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O Traficante de Tóxico e seu Regime Penitenciário

I– Verdadeiro flagelo da Humanidade (que lhe move, com assaz de


razão, guerra implacável), o comércio das drogas ilícitas é severamente
punido por todas as legislações penais. Entre nós, está sujeito
o traficante à pena de 5 a 15 anos de reclusão (art. 33 da Lei nº
11.343/2006), a qual, posto já acerbíssima, têm-na todavia muitos
ainda por excessivamente benigna, em comparação da gravidade do
mal que provoca: em certos casos, não menos que a morte.
Alguns povos, por isso, persuadidos de que a propagação das
substâncias entorpecentes entre os jovens era a causa de se lhes
quebrantarem as potências do corpo e do espírito (e contra isso não
há que se diga), reservaram aos mercadores da desgraça castigos da
última rigidez, como o Irã, onde o crime de tráfico de tóxicos é punido
com a pena capital(1).
E parece bem que a sociedade humana, em atitude legítima de
autodefesa, arme-se fortemente contra essa hidra abominável!

II – O legislador pátrio, em prova de seu formal repúdio a essa


oitava praga que não caiu no Egito, equiparou o tráfico ilícito de
entorpecentes aos crimes hediondos (cf. art. 2º da Lei nº 8.072, de
25.7.90), inspirado talvez nos rudimentos do método hipocrático: Para
os males extremos somente são eficazes os remédios intensos.
Contudo, mesmo quando apontasse generosamente no alvo da
incolumidade pública, tal lei, na parte em que prescreveu (para os
diversos tipos delituosos de que trata) o cumprimento integral da pena
em regime fechado, estamos que ofendeu de frente a ordem jurídica. É
que rompeu com os princípios que entendem com a sanção penal.
Juristas houve, com efeito, e esses de autoridade indeclinável,
que não se correram de fulminar censuras à Lei dos Crimes
Hediondos, ou porque a tivessem por inconstitucional, ou porque a
concebera o legislador sob a influência de maus astros.
Assim, quanto ao seu art. 2º, § 1º (“a pena por crime previsto neste
artigo será cumprida integralmente em regime fechado”), não hesitou o Min.
2

Luiz Vicente Cernicchiaro em afirmar: “O comando é, sem dúvida,


inconstitucional”(2), visto não meteu em conta a função social da pena,
vale dizer, “a reinserção do condenado na vida em liberdade” (ibidem). Alberto
Silva Franco, do mesmo passo, em seus preciosos e eruditos
comentários à Lei nº 8.072/90, escreveu estas palavras não menos
verdadeiras que eloquentes: “A opção feita pelo legislador no sentido de
agravar a execução da pena foi, no mínimo, desarrazoada, infeliz. Nada pior,
num estabelecimento penitenciário, do que um condenado sem nenhuma
perspectiva de ser libertado ou, ao menos, de receber regime penitenciário mais
favorável, antes do término de uma pena privativa de liberdade, de longa
duração”(3).

III – Foi, portanto, o princípio mesmo da individualização da pena,


assegurado pela Constituição Federal(4), que a Lei dos Crimes
Hediondos violou, ao negar a cada preso, no momento executório de
sua pena, “as oportunidades e elementos necessários para lograr a sua reinserção
social”(5). Diferentes que são os condenados, a execução de suas penas
não terá, por força, o caráter de homogeneidade; haverá de atender, ao
revés, às condições pessoais de cada um, que nisto precisamente
consiste a individualização da pena.
Pelo que, a despeito da suma hediondez de seu delito, cumpria
não excluir o traficante de entorpecente do benefício da progressão no
regime prisional(6); que isto fora contravir a mandamento expresso de
nossa Carta Magna e juntamente dar em terra com o sonho da
recuperação do infrator, ideal sagrado a que atiram seus esforços e
diligências todos os penitenciaristas(7).
Por fim, em pontos de castigos e penas, vêm a propósito estas
palavras de alto sujeito: Discreta mansidão deve temperar o modo e rigor da
justiça(8).

Notas

(1) Cf. Valdir Sznick, Entorpecentes, 1a. ed., p. 134.


(2) Processo Penal e Constituição Federal, 1993, p. 117.
3

(3) Crimes Hediondos, 2a. ed., p. 111.


(4) “A lei regulará a individualização da pena” (art. 5º, nº XLIV).
(5) Júlio Fabbrini Mirabete, Execução Penal, 5a. ed., p. 56.
(6) É sem dúvida que o crime de tráfico de drogas praticado antes do
advento da Lei nº 8.072, de 25.7.90, não cai sob o disposto em
seu art. 2º, § 1º (que veda a progressão no regime prisional): “A
Lei nº 8.072/90, na parte em que obriga o cumprimento da pena, no seu
todo, em regime fechado, aos condenados por tráfico de tóxicos, sendo de
caráter penal, não pode aplicar-se retroativamente, a dano do agravado”
(TJSP; RA nº 101.543-3; rel. Djalma Lofrano; apud Alberto Silva
Franco, op. cit., p. 123).
Para o crime de tráfico de entorpecentes, da classe dos hediondos,
o regime fechado era de rigor, conforme o preceito do art. 1º, ns. V
e VI, e art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. A Lei nº 11.464, de 28.3.90,
introduziu porém modificação na Lei dos Crimes Hediondos
(Lei nº 8.072/90), possibilitando a progressão no regime
prisional de cumprimento de pena. Se o sentenciado primário
tiver dela descontado já 2/5 — ou 3/5, se reincidente — e
conspiram os mais requisitos legais, fará jus ao benefício (art. 2º,
§ 2º).
(7) “Destina-se a pena a exercer sobre o condenado uma individualizada ação
educativa, no sentido de sua recuperação social” (Manoel Pedro
Pimentel, Prisões Fechadas, Prisões Abertas, 1978, p. 15); “Voltaire, no
seu comentário sobre Beccaria, repete muitas vezes que as penas devem
ser proveitosas: um homem enforcado, diz ele, não serve para nada”
(Jeremias Bentham, Teoria das Penas Legais, p. 34).
(8) Francisco Rodrigues Lobo, Cartas dos Grandes do Mundo, 1934,
p. 2.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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