social, já que uma ciência do social “naturalizada” ca da saúde e da doença.
expressa apenas uma das consciências possíveis Tomando mais recentemente o social através
dele. Ao abrir-se normativamente para o social, a de conceptualizações, o movimento que se deno-
Epidemiologia abre necessariamente, ao mesmo minou “Epidemiologia Social” cristaliza a possibili-
tempo, espaço para que essas outras consciências dade de invasão da Epidemiologia – por extensão,
possíveis do social a invadam e apresentem seus há que se admitir que da prática médica como um
projetos de compreensão e de intervenção sobre todo – por formas de consciência social alternati-
as dimensões sociais da saúde e da doença. vas, por referência àquela consciência que a cons-
Não terá sido por acaso, portanto, que o pri- tituiu. Essa possiblidade estava aberta, repita-se,
meiro grande discurso pronunciado sobre essas di- desde o momento que em que algum social teve
mensões e que se opõe ao saber epidemiológico que ser legítima e explicitamente tomando como
tradicional nas suas conclusões, embora concor- dizendo respeito ao campo da prática da medicina.
de com ele quanto às premissas, seja um discurso À “Epidemiologia Social” voltar-se-á ulteriormente,
epidemiológico em sua estrutura: é o discurso que mas deve-se reter neste ponto a quais característi-
avalia a medicina clínica de acordo com os câno- cas próprias, a quais peculiaridades da Epidemio-
nes da Epidemiologia e a toma como um “fator de logia se fazia referência em outro momento deste
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texto, quando se apontava para a existência nesta missibilidade, ausência de infecção, autorizava a
disciplina de fissuras, de campos de incerteza. imputação de causalidade à correlação matemática
Retorne-se, então, à questão inicial deste tópi- verificada entre as variáveis sob exame (ocorrência
co: em que consiste trazer a questão das “doenças de doença e exposição), só poderia naturalmente
crônicas degenerativas” para o campo da Epide- ser legítima quando decorresse da dedução a par-
miologia, e sobretudo buscando nesses movimen- tir daquelas características fisiopatológicas gerais e
tos novas determinações para o biologicismo e para das características fisiopatológicas particulares de
a individualização que caracterizam o conceito de cada doença, e, evidentemente, das características
Doença como instrumento privilegiado da Clínica? universais contidas no conceito de Doença. Note-
Parte do encaminhamento das respostas a essas se, em primeiro lugar, que cronicidade, degenera-
colocações pode já ser inferida do que se afirmou a ção, intransmissibilidade e não-infecção não são,
respeito da Epidemiologia em geral. É evidente, por em primeiro momento, resultados da investigação
exemplo, que não há um conjunto de respostas uní- epidemiológica, mas sim da observação clínica. Em
voco, e que as respostas proporcionadas pela Epi- segundo lugar, note-se que a ordem lógica do pro-
demiologia clássica terão o sentido de particulari- cedimento pode ser invertida operacionalmente: o
zação, enquanto as respostas proporcionadas pelas achado casual de uma associação coloca o proble-
tendências críticas à Epidemiologia clássica terão o ma de adjetivá-la, e concluir-se-á pela associação
sentido de busca de alternativas metodológicas e, causal sempre que se possa estabelecer um nexo
portanto, de reelaboração da questão. Mas exami- lógico entre o fator associado e as características
ne-se essas respostas um pouco melhor. fisiopatológicas conhecidas da doença. Como são
essas últimas que presidem o procedimento, po-
A Epidemiologia clássica partiu da identificação der-se-ia arguir a respeito do caráter tautológico
e da delimitação que a Clínica e a Fisiopatologia dos enunciados decorrentes; por outro lado, essa
tinham feito de certas doenças e buscou correla- possibilidade de inversão operacional induziu a um
cionar sua ocorrência com a exposição a fatores de reforço da ideia vulgar de “contar”, na ânsia desses
risco presumíveis. A presunção, cuja origem lógica achados casuais, e não são poucas as ocasiões em
nas ideias de cronicidade, degeneração, intrans-
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que pesquisadores houve que se esqueceram com- de doença isquêmica do coração, ao mesmo tem-
pletamente dos procedimentos verdadeiramente po em que presumi-la entre a mesma doença e o
científicos de sua disciplina, passando à quantifi- hábito de fumar cigarros é legítimo, porque entre
cação quase-aleatória – não se dirá inteiramente os componentes químicos do fumo há substâncias
aleatória, porque é possível identificar um sentido que apresentam atividade farmacológica sobre o
implícito no procedimento – do mundo e à “desco- sistema cardiovascular. A busca dessas correlações
berta” de “associações causais” as mais absurdas. ofereceu a possibilidade de identificação de inúme-
Mas isso terá sido uma corrupção da Epidemiologia ros fatores de risco para as doenças crônicas dege-
clássica, mais do que um seu desdobramento, ain- nerativas.
da que se possa identificar na unidimensionalidade Mas, sempre se esteve muito longe de alcançar
do social, tal qual tomado por ela, parte da justifi- a confortável situação das doenças infecciosas, em
cativa para essa atomização. Guardados os limites que um agente etiológico necessário era sempre
da coerência metodológica, entretanto, não há por- identificável. Não há necessários e suficientes para
que não admitir a explicação a posteriori das asso- as doenças crônicas degenerativas: o acúmulo de
ciações de fatores quaisquer com a doença. todos os fatores de risco conhecidos garante uma
Assim, ao se verificarem mais casos de uma certa probabilidade de um indivíduo isolado vir a
certa doença na população de sexo masculino de apresentar a doença a eles associada, mas tão-so-
uma certa sociedade do que na de sexo feminino, mente isso; e, no outro extremo, a não-exposição
por exemplo, deduz-se que certos fatores aos quais a qualquer dos fatores de risco não impede que
a população masculina esteja mais exposta podem um indivíduo isolado apresente a doença, apesar
ser presumidos como fatores de risco, mas não da maior probabilidade associável a este evento.
apenas por sua associação à masculinidade, como Quando se passa do indivíduo para a população,
também, e principalmente, por oferecerem uma contudo, as coisas mudam de configuração: de um
explicação, ainda que mediada, para a ocorrência número n de indivíduos expostos a risco pode-se
da doença: seria ilegítimo presumir uma associação afirmar, com margem de segurança bastante satis-
causal entre o hábito de barbear-se e a ocorrência fatória, que uma certa proporção x/n apresentará a
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doença, e a satisfatoriedade dessa margem de erro vida social que se desenvolve em um nível exterior
é que autoriza práticas que, incidindo sobre a po- a eles, transformado em configurações variáveis do
pulação, visam a reduzir aquela proporção. meio externo, o social não se torna propriamente
A capacidade de instrumentalização da prática inatingível, mas se torna certamente alvo de in-
clínica oferecida por essa Epidemiologia e forma- tervenções tópicas, sem que se suspeite que essa
lizada no modelo da história natural das doenças possibilidade e essa impossibilidade decorrem da
é, ao mesmo tempo, muito pequena e muito gran- própria racionalidade da reprodução social. E aqui
de. Por um lado, porque na maioria das vezes esses reside a grande capacidade de instrumentalização:
modelos se assemelham a imensos painéis imersos não se suspeitar do social estruturado e substan-
nas trevas em que alguns raros pontos de penum- tivo que se oculta por trás do social atomizado e
bra são tomados um tanto especulativamente como “natural” que se incorporará no modelo; conceber-
representativos do conjunto, sem que se saiba qua- se (e inculcar-se essa concepção) a dimensão social
se nada sobre as relações de uns com os outros, da saúde e da doença sob a forma de atributos in-
muito menos se essas relações forem pensadas (e dividuais.
são) como estruturadas em um conjunto. Por outro As práticas que incidem sobre a população,
lado, a maioria dos fatores de risco identificados práticas “de Saúde Pública”, ficam igualmente obs-
são de natureza imediata ou imediatamente social, taculizadas e favorecidas. Obstaculizadas por não
tais como os “hábitos” (alimentação, lazer, exercí- poderem interferir na maioria das vezes sob os
cio, fumo, álcool, etc.), o modo de utilização do cor- fatores de risco, desde quando sua distribuição
po no trabalho, a exposição a poluentes químicos obedece a uma racionalidade não apreendida ou
e físicos, a tensão emocional e física associada ao apreendida como natural, “saudável”, própria da
trabalho ou ao lazer ou, ainda, a expectativas so- sociedade normal. Favorecida porque se não inter-
cialmente validadas, o consumo de determinados ferem é porque sua função social é não interferir,
bens ou serviços, etc., etc. Transformado em tais ou interferir ineficazmente, legitimando a ocorrên-
“fatores”, transformado em um conjunto estrutu- cia dessas doenças como natural e, paradoxalmen-
rado de consequências sobre os indivíduos de uma te, saudável.
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E, no entanto, a sociedade se move. E nesse Se a sociedade se move, a Epidemiologia se re-
movimento, aprende a pensar epidemiologica- fina. O mais notável aperfeiçoamento conceitual de
mente, que afinal a Epidemiologia tem também, que foi objeto, e que lhe permite dar à questão das
como se viu, uma função pedagógica: a questão “doenças crônicas degenerativas”, um tratamento
das “doenças crônicas degenerativas” é a dupla cientificamente mais bem fundamentado ao mes-
questão de um aumento absoluto na incidência de mo tempo em que a autoriza, uma resposta à ques-
certos agravos à saúde e de um aumento do inves- tão do social que a invade ainda mais eficazmente
timento social no combate a esses agravos que não funcional, foi o proporcionado pela confluência en-
se faz acompanhar de nenhum sucesso. E esta é tre a Epidemiologia clássica e a Ecologia.
uma questão epidemiológica, o que se constitui em Apesar de se tratar de um texto didático, a obra
demonstração da eficácia social da Epidemiologia, de Forattini é a mais bem elaborada e que melhor
que a faz tomar tais contornos. Mal haja em que ilustra as possibilidades abertas por essa confluên-
a sociedade não se conforme homogeneamente cia, dentre as publicadas no Brasil, sobretudo pelas
com a resposta epidemiológica a essa questão: são considerações específicas a respeito das “doenças
doenças decorrentes do modo social de organizar a crônicas degenerativas.” (FORATTINI, 1976, p.207-
vida, imperfeições provavelmente transitórias que 208)7 Talvez por sua utilização predominante como
não autorizam senão o aperfeiçoamento da socie- texto de referência para o aprendizado técnico da
dade, “ainda” com muitos defeitos, e a hipertrofia Epidemiologia, não se tenha prestado suficien-
dos serviços de saúde que tratam dessas imperfei- te atenção às fecundas contribuições teóricas do
ções. Esta última se justifica até como conquista autor, e que se situam nesse esforço de “amplia-
social: pior seria se nem ao menos o consolo palia- ção” do enfoque epidemiológico tradicional. Sem
tivo e o tratamento sintomático da atenção médica pretensões exegéticas, é possível afirmar que essa
estivessem disponíveis. Cândida resposta que, se “Epidemiologia ecológica” se não induz modifica-
não convence a todos por igual, tem sido ao menos ções substantivas nos procedimentos metodoló-
suficiente para manter as coisas andando satisfato- 7
Forattini critica e rejeita esse conceito, propondo o de “Doenças não-infec-
riamente. ciosas”, por razões já apontadas neste texto.
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gicos, fá-lo por referência à capacidade de legiti- dos casos, não obtém, apesar dessa vinculação, o
mação da concepção naturalista do social que de sucesso de fundar definitivamente uma disciplina
ingênua passa a ser elaborada. A articulação da no- científica com objeto próprio. Afinal, é possível
ção de “eficiência de adaptação” com a noção de identificar um discurso que não mais se refere ape-
ambiente como “fonte de agravos potenciais à saú- nas à distribuição e às causas de distribuição das
de” prolonga a velha noção de articulação entre “ir- doenças nos homens, mas fala da espécie huma-
ritabilidade” e “agentes patogênicos”, estruturando na – não uma somatória de indivíduos, mas uma
o conceito ampliado de processo saúde-doença em entidade com individualidade própria – e considera
uma teoria muito mais inclusiva como a da evolu- uma doença como decorrência do convívio dessa
ção. Não seria aqui o lugar apropriado para reca- espécie com outras e com o meio, e da forma pela
pitular as críticas à teoria da evolução elaboradas qual essa espécie se organiza para esse convívio.
do ponto de vista das Ciências Sociais, mas pode-se O conceito de “doença crônica degenerativa” – ou
afirmar que tais críticas recobrem perfeitamente as doença não-infecciosa – assim como o de doença
colocações teóricas da “Epidemiologia ecológica”. infecciosa, transborda no âmbito restrito da reação
As críticas não invalidam, contudo, a dimensão his- patológica para um âmbito muito mais inclusivo,
tórica concreta, o significado social vivo que a Epi- quaisquer que sejam os reparos que se possa fazer.
demiologia assume quando articulada com a prática A doença não é mais, enquanto objeto conceitual
médica em geral e com as práticas epidemiológicas primeiro, enquanto dimensão do real depois, uma
em particular, que não difere em substância do já característica do homem, mas da espécie. Não se
apontado por referência à Epidemiologia clássica, deve subestimar essa alteração, ainda que seja pre-
mas difere em grau de sistematização, em alcance ciso submeter a exame crítico as noções de socia-
explicativo, em eficiência político-ideológica. lidade implícitas, pois ela se dá na mesma direção
Pode-se ainda perguntar, pelo menos, se a geral em que a “Epidemiologia social” procura si-
“Epidemiologia ecológica”, ainda que permaneça tuar-se: a de reconstruir o conceito de Doença re-
vinculada à Fisiopatologia por via do conceito de ferindo-o ao coletivo humano que, por suas deter-
Doença, que permite afinal efetuar a contagem minações sociais, adquire especificidades próprias
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não contidas no conceito de espécie. O que aparece cisão ao saber epidemiológico não é senão, portan-
como espécie ecologicamente determinante para a to, a contrapartida de uma cisão mais profunda nas
“Epidemiologia ecológica” reaparece como grupo posturas práticas dos agentes sociais que a elabo-
social, classe social para a “Epidemiologia social”: o ram e a utilizam como instrumento de trabalho. E o
movimento operado nos dois casos guarda notável ponto fundamental a respeito do qual a divergên-
analogia, entretanto, e abre, por isso, a possibili- cia se instaura é exatamente o social.
dade de confluências e debates mutualmente en- Daí que as vertentes divergentes, no esforço do
riquecedores. Para isso, entretanto, é preciso que apontar precisamente para a dimensão que julgam
os “debatedores” se legitimem como portadores não-trabalhada pela Epidemiologia clássica – repi-
de aportes relevantes, que se atinja no âmbito da ta-se ainda uma vez que esta não é a posição ado-
Epidemiologia saudável convivência de explicações tada neste texto – autodenominem-se de “Epide-
que, embora se excluem parcialmente, não se anu- miologia social”. Se a denominação é inadequada,
lam. É preciso que uns e outros renunciem ao pre- por outro lado tem a vantagem de apontar imedia-
conceito cientificista de que só há uma explicação tamente para o núcleo significativo do movimento,
verdadeira, correspondente, em ambos os casos, à e este é inequivocamente o social. Em um duplo
presunção de que seu objeto de conhecimento seja sentido: tanto no fato de tomar o modo de concep-
um objeto natural. É óbvio, por outro lado, que não tualizar o social próprio da Epidemiologia clássica
se alcançará essa situação por meros atos de von- como inadequado e pretender modificá-lo, como
tade: os compromissos político-ideológicos, as arti- no fato de que, ao fazê-lo, integra práticas sociais
culações objetivas, não da Epidemiologia, mas das (de ensino, de investigação, de intervenção) que se
práticas epidemiologicamente instrumentalizadas, orientam, por referência à Epidemiologia clássica,
cobram aqui os seus direitos. de modo diverso na estrutura social.
Se a Epidemiologia se refina, é porque, no mo- O primeiro “momento” de constituição da
vimento histórico em que tem existência concreta, “Epidemiologia social” consistiu basicamente em
suas articulações a pressionam, e no mesmo movi- um “rearranjo” das explicações causais proporcio-
mento em que se refina, ela também diverge. Esta nadas pela Epidemiologia clássica. Desde quando
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se constatou que a atomização, a homogeneização, posição metodológica das Ciências Sociais que me-
a dissolução, a “naturalização” do social sob a for- lhor equivale ao significado histórico da busca de
ma de “fatores causais” servia para obscurecê-lo, alternativas para os limites da Epidemiologia clássi-
pareceu natural examinar esses “fatores” enquan- ca, na medida em que tomam forma os esforços de
to fatos sociais dotados de sentido e articular uma reinterpretação da realidade – à consciência do real
explicação sociológica dos “fatores causais” com a mais expressiva das situações dominadas de clas-
explicação epidemiológica da causação das doen- se. No plano concreto da ciência, contudo, o ma-
ças. Tomando um exemplo hipotético, se a Epide- terialismo histórico é frequentemente impotente
miologia identificasse o fator “ingestão de alimen- para tematizar e trabalhar aspectos do real que se
tos ricos no componente X” como fator de risco impõem como relevantes, até mesmo da perspecti-
causalmente associado à ocorrência da doença A, va dos materialistas históricos. Assim, parece mais
o primeiro trabalho da “Epidemiologia social” foi correto caracterizar o esforço pelo “casamento” da
o de explicar por que os indivíduos consomem os Epidemiologia com as Ciências Sociais como parti-
alimentos ricos no componente X, partindo de uma cularizado no enfoque sociológico em geral, e não
perspectiva sociológica. em uma de suas vertentes específicas.
Naturalmente que essa perspectiva “comple- As investigações correspondentes a esse pri-
mentar” não precisa ser apenas a proporcionada meiro “momento” da “Epidemiologia social” apre-
pela Sociologia; este ponto de partida deveu-se às sentam uma estrutura bifásica característica: uma
peculiaridades das divergências mais substanciais, investigação epidemiológica convencional articu-
mas há lugar e relevância para os “casamentos” lada a uma explicação, quase nunca resultante do
com a Antropologia, com a Ciência Política, com a trabalho do epidemiológico, mas produzida por, ou
Geografia, para ficar apenas com os mais evidentes. inferida de trabalhos de pesquisa produzidos por
Há mesmo estudos que demonstram essas possibi- cientistas sociais. Do ponto de vista epistemológi-
lidades ampliadas e diversificadas. Por outro lado, a co, uma situação no mínimo ambígua: qual vinha a
presença predominante do materialismo histórico ser afinal o objeto do conhecimento? Se esta ques-
tampouco deve ser superinterpretada: trata-se da tão fosse ociosa ou meramente formal, não teria
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tido tanta importância, mas desde quando objeto núcleo de investigação epidemiológica por catego-
de conhecimento e sujeito de conhecimento sejam rias essencialmente sociológicas. Lembrando que o
concebidos como integrando uma relação dialética primeiro passo na elaboração das hipóteses de es-
em que o método representa a expressão da cons- tudo consiste em uma dedução, a partir dos meca-
ciência de um dos projetos sociais possíveis em nismos fisiopatológicos conhecidos, de presumíveis
presença, que vincula (não formalmente, mas no processos antecedentes capazes de explicar como
movimento histórico, na produção do conhecimen- se deu seu desencadeamento diante da exposição
to enquanto integrante do movimento histórico) aos agentes patogênicos, aplicou-se esse procedi-
objeto e sujeito do conhecimento em uma mesma mento a certas doenças que permitem, na sua con-
totalização dotada de sentido, fica extremamente cepção, incorporar características imediatamente
problemático o “casamento” do materialismo his- sociais, e delas deduzir hipóteses causais consis-
tórico com a Epidemiologia clássica, por exemplo. tentemente montadas sobre categorias sociais. A
Não se dirá que as investigações caracterizadas desnutrição é o melhor exemplo. Embora o termo
por esse “casamento”, em que as partes eram tão- possa ter um significado tão médico como aqueles
somente justapostas, se marcadas pela insatisfa- empregados para designar outra doença qualquer,
toriedade metodológica contida na incongruência reduzindo-se, neste caso, a um conceito particular
dos respectivos universos conceituais eram, ou são da teoria geral da Doença, não pode escapar de ser,
– pois esse primeiro “momento” ainda não se com- também, um evidente eufemismo para o termo
pletou inteiramente – destituídos de significados “fome”. E a fome é um fato social que sempre es-
compatíveis com os projetos de seus autores. Afir- capou à jurisdição exclusiva do saber médico. Para
mar tal coisa equivale a recair uma espécie estéril uma situação deste tipo, assim como para outras
de purismo metodológico que entre outras carece que se configurem como comportamentos qualifi-
de sensibilidade política. cáveis de desviantes e, por extensão, patológicos,
é possível constituir um conceito inicial de inves-
Na busca de superar essas inconsistências, o se- tigação impregnado já do social, e desse conceito
gundo “momento” de elaboração da “Epidemiolo- deduzir possíveis associações causais com eventos
gia social” corresponderá a uma inversão parcial do
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antecedentes significativos consistentemente do parte considerável da reflexão dedica-se à crítica
mesmo social. Tal seria o caso de investigações epi- da noção de causalidade que, na medida em que
demiológicas sobre o abortamento, o alcoolismo e é uma contrapartida da externalidade conceitual
outras questões de estatuto semelhante. entre o estímulo patogênico e o desenvolvimento
Explicar a ocorrência, a distribuição da desnu- da reação patológica – concepção nuclear da teoria
trição em função de eventos antecedentes que não da Doença e fundamental para a elaboração epi-
se reduzam tautologicamente à deficiência direta demiológica, como se viu – pode contribuir para
ou mediada de nutrientes, mas apontam para as re- a superação parcial das dificuldades encontradas.
lações sociais que demarcam e qualificam o grupo Outra contribuição substancial8 procura inverter as
de “expostos” na estrutura concreta da sociedade relações entre o social e o biológico no plano do
é certamente uma conquista fascinante, sobretudo conhecimento das doenças, e fazer derivar do con-
por estabelecer sobre outras bases a relação entre ceito fundamental de “reprodução das classes so-
as categorias significativas do social e aquelas signi- ciais” – um tanto reduzido, embora, a diferenciais
ficativas do biológico. A dificuldade está em que o de consumo – a inferência dos fatores de risco e as
procedimento é aplicável à desnutrição e ao estudo explicações causais.
de alguns outros problemas mais, todos eles com Por vezes há aproximações notáveis entre o co-
estatuto nosológico ambíguo, mas não se estende nhecimento produzido pela “Epidemiologia social”
da mesma forma à grande maioria dos fenômenos e aquele produzido pela Epidemiologia clássica,
conceituados como Doenças, e precisamente pela seja em sua vertente mais convencional, seja em
razão de se adequarem sem equívocos à teoria ge- sua vertente “ecológica”. É o que se pode deduzir,
ral da Doença, na qual, essencialmente, não cabe por exemplo, deste texto:
o social.
Em seu terceiro “momento”, muito recente
ainda, e de certa forma apenas esboçado, a “Epi-
As mais significativas contribuições neste específico aspecto, devem-se
demiologia social” formaliza as dificuldades conti-
8

aos autores da “Escola Mexicana”, especialmente Asa Cristina Laurell (1977;


das em seus desenvolvimentos anteriores, e uma 1983) e Jayme Breilh (1980; 1982). (Ver referências).
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A chamada epidemiologia social em que essa múltipla competição se
tem-se aplicado sobretudo à procu- desenrola. [...] Os que perdem, nes-
ra das causas das doenças crônicas. ta luta competitiva, ficam à margem,
Uma das hipóteses que mais tem sua vida deixa de ter sentido, suas
sido explorada é a de que há cor- potencialidades são bloqueadas. As-
relações significativas entre doença sim, o que a vida reserva para os in-
mental e classe social. Outra é que divíduos nas sociedades capitalistas
a tensão (stress) social e psicológica é um montante considerável de ten-
está na origem de numerosas enfer- são para uns, um vegetar destituído
midades. [...] Dado que a tensão re- de sentido para outros. Ambas as si-
sulta, em geral, de condições sociais, tuações podem ser propícias, como
que se refletem sobre o indivíduo, o foi visto, para o desenvolvimento de
aguçamento das contradições nos enfermidades crônicas degenerati-
países industrializados, que se mani- vas. (SINGER; CAMPOS; OLIVEIRA,
festa sob a forma de “crises” – crise 1978, p.49-50)
de família, crise de valores, crises
políticas – pode muito bem dar lugar Por certo que há diferenças ponderáveis entre
à multiplicação das enfermidades a atribuição às características capitalistas de estru-
crônicas. O que transparece dessas turação da sociedade do papel de agente etiológico
considerações é que a impotência
da medicina face às enfermidades das doenças crônico degenerativas e a atribuição do
crônicas e a multiplicação dos que mesmo papel a agentes intrínsecos ou extrínsecos
são afetados por elas podem ter a que operam como mecanismos de seleção natural
mesma raiz: o modo de organização e adaptação da espécie a “gêneros” de vida novos.
da produção, que constitui o substra-
to material da vida nas sociedades O que cabe perguntar é se essa diferença não esta-
industriais. Este modo de organizar a va dada a priori, nas posições distintas de valor dos
produção pressupõe, como mola da epidemiológos. Ou, em outras palavras, questionar
dinâmica social, a competição entre
os indivíduos isoladamente e organi-
se as diferenças decorrem de abordagens metodo-
zados em grupos – firmas, partidos logicamente distintas ou se são indiferentes a essa
políticos, sindicatos – e a perma- questão. Desde quando o evento-doença segue
nente transformação dos moldes sendo concebido sob a forma clássica e os agentes
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patogênicos também, que diferença – dotada de expressando, tanto nos instrumentos materiais que
qual alcance, suposto que há uma diferença sem gera, como nos discursos que organiza, a materiali-
dúvida – há em se deduzir dos mesmos mecanis- dade da prática, sob formas diversas.
mos fisiopatológicos hipóteses causais sob a forma O obstáculo está posto para a prática como um
de “variáveis” tais como stress, inatividade, genes todo, e nesse sentido só cabe esperar sua superação
seletivos ou valores morais tais como “crises” e o a partir de um movimento integral da prática. Defi-
artificialismo da vida? nitivamente, isto não quer dizer que se deva adotar
Enfrentar a questão tem sido o problema mais a posição que se deva esperar por mudanças sociais
difícil com que se tem defrontado os epidemiólo- mais inclusivas e estruturais para retomar o traba-
gos, pelos menos aqueles que não se deram por lho que não pode ser feito aqui e agora. O que se
satisfeitos com o que a Epidemiologia clássica pro- quer dizer é que uma reflexão política e ideológica
porciona, nem tampouco se sentem inclinados a sobre a prática instrumentalizada pela Epidemiolo-
aderir às soluções fáceis que o manuseio – ainda gia, sobre suas articulações no conjunto estrutura-
que canhestro – de uma terminologia que acusa as do de práticas, que constitui a estrutura social, que
evidentes injustiças inerentes às sociedades capita- uma tal reflexão impõe-se como um passo prévio
listas “proporciona”, substituindo uma abordagem que deva reconhecer como essas características so-
científica ideologicamente comprometida por uma ciais da prática se encontram sistematizadas e or-
ideologia cientificamente revestida. Não parece fá- ganizadas no saber, se reproduzem historicamente
cil, se a análise precedente tem sentido, descartar nele. O que encaminha necessariamente não para
a possibilidade de que os compromissos assumidos uma “ruptura epistemológica” – mera consequên-
na elaboração do conceito de Doença, e reiterados cia – mas para uma ruptura com os compromissos
na sua permanência, representem o núcleo do obs- sociais assumidos à época do nascimento da Clíni-
táculo a ser transposto. E não se deve tampouco ca, renovados e atualizados depois.
reduzir as dimensões desse obstáculo às de um É evidente que o movimento da “Epidemiologia
“obstáculo epistemológico”, dissociando a articula- social”, embora não tenha levado a cabo essa
ção entre o saber e a prática, que o definem como tarefa, com todos os seus possíveis equívocos
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representa a forma histórica pela qual ela está lizamento dado pela noção de “Medicina Social”.
sendo encaminhada, pelo menos parcialmente. Por referência a essa particular situação brasileira,
Entretanto, parece fazer sentido ainda lembrar parece adequado indagar, portanto, até que ponto
mais uma última dúvida a esse respeito. a restrição das mesmas questões ao campo da “Epi-
O questionamento dos limites da Epidemiolo- demiologia social” não corresponde a uma redução
gia clássica por respeito ao conhecimento das doen- de perspectivas, fenômeno até explicável pela re-
ças em suas dimensões supra-clínicas tem já uma lativa institucionalização da “Medicina Social”, com
respeitável trajetória histórica. E deve-se notar que todas as tendências à burocratização das divisões
apenas na última década tomou a específica forma de campos de competência que costumam lhe ser
de “Epidemiologia social”. Durante toda sua histó- correlatas. Uma boa justificativa para esta dúvida
ria anterior esse questionamento, a tradição mais deriva – para além da óbvia esterilização acarreta-
crítica na área da prática médica, definiu-se toman- da pela divisão dos trabalhadores da “Medicina So-
do explicitamente por referência essa prática, o que cial” e os que estudam as práticas da área de saúde
transparece imediatamente de uma denominação – da talvez falsa questão em que se transformou o
tal como “Medicina social”. Tratava-se da constru- problema de repensar as articulações entre o so-
ção do mesmo objeto genérico, com a vantagem cial e o biológico: uma ameaça à Epidemiologia,
de sua imediata concepção em articulação com as que passou a ter de se dividir estupidamente entre
práticas sociais, entre as quais as dos agentes do o “progressismo” e o “conservadorismo”, quando
trabalho médico, da qual vem retirá-la sua restri- parece óbvio, de uma perspectiva histórico-social
ção à Epidemiologia. No Brasil, as investigações até mais ampla, que mesmo a mais “clássica” das ver-
mais estritamente epidemiológicas – em especial tentes de investigação epidemiológica tem desem-
aqueles que tomaram por objeto de interesses as penhado quase sempre um papel crítico, dada a
grandes endemias rurais – que procuraram rever as secular impenetrabilidade e a sólida solidariedade
articulações entre o biológico e o social, propondo do campo de práticas ligadas à saúde por referência
superar as limitações dos enfoques convencionais, a uma formação social fundada sobre graus extre-
situaram-se todas nesse campo mais amplo de ba- mos de injustiça e de desigualdade.
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torado em Medicina) - Faculdade de Medicina,
9
Nota do editor: Textos incluídos pelo autor na bibliografia, mas não citados Universidade de São Paulo, São Paulo, 1979.
no corpo do texto.
______________________________ _______________________________
298 299
5. REFLEXÃO A PROPÓSITO DO
TEXTO DE RICARDO BRUNO MENDES
GONÇALVES: 30 anos depois

Dina Czeresnia

Ricardo Bruno Mendes Gonçalves foi colabo-


rador e construiu uma linha de trabalho próxima a
Maria Cecilia Ferro Donnangelo. Esse elo intelec-
tual fortaleceu o desenvolvimento de um pensa-
mento que teve importantes desdobramentos para
a Saúde Pública/Coletiva brasileira. O trabalho de
Ricardo Bruno teve vitalidade e brilho próprios e
abriu caminho para um conjunto de reflexões que
se sucederam a partir da década de 1990 no Brasil.
Na coletânea Epidemiologia: teoria e objeto,
que organizei com base em artigos teóricos sobre
a epidemiologia elaborados por autores de língua
latina, o texto “Reflexão sobre a articulação entre
a investigação epidemiológica e a prática médica a
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
propósito das doenças crônico-degenerativas” se em uma dada configuração da prática. Nesse texto,
destaca. Paulo Chagas Telles Sabroza escreveu o Ricardo Bruno pensa a relação entre investigação
prefácio da coletânea e foi quem inicialmente cha- epidemiológica e prática médica; a elaboração dos
mou minha atenção para a qualidade teórica des- conceitos de doença em sua ligação com a prática
se trabalho, publicado pela primeira vez em 1985. social da medicina.
(MENDES-GONÇALVES, 1985) O contato que esta- Reler esse artigo produz uma dupla sensação:
beleci com Ricardo Bruno a partir da publicação do por um lado é um texto defasado no tempo; por
livro, em 1990, foi início de uma rica interlocução e outro lado, sua atualidade se sobrepõe através da
também a oportunidade de tê-lo como orientador qualidade do pensamento e das perguntas que ela-
no doutorado entre 1992 e 1996, trabalho no final bora. Suas observações estão contextualizadas no
interrompido com o agravamento da sua situação debate de uma época ainda muito marcada por
de saúde. polarizações e dualidades que hoje não mais se
As considerações que ele desenvolveu sobre a sustentam ou pelo menos não mais se apresentam
epidemiologia estão contextualizadas no seu tema do mesmo modo. Porém, na articulação entre per-
mais amplo que é o estudo da prática médica en- guntas formuladas com consistência, rigor e inteli-
quanto prática social. A epidemiologia é a face da gência; na capacidade de estabelecer um diálogo
medicina que dá subsidio para a elaboração do co- aberto e criativo com os autores que utiliza como
nhecimento científico sobre a distribuição, a cau- referência, Ricardo Bruno formula questões que
salidade e o próprio conceito de doença. As rela- vão em direção a mudanças no conhecimento que,
ções entre o conceito de doença e a prática médica se não poderiam ser preditas na época do modo
devem, portanto, ser desvendadas, pois o conhe- como ocorreram depois, foram enunciadas por ele
cimento não é neutro, ao contrário, imprime uma como pontos problemáticos.
direção, um posicionamento. O conceito de doença Entre eles está a própria classificação de “doen-
é uma forma intelectual articulada às práticas em ças crônico-degenerativas” em contraposição a
curso e apresenta uma dimensão ética em contex- “doenças infecciosas”, demarcação cujas fronteiras
tos de relações de poder. O conceito é operativo hoje estão mais visivelmente borradas. A teoria da
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302 303
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
doença infecciosa é também questionada em sua [...] uma vez doente, o homem é abs-
traído desse contexto mais amplo e
lógica que destaca os aspectos de agressão e/ou recodificado inteiramente por um
invasão, de delimitação entre externo e interno, saber autorizado a reduzi-lo a ele só,
agente e hospedeiro, desconsiderando o aspecto indivíduo despido de todas as cone-
ecológico e interativo entre populações humanas xões que constituem em conjunto o
significado de sua vida. (MENDES-
e de microrganismos, destacado em teorias mais GONÇALVES, 1990, p.53)
recentes.
A relação histórica entre a epidemiologia e a
A configuração histórica do conceito de doença clínica médica impôs uma forma de pensar que não
é identificada por ele mediante os termos biologi- se referenciou de forma adequada na dimensão so-
cismo e individualização. Ao criticar essas duas ca- cial do adoecer. Para Ricardo Bruno a delimitação
racterísticas, Ricardo Bruno interroga as fragmenta- do escopo não apenas epistemológico, mas tam-
ções impostas pelo conceito biomédico de doença. bém prático, ou seja, a racionalidade que constitui
A condição humana está integralmente implicada a prática médica e a epidemiologia como um co-
no processo saúde e doença, mas a prática médi- nhecimento que lhe dá suporte, tem uma configu-
ca autoriza uma abordagem terapêutica que abs- ração que oculta aspectos sociais e também psíqui-
trai aspectos importantes a serem considerados, cos relevantes para a compreensão dos processos
reduzindo-os. A intervenção normativa da medici- de saúde e doença. A partir do século XIX, o concei-
na rompe conexões dos fenômenos concretos do to moderno de doença é compreendido mediante
adoecer com seus contextos histórico-sociais. Os um olhar biomédico e as práticas de saúde se confi-
acontecimentos do transcorrer da vida são sub- guraram nessa concepção. A dimensão social é tra-
metidos ao saber médico, atomizados em um sem balhada apenas mediante variáveis que entram nas
-número de fatores isolados. A dimensão ética e análises como um determinante distal do processo.
estética da produção técnica direcionada ao corpo
através da medicina e suas práticas é neutralizada Assim, ele analisa a lógica da chamada epide-
e naturalizada: miologia social que buscou introduzir uma qua-
lificação política, teórica e prática do social não
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304 305
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
explicitada (ou naturalizada) nas elaborações da das em mais de três décadas que nos separam da
epidemiologia. Porém, independentemente das elaboração desse texto: a integração entre os sa-
conquistas dessa vertente da epidemiologia, cha- beres que constituem esse campo problemático. A
ma atenção para o caráter redutor estruturalmente epidemiologia, que se nutre da biologia, das ciên-
implicado na própria construção do conceito mo- cias sociais e da estatística, precisaria encontrar
derno de doença. A epidemiologia surge no contex- uma articulação entre essas ciências que fosse ca-
to da emergência da medicina moderna e se desen- paz de superar a dissociação entre esses modos de
volve como uma disciplina vinculada às ciências da abordar a realidade da doença para subsidiar uma
saúde: “os compromissos assumidos na elaboração terapêutica competente do ponto de vista tecnoló-
do conceito de doença e reiterados na sua perma- gico e ético.
nência representam o núcleo do obstáculo a ser A integração entre ciências da vida e ciências
transposto.” (MENDES-GONÇALVES, 1990, p.83) O humanas e sociais tem como um obstáculo, con-
conceito de doença não é externo aos constrangi- tudo, a própria visão que demarca a dimensão
mentos impostos pela cosmovisão que o produz. O biológica e individual em contraposição à social
caráter ético e realizador de uma dada perspectiva e coletiva. A questão do biologicismo e da indivi-
de sociedade é intrínseco à construção do conhe- dualização tende a ser abordada por Ricardo Bruno
cimento. Uma ruptura epistemológica seria conse- como um problema dessas dimensões em si e não
quente a uma ruptura mais ampla “com os compro- como uma dada forma de compreender o biológico
missos sociais assumidos à época do nascimento da e a individualidade. No início da década de 1980
Clínica, renovados e atualizados depois.” (MENDES- as polaridades - individual x coletivo; biológico x
GONÇALVES, 1990, p.84) social; natureza x cultura; sujeito x objeto; inter-
Ao escolher as práticas de saúde como eixo da no x externo; quantitativo x qualitativo - estavam
sua reflexão teórica, ou seja, a atividade fim do cam- muito marcadas no discurso elaborado pelo campo
po da saúde, ele conecta o núcleo de uma questão da Saúde Pública/Coletiva. Os conceitos de indiví-
que permanece extremamente atual e atualizada a duo e de biológico foram destituídos de relevância
partir das transformações no conhecimento ocorri- teórica nas discussões da Saúde Pública que pro-
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
curaram ampliar o entendimento dos processos de Não há dúvida que, a ‘grosso modo’, o apro-
saúde e doença na direção do social. (CZERESNIA, fundamento das especialidades tendeu a acentuar
1997) Essa configuração ideológica, muito presente as dificuldades de diálogo entre as linguagens das
na formação histórica da Saúde Coletiva brasileira, ciências. Nesses mais de trinta anos, as transforma-
se dificultou, não impediu que Ricardo Bruno en- ções no conhecimento biológico e suas repercus-
trasse em contato com aspectos contraditórios da sões na configuração das práticas de saúde, por um
perspectiva reducionista da teoria biológica e que lado intensificam as características de um modelo
hoje estão extensamente questionados por verten- biomédico que progressivamente incorpora tecno-
tes internas na biologia. As considerações que ele logia, prioriza a especificação de elementos para
tangenciou sobre a base biológica do conceito de medicar e também regular, controlar; na lógica de
doença esboçam um caminho de diálogo produtivo uma prevenção que interfere mais e mais na cultu-
a ser hoje retomado, percorrido e incrementado. ra, nas condutas, no cotidiano, ampliando o mer-
As relações entre biologia e sociedade, nature- cado de consumo dessas tecnologias, saberes, ex-
za e cultura, da mesma forma que o conceito de in- pertises.
divíduo estão hoje problematizados em uma ordem Não ocorreu uma transformação nas formas de
mais profunda no interior das ciências da vida, com apropriação do trabalho na medicina como Ricardo
reflexos em estudos epidemiológicos. Mesmo na Bruno referiu. A questão da tecnologia e da prática
contramão da perspectiva dominante, cujo predo- médica precisa ser hoje repensada a partir de outro
mínio é ainda a radicalização do biologicismo e do aspecto: as tecnologias da informação e as conse-
individualismo, essa vertente de pensamento traz quentes mudanças introduzidas na vida social e nas
uma nova possibilidade de articulação das ciências formas de apropriação do conhecimento.
que constituem o campo problemático da saúde e A intensificação tecnológica não é uma via de
apontam novas perspectivas para pensar o corpo, o mão única e as contradições, as aberturas viabili-
organismo, a doença. zadas precisam ser identificadas e investidas na
construção de novos significados e práticas. Por
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308 309
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História

exemplo, como contraponto ao esforço das pes- ture x nurture) demonstram-se muito mais imbri-
quisas em biologia molecular no sentido de des- cadas do que a biologia de um lado e as ciências
vendar determinações genéticas, surgiram novos sociais de outro historicamente teorizaram.
questionamentos e interpretações ‘por dentro’ da Ainda na segunda metade do século XX, a es-
linguagem biológica, a partir da evidência de uma pécie humana em sua ligação com o mundo ani-
complexidade inimaginável anteriormente, que ao mal era pensada mediante aportes da sociobiolo-
contrário de ratificar, relativizam a importância dos gia e de ideias associadas com a naturalização de
genes. Como resultado apresentam-se novas bases delinquências humanas, sexismo, violência, euge-
para pensar, por exemplo, o papel de dimensões nia, etc. Hoje essa ligação é, ao contrário, repen-
ambientais, inclusive a cultural e a simbólica, na sada em termos da vitalidade, do valor da vida e
constituição, desenvolvimento e evolução dos se- do seu futuro. Os teóricos sociais se dão conta de
res vivos. A linguagem e o humano são pensados que reconhecer a condição ‘carnal’ do homem não
em ligação com a biologia, como emergências do é reacionária e de que é necessário repensa-lo na
processo evolucionário. (JABLONKA; LAMB, 2010) relação com outras espécies na natureza. O surgi-
Outra constatação com consequências significa- mento de novos estilos de pensamento na biologia
tivas para repensar o biológico é a evidência da salienta como ela não é uma ciência monolítica e
simbiose como condição intrínseca aos seres vivos oferece oportunidades para diálogos construtivos
em todos os níveis de organização. Interrogam-se entre as ciências da vida e as ciências humanas e
ideias essencialistas sobre a individualidade orgâ- sociais. (ROSE, 2013)
nica, questionando-se o próprio conceito moderno
de indivíduo. (GILBERT; SAPP; TAUBER, 2012) Nessa A consciência da impropriedade do pensamen-
vertente de trabalhos em biologia teórica explicita- to dissociado entre biologia e cultura produz o de-
se a necessidade de novas formas de compreender safio de integrar desenvolvimentos que progressi-
os conceitos de organismo, interação, adaptação. vamente se especializaram e se desenvolveram em
(BARBEROUSE; MORANGE; PRADEAU, 2009) No separado. Conceber uma cosmologia que abarque
contexto dessa discussão, natureza e cultura (na- essa multiplicidade sem simplificações ingênuas,
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310 311
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
preservando as especificidades e a complexidade congruências entre conhecer e fazer, condiciona-
das diferentes ciências é hoje um desafio maior. das por situações de desigualdade e compromissos
A não dissociabilidade dos processos biológi- que tendem a legitimar os modos hegemônicos
cos e sociais já é de alguma forma reconhecida em de pensar desde então. A busca de alternativas é
algumas pesquisas epidemiológicas. Por exemplo, uma escolha a ser fortalecida. Reler o modo como
particularmente baseados na epigenética, estu- Ricardo Bruno pensou a questão da relação entre a
dos argumentam que aspectos ambientais na pri- epidemiologia e a prática médica enquanto prática
meira infância como a qualidade da nutrição e/ou social reforça a importância dessa procura e é um
o stress materno por condições sociais e culturais estímulo para, em meio a tantas dificuldades, não
desfavoráveis apresentam potencial explicativo abandonarmos o eixo de uma perspectiva inegociá-
mais consistente do que a genética para entender vel: a procura de saídas teóricas e práticas elabo-
diferenças na suscetibilidade a doenças na vida radas a partir de um projeto orientado à busca da
adulta como hipertensão, diabetes, doenças coro- verdade, entendida a partir dos valores da liberda-
narianas. (LILLYCROPET; BURDGE, 2012; KUZAWA; de e felicidade.
SWEET, 2009)
Contextos sociohistóricos e relações de interes- Referências
se nas mais diferentes dimensões - econômica, po-
lítica, cultural - estão imbricados na determinação BARBEROUSE, A.; MORANGE, M; PRADEAU, T. (Ed.)
de pandemias contemporâneas como a obesidade Mapping the future of Biology: evolving concepts
e os múltiplos agravos em saúde mental, temas que and theories. Boston: Sprienger, 2009.
também vêm demandando abordagens de análise CZERESNIA D. Do contágio à transmissão. Ciência
mais complexas e integradas. e cultura na gênese do conhecimento epidemioló-
Apesar dos muitos avanços nas elaborações gico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997.
realizadas no decorrer dos anos que nos separam
do texto de Ricardo Bruno, mantém-se grandes in-
______________________________ _______________________________
312 313
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
GILBERT, S.F.; SAPP J.; TAUBER A.I. A Symbiotic ______. Reflexão sobre a articulação entre a
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______________________________ _______________________________
314 315
6. PRÁTICAS DE SAÚDE E
TECNOLOGIA:
Contribuição para a
reflexão teórica1

“Doch leider sind auf diesem Sterne eben


die Mittel Kärglich und die Menschen roh.”2

Este ensaio pretende contribuir para o desen-


volvimento da reflexão e da prática no campo da
Saúde, por referência a uma das temáticas que
mais parecem caracterizá-lo problematicamente na
atualidade: a questão tecnológica.

1
Texto originalmente publicado como Gonçalves, R. B. M. Práticas de saúde
e tecnologia: Contribuição para a reflexão teórica. Brasília: OPS, 1988. (Série
Desenvolvimento de Serviços de Saúde, No. 6).
2
Nota dos Editores: Referência a trecho de “ A ópera dos três vinténs”, de
Bertold Brecht (1928), extraída do final do primeiro ato, denominado “So-
bre a instabilidade das condições da vida humana”: “Ser homem bom! Sim,
quem não gostaria? No entanto, infelizmente, em nossa vida, pessoas são
sovinas e perversas”. Cf. Brecht, B. A ópera dos três vinténs (tradução de Wol-
fgang Bader e Marcos Rosa Santa, versificação das canções de Wira Selanski),
p. 50. Disponível em: http://docslide.com.br/download/link/os-tres-vintens.
Acessado em 01/10/2016.
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
Essa caracterização do campo em sua relação ser tratado como de natureza triplamente ideoló-
com a tecnologia sob a forma de problema apare- gica: em primeiro lugar, pela substituição tão fre-
ce, nos principais discursos políticos, técnicos ou quentemente verificada de categorias dotadas de
técnico-políticos que se estruturam sobre o tema, qualquer tipo de rigor teórico-conceitual por cate-
de forma intensa e profundamente marcada por gorias nocionais tão próximas dos senso comum;
uma notável heterogeneidade conceitual, em que em segundo lugar, pelos efeitos de obscurecimento
a própria noção de ‘tecnologia’, além de suas rela- e deslocamento promovidos pela redução de uma
ções nas totalidades mais inclusivas das práticas em realidade essencialmente sócio-política e histórica
que opera, assumem os significados mais variáveis a parte de seus aspectos técnicos e organizacionais;
sem que sejam explicitadas as divergências teórico- em terceiro lugar, e talvez este seja o aspecto mais
metodológicas que orientam as análises. Isto acar- importante, pelo fato de que não se imagina des-
reta o efeito de produzir muito frequentemente um qualificar uma questão eminentemente ideológica
diálogo de surdos, por um lado, ao mesmo tempo apenas através de uma adequada correção de seus
em que, exatamente pela carência da explicitação equívocos teóricos, como se seu estado anterior
das conexões mais gerais entre a questão tecnoló- decorresse exaustivamente de ignorância ou má fé.
gica no campo da Saúde e as distintas formas de Este não é caso das ideologias enquanto concep-
circunscrever e analisar a mesma questão por re- ções e representações estruturadas e contradito-
ferência à organização social, acarreta também, riamente consistentes com a realidade que corres-
por outro lado, o efeito nada paradoxal de dotar de pondem a posições objetivas no interior da mesma;
graus muito questionáveis de autonomia as expli- se a questão tecnológica, no campo da Saúde tanto
cações e as soluções propostas, em relação àquelas como fora dele, é uma questão ideológica, é por-
condições mais gerais. que se refere a valores irredutíveis a qualquer ex-
Não obstante a necessidade de esclarecer me- plicação cientificamente operável. É necessário ter
lhor as naturezas daquela heterogeneidade con- em mente este limite, por referência ao qual o con-
ceitual e dessa autonomização teórica, parte-se junto do problema só pode ser apreendido em sua
neste texto do reconhecimento inicial do objeto a dimensão ética, para bem poder avaliar a utilidade
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Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
de uma contribuição que, se puder ser constituída essa necessária primeira etapa proceder-se-á, em
de forma rigorosamente científica não será, mesmo segundo lugar, à particularização, também neces-
assim, dotada da capacidade de fornecer qualquer sária, da questão para o âmbito das práticas de
subsídio útil à margem de considerações em que saúde, para em terceiro lugar explorar as conexões
sua natureza última têm caráter também ideológi- ainda mais particulares entre tecnologia em saúde
co. e regionalização dos dispositivos institucionais em
A pretensão do texto, portanto, não é a de res- que se realizam as práticas sanitárias.
tabelecer a verdade e a clareza onde reinassem a Uma última advertência se faz ainda necessária
confusão e o subterfúgio, de modo definitivo e, nesta introdução, com relação aos limites do estu-
sobretudo, isento de compromissos valorativos. O do. Trata-se da consciente restrição da abordagem
autor não participa da opinião, certamente respei- a seus aspectos teóricos, cujo sentido é necessá-
tável, de que tais objetivos sejam coerentes com as rio precisar também. E não se trata de explicitar o
possibilidades da ciência, senão a partir de pressu- nome do “referencial teórico” a que se estaria ade-
postos indemonstráveis que a subordinam à prévia rindo: embora fosse quase intuitivo reconhecer nas
adesão a valores. A partir dessas definições primei- categorias utilizadas e no seu modo de emprego
ras de natureza filosófica, contudo, entende-se que que este estudo se inspira no materialismo históri-
nenhuma concessão ao rigor conceitual aproveita co, não é propósito do autor manter nenhuma fide-
ao compromisso científico de busca de uma verda- lidade doutrinária de caráter dogmático a qualquer
de provisória e histórica, que não deve confundir- versão cristalizada de interpretação da realidade,
se em nenhum momento com a mera justificação de tal modo que essa classificação carece de maior
erudita daquelas mesmas definições. importância. O que realmente deve ser esclarecido
Por essas razões, impõe-se neste estudo pro- diz respeito às relações entre um trabalho teórico
curar circunscrever, em primeiro lugar, os limites como este e a explicação de realidades concretas e
conceituais mais gerais que dão sentido à questão a gênese de propostas transformadoras, no contex-
tecnológica no âmbito da reprodução social. Após to dessas realidades.

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Por discordar-se de que a prática seja uma es- proveitosa a busca dessa “teoria” que só faz qual-
pécie de “caso particular” da teoria, não se constrói quer sentido quanto dessa forma vinculada e de-
aqui o objeto do conhecimento de forma tal a asse- volvida ao homem prático.
melhá-lo a uma fórmula geral na qual esses “casos Não se busca mais, portanto, do que defender a
particulares” devam ser enquadrados; entende-se pretensão de produzir ferramentas de trabalho que
que a possibilidade desta – como de qualquer outra possam ser úteis no mesmo momento em que, se
– construção teórica decorre da reflexão analítica o forem, deixam já de ser adequadas e demandam
penosamente efetivada sobre as práticas, em rela- imediata revisão e, em graus variáveis, superação.
ção às quais, explicações assim abstratas devem ser
entendidas como resultado do esforço da razão por
reconhecer sua estrutura mais geral de conexões e Tecnologia, trabalho, produção, sociedade
de sentidos. Retrato relativamente estático de uma
realidade cuja essência é movimento e historicida- A característica mais notável das correntes de
de, esse reconhecimento teórico só faz sentido se interpretação teórica sobre o significado e as fun-
servir à aproximação inquieta e empreendedora de ções da tecnologia das quais se pretende divergir
práticas que se colocam necessariamente, de for- neste estudo, bem como as marcas mais evidentes
ma consciente ou não, ao nível daquele movimento da estrutura dos discursos (técnicos e políticos) so-
e daquela historicidade, para daí voltarem à corre- bre o mesmo tema que geralmente predominam
ção sistemática e permanente dessas ferramentas nos espaços acadêmicos e institucionais na Amé-
de aproximação. rica Latina, e por referência aos quais também se
pretende introduzir possibilidades de mudança,
É por se partir do princípio, portanto heurístico
consiste no fato de que o conceito de ‘tecnologia’
ao mesmo tempo em que filosófico e ético, de que
é utilizado para designar um certo conjunto de ‘coi-
a ‘consciência’ naquele movimento enriquece as
sas’, em princípio externas aos processos em que
possibilidades de transformação da realidade em
poderiam vir a ser utilizadas, em princípio indife-
proveito de uma expressão progressivamente mais
rentes às características estruturais da sociedade
plena de sua humanidade, que se entende como
______________________________ nas quais essa utilização poderia se dar.
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Deve ser enfatizado o fato de que o que ressal- tecnológicas’ de serem empregadas como interme-
ta nessa característica apontada acima – a externa- diárias entre o homem e a natureza durante a ação
lidade de princípio entre os que se designa como transformadora do primeiro sobre a segunda. É ne-
‘tecnologia’ e os processos de trabalho, de produ- cessário enfatizar essa “potência imanente” na me-
ção e de reprodução social – não decorre da neces- dida em que a concepção referida supõe tal quali-
sidade de proceder a recortes analíticos meramente dade antes e fora (outra vez e coerentemente) de
intelectuais e provisório no processo de conhecer e sua utilização, como característica ontológica des-
atuar: trata-se de uma distinção estrutural que su- sas coisas, quer se trate de coisas naturais, quer se
põe, e por isso assim os designa, nos objetos aos trate de coisas artificialmente criadas pelo homem,
quais chama ‘tecnológicos’ uma realidade dotada e para esse fim. ‘Tecnologia’, portanto, referir-se-ia
em si mesma de sentido essencial, antes e fora de a “coisas em si” com potência produtiva.
sua relação com os outros aspectos designados da A terceira característica das mesmas teorias
realidade (trabalho, produção, sociedade). ‘Tecno- e discursos decorre da função concebida e do al-
logia’, portanto, referir-se-ia a “coisas em si”. cance imaginado e aceito para o conhecimento da
A segunda característica daquele mesmo con- referência às “coisas em si”. A expressão aparece
junto de teorias e discursos acerca da tecnologia é aqui, como acima, entre aspas, para detonar seu
dada pelo critério racional que fundamenta a dis- significado irremediavelmente vinculado à longa
tinção estrutural referida, pelo tipo de qualidade disputa do saber clássico – nem por isso superada
que permite atribuir a um conjunto definido de coi- nas teorias aqui consideradas – que opôs idealistas
sas uma diferença essencial em relação às demais e materialistas em torno do dilema dualista concer-
coisas a que justifica a um só tempo sua designa- nente à distinção entre objetividade e subjetivida-
ção conceitual e seu conhecimento. A ‘tecnologia’ de. Quer se considere uma das vertentes possíveis
é nomeada e conhecida pela qualidade ‘tecnológi- para solucionar o dilema, quer a oposta, ambas
ca’ dos objetos que nela estão contidos: essa quali- convergem no que diz respeito a aceitar a Ciência
dade descreve a potência imanente a essas ‘coisas como conhecimento das “coisas em si”, divergindo

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em aceitá-las como existentes em si mesmas ou, que toda temática adquire, para não mais perdê-la,
alternativamente, como produto de elaboração uma caracterização irremediavelmente ideológica,
racional. No que diz respeito à discussão que vem posto que o termo ‘desenvolvimento’ não é utili-
sendo feita aqui, importa ressaltar que ao conceber zado nesses contextos como meramente descritivo
a Ciência (o conhecimento científico) como referida de um processo de mudança que se caracterizasse
a objetos rigidamente segmentados uns dos outros por progressivo aumento do grau de complexidade
e do sujeito que os conhece procede-se como para de um mesmo conjunto de qualidades estáveis –
fazê-lo esquivar à descoberta da Verdade natural mesmo que se admitissem mudanças qualitativas
e definitiva das coisas. Assim sendo, atribui-se ao implicadas nesse acúmulo quantitativo de comple-
trabalho de produzir conhecimentos, a partir das xidades – mas para além de descritivo desempenha
características supostas como relativamente au- também um papel explicativo e prescritivo, a partir
tônomas que o governam – afinal a própria Ciên- de noções evidentemente não-científicas de que o
cia seria uma “coisa em si” – o papel principal na acúmulo dos conhecimentos das “coisas em si” ten-
gênese daquilo que aparece como desvelamento de para produzir necessariamente graus mais acen-
das potências produtivas da natureza. ‘Tecnologia’, tuados de domínio da humanidade em geral sobre
portanto, referir-se-ia a “coisas em si” com potên- a natureza e, por decorrência, a encaminhá-la ao
cia produtiva descobertas e liberadas pela Ciência. melhor dos mundos possíveis. É compreensível que
A quarta e última característica importante de tudo que apareça candidamente como “percalço”
considerar nas teorias e discursos predominante nessa gloriosa estrada para o futuro, quer no pas-
sobre a tecnologia é como que um corolário da ter- sado, quer no presente, seja interpretado como
ceira logo acima apontada. Trata-se da subordina- obstáculo devido à ignorância ou a má fé, e que a
ção do conceito da ‘tecnologia’ aí operante à ideia questão tecnológica se transforme na chave para
mais geral de “desenvolvimento”, bem evidente as respostas a todos os anseios dos homens, a ser
nas expressões a um só tempo conceituais e nocio- encontrada através da competência e da virtude.
nais de ‘desenvolvimento científico-tecnológico’ e ‘Tecnologia’, portanto, referir-se-ia a “coisas em si”
‘progresso técnico’. É principalmente por esta via com potência produtiva, descobertas e liberadas
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pela Ciência, e cujo melhor uso é uma questão de essas noções as de: eficácia, produtividade, eficiên-
racionalidade administrativa e organizacional (ge- cia e adequação, e convém precisá-las para melhor
rencial). reconhecer a natureza do tipo de equacionamento
Em linhas gerais, aí está descrito e identifica- da questão tecnológica do qual se pretende diver-
do em sua lógica mais evidente o arcabouço a um gir, mas também – e isto é muito importante de ser
só tempo teórico, ideológico e metodológico que retido – para poder reaproveitar, recontextualizan-
recorta a questão da tecnologia, tal como vai apa- do-as, as temáticas certamente relevantes circuns-
recer nas principais correntes explicativas que ana- critas por essas noções.
lisam sua relação com a reprodução social. Não é É como se fosse necessário enfatizar, outra
este o lugar adequado para proceder à crítica de- vez, que a crítica a um saber de natureza ideológi-
talhada dessas correntes explicativas em termos de ca consistente passa pela sua superação, após sua
suas insuficiências, nem tampouco de seus méritos, negação apenas provisória: tudo que se pretendeu
além de não ser este o objetivo deste texto. As ca- designar com as noções acima destacadas, dentre
racterísticas apontadas o foram no duplo interesse outras que parecem menos importantes, não foi
de permitir discutir ainda algumas características um sonho ou uma mistificação, mas sim aspectos
secundárias de grande importância no discurso po- parciais postos pela realidade prática para a refle-
lítico ideológico, e de permitir um melhor contraste xão e a mudança. O que é necessário sempre é iso-
com a posição teórica que se adotará adiante. lar o “efeito de conjunto” do discurso, no que ele
A partir da conceituação descrita de ‘tecnolo- releva do compromisso com um certo conjunto de
gia’ é compreensível que ocupem um lugar de tão valores. No caso em exame, conforme se pode de-
grande destaque as noções que se discutirá a se- preender do que já foi posto, três características
guir, tanto nas representações do senso comum, assumem especial papel na estruturação ideológi-
que se orientam predominantemente por essas po- ca desse discurso sobre a questão tecnológica, per-
sições teóricas descritas, como nos discursos técni- passando simultaneamente também a teoria e os
cos e/ou políticos, quer sejam menos ou mais em- métodos: a autonomização da esfera de interesse
basados cientificamente de forma consistente. São da questão por referência às que a “circundam”; a
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reificação da esfera de interesse por referência às essa relativização pode parecer aproximar-se peri-
práticas em que ocorre; a despolitização do núcleo gosamente do mero jogo de palavras. Partindo da
da questão, que passa a aparecer como essencial- habitual premissa filosófica utilitarista que preside,
mente racional, eventualmente contaminada, “de conscientemente ou não, a maioria das análises, a
fora” e “depois” por dimensões políticas contingen- crítica aqui esboçada tomará irremediavelmente
tes. esse aspecto de verbalismo, e nesse caso não há,
Nenhuma dessas características estruturais bá- também, rigorosamente, como superar o impasse a
sicas, elas também possivelmente corresponden- não ser na própria prática social e histórica em que
tes às aparências da questão tecnológica recortada todas essas questões irão sendo progressivamente
por um olhar essencialmente conservador, anula, superadas, de uma ou de outra forma.
desqualifica completamente os aspectos parciais Deve-se mesmo assim explicitar que a cate-
apreendidos pelas noções de eficácia, produtivida- goria fundamental que orienta as releituras acima
de, eficiência e adequação. A tarefa talvez consista propostas do campo problemático designado como
principalmente em tornar os campos de aplicação “questão tecnológica” não se resolve exclusiva-
dessas noções em aspectos verdadeiramente par- mente ao nível da teoria. Trata-se da categoria de
ciais, isto é, em dimensões analiticamente relevan- ‘totalidade histórica’, que justifica a afirmação an-
tes e pertinentes, correspondentes aos conceitos, teriormente feita sobre o tipo de leitura adequado
todos eles subordinados à compreensão da tecno- dos possíveis méritos desta contribuição: integra-
logia como não-autônoma mas integrada à práti- da à prática, no campo histórico correspondente à
ca; não reificadas mas encontrando nas relações escala de suas determinações e no espaço político
sociais que viabiliza, por nelas ter-se gerado, seu correspondente à magnitude dos poderes em jogo,
significado mais íntimo; não técnica que pode ser esta teoria torna-se, e só então, força útil imediata.
politizada, mas política enquanto técnica. Examine-se, então, as noções subsidiárias
É inegável que ao nível restrito de uma apreen- apontadas, ainda que sinteticamente, a fim de per-
são intelectual teórica como a aqui proposta, toda mitir seu posterior uso recontextualizado.
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A noção de ‘eficácia’ é talvez a pedra angular produtiva (o próprio conceito de eficácia pretende
de todo o discurso. Em uma aproximação mera- expressar, quantificando-a, essa potência imanente
mente designativa aponta para a menor ou maior ao instrumento), de origem científica (o controle
capacidade dos instrumentos de trabalho de inter- do homem sobre a natureza é o suposto campo de
mediarem a obtenção de resultados melhores ou aplicação da Ciência) e destinado à gerência quanto
de resultados ainda não obtidos anteriormente, às suas condições de uso (evidentemente, no caso
supondo sempre que assim se aumente o grau de limite em que tivesse sido possível neutralizar as in-
controle do homem sobre a natureza. No primei- fluências externas e perturbações da política).
ro caso se trataria de aperfeiçoamento (resultados Não há que se exagerar nas tintas: enquanto
melhores), designando produtos dotados de idên- coisa assim abstraída de sua existência real nos
tica utilidade, isto é, respondem a uma mesma processos produtivos, o instrumento de trabalho
necessidade, mas dotados de maior durabilidade pode efetivamente ser objeto de interesse espe-
ou de melhor desempenho ao serem consumi- cífico e restrito, mas nem por isso irrelevante. O
dos produtiva ou improdutivamente. No segundo tecnólogo – em última instância o cientista – que
caso se trataria de inovação: os produtos obtidos aparentemente isolado da vida social real inventa
teriam uma nova utilidade, correspondendo a ne- o instrumento de laboratório – orienta-se sobretu-
cessidades que embora presentes nunca tivessem do para sua potência produtiva diferenciada, como
sido satisfeitas ou ao refinamento das necessidades se nesse campo parcial de práticas a tecnologia se
básicas proporcionado pelo próprio cultivo do con- reduzisse à sua eficácia. Esse é um processo real,
sumo. sem dúvida, mas evidentemente parcial, como a
Encontra-se com facilidade nessa designação história da tecnologia demonstra suficientemente.
do campo de atributos da qualidade de ‘eficácia’ os De pouca valia teria a consideração das determina-
elementos conceituais que delimitam a ‘tecnologia’ ções mais concretas e inclusivas dos instrumentos
já apontados: “coisa em si” (o instrumento, inde- de trabalho para esse trabalho parcelar, proposital-
pendentemente das suas condições reais concre- mente, necessariamente e adequadamente dividi-
tas de geração, difusão e utilização), com potência do e abstraído.
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Isto não justifica contudo, que no âmbito de haver pudor em fazê-lo, tratando-se de formulação
um discurso ideológico, em que a abstração não brilhantemente esclarecedora de todo um imenso
é mais recurso de análise, mas uma forma de re- esforço teórico coletivo – ao jargão: a realidade dos
dução da realidade a uma de suas representações processos produtivos é uma totalidade-síntese de
possíveis, em que a autonomização (essa abstração múltiplas determinações em fluxo histórico. Ga-
redutora, e não analítica), a retificação e a despo- nha-se muito com a análise de seus processos par-
litização “tornem” a questão da eficácia em ques- ciais, desde que não se os autonomize tornando-os
tão concreta (pseudo-concreta, portanto), com pseudo-concretos e dotados em si mesmo de ple-
um salto pirotécnico do laboratório de pesquisa à no e completo sentido. Resumindo, é fundamental
realidade dos processos produtivos, que passam tomar como instrumento analítico (e, portanto,
a ser como que a somatória (por justaposição de abstrato) a consideração da qualidade diferencia-
pseudo-realidades produzidas por redução) de pro- damente eficaz dos instrumentos de trabalho se se
cessos parciais em si mesmos completados em to- pretende explicar a totalidade para atuar nela ao
dos os sentidos. Tratar-se-ia de apor ao resultado nível histórico em que ela se dá, o que equivale a
os processos nos quais são gerados instrumentos dizer que é também fundamental subordinar essa
eficazes os resultados de outros processos, simi- questão à dinâmica do todo nesse projeto de ex-
lares, em que se pensam as “realidades” conexas plicação e atuação. Ressalve-se que a um diverso
expressas nas noções de eficiência, produtividade, projeto, como o do tecnólogo, compreensivelmen-
etc., como se a gerência tecnológica equivalesse à te se deve obrigar, em sua escala micro histórica,
noção que os leigos em culinária têm dessa arte, se à abstração dessas condições reais que pouco ou
é permitida essa analogia prosaica: entretanto, os nada trazem de imediatamente útil.
integrantes não se somam mantendo-se enquanto A noção correlata de ‘produtividade’, tal como
tais no produto final, mas integram-se dissolvendo- aqui utilizada, diz respeito à qualidade também di-
se em uma síntese original que espalha a maestria ferencial dos instrumentos de trabalho de, ao in-
e a experiência do autor do projeto. Cessada a ana- termediarem a relação homem-natureza, estarem
logia, há que ir mais longe, e recorrer – não deve necessariamente associados a uma determinada
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magnitude na relação entre quantidade de produ- se justificam senão pela ‘eficácia’ a eles conjugada,
to e tempo. Desnecessário explorar a consistência o polo ‘produtividade’ abre, no entanto, de modo
dessa noção com as características gerais do con- mais evidente, o flanco vulnerável do modelo con-
ceito ‘tecnologia’ descrito, desde quando balizado ceitual a um conjunto problemático muito mais
o procedimento pela estrutura ideológica de todo vasto e complexo, para o qual as respostas não são
o discurso (autonomização, reificação, despoliti- tão consistentes assim.
zação). Parece lícito supor que se trate de noção É simples apontar a fenda conceitual que
correlata e de certa forma dependente da de ‘efi- questiona toda armadura ideológica do mode-
cácia’, à medica em que, nesse discurso, se justifica lo habitual de explicação da questão tecnológica,
a busca da produtividade pelo valor superior defini- apontando seu caráter justificador antes do que
do pela melhor eficácia: tratar-se-ia de generalizar cognitivo. Trata-se do fato, simples porque próximo
(tendencialmente) o consumo de produtos obtidos às aparências com que até o senso comum pode
através de “tecnologias” (equipamentos) mais efi- apreendê-lo, de que a uma mais elevada relação
cazes, o que se conseguiria principalmente através (matemática) entre quantidade de produtos e tem-
da queda tendencial do custo unitário do produto po não corresponde necessariamente uma melhor
obtida através da conjugação da produtividade à relação entre os mesmos fatores, estando a histó-
eficácia no meio de trabalho. ria da tecnologia repleta de evidências nesse sen-
Malgrado a coerência formal dessa conjuga- tido. É evidente que as relações sociais conforme
ção no modelo, e sem querer sugerir que o campo os quais os homens estiveram e estão organizados
nocional relativo à ‘eficácia’ seja imune aos proble- para sua reprodução, aí incluindo sua relação com a
mas que se aponta a seguir, o fato é que se os fe- natureza, estiveram baseadas em tipos específicos
nômenos apontados, explicados e trabalhados sob de produção de excedente econômico, conexo às
a rubrica da ‘eficácia’ perdem todo sentido teórico formas de sua apropriação, determinando-se antes
e toda aplicação viável se não se acoplam à ‘pro- a produção, em qualquer caso histórico, como pro-
dutividade’, e também, se ao mesmo tempo os fe- dução desse excedente do que como produção de
nômenos que dizem respeito à ‘produtividade’ não mais produtos e/ou melhores produtos. Se houves-
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se imediata correspondência entre os dois tipos de a cada análise, e se tornasse “démodé” utilizar esse
fenômenos (produção de excedente e produção de tipo de ideologia, ao menos no campo econômico.
bens) o modelo seria sem dúvida adequado. Boa O problema aqui defrontado não é apenas teórico,
parte da já quase desusada ideologia do “desen- entretanto, e a persistência dos estilos de análise
volvimento” estava baseada nesse falso suposto, e vícios de interpretação correspondentes à épo-
infelizmente indemonstrável na prática, ainda que ca do “desenvolvimento” mostram a vitalidade da
formalmente sustentável na teoria. base essencial dessa ideologia por referência às
Se a melhor produtividade deve prevalecer, em formações sociais em que essa questão se colocou
condições de reprodução social relativamente es- como problema.
táveis, sobre a maior produtividade, segue-se que A partir dessa grave inconsistência entre teo-
se torna necessário “reparar” o modelo conceitual ria e realidade, o modelo gerou duas outras noções
tornando a noção de produtividade do instrumen- corretivas até certo ponto complementares: efi-
to como relevante apenas ao nível abstrato (e não ciência e adequação. No caso da noção de eficiên-
autônomo) de colaboração do tecnólogo e do cien- cia, trata-se do deslocamento relativamente brusco
tista que pesquisam e produzem equipamentos, e de um universo discursivo que, não obstante suas
negando ao mesmo tempo a correção de todos os inconsistências, colocava a questão tecnológica em
pressupostos que subjazem ao conceito de ‘tecno- relação com a reprodução social (as noções de ‘efi-
logia’ – a não ser como recorte analítico. Parece cácia’ e ‘produtividade’, a seu modo, se sustentam
evidente que, neste caso como em todos os outros também pelo que prometem à sociedade), para um
análogos, o edifício todo desabe quando se retira universo muito mais fechado: a relação custo/be-
um de seus pilares. Na teoria, de fato desaba, e as nefício de que seria dotado um equipamento em
teorias do desenvolvimento social baseadas na pro- condições de produção dadas e que não estão em
dutividade tecnológica foram se substituindo umas discussão. É evidente que sempre se pode preten-
às outras de Colin Clark a Fourastié e Rostow, até der que as condições dadas são as melhores possí-
que os economistas neoclássicos tornassem a tec- veis para o presente e o futuro, mas a vulnerabilida-
nologia em dado externo, “dado” como invariante de desse argumento não carece de demonstração.
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É importante destacar, como anteriormente cia da teoria da tecnologia não estava no excesso
se faz, que a problemática da eficiência posta em de referência à sua dimensão social concreta, mas
temos de relação custo/benefício não é tampouco, na sua falta. Assim, enquanto a noção de ‘eficiência’
como não o são as de eficácia e produtividade, uma desviava a questão em um sentido evidentemente
problemática irrelevante. Basta considerar que as tecnicista e conservador, esta outra tendência bus-
condições concretas de reprodução social incluem cou sobretudo adequar-se à mudança social, sem,
como dado de realidade a estabilidade relativa, contudo, levar às últimas consequências a crítica
quer essa seja representada como absoluta, quer aos pressupostos teóricos mais gerais apontados.
seja conceituada como mero recurso intelectual O fulcro que passou a orientar a análise foi a ‘ade-
para captar o fluxo de mudança, em si mesmo não quação’ entre as características dos instrumentos
operacionalizável em escala micro. Não se está su- de trabalho – ainda concebidos de matéria autôno-
gerindo, portanto, que essas noções não correspon- ma e reificada, porém em certo sentido não mais
dem a dimensões importantes dos processos reais despolitizada – e os projetos de mudança social,
e que não haja sentido em considerá-las, mas sim substituído o ‘crescimento econômico’ (acúmulo
negando a redução desses processos sociais reais e de excedente) pelo ‘desenvolvimento social’ (inte-
esses instrumentos, como sendo a forma mais rica grando dimensões econômicas, políticas, sociais e
e suficiente de explicá-los. culturais).
A noção de ‘adequação’ – apontada com essa Essa foi a matriz da ideia mais conhecida, e
palavra neste texto para reunir um conjunto mais particularmente atual no campo da Saúde, de ‘tec-
amplo de temáticas convergentes – é relativamen- nologia apropriada’. Trata-se em última análise de
te mais recente, habilidosa, sedutora e ilusória. Foi reconhecer nos instrumentos de trabalho as carac-
a partir da crítica às inconsistências práticas das terísticas qualitativas e quantitativas deles mesmos
teorias mais evidentemente insuficientes que pro- capazes de defini-los como adequados aos proje-
curavam relacionar tecnologia e sociedade que se tos de mudança social (‘desenvolvimento social’)
desenvolveu a ideia global, oposta àquela referida concretos idealizáveis em cada formação social.
acima a propósito da ‘eficiência’, de que a deficiên- É conhecida a versão estritamente econômica da
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questão: com base nas noções de ‘eficácia’ e ‘pro- de política econômica em situações diversas, ainda
dutividade’ produziu-se um discurso explicativo que os defensores da ideia geral, macrossocial, da
e justificador de certas políticas econômicas que ‘tecnologia apropriada’, tivessem sido progressi-
acabaram por conduzir à chamada “queima de eta- vamente forçados a relativizarem a ênfase com os
pas de desenvolvimento tecnológico”, com o grave que essa nova ideologia desenvolvimentista fora
efeito colateral (na verdade estrutural) de quei- inicialmente apresentada e recebida como quase
mar também a oferta de empregos, gerando o que -panaceia.
pareceram ser sociedades paradoxalmente com- No campo específico das políticas de saúde,
primidas entre um progresso tecnológico eviden- igualmente a noção – difícil conceder que se tenha
te (ainda que setorial) e um acúmulo paralelo de estruturado convicentemente como um conceito
marginalidade. Em reação, buscou-se a ‘tecnologia de forma generalizada – de ‘tecnologia apropriada’
apropriada’ às condições concretas do desenvolvi- também teve sua emergência marcada em um ca-
mento social que, retardando embora os ganhos de ráter irresistivelmente mistificador, malgrado a boa
produtividade, e consequentemente de velocidade consciência de tantos técnicos e cientistas que sem-
de acúmulo de excedente, permitissem diminuir o pre conceberam a ideia de forma relativizada, entre
fosso que separava os grupos sociais conforme a os quais o autor, deste texto se inclui. A possibilida-
apropriação desse excedente acumulado. Tratou-se de de recontextualizar a noção de forma a transfor-
da questão de escolher entre “tecnologias” (equi- má-la em conceito rigoroso, em instrumento provi-
pamentos) poupadores de trabalho (capital-inten- sório e parcial de trabalho nesse campo específico
sivas) e utilizadoras de trabalho, presumindo nes- de práticas, será examinada posteriormente.
sas últimas, variavelmente utilizadoras de trabalho
conforme cada tipo de necessidade social concreta, Tratando agora de contrapor ao modelo concei-
a virtude de promoverem o referido ‘desenvolvi- tual tratado aquele que pode rigorosamente ser de-
mento social’ integrado. fendido como alternativo, procurar-se-á esboçá-lo
enfatizando os contrastes de princípio, aproxima-
As evidências empíricas apontam para a rique- damente na mesma ordem de questões já aborda-
za dessa aproximação como instrumento restrito das, mas sem tentar detalhar todos os possíveis ti-
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pos de reequacionamento de problemas concretos analiticamente apreensível em suas qualidades
(ou menos abstratos). Tornar-se-ia extremamente técnicas específicas (eficácia, produtividade, etc.) e
inadequado para a forma de abordagem cabível em abstratas, mas é no processo real da produção que
um ensaio como este, todavia, discutir os princípios encontra sua concreticidade plena quando aquelas
filosóficos mais gerais que podem ser opostos ao características se tornam ao mesmo tempo no su-
dualismo, no qual têm sentido “coisas em si”, esfe- porte técnico de obtenção de um certo tipo de pro-
ras autônomas de realidade dotadas de legalidade duto e no suporte da reprodução social. Com isso
própria, incluindo aí a esfera do labor científico e se compreende a inviabilidade do uso concreto de
a externalidade entre política e técnica. Partir-se-á instrumentos presumivelmente ainda não adequa-
então do princípio mais geral de totalidade de uma dos ou comprovadamente já obsoletos.
concepção dialética da relação entre objetividade Uma referência deve ser feita a uma problemá-
e subjetividade, tomando para exame a tecnologia tica contida na distinção entre a dimensão técnica e
para dimensão particular e relativamente abstrata, a dimensão social (e que a justifica como distinção
procurando explicitar os referidos contrastes do pertinente) e que se diz respeito à tensão laten-
trajeto, se parecer que não são evidentes por si. te ou explosiva entre ambas. Trata-se da temática
Dessa perspectiva geral os instrumentos de tra- bem conhecida da relação contraditória entre re-
balho devem ser compreendidos como expressão e lações sociais de produção e desenvolvimento das
suporte de relações estabelecidas entre os homens forças produtivas. Não se explorará a potencialida-
e a natureza, sempre provisória e historicamente de dessa temática de vez que este ensaio se orienta
adequados às relações sociais organizadas confor- para condições de reprodução social relativamente
me as quais os homens então modificam a natureza estáveis, em que a qualidade das relações de pro-
e a si mesmos. Isto equivale a dizer que as dimen- dução é dada, em que o desenvolvimento das for-
sões técnicas e sociais do trabalho enquanto de- ças produtivas encontra-se em princípio contido
terminações da totalidade histórica se distinguem nos limites do tipo macro-histórico de organização
enquanto se equivalem: extraído do processo real social definido por aquelas mesmas relações so-
de produção em que é utilizado, o instrumento é ciais de produção. Cabe referir mesmo assim esse
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ângulo da questão, de vez que parte das condições Se o conceito mais geral do trabalho, ainda
de ruptura dessa rede estruturada de relações es- não necessariamente humano, exige três conceitos
tará sempre contida essencialmente naquele de- para apreender seus momentos básicos, o trabalho
senvolvimento das forças produtivas, parcialmente especificamente humano necessita de outros três
discernível na modificação das qualidades dos ins- conceitos para sua adequada apreensão, mesmo
trumentos de trabalho. nesse nível de extrema abstração. Apontam-se en-
Considerando o limite analítico contido na ob- tão esses conceitos, a fim de sistematizar a expo-
servação feita logo acima, tratar-se-á da tecnologia sição, e, portanto, supondo-os de conhecimento
enquanto dimensão técnica necessariamente su- corrente.
bordinada à reprodução social e consubstancial por Transformação de fragmentos parciais da natu-
referência a esta. Ou seja, tratar-se-á da tecnologia reza (objetos do trabalho) através de gasto de ener-
à medida em que também através dela e por causa gia (o trabalho propriamente dito, a atividade do
de suas características qualitativas e quantitativas trabalho) e com a utilização de certos recursos (ins-
se reproduz um tipo macro-histórico de organiza- trumentos de trabalho), eis o núcleo mais geral do
ção social. conceito de trabalho, certamente de domínio geral.
Para encaminhar esse esboço teórico é neces- O que já não é de domínio geral, mas necessário
sário reduzir primeiro o processo socialmente or- à abordagem que aqui se faz, é a concepção des-
ganizado conforme certas relações determinadas ses três aspectos que o compõem (objetos, ativi-
às suas características mais gerais e abstratas, nas dade, instrumentos) como momentos. Esse termo
quais o homem social é reduzido, provisoriamen- pretende indicar a mútua dependência e relação
te e com fins analíticos apenas, ao “homo faber”, dos três aspectos, definindo-se uns em relação aos
assumindo, portanto no ‘trabalho’, em sua forma outros sempre e necessariamente, e não indepen-
especificamente humana, o núcleo essencial da so- dentemente para depois entrarem em uma relação
cialidade. produtiva, conforme a noção anteriormente iden-
tificada de instrumento de trabalho (tecnologia),

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“coisa em si” que em si mesma se define e se com- como finalidade/projeto: a possibilidade de sepa-
pleta. Tem-se observado que o trabalho assim con- rar no tempo e/ou no autor a concepção do pro-
ceituado inclui além do trabalho humano também jeto e sua execução. É de fundamental importân-
pelo menos o de outras espécies animais. A dife- cia a compreensão deste ponto: a separação entre
renciação passa pela identificação das três outras concepção e execução é a base objetiva, para este
características acima referidas. animal especial, da organização social especifica do
Em primeiro lugar, toma-se a restrição do con- trabalho com características humanas que subjaz
ceito genérico de trabalho às transformações que à diferenciação das sociedades e à acumulação de
reiteradamente dão origem a produtos, eliminando excedente; ao mesmo tempo, é essa mesma sepa-
da consideração fenômenos casuais, mesmo para o ração que permite identificar dois outros momen-
caso dos animais. O primeiro dos conceitos neces- tos, essenciais ao trabalho humano, geralmente
sários à compreensão do trabalho humano, feita a expressos – mesmo que com alguma ambiguidade
ressalva acima, é o de ‘finalidade’: exprime a ideia – pelos conceitos de ‘trabalho intelectual’ e ‘traba-
do movimento teleológico do conjunto, exprime, lho manual’, correspondendo respectivamente à
portanto, a ideia de projeto, antes que a transfor- concepção e à execução do projeto.
mação se dê. É evidente a dificuldade de atribuir O segundo conceito necessário decorre do de
ao trabalho animal essa qualidade para captar sua finalidade, como sua contrapartida: trata-se da
qualidade de reiteração, esta também presente: o ‘necessidade’ à qual corresponderia todo o movi-
trabalho animal parece ancorado nas característi- mento, evidentemente diferente do que se poderia
cas genéricas da espécie e não é compatível com designar com a mesma palavra para o trabalho ani-
a ideia de ‘finalidade’, e por decorrência com a mal. Diferente porque não equivale a característi-
de ‘projeto’, a antevisão humana do produto que cas naturais e anistóricas da espécie, mas interagin-
orienta a conjugação de objetos, instrumentos e do com o trabalho e com a organização social nele
atividade em direção a um fim. Isto é facilmente ancorada, corresponde a características qualitati-
compreensível através da evidência mais especifi- vas só historicamente compreensíveis do homem.
camente humana da presença de algo designável Em segundo lugar, e não menos importante, dife-
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rente também porque a partir de sua diferenciação to conceitual, já apontado genericamente, e que
primeira desde sua qualidade natural primitiva, as deve agora ser enfatizado. Trata-se da ‘socialida-
necessidades que correspondem aos projetos que de’ especificamente humana do trabalho, contida
organizam o trabalho são basicamente necessida- no fato de que os homens se organizam de forma
des do outro, e não do próprio autor do projeto ou historicamente variável para executá-lo, estabele-
de seu executor, necessariamente. cem relações sociais nada naturais e muito histó-
Entende-se que os conceitos conexos – e só ricas entre si, através de sua relação com objetos e
assim adequados – de ‘finalidade’ e ‘necessidade’, instrumentos, e que imprimem dinâmicas globais
para que se mostrem ferramentas intelectuais ade- específicas a todo o processo. A essas relações apli-
quadas à compreensão do trabalho humano de- ca-se o conceito de relações sociais de produção e
vem, além de conter referências a essa socialidade passam elas a constituir-se na ‘necessidade’ mais
humana genérica, ser também capazes de apreen- geral e básica do processo sob a forma de ‘necessi-
der a realidade histórica empírica, que se mostra dade’ de reprodução social. Assim determinado, o
como jogo de mútua fecundação entre os polos processo de trabalho humano é então conceituado
designados como ‘finalidade’ e ‘necessidade’ de tal como processo histórico de produção social.
modo que ambos demonstram uma diferenciação Aqui passa-se sem dúvida a outro nível de
progressiva (a divisão social do trabalho) e um re- abstração, certamente mais concreto: o processo
sultado qualitativamente distinto ‘progressivo’ em de produção social historicamente determinado
seu conjunto, consistente no evidente incremento que compreende como momentos internos todos
de poder do trabalho social em controlar e subor- os momentos designados com os conceitos ante-
dinar a natureza, o que deve ser tomado como um riores. Por esta razão se afirmou anteriormente
fato, antes do que como valor. ser necessário compreender a tecnologia como
Esse necessário dinamismo histórico de que dimensão técnica necessariamente subordinada à
devem ser dotados os conceitos para se adequa- reprodução social e com ela consubstancial, deven-
rem à realidade que pretendem permitir explicar do encontrar-se nos instrumentos de trabalho (em
é dado por sua conjugação a um terceiro elemen- suas características técnicas de eficácia, produtivi-
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dade, etc.) as determinações essenciais (e não con- Com tudo isso se aponta para a verdadeira ade-
tingenciais!) que os especificam. Um instrumento quação do termo ‘tecnologia’: deveria expressar o
de trabalho qualquer – um martelo, por exemplo conjunto da organização técnica do processo de
– abstraído dos processos concretos de produção produção enquanto processo social e histórico que
social em que é utilizado seguirá sendo sempre a inclui a reprodução social, ressalvando-se o termo
concretização de um conjunto elementar de princí- ‘instrumento de trabalho’ para as coisas que ser-
pios físicos. No processo de trabalho, entretanto, o vem para intermediar a ação humana sobre os ob-
mesmo instrumento só é compreensível em cone- jetos conforme todo esse conjunto de determina-
xão com a ductilidade dos objetos sobre os quais ções. Ainda que esse uso fosse mais correto, parece
incide e com o controle da energia física do traba- inútil insistir nele, posto que haveria que enfrentar
lhador que utiliza para obter certa deformação dos oposições não apena teóricas e ideológicas, mas já
objetos. Esse conjunto, por sua vez, só é compreen- linguísticas, desde que o termo ‘tecnologia’ se tor-
sível considerando o efeito dessa deformação do nou significativo apenas dos instrumentos de tra-
objeto no sentido de transformá-lo em produto, só balho mesmo na linguagem corrente.
é compreensível, portanto porque sabe-se onde e Utilizar-se-á o conceito provisório de ‘orga-
quando bater quando se usa o martelo, de acordo nização tecnológica’, então, para expressar essa
com a finalidade/projeto que se tem em mente, a concepção mais geral em que os instrumentos apa-
qual por sua vez só ocorre em trabalhos socialmen- recem como momentos só compreensíveis por re-
te reiterados desde quando os produtos que cor- ferência à totalidade, deixando ao uso consagrado
respondem a essas finalidades/projetos satisfaçam o termo ‘tecnologia’ como sinônimo desses instru-
necessidades socialmente dadas. Finalmente, qual- mentos. A vantagem eventualmente obtida é a de
quer que seja o mérito mecânico ou o simbolismo ao designar essa organização do trabalho como tec-
romântico do martelo, ele só é compreensível em nologia salientar a importância fundamental que as
um processo de produção onde suas características “tecnologias” (os instrumentos) têm no processo
técnicas possam expressar/suportar as relações so- histórico, já que concentram a potência produtiva
ciais de produção que organizam a sociedade. cujo acúmulo e desenvolvimento é o principal mo-
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tor das transformações históricas das relações de social caracterizado pelo capitalismo e outros tipos
produção. anteriores ou “posteriores” é qualitativamente di-
A síntese que se procurou fazer da estrutura versa daquela que diferencia entre si as sociedades
conceitual alternativa que se utilizará adiante neste por ele caracterizadas. Ambas as diferenciações são
texto, ao tratar do trabalho em Saúde deve ter dei- relevantes à compreensão das questões concretas
xado claro, finalmente, um limite essencial a essa referentes à organização tecnológica das práticas
mesma teoria: desiste-se, por ser incorreto fazê-lo, de saúde, mas com alcance desigual. No caso de se
de tentar compreender a organização tecnológica considerarem de interesse vários tipos macro-his-
do trabalho em saúde à margem das determinações tóricos de estruturação social, pouco se poderia ir
que permitem explica-lo como parte do processo além das já esboçadas características gerais de so-
de reprodução social. Todo o esforço que se seguirá cialidade do trabalho humano, e por particulariza-
só faz sentido como contribuição à compreensão ção do trabalho em saúde. No caso de se restringir
das características das práticas de saúde nas socie- o interesse às sociedades capitalistas é possível um
dades (conjuntos estruturados das práticas sociais) certo grau, que se acredita útil, de particularização,
cuja característica essencial seja a reprodução de mas deve sempre ser lembrado que a explicação
um tipo histórico determinado de relações sociais final das características que cercam a questão tec-
de produção: sociedades capitalistas. nológica em uma certa sociedade concreta, ou até
mesmo um segmento de uma sociedade concreta,
É necessário também enfatizar que o nível de ultrapassa os limites deste texto, que pode no má-
elaboração teórica em que se prosseguirá a análise ximo contribuir para isso.
é ainda relativamente abstrato: refere-se às socie-
dades capitalistas em geral, ignorando sua profunda Iniciou-se este tópico afirmando haver um cer-
diferenciação histórica concreta conscientemente. to conjunto principal de características teóricas,
Justifica-se esse limite por um lado pelos limites de metodológicas e ideológicas comuns aos discursos
viabilidade do texto, mas por outro lado, e princi- predominantes sobre a questão tecnológica. Pro-
palmente, pelo pressuposto de que a diferenciação curou-se identificar tais características e posterior-
entre o tipo social macro-histórico de organização mente oferecer uma conceituação alternativa.
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Antes de passar à consideração das mesmas essas próprias estruturas, na medida em que o con-
questões por referência ao trabalho em saúde, é junto da produção social não se determina senão
necessário, no entanto, apontar para dois aspec- secundariamente como produção de bens e servi-
tos que, neste contexto, devem ser compreendidos ços, úteis conforme um certo conjunto de neces-
como características secundárias dos mesmos dis- sidades; antes disso a produção social é produção
cursos predominantes, mas que nem por isso po- de excedente, e no caso de sociedades capitalistas,
dem deixar de ser mencionados a fim de compor produção de uma específica forma de excedente
melhor aquele conjunto de conceituações alterna- econômico, a mais-valia. Corporificada sob a forma
tivas. de instrumentos de trabalho, essa específica forma
Trata-se de características conexas às descri- de excedente deve ser necessariamente consumida
tas, mas que não aparecem como traços positivos produtivamente dentro de certos padrões qualita-
e sim como omissões quase necessárias, dados os tivos e quantitativos previsíveis, o que se torna tan-
componentes teóricos e ideológicos anteriormente to mais importante de levar em consideração por
apontados. referência ao trabalho em saúde, diretamente e em
si mesmo socialmente improdutivo porque incapaz
Em primeiro lugar, trata-se da não consideração de produzir (gerar na sua esfera exclusiva) exceden-
sistemática do fato de que em sociedades progres- te econômico, ao mesmo tempo em que acoplado
sivamente mais complexas em decorrência de mais de específicos modos à produção de bens (instru-
aprofundada divisão técnica e social do trabalho, os mentos de trabalho) onde esta geração de sobre-
instrumentos de trabalho são também produtos de valor, essencial à substancialidade da estrutura so-
outros trabalhos. E não basta tomar este fato como cial, se verifica.
“externo”, e, portanto, apenas nessa perspectiva
pertinente, quando se tratar de compreender as Examinada, portanto, no contexto de sua rea-
estruturas que organizam um aspecto qualquer, lização (objetivação) integrada em processos de
um ramo qualquer, um setor qualquer de produção produção determinados, a tecnologia (instrumen-
social. É necessário tomá-lo como variável interna a tos de trabalho) só é compreensível enquanto con-
trapartida estrutural de outros momentos internos
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a esses mesmos processos, mas mais ainda, desde político adequado à tomada de consciência pelo
quando processos de produção se determinam eles homem social de suas opções globais quanto à or-
próprios como momentos internos do processo ganização tecnológica do trabalho e, portanto, do
mais inclusivo de objetivação da totalidade histó- mesmo movimento, à organização social.
rico-social, tampouco se pode ignorar (ainda que
seja possível abstrair) as determinações advindas
das relações entre os diversos processos de produ- Tecnologia, saúde e sociedade
ção por referência ao todo.
Após o grande esforço teórico já acumulado
Em segundo lugar, como traço geral derivado
na área disciplinar acadêmica interessada de uma
dos procedimentos complementares de autonomi-
forma ou de outra nas dimensões trans-individuais
zação, reificação e despolitização, a tecnologia (ins-
e supra-biológicas dos fenômenos da saúde e da
trumento de trabalho) aparece, ao mesmo tempo e
doença e das práticas a eles referidas, não haverá
também complementarmente, como sendo a força
talvez maior novidade em afirmar que as práticas
natural mais poderosa no sentido do progresso e
de saúde não podem ser adequadamente explica-
como sendo uma força estranha (nos sentidos de
das se reduzidas a seus aspectos técnicos.
‘externa’ e no sentido de ‘misteriosa’) ao homem,
seja considerado individual, seja coletivamente. Não se trata – é preciso reiterar esta temática
para evitar mal-entendidos – de não poder abstrair
Do primeiro desses aspectos complementares
de todos os aspectos que não sejam técnicos para
ressalta a elevação ideológica de tecnologia, e de
considerá-las, essas práticas, como objeto possível
Ciência que a produz, à categoria de mitos gerais
de conhecimento. Há que assumir, entretanto, a
de máximo efeito obscurecedor por referência à
necessária e irremediável limitação do objeto assim
verdadeira natureza da realidade social humana e
construído para dar conta dos aspectos abstraídos;
de suas potencialidades. Do segundo, que suscita
isto não o desqualifica como possível objeto, mas
simultaneamente a partir de pontos de vista teóri-
desqualifica a redução que a partir daí se possa pre-
cos inteiramente diversos a “teoria da alienação”,
tender fazer – e que se faz muitíssimo frequente-
resulta a incapacitação de instaurar um espaço
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mente – desses aspectos técnicos à sua exclusiva É interessante que movimentos originados de
lógica interna e abstrata, e também, evidentemen- pontos tão distantes e diversos como a Epidemio-
te, dos aspectos não-técnicos a “dimensões poste- logia e as Ciências Sociais tenham afinal convergido
riores”, equivalente à justaposição do técnico ao para a formulação de uma proposta de elaboração
real. cognitiva do objeto que finalmente superam as li-
Prática técnica e prática social (portanto histó- mitações acima apontadas.
rica) a um só tempo e no mesmo movimento, eis o Os cientistas sociais ousaram se obrigar à cons-
suposto heurístico que presidiu a elaboração desse trução do objeto Saúde/Doença/Práticas de Saúde
outro objeto de conhecimento que veio se acres- independentemente do que as disciplinas técnicas
centar ao anterior. Necessariamente mais concreto, abstratas da Medicina (principalmente a Fisiologia,
necessariamente mais amplo e inclusivo, necessa- a Patologia e a Clínica) lhes ofereciam de modo
riamente vinculado às propostas práticas de expli- acabado como ponto de partida, mas só a partir
car para modificar as práticas de saúde ao nível “ma- do momento histórico em que o poder de veto
cro”. Essa perspectiva mais distanciada e ao mesmo baseado naquelas disciplinas se enfraqueceu nos
tempo mais profunda, contudo, não deixou de ser aspectos concretos da reprodução social. De ou-
perseguida a maior parte das vezes pelos mesmos tra vertente, os epidemiologistas, emaranhados às
fantasmas do dualismo epistemológico a que já se vezes nos becos sem saída decorrentes da mesma
fez várias vezes referência, com a consequência de subordinação, e embora muito mais timidamente,
que se tomou quase sempre a ‘saúde, a ‘doença’, e ousaram também se propor tarefa semelhante.
a ‘técnica’ como “dados” a priori, tal como emer- Será bebendo dessas duas fontes, tomando inspi-
giam prontos das disciplinas mais abstratas que os ração nesses dois movimentos, que se ousará aqui
recortavam no real como “coisas em si” autônomas também a proposição de uma restruturação parcial
e despolitizadas, tratando agora apenas de verificar nos quadros de referência que permitem pensar a
como que graus variáveis de adequação desejável tecnologia (instrumentos de trabalho) em saúde, a
(tal como definidas em abstrato) entre a potência organização tecnológica das práticas de saúde.
imanente das coisas e a realidade.
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O primeiro esforço a fazer consiste em concei- recebidas, apesar de todo o “progresso” ter sido
tuar ‘práticas de saúde’, consiste em delimitar um sempre obtido a partir da negação, sempre tão difí-
objeto primeiro, necessariamente abstrato, a partir cil, do fim da história e do conhecimento.
do qual se possam orientar movimentos sucessivos Tomar o conhecimento concreto produzido
de aproximação/determinação. E eis aí uma tarefa pela Clínica e pela Patologia como verdade defini-
que tem encontrado grandes dificuldades na quase tiva, finalmente desvelada, de um fenômeno “em
impossibilidade – de ordem ideológica e concreta, si” que sempre estivera presente, embora não re-
e não lógica, de superar as voragens gêmeas de conhecido, é transformá-las, à Clínica e à Patologia,
alergia à historicidade e do etnocentrismo. de disciplinas científicas em meras ideologias, nada
Admitir que o conceito de ‘doença’ é um recor- originais, que outra vez negam a essência da hu-
te historicamente determinado para fenômenos manidade, a história. Mas não há mesmo como es-
historicamente diferentes parece quase sempre capar a esse tipo de miopia se os parâmetros mais
uma heresia. E, no entanto, um breve olhar às pro- basilares, ainda que inconfessos, seguem sendo a
posições – a todas as proposições – da ordem do autonomização, a reificação e a despolitização dos
conhecimento feitas ao longo da história da huma- fenômenos reais através de suas contrafacções abs-
nidade, ou mesmo ao longo dos últimos cinco sécu- tratas.
los dessa história, mostra sempre essa necessidade É preciso, para perceber com suficiente clareza
muito humana de supor que as outras proposições o conceito de ‘doença’ e os fragmentos de realida-
que as antecediam eram incorretas de uma forma de a que ele se aplica como históricos, romper –
ou de outra, sem perceber que se tomavam a si mesmo que provisoriamente – com aqueles parâ-
mesmas como modelos para afirmá-lo, e com isso metros. Não estará em questão aqui, portanto, o
supunha sempre, a cada vez de novo, que a histó- problema da Verdade daquilo conceituado como
ria finalmente acabara. Não há, portanto, nenhuma ‘doença’, mas dever-se-á partir de outro modo de
originalidade no espanto inquisitorial com que “he- aproximação: o conceito de ‘doença’ como mo-
resias” como a que abre esse parágrafo são sempre mento de prática.
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O anistoricismo se transmuda então em etno- riante (a normalidade morfo-funcional) mas uma
centrismo, e tomando o último tipo de prática de variante histórico-social: a normatividade, após
saúde que se realizou, busca-se então o que apa- compreender que a primeira é uma específica for-
renta ser próximo dele como fazendo parte de sua ma de expressão da segunda. À medida em que
história, ao mesmo tempo em que práticas que esta última, a normatividade, pode expressar con-
não sejam aparentemente assemelhadas, nem são ceitualmente uma característica ontológica especí-
tomadas em consideração. Há que romper com o fica do ser humano, por reter sua socialidade e sua
modelo que contém um ‘profissional’ utilizando historicidade, pode-se propor conceituar ‘práticas
certos instrumentos de trabalho para realizar um de saúde’ como relativas à normatividade social e
‘diagnóstico’ circunscrito ao ‘corpo anátomo-fisio- histórica, variavelmente objetivadas na realidade.
lógico’ de um ‘paciente’ e propondo a este último As vantagens que esta forma de aproximação
uma ‘terapêutica’ como o que permite identificar contém para dar conta de práticas que seriam de
práticas de saúde. outra forma sempre demarcadas etnocentricamen-
A base fundamental dessa possibilidade está te por seus aspectos aparentes de ignorância e su-
contida nas reflexões de Georges Canguilhem em perstição são evidentes; e não apenas para revestir
“Le Normal et le Pathologique”, justamente porque de renovada dignidade essas práticas do passado,
permite ao mesmo tempo separar através da crí- mas por causa da utilidade para o presente e para o
tica epistemológica histórica as disciplinas científi- futuro oferecidas pelo conhecimento histórico que
cas da Clínica e da Patologia das ideologias nelas escapa à mera crônica.
embasadas, enquanto fornecem elementos para Por outro lado, à medida em que interessan-
conceituação mais abstrata, e ainda assim satisfa- do enquanto práticas sociais, não basta para con-
toriamente histórica, do fenômeno da doença. É ceituar ‘práticas de saúde’ essa referência à nor-
este segundo aspecto que interessa aqui, embora matividade enquanto esfera específica de relação
o seja porque embasado no primeiro. entre objetividade e subjetividade, mas é necessá-
Pode-se então propor como nuclear a qualquer rio ainda restringi-las à esfera do trabalho social.
conceituação histórica de ‘doença’ não uma inva-
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Reiteração articulada de um modo de inserção na reencontrar em cada um deles a evidência de sua
divisão social do trabalho relacionada à reprodução relação articulada na totalidade; ao mesmo tempo
de padrões histórica e socialmente significativos de se trata de determinar menos abstratamente con-
normatividade: eis então a proposição que parece ceitos referidos a totalidades históricas concretas, e
adequada para um conceito de ‘práticas de saúde’, não de produzir modelos estruturais nos quais este
ao nível mais alto de abstração em que pode ser deve ser “enquadradas”.
posto. Do amplo conjunto de possibilidades aberto
Dessa conceituação o passo seguinte deve dar- pelo último parágrafo há que fazer agora, nos limi-
se então em direção à determinação das práticas tes desse ensaio, uma severa restrição. Tratar-se-á
de saúde enquanto trabalho. E no núcleo de pro- por opção do momento referente aos instrumentos
cesso de trabalho, como se viu na seção anterior, de trabalho, subordinando a consideração dos de-
deve-se buscar três momentos: o referente ao ob- mais a esse fim, e além disso, tomar-se-á por refe-
jeto, o referente aos instrumentos e o referente à rência o tipo macro-histórico de organização social
atividade. Ao mesmo tempo em que, tratando-se baseado em relações sociais de produção capitalis-
de trabalho humano – e, portanto, historicamente tas. Dá-se por suposto o conteúdo substantivo des-
estruturado em formas sociais de organização – é se tipo de relações sociais, e com isso o momento
necessário também buscar o momento referen- da socialidade mais geral do trabalho sobre o qual
te à finalidade, o referente às necessidades a que se estruturam as práticas de saúde enquanto práti-
corresponde e o referente às relações sociais que, cas sociais.
através dele se produzem e re-produzem. Repete- Do que se constitui em um conjunto original de
se que não se trata de buscar significações variáveis necessidades sociais com o advento do capitalismo
para cada um desses momentos isoladamente para é preciso chamar a atenção para o que parecem ser
“compô-las” depois em vários tipos de “combina- os pontos mais importantes, e apenas procurando
ções” possíveis em si mesmas, mas, pelo contrário, quase que resumir as conclusões acumuladas sobre
de valorizar o conceito de ‘momentos’ tratando de o assunto.
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Tais necessidades sociais referentes à norma- Estado capitalista, do desenvolvimento de práti-
tividade, tais como se reestruturaram durante os cas vinculadas ao reconhecimento da população
séculos de transição para o capitalismo e se foram e de práticas vinculadas ao controle das ameaças
reespecificando depois, podem ser apreendidos agudas à sua estabilidade, caracterizado também
analiticamente em duas dimensões: as referentes pela grande disponibilidade relativa de força-de-
à infra-estrutura econômica e as referentes à supra trabalho e por sua grande indiferenciação relativa
-estrutura político-ideológica, sempre que se con- também. Corresponderá, como se verá adiante, à
sideram essas distinções apenas intelectuais como gestação de um dos dois grandes modelos de orga-
correspondentes a dimensões de uma única totali- nização tecnológica das práticas de saúde, baseado
dade histórica. na apreensão e na transformação do objeto de tra-
Ao nível infra-estrutural se pode identificar balho em sua dimensão coletiva.
dois conjuntos maiores de determinações: o pri- Em segundo lugar, e de forma conexa à cons-
meiro referente às especificidades do momento tituição da fase de desenvolvimento das forças
‘força-de-trabalho’ e o segundo às decorrências produtivas sobre o capitalismo que passou a se
das transformações que se foram gastando nas re- basear no maquinismo, foi-se estabelecendo tam-
lações inter-setoriais da produção social. Das mo- bém uma progressiva diferenciação da força-de-
dificações no momento ‘força-de-trabalho’, confi- trabalho (qualificação), paralela necessariamente a
guradas na expansão e solidificação do capitalismo, um incremento de sua escassez relativa. Com isso
se derivam duas “esperas” de necessidades sociais: se estabelece a segunda “esfera” de necessidades
em primeiro lugar – historicamente – a emergên- sociais: aquela relativa à manutenção de padrões
cia da necessidade de controle demográfico face sempre readequados de produtividade e intensida-
às instabilidades relativamente graves que podiam de do trabalho, em que a força-de-trabalho passa
ameaçá-lo e efetivamente o faziam. Este é o mo- a impor-se como mercadoria relativamente mais
mento histórico da constituição da população em valiosa e a demandar práticas destinadas a seu
força política e econômica do Estado, que através efetivo controle. Este é o momento histórico do
disso se ia determinando progressivamente como segundo grande modelo de organização tecnoló-
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gica das práticas de saúde, baseado na apreensão social do trabalho trazido pelo capitalismo, com o
e na transformação do objeto de trabalho em sua consequente aumento no grau de solidariedade/in-
dimensão individual. terdependência dentro do conjunto dos ramos de
Um segundo conjunto de determinações in- produção social, leva mais longe e em uma direção
fra-estruturais, como se apontou acima, decorre específica – a balizada pela necessidade de repro-
da modificação das relações inter-setoriais entre dução das relações sociais capitalistas – essas não-
os ramos da divisão do trabalho social, e é o mais naturalidade dos objetos de trabalho, à medida em
recente a se estabelecer. Trata-se dos fenômenos que eles, bem como os instrumentos e a ‘força-de-
ligados a característica cada vez mais importante trabalho são também em escala progressivamente
em sociedades cada vez mais complexas de que aprofundada, produtos. Por outro lado, as necessi-
os instrumentos de trabalho são produtos de ou- dades sociais de saúde identificadas acima com as
tros setores de produção, o que aumenta o grau determinações econômicas de força-de-trabalho,
de solidariedade entre o conjunto de necessida- em outro momento não são mais do que conse-
des, ao mesmo tempo em que aumenta a tensão quência de formas de produção dessa última, tam-
entre demandas que se definem a partir de inte- bém progressivamente penetradas pelo conjunto
resses necessariamente contraditórios. Rigorosa- das determinações sociais.
mente, a afirmação que se faz por referência aos Ao nível supra-estrutural, ao mesmo tempo,
instrumentos de trabalho cabe também aos demais constituem-se e reespecificam-se determinações
momentos do processo: objetos de trabalho nun- parciais, e consubstanciais com as anteriores, das
ca são objetos naturais, no sentido de coisas em quais se faz aqui uma breve leitura esquemática,
si cujas características qualitativas e quantitativas isolando duas “esferas” de determinações comple-
saltassem aos olhos, impondo projetos de trans- mentares. A primeira correspondente à emergên-
formação, podendo-se então afirmar que entre a cia dos princípios da igualdade e da liberdade no
natureza e sua apropriação para o trabalho há sem- coração do conjunto de concepções ideológicas
pre a intermediação parcializante do projeto, e com que permitiram solidificar a ação aliada de diversas
ele de subjetividade. O aprofundamento da divisão classes no projeto de superação anti-feudal. Não se
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trata de concepções quaisquer sobre igualdades e igualdade e liberdade apresentam no capitalismo, e
liberdade, mas daquelas que aparecem já admira- que está intimamente relacionada à normatividade
velmente expostas e limitadas na Declaração de Di- social, objeto primeiro das práticas de saúde. Trata-
reitos do Homem e do Cidadão de 1789. se da individualização de seu âmbito de realização.
Configuram um novo espaço para objetivação Dessa dupla determinação decorre a caracte-
da normatividade social, encerrando a história das rística central das práticas de saúde sob o capitalis-
práticas de saúde que tiveram que se haver com a mo: o motor dinâmico que orienta sua articulação
heterogeneidade legítima das formas concretas de interna e externa consiste na tendência à extensão,
normatividade. Evidentemente, isto não quer dizer da qual não podem escapar, e que se traduz em
que as práticas de saúde se tenham tornado auto- inúmeros aspectos contraditórios. Estendem-se a
maticamente igualitárias em todos os sentidos, já grupos cada vez mais amplos de indivíduos (movi-
que deviam corresponder a esse novo espaço de mento aparente) no mesmo movimento em que se
normatividade; no sentido mais importante, que estendem a todas as demais classes sociais (movi-
diz respeito à sua articulação social e a sua pola- mento real); estendem-se a todos os tipos de di-
rização com relação à reprodução da substanciali- mensões de objetivação da normatividade social,
dade do modo de produção capitalista, sem dúvida ao mesmo tempo em que restringem seu padrão
às práticas de saúde passariam a orientar-se – e de apreensão do objeto de trabalho àqueles que
não apenas através de uma mistificação ideológica, não apresentam contradições lógicas só quando
mas de modo efetivo – para a objetivação, no seu restringido à abstração biológica individual.
interior, desses princípios específicos de igualdade Esse conjunto de necessidades estruturais deve
e liberdade consubstanciais com as relações capita- agora ser reposto ao trabalho como um conjunto
listas de produção. de finalidades coerentes com aquelas. A “démar-
A segunda “esfera” de determinação supra-es- che” consistiu em substituir a normatividade, ca-
trutural, articulada a essa primeira, corresponde à pacidade historicamente verificada e socialmente
principal restrição de sentido que os princípios de significativa de instituir normas vitais pela ‘norma-
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lidade’, padrão anistórico embora não socialmente ticas em saúde, em que habitualmente se reduz as
indiferente de expressar normas já instauradas cuja necessidades sociais ao que pode ser “prescrito”
proveniência se julga irrelevante, porque expressa- às sociedades a partir do trabalho, com o que se
riam a própria biologia natural do homem. consegue “en passant” que, ao identificar como
A restauração da ‘normalidade’ é coerente necessidades sociais conjuntos de demandas po-
com as determinações estruturais expostas porque tenciais já circunscritas sob a ótica das finalidades
as traduz em um projeto exequível. A normalida- baseadas no conceito de ‘normalidade’, se obscu-
de do corpo anátomo-biológico, por exemplo, será reça a natureza substantivamente social das neces-
um conjunto de capacidades tal que expresse sua sidades, que na realidade se referem ao conjunto
adequação ao emprego como força-de-trabalho da totalidade histórica, e não à consciência técnica
qualquer; a redução da normalidade a esse mesmo parcial que se pode ter delas.
espaço morfofuncional é necessariamente indivi- Se o conceito morfofuncional, biologizante, e
dual, tornando os projetos que se possam elaborar individual de ‘normalidade’ organiza a elaboração
por referência a esses indivíduos necessariamente de finalidades/projetos para as práticas de saúde,
iguais, mesmo que em outros planos esses indiví- ele se traduz agora, no interior do processo de tra-
duos sejam essencialmente diferentes, o que equi- balho, no conceito de ‘doença’. Rigorosamente um
vale a dizer que a ‘normalidade’ compatibiliza a nor- instrumento de trabalho, o conceito de ‘doença’
matividade com a igualdade entre desiguais. Essas se legitima à medida em que é possível afirmá-la
duas referências são suficientes, nesse contexto, como correspondendo, em outro nível, à realidade
para expressar a adequação necessariamente obti- última do objeto de trabalho e a realidade suposta
da, ao nível da elaboração da finalidade do trabalho desses mesmos objetos. Isto ocorre à medida em
em saúde, com as necessidades sociais a que esse que se reiteram aqui características gerais da ideo-
corresponde. Evidentemente o movimento oposto logia da tecnologia comentadas na primeira seção:
também se verifica, e o conjunto de finalidades do esquece-se no processo que o conceito é uma apro-
trabalho re-determina o conjunto de necessidades priação intelectual unilateral do real, e reduz-se o
sociais: este é um tema familiar no campo das prá- real ao seu conceito; à medida em que conceitos
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só podem ser segmentações, o real reduzido à sua so estritamente técnico de elaboração diagnóstica
conceituação também se torna fragmentário, cole- – esfera do objeto do trabalho – de suas caracterís-
ção de “coisas em si” justapostas umas às outras. ticas congruentes com finalidades e necessidades
O conceito de ‘doença’ faz assim com que a sociais. O objeto de trabalho reduzido a ‘doenças’
normatividade social, reduzida já à ‘normalidade’ deve conter – e contém – a individualização das de-
morfo-funcional seja agora compreendida como terminações mais sociais e históricas da normati-
comportando, por alterações quantitativas, o “des- vidade, deve prover – e provém – sua redução ao
vio patológico”, uma série finita de estados tais que corpo anátomo-biológico, deve ser capaz de res-
passam a recortar o objeto de trabalho, ao mesmo ponder à necessidade de tratar esse corpo biológi-
tempo em que cumpre sua função instrumental de co individual como corpo livre do cidadão de qual-
permitir, por uma série ordenada de analogias re- quer classe social – e o fez. O fato inquestionável
dutoras, a nomeação desse objeto, que contém em de que historicidade e socialidade sejam banidas
si mesmo implícito o projeto de sua transformação dessa esfera da realidade ao nível dessa redução
em produto. Usa-se como instrumento o conceito científica ou de sua paralela mistificação ideológica
de ‘doença’, para produzir, já dentro do processo de não quer dizer, entretanto, que o sejam igualmente
trabalho, através do ‘diagnóstico’, o objeto do tra- na realidade ela própria, com a mesma eficiência.
balho, ao mesmo tempo os aspectos da realidade a Basta examinar o fato arqui-conhecido de que ape-
que ele está referido são reduzidos a seu campo de sar de todas essas reduções, explica-se com grau
aplicação restrito. muitíssimo mais convincente de satisfatoriedade o
movimento histórico dos objetos de trabalho das
Enquanto instrumento de trabalho, portanto, o práticas de saúde se se retiver sua dimensão social
conceito de ‘doença’ só pode ser adequadamente e histórica como substantiva, do que se se manti-
compreendido se se levar em conta essa sua dupla ver fidelidade à noção de doença” como objeto de
função; e por conseguinte se tomar para análise trabalho.
suas características enquanto definidor do objeto
do trabalho. Em síntese essas podem ser aponta- De qualquer modo, o fato é que o instrumento
das na reiteração agora “fora” e “antes” do proces- de trabalho deverá conter a possibilidade de coe-
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rência com essa forma histórica tão recente – e médicos – partir de outras organizações tecnológi-
aparentemente tão imemorial – de representar a cas do trabalho. Tome-se por contraste a homeo-
normatividade social. patia, com o cuidado de diferenciá-la de mera utili-
De outro lado, porém, os instrumentos de tra- zação de medicamentos homeopáticos por agentes
balho expressam e suportam relações tecnicamen- da prática clínica em tudo semelhantes aos demais.
te adequadas entre os agentes de trabalho e seus Rigorosamente, a homeopatia não supõe nada
objetos, desde que se busque a substância dessa como as “doenças” como objeto de trabalho, nem
adequação na forma e na força do processo de re- utiliza nenhum instrumento de trabalho semelhan-
produção desses agentes eles próprios, e não em te ao conceito de ‘doença’ para produzir seu objeto
presumíveis graus de eficiência dos instrumentos. de trabalho, ou tampouco se vale de distância quan-
Desde que solidários na utilização de instrumentos titativa entre o patológico e o normal para forçar o
convergentes com todas as dimensões referidas da primeiro em direção ao segundo, que já o contém.
prática, os agentes obterão para si posições sociais Não obstante o “fato homeopático”, expressão uti-
consubstanciais com todos aqueles outros momen- lizada às vezes para designar a incômoda efetivida-
tos. É evidente que se utiliza nesta análise o profis- de da homeopatia enquanto técnica de trabalho
sional médico, tal como originalmente se constituiu capaz de lidar com a normatividade, está fora de
na prática clínica a partir do século XX, como mode- questão a substituição da Clínica anatomopatológi-
lo privilegiado – quanto a isso há consenso desde ca por aquela outra técnica, desde quando o grau
posições teóricas complementares diferentes – de de consistência entre a organização tecnológica do
personagem de prática social relativamente auto- trabalho baseado na homeopatia e o conjunto de
nomizada até, tal o grau de coerência entre todos determinações da totalidade histórica é substan-
os momentos constitutivos, a reprodução social em cialmente menor. Não é insignificante nessa impo-
geral, e a reprodução social específica deles pró- tência relativa a incapacidade da homeopatia para
prios. dar conta das necessidades de dessocializar, anisto-
ricizar e reificar o objeto de trabalho.
Mas é evidentemente possível – claro que com
grau muito menor de ‘eficiência’ por referência aos
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Faz-se referência à prática médica baseada na Saúde Coletiva, assistência médica, sociedade
Clínica anatomopatológica como forma de organi-
zação tecnológica do trabalho que serviu de mode- Em certos contextos, a noção de que o con-
lo às análises já elaboradas sobre o assunto e aqui ceito de ‘doença’ como fenômeno biológico mor-
resumidas. Fez-se também referência à precedên- fofuncional e individual corresponde a alguma coi-
cia histórica de um outro modelo, próprio do capi- sa tal como a “Verdade cientificamente provada”
talismo, e cujas potencialidades são frequentemen- assumiu uma tal espessura que quase até se torna
te ignoradas, tal o grau de hegemonia do discurso impossível o diálogo a partir de uma posição con-
ideológico baseado no clínico para monopolizar ceitual mais distanciada, que não nega àquele con-
o balizamento das representações sociais sobre a ceito um átomo sequer de seus direitos legítimos
doença. Entretanto, a primeira prática de saúde do no interior de um recorte teórico específico, mas
capitalismo diferia da prática clínica em um ponto que, por não partir de nenhuma ideologia vulgar
essencial: utilizava como instrumento de trabalho que tome a Ciência como justificação associando-a
um conceito de ‘doença’ diverso, porque coletivo a ideias tão metafísica como Verdade, “coisas em
em vez de individual. No decorrer da história essa si” e conhecimento absoluto, propõe novos recor-
oposição parcial de perspectivas foi “acomodada” tes teóricos, onde outros conceitos produzem ou-
teoricamente e na prática através da instituciona- tros conhecimentos, e coloca sob suspeição não a
lização diversa e complementar dos dois modelos, ciência da Patologia, mas a ideologia que a usa, dis-
na Saúde Pública e na assistência médica. torcendo-a, como justificação.
Pela relevância de sua identificação para o fim Nessa situação costuma ser útil, para se fazer
último deste ensaio, que é o de estender a refle- bem avaliar o alicerce – e até mesmo a possibilida-
xão à questão particular das relações entre práticas de – de um conceito alternativo do objeto de tra-
de saúde e espaço sócio-geográfico, procurar-se-á balho (não mais a ‘doença’, necessariamente) que
agora discutir, contrastando-os, esses dois grandes se terá gestado, produzido e utilizado em práticas
modelos de organização tecnológica. de saúde não tão antediluvianas assim, lembrar um
pouco de evidência empírica historiográfica, para
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acalmar preconceitos mais exacerbados. O heroico nações infraestruturais próprias da alteração no
trabalho quase isolado de Henry Sigerist e George estatuto da força-do-trabalho. A “Medizinische Po-
Rosen foi que permitiu recolher a evidência factual lizei” dos estados germânicos e a reorganização, na
que afinal permite perceber que antes da elabo- França, no espaço urbano sob a orientação de um
ração do conceito de ‘doença’ com base na clínica projeto que recortava, identificava e transforma-
anatomopatológica, ao tempo em que os médicos va seu objeto de trabalho muito além dos corpos
lidavam ainda em sua prática com uma coleção individuais – a Medicina de Estado e a Medicina
de entidades-doenças com existência própria, de- Urbana, como as chamou Michel Foucault – foram
senvolveu-se um grande modelo de organização práticas de saúde no sentido que aqui foi associado
tecnológica das práticas de saúde que não circuns- a esse conceito. A primeira delas teve duração até
creveu seu objeto ao corpo anátomo-fisiológico in- mais protraída no tempo do que a prática médica
dividual e que, não obstante, deu até condições de atual.
viabilidade para o crescimento da Clínica. É necessário observar esses movimentos de
Sem fazer apelo a claras, refinadas e precisas práticas por suas características positivas internas,
formas de circunscrever a doença no corpo indivi- e não pela “falta” (forma de argumento totalmente
dual, esse modelo do conhecimento e de prática inaceitável de um ponto de vista lógico) do conhe-
que, acompanhando sua própria autodesignação cimento iluminado que se criou um século depois.
mais consistente será aqui chamado Medicina So- A tradição aberta com a polícia médica viria
cial, foi capaz de circunscrevê-la de modo explica- encontrar no século XIX duas continuações, com-
tivo e de modo tecnologicamente eficaz no espaço plementares entre si, na importância relativa que
do coletivo. deram aos momentos referentes à política e aos
A conexão desse movimento com as práticas instrumentos de trabalho completando o quadro
de constituição do Estado capitalista na Europa oci- desse modelo coletivo de organização tecnológica
dental, que se deram também através dele, aponta das práticas de saúde: a Mèdecine Sociale francesa
para a relação processual histórica com fenômenos e o Sanitarismo inglês.
tratados no tópico anterior, referentes às determi-
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Mesmo permanecendo em sua essência mo- to” do significado que deveria ser associado aos
delos atuais, os herdeiros dessas práticas referidas conceitos políticos de ‘igualdade’ e ‘liberdade’ na
cedem amplamente lugar, na construção da hege- sociedade burguesa. Mas esse significado “defini-
monia e também, correlatamente, nas dimensões tivo”, resolvido simbolicamente em 1848, quando
dos recursos e dos aparatos neles envolvidos, à a Europa assistiu à primeira conjuntura crítica em
assistência médica individual. Examine-se então as que um dos atores principais da luta social não era
características tecnológicas desses modelos. mais a aristocracia, em que enfim a oposição bur-
Não é necessário retomar todos os aspectos guesia-proletariado tomou o proscênio do conflito
gerais, de natureza estrutural, que circunscreveu, de classes, este significado definitivo não estivera
no plano relativamente abstrato em que vem sendo dado pronto desde sempre, nem em uma “estru-
desenvolvida esta análise, os momentos referentes tura” substituta de Deus ou da Ideia Absoluta que
à socialidade, às necessidades e às finalidades do devesse se objetivar na história, nem tampouco na
trabalho, para levar adiante a tarefa. Mas é neces- consciência coletiva da burguesia revolucionária.
sário fazer certas especificações gerais. Foi expressamente como resultado das lutas so-
ciais que se foram configurando progressivamente
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que até na consciência e se institucionalizando nas leis o al-
que se solidificassem de modo relativamente es- cance e os limites da “Liberté” e de “Égalité”.
tável os processos de reprodução social próprios
do capitalismo, em meados do século XIX, todas as Parte dessas lutas nas quais se gestaram esses
dimensões político-ideológicas apontadas faziam próprios princípios, fundamentais, como se viu,
parte de um projeto comum de múltiplas classes para o balizamento do campo da normatividade
sociais associadas na luta contra o antigo regime. social ao redor da qual se organizam as práticas de
Por ser mais transparente e bem conhecido, o caso saúde, deram-se especificamente no campo das
francês pode ser tomado como paradigmático por práticas de saúde.
referência a este específico ponto. São familiares as Retomando e aprofundando com graus sempre
análises históricas que mostram como o período de mais acentuados de radicalismo os princípios mais
1789 a 1848 assistiu ao progressivo “esclarecimen- gerais do século XVIII, os higienistas de primeira
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metade do século XIX não apenas participaram a definido por vários epistemólogos como a pedra de
seu modo da reconstrução da sociedade francesa, toque da cientificidade: a previsão.
mas, o que é mais importante, desenvolveram nes- Comparado à Clínica anatomopatológica, então
sa luta e através dela uma tecnologia relativamente em sua infância, armada de nada ou pouco mais do
original. Tratou-se da sistematização de investiga- que purgantes e sangrias e ainda distante até mes-
ções sobre as relações entre saúde e sociedade que mo do descobrimento dos microrganismos, esse
tomaram por problema, o trabalho infantil, as con- modelo de conhecimento e de práticas parece in-
dições de trabalho, habitação e nutrição e temas comparavelmente mais poderoso, em quase todos
conexos. Levavam às últimas consequências a já os sentidos. Em quase todos, sim, mas não o princi-
antiga constatação de que os fenômenos biológicos pal: jacobinos dedicados a uma causa social em ple-
humanos, tomados em sua dimensão coletiva, em na ebulição, os higienistas levaram longe demais,
termos de sua magnitude relativa, ofereciam mar- explícita ou implicitamente, a responsabilidade da
gens segura de previsibilidade, e ofereciam possibi- sociedade sobre a causação desses padrões coleti-
lidade de investigar associações entre categorias de vos (de espécie, de grupo social) de normatividade
eventos capazes de identificar quais características social alterada. E ultrapassaram os limites do politi-
de vida social, e em que quantidades, podiam ser camente viável, porque em 1848 descobriram que
responsabilizadas por sua ocorrência. a Mèdicine Sociale escolhera o lado perdedor na
A um só tempo se podia – mesmo que sem o luta social. A memória social guardou ciosamente
grau de controle do laboratório – constituir hipó- esses ganhos, como se verá adiante.
teses explicativas, testá-las, confirmá-las ou infirmá Uma das vantagens – ou desvantagens, depen-
-las e delas deduzir e prescrever ações capazes de dendo do lado que se olhe – do modelo tecnológico
alterar a realidade prevendo as alterações deseja- em questão é a de que fragmentando em atributos
das com alta probabilidade de acerto nessas previ- a serem quantificados no coletivo uma realidade
sões: tratava-se portanto da aplicação na constru- que pode ser apenas apreensível em sua totalidade
ção do conhecimento e na prática, dos cânones do integrada, só são capazes de um olhar muito parcial
método científico positivo, incluindo aquilo que é
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sobre a sociedade, em sua relação com a saúde; ao a incidência. No plano do indivíduo, evidentemen-
mesmo tempo, foi a mesma característica que via- te esse procedimento não leva a nada: apenas se
bilizou a apreensão da normatividade alterada sob repete com outras palavras a expressão do próprio
a forma de atributos qualitativos, independente- doente.
mente de um conceito mais adequado de ‘doença’, Fechar torneiras (John Snow), drenar coleções
que ainda não existia. É esse ainda hoje o procedi- de água, redistribuir o fluxo de pessoas e seus pro-
mento “de urgência” do epidemiologista no cam- dutos no espaço, etc., etc., etc., são tecnologias
po: define através de atributos mais frequente o (instrumentos de trabalho) coerentes com esse
seu “caso suspeito”, a partir do que põe em ação diagnóstico sobre o coletivo. A própria natureza das
um conjunto de procedimentos relativos bem co- “ações terapêuticas” aponta para a natureza neces-
dificados que podem, se não esclarecer a natureza sária de seus agentes, permitindo compreender o
anatomopatológica da enfermidade, eventualmen- processo histórico em que o modelo se gerou: um
te controlá-la antes disso. Esses fatos são referi- agente necessariamente coletivo e possivelmente
dos para reafirmar a possibilidade de construir um dotado de poder de coerção: o Estado, portanto.
‘diagnóstico’ independentemente da clínica anato-
mopatológica, o que traduz uma distinção teórica A afirmação que se faz sobre a independência
do objeto de trabalho: certos atributos expressos do modelo com respeito à necessidade do diagnós-
sob a forma de queixas (apontadoras portanto de tico baseado no conceito de ‘doença’ anatomopa-
uma dificuldade na instauração de normas vitais e tológica, dada mesmo sua precedência histórica e
sociais) são observados e de seu conjunto se com- não subordinação lógica, não deve ser compreen-
põe o ‘diagnóstico’, desde que, necessariamente, dida, entretanto, como mais do que isso, como se
eles sirvam à discriminação de casos e não-casos no quisesse afirmá-la pelo gosto da divergência ou
plano coletivo, o que leva ao verdadeiro ‘diagnósti- pelo projeto de substituir um modelo pelo outro,
co’ tal como coerente com o modelo: um indicador esvaziando-o. Não se trata disso – que seria sin-
da magnitude relativa do fenômeno na população toma de miopia – pois a posterior construção do
ou em um de seus segmentos, como por exemplo conceito de ‘doença’, seu refinamento progressivo
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e a busca e o encontro de alternativas terapêuticas – e há muitas vantagens – em utilizar o outro mo-
pelo menos eficazes, quando não efetivas, não são delo tecnológico (o modelo clínico individual ba-
fatos de pequena importância. seado no conceito de ‘doença’) como um dos seus
E seria precisamente dentro do modelo basea- instrumentos parciais de trabalho, tanto no sentido
do na apreensão do fenômeno sobre o coletivo que de identificação de atributos como no sentido de
as possibilidades trazidas por sua aperfeiçoadíssi- intervenção terapêutica sobre o coletivo através
ma apreensão sobre o individual encontrariam sua do individual. Ou ainda em outros termos, os fun-
mais expressiva forma de expressão. Explique-se damentos da organização tecnológica das práticas
melhor este ponto, de fundamental importância. de saúde segundo o modelo da ‘doença’ (biológica,
individual) podem – em termos lógicos, no plano
À medida, como já se disse, que o modelo de teórico – ser tomados como um instrumento par-
apreensão (‘diagnóstico’) e ação (‘terapêutica’) que cial de trabalho no interior de um modelo de or-
situa e recorta o seu objeto de trabalho no plano ganização tecnológica fundado na concepção de
coletivo (como característica social e histórica da ‘doença’ como fenômeno não apenas biológico e
espécie toda ou de um dos grupos em que pode não apenas individual.
ser, com menor ou maior artificiosidade, segmen-
tada) não presume como necessidade lógica um Ou ainda, compreendido um conjunto parcial
recorte de seus fenômenos parciais sobre um in- de fenômenos de alteração da normatividade so-
divíduo qualquer, tal como o efetuado pela Clínica cial como associado a tais ou quais características
anatomopatológica, pode-se afirma-lo como mo- da realidade mais inclusiva em que se dão, pode-se
delo alternativo. examinar que efeitos sobre esse conjunto advirão
da ação parcial de recortar parcialmente esses mes-
À medida em que aquele mesmo modelo tec- mos fenômenos no plano de corpos individuais e
nológico, atuando no plano coletivo, recorta os submetê-los, nesse nível, a intervenções terapêuti-
fragmentos da realidade que irão se tornar signifi- cas, prevendo os resultados naquele conjunto par-
cativos tecnologicamente no seu interior como atri- cial de fenômenos supra-individuais, e mesmo pro-
butos individuais, não há nenhum obstáculo lógico jetando resultados para o conjunto global da vida
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social. Isso foi feito, isoladamente, como modelo dessa específica ação dentro do seu campo restrito
tecnológico coletivo que usou o modelo tecnológi- de influência (diagnosticar e tratar indivíduos) pode
co individual não mais como modelo tecnológico, permitir – e permitiu historicamente – planejar o
mas como instrumento parcial, em casos isolados, conjunto de ações de forma encadeada e integrada
geralmente associados a um tipo particularmen- e estipular quanto de assistência médica individual
te danoso de alteração da normatividade, em vá- e com quais características qualitativas leva ao me-
rios lugares e em várias épocas, essa parece ser a lhor resultado sobre o coletivo. Deve ser claro que
tendência geral e a contradição mais notável – em o indivíduo doente do qual se fez o diagnóstico e
termos exclusivamente tecnológicos – com que se que é submetido à terapêutica e eventualmente
defrontam as práticas de saúde na etapa contem- curado naquele episódio tornou-se nesse caso mais
porânea. do que um indivíduo: ele é conceituado no trabalho
Lembre-se um problema qualquer de alteração global como ‘fonte de infecção’, e uma certa quan-
da normatividade social, como aquele que se de- tidade de indivíduos (fonte de infecção) tratados é
signa por ‘malária’, por exemplo. Tome-se o termo possivelmente associada ao controle desejado.
‘malária’ como designativo do resultado, do pon- Usaram-se termos propositalmente “desagra-
to de vista de reprodução social, em certa época dáveis”, nessa exposição de como se pode reduzir
e um certo lugar, da interação de pelo menos três a assistência médica individual a um instrumento
populações, duas das quais podem ser satisfatoria- parcial. É evidente o conflito dessa forma de ex-
mente apreendidas usando o referencial teórico pressão com certos valores que colocariam o indi-
da Ecologia, e considere-se a terceira (a humana) víduo como o núcleo ético da ação legitimando-a
como também passível disso, mesmo que com por seu caráter humanitário, se já não bastasse a
certas limitações que podem ser abstraídas nesse ideologia que diria que ‘malária’ rigorosamente é
momento. Em certas situações desse tipo, no con- um certo conjunto de alterações morfofuncionais
junto de ações possíveis ao nível do ecossistema, que ocorrem no corpo biológico de qualquer indi-
dispor de assistência médica individual como uma víduo. É evidente também que este segundo modo
dessas ações possíveis e conhecer o rendimento de colocar as questões se adequa com os princípios
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concretos de ordem político-ideológica segundo da primeira metade do século XIX: não guarda com
os quais se constituem as representações sociais a reprodução da totalidade histórica uma relação
“legítimas” sobre a vida humana e a vida social. É de polaridade isenta de ambiguidade perigosas.
evidente, ainda, que em quase todas as situações O que se verificou de fato na história, apesar de
históricas concretas este modelo individualizante é ser muito menos satisfatório em termos lógicos e
além disso suficiente para a reposição da força-de- científicos, foi a subordinação inversa, e só parcial-
trabalho e para manutenção dos padrões dados de mente exequível. Isto é, o módulo de organização
produtividade e intensidade no trabalho. Tudo isso tecnológica baseado na concepção instrumental
é evidente assim como tornou-se evidente, por ou- de ‘doença’ própria da Clínica anatomopatológica,
tro lado, que o modelo baseado nessas principais muito mais coerentes com as necessidades de con-
técnicas é incapaz – quase sempre – de alterar o junto da história social do capitalismo – ainda que
padrão de ocorrência de doenças, e é mesmo capaz de forma aparentemente contraditória – foi que
– muitas vezes – de colaborar para sua perpetua- apareceu como subordinando o modelo baseado
ção e agravamento. Exemplos como o da malária na concepção de ‘doença’ como fenômeno trans
correspondem a umas poucas situações em que foi -individual e supra-biológico, portanto histórico e
necessário, devido à magnitude relativa do fenô- social.
meno concreto, intervir “verticalmente” de modo
tal a mudar de fato a aparente natureza da doença. Fez-se referência à Mèdicine Sociale como
Que essa intervenção seja “tímida” na declaração a prática na qual os aspectos políticos (ligados à
de seus próprios princípios técnicos e científicos, transformação social como meio para obter o re-
trata-se da contrapartida do fato de que esse mo- sultado de transformações na saúde) do modelo
delo coletivo não correspondeu ainda, na maior foram mais enfatizadas. Alguns poucos anos após
parte das situações históricas verificadas, às neces- 1848, por uma coincidência histórica significativa, o
sidades sociais e às necessidades dos agentes do referido modelo tecnológico se reduzia a um mode-
trabalho em saúde, e exatamente pelo mesmo “de- lo de conhecimento, a Epidemiologia.
feito” que evidenciou na Mèdicine Sociale francesa
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Não é este o lugar apropriado para procurar le- menos humanos e atributos individuais tais como
var a cabo uma tarefa que ainda não foi completa- renda e educação, por exemplo, era possível al-
da de modo realmente satisfatório, e fazer uma his- cançar um grau mais adequado da coerência com
tória da Epidemiologia que a examine em sua dupla as necessidades de saúde próprias do capitalismo
dimensão de conhecimento e prática. Mas duas discutidas anteriormente. Em situações específi-
características dessa disciplina científica chamam cas – tais como a exemplificada com a malária – o
a atenção para os fins aqui buscados: em primeiro modelo foi utilizado de forma mais coerente, ainda
lugar, o progressivo deslocamento de um campo de que inconsciente ou pelo menos não inteiramente
construção de conhecimento que circunscrevia seu explicitada.
objeto rigorosa e conscientemente no espaço co- A rigor, a necessária coletivização do agente do
letivo para um suposto “campo de aplicação” dos trabalho dentro do modelo que, agora, com alguma
conhecimentos clínico-patológicos, associados às licença, pode-se chamar de modelo epidemiológi-
matemáticas, na solução de problemas concretos; co, impôs como fenômeno histórico à sua utilização
em segundo lugar, e correlatamente, a progressiva a vinculação ao Estado. E com isso, como o Esta-
“dessocialização”, atomização e reificação do obje- do não se constituiu como aparelho técnico, nem
to de conhecimento, em contraste com a Mèdicine pode sê-lo – nos limites do capitalismo pelo menos
Sociale. – senão subordinando a técnica à política, a plena
É óbvia a fraqueza lógica do primeiro tipo de utilização do modelo epidemiológico se associa aos
proposição, à medida em que a mera “aplicação” dois polos possíveis de organização política: ou o
a problemas coletivos impõe o reconhecimento de extremo autoritarismo ou a plena democratização.
uma legalidade (no sentido associado ao termo ‘lei’ Isto porque só um Estado quase totalitário pode
em filosofia da ciência) no real, e, portanto, de um – e mesmo assim, temporariamente e parcialmente
objeto de conhecimento original. O segundo tipo – impor uma racionalidade tecnológica às práticas
de proposição, entretanto, permitiu a convivência que violenta a inércia reprodutiva da sociedade. Ou
sem maiores conflitos com o modelo clínico-pato- porque só uma sociedade extremamente demo-
lógico, desde que, reduzida a socialidade dos fenô-
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crática e com plena consciência de seus conflitos dentre os quais avulta o compromisso com uma
internos pode optar por privilegiar ações sobre o abertura permanente da história à busca de novas
coletivo – que deverá então ter sido objeto de nova e melhores formas de organização social, à busca
conceituação, coerente com relações entre ‘indiví- da felicidade, na feliz expressão dos pais-fundado-
duo’ e o ‘todo’ tais que viabilizem o interesse no res da Revolução Americana.
‘outro’ como forma de interesse pelo ‘eu’ através Com todos esses limites, porém, foi a Epide-
do ‘todo’ – quando isso significar algum detrimento miologia e muito especialmente seu desenvolvi-
na ação sobre o individual. mento conceitual nos países anglo-saxões, que foi
O primeiro caso, muito mais frequente porque constituindo aos poucos um arsenal tecnológico ao
o Estado autoritário anda a par com a constituição qual o modelo clínico-patológico não pode mais se
de tecnoburocracias, dentro das quais os agentes manter inteiramente imune. Basta referir a utili-
do trabalho coletivo em saúde tendem a se sentir dade crescente dos conceitos epidemiológicos da
mais à vontade, encontrará no entanto dramáticos ‘eficácia’, ‘eficiência’ e ‘efetividade’ (este último,
obstáculos no fato de que o autoritarismo nunca embora o mais rigoroso com o modelo epidemio-
foi uma receita para o incremento da racionalidade lógico, por isso mesmo é ainda o menos utilizado)
técnica, mas sim para o controle de conflitos sociais para dar conta das contradições entre custos e re-
potencialmente explosivos, e esse mesmo controle sultados inerentes ao modelo-clínico-patológico.
passa quase sempre pelo agravamento das condi- Qualquer instrumento de trabalho (tecnolo-
ções objetivas geradoras de doença, que através gia), dadas suas características técnicas abstratas,
do modelo, paradoxalmente, se trataria de evitar. se for agora ser considerado do ângulo interessado
O que deixa uma condenação ao modelo epide- na organização tecnológica do trabalho, deve con-
miológico que pode talvez não ser do pleno agra- ter todo o conjunto de determinações explorado, e
do de todos os nele interessados: sua necessária mais ainda, o conjunto de determinações mais con-
vinculação, para sua plena expressão, à construção cretas ainda em uma sociedade, em certo momen-
da democracia, com todos os riscos nela implícitos, to histórico. Neste último caso entrarão, não como
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considerações “menores”, variáveis tais como, Do ponto de vista parcial da “inércia” da re-
por exemplo: características da produção dos ins- produção social, bem como do ponto de vista mais
trumentos, por referência ao setor que os produz trabalhoso de aprender de sua “dinâmica”, cada
(grau de oligopolismo, composição orgânica do ca- instrumento de trabalho contém todos esses mo-
pital, qualidade e quantidade da força-de-trabalho mentos de organização social das práticas, e por
empregada, articulações políticas do setor a outros isso utilizou-se aqui o termo ‘organização tecnoló-
por referência à política econômica vigente, formas gica’ para conceituar essa dimensão mais global e
de comercialização, aí incluindo os “receptores”, mais real do instrumento, enquanto consubstancial
nas instituições em que se realizam, as práticas com as práticas sociais, por isso expressão de su-
de saúde, que tomem decisões também políticas, porte delas.
além de econômicas, sobre a qualidade e a quan- Os dois modelos de organização tecnológica
tidade dos instrumentos a incorporar); caracterís- referidos como ‘modelo epidemiológico’ e ‘modelo
ticas das formas de organização tecnológicas das clínico-patológico’, ressaltando sua diferença par-
instituições produtoras de serviços de saúde (grau cial e conceitual por referência às oposições - co-
de privatização, formas menos ou mais capitaliza- letivo x individual, social x biológico e histórico x
das, quantidades e qualidades dos recursos huma- natural -, também devem ser compreendidos ade-
nos empregados, formas de controle e utilização quadamente como conceitos, recursos intelectuais
dos instrumentos no trabalho); características dos com os quais explicar a realidade de concreta e agir
agentes sociais do trabalho (posições sociais rela- nela. Não se encontrarão como “dados” puros e
tivas em termos de renda, status, poder e polariza- plenamente configurados nesse nível concreto, e
ção política que se reproduzem através do acesso a não devem, portanto, ser aí buscados sob essa for-
postos de trabalho para os vários tipos de trabalha- ma senão se perderem todo seu poder instrumen-
dores de diversas qualificações técnico-profissio- tal e se reduzirem a meras formalizações.
nais, muito especialmente para os médicos).

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Tecnologia em saúde e regionalização das ações trial. Que essas modificações tenham alterado ao
de saúde mesmo tempo o alcance e os limites das práticas
de saúde e a natureza interna de sua racionalidade,
Deve ser tomado como uma evidência factual o que o médico contemporâneo e o conjunto de ou-
fato de que as práticas de saúde, enquanto práticas tros trabalhadores a ele articulados se constituem
sociais articuladas à reprodução social nos limites em realidade completamente diversa dos tempos
do capitalismo, deslocaram-se de uma organização às vezes nostalgicamente lembrados do médico da
tecnológica de início preponderantemente basea- família (embora fosse de algumas famílias apenas)
da em um modelo analógico (diferente deste, no isto aprece suficientemente demonstrado pelos
entanto, pela ausência de um modelo clínico-pato- cientistas sociais para que seja mais do que lem-
lógico concomitante, o que implicava um grau mais brado aqui. A importância fundamental do instru-
amplo de abertura para o social e o histórico), eta- mento de trabalho (isto é, a clínica profundamente
pa que perdurou até meados do século XIX, para transformada, desenvolvida e parcializada mais o
uma etapa subsequente de predomínio progressivo hospital e os equipamentos materiais nele conti-
do modelo clínico patológico, contemporâneo nas dos) na caracterização dessa prática é que justifica
grandes aquisições instrumentais que configura- chamá-la “medicina tecnológica”.
ram a “medicina tecnológica”.
No interior dessa forma de organização do tra-
“Medicina tecnológica” porque o volume, a balho, duas características principais operaram si-
complexidade e os custos sociais dos instrumen- lenciosamente para evidenciar progressivamente
tos de trabalho foram tornando inviável o estilo de suas contradições e paradoxos. Em primeiro lugar, a
prática relativamente autônomo do doutor com magnitude relativa do capital social investido no se-
sua maleta (na qual cabiam seus principais equi- tor – e é relativamente indiferente que este investi-
pamentos, além daqueles configurados em seu mento seja privado ou público – não pode superar,
próprio corpo), forçando a organização da prática na média, um valor compatível com as magnitudes
ao redor dos novos equipamentos, no hospital, de do capital social investido em outros setores, es-
modo análogo ao que ocorrera na produção indus- pecialmente naqueles diretamente produtivos de
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excedente econômico. E não apenas os interesses se também o controle da doença no plano do co-
particulares dos produtores de tecnologias, mas a letivo. Na maioria das situações, entretanto, essa
pressão social associada à transformação das práti- convergência não se verifica, e a assistência médica
cas de saúde em remédio legítimo para uma cres- individual ameaça se transformar em uma espécie
cente quantidade de demandas (o processo que se de pesadelo prometeico em que cada nova neces-
tem chamado ‘medicalização da sociedade’) foram sidade atendida se multiplica por novas outras ne-
levando aquela magnitude relativa a situações dis- cessidades por atender, em uma escala associada
funcionais por referência ao conjunto de necessi- à crise de custos acima referida, porém ainda com
dades sociais de outras ordens, alguma até estrutu- a ameaça de um crescente descrédito e a ameaça
ralmente mais importantes. Trata-se então de uma pior de seu questionamento como resposta social
crise de custos. legítima a problemas gerados na própria dinâmica
Em segundo lugar, porque não obstante a sua social, mas que não devem ser assim concebidos
legitimação, o modelo clínico-patológico não se por razões óbvias.
mostrou – e nem poderia – capaz de baixar a mag- Dessas duas vertentes principais se gera um
nitude relativa dos fenômenos da doença, mas pelo movimento cada vez mais importante e inclusivo
contrário, é apontado até como seu multiplicador. cuja mola propulsora pode ser identificada no es-
Não obstante essa não ser uma sua característica forço por racionalizar as ações a fim de aumentar
“interna”, pois o modelo não se propõe senão a sua eficiência e sua efetividade, no sentido epi-
atuar sobre o fenômeno já configurado, no plano demiológico desses conceitos. Deve-se fazer uma
consubstancial das ideologias sobre ele estrutu- observação intermediária neste ponto: ‘raciona-
radas tornou-se legítimo compreender a doença lização’ é um termo inequivocamente associado
como acidente individual possivelmente favore- à conotação de ‘mudar para conservar’, e o autor
cido por variáveis sociais, mas para ser resolvido deste texto parte da posição de valor de que é pre-
pelos médicos. Em algumas poucas situações, em ciso “mudar para superar”. Ou seja, assume como
que os modelos convergem, o diagnóstico e o tra- apenas parcialmente relevantes, do ponto de vis-
tamento individuais sendo eficazes e efetivos, dá- ta agora científico, e não valorativo, as restrições à
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racionalização que se busca efetivar no campo das ca, independentemente do tipo de sociedade e das
práticas de saúde por aquele seu caráter conserva- suas concretas características qualitativas e quan-
dor, desde que se tome o devido distanciamento da titativas por referência às práticas de saúde, nessa
simplificação de ideias com que é sempre apresen- medida a questão da ‘regionalização’ assume, de
tada a necessidade de racionalização, e se busque acordo com os pontos de vista aqui defendidos, um
balizar tanto a interpretação teórica quanto a inter- caráter não apenas conservador mas também, o
venção prática concreta pelo movimento histórico, que é mais grave, muito pouca possibilidade de efe-
em que a racionalização explicitada até às últimas tivar-se como proposta consequente de alteração
consequências tem um caráter profundamente so- parcial de reorganização das práticas. Irá nesse caso
lidarizado com a mudança social. acabar na vala comum onde tantos outros esforços
No contexto do amplo movimento racionaliza- reformadores eivados de excesso de tecnocratismo
dor que há algum tempo busca encontrar soluções são lamentados pelos belos frutos que prometiam,
para as contradições cada vez mais profundas das e não chegar infelizmente a dar. Constrangido o re-
práticas de saúde organizadas tecnologicamente ferencial teórico e político a uma temática essen-
quase que só sobre o modelo clínico-patológico, cialmente econômica (no sentido de administrar-se
um dos temas extraídos como relevantes para o es- a escassez de meios sem indagar porque são escas-
forço que se empreende é o de racionalização da sos, sem exigir um mínimo adequado de potenciali-
distribuição dos recursos, de sua integração e das dade verdadeiramente transformadora), como nas
decisões políticas e técnicas sob a noção de ‘regio- palavras que Brecht põe à boca de um personagem
nalização’ das ações de saúde. protótipo do pequeno-burguês no verso que serve
de epígrafe a este texto, então a temática toda está
À medida em que a tarefa é simplificadamente fadada a ser pouco mais de uma “bela ideia” des-
apresentada como nova panaceia capaz de resolver vinculada da realidade.
aquelas contradições, em que não se explicitam as
dimensões sociais e políticas potencialmente implí- Desde quando se assumem como parâmetros
citas, em que se autonomiza o processo como se pu- para a colocação das análises aqueles contidos na
desse se dar em uma esfera exclusivamente técni- consubstancialidade das dimensões técnicas e po-
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lítica das práticas de saúde, então se adere sem re- Mesmo assim abstraído, o conceito encontra
servas à tarefa parcial de buscar na temática da ‘re- sérios problemas teóricos, e certamente práticos,
gionalização’ mais uma forma de trabalho capaz de no fato de que os diversos problemas de saúde cor-
conduzir à implantação progressiva, na escala de respondem também a diversas “escalas ótimas”, o
tempo da história, do modelo epidemiológico de que encontra solução pelo menos parcial no fato de
organização tecnológica das práticas de saúde, que que a ‘regionalização’ não é concebida como opos-
também não deve ser concebido como final e óti- ta à ‘centralização’, emergindo do fluxo biunívoco
mo, mas como etapa de acercamento progressivo de controles acionados, em tese, o controle dessas
da condição potencialmente humana de domínio contradições escalares.
sobre a tecnologia e de consciência das dimensões Um pouco mais recentemente, acrescentou-se
sociais da vida. ao conceito, em graus progressivamente mais enfá-
‘Regionalizar’ práticas de saúde foi uma ideia ticos, a noção correlata e também epidemiológica –
oriunda inequivocamente do modelo epidemioló- embora não apenas – de ‘participação’, que aponta
gico. Encontra respaldo na noção conexa de que para um universo de questões relativas à aceitação
o objeto de trabalho (o conjunto de problemas de de que as dimensões políticas da organização das
saúde, de magnitude variável no geral e no particu- práticas sejam endógenas às mesmas. A maior par-
lar) obedece a determinações variáveis conforme te das vezes se encontra, é certo, a expressão da
as populações e os espaços sócio-geográficos que ideia de “condicionamentos políticos”, como se fos-
se considerem, havendo uma escala ótima para sem dados “externos” aos problemas das práticas
a qual a maioria dos problemas estariam melhor de saúde que devessem ser inexoravelmente tole-
equacionados. Para essa escala ótima, certamente rados, mas a tônica do discurso conceitual tendeu
variável, a construção de indicadores epidemiológi- a ir incorporando essas dimensões como substan-
cos e a identificação específica de vulnerabilidade tivas.
dos problemas às ações (incluindo entre essas a as- No caso desse desenvolvimento do conceito
sistência individual) seria capaz de obter na média de ‘regionalização’, o que se ganha em capacida-
o melhor resultado. de explicativa se perde, por outro lado, em capaci-
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dade instrumental, já que as “populações” que se mais democráticos de convivência política, em um
pretende chamar à participação são heterogêneas movimento paralelo ao do controle progressivo das
entre si, conforme as sociedades globais em que vi- condições geradoras dos agravos mais vulneráveis
vam, e heterogêneas internamente, compostas de e “arcaicos” à saúde, como as doenças infecciosas,
grupos e classes sociais de interesse conflitantes. por exemplo. O mesmo fenômeno pode, em outra
A proposta que abstrai dessas heterogeneidades sociedade, significar o fortalecimento (ou, igual-
tende assim a se configurar, desde que ultrapasse mente, expressá-lo) de formas clientelísticas e “cor-
o nível teórico em que essa abstração faz sentido porativas” de organização do poder, atomizando as
para particularizar mecanismos genéricos de parti- formas de consciência social e agravando no mes-
cipação válidos em quaisquer circunstâncias, como mo movimento as condições geradoras de doença,
obscurecedora nos nexos sociais particulares que enquanto enfraquecem as forças capazes de operar
dão substância concreta à vida dessas “popula- seu controle. Certamente não há uma “receita” ge-
ções”, tornando-se perigosamente conservadoras. ral que dispense a análise concreta das caracterís-
Como exemplo suficientemente ilustrativo, toma- ticas de reprodução social em cada sociedade e em
se o significado político concreto das relações en- cada momento histórico.
tre o poder local e o poder central nas sociedades Pode-se perfeitamente, por exemplo, promo-
capitalistas: as evidências históricas mostram todos ver uma considerável descentralização na orga-
os tipos possíveis de relações como articuláveis em nização das práticas de saúde sem ter nem remo-
sociedades muito diferenciadas quanto à magnitu- tamente pretendido assumir como referencial de
de dos seus problemas de saúde, à qualidade dos organização tecnológica o modelo epidemiológico,
mesmos e ao grau de autoritarismo ou democracia mas para utilizar essas práticas como meio de atua-
nelas presente. O fortalecimento do poder local, ção exclusivamente política, dado que em muitas
implícito queira-se ou não nas propostas de regio- sociedades o montante de recursos e o poder de
nalização (descentralização) das ações de saúde, convicção que o controle dessas práticas traz está
pode em uma sociedade significar o fortalecimen- muito longe de ser desprezível.
to (ou expressá-lo “a posteriori”) de mecanismos
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A explicitação de todos os pressupostos conti- Referências 3

dos no modelo, sua discussão política aberta, sua


potencialização extremada, se aparecem como es- BANTA, H.D. Aplicaciones de la epidemiología en
tratégia sedutora para seus efeitos democratizantes la evaluación de la tecnologia médica. In: Usos y
e pela efetiva participação para a qual concorrem, perspectivas de la epidemiologia. Washington-DC:
podem também, perfeitamente, em certos contex- OPS/OMS, 1984. p.199-210. Publicación n. 84-47.
tos concretos, ser a via mais rápida para a sua rejei- BLOCH, C. Os profissionais de saúde: ampliando o
ção em bloco com a rejeição até mesmo dos apare- campo de estudo. In: NUNES, E.D. (Org.). As ciên-
lhos centralizados arduamente construídos através cias sociais em saúde na América Latina: tendên-
de décadas e décadas de penoso esforço. cias e perspectivas. Brasília: OPS, 1985. p. 307-322.
Poder-se-ia insistir em encontrar a saída desse
BRECHT, B. A ópera dos três vinténs (tradução de
labirinto durante muito tempo e muitos exemplos
Wolfgang Bader e Marcos Rosa Santa, versificação
ainda. Em vão. Se houve seriedade em assumir as
das canções de Wira Selanski), p. 50. Disponível
práticas de saúde como consubstancialmente con-
em: http://docslide.com.br/download/link/os-
sistentes de dimensões técnicas e políticas, a res-
tres-vintens. Acessado em 01/10/2016
posta não existe. Muito menos em teoria, como é
aqui o caso. Tratar-se-á sempre de encontrar, em BREILH, J. Epidemiología: economia – medicina y
cada caso, e de maneira que parecerá a muitos política. Santo Domingo: SESPAS, 1980.
sempre estar algo “contaminada”, a solução provi-
sória, política e histórica para um problema coloca- CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de
do neste âmbito político e histórico. Nesse contex- Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
to, o que aparecer como resposta terá sido antes 3
A opção pela forma de ensaio para a colaboração deste texto levou cons-
cientemente a uma construção em que não se utilizou a bibliografia disponí-
um resultado do que um ponto de partida, restan- vel da forma habitual. As referências que se seguem, que não são exaustivas,
do aos instrumentos conceituais, como os aqui tes- correspondem aos trabalhos de cuja leitura se foi conformando o conjunto
de proposições aqui apresentadas. Sua citação é mais uma homenagem a
tados, no máximo a pretensão de servir à prática uma declaração de débito, portanto, do que uma revisão. Apenas os princi-
pais interlocutores são referidos, e é omitida propositalmente a bibliografia
concreta, o que já não é pouco. básica de Economia, de Sociologia e de Epidemiologia.
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7. A TECNOLOGIA NO PENSAMENTO
DE RICARDO BRUNO MENDES
GONÇALVES

Lilia Blima Schraiber

Em 1958, a propósito do encantamento dos ho-


mens com suas próprias fabricações, Arendt (2001,
p.10-11) escrevia:
Esse homem futuro, que segundo
os cientistas será produzido em me-
nos de um século, parece motivado
por uma rebelião contra a existência
humana tal como nos foi dada – um
dom gratuito vindo do nada (secu-
larmente falando), que ele deseja
trocar, por assim dizer, por algo pro-
duzido por ele mesmo. Não há razão
para duvidar de que sejamos capa-
zes de realizar essa troca, tal como
não há motivo para duvidar de nos-
sa atual capacidade de destruir toda
a vida orgânica da Terra. A questão
Ricardo Bruno Mendes Gonçalves Saúde, Sociedade e História
é apenas se desejamos usar nessa meios e fins sem jamais chegar a
direção nosso novo conhecimento algum princípio que possa justificar
científico e técnico – e esta questão a categoria de meios e fins, isto é,
não pode ser resolvida por meios a categoria da própria utilidade. O
científicos: é uma questão política ‘para quê’ torna-se o conteúdo do
de primeira grandeza [...]. ‘em nome de quê’; em outras pala-
vras, a utilidade quando promovida
No entanto, é grande a dificuldade de politiza- a significância, gera ausência de sig-
ção. O saber-fazer da fabricação e as máquinas que nificado. (ARENDT, 2001, p.167)
são criadas, se, de um lado, instrumentalizam e fa- O encantamento atual ante a fabricação é essa
cilitam os trabalhos, de outro, autonomizados em perda de nossa capacidade de questionar a utilida-
processos de autoalimentação, tornam-se reifica- de das coisas, deixando que elas representem, para
dos por referência aos fins a que servem e que lhes nós mesmos, o mundo em que vivemos.
dão significado na contínua produção do mundo.
Conduzem, assim, à generalização da experiência Além disso, como também formula Arendt nes-
da fabricação, na qual a utilidade, como valor das se mesmo texto, na indagação científica que sus-
coisas que produz, passa a ser um bem em si para cita nosso conhecimento, esse ‘para quê’ já havia
os homens, levando-os ao mero consumo de todas substituído a pergunta ‘o que é’, no movimento his-
e quaisquer coisas. tórico que, passando da substância do objeto para
o como ele se dá, progressivamente aproximou as
Ante tal realidade e endossando a indagação ciências das técnicas. (GRANGER, 1994) E essa é
formulada pelo filósofo alemão G.E. Lessing à cor- uma segunda questão a considerar.
rente filosófica do utilitarismo em sua época (sé-
culo XVIII), Arendt colocará: “E para que serve a Que repercussões esse movimento produz nas
serventia”? próprias ciências? Se a ciência foi produtora das
técnicas e seus instrumentos, passa também a ser
A essa incomoda pergunta, responde: por eles produzida. Como examina Arendt (2001,
A perplexidade do utilitarismo é que p.306) a propósito de Galileu e a importância que o
se perde na cadeia interminável de telescópio então significou, o instrumento passa a
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ser o crivo da verdade científica e a ciência, o resul- redutora da tecnologia à sua porção material, nos
tado de uma fabricação: o experimento. instrumentos e equipamentos, quer o modo de
De tal modo este caráter técnico ficou associado pensá-la como ‘autônoma’ por referência a seus
à ciência, que valorizamos muito mais aquela que circundantes, ‘reificada’ por referência às práticas
se apresenta como uma razão tecnológica regendo em que ocorre, e ‘despolitizada’ como partícipe
a produção de conhecimento. (AYRES, 1995) A par- dessas práticas, sendo apenas por injunções exter-
tir do grande desenvolvimento dos equipamentos, nas ao núcleo delas, sempre tido como produto da
na segunda metade do século XX, a própria técnica racionalidade científica, contaminada por questões
‘revestiu-se’ de ciência, tendencialmente expulsan- políticas contingenciais. (MENDES-GONÇALVES,
do saberes de outro tipo, como os saberes práticos. 1994, p.11 do original)
(HABERMAS, 1994) Escrito em 1988, logo após a conclusão, em
Todas essas passagens, que aliaram a produção 1986, de sua tese de doutoramento, o texto ora em
dos conhecimentos com as máquinas foram essen- tela está claramente influenciado pelas reflexões ali
ciais para que o saber-fazer, ou seja, a tecnologia formuladas. Ademais, oferece ao leitor o jogo, es-
enquanto saber, passasse a ser considerada como a tabelecido na tomada da tecnologia como questão
ciência das técnicas, tensionando o lugar daquelas social e histórica para tais práticas, entre o pensa-
ciências voltadas à compreensão do mundo e re- mento que marca a cultura da tradição médica, na
lativamente menos interessadas na imediata inter- ideologia ocupacional dos médicos acerca de seus
venção na natureza e sua utilidade para esse mun- próprios trabalhos, e o pensamento a ela crítico,
do. (LENK, 1990; ROSSI, 1989; GAMA, 1986) que emerge enquanto contracultura daquela tradi-
ção com o surgimento da Saúde Coletiva no Brasil.
Sob outras bases teórico-conceituais, alinhado (MENDES-GONÇALVES, 1994)
ao pensamento marxista, Ricardo Bruno Mendes
Gonçalves tratará de questões similares nesse texto Homem de seu tempo, Ricardo move-se da te-
acerca das relações entre a tecnologia e as práticas mática eleita no período imediatamente anterior,
de saúde, ao apontar quer a concepção dominante para esta dos anos 1980. Sua grande interlocuto-
ra, Maria Cecília Ferro Donnangelo, havia marcado
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os anos 1970 pela discussão da ‘técnica’, na, hoje, tecnologia como ‘produto’ (do social) e como ‘pro-
clássica reflexão em torno à consubstancialidade dutora’ (do social), mantendo essas duas dimen-
do técnico com o social, enquanto especificidade sões nas análises e, assim, não equivalendo uma
histórico-estrutural das ações e atuações dos mé- à outra. Também está presente, quando constrói,
dicos nas práticas de saúde. (DONNANGELO; PEREI- como procedimento necessário, o exame dos pla-
RA, 1976) nos sucessivos de particularizações das práticas de
Lembremos que o próprio Ricardo (MENDES- saúde, circunscrevendo
GONÇALVES, 1984) construiu seu estudo de mes- [...] os limites conceituais mais gerais
trado sobre as raízes sociais do trabalho médico, que dão sentido à questão tecnológi-
datado de 1979, examinando as particularidades ca no âmbito da reprodução social”;
seguido do plano da “(...) particulari-
dessa esfera técnica do, e no, trabalho médico en- zação, também necessária, da ques-
quanto reprodução social. Reprodução essa que tão para o âmbito das práticas de
não se pode reduzir à mera repetição do geral-so- saúde...” e o plano da exploração de
“conexões ainda mais particulares
cial no particular do trabalho médico, o que signifi- entre tecnologia em saúde e regio-
caria apenas uma necessidade de conhecer o social nalização dos dispositivos institucio-
e seus determinantes para já se conhecer também nais em que se realizam as práticas
o trabalho médico. Sua formulação, ao contrário, sanitárias. (MENDES-GONÇALVES,
1994, p.5)
afirma que para conhecer a este último se requer
apreender a contribuição original e criativa desse Explicita, dessa forma, o respeito a esse movi-
trabalho, enquanto parte, para a contínua produ- mento entre o geral e o particular, enquanto cami-
ção do social. Considerava, pois, que examinar o nho do pensamento que toma por princípio a dinâ-
trabalho médico apenas por suas determinações mica processual mais do que a coerência estrutural
mais gerais seria um descaminho para o conheci- da realidade social, o que dá bem conta do modo
mento desse trabalho. como Ricardo compreendia e se valia da dialética
do pensamento marxista. (LEFEBVRE, 1973)
O apreço por tal formulação está igualmente
expresso neste seu texto, quando aponta para a
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Com essa perspectiva, tecnologia não poderia as políticas de saúde, os mercados de trabalho dos
ser reduzida aos instrumentos do trabalho. Antes profissionais, a economia política do complexo mé-
deveria corresponder ao processo de fabricação ou dico-industrial, as ideologias ocupacionais, corpo-
trabalho em que se insere, e este processo, a uma rativas e as culturas profissionais, os movimentos
prática específica no conjunto das práticas sociais. sociais de reivindicação de direitos, de acesso e
Por isso a tecnologia deveria, em suas palavras, de consumo etc. Assim como, essa dimensão mais
“expressar o conjunto da organização técnica do externa aos processos de trabalho, mas ainda na
processo de produção enquanto processo social esfera da saúde, não deveriam ser tomados como
e histórico que inclui a reprodução social.” (MEN- apenas reflexos das políticas gerais de Estado ou da
DES-GONÇALVES, 1994, p.26) A tecnologia repre- economia de mercado.
sentará, assim, o arranjo das práticas de saúde tec- De outro lado, a abordagem da tecnologia en-
nicamente reprodutor, no trabalho assistencial em quanto parte, ainda que dinâmica e criativa, dessa
saúde, do tipo histórico determinado de arranjo do reprodução social irá nos falar de que tipo de re-
conjunto das práticas sociais em que se insere, na criação se trata, isto é, pode mostrar ‘em nome de
contínua produção da sociedade capitalista. que’ o arranjo se dá e que significado detém nessa
Sendo essa a especificação da tecnologia nos reprodução social, abrindo espaço novamente para
planos macro e micro sociais, neste último, tais ar- a dúvida acerca da utilidade desse ou daquele ar-
ranjos técnicos podem ser pensados como a face ranjo. Talvez abra espaço, então, nem tanto para
mais “interna” das práticas de saúde, em que se uma resposta, mas para pensarmos na pergunta:
articulam, em diversas modalidades de serviços, o de que serve, mesmo, essa serventia?
profissional, seu saber e os instrumentos de atua-
ção sobre o doente individual, no trabalho clínico,
ou a população, no trabalho sanitário de atuação
na esfera pública. Mas esta face “interna” são re-
criações, e não reflexos de seu “exterior”, tais como
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