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A12v1234 PDF
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Trabalho e educação:
fundamentos ontológicos e históricos*
Dermeval Saviani
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação
A primeira observação que me ocorre a propósi- Feito esse comentário preliminar, adianto o per-
to do próprio enunciado do tema é que, na verdade, curso que pretendo fazer no tratamento do tema que
da perspectiva em que me coloco para analisar o pro- me foi encomendado.
blema, os termos “ontológico” e “histórico” não se- Começarei procurando indicar, em suas linhas
riam ligados por uma conjunção coordenativa aditiva básicas, os fundamentos histórico-ontológicos da rela-
como está posto no enunciado do título. Não se trata- ção trabalho-educação. Em seguida, tratarei de mos-
ria de examinar os fundamentos ontológicos e depois, trar como, não obstante a indissolubilidade da referida
em acréscimo, examinar os fundamentos históricos, relação, se manifestou na história o fenômeno da sepa-
ou vice-versa. Isso porque o ser do homem e, portan- ração entre trabalho e educação. No terceiro momento
to, o ser do trabalho, é histórico. Assim, talvez o títu- abordarei o tortuoso e difícil processo de questiona-
lo deste trabalho ficasse mais preciso se fosse enun- mento da separação e restabelecimento dos vínculos
ciado assim: “Trabalho e educação: fundamentos entre trabalho e educação. Finalmente, esboçarei a con-
ontológico-históricos”. formação do sistema de ensino sob a égide do trabalho
No entanto, constatado o estreito vínculo onto- como princípio educativo e encerrarei com a discussão
lógico-histórico próprio da relação entre trabalho e do controvertido tema da educação politécnica.
educação, impõe-se reconhecer e buscar compreen-
der como se produziu, historicamente, a separação Fundamentos histórico-ontológicos
entre trabalho e educação. da relação trabalho-educação
* Apresentado em sessão especial do Grupo de Trabalho Trabalho e educação são atividades especifica-
Trabalho e Educação na 29ª Reunião da Associação Nacional de mente humanas. Isso significa que, rigorosamente
Pós-Graduação e Pesquisa e Educação (ANPEd), realizada em falando, apenas o ser humano trabalha e educa. As-
Caxambu, MG, de 16 a 20 de outubro de 2006. sim, a pergunta sobre os fundamentos ontológicos da
relação trabalho-educação traz imediatamente à mente cação de objetos artificiais, o que lhe permite avan-
a questão: quais são as características do ser humano çar a seguinte conclusão:
que lhe permitem realizar as ações de trabalhar e de
educar? Ou: o que é que está inscrito no ser do ho- Se pudéssemos nos despir de todo orgulho, se, para
mem que lhe possibilita trabalhar e educar? definir nossa espécie, nos ativéssemos estritamente ao que
Perguntas desse tipo pressupõem que o homem a história e a pré-história nos apresentam como a caracte-
esteja previamente constituído como ser possuindo rística constante do homem e da inteligência, talvez não
propriedades que lhe permitem trabalhar e educar. disséssemos Homo sapiens, mas Homo faber. Em conclu-
Pressupõe-se, portanto, uma definição de homem que são, a inteligência, encarada no que parece ser o seu em-
indique em que ele consiste, isto é, sua característica penho original, é a faculdade de fabricar objetos artifi-
essencial a partir da qual se possa explicar o trabalho ciais, sobretudo ferramentas para fazer ferramentas e de
e a educação como atributos do homem. E, nesse caso, diversificar ao infinito a fabricação delas. (Bergson, 1979,
fica aberta a possibilidade de que trabalho e educa- p. 178-179, grifos do original)
ção sejam considerados atributos essenciais do ho-
mem, ou acidentais. No entanto, embora essa citação esteja sugerindo
Na definição de homem mais difundida (animal que o trabalho seja a característica essencial que defi-
racional), o atributo essencial é dado pela racionali- ne o homem em sua totalidade, Bergson não leva essa
dade, consoante o significado clássico de definição conclusão às últimas conseqüências. Ao contrário, con-
estabelecido por Aristóteles: uma definição dá-se pelo siderará que sendo o instinto, em contraponto à inteli-
gênero próximo e pela diferença específica. Pelo gê- gência, uma das duas extremidades das duas princi-
nero próximo indica-se aquilo que o objeto definido pais linhas divergentes da evolução, ele é irredutível à
tem em comum com outros seres de espécies diferen- inteligência. Esta é adequada para lidar com a matéria
tes (no caso em tela, o gênero animal); pela diferença inerte; o instinto dá-nos a chave das operações vitais.
específica indica-se a espécie, isto é, o que distingue É a intuição, isto é, “o instinto que se tornou despren-
determinado ser dos demais que pertencem ao mes- dido, consciente de si mesmo, capaz de refletir seu
mo gênero (no caso do homem, a racionalidade). Con- objeto e de o ampliar infinitamente”, que nos conduz
seqüentemente, sendo o homem definido pela racio- “ao próprio interior da vida” (idem, p. 201).
nalidade, é esta que assume o caráter de atributo Portanto, embora o ato de fabricar em que se
essencial do ser humano. expressa a racionalidade seja específico do homem,
Ora, assim entendido o homem, vê-se que, em- Bergson não o considera suficiente para definir a es-
bora trabalhar e educar possam ser reconhecidos como sência humana.
atributos humanos, eles o são em caráter acidental, e Essas considerações feitas a propósito da filoso-
não substancial. Com efeito, o mesmo Aristóteles, fia bergsoniana ilustram o que há de comum à grande
considerando como próprio do homem o pensar, o maioria das tentativas de definir o homem que po-
contemplar, reputa o ato produtivo, o trabalho, como voam a história da filosofia. Expressões como o “ho-
uma atividade não digna de homens livres. mem é um animal político”; “é um animal simbóli-
Diversamente, Bergson, ao analisar o desenvol- co”, isto é, “um animal que fala”; “o homem não é
vimento do impulso vital na obra Evolução criadora, senão sua alma”; “o homem é apenas corpo”; “é uma
observa que “torpor vegetativo, instinto e inteligên- substância composta de dois elementos incompletos
cia” são os elementos comuns às plantas e aos ani- e complementares, o corpo e a alma”; “é um espírito
mais. E, definindo a inteligência pela fabricação de encarnado”, padecem do mesmo problema detectado
objetos, fenômeno identificado como comum aos ani- na fórmula “o homem é um animal racional”, assim
mais, encontra no homem a particularidade da fabri- como na concepção bergsoniana. Compõem a visão
que predominou no desenvolvimento do pensamento sência externa a essa existência, que se descobre o que
filosófico e que se cristalizou no senso comum, mar- o homem é: “tal e como os indivíduos manifestam sua
cada por um caráter especulativo e metafísico contra- vida, assim são. O que são coincide, por conseguinte,
posto à existência histórica dos homens. Partem de com sua produção, tanto com o que produzem como
uma idéia abstrata e universal de essência humana na com o modo como produzem” (idem, ibidem).
qual estaria inscrito o conjunto dos traços caracterís- Se a existência humana não é garantida pela na-
ticos de cada um dos indivíduos que compõem a es- tureza, não é uma dádiva natural, mas tem de ser pro-
pécie humana. Certamente trabalho e educação fari- duzida pelos próprios homens, sendo, pois, um pro-
am parte desse conjunto de traços. duto do trabalho, isso significa que o homem não nasce
Diferentemente dessa maneira de entender o ho- homem. Ele forma-se homem. Ele não nasce sabendo
mem, cumpre partir das condições efetivas, reais. produzir-se como homem. Ele necessita aprender a
Voltando-nos para o processo de surgimento do ser homem, precisa aprender a produzir sua própria
homem vamos constatar seu início no momento em existência. Portanto, a produção do homem é, ao mes-
que determinado ser natural se destaca da natureza e mo tempo, a formação do homem, isto é, um proces-
é obrigado, para existir, a produzir sua própria vida. so educativo. A origem da educação coincide, então,
Assim, diferentemente dos animais, que se adaptam com a origem do homem mesmo.
à natureza, os homens têm de adaptar a natureza a si. Diríamos, pois, que no ponto de partida a rela-
Agindo sobre ela e transformando-a, os homens ajus- ção entre trabalho e educação é uma relação de iden-
tam a natureza às suas necessidades: tidade. Os homens aprendiam a produzir sua existên-
cia no próprio ato de produzi-la. Eles aprendiam a
Podemos distinguir o homem dos animais pela cons- trabalhar trabalhando. Lidando com a natureza, rela-
ciência, pela religião ou por qualquer coisa que se queira. cionando-se uns com os outros, os homens educavam-
Porém, o homem se diferencia propriamente dos animais a se e educavam as novas gerações. A produção da exis-
partir do momento em que começa a produzir seus meios tência implica o desenvolvimento de formas e
de vida, passo este que se encontra condicionado por sua conteúdos cuja validade é estabelecida pela experiên-
organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, o cia, o que configura um verdadeiro processo de apren-
homem produz indiretamente sua própria vida material. dizagem. Assim, enquanto os elementos não valida-
(Marx & Engels, 1974, p. 19, grifos do original) dos pela experiência são afastados, aqueles cuja
eficácia a experiência corrobora necessitam ser pre-
Ora, o ato de agir sobre a natureza transforman- servados e transmitidos às novas gerações no interes-
do-a em função das necessidades humanas é o que se da continuidade da espécie.
conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois, Nas comunidades primitivas a educação coinci-
dizer que a essência do homem é o trabalho. A essên- dia totalmente com o fenômeno anteriormente des-
cia humana não é, então, dada ao homem; não é uma crito. Os homens apropriavam-se coletivamente dos
dádiva divina ou natural; não é algo que precede a meios de produção da existência e nesse processo
existência do homem. Ao contrário, a essência huma- educavam-se e educavam as novas gerações. Preva-
na é produzida pelos próprios homens. O que o ho- lecia, aí, o modo de produção comunal, também cha-
mem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um mado de “comunismo primitivo”. Não havia a divi-
feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se são em classes. Tudo era feito em comum. Na unidade
aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um aglutinadora da tribo dava-se a apropriação coletiva
processo histórico. da terra, constituindo a propriedade tribal na qual os
É, portanto, na existência efetiva dos homens, nas homens produziam sua existência em comum e se
contradições de seu movimento real, e não numa es- educavam nesse mesmo processo. Nessas condições,
a educação identificava-se com a vida. A expressão Na Antigüidade, tanto grega como romana, con-
“educação é vida”, e não preparação para a vida, rei- figura-se esse fenômeno que contrapõe, de um lado,
vindicada muitos séculos mais tarde, já na nossa épo- uma aristocracia que detém a propriedade privada da
ca, era, nessas origens remotas, verdade prática. terra; e, de outro lado, os escravos. Daí a caracteriza-
Estão aí os fundamentos histórico-ontológicos da ção do modo de produção antigo como modo de pro-
relação trabalho-educação. Fundamentos históricos dução escravista. O trabalho é realizado dominante-
porque referidos a um processo produzido e desen- mente pelos escravos.
volvido ao longo do tempo pela ação dos próprios Ora, essa divisão dos homens em classes irá pro-
homens. Fundamentos ontológicos porque o produto vocar uma divisão também na educação. Introduz-se,
dessa ação, o resultado desse processo, é o próprio assim, uma cisão na unidade da educação, antes iden-
ser dos homens. tificada plenamente com o próprio processo de traba-
lho. A partir do escravismo antigo passaremos a ter
A emergência histórica da duas modalidades distintas e separadas de educação:
separação entre trabalho e educação uma para a classe proprietária, identificada como a
educação dos homens livres, e outra para a classe não-
O desenvolvimento da produção conduziu à di- proprietária, identificada como a educação dos escra-
visão do trabalho e, daí, à apropriação privada da ter- vos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades
ra, provocando a ruptura da unidade vigente nas co- intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físi-
munidades primitivas. A apropriação privada da terra, cos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimi-
então o principal meio de produção, gerou a divisão lada ao próprio processo de trabalho.
dos homens em classes. Configuram-se, em conse- A primeira modalidade de educação deu origem
qüência, duas classes sociais fundamentais: a classe à escola. A palavra escola deriva do grego e
dos proprietários e a dos não-proprietários. Esse acon- significa, etimologicamente, o lugar do ócio, tempo
tecimento é de suma importância na história da hu- livre. Era, pois, o lugar para onde iam os que dispu-
manidade, tendo claros efeitos na própria compreen- nham de tempo livre. Desenvolveu-se, a partir daí,
são ontológica do homem. Com efeito, como já se uma forma específica de educação, em contraposição
esclareceu, é o trabalho que define a essência huma- àquela inerente ao processo produtivo. Pela sua espe-
na. Isso significa que não é possível ao homem viver cificidade, essa nova forma de educação passou a ser
sem trabalhar. Já que o homem não tem sua existên- identificada com a educação propriamente dita, per-
cia garantida pela natureza, sem agir sobre ela, trans- petrando-se a separação entre educação e trabalho.
formando-a e adequando-a às suas necessidades, o Estamos, a partir desse momento, diante do pro-
homem perece. Daí o adágio: ninguém pode viver sem cesso de institucionalização da educação, correlato
trabalhar. No entanto, o advento da propriedade pri- do processo de surgimento da sociedade de classes
vada tornou possível à classe dos proprietários viver que, por sua vez, tem a ver com o processo de apro-
sem trabalhar. Claro. Sendo a essência humana defi- fundamento da divisão do trabalho. Assim, se nas so-
nida pelo trabalho, continua sendo verdade que sem ciedades primitivas, caracterizadas pelo modo coleti-
trabalho o homem não pode viver. Mas o controle vo de produção da existência humana, a educação
privado da terra onde os homens vivem coletivamen- consistia numa ação espontânea, não diferenciada das
te tornou possível aos proprietários viver do trabalho outras formas de ação desenvolvidas pelo homem,
alheio; do trabalho dos não-proprietários que passa- coincidindo inteiramente com o processo de trabalho
ram a ter a obrigação de, com o seu trabalho, mante- que era comum a todos os membros da comunidade,
rem-se a si mesmos e ao dono da terra, convertido em com a divisão dos homens em classes a educação tam-
seu senhor. bém resulta dividida; diferencia-se, em conseqüên-
cia, a educação destinada à classe dominante daquela dos, a técnica e a situação serão profundamente diferentes de
a que tem acesso a classe dominada. E é aí que se uma sociedade para outra. (Manacorda, 1989, p. 14)
localiza a origem da escola. A educação dos mem-
bros da classe que dispõe de ócio, de lazer, de tempo Manacorda retoma o mesmo tema na conclusão
livre passa a organizar-se na forma escolar, contra- de sua História da educação, referindo-se à descober-
pondo-se à educação da maioria, que continua a co- ta, já no antigo Egito, de uma “constante da história da
incidir com o processo de trabalho. educação, uma daquelas constantes que sempre são
Vê-se, pois, que já na origem da instituição edu- repropostas, embora sob formas diferentes e peculia-
cativa ela recebeu o nome de escola. Desde a Anti- res”, descrevendo-a com as seguintes oposições:
güidade a escola foi-se depurando, complexificando,
alargando-se até atingir, na contemporaneidade, a A separação entre instrução e trabalho, a discrimina-
condição de forma principal e dominante de educa- ção entre a instrução para os poucos e o aprendizado do
ção, convertendo-se em parâmetro e referência para trabalho para os muitos, e a definição da instrução “institu-
aferir todas as demais formas de educação. Mas essa cionalizada” como institutio oratoria, isto é, como forma-
constatação não implica, simplesmente, um desenvol- ção do governante para a arte da palavra entendida como
vimento por continuidade em que a escola teria per- arte de governar (o “dizer”, ao qual se associa a arte das
manecido idêntica a si mesma, conservando a mesma armas, que é o “fazer” dos dominantes); trata-se, também,
qualidade e desenvolvendo-se tão-somente no aspec- da exclusão dessa arte de todo indivíduo das classes domi-
to quantitativo. As continuidades podem ser observa- nadas, considerado um “charlatão demagogo”, um meduti.
das, é claro, sem prejuízo, porém, de um desenvolvi- A consciência da separação entre as duas formações do
mento por rupturas mais ou menos profundas. homem tem a sua expressão literária nas chamadas “sátiras
Manacorda assinala essa questão quando apro- dos ofícios”. Logo esse processo de inculturação se trans-
xima os ensinamentos de Ptahhotep, no antigo Egito, forma numa instrução que cada vez mais define o seu lugar
que datam de 2.450 a.C., de Quintiliano, que viveu como uma “escola”, destinada à transmissão de uma cultu-
na antiga Roma entre os anos 30 e 100 de nossa era. ra livresca codificada, numa áspera e sádica relação peda-
Constatando que o “falar bem” é o conteúdo e o obje- gógica. (idem, p. 356)
tivo do ensinamento de Ptahhotep, observa que não
se trata, porém, do falar bem “em sentido estético- Se é possível detectar certa continuidade, mes-
literário”, mas da “oratória como arte política do co- mo no longuíssimo tempo, na história das instituições
mando”, ou seja, nos termos de Quintiliano, “uma educativas, isso não deve afastar nosso olhar das rup-
verdadeira institutio oratoria, educação do orador ou turas que, compreensivelmente, se manifestam mais
do homem político”. E acrescenta: nitidamente, ao menos em suas formas mais profun-
das, com a mudança dos modos de produção da exis-
Entre Ptahhotep e Quintiliano passaram-se mais de dois tência humana.
milênios e meio, mais do que entre Quintiliano e nós; além Assim, após a radical ruptura do modo de produ-
disso, as civilizações egípcia e romana são muito diferentes ção comunal, nós vamos ter o surgimento da escola,
entre si. Não obstante, acho que se pode legitimamente con- que na Grécia se desenvolverá como paidéia, enquanto
firmar esta continuidade de princípio na formação das castas educação dos homens livres, em oposição à duléia,1
dirigentes nas sociedades antigas, e não somente naquelas.
Encontraremos as confirmações disto no decorrer do estudo, 1
Jogo, aqui, com as duas palavras gregas e .
mas devemos precisar agora que a continuidade e a afinida- A primeira significa educação enquanto inserção da criança na
de não vão além deste objetivo proclamado, a saber, a for- cultura; a segunda, significando escravidão, remete à educação
mação do orador ou político, e que a inspiração e os conteú- enquanto conformação do escravo à sua condição.
que implicava a educação dos escravos, fora da esco- da escola francesa em pleno século XX; essa análise,
la, no próprio processo de trabalho. Com a ruptura do centrada no entendimento da escola como um apare-
modo de produção antigo (escravista), a ordem feu- lho ideológico de Estado exclusivamente capitalista,
dal vai gerar um tipo de escola que em nada lembra a termina por afirmar exatamente uma constante da his-
paidéia grega. Diferentemente da educação ateniense tória da educação cujas origens remontam ao antigo
e espartana, assim como da romana, em que o Estado Egito. Tratar-se-ia, então, de uma continuidade na
desempenhava papel importante, na Idade Média as descontinuidade?
escolas trarão fortemente a marca da Igreja católica. Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento da
O modo de produção capitalista provocará decisivas sociedade de classes, especificamente nas suas for-
mudanças na própria educação confessional e colo- mas escravista e feudal, consumou a separação entre
cará em posição central o protagonismo do Estado, educação e trabalho. No entanto, não se pode perder
forjando a idéia da escola pública, universal, gratui- de vista que isso só foi possível a partir da própria
ta, leiga e obrigatória, cujas tentativas de realização determinação do processo de trabalho. Com efeito, é
passarão pelas mais diversas vicissitudes. o modo como se organiza o processo de produção –
Essa perspectiva da análise da história da escola portanto, a maneira como os homens produzem os
pelo aspecto das rupturas permitirá abordagens mais seus meios de vida – que permitiu a organização da
radicais, como aquela que se apresenta ao final do li- escola como um espaço separado da produção. Logo,
vro de Baudelot e Establet, A escola capitalista na Fran- a separação também é uma forma de relação, ou seja:
ça, no qual os autores levantam três hipóteses de traba- nas sociedades de classes a relação entre trabalho e
lho. Para efeitos deste texto, destaco a terceira: educação tende a manifestar-se na forma da separa-
ção entre escola e produção.
Enfim, nós colocaremos a hipótese, e será preciso bus- Essa separação entre escola e produção reflete,
car verificá-la, que a realização da forma escolar no aparelho por sua vez, a divisão que se foi processando ao lon-
escolar capitalista é diretamente responsável pelas modali- go da história entre trabalho manual e trabalho inte-
dades segundo as quais este concorre para a reprodução das lectual. Por esse ângulo, vê-se que a separação entre
relações de produção capitalistas. Isto supõe evidentemente escola e produção não coincide exatamente com a
que nós elaboraríamos pouco a pouco uma definição siste- separação entre trabalho e educação. Seria, portanto,
mática da forma escolar, da qual nós simplesmente indica- mais preciso considerar que, após o surgimento da
mos que ela repousa fundamentalmente sobre a separação escola, a relação entre trabalho e educação também
escolar, a separação entre as práticas escolares e o trabalho assume uma dupla identidade. De um lado, continua-
produtivo. (Baudelot & Establet, 1971, p. 298) mos a ter, no caso do trabalho manual, uma educação
que se realizava concomitantemente ao próprio pro-
Essa hipótese sugere o peso decisivo, senão ex- cesso de trabalho. De outro lado, passamos a ter a
clusivo da escola na responsabilidade pela reprodu- educação de tipo escolar destinada à educação para o
ção do modo de produção capitalista. E a via para o trabalho intelectual.
cumprimento desse papel reprodutor é o desenvolvi- Como assinalei em outro momento (Saviani,
mento da escola como uma instituição apartada do 1994, p. 162), a escola, desde suas origens, foi posta
trabalho produtivo. Repõe-se, portanto, a “constante do lado do trabalho intelectual; constituiu-se num ins-
da história da educação” de que falava Manacorda: a trumento para a preparação dos futuros dirigentes que
separação entre instrução e trabalho. Não deixa de se exercitavam não apenas nas funções da guerra (li-
ser interessante essa constatação: uma hipótese for- derança militar), mas também nas funções de mando
mulada no âmbito do modo de produção capitalista a (liderança política), por meio do domínio da arte da
partir de uma análise minuciosa do funcionamento palavra e do conhecimento dos fenômenos naturais e
das regras de convivência social. Como já foi aponta- campo para a cidade e da agricultura para a indústria,
do, isso pode ser detectado no Egito desde as primei- que converte o saber de potência intelectual em po-
ras dinastias até o surgimento do escriba, assim como tência material. E a estrutura da sociedade deixa de
na Grécia, em Roma e na Idade Média, cujas escolas, fundar-se em laços naturais para pautar-se por laços
restritas, cumpriam a função de preparar os também propriamente sociais, isto é, produzidos pelos próprios
restritos quadros dirigentes (intelectuais) então reque- homens. Trata-se da sociedade contratual, cuja base é
ridos. Nesses contextos, as funções manuais não exi- o direito positivo e não mais o direito natural ou con-
giam preparo escolar. A formação dos trabalhadores suetudinário. Com isso, o domínio de uma cultura
dava-se com o concomitante exercício das respecti- intelectual, cujo componente mais elementar é o alfa-
vas funções. Mesmo no caso em que se atingiu alto beto, impõe-se como exigência generalizada a todos
grau de especialização, como no artesanato medie- os membros da sociedade. E a escola, sendo o instru-
val, o sistema de aprendizado de longa duração fica- mento por excelência para viabilizar o acesso a esse
va a cargo das próprias corporações de ofícios: o tipo de cultura, é erigida na forma principal, domi-
aprendiz adquiria o domínio do ofício exercendo-o nante e generalizada de educação. Esse processo as-
juntamente com os oficiais, com a orientação do mes- sume contornos mais nítidos com a consolidação da
tre, por isso mesmo chamado de “mestre de ofícios”. nova ordem social propiciada pela indústria moderna
no contexto da Revolução Industrial.
Questionamento da separação e O advento da indústria moderna conduziu a uma
tentativas de restabelecimento crescente simplificação dos ofícios, reduzindo a ne-
do vínculo entre trabalho e educação cessidade de qualificação específica, viabilizada pela
introdução da maquinaria que passou a executar a
A relação trabalho-educação irá sofrer uma nova maior parte das funções manuais. Pela maquinaria,
determinação com o surgimento do modo de produ- que não é outra coisa senão trabalho intelectual mate-
ção capitalista. rializado, deu-se visibilidade ao processo de conver-
Como se sabe, a sociedade capitalista ou burgue- são da ciência, potência espiritual, em potência mate-
sa, ao constituir a economia de mercado, isto é, a pro- rial. Esse processo aprofunda-se e generaliza-se com
dução para a troca, inverteu os termos próprios da a Revolução Industrial levada a efeito no final do sé-
sociedade feudal. Nesta, dominava a economia de culo XVIII e primeira metade do século XIX.
subsistência. Produzia-se para atender às necessida- Vê-se, então, que o fenômeno da objetivação e
des de consumo, e só residualmente, na medida em simplificação do trabalho coincide com o processo
que a produção excedesse em certo grau as necessi- de transferência para as máquinas das funções pró-
dades de consumo, podia ocorrer algum tipo de troca. prias do trabalho manual. Desse modo, os ingredien-
Mas o avanço das forças produtivas, ainda sob as re- tes intelectuais antes indissociáveis do trabalho ma-
lações feudais, intensificou o desenvolvimento da nual humano, como ocorria no artesanato, dele
economia medieval, provocando a geração sistemáti- destacam-se, indo incorporar-se às máquinas. Por esse
ca de excedentes e ativando o comércio. Esse proces- processo, dá-se a mecanização das operações manu-
so desembocou na organização da produção especifi- ais, sejam elas executadas pelas próprias máquinas
camente voltada para a troca, dando origem à ou pelos homens, que passam a operar manualmente
sociedade capitalista. Nessa nova forma social, inver- como sucedâneos das máquinas. Pode-se, pois, esta-
samente ao que ocorria na sociedade feudal, é a troca belecer uma relação entre o caráter abstrato do traba-
que determina o consumo. Por isso esse tipo de so- lho assim organizado, com o caráter abstrato próprio
ciedade é também chamado de sociedade de merca- das atividades intelectuais: o trabalho tornou-se abs-
do. Nela, o eixo do processo produtivo desloca-se do trato, isto é, simples e geral, porque organizado de
acordo com os princípios científicos, também eles rais (intelectuais) em detrimento da qualificação es-
abstratos, elaborados pela inteligência humana. pecífica, ao passo que os cursos profissionalizantes,
Essa nova forma de produção da existência hu- diretamente ligados à produção, enfatizaram os as-
mana determinou a reorganização das relações sociais. pectos operacionais vinculados ao exercício de tare-
À dominância da indústria no âmbito da produção fas específicas (intelectuais e manuais) no processo
corresponde a dominância da cidade na estrutura so- produtivo considerado em sua particularidade.
cial. Se a máquina viabilizou a materialização das Constatamos, portanto, que o impacto da Revolu-
funções intelectuais no processo produtivo, a via para ção Industrial pôs em questão a separação entre instru-
objetivar-se a generalização das funções intelectuais ção e trabalho produtivo, forçando a escola a ligar-se,
na sociedade foi a escola. Com o impacto da Revolu- de alguma maneira, ao mundo da produção. No entan-
ção Industrial, os principais países assumiram a tare- to, a educação que a burguesia concebeu e realizou
fa de organizar sistemas nacionais de ensino, buscan- sobre a base do ensino primário comum não passou,
do generalizar a escola básica. Portanto, à Revolução nas suas formas mais avançadas, da divisão dos ho-
Industrial correspondeu uma Revolução Educacional: mens em dois grandes campos: aquele das profissões
aquela colocou a máquina no centro do processo pro- manuais para as quais se requeria uma formação práti-
dutivo; esta erigiu a escola em forma principal e do- ca limitada à execução de tarefas mais ou menos deli-
minante de educação. mitadas, dispensando-se o domínio dos respectivos
A universalização da escola primária promoveu fundamentos teóricos; e aquele das profissões intelec-
a socialização dos indivíduos nas formas de convi- tuais para as quais se requeria domínio teórico amplo a
vência próprias da sociedade moderna. Familiarizan- fim de preparar as elites e representantes da classe di-
do-os com os códigos formais, capacitou-os a inte- rigente para atuar nos diferentes setores da sociedade.
grar o processo produtivo. A introdução da maquinaria A referida separação teve uma dupla manifesta-
eliminou a exigência de qualificação específica, mas ção: a proposta dualista de escolas profissionais para
impôs um patamar mínimo de qualificação geral, os trabalhadores e “escolas de ciências e humanida-
equacionado no currículo da escola elementar. Pre- des” para os futuros dirigentes; e a proposta de escola
enchido esse requisito, os trabalhadores estavam em única diferenciada, que efetuava internamente a dis-
condições de conviver com as máquinas, operando- tribuição dos educandos segundo as funções sociais
as sem maiores dificuldades. Contudo, além do tra- para as quais se os destinavam em consonância com
balho com as máquinas, era necessário também reali- as características que geralmente decorriam de sua
zar atividades de manutenção, reparos, ajustes, origem social.
desenvolvimento e adaptação a novas circunstâncias.
Subsistiram, pois, no interior da produção, tarefas que Esboço de organização do sistema de ensino
exigiam determinadas qualificações específicas, ob- com base no princípio educativo do trabalho
tidas por um preparo intelectual também específico.
Esse espaço foi ocupado pelos cursos profissionais Inspirado nas reflexões de Gramsci sobre o tra-
organizados no âmbito das empresas ou do sistema balho como princípio educativo da escola unitária,
de ensino, tendo como referência o padrão escolar, procurei delinear a conformação do sistema de ensi-
mas determinados diretamente pelas necessidades do no tendo em vista as condições da sociedade brasilei-
processo produtivo. Eis que, sobre a base comum da ra atual.
escola primária, o sistema de ensino bifurcou-se en- Conforme Gramsci, a escola unitária correspon-
tre as escolas de formação geral e as escolas profis- deria à fase que hoje, no Brasil, é definida como a
sionais. Estas, por não estarem diretamente ligadas à educação básica, especificamente nos níveis funda-
produção, tenderam a enfatizar as qualificações ge- mental e médio.
O modo como está organizada a sociedade atual o caráter do currículo escolar em função da incorpo-
é a referência para a organização do ensino funda- ração dessas exigências na vida da sociedade. A es-
mental. O nível de desenvolvimento atingido pela cola elementar não precisa, então, fazer referência
sociedade contemporânea coloca a exigência de um direta ao processo de trabalho, porque ela se constitui
acervo mínimo de conhecimentos sistemáticos, sem basicamente como um mecanismo, um instrumento,
o que não se pode ser cidadão, isto é, não se pode por meio do qual os integrantes da sociedade se apro-
participar ativamente da vida da sociedade. priam daqueles elementos, também instrumentais,
O acervo em referência inclui a linguagem es- para a sua inserção efetiva na própria sociedade.
crita e a matemática, já incorporadas na vida da so- Aprender a ler, escrever e contar, e dominar os rudi-
ciedade atual; as ciências naturais, cujos elementos mentos das ciências naturais e das ciências sociais
básicos relativos ao conhecimento das leis que regem constituem pré-requisitos para compreender o mun-
a natureza são necessários para compreender as trans- do em que se vive, inclusive para entender a própria
formações operadas pela ação do homem sobre o meio incorporação pelo trabalho dos conhecimentos cien-
ambiente; e as ciências sociais, pelas quais se pode tíficos no âmbito da vida e da sociedade.
compreender as relações entre os homens, as formas Se no ensino fundamental a relação é implícita e
como eles se organizam, as instituições que criam e indireta, no ensino médio a relação entre educação e
as regras de convivência que estabelecem, com a con- trabalho, entre o conhecimento e a atividade prática
seqüente definição de direitos e deveres. O último deverá ser tratada de maneira explícita e direta. O sa-
componente (ciências sociais) corresponde, na atual ber tem uma autonomia relativa em relação ao pro-
estrutura, aos conteúdos de história e geografia. Eis cesso de trabalho do qual se origina. O papel funda-
aí como se configura o currículo da escola elementar. mental da escola de nível médio será, então, o de
A base em que se assenta a estrutura do ensino recuperar essa relação entre o conhecimento e a prá-
fundamental é o princípio educativo do trabalho. O tica do trabalho.
estudo das ciências naturais, assinala Gramsci, visa Assim, no ensino médio já não basta dominar os
introduzir as crianças na societas rerum, e pelas ciên- elementos básicos e gerais do conhecimento que resul-
cias sociais elas são introduzidas na societas hominum: tam e ao mesmo tempo contribuem para o processo de
trabalho na sociedade. Trata-se, agora, de explicitar
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico- como o conhecimento (objeto específico do processo
prática) é o princípio educativo imanente à escola elemen- de ensino), isto é, como a ciência, potência espiritual,
tar, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é se converte em potência material no processo de pro-
introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. dução. Tal explicitação deve envolver o domínio não
O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natu- apenas teórico, mas também prático sobre o modo como
ral sobre o fundamento do trabalho, da atividade teórico- o saber se articula com o processo produtivo.
prática do homem, cria os primeiros elementos de uma in- Um exemplo de como a atividade prática, ma-
tuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e forne- nual, pode contribuir para explicitar a relação entre
ce o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de ciência e produção é a transformação da madeira e do
uma concepção histórico-dialética do mundo... (Gramsci, metal pelo trabalho humano (cf. Pistrak, 1981, p. 55-
1975, v. III, p. 1.541; na edição brasileira, 1968, p. 130) 56). O trabalho com a madeira e o metal tem imenso
valor educativo, pois apresenta possibilidades amplas
Uma vez que o princípio do trabalho é imanente de transformação. Envolve não apenas a produção da
à escola elementar, isso significa que no ensino fun- maioria dos objetos que compõem o processo produ-
damental a relação entre trabalho e educação é implí- tivo moderno, mas também a produção de instrumen-
cita e indireta. Ou seja, o trabalho orienta e determina tos com os quais esses objetos são produzidos. No
trabalho prático com madeira e metal, aplicando os entendia a escola ativa, e não na forma como essa
fundamentos de diversificadas técnicas de produção, expressão aparecia no movimento da Escola Nova,
pode-se compreender como a ciência e seus princí- isto é, a escola única diferenciada preconizada pela
pios são aplicados ao processo produtivo, pode-se burguesia. E, para ele, o coroamento dessa escola ati-
perceber como as leis da física e da química operam va era a escola criativa, entendida como o momento
para vencer a resistência dos materiais e gerar novos em que os educandos atingiam a autonomia. Com-
produtos. Faz-se, assim, a articulação da prática com pletava-se, dessa forma, o sentido gramsciano da es-
o conhecimento teórico, inserindo-o no trabalho con- cola mediante a qual os educandos passariam da
creto realizado no processo produtivo. anomia à autonomia, pela mediação da heteronomia.
O ensino médio envolverá, pois, o recurso às ofi- Finalmente, à educação superior cabe a tarefa de
cinas nas quais os alunos manipulam os processos organizar a cultura superior como forma de possibili-
práticos básicos da produção; mas não se trata de re- tar que participem plenamente da vida cultural, em
produzir na escola a especialização que ocorre no pro- sua manifestação mais elaborada, todos os membros
cesso produtivo. O horizonte que deve nortear a or- da sociedade, independentemente do tipo de ativida-
ganização do ensino médio é o de propiciar aos alunos de profissional a que se dediquem.
o domínio dos fundamentos das técnicas diversifica- Assim, além do ensino superior destinado a for-
das utilizadas na produção, e não o mero adestramen- mar profissionais de nível universitário (a imensa
to em técnicas produtivas. Não a formação de técni- gama de profissionais liberais e de cientistas e tecnó-
cos especializados, mas de politécnicos. logos de diferentes matizes), formula-se a exigência
Politecnia significa, aqui, especialização como da organização da cultura superior com o objetivo de
domínio dos fundamentos científicos das diferentes possibilitar a toda a população a difusão e discussão
técnicas utilizadas na produção moderna. Nessa pers- dos grandes problemas que afetam o homem contem-
pectiva, a educação de nível médio tratará de concen- porâneo. Terminada a formação comum propiciada
trar-se nas modalidades fundamentais que dão base à pela educação básica, os jovens têm diante de si dois
multiplicidade de processos e técnicas de produção caminhos: a vinculação permanente ao processo pro-
existentes. dutivo, por meio da ocupação profissional, ou a espe-
Essa é uma concepção radicalmente diferente da cialização universitária.
que propõe um ensino médio profissionalizante, caso Ora, em lugar de abandonar o desenvolvimento
em que a profissionalização é entendida como um cultural dos trabalhadores a um processo difuso, tra-
adestramento em uma determinada habilidade sem o ta-se de organizá-lo. É necessário, pois, que eles dis-
conhecimento dos fundamentos dessa habilidade e, ponham de organizações culturais por meio das quais
menos ainda, da articulação dessa habilidade com o possam participar, em igualdade de condições com
conjunto do processo produtivo. os estudantes universitários, da discussão, em nível
A concepção anteriormente formulada implica a superior, dos problemas que afetam toda a sociedade
progressiva generalização do ensino médio como for- e, portanto, dizem respeito aos interesses de cada
mação necessária para todos, independentemente do cidadão. Com isso, além de propiciar o clima estimu-
tipo de ocupação que cada um venha a exercer na so- lante imprescindível à continuidade do desenvolvi-
ciedade. Sobre a base da relação explícita entre tra- mento cultural e da atividade intelectual dos traba-
balho e educação desenvolve-se, portanto, uma esco- lhadores, tal mecanismo funciona como um espaço
la média de formação geral. Nesse sentido, trata-se de articulação entre os trabalhadores e os estudantes
de uma escola de tipo “desinteressado” como universitários, criando a atmosfera indispensável para
propugnava Gramsci (1975, v. I, p. 486-487; na edi- vincular de forma indissociável o trabalho intelectual
ção brasileira, 1968, p. 123-125) . É assim que ele e o trabalho material.
Ressalte-se que essa proposta é bem diversa da gica” ou “politecnia”, é importante observar que, do
atual função da extensão universitária. Não se trata ponto de vista conceitual, o que está em causa é um
de estender à população trabalhadora, enquanto mesmo conteúdo. Trata-se da união entre formação
receptora passiva, algo próprio da atividade universi- intelectual e trabalho produtivo, que no texto do Ma-
tária. Trata-se, antes, de evitar que os trabalhadores nifesto aparece como “unificação da instrução com a
caiam na passividade intelectual, evitando-se ao mes- produção material”; nas Instruções, como “instrução
mo tempo que os universitários caiam no academi- politécnica que transmita os fundamentos científicos
cismo. Aliás, Gramsci (1968, p. 125-127) imaginava gerais de todos os processos de produção”; e n’O ca-
que tal função viesse a ser desempenhada exatamen- pital, se enuncia como “instrução tecnológica, teóri-
te pelas academias que, para tanto, deveriam ser reor- ca e prática”.
ganizadas e totalmente revitalizadas, deixando de ser Compreendo as preocupações filológicas de
os “cemitérios da cultura” a que estão reduzidas atual- Manacorda que o levaram a propor uma distinção
mente. sugerindo que o termo “politecnicismo” se refere à
“disponibilidade para os diversos trabalhos e suas
Conclusão: variações”, enquanto “tecnologia”, implicando a uni-
a controvérsia relativa à politecnia dade entre teoria e prática, destacaria a omnilaterali-
dade que caracteriza o homem:
Abordei mais extensamente a questão da educa-
ção politécnica no livro Sobre a concepção de politecnia O primeiro termo, ao propor uma preparação pluri-
(Saviani, 1989), que resultou do Seminário “Choque profissional, contrapõe-se à divisão do trabalho específica
Teórico” organizado pelo Politécnico da Saúde Joaquim da fábrica moderna; o segundo, ao prever uma formação
Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz. Nesse momen- unificadamente teórica e prática, opõe-se à divisão originá-
to considerei que na abordagem marxista o conceito ria entre trabalho intelectual e trabalho manual, que a fábri-
de politecnia implica a união entre escola e trabalho ca moderna exacerba. O primeiro destaca a idéia da multi-
ou, mais especificamente, entre instrução intelectual e plicidade da atividade (a respeito da qual Marx havia fala-
trabalho produtivo. Tendo em vista, porém, as contro- do de uma sociedade comunista na qual, por exemplo, os
vérsias que se têm manifestado, voltei a essa questão pintores seriam “homens que também pintam”); o segundo,
em 2002, quando fiz as seguintes considerações. a possibilidade de uma plena e total manifestação de si
Após minuciosos estudos filológicos da obra de mesmo, independentemente das ocupações específicas da
Marx, Manacorda concluiu que a expressão “educa- pessoa. (idem, p. 32, grifo do original)
ção tecnológica” traduziria com mais precisão a con-
cepção marxiana do que o termo “politecnia” ou “edu- Essas considerações são feitas a partir da obser-
cação politécnica”. Mostrando a contemporaneidade vação de que Marx, n’O capital, se refere às “escolas
entre o texto das Instruções aos delegados ao I Con- politécnicas e agronômicas” e também às “escolas de
gresso da Associação Internacional dos Trabalhado- ensino profissional onde os filhos dos operários rece-
res, escrito em 1866, e O capital, Manacorda consta- bem algum ensino tecnológico e são iniciados no
ta que, em ambos os textos, há uma substancial manejo prático dos diferentes instrumentos de produ-
identidade na definição do ensino que é adjetivado de ção” (Marx, 1968, p. 559). Assim, o autor reconhece
“tecnológico” tanto nas Instruções como n’O capi- a existência dessas escolas criadas pela própria bur-
tal, aparecendo o termo “politécnico” apenas nas Ins- guesia, detectando aí um movimento contraditório que
truções (Manacorda, 1991, p. 30). Contudo, para além envolve a necessidade de atender à exigência objeti-
da questão terminológica, isto é, independentemente va, imposta pela grande indústria, de substituir o in-
da preferência pela denominação “educação tecnoló- divíduo parcial pelo indivíduo completamente desen-
volvido. E Manacorda entende, em conseqüência, que (Manacorda, 1991, p. 30). Meu entendimento é que a
o adjetivo “politécnica” se refere à escola doada pela posição de Manacorda, como bom filólogo, está apoia-
burguesia aos operários, onde já se faz presente, de da na análise lingüística da etimologia das palavras,
forma limitada, o conteúdo pedagógico da “educação com o que, aliás, eu concordo. De fato, a palavra
tecnológica”. “politecnia”, como eu próprio também destaquei no
Sem desconsiderar a validade das distinções livro mencionado, publicado em 1989, literalmente
efetuadas por Manacorda, penso que, grosso modo, significa múltiplas técnicas, multiplicidade de técni-
pode-se entender que, em Marx, “ensino tecnológi- cas; daí o risco de entender esse conceito como a to-
co” e “ensino politécnico” podem ser considerados talidade das diferentes técnicas fragmentadas, auto-
sinônimos. Se na época de Marx o termo “tecnolo- nomamente consideradas. Tecnologia, por sua vez,
gia” era pouco utilizado nos discursos econômicos, e literalmente significa estudo da técnica, ciência da
o era menos ainda nos discursos pedagógicos da bur- técnica ou técnica fundada cientificamente. Daí, a
guesia, de lá para cá essa situação modificou-se sig- conclusão de Manacorda reportando a noção de tec-
nificativamente. Enquanto o termo “tecnologia” foi nologia à unidade entre teoria e prática que caracteri-
definitivamente apropriado pela concepção dominan- za o homem.
te, o termo “politecnia” sobreviveu apenas na deno- Em minha análise não me fixei na etimologia,
minação de algumas escolas ligadas à atividade pro- mas na semântica, entendida como o estudo da evo-
dutiva, basicamente no ramo das engenharias. lução histórica do significado das palavras. E isso já
Assim, a concepção de politecnia foi preservada me conduz à outra ressalva apresentada por Nosella.
na tradição socialista, sendo uma das maneiras de A segunda ressalva diz respeito à referência que
demarcar essa visão educativa em relação àquela fiz sobre a preservação do termo politecnia na tradi-
correspondente à concepção burguesa dominante ção socialista. Paolo pergunta-se a que “tradição so-
(Saviani, 2002, p. 144-146). cialista” eu estaria me referindo e diz ser necessário
Paolo Nosella (2006), em estudo denominado distinguir entre tradição cultural socialista e socialis-
“Trabalho e perspectivas de formação dos trabalha- mo real. Todavia, ele mesmo dá as respostas. Afirma
dores: para além da formação politécnica”, retoma o que “na União Soviética, sobretudo após Lenin, a ca-
aspecto polêmico. Nesse texto Paolo faz duas ressal- tegoria de politecnia deixou de ser vista como estru-
vas à abordagem apresentada nas linhas anteriores. tura estruturante do sistema de ensino como um todo”
A primeira refere-se à minha afirmação de que, gros- (2006, p. 12). Portanto, quando falei em “tradição
so modo, as expressões “ensino tecnológico” e “ensi- socialista”, não era ao socialismo real que eu estava
no politécnico” podem ser consideradas sinônimas em me referindo. Mais adiante, Nosella vai fazer a se-
Marx. Diz ele: “a expressão cautelosa grosso modo guinte consideração:
não surte efeito, uma vez que as análises de Manacorda
são contundentes no destacar a diferença entre as duas Se a hermenêutica de Manacorda sobre os textos
expressões para Marx, que atribuía à moderna ciên- marxianos é correta, como explicar que a tradição marxista
cia da tecnologia um sentido mais progressista do que na União Soviética, pelo menos até a morte de Lenin, tenha
a politecnia” (p. 11). privilegiado o termo “politecnia” nas políticas educacionais
No entanto, devo reiterar que nessa conclusão socialistas? A resposta de Manacorda é precisa: “Remonta
eu me apoiei exatamente em Manacorda, quando ele exatamente a Lênin, na passagem citada, a escolha do termo
constata que, em Marx, há uma substancial identida- ‘politécnico’ em vez de tecnológico para o ensino na pers-
de na definição do ensino que é adjetivado de “tecno- pectiva do socialismo. Foi precisamente a sua autoridade que,
lógico” tanto nas Instruções como n’O capital, apa- posteriormente, determinou o uso constante de ‘politécnico’
recendo o termo “politécnico” apenas nas Instruções não só na terminologia pedagógica de todos os países socia-
listas, mas também – o que é filologicamente incorreto – em Parece claro que Marx e Lenin, assim como
todas as traduções oficiais dos textos marxianos em russo e, Gramsci, não pretendiam supervalorizar o instrumento
daí, em todas as demais línguas” (Manacorda, 1991, p. 41, de trabalho deslocando o foco de análise do ser hu-
nota 25). (Nosella, 2006, p. 13-14) mano para o instrumental técnico. Esse destaque fei-
to por Nosella a partir de Gramsci é também minha
Está explicado, então, como se formou a tradi- preocupação central. Aliás, nesse contexto é oportu-
ção socialista que preservou o termo politecnia, à qual no lembrar que minha concepção global de educação
me referi. E o próprio Paolo reconhece, no mesmo não se expressa por meio do termo “politecnia”, mas
texto (p. 16), que o sentido geral que Lenin deu ao pela denominação “histórico-crítica” (Saviani, 2005).
termo foi “genuinamente marxista”. Assim, indepen- No interior dessa concepção, cuja inspiração princi-
dentemente das razões que levaram Lenin a esse en- pal se reporta a Gramsci, incorporei o termo “politec-
tendimento, o certo é que a semântica do termo nia” quando tratei do problema relativo à explicita-
politecnia deixou de corresponder ao seu sentido ção da relação entre instrução e trabalho produtivo,
etimológico. Respeitando o seu significado semânti- como diretriz para a organização da educação de ní-
co, conceituei politecnia como dizendo respeito aos vel médio. E isso foi feito tendo em vista o significa-
fundamentos científicos das múltiplas técnicas que do semântico que esse termo adquiriu no âmbito da
caracterizam a produção moderna. Assim proceden- tradição socialista, como procurei esclarecer.
do, em verdade, articulei, no conceito de politecnia, Finalmente, registro que minha tendência é en-
os significados etimológicos dos termos utilizados por dossar in totum a linha de análise desenvolvida por
Marx: educação politécnica e educação tecnológica, Paolo Nosella no texto citado. Particularmente, com-
destacados por Manacorda nas denominações de partilho da centralidade que pretendeu conferir à ques-
“politecnicismo” e “tecnologia”. tão da liberdade na organização do ensino. Isso, com
Portanto, sem negar a existência de outras lei- efeito, foi o que registrei na parte final do texto por
turas no interior do movimento socialista, importa ele comentado (SAVIANI, 2002, p. 147-148). E o fiz
reconhecer que a tradição que se impôs é essa por apoiando-me, mais uma vez, no próprio Manacorda,
mim destacada. Para ilustrar isso, tomo, ao acaso, um quando externei as seguintes considerações:
exemplo retirado de Paschoal Lemme. No texto “A Como assinala Manacorda em Il marxismo e
reforma do ensino na Albânia”, por ele elaborado em l’educazione, estamos diante de uma problemática que
1960, na ocasião do 16º aniversário da Proclamação é central no marxismo: o caminho da humanidade,
da República Democrática da Albânia, podemos ler: movendo-se da genérica natureza humana originária
caracterizada por múltiplas ocupações, passa pela for-
O ensino politécnico, que tem por objetivo iniciar os mação de uma capacidade produtiva específica provo-
alunos nos princípios fundamentais dos processos essen- cada pela divisão natural do trabalho; e chega à con-
ciais dos ramos mais importantes da produção moderna e quista de uma capacidade omnilateral, baseada, agora,
os dotar de noções sobre o emprego dos principais instru- numa divisão do trabalho voluntária e consciente, en-
mentos de produção, será dado através das matérias de cul- volvendo uma variedade indefinida de ocupações pro-
tura geral (Matemática, Física, Química, Biologia, Geogra- dutivas em que ciência e trabalho coincidem. Está em
fia, Desenho Técnico) e por meio do ensino do trabalho e causa, aí, a momentosa questão da passagem do reino
de excursões aos centros de trabalhos (canteiros de cons- da necessidade ao reino da liberdade:
truções, usinas, fábricas, parques automobilísticos, centrais
elétricas, cooperativas, fazendas, etc.). (Lemme, 2004, v. 5, Sobre a base daquele reino da necessidade, lá onde
p. 131) cessa o trabalho voltado para uma finalidade externa, e para
além da esfera da produção material propriamente dita, sur- INTERNACIONAL DE TRABALHO E PERSPECTIVAS DE
ge, de fato, para Marx, o verdadeiro reino da liberdade, FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES, 1., 2006, Fortaleza.
vale dizer, o desenvolvimento das capacidades humanas Anais... Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2006.
como fim em si mesmo. (Manacorda, 1964, p. 15) PISTRAK, Moisei. Fundamentos da escola do trabalho. São Pau-
lo: Brasiliense, 1981.
Enfim, creio poder afirmar que as análises for- SAVIANI, Dermeval. Sobre a concepção de politecnia. Rio de
muladas por Nosella e aquelas por mim desenvolvi- Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1989.
das não se chocam, mas, ao contrário, complemen- . O trabalho como princípio educativo frente às no-
tam-se e enriquecem-se mutuamente. Não será o uso vas tecnologias. In: FERRETTI, Celso J.; ZIBAS, Dagmar M. L.;
ou não de determinado termo que as colocará em con- MADEIRA, Felicias R.; FRANCO, Maria Laura P. B. (Orgs.).
fronto. Se assim for, posso proclamar sem hesitação: Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisci-
abrirei mão do termo politecnia, sem prejuízo algum plinar. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 151-168.
para a concepção pedagógica que venho procurando . O choque teórico da politecnia. Trabalho, Educa-
elaborar. ção e Saúde, v. 1, n. 1, p. 131-152, mar. 2002.
. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproxima-
Referências bibliográficas ções. 9. ed. rev. e ampl. Campinas: Autores Associados, 2005.
Resumos/Abstracts/Resumens