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Resenhas

Nas palavras de Ginzburg:

Comecei a praticar o ofício de


historiador examinando textos não
literários (sobretudo processos da
Inquisição) com auxílio dos instru-
mentos interpretativos desenvolvi-
dos por estudiosos como Leo
Spitzer, Erich Auerbach, Gianfranco
GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é Contini [...]. Com o moleiro friulano
uma ilha. Quatro visões da Domenico Scandela, dito
literatura inglesa. São Paulo: Cia. Menocchio, condenado à morte pela
das Letras, 2004, 146p.
Inquisição por causa de suas idéias,
aprendi que o modo como um ser
Nenhuma história é a História
humano reelabora os livros que lê é

Já não é recente a ambigüidade muitas vezes imprevisível.


do termo História, ao mesmo tempo (Ginzburg, 2004, p. 14)
definindo um processo em constante
movimento, comumente chamado de
“ a história vivida”, e a sua interpreta- Em obras como História notur-
ção, ou seja, “ a história conhecimen- na, O juiz e o historiador, ou mesmo
to”, conforme a define a historiografia em Mitos, emblemas e sinais (livro que
francesa. Também não é inócua a ques- reúne alguns de seus ensaios),
tão indicada por Nietzsche, no século Ginzburg deparou-se com a questão da
XIX, de que a história não passaria de interpretação das fontes, da viabilidade
um jogo de interpretações, no qual a das provas e do uso da narrativa. Além
História jamais seria “ realmente” disso, também se viu obrigado a revi-
alcançada. Ou, em outras palavras, o sar o estatuto teórico da história das
que Paul Veyne, no início da década de mentalidades e da interpretação mar-
1970, em seu livro Como se escreve a xista da história, para desenvolver seus
história diria que sempre se faz “ histó- procedimentos de análise das fontes e o
rias de...” alguma coisa, quer dizer, de próprio estilo de sua escrita.
determinados processos e assuntos, No início dos anos de 1970,
mas nunca a História. quando lançou seu famoso e polêmico
O historiador italiano Carlo ensaio Sinais: raízes de um paradigma
Ginzburg, que iniciou sua carreira pro- indiciário (que anos depois foi reunido
fissional nos anos de 1950 e 1960, no no seu livro: Mitos, emblemas e si-
interior daquelas discussões, nais), no qual procurou historiar as ori-
pesquisando processos judiciais da gens de seu procedimento investigativo
inquisição, nos séculos XV e XVI, das sociedades e dos homens no tem-
principalmente da região do Friuli, na po, com intuito de analisar as mudan-
Itália, das quais se originaram as obras ças e as permanências das sociedades
Os andarilhos do bem e O queijo e os passadas e das sociedades presentes,
vermes, é um excelente exemplo da Ginzburg já indicava a forma como es-
forma como, nas últimas décadas, tava tomando partido naquela polêmica
aquelas discussões foram conduzidas. historiográfica.

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Retorno àquele ensaio, que continuidades, em níveis consideravel- ensaístico que vai de Montaigne a
desde então tem continuado a ali- mente distintos, nas críticas veementes Diderot e, de outro, tomando de em-
de Michael Foucault, Paul Veyne e préstimo a definição de ensaio elabora-
mentar subterraneamente o meu tra-
Hayden White, sobre o estatuto cientí- da por Adorno e as observações sobre
balho, porque a hipótese sobre a ori-
fico da história, e as respostas de Peter esse gênero feitas por Jean Starobinski,
gem da narração ali formulada tam- Gay, Thompson, Hobsbawm e Moses lembra a necessidade de submeter as
bém pode lançar luz sobre as narra- Finley sobre essa questão. A forma interpretações à prova e as conclusões
tivas voltadas, ao contrário das ou- como Ginzburg incide na polêmica é às relativizações necessárias. Nas suas
tras, para a busca da verdade, e con- sutil, quase sempre sem citar os argu- palavras:
tudo modeladas, em cada uma de
mentos e os autores, e em vez disso
demonstrá-la por meio de detalhes de Estes ensaios propõem uma
suas fases, por perguntas e respos-
um romance (como o de Flaubert), de visão não insular da literatura ingle-
tas elaboradas de forma narrativa.
fragmentos de um diário, ou ainda, es-
sa (...) por [meio de] um tema co-
Ler a realidade às avessas, partindo tudando os rastros da tradição oral de
mum: a ilha, real ou imaginária,
de sua opacidade, para não perma- povos antigos.
É justamente seguindo essa forma evocada no título (...) [mas] a uni-
necer prisioneiro dos esquemas da
discreta de polemizar com aquelas dade do livro não é apenas (...) de
inteligência: essa idéia, cara a
questões, que em seu novo livro justifi- ordem temática. Um mesmo proce-
Proust, parece-me exprimir um ideal
ca que “ talvez [fosse] inevitável que, dimento, ou princípio construtivo
de pesquisa que inspirou também
mais cedo ou mais tarde, eu acabasse tem guiado – sem que eu me desse
estas páginas. (idem, p.14) por me ocupar também de textos literá-
conta de imediato – tanto minhas
rios” (2004, p.14), não apenas para de-
Mas foi juntamente com Carlo pesquisas como o modo de
monstrar as fragilidades do discurso
Poni e Geovanni Levi, no início da dito pós-moderno, como ainda ressaltar apresentá-las. (idem, p.11)
década de 1980 – quando lançaram a o uso das fontes literárias para a me-
revista Quaderni Storici e dirigiram a lhor compreensão das sociedades pas- O livro foi dividido em quatro ca-
coleção de estudos (reunindo traba- sadas. Ao seguir os traços e a experiên- pítulos, articulados por um mesmo
lhos de intelectuais italianos, france- cia deixada por suas pesquisas tema (e procedimento interpretativo e
ses e ingleses) denominada anteriores numa “ perspectiva seme- narrativo), no qual o autor se inspiraria
Microstorie, publicada pela editora lhante, abordei Vasco de Quiroga, lei- nas palavras de John Donne, quando
Einaudi, entre 1981 e 1988 – , que, de tor de Luciano e Thomas More; disse que “ nenhum homem é uma
fato, Ginzburg demonstraria suas insa- Thomas More, leitor de Luciano; ilha”. Se trocarmos a palavra ilha, por
tisfações com relação às interpreta- George Puttenham e Samuel Daniel, história, veremos que, na verdade, o
ções macrossociais, indicando os estu- leitores de Montaigne; Sterne, leitor de que o autor procurou fazer foi demons-
dos microssociais como alternativa Bayle; e assim por diante. Em cada um trar como o discurso narrativo dos his-
necessária à alteração da escala de desses casos, procurei analisar não a toriadores é constantemente reescrito.
análise do historiador. reelaboração de uma fonte, mas algo Mas nem por isso deve ser relegado
Na década de 1990, entretanto, ao mais vasto e fugidio: a relação da leitu- numa miríade relativista, porque além
se voltar mais para o gênero ensaístico ra com a escrita, do presente com o de acompanhar as mudanças drásticas
e para a análise de romances, Ginzburg passado e deste com o presente. (idem, e inesperadas das sociedades, que ine-
indicaria de maneira mais direta sua p.14-15). vitavelmente refazem suas indagações
polêmica com a historiografia pós-mo- Em Nenhuma ilha é uma ilha, sobre a história, também é um exercí-
derna, e seus livros Olhos de madeira e originalmente lançado em 1999 em in- cio investigativo, no qual a procura de
Relações de força formariam suas pri- glês, e em 2002 em italiano, ligeira- indícios e provas constituiriam a sua
meiras incursões nesse debate sobre a mente revisto (apenas em 2004 que função social primordial, já que é a
história estar entre a arte e a ciência. apareceria sua tradução para o portu- partir desses instrumentos que procura
Nesse caso, Ginzburg segue os passos guês pela Companhia das Letras), dar lógica a análise dos processos e, ao
da polêmica iniciada por Aristóteles, Ginzburg procurou avançar nas discus- mesmo tempo, inquirir possíveis laços
quando diferenciou a poesia épica da sões aqui rapidamente resumidas. Por de identidade, quanto de rupturas, com
história na Antigüidade clássica, e suas um lado, recupera a tradição do gênero o passado.

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Muito embora reconheça que o Daniel” (2004, p.11). É por isso que in- mostrar que existe uma relação com-
que os historiadores fazem não é escre- dica que com o gênero ensaístico exis- plexa entre as narrativas inventadas
ver a História, mas histórias (porque tiria a flexibilidade necessária para a
e as narrativas com pretensão à ver-
além de serem constantemente reescri- construção da narrativa:
dade. A ilha imaginada de Utopia
tas, jamais se conseguiria alcançar a to-
talidade do “ vivido”), ele acredita que permitiu que Thomas More perce-
Mas talvez essa mesma flexi-
é justamente nesse exercício que o his- besse (e denunciasse) as extraordi-
bilidade tenha êxito em captar con-
toriador demonstraria sua função social nárias transformações em curso na
figurações que tendem a escapar às
(não por trazer à tona a verdade e sim sociedade inglesa. A defesa da rima
malhas das disciplinas institucio-
por mostrar as verdades possíveis e ex- como procedimento literário diante
pressas pelos homens do passado) e nais. Talvez seja instrutiva a diver-
das acusações de barbárie tinha lu-
seu valor perante a sociedade (ao recu- gência entre Quentin Skinner e este
gar em uma ideologia imperialista
perar sua memória coletiva). Seja des- autor a propósito do gênero a que
cobrindo ligações entre o passado e o nascente, voltada a acentuar a dis-
pertenceria a Utopia de Thomas
presente que antes não eram vistas, tância cultural e política entre as
More. Seria possível objetar que a
seja demonstrando a ação de indiví- ilhas britânicas e o continente euro-
Utopia constitui um caso especial,
duos perante seus pares e a sociedade, peu. Verdade e ficção, examinadas
tratando-se de um dos raros textos
ou ainda, refazendo a trajetória de pro-
de uma perspectiva não insular, en-
cessos ou ações humanas, em função que inauguraram um gênero literá-
contram-se igualmente no centro
de novas descobertas investigativas (a rio. Mas eu me pergunto por qual
partir de provas necessárias para àque- deste terceiro capítulo, dedicado ao
motivo uma polêmica à primeira
las afirmações). E é esse exercício his- Tristram Shandy de Laurence
vista técnica sobre a dignidade da
tórico e historiográfico, que é um exer- Sterne. (idem, p. 64)
rima, que irrompeu na Inglaterra
cício acumulativo (e sempre
elisabetana, foi treslida a ponto de
complementado), que procurou fazer No último capítulo desse livro,
ao observar a importância de Luciano se ignorarem suas raízes continen-
Ginzburg pratica com maestria esse
de Samósata para Thomas More, a po- tais, a começar por Montaigne. Se- procedimento, ao demonstrar os possí-
lêmica elisabetana sobre a dignidade ria muito fácil encontrar muitos ca- veis contatos entre Malinowski e
da rima, os vínculos sutis que ligariam sos do mesmo teor. (idem, p.13) Robert Louis Stevenson (principalmen-
o pároco Laurence Sterne, que foi autor te com seu conto O demônio da garra-
de o Tristram Shandy, ao ateu Pierre E é justamente sobre isso que o fa), quando este desenvolvia sua inter-
Bayle, e, finalmente, a possível inspira- autor chama a atenção de seus possí- pretação do kula sobre as tribos das
ção que o etnólogo anglo-polonês veis leitores do início ao final de seu ilhas de Trobriand.
Malinowski teria recebido com a leitu- texto, em que nenhuma ilha é uma ilha
ra dos contos do escocês Robert Louis poderia ser lida como nenhuma histó- O kula, escreveu Malinowski
Stevenson. ria é a História (e, por isso, o discurso nos Argonautas, refutava as idéias,
Em todos esses casos, observa histórico é tão incompleto e fugidio, e então correntes, que viam no homem
que o regime das trocas literárias às vezes também impreciso, por falta primitivo um “ ser racional” que não
oportunizadas entre as ilhas inglesas e de fontes que o comprove). Em suas deseja outra coisa além de satisfa-
o continente europeu foram decisivas palavras:
na formação, tanto da literatura ingle- zer as necessidades mais elementa-
sa, quanto de sua identidade nacional. Nos dois primeiros capítulos res, segundo o princípio econômico
Além disso, registra a importância do falou-se de ilhas – ilhas inventadas, do mínimo esforço. (Malinowski
detalhe, colhido muitas vezes quase provavelmente ignorava que tinha
como a de Utopia, ou reais, como a
que ao acaso, para se reconstituir um
Inglaterra – de uma perspectiva não Marx a seu lado). Mas as implica-
processo, porque foi “ o acaso, não a
insular. Contra o lugar-comum cor- ções da descoberta de Malinowski
curiosidade deliberada, que me fez dar
rente segundo o qual todas as narra- ultrapassavam em muito o âmbito da
com os comentários do bispo Vasco de
Quiroga à Utopia de Thomas More ou tivas pertenceriam em alguma me- chamada “ economia primitiva”,
com a Defesa da rima, de Samuel dida à esfera da ficção, procurou-se como mostra a sua progênie tardia,

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do ensaio de Mauss sobre a dádiva mais a procura de possíveis verdades; tros possíveis) sobre as sociedades e os
à Grande transformação de Polany, b) não é apenas de verdades que é feito homens no tempo. Isso porque, a histó-
o discurso dos historiadores, visto que ria é constantemente reescrita, fazendo
ou o ensaio de E. P. Thompson so-
se as fontes forem mal ou insuficiente- com que nenhuma história seja a His-
bre a economia moral (no qual, to-
mente interpretadas, em casos extre- tória, mas nem por isso não seja uma
davia, a ligação é mais indireta). O mos elas podem sugerir mentiras, que história. E justamente nesse ponto,
que de fato estava em jogo era a ao serem transpostas ao discurso dos aclamado como o inevitável relativismo
noção de homo oeconomicus, ainda pesquisadores podem vir a ser uma do discurso e da verdade (a ponto de
hoje bem viva. Mas o arquipélago verdade; c) mas, mesmo assim, a fun- alguns estudiosos acreditarem que ou
de Stevenson e o de Malinowski es-
ção social básica do historiador é, se- ela não existe, ou é apenas uma cons-
não a descoberta da verdade (ou das trução discursiva), segundo a crítica
tão ali para nos lembrar que nenhum
possíveis verdades) que nos legaram as dita pós-moderna, que segundo o autor
homem é uma ilha, nenhuma ilha é
sociedades passadas, ao menos a incli- se encontraria a função e a importância
uma ilha [e poderíamos acrescentar nação à procura de verdades (demons- dos historiadores. Não relativizando o
que nenhuma história é a História]. trando-se que, em alguns casos, a men- seu discurso com qualquer outro (sem
(idem, p. 113) tira, que não é um mero detalhe nos os mesmos cuidados investigativos),
processos históricos, pode se tornar mas primando por pesquisas mais pre-
Nesse sentido, a leitura de Ne- uma verdade construída pelo discurso). cisas, inquirindo as fontes e agrupando
nhuma ilha é uma ilha é enriquecedora De forma mais direta, Ginzburg as provas para se definir níveis mais
por pelo menos três pontos: a) para nos quer demonstrar a importância dos his- aproximados de verdade, que segundo
dizer que a história é constantemente toriadores para as sociedades na cons- ele, seriam possíveis dentro do discurso
reescrita, porque as mudanças dos trução de suas identidades, talvez até dos historiadores.
homens e das sociedades no tempo exi- mais no período atual do que no passa-
gem novas investigações e questiona- do. Para isso, indo contra a maré dita Diogo da Silva Roiz
mentos para se identificar adequada- pós-moderna, sugeriu nesse livro que o Mestre em História pelo Programa
mente o que ainda se manteria do discurso literário pode também ser um de Pós-Graduação da UNESP, campus de
passado no presente e o que mudou; caminho, quando bem analisado seu Franca. Coordenador do curso de História
mas nem por isso o discurso dos histo- processo de elaboração e, com isso, co- da Universidade Estadual de Mato Grosso
riadores estaria imerso num tejada suas provas, para se escrever um do Sul, campus de Amambai.
relativismo, no qual não se haveria discurso histórico verdadeiro (entre ou- E-mail: diogosr@yahoo.com.br

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