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Marcos Cassin1
Resumo
Neste texto propomos apresentar alguns escritos de Vladimir Ilitch Lênin de antes e
durante os primeiros dias da Revolução Socialista Russa de 1917, selecionados a partir
da temática agrária. Esse corte tem como objetivo compreendermos os estudos e as
análises das formulações teóricas e políticas desse autor, frente ao desenvolvimento
capitalista de economia mercantil e seus impactos na organização do trabalho e na vida
dos camponeses, como também as primeiras propostas apresentadas para o campo e
camponeses no início da construção da Rússia Soviética. Nosso objetivo de buscar em
Lênin alguns referenciais teóricos a respeito da questão agrária são de contribuir nas
análises e estudos sobre o tema no Brasil hoje, como também, apontar algumas
reflexões aos debates e às lutas pautadas pelos movimentos sociais e sindicais, partidos
políticos e intelectuais a respeito da Reforma Agrária no Brasil, no que se refere aos
seus avanços e limites.
Abstrat:
In this paper we propose some writings of Vladimir Ilyich Lenin before and during the
early days of the Russian Socialist Revolution of 1917, selected from the agrarian issue.
This section aims to understand the studies and analyzes of theoretical and political
formulations of this author, facing the capitalist development of commodity economy
and its impact on the organization of work and life of the peasants, as well as the first
proposals presented to the countryside and peasants at the beginning of construction of
Soviet Russia. We aim to seek Lenin in some theoretical references about the agrarian
question are to contribute to the analysis and studies on the subject in Brazil today, but
also point out some reflections to the debates and struggles guided by social and trade
union movements, political parties and intellectuals about the Agrarian Reform in
Brazil, with
regard to his advances and limits.
Introdução
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Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Professor de Sociologia da Educação da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – Universidade de São Paulo campus Ribeirão Preto.
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Lênin desde sua juventude esteve envolvido nos embates políticos e intelectuais
sobre a questão agrária da Rússia, tema de grande importância no movimento socialista,
sobretudo, após a Reforma Camponesa que aboliu a servidão em 1861, da criação do
Banco Camponês em 1883, do fim dos castigos corporais em 1903 e a reforma Stolypin
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de 1906, que permitiu que as propriedades individuais saíssem do Mir2 e pudessem ser
vendidas. Essas, como outras medidas, foram importantes na transformação da terra em
mercadoria como também promoveu a desintegração do campesinato e a constituição de
uma burguesia camponesa e de um proletariado camponês.
Com relação à questão agrária, destacamos inicialmente três textos de Lênin, “A
que herança renunciamos?” escrito em 1897, “O desenvolvimento do capitalismo na
Rússia” obra que se tornou clássica, publicada em março de 1899 e “Capitalismo e
agricultura nos Estados Unidos da América: Novos dados sobre as leis de
desenvolvimento do capitalismo na agricultura”, escrito em 1915 e publicado em 1917.
Esses textos trazem uma grande contribuição para que possamos atender aos
objetivos deste nosso texto, o de buscarmos identificar concepções, categorias e
conceitos que se referem, sobretudo, à questão agrária e, em particular, a Reforma
Agrária e que são formulados e aparecem nos debates travados por Lênin no campo
intelectual e político/ideológico dentro e fora do campo marxista e que podem contribuir
nas análises e estudos das atuais concepções sobre a Questão Agrária e a Reforma
Agrária no Brasil. Como também nos ajudam a reconhecer as identidades e divergências
dos atuais movimentos sociais e políticos que lutam pela Reforma Agrária hoje no
Brasil.
O primeiro texto, “A que herança renunciamos?” , se constitui como resposta a
Mikháiloski, um populista liberal, que acusa os “discípulos” (seguidores de Marx e
Engels) de renunciarem à herança de lutas deixada pelos movimentos contra o
Tsarismo3 e as péssimas condições dos camponeses no início da segunda metade do
século XIX, pós Reforma Camponesa de 1861 na Rússia.
Lênin trava grande embate com os “populistas”, corrente revolucionária pequena
burguesa muito influente nas décadas de 60 e 70 do século XIX na Rússia, que lutavam
pelo fim do regime autocrático do país e pela distribuição das terras dos latifundiários
aos camponeses. Segundo o autor, esta corrente defendia a possibilidade da construção
do socialismo sem necessariamente passar pelo desenvolvimento capitalista, propunha o
socialismo “camponês” que incorporasse as tradições de produção aldeã da Rússia
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Comunidades aldeãs rurais que tinham controle sobre as terras comunais e poder de distribuição dessas
terras para cultivo dos camponeses.
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Nesse texto usaremos a grafia “Tsarismo”, “Tsar”, “Tsarista” etc. que é a utilizada nas “Obras
Escolhidas” de V. I. Lênin da Editora Alfa-Omega.
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Escritor e publicista russo que nos anos 60 foi um liberal burguês, colaborador na revista
“Otétchestvennie”.
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O termo Desenvolvimento se refere ao texto “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”.
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Não é intensão deste nosso texto fazer análise dessa obra clássica e tão
importante de Lênin, mas apenas identificar alguns elementos que nos ajudem a
compreender no Brasil, o seu processo de desenvolvimento capitalista no campo e seus
desdobramentos na distribuição desigual de terras, na constituição de novas classes
sociais e no novo quadro de forças políticas que atuam no campo. Assim, não podemos
deixar de apresentar um extrato do prefácio à segunda edição escrito em julho de 1907,
no final da revolução russa de 1905-1907, em que Lênin destaca a complexidade das
novas classes sociais e frações de classe que se apresentaram na revolução com
interesses políticos, econômicos e sociais particulares.
Para poder melhor viabilizar seus estudos, dada a diversidade das condições de
exploração do imenso território norte-americano, Lênin dividiu o país em três grandes
regiões para sua análise, o oeste em processo de colonização, o norte industrial e o
antigo sul escravista.
Como já afirmado acima, não pretendemos fazer análises criteriosas de nenhum
texto específico, portanto nesse texto de 1917, também apenas levantaremos alguns
aspectos que nos interessa para nossos objetivos. Nesse sentido, um dos primeiros
aspectos a ser levantado é a análise que realiza da reforma agrária burguesa nos Estados
Unidos da América, com a intensificação de inversão de capital em máquinas, insumos
etc. e na força de trabalho assalariada entre os anos de 1900 e 1910. Essas
características da Reforma Agrária burguesa já havia sido analisada no caso da Rússia,
mas o processo de reforma nos EUA, diferentemente da Rússia, resultou em uma
política fundiária de intensificação das relações capitalistas em pequenas e médias
propriedades e do desmembramento dos antigos latifúndios escravistas do sul.
Nesse texto, Lênin chama a atenção para a distinção entre pequena produção e
grande produção e sua relação com a dimensão das propriedades, ou seja, para ele a
definição de grande produção se caracteriza pela intensificação do processo de produção
e a utilização de trabalho assalariado.
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Grupo da redação do jornal Iskra (A Faísca), liderado por Lênin.
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Palavra de ordem popular no interior do campesinato da Rússia tsarista, que exprimia o desejo dos
camponeses à partilha total da terra.
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A citação acima nos aponta para uma das problemáticas fundamentais do texto
“O Programa Agrário da Social Democracia na Primeira Revolução Russa de
1905−1907”, escrito por Lênin no final de 1907, ou seja, a definição dos aliados e dos
inimigos da Revolução e qual a proposta do POSDR para a reforma agrária, mesmo que
essa seja de caráter burguês. E é nesse texto, que encontramos de forma mais
sistematizada as propostas e possibilidades de Reforma Agrária na Revolução Burguesa
na Rússia.
Referindo-se ao desenvolvimento agrário, Lênin afirma que só há um caminho
para esse desenvolvimento capitalista e de economia de mercado, mas apesar desse
único caminho, são possíveis duas formas diferentes desse desenvolvimento8:
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Essa tese também aparece no Prefácio à segunda edição do livro “O desenvolvimento do capitalismo na
Rússia” escrito por Lênin em 1907. Ainda sobre essa edição cabe destacar a importância que dá às
divergências com os populistas, substituindo o título do primeiro capítulo de “Referências à Teoria” para
“Os erros Teóricos dos Economistas Populistas”.
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É importante destacarmos a distinção que Lênin faz de Reforma e Revolução Agrária, mantendo os dois
conceitos a partir dos interesses da revolução burguesa com diferentes formas de distribuição das terras,
ou seja, o termo Reforma vinculado à proposta chamada de Prussiana de desenvolvimento agrário
burguês e o termo Revolução vinculado à proposta, chamada por Lênin, de norte−americana de
desenvolvimento agrário burguês.
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A data se refere ao calendário Juliano, usado na Rússia revolucionária. O calendário Juliano é 13 dias
defasado do calendário Gregoriano. Portanto, no calendário Gregoriano, o que usamos atualmente, a
tomada do poder pelos bolcheviques corresponde a 07 de novembro de 1917.
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Neste congresso foi deliberado a formação de um governo provisório operário camponês que foi
denominado Conselho de Comissários do Povo, Lênin foi eleito Presidente desse conselho.
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Sobre a polêmica da Assembleia Constituinte e sua incompatibilidade com o Poder Soviético e a
necessidade de sua dissolução, ver os textos de Lênin “Teses sobre a Assembleia Constituinte” e
“Projecto de decreto sobre a dissolução da Assembleia Constituinte” ambos In: Obras Escolhidas . 2ª
edição. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1982, v.2
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Notícias dos Sovietes de Deputados Camponeses de Toda a Rússia.
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Percebemos então que as novas e velhas relações de trabalho do campo estão sempre
subordinadas às relações de produção capitalista, ou seja, ao capital.
No país encontramos diversas formas de organização e de relações de trabalho
no meio rural, desde os grandes proprietários de terras que compram a força de trabalho
dos não proprietários, os operários rurais, médios e pequenos proprietários, assentados
rurais, passando ainda pelos meeiros, parceiros, até pequenos proprietários que
compram força de trabalho nos períodos de safra e vendem a sua própria nos períodos
de entressafra. Diante desta multiplicidade de relações, devemos procurar entendê-las
em sua singularidade e universalidade, pois se trata de uma realidade determinada
historicamente pelas relações locais, porém, estas, subordinadas sempre aos interesses
gerais do capital.
A composição desigual na ocupação da terra, nas relações de trabalho, na
propriedade e na distribuição e comercialização dos produtos, também se manifestam na
incorporação de novas tecnologias e formas de organização do trabalho. Essa
incorporação não se dá de forma homogênea, mas diversificada e, ao mesmo tempo,
integrada às determinadas necessidades e interesses.
Partimos da tese de que o Brasil já fez sua Reforma Agrária de caráter burguês,
de “tipo prussiana”. Nesse sentido, apontamos para a questão do desenvolvimento
capitalista no Brasil a partir da Revolução de 193014, que traz no seu bojo mudanças das
relações capitalistas no campo, não com a rapidez das urbanas industriais, mas lentas e
graduais e que se aceleraram e consolidaram as relações capitalistas no campo no
regime civil-militar de 1964-1985. Importante destacarmos que foi no regime civil-
militar que o Estatuto da Terra foi promulgado, novembro de 1964, com o objetivo de
acabar com o latifúndio e minifúndio, transformando as propriedades em empresas
rurais e da necessidade de Desenvolvimento Agrícola e da Reforma Agrária. Para
alguns autores, o regime civil-militar abriu mão da segunda em detrimento da primeira,
ou seja, tivemos um desenvolvimento agrícola sem a correspondente mudança na
estrutura fundiária.
Parece-nos que essas análises tomam a distribuição de terras como princípio da
Reforma Agrária burguesa, diferentemente das referências teóricas de Lênin em que o
princípio da Reforma Agrária de caráter burguês são as mudanças das relações de
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Neste momento não vamos entrar no debate sobre a Revolução Política Burguesa no Brasil e a tese
defendida por Décio Saes em seu livro “A formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891)”.
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Brasileira do Agronegócio (ABAG) em 1993, tendo hoje como seu núcleo central
empresas transnacionais como Bunge, Monsanto, Sadia, Abracem, Agroceres.
Deste modo, é o agronegócio que se constitui como o centro do “novo mundo
rural” no Brasil, articulado com pequenas e médias propriedades que abastecem suas
agroindústrias de matérias primas como também são responsáveis pelo abastecimento
de alimentos do mercado interno do país. Isso faz com que o agronegócio se dedique à
produção de exportação, mais lucrativa e com as melhores terras.
A importância das pequenas e médias propriedades, também chamadas de
agricultura familiar, produtora de mercadoria, na conformação do rural brasileiro no
século XXI pode ser ilustrado na passagem da tese de doutoramento de Frederico Daia
Firmiano:
Outro elemento importante desse “Novo Mundo Rural Brasileiro” que aparece
no final do regime civil-militar e início da nova república são os Assentamentos Rurais
da Reforma Agrária.
A opção do regime militar pela manutenção das grandes propriedades, de
desenvolvimento tecnológico e novas formas de organização do trabalho levou grandes
contingentes de trabalhadores a ficarem sem terras para trabalhar e à não ocupação nos
postos de trabalho assalariado. Essas demandas por trabalho e terra vão aparecer nas
pautas de lutas dos trabalhadores no final da década de 70 e início de 80 do século XX.
A pressão dos trabalhadores e a agonia do regime militar levaram os últimos governos
militares e os governos civis, pós-governo de exceção, a optarem pela formação de
assentamentos rurais apenas como forma de resolver pontos de conflitos no campo e
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não como uma nova política de distribuição de terras no país. Então, no que se refere à
questão da Reforma Agrária do Brasil, os governos que se sucederam até hoje
reafirmam a política de Reforma Agrária do regime civil-militar, ou seja, manutenção
do monopólio da terra nas mãos de poucos proprietários e a formação de assentamentos
rurais, para além de resolver conflitos pontuais, também contribuir na produção de
alimentos e se constituírem como locais de reserva de força de trabalho assalariada para
os trabalhos sazonais do campo e do trabalho precarizado nas cidades e no campo.
Todo esse processo também é sinuoso, vulnerável a determinadas conjunturas
políticas, sociais, econômicas como contraditório. Ao mesmo tempo em que os
assentamentos da Reforma Agrária não alteram a estrutura fundiária do país, eles são
resultado da luta dos trabalhadores que ao serem assentados levam suas experiências de
vida, luta e organização política, social e de trabalho. Também há que se ressaltar que os
assentamentos não se constituem apenas em espaços de trabalhos, eles também são
espaços políticos, sociais, educacionais, religiosos, de lazeres etc., ou seja, é um espaço
onde se materializam todas as relações sociais numa comunidade marcada pelas
desigualdades e experiências de lutas.
Certos de que essas são algumas possibilidades de análises e pesquisas da
Questão Fundiária e da Reforma Agrária no Brasil, acreditamos que os escritos de Lênin
e outros clássicos do marxismo, podem nos ajudar a desvelar a complexidade em que se
constituiu esse universo rural brasileiro.
BIBLIOGRAFIA
KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. 3ª edição. São Paulo, Proposta Editorial, 1980.
19
LÊNIN, Vladimir Ilich. Capitalismo e agricultura nos Estados Unidos: novos dados
sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo na agricultura. São Paulo: Editora
Brasil Debates, 1980. (Coleção Alicerces).
LENINE, Vladimir Ilitch. Um passo em frente, dois passos atrás. In: Obras Escolhidas.
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LENINE, Vladimir Ilitch. Resposta às perguntas dos camponeses. In: Obras Escolhidas.
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LENINE, Vladimir Ilitch. Teses sobre a Assembleia Constituinte. In: Obras Escolhidas.
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LENINE, Vladimir Ilitch. VII Conferência (de abril) de toda a Rússia do POSDR (b).
In: Obras Escolhidas. 2ª edição. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1982g, v.2.
20
SILVIA, Ligia Maria Osório. Lenin: a questão agrária na Rússia. Crítica Marxista, São
Paulo, Fundação Editora da UNESP, n.35, 2012, p.111-129.