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Teologia Das Religioes. Rumo A Um Inclus PDF
Teologia Das Religioes. Rumo A Um Inclus PDF
Sinopse
Esta pesquisa trata da complexa e difícil questão da teologia das religiões, com especial
atenção à salvação no mundo pós-moderno, o papel salvífico das religiões não Cristãs, e a
consequente relevância da mensagem cristã no mundo globalizado. Nosso quadro teórico é a
teologia sistemática e a hermenêutica teológica. Apesar de ser uma obra introdutória
(oferecendo uma visão panorâmica das principais teorias envolvidas na discussão), ela
também pretende oferecer soluções para os problemas propostos, seja por fazer delas uma
crítica baseada na Escritura, seja por desenvolver uma teoria bíblica para substituí-las, naquilo
que não estão concordes com o texto bíblico. Nossa conclusão é contra o pluralismo e o
inclusivismo. O pluralismo não é útil prática ou teologicamente falando. Com o objetivo de
tratar todas as religiões como parceiras no mundo globalizado, ela destrói suas
particularidades, esvazia seu discurso e experiência religiosa de um significado soteriológico
factual e com isto nega sua relevância. Contra o inclusivismo institucional, nós usamos
argumentos históricos tentando levar a Igreja de volta aos termos pré-constantinianos.
Buscando nos evangelhos e no NT elementos para a construção de uma teologia bíblica das
religiões, defendendo um tipo de inclusivismo, cujos esforços são para incluir pessoas não
outras instituições. O objetivo desta investigação é criar uma proposta teórica de teologia das
religiões biblicamente fundamentada, que mantenha intacta nossa obrigação de pregar, mas
também o respeito e a consideração pelo outro religioso, não considerando as culturas
inferiores ou sem valor, nem fazendo da pregação uma forma de calar as outras vozes.
3
Abstract
This research deals with the complex matter of Theology of Religions, with special emphasis
upon the salvation in post-modern world and the non Christian religions’ role in this, as well
the importance and relevance of Christian message in a pluralistic world. Our frameworks are
systematic theology and hermeneutic theology. Despite of being an introductory work
(offering a survey of more important theories and methodological concepts), it intend to offer
solution for many of the problems discussed, either for doing a biblical critic of the shown
theories or developing a biblical theory to replace those found not fitting. Our conclusion is
against pluralism and inclusivism in defense of biblical inclusivism. Pluralism is not useful,
practical or theologically speaking, for in order to treat all religions as equal partners in global
world, it dismiss all theirs idiosyncrasies, empts their addressing and experience of factual
meaning and denies their relevance. Against institutional inclusivism, we argue with historical
arguments trying to carry up the Church back into pre-constantinian terms, searching in the
gospels and NT elements for building a biblical theology or religions, defending a kind or
inclusivism which efforts to include people not institutions. The aim of this investigation is a
proposal of a theory for theology of religions biblically grounded, which keep our preaching
obligation, as well the respect and consideration for the religious other, not considering its
culture inferior or valueless, nor making preaching a form of intolerance against other
religious institutions.
4
Sumário
7. Referências.........................................................................................................................291
6
Abreviaturas
AR Approaching religion
Ag. Ap. Against Apion
Ant. Antiguidades Judaicas
ATh Acta theologica
BR Bible Review
BEThS Bulletin of the Evangelical Theological Society
BThT Biblical Theology Bulletin
CBR Currents Biblical Research
CR Cerpit Review
Ciberteologia Revista de Teologia e Cultura
Concilium International Journal of Theology
CTP Cadernos de Teologia Pública
EA Estudio Agustiniano
EAPR East Asian Pastoral Review
EF Educação e Filosofia
EMQ Evangelical Missions Quarterly
ER Ecumenical Review
Études
Guerra Guerra dos Judeus
Horizons
HTR Harvard Theological Review
HTS Hervormde Teologiese Studies
IR An International Review
IRM International Review of Mission
JES Journal of Ecumenical Studies
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
Jeevadhara
JHCS Journal of Hindu-Christian Studies
JTR Journal of Theological Reflection
L&S Letter & Spirit
LS Louvain Studies
Micromega
Missiology An International Review
NIB New Interpreters Bible
NRT Nouvelle Revue Théologique
Numen Revista de Estudos e Pesquisa da Religião
PI Promotio Iustitiae
Ribla Revista de interpretação bíblica latino-americana
RTL Revue Theologique de Louvain
RHPR Revue du Histoire et Philosophie Religieuse
RP Raisons Politiques
RS Religião e Sociedade
ReS Religious Studies
Spiritus
SM Studia Missionalia
ST Selecciones de Teología
ST Scripta Theologica.
Teocomunicação
ThT Theology Today
TC Teología y Cultura
TD Theology Digest
TJ Trinity Journal
TS Theological Studies
TTJ Torch Trinity Journal
TV Teología y Vida
VE Verbum et Ecclesia
Voices
WFI World Faiths Insights
INTRODUÇÃO
advento de Jesus Cristo e de sua pregação – sem esquecer que o próprio AT também vem à
existência como esforço de entender a ação de Deus em Israel; depois, porque esta mesma
interpretação canônica agora dirige um convite aos ouvintes de outros tempos que também
interpretem sua existência à luz do texto. Portanto, temos aí uma cadeia de interpelações
cíclicas em que Deus se manifesta aos homens, chamando-os a conhecê-lo e à sua salvação, e,
por outro lado, cada nova geração também interroga a Palavra em busca da compreensão. Isto
ocorre porque nem o texto que questiona os homens nem estes que são questionados são
entidades genéricas. A Palavra de Deus foi registrada e transmitida por homens santos de
certo lugar e tempo e não primariamente destinada a seus ouvintes atuais. Cada leitor que não
hermenêutico, infelizmente, descendente, num processo dialético, como entendido por Sto.
Agostinho: (crê para compreender e compreende para crer) crede ut intelligas et intellige ut
credas.
Em suma, cada novo tempo faz novas perguntas ao texto bíblico, para que, pelas
seja, esta capacidade de falar a todos os homens, independendo de tempos e lugar (de suas
Entretanto, uma conclusão tão pronta e evidente esconde perigos. Por exemplo, em que
(por causa de sua condição caída e parcialmente destituída da imago Dei) e não da falta de
habilidade contextualizadora dos pregadores. Também pode ser agravada pela rigidez de
considerados todos legítimos. Cada nova questão imposta pelos tempos à Palavra deve ser
examinada pela hermenêutica teológica, para que os homens e as culturas também possam ser
Dentre as novas questões que os tempos nos trazem, queremos destacar em especial
uma referida ao âmago mesmo do Cristianismo, porque lida com sua identidade e seu legado
num contexto onde tais coisas têm sua importância limitada ao âmbito afetual: o mundo pós-
ainda possui uma mensagem sui generis a dar ao mundo, ou, pelo contrário, sua mensagem
religiosa é uma entre outras? Mantida a singularidade, impõe-se nova indagação: como pode o
evangelho relacionar-se com os ensinos das demais religiões sem ofendê-las e sem ofender
Com justa razão diz-se que o problema hermenêutico atual é um “impasse de área”2,
proposto problema. Alguns pensam que a mensagem cristã deve adotar um tom mais ameno e
conciliador, o que significa, por exemplo, considerar legítimos os esforços salvíficos das
2
Michel Barnes. Theology and the dialogue of religions (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), p. 13.
9
outras religiões. Outros creem que fazer isto implicaria tornar imperativo o descarte de todas
E aqui o impasse: não podemos fazer uma coisa ou outra, mas tampouco deixar de fazer
algo. Esta necessidade de contextualização da mensagem cristã nos empurra para uma práxis
que ainda hoje não conta com suficiente iluminação teórica, ainda que tão necessária.
Lidamos com duas demandas igualmente importantes que exigem de teólogos, missiólogos e
homens de todas as eras; por validade, a habilidade de dizer a mesma coisa aos homens de
todas as eras, a saber, que todos pecaram e carecem da glória de Deus (Rm. 3: 23).
Esta não é uma situação inteiramente nova. Sempre que quando mudanças ideológicas
mundo globalizado está revestido de tantas dificuldades que a prudência nos recomenda o uso
da palavra crise. Pois para manter a relevância da mensagem cristã devemos atender a ambas
longe do consenso.
A propósito, há os que preferem ver na questão acima um problema sem solução, que é
bem definido por meio de um oxímoro: ou negamos a essência das Fontes _discurso absoluto
sobre Deus e sobre a condição humana, e isto o evangelho nos proíbe categoricamente; ou
terminantemente. Dito de outra forma: (a) entregamos as Fontes pela rejeição de seu
contemporâneo, então, por este mesmo feito, fazemo-la irrelevante por relativizá-la; ou (b)
não as entregamos e com isto fazemo-la perder de igual modo a relevância por
Nos relatos homéricos há uma passagem que já serviu de ilustração para muitos
discursos e que agora cai-nos como luva. Trata-se da difícil travessia de Ulisses, pelo estreito
de Messina, entre dois rochedos onde viviam duas criaturas monstruosas, cujos nomes eram,
sorvedouro onde desapareciam navios juntamente com suas tripulações; o segundo, ocultava
Este episódio, citado mais de uma vez para ilustrar dilemas difíceis, quando algum tipo
de consequência funesta é inevitável (cabendo, portanto, fazer a opção menos danosa) serve
bem para representar a atual situação do Cristianismo, que, por um lado não pode deixar de
responder à situação na qual está seu ouvinte; por outro, tampouco pode entregar as Fontes.
face ao mundo. (a) Uma exigência empírica: o mundo a que deve dirigir uma mensagem; e (b)
uma demanda teológica: a necessidade de conservar a validade de suas Fontes, que recém
completam três milênios e seis séculos de existência e nunca antes tão questionadas.
adequar-se a seus ouvintes no transcurso das eras que atravessa e das que ainda atravessará até
que todos a tenham ouvido. Nenhum período da história tem sido mais pródigo de tantas
cosmovisões; nenhum, tão repleto de opções ideológicas. Nenhuma delas, entretanto, parece
11
Antes, porém, de seguir nesta direção, faz-se necessário um breve exame de demandas
de outros tempos, que, somadas a esta, formam a matriz cultural atual. Não caímos no estado
atual de paraquedas. O que somos hoje é a soma do que vimos sendo há duzentos anos. Do
cuidadosa. O entendimento dos fenômenos analisados ficaria muito prejudicado não fossem
considerados também fatores que, se hoje não estão mais na ordem do dia, permanecem
produto desta mescla de elementos que não se excluem, mas se completam e se unem para
tornar mais complexa a nossa missão de entender o que está acontecendo ao mundo ao qual
1.a.1.a.Secularismo
obsolescência das instituições religiosas ora em curso no Ocidente. Seu fiat perde-se nos
Ocidente. Há uma expressão weberiana que pretende esclarecer em parte o que nos ocorreu:
exercida pelas instituições religiosas. Esta racionalização, por sua vez, teria sido resultado de
neste ambiente racionalista e dessacralizado são levados a destituir o discurso religioso de sua
12
Francesa, como expressão do repúdio à aliança do alto clero Católico Romano com a nobreza
começa por Martinho Lutero, passa por Kant e termina na crítica textual dos séculos XVIII e
XIX. Na Inglaterra foi produto de uma teologia da prosperidade de que nasceu a Revolução
humano que inclui tanto o mundo natural como o social. É a constituição de um mundo de
significados que serve para legitimar a lei e a ordem societária e dar à sociedade e à vida dos
indivíduos um sentido que ultrapasse o mundo concreto e caótico. Ocorre que em nossos dias
o aspecto mais importante desta cosmificação não ocorre mais por meio do discurso religioso,
3
K. Dobbelaere apud Katarzyna Zielinska. “Concepts of religion in debates on secularization” (AR, volume 3,
no. 1, 2013) , p. 27.
4
Max Weber. A ética protestante e o “espírito” do Capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
13
mas através da linguagem científica5. Parece que a religião perdeu a capacidade de dar uma
visão unificadora da realidade. Os mitos científicos têm para o homem contemporâneo mais
humano e por uma humanização do divino em todas as áreas da vida social: na política, na
filosofia, na literatura, nas ciências e nas artes. A decadência espiritual da Igreja Católica, a
gregos, contam-se entre os principais fatores que levaram a alta sociedade desta época a uma
5
P. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião (São Paulo: Edições Paulinas,
1985), p. 40. Cf. Lestor R. Kurtz. Gods in the global village. The world’s religion in sociological perspective
(Thousand Oaks, CA: Pine Forge Press, 1995).
6
Ibid..
14
não são dadas a especulações teóricas e apenas procuram resolver as crises de suas
7
próprias vidas.
opina que não se trata apenas de a religião ter perdido sua capacidade “nomizante”8, haja vista
não ser mais a principal agência de construção ideológica da sociedade. Sua conclusão é ainda
mais pessimista. Na atual fase da história humana o sistema religioso entra em fase terminal,
havendo perdido sua autonomia em relação aos outros sistemas. O subsistema religioso tende
daqui em diante a ter seu espaço invadido pelos outros subsistemas (política, arte, ciência,
medicina, etc.), os quais lhe subtraem gradativamente as atribuições até que nada mais lhe
reste, senão uma vaga função interpretativa, que melancolicamente se reduz na distinção entre
o absoluto do relativo9, com quase nenhuma aplicação prática. Luhmann está correto, a visão
holística do mundo provida pela religião perdeu-se e foi substituída pela visão atomizada da
ciência. A religião já não consegue reunir em seu discurso toda esta realidade fragmentada do
Mas o Cristianismo não pode assistir sua expulsão da vida do Ocidente de braços
cruzados. Muitos teólogos procuraram dar uma resposta à nova situação cultural e social.
Com este mesmo propósito, desde a segunda metade do século XIX, a teologia Protestante
Hegel, dando nascimento ao que mais tarde ficaria conhecido como Teologia Liberal. O
resultado, infelizmente, não foi ter tornado a mensagem cristã mais aceitável na Alemanha
secularizada, antes expandiu o secularismo para dentro das igrejas protestantes. Mais tarde, na
virada do século XIX para o XX, o fracasso moral e espiritual desta geração de teólogos
tornou-se patente pelo fato de seus mais ilustres membros terem subscrito um vergonhoso
7
P. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião, p. 137.
8
Termo originário da sociologia de E. Durkheim cujo radical é nomos, lei, e quer dizer que a principal função da
sociedade é criar um sentido de ordem e de ética comportamental que biologicamente o ser humano não possui.
A tese de Berger seguindo a sociologia clássica é a de que a religião é a principal força nomizante da sociedade.
9
Roberto Cipriani. Manual de Sociologia da Religião (São Paulo: Paulus, 2007), p. 305.
15
Guerra10.
caminhos da teologia no lugar que os liberais haviam os haviam abandonado: o texto bíblico.
secularizado. A princípio, o que os moveu foi uma atitude profética, instilada pelo socialismo
religioso (Herman Kutter e Christoph Blumhardt). Além disso, houve o influxo da filosofia
cada um adotou sua medida de conciliação com o Iluminismo e seu próprio caminho
teológico.
Uma parte da teologia Católica chamada progressista também tomou para si o mesmo
encargo. Adotando uma perspectiva menos radical, a intenção era a mesma. Aproximar a
pregação da Palavra de Deus dos homens do século XX. Promover a tradução de doutrinas
historicamente sustentadas pelo Catolicismo Romano para uma linguagem supostamente mais
o mundo.
Entre os vários teólogos católicos que seguiram esta linha pode-se citar Edward
contemporâneo estaria sofrendo de “um déficit de experiência”11. Para ele a revelação tem
duas fontes empíricas, a experiência originária dos escritores dos textos bíblicos e a
experiência dos leitores modernos. Portanto, para se desvendar o sentido da Escritura deve-se
10
Rosino Gibelini. A Teologia do século XX (São Paulo: Loyola, 1998), p. 18.
11
E. Schillebeeckx. Jesús, la historia de un viviente (Madrid: Ediciones Cristianidad, 1981), p. 58.
16
fazer uma correlação entre estas duas experiências 12 . Se ela não for feita, como costuma
Cristianismo:
A seu ver, a teologia esquecera que tanto o AT como NT são interpretações: o primeiro,
do Novo Testamento, ou seja, devemos interpretar a Escritura à luz de nossa própria condição
seu tempo como portadora de uma doença teológica que ele chama de calcificação,
endurecimento doutrinal (Fixierung). No século XIX a Igreja Católica estava acuada por
ataques liberais (instilados pelas ideias de J. Locke) contra seus privilégios políticos. Esta
que ficou conhecido pela posteridade como “a era dos Pios”, responsável por várias ações
autoritárias: o Silabus errorum (lista de livros proibidos pela Igreja por conterem ideias
Igreja, etc.
12
E. Schillebeeckx. Jesus and the Christ (New York: Crossroads, 1981), p. 50.
13
E. Schillebeeckx apud Marguerite Abdul-Masih. Edward Schillebeeckx and Hans Frei. A conversation on
method and Christology (Toronto: Canadian Corporations for Studies in Religion, 2001), p. 59.
14
Rosino Gibelini. A teologia do século XX, p. 326.
17
Era uma reação natural a Igreja Romana erguer barreiras teológicas contra o mundo que
a agredia15 e procurasse proteger seu status quo das investidas de setores da sociedade que
desejavam diminuir ainda mais sua participação na vida civil, como viria a ocorrer com a
se isto fosse sua raison d’etre. Deveria apenas tê-las tomado como ponto de partida para
passo atrás. Seu interesse teórico é a pré-condição do homem como ouvinte da Palavra, ou
seja, a investigação sobre o que produz nos humanos a disposição para a escuta da Palavra de
perspectiva antropológica o põe a salvo de cooptações ideológicas que, por exemplo, são
instrumentos teóricos fornecidos pelos conceitos neotomistas de seus colegas não lhe dariam
condições de levar a cabo a tarefa e assim decide substituí-los por ferramentas conceituais
mais adequadas aos novos tempos: Kant, os existencialistas e Heidegger, para assim abordar a
compreensão por um nível mais profundo. Em suma, em hermenêutica “não se trata apenas de
A oclusão semântica da mensagem cristã que vem aqui deplorada também foi
15
Dermot Lane. The Experience of God: An Invitation to do Theology (New York: Paulist Press, 1981), p. 1.
16
Karl Rahner apud Érico J. Hammes. “Conceito e missão da teologia em Karl Rahner” (CTP, Ano 1 . Nº 5,
2004), p. 9.
17
Idem apud ibidem.
18
Rosino Gibelini. Op. cit., p. 226.
18
atualidade:
Não seria apropriado numa nova era, em vez de se estar simplesmente repetindo os
velhos dogmas helenísticos, concentrarmo-nos outra vez na mensagem do Novo
Testamento e interpretá-la de novo para os cristãos contemporâneos, tal como os
teólogos helenistas uma vez corretamente fizeram para seu tempo?19
Para Küng, a era de ouro da hermenêutica bíblica foi o segundo século de nossa era.
Tudo o que se situe antes e depois, será, respectivamente, semitismo ou helenismo, ambos
classificáveis como abordagens dogmáticas das Fontes, haja vista o enorme número de
heresias que estes dois tempos produziram. De fato, a verdadeira abertura para o outro, tendo
como projeto a inclusão religiosa do mundo não cristão, só ocorreria verdadeiramente com a
teologia dos Pais Apologetas (Justino, Irineu e Clemente). Com isto o autor de Ser Cristão já
1.a.1.b. Pós-modernidade
ocupar as páginas da literatura especializada um novo e inquietante desafio surge. Desta vez,
por um excesso de experiência não por falta. Ou seja, a nova dificuldade hermenêutica do
interesse pela espiritualidade retorna em toda sua pujança. É a assim chamada Pós-
modernidade.
19
Hans Küng. Christianity. The religious situation in our time (London: SCM Press, 1995), p. 95.
20
Leszek Kolakowski. “A revanche do sagrado na cultura profana” (RS, Maio (1), 1977), pp. 153-162.
19
É sempre difícil apontar fatores causais nas Ciências Humanas, mas pode-se dizer que a
uma consciência holística que surgiu como reação ao excesso de fragmentação epistemológica
estéticos derivativos; o fim do humanismo, cujo canto de cisne foi J. P. Sartre; o surgimento
modernidade. Contudo, diante de tal massa de fatores, pode-se suspeitar que a Pós-
este modelo produziu repousassem agora numa imensa praia por onde passeiam os
degradar-se ao sol já posto da razão calculadora, sob cujos raios gélidos já estarão
profética de Horkheimer22.
desencadeado pela degradação das instituições criadas quando os grandes Estados nacionais
foram inventados no século XVI. A Igreja teve suas funções reduzidas na nova composição
prerrogativas ideológicas sofreram em Maio de 1968 na França um golpe do qual ainda não se
21
Allain Touraine. Crítica da modernidade (Petrópolis : Vozes, 2002), p. 266.
22
Max Horkheimer. O Conceito de Iluminismo (São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983), p. 109.
20
ideológicos não interessam a mais ninguém. As instituições sociais antes garantes da razão
atirado à nossa frente tem sua explicação filosófica no famoso conceito de Lyotard sobre “o
e ali reproduzir um raciocínio absolutamente isento, capaz de gerar verdades certas, seguras e
indubitáveis encontram seu final quando se percebe que a mera possibilidade de existirem é
uma ilusão.
houvesse ninguém poderia saber, já que ninguém pode pensar sem linguagem).
possíveis dentro de sistemas linguísticos fechados; o erro, idem. Derrida, seguindo o conceito
wittgensteiniano de jogos de linguagem, dirá “não há um fora-do-texto” (Il n’y a pas de hors-
23
Allain Touraine. Crítica da Modernidade, p. 198.
24
As metanarrativas, ou seja, as narrativas das narrativas, e são assim chamadas por terem a pretensão de se
colocarem fora de si mesmas, num plano racional superior, sobre uma plataforma veritativa universal e
transcendental, de onde supostamente poderiam julgar o transcurso da história humana. Cf. Jean-François
Lyotard. La condición postmoderna (Madrid : Ediciones Cátedra, 1987), p. 4.
21
texte), o que significa que “não há nada de real que não seja textuado, construído, simbolizado
e contextuado – interminavelmente”25.
sua capacidade de raciocinar e julgar. Aos homens, portanto, só restam razões menores para
tomar decisões éticas, religiosas e estéticas e mesmo justificar sua existência: razões pessoais,
caminhante solitário rodeando como “um turista o jardim da história, que considera um
depósito de máscaras teatrais que podem ser usadas e abandonas conforme o seu prazer, o seu
gosto, e a sua utilidade” 26 . Apesar da falta de rigor de Lyotard ao falar do fim das
pode ser definida como o naufrágio de um sujeito que sem referenciais já não consegue
Na verdade, a rigor, do ponto de vista epistemológico, não pode nem mesmo ser
considerado um sujeito. Roland Barthes, interpretado além de si mesmo, pode dizer que para
os pós-modernos o homem como sujeito deixa mesmo de existir, nada sendo exceto o que as
máscaras que usa digam que é. A inferência parte da conclusão literária de Barthes sobre a
morte do autor, presente em célebre passagem onde ele interpreta as observações de H. Balzac
sobre a condição feminina ínsitas em Ilusões Perdidas. Segundo sua leitura, elas são apenas
25
Joseph Margolis. Interpretation radical but not unruly . The new puzzle of the arts and history (Berkeley CA:
University of California Press, 1995), p. 172.
26
Rossano Pecoraro. Niilismo e (pós) modernidade: introdução ao“ pensamento fraco” de Gianni Vattimo (Rio
de Janeiro: Editora da Puc, 2005), p. 70.
27
Segundo J. Habermas, Lyotard, ele mesmo, oferece com este argumento uma metanarrativa que pode ser
chamada ironicamente de “a grande narrativa do fim das grandes narrativas”. Habermas chama nossa atenção
para o fato de que o desmascaramento dos críticos da Escola de Frankfurt ou a desconstrução levada a efeito
pelos pós-modernos só seria possível se eles possuíssem um padrão racional transcendental, ou seja, uma teoria
que revelasse as máscaras da ideologia (Richard Rorty. “Habermas, Lyotard e a Pós-modernidade” – Educação e
Filosofia, 4 (8), Jan – Jun – p. 76). Em suma, sendo toda e qualquer teoria imanente a determinado sistema nada
pode dizer sobre as outras a não ser no campo opiniático.
22
as manifestações mais acabadas do espírito de uma época 28 , não podendo mesmo serem
tributadas a Balzac como se ele fosse o autor de observações inteligentes sobre a alma
feminina.
as religiões não têm meios para julgar umas às outras, dado que é impossível sair dos sistemas
religiosos onde cada qual se diz, diz o mundo e diz Deus (não há ninguém capaz de abstrair-se
nelas. Esvai-se a noção de erro, posto que erro só o é dentro de um dado sistema. Como
sem o fio de Ariadne e sem as asas de Ícaro; não sabendo quem é, e muito menos de onde
Como já se pode suspeitar, “a revanche do sagrado” não nos trouxe de volta aos marcos
modernas não tornou as igrejas europeias e norte-americanas mais habilitadas a cobrir o atual
hiato existencial humano. Afinal, o Cristianismo europeu foi partícipe do projeto fracassado
para dar solução aos problemas humanos e que, pelo contrário, só tem causado novos e mais
inquietantes. Não é por este motivo que a maioria das pessoas no Ocidente sente uma
28
Roland Barthes. O rumor da língua (Brasília: Editora Brasiliense, 1988), p. 284.
23
Neste contexto, qualquer atitude religiosa, ética e ideológica mais incisiva será
empirismo lógico, filosofia analítica), não conseguiu estabelecer com absoluta segurança uma
Como consequência, ocorre hoje um ethos onde as religiões e as ideologias são apeadas de
sua metafísica e solicitadas a apresentarem-se apenas como práxis, pela qual passam a ser
julgadas:
É um clima no qual é natural pensar nas religiões como diferentes, mas igualmente
válidos caminhos para a salvação, igualmente válidas respostas ao Real. As
asserções religiosas apenas são verdadeiras no sentido estrito de serem
existencialmente significativas29.
Cristianismo no mundo Ocidental. Se há esta sensação de aceitação, ela não é específica, mas
capacidade cosmificadora da ciência que faz com que os indivíduos busquem supri-la por
religiosidade, portanto, retorna pela porta dos fundos, pois as instituições societárias
permanecem estruturadas como na época da Modernidade, sem dar acesso ao espaço público
29
Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions (Grand
Rapids, MI: Zondervan, 1992), p. 10.
24
principal motivo por o ambiente sociocultural ainda não lhe ser favorável.
Para contrastar, basta observar como fora do Ocidente o discurso da ciência e suas
conquistas tecnológicas não tiveram e nem têm os mesmos efeitos devastadores sobre as
ciência e não se sentem ameaçados por ela, porque aí a religião ocupa um espaço fundamental
na vida societária, sua função nomizante permanece intacta. Ela cria uma estrutura de
mundo não tem mais base epistemológica do que a religiosa. Se ela domina o Ocidente hoje é
porque as pessoas vivem em um ambiente onde Deus, religião, fé, são assuntos-tabu, seja por
não serem consideradas informações relevantes, seja porque, simplesmente, delas as pessoas
não tomam conhecimento por não estarem disponíveis. É uma questão de práxis. Tornar algo
acessível, ou seja, introduzi-lo no espaço público, aumenta a possibilidade de tal coisa ser
usada, por que, geralmente, as ações humanas na maior parte das vezes estão baseadas na
imitação. Basta observar como a taxa de tabagismo cai nos países onde a propaganda do
A maior parte do que ‘sabemos’ nós o tomamos por sabido baseados na autoridade
dos outros, e é somente se os outros continuarem a confirmar este ‘conhecimento’
que ele permanecerá plausível para nós. É tal social compartilhamento,
‘conhecimento’ socialmente tomado por óbvio, que nos permite mover-nos com
alguma de confiança através da vida diária31.
30
Johann B. Metz. Passion for God. The mystical-political dimension of Christianity, J. Matthew Ashley (trad.)
(Mahwah, NJ: Paulist Press, 1997).
31
Peter Berger. A rumor of angels. Modern society and the rediscovery of the supernatural (New York:
Doubleday & Company, 1970), p. 19.
25
1.a.1.c.Globalização
Outro fator que favorece o ambiente relativista atual é a Globalização, pois por meio
dela torna-se mais evidente a diversidade cultural e religiosa do planeta. As ondas migratórias
culturas e as religiões. Não por acaso, Os Estados Unidos, a nação mais rica do mundo, “tem
depois do boom econômico dos anos 90 também se tornou importante destino de levas de
imigrantes. A França recebe sem acolher os mulçumanos oriundos de sua antiga colônia. A
homens de negócios, aventureiros, etc. Aquelas outras religiões que sabíamos existir em
algum lugar remoto do mundo, põe agora sua cara em nossa janela, dispensando
apresentações e discursos introdutórios. Além disso, na ‘aldeia global’ também é possível ter
acesso direto às religiões pela internet, conhecendo seus ritos, sua espiritualidade, seus
palavras de Hans Küng resumem bem a atual situação: “pela primeira vez na história é
impossível para qualquer religião existir em esplêndido isolamento, ignorando as demais” 33.
As teorias interpretativas que até pouco tempo ajudavam o Ocidente a entender o legado
cristão no contexto religioso mundial perderam sua utilidade. In nuce já estavam equivocadas,
porque nasceram não com a intenção de compreender, mas de reduzir, de combater e dominar.
32
Diana Eck. A new religious America: How a Christian country has become the world most religiously diverse
nation (New York: Harpercollins, 2001), pp. 4-5.
33
Hans Küng. Ser Cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976), p. 89.
26
Hoje deixam de exercer qualquer atração sobre as pessoas, porque o que elas querem é
conhecer e compreender aqueles que não adoram como elas e são seus vizinhos.
por estas inquietantes constatações: (a) uma ampliação do horizonte histórico e (b) uma
ampliação do horizonte geográfico, decorridas principalmente no século XX, que fizeram com
perdesse sentido34.
(a) A ampliação histórica. O Ocidente descobriu que antes que nascessem os profetas
bíblicos já havia civilizações inteiras florescendo na Ásia, com cultura, tecnologia e religiões
civilização”35, num período que se estende do oitavo ao segundo século a. C.. Chamado por
K. Japers de “era axial”36 este período foi testemunha do nascimento das mais importantes
suas mensagens, operando uma verdadeira revolução no universo simbólico das grandes
civilizações” 37 . Uma explosão criativa sobre o sagrado que muitos estudiosos atribuem à
34
Andrés T. Queiruga. O diálogo das religiões (São Paulo: Paulus, 1997), p. 13.
35
Henrique C. de Lima Vaz. Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura (São Paulo: Edições Loyola, 1997), p.
202.
36
Apud Karen Armstrong. Uma história de Deus. Quatro milênios em busca do Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), p. 43.
37
Henrique C. de Lima Vaz, Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura, p. 202.
27
e simultaneamente menor, onde as diferenças tendem a ser absorvidas por um processo que
envolve vários fatores. O transporte aéreo torna hoje possível que milhões se movimentem de
um extremo ao outro do globo em algumas horas, permitindo que nós ocidentais vejamos
rostos recém emersos de um contexto cultural bem diferente do nosso do modo como são,
sem retoques. As redes sociais tornam a realidade social conhecida sem a interferência
De outra parte, grandes megalópoles como Mubai, São Paulo – Rio (São Paulo, Rio de
de cidades, mas também como conglomerados dos subúrbios que existem entre elas; enfim,
lugares onde a distinção entre o rural e o urbano desaparece, o que os torna lugares mais
urbanos. Los Angeles, talvez a cidade mais cosmopolita do mundo, conta entre seus 18
Thaitown. O resultado prático disto é que não é preciso mais ir às Filipinas para conhecer o
referentes às populações não cristãs. Hoje é inegável, por exemplo, o fato de estas tradições
serem portadoras de uma sabedoria milenar que rivaliza com a ciência Ocidental (a medicina,
sob a rubrica do Idealismo alemão (von Harnack, Troeltscht, Ritschil, Herrmann)38, perdeu
muito de sua persuasão depois que se descobriu que a assim chamada “regra de ouro” dos
evangelhos, considerada marca singular da ética cristã – “faze aos outros aquilo que queres
mundiais 39 . Enfim, há nas religiões uma sabedoria incompatível com o lugar acanhado
1.a.1.d.Mundialização do Cristianismo
A atual situação do Ocidente inundado por tantos ritos e crenças não significa,
em outros terrenos fora da Europa. Dois terços dos cristãos hoje vivem em países da Ásia,
África e América do Sul e é nestes países que o Cristianismo hoje enfrenta seus maiores
desafios missiológicos. É aí onde o encontro dos Cristãos com as religiões mundiais ocorre
mais inquietantemente.
38
Rosino Gibellini. A teologia do século XX , p. 19.
39
Mahabharata: Shanti parva CCLX21: “que nenhum homem cometa contra o outro, ato que não gostaria fosse
cometido contra si mesmo”. Analectus de Confúcio, livro 12:2: “não faças aos outros o que você não quer que
façam com você. Udanavarga budista, v. 18: “não machuque os outros com algo que dói em você”. Andrew
Wilson (org.). World Scripture. A comparative anthology of sacred texts (New York: International Religious
Foundation/Paragon House Publishers, 1991.
40
Raimon Panikkar. “The pluralism of truth” (WFI, no. 26, 1990), p. 7.
29
século, o que permite que alguns se refiram a ela como um processo de “descristianização” da
cristãos experimentam uma expansão sem precedentes, que nem os mais otimistas
crescimento que começou com 60 milhões no fim da década de 80, pulou para 330 milhões
em 1998 e em 2000 já atingia o patamar de 350 milhões43. Hoje, já há mais cristãos na África
do que adeptos do Animismo, sua religião original (existem por volta de 300 milhões de
animistas na África atualmente)44. E quando a Europa ameaça ser totalmente coberta pela
bandeira verde do crescente, quem enche as igrejas vazias europeias são cristãos étnicos
originários da África Central. “A grande Paris tem 250 igrejas étnicas protestantes, a maior
41
Phillip Jenkins. God’s continent: Christianity, Islam and Europe’s religious crisis (Oxford: Oxford University
Press, 2005).
42
David Barret, George Kurian and Todd Johnson. World Christian Encyclopedia: a comparative survey of
churches and religions in modern world (New York: Oxford University Press, 2001), p. 15.
43
Lamin Sanneh. Whose religion is Christianity? The gospel beyond the West (Grand Rapids, MI: Wm. B.
Eerdmans, 2003), pp. 14-15.
44
Chad Meister. Introducing Philosophy of religion (London/New York: Routledge, 2009), p. 6.
45
Phillip Jenkins. God’s continent: Christianity, Islam and Europe’s religious crisis, p. 94.
30
Na Ásia a mensagem cristã também se expande com grande velocidade. Há países quase
completamente cristianizados como é o caso das Filipinas. Entre os que estão sendo
evangelizados mais recentemente, está a China. Embora não haja dados confiáveis sobre a
China (leis locais proíbem o proselitismo), sabe-se que os cristãos já se contam aos milhões
neste país. Os dados oficiais do governo chinês somente levam em conta as congregações
regularmente estabelecidas, por isso os dados oficiais que tendem a subestimar a taxa de
crescimento do Cristianismo bem como o número total de seus adeptos, em 2006 havia 21
Fontes extraoficiais, entretanto, apontam para números bem mais realistas, algo por volta de
mais de cem anos de história as igrejas coreanas tem atingido notável crescimento em número
e força. As megaigrejas coreanas redefiniram o significado da palavra mega para muito além
tamanho entre 8 mil (Yodo Full Gospel Church) e 30 mil membros (Sung Rar Baptist
com um fervor missionário que não arrefece. De 1995 para cá o Catolicismo os Pentecostais
46
Lian Jiang. Visiting parents from China: their conversion experiences in America and contribution to
Christianity at home (tese de doutoramento, Faculty of Bright Divinity School, 2006), p. 50.
47
Mark Mullins. “The Empire strikes back. Korean Pentecostal mission to Japan”. In Karla Powe (ed.).
Charismatic Christianty as a global culture (Columbia SC: University of South Carolina Press, 1994), p. 88.
48
Ibid., pp. 89 e 90.
49
Han Soo Park. A study of missional structures for the Korean church for its postmodern context (An Harbor
MI: Umi dissertation publishing, 2008), p. 42.
31
como é o caso da igreja Católica de rito siríaco. Outras chegaram ao final do século XIX com
(Adventistas do Sétimo Dia e outros Independentes). Porém, apesar desta história milenar, O
milhões de seguidores, o que significa 2.3 % da população total do país50, estando a grande
maioria da população ainda sob a lealdade do Hinduísmo. Ou seja, isto significa dizer que os
cristãos são minoria e que nem mesmo nas províncias mais expressivamente cristãos (Kerala)
experimentem um crescimento vigoroso por que os números oscilam em volta desta taxa, para
face aos perigos que se escondem por atrás de pressões por um crescimento mais rápido:
sincretismos, heresias, faccionismos, etc.. Esta teorização vem sendo chamada de teologia das
missões e pretende justamente lidar com três aspectos da evangelização que necessitam ser
de seus ouvintes, tendendo a descurar do texto bíblico, quando quer que haja grandes
dificuldades transculturais.
Quanto a isto, um dos ocorridos mais sérios do mundo das missões dá-se na Coreia do
Sul. Relatos dão conta de que igrejas pentecostais estão sofrendo influências litúrgicas e
50
Wikipedia, verbete: Christians in India (Government of India, Ministry of Home Affairs, Census
commissions, Census 2001).
51
Leonard Fernando e G. Gilpert Sauch. Christianity in India. Two Thousand years of faith (New Delhi:
Penguins Book India, 2004), xiii.
52
Charles R. van Engen. What is theology of missions (TC, ano 1, vol. 1, Ago, 2004), p. 45.
32
pastores emulando o papel dos xamãs coreanos, especialmente no que diz respeito às curas
espirituais:
Andrew Walls escreve sobre a necessidade de teologizar todas as vezes que são
situações que lhe colocam novas questões intelectuais antes não consideradas 54 . Esta
evangelística no mundo, ainda que com inovação doutrinal motivada por necessidades locais,
53
Ibid., p. 92.
54
Andrew Walls. “The rise of global theologies”. In Jeffrey P. Greeman e Gene L. Green. Global Theology in
evangelical perspective. Exploring the contextual nature of Theology and mission (Downers Grove, IL:
Intervarsity Press, 2012), p. 20.
55
“International Congress on World Evangelization in Lausanne (1974); Willowbank Consultation on Gospel
and Culture (1978); International consultation on Simple Lifestyle (1980); Pattaya Consultation on World
Evangelization (1980); International Consultation on the Relationship between Evangelism and Social
Responsibility (1982); International Conferences for Itinerant Evangelists (1983, 1986); Lausanne II in Manila
(1989); Theological Commission’s Consultation on the Unique Christ in our Pluralist World, Manila (1992);
Mission Commission’s Iguassu Missiological Consultation; Forum for World Evangelization, Pattaya (2004).
(Lamin Sanneh. Whose religion is Christianity?, p. 25-26).
33
pelas Igrejas mães, e tudo o que as mais novas deviam fazer era continuar
proclamando a mesma mensagem56.
Não podemos esquecer que nem todas as demandas locais devem ser satisfeitas, pois
por trás delas, segundo as Escrituras, há uma humanidade caída, propendente ao mal e ao
pecado. Como já foi afirmado no início desta investigação, cabe à Teologia analisar a
legitimidade das demandas para que o evangelho não caia em armadilhas ideológicas, como já
Neoplatonismo como quadro ideológico por meio do qual a mensagem cristã passou a ser
Gnosticismo.
Deve-se discernir entre o transitório e o eterno, o que significa entender que muitas
necessidades das massas forem as únicas guias dos pregadores. O que inicialmente poderia ser
se vê. Em suma, as relações dos homens entre si e em relação a Deus distorcidas pela
marcado por uma atitude opressora em relação às religiões e às suas diversas não autorizadas
56
Justo Gonzales. Mañana. Christian Theology from Hispanic perspective (Nashville, TS: Abingdon, 1990), p.
49.
34
mutações domésticas. Inúmeras vezes esta opressão se traduziu em violência e morte daqueles
que não praticavam a doutrina hegemônica e isto hoje depõe contra os Cristãos, fazendo com
que um sentimento de desconforto ante os fatos leve muitos líderes cristãos a considerarem o
das fronteiras do império romano, de forma mais ou menos pacífica. Os romanos controlavam
modalidades religiosas até que veio a se tornar a religião oficial do império a partir de
Constantino e seus herdeiros a partir dele, no quarto século. Foi daí para frente que começou
Oriente próximo e na Europa, no período conhecido como o das Cruzadas, em que houve
que coincidiu com o florescimento tecnológico e cultural sem precedentes. Com o poder
mudando para a mão dos cristãos na Ibéria, depois da expulsão dos mouros, começa um
processo de perseguição dos Judeus que só acaba com sua expulsão de Espanha e Portugal
Este espírito intolerante não foi, contudo, monopólio de Católicos. O século XVI
Muntzen), lideradas ou pelo menos subvencionadas pelo silêncio dos reformadores e outras
autoridades religiosas importantes. Até que o espírito intolerante crescente desencadeou uma
hecatombe sangrenta que custou a vida de milhões de Católicos e Protestantes na Guerra dos
Trinta Anos.
Ainda no século XVI, nas Américas, uma das histórias mais infamantes reputada ao
milhões de seres humanos, pelo único fato de não serem cristãos e viverem de forma
diferente. Sabe-se que a difamação simbólica destes povos, foi não poucas vezes injustificada
sustentadas não por iniciativa de Cristãos, o convívio do Cristianismo com outras religiões
tendo sido violento, deixando genocídios e/ou etnocídios no rastro de sua passagem, provoca-
nos hoje com a pergunta: até que ponto o projeto ‘civilizatório’ desses cristãos é tributário das
e violento na mensagem cristã, que nos obrigaria hoje a nos repensar como Cristãos?
plurirreligioso e sua suposta pré-condição para um novo balizamento nas relações inter-
57
Cf. Tzvetan Todorov. The conquest of America. The question of the other (New York: Harper Collins, 1999).
36
do que nos foi confiado: as Fontes Cristãs (I Co 4: 1 e 2), apesar das pressões ideológicas em
contrário.
Esta não é a primeira vez que isto ocorre. A Igreja Pré-constantiniana viveu diante do
desafio do mundo greco-romano por pelo menos dois séculos e sobreviveu sem fazer
concessões doutrinárias, ainda que pressionada por ideologias tão poderosas quanto as
existentes hoje, como é o caso do Neoplatonismo. Embora neste tempo tenha havido muitos
desvios da ortodoxia, a maioria das igrejas cristãs guardou o depósito da fé, sem com isto,
necessariamente, ter voltado as costas para o mundo. O modo como as igrejas venceram este
tempo de crise foi a definição mais precisa do que era e do que não era canônico com respeito
às tradições cristãs existentes. É evidente que a decisão dos bispos fosse necessária para evitar
Em segundo lugar, embora se fale aqui de tradição (parênesis), conservar as fontes não
é tarefa museológica, destinada a uma idolatria da letra, uma grafolatria. Significa antes
rechaçar quaisquer tentativas de destruir a essência da Palavra de Deus, ou seja, aquilo que
seu próprio nome indica que ela é. Em nosso contexto, significa, diante do atual processo de
esvaziamento de seu significado salvífico, reafirmar sua relevância como agência especial de
Deus para a salvação de todos os homens. Significará isto etnocentrismo destrutivo, como os
outras culturas, deve-se responder com outra pergunta: não seria a mesma pretensão nos
outros igualmente violenta contra Cristãos? Ademais, estes teóricos parecem ter como
37
americana das missões do século XIX, ambas levadas a reboque por um poderio político-
tolerada na Europa secularizada e pós-moderna. Uma Igreja que, longe de querer converter
todo o mundo à sua verdade, quer apenas liberdade para cumprir o mandado divino de pregar
considerar que a realidade não é um simples campo visual a ser conhecido e explorado com as
ferramentas de uma epistemologia realista; ela precisa ser interpretada e não meramente
conhecida. Os livros sagrados das religiões são os intérpretes por excelência desta realidade,
especialmente daquilo que nela há de mais profundo. Eles tratam do solo metafísico que a
sustenta, a saber, o mundo, a condição humana, o absoluto divino. Portanto, todas as religiões
se presumem portadoras de uma verdade inconteste e absoluta sobre estas coisas, posto que se
Este quadro conceitual amplo, que mescla doutrinas religiosas e epistemológicas torna
impossível uma conciliação entre as religiões mundiais sem a devida consideração de seus
textos sagrados. Ou, como querem outros, que, com a finalidade de possibilitar o diálogo
inter-religioso, seja retirado o absoluto desta equação religiosa, pela relativização do discurso
das religiões. Não é possível o descarte das Escrituras. Toda a metafísica que se sustenta sobre
o solo escriturístico viraria poeira se esta operação se realizasse e a própria religião se tornaria
Ora, se se há de manter a Escritura, resta saber como seria possível conciliar estas duas
teológica é o lugar onde estas duas demandas se encontram para serem examinadas em sua
relação dialética.
A nosso ver o campo da hermenêutica teológica assenta-se sobre três fundamentos: (a) a
revelação divina, (b) a linguagem pela qual é expressa a experiência revelacional, e (c) a
crentes e teólogos. Quanto à revelação, ‘a nosso ver’ não é mera figura de retórica, porque
nada tem sido tão debatido quanto a questão: qual é o ponto de partida da revelação?
Dificilmente dois teóricos que pensarão da mesma maneira Há os que prefiram começar pela
muitos outros58. Para Tillich a experiência é apenas o meio, mas não é a fonte da revelação59,
no que está certo. Contudo, em vez de dizer que a fonte é Deus, afirma que ela ocorre no
Alguém que fala e se manifesta em um Ser que é a base da realidade e a fonte do sentimento
do divino, e a Escritura perde sua dimensão assertiva, passando a ser apenas uma coletânea de
símbolos a qual recorrem os homens quando suas perguntas filosóficas ficam sem resposta e
perde sua relevância porque pode se fazer teologia tomando como escopo unicamente a
cultura (método correlacional)60. É inegável que a Bíblia tenha uma dimensão simbólica que
em muitos casos a aproxima das religiões mundiais, mas reduzi-la a isto seria mutilá-la.
Como se pode perceber entre Schillebeeckx e Tillich não há contraposição. Eles apenas
representam dois grupos que adotam métodos diferentes para atingir o mesmo objetivo: a
58
Peter Hodgson. Winds of Spirit. A constructive Christian Theology (Louisville, KT: Westminster John Knox
Press, 1994), p. 13.
59
Paul Tillich. Systematic theology (Chicago: University of Chicago Press, 1953), vol. 1: 59-66; vol. 2: 14.
60
Paul Tillich. Systematic theology, vol. 1: 22-28.
39
que despreza o aspecto factual da Escritura em nome de uma essência religiosa compartilhada
por todas as religiões. Os seguidores de Schillebeeckx, que reforçam o princípio (c), tendo por
religiosa, cuja essência é identificada por um aporte filosófico não doutrinário, mas descritivo.
Neste tipo de análise a experiência religiosa tem como resultado uma espécie de síntese das
estruturais. O exemplo mais famoso deste tipo de abordagem é a obra de Rudolf Otto, O
sagrado, onde seu autor toma a Escritura como manual de exemplos das essências religiosas,
porque os que as experimentam são todos seres humanos com estrutura biopsicossocial
parecida. Contudo, é preciso também levar em conta as profundas diferenças que as separam,
ao divino, o certo e o errado nas práticas sagradas e profanas, os agentes espirituais e sua
forma de atuar no mundo; enfim, a própria maneira de ver a realidade e a vida. A experiência
religiosa não se forma no vácuo intencional fenomenológico. Pelo contrário, o texto sagrado
61
L. Peacore. “Theology of experience” in William Dyrness and Veli-Matti Kärkkäinen. Global Dictionary. A
resource for the worldwide Church (Downers Grove, IL/ Nottingham, UK: InterVarsity Press, 2008), p. 307.
40
conforma as disposições do adorador num padrão religioso específico, desde que normatiza a
experiência do sagrado no âmbito de uma cultura religiosa presente no texto sagrado. Isto vale
também para as experiências fundantes, pois estas também foram normatizadas por uma
tradição oral.
revelação, arrependimento, verdade, etc., no Cristianismo são constituídas a partir dos textos
sagrados que as definem, sendo óbvios os limites de uma Fenomenologia da Religião neste
análise ampla do significado de símbolos religiosos já existentes; não pode recuar rumo a uma
anterior a qualquer tematização. Os símbolos religiosos são onde tudo começa, o que há de
mais fundamental linguagem humana. Para lá deles só há o silêncio, porque é com eles que
nasce o pensamento humano. Quando um objeto é separado de sua existência concreta, onde
se encontra mesclado com a massa informe de outros objetos, é que nasce a linguagem. O
Poder-se-ia dizer que não foi esta união (do carvalho com o ser humano) que deu
origem a estes ritos, mas, em certo sentido, sua separação. Porque o despertar do
intelecto ocorre com a separação do solo original, a base original da vida (A origem
da escolha). A forma do despertar do espírito é a veneração de objetos62.
Com os símbolos nasce o pensamento, com eles também nasce o ser que os interpreta.
De modo que a própria subjetividade humana de certo modo deles depende, como
humana como estrutura trinitária63. Em nosso século, graças à Psicologia Analítica de Jung,
62
Ludwig Wittgenstein. Remarks on Frazer's Golden Bough. In C. G. Luckhardt. Wittgenstein, Sources and
Perspectives (Ithaca NY, Cornell University Press, 1979), p. 73.
63
Sto. Agostinho . De Trinitate, (Roma, Cittá Nuova Editrice, 1987), IX, ii, 2; IX, x, 15.
41
nos arquétipos religiosos, que combinados com outros aspectos da vida psicológica formam
Contudo, identificar suas semelhanças não significa provar que não haja diferenças entre elas.
percepção da importância socializadora da religião, por meio de seus ritos e mitos, para a
definição do homem em suas mais diversas instâncias históricas e geográficas. Para Auguste
Comte, por exemplo, a religião é a principal agência socializadora65. Segundo Durkheim, são
três as funções sociais primordiais da religião: (a) a coesão social – a religião ajuda a manter a
sua interpretação são os fundamentos deste complexo psicossocial que chamados de religião.
Conforme Peter Berger, eles compõem o dossel sagrado que protege a frágil estrutura social
Apesar de todos os aportes das Ciências da Religião e sem menosprezar todas as luzes
que foram projetadas sobre os fenômenos religiosos por estas disciplinas, a conclusão
limitações. Em nossa opinião nenhuma dessas disciplinas têm completo sucesso ao tentar
subtrair dos fenômenos que estudam os elementos doutrinários de que são compostas as
64
John Cothingham. The spiritual dimension. Religion, philosophy, and human value (Cambridge: Cambridge
University Press, 2005), p. 70.
65
Roberto Cipriani. Manual de sociologia da religião, p. 47.
66
Émille Durkheim. Formas elementares da vida religiosa (São Paulo: Martins Fontes, 2003).
42
mediante unicamente Jesus, de Juízo, de restauração de todas as coisas, não podem ser
uma questão menor, ligada a questões doutrinárias que devem ser desprezadas em favor de
sua essência comum. Os Cristãos não podem, assim sem mais, deixar de levar em conta o
autoritativa, de veículo da revelação divina. Em se tratando do NT, o cerne das disputas sobre
o diálogo inter-religioso, segundo esta concepção, tem prioridade apenas cronológica. Ela é a
testemunha do esforço interpretativo dos cristãos para entender o evento crístico, que tiveram
o mesmo objetivo que temos ao ler sua história: tentar identificar o sentido mais profundo da
67
“Aqui não é o lugar de definir as características típicas de todas as religiões. Mas pode ser útil ilustrar por
exemplos os princípios expostos. Eis aí algumas delas: os antigos egípcios foram fascinados pelo mistério da
morte; todos os restos de sua civilização testemunham sobre esta intensa preocupação com a vida absoluta que
surge depois da morte. Os gregos se confrontam com o problema da relação entre a forma e a vida criadora.
Amaram um estilo grave e belo na arte, no comportamento, na filosofia, a loucura sagrada que rompe com todas
as formas e que conduz o homem por trilhas estranhas. Os romanos apreciaram o valor do direito, no respeito
profundo pelos ‘numina’, eles seguiam prescrições determinadas para estar de acordo com as regras no culto, na
vida social e na conduta pessoal. A sabedoria dos antigos chineses era viver em harmonia com a ordem do
universo, o caminho, o grande Tao. O Judaísmo é caracterizado por um temor sagrado diante de Deus, sua
santidade, um sentimento que anima o culto e a vida corriqueira. O Islã tira seu nome de uma total obediência de
seus adeptos a Alá” (C. J. Bleeker. The Sacred bridge – Leiden: E. J. Brill, 1963, p. 34).
43
vida, morte e da mensagem de Jesus. Vários teólogos católicos (mais a frente tratados
pormenorizadamente) ligam-se a esta corrente, inclusive o autor da citação que se segue, Juan
Luis Segundo:
O Novo Testamento é um exemplo paradigmático disso, posto que seus escritos são
outras tantas interpretações que se apresentam como diferentes e fieis ao mesmo
tempo. E que, enquanto tais, lançam-se em assalto, por assim dizer, do espírito e do
sentido de Jesus de Nazaré, para tornar válida a transposição dos valores e o
significado daquela existência vivida em outro contexto e frente a outras questões68.
Ainda seguindo o fio das ideias de J. L. Segundo, os evangelhos não são uma história de
Jesus, são apenas interpretações desta história por dois precípuos motivos: (1) interpretação
do evento crístico à luz das profecias do Antigo Testamento e (2) interpretação no sentido de
tradução de uma mentalidade religiosa semítica para uma concepção helenística que
Em suma, aquilo que julgávamos ser os relatos mais confiáveis tem a marca da
hermenêutica (o que não chega a ser um incômodo para quem não idolatra os fatos), são
interpretações da história de Jesus. Contudo, não podemos deixar de perguntar: onde está a
história de Jesus? A resposta pode não ser fácil, mas nunca será dispensável. É inegável que
os evangelhos não sejam biografias de Jesus, mas também não são teologias, na acepção
mas como são vários e convergentes sua dimensão factual não pode ser anulada em favor de
teologia Católica, do ponto de vista protestante é questionável, mas ainda é mais o fato de esta
68
Juan Luis Segundo. La historia perdida y recuperada de Jesús de Nazaret. De los Sinópticos a Pablo
(Santander: Editorial Sal Terrae, 1991), pp. 371 e 372.
69
Ibid., p. 646.
44
ampliação estar ligada a uma deflação do texto bíblico, com sua metamorfose em meras
quando os tempos e os leitores forem outros. Digam o que quiserem os defensores deste
teologia. De acordo com estas teorias fica difícil responder por que os textos gnósticos não
não coincide com o de Escritura Sagrada, pois passa a ser entendida como testemunha parcial
escatológica71. Isto significa que o texto dos evangelhos pertence à ordem do transitório e do
superável e, portanto, requer uma constante atualização de sua mensagem, não tendo ainda
chegado o tempo da consumação. O próprio Jesus, proclamado Cristo pela comunidade cristã
primitiva, possui uma dimensão histórica e humana que não esgota todas as possibilidades
revelacionais do Logos eterno. Portanto, faz parte da experiência cristã do sagrado a busca de
experiência religiosa humana, que exige a interpretação das Escrituras também à luz do
religioso não cristão, à medida que este seja identificado com o humano na sua acepção mais
De forma diferente o que todos dizem é que as dimensões histórica e textual dos relatos
bíblicos não são mais os referenciais hermenêuticos preferenciais. O sentido do texto não é
70
John D. Crossan. O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo (Rio de Janeiro: Imago, 1994); The
birth of Christianity (San Francisco/New York: Harper, 1998).
71
Claude Geffré. Le Christianisme au risque de l’interprétation (Paris: Cerf, 1988), p. 20.
72
Claude Geffré. De Babel à Pentecôte : Essais de théologie interreligieuse (Paris: Cerf, 2006), p. 32.
73
Claude Geffré. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da Teologia (Petrópolis: Vozes, 2004), p. 148.
45
mais fornecido pela relação do texto com seu contexto histórico, como na hermenêutica
Hermenêutica por influência dos mestres da suspeita (K. Marx, S. Freud e F. Nietzsche) o
intérprete deve aprender a ler o Texto Sagrado, como se este fosse um tabuleiro de pirulito
com um espelho perpassado do outro lado. Nada aí pode prendê-lo exceto o que veja em sua
autointerpretação do intérprete e do mundo que o rodeia. Nos lugares onde o texto não é
A conclusão nos parece óbvia. Seguindo esta ‘nova’ hermenêutica, ao o leitor tentar se
livrar do conteúdo ideológico do texto bíblico é então que ele se torna presa fácil de uma
leitura ideológica da Palavra, pois de acordo com a própria epistemologia Pós-moderna que
lhe serve de base, não será capaz de uma metaleitura de si mesmo e de seu mundo, ele não
pode colocar-se num fora. De outra sorte, ficará paralisado diante do texto, não podendo
resistir às ideologias a que está sujeito, restando-lhe apenas a dissolução de sua própria
Bíblica se interpreta a si mesma e é ela mesma que aponta o princípio hermenêutico maior: a
revelação de Jesus Cristo. Quanto a serem fidedignas as Fontes pelas quais temos acesso a
Deste grupo fazem parte todos os que preferem conservar o depósito da fé (inclusive a
presente investigação), buscando nele as bases para o diálogo e para a convivência inter-
46
religiosa num novo ambiente globalizado. Assim, mantido o conteúdo normativo do NT,
especialmente os ensinos do Senhor Jesus, busca-se dar uma resposta às questões postas pelos
Scriptura, sola fides et sola gratia. Com a diferença de se enfrentar um problema novo e se
contar com ferramentas teóricas (históricas e textuais) com as quais não contavam os
hermenêutico acima.
Não gostaríamos de nos delongar neste lugar para não repetir o que aqui seria dito
quando chegar o momento de detalhar o que neste lugar está sugerido, ou seja, no fechamento
1.b.1. Introdução
XX toma hoje proporções de uma tarefa hermenêutica maior, que não cabe mais na mera
religiões não cristãs requer a criação de uma nova disciplina teológica, que doravante fica
designada como Teologia das Religiões, disciplina da subárea da Apologética, que nasce da
salvíficas das religiões. De acordo com Dupuis a Teologia das Religiões ganhou status
obra de V. Bonblik, Teologia delle Religioni74. Ela ganha este status por causa do alto grau de
74
Apud Michel Barns. Theology and the dialogue of religions, p. 7.
47
Como consequência, fala-se hoje de Teologia das Religiões como há algumas décadas
falava-se de Religiões Comparadas, ou seja, como uma disciplina teológica e autônoma. Não
mais estudada no capítulo da doutrina da salvação, em que era especulada a condição salvífica
dos que nunca ouviram a pregação do evangelho, ou ocupada meramente com a justaposição
comparativa de doutrinas, credos religiosos e suas possíveis origens históricas e sociais, como
Mas, afinal, como é definida hoje esta nova disciplina por teólogos e filósofos da
religião? Algumas proposições são feitas, a seguinte é uma das mais esclarecedoras:
Teologia das religiões é uma disciplina de estudos teológicos que tenta avaliar
teologicamente o significado e o valor das outras religiões. [...] pensar
teologicamente sobre o que significa para os cristãos conviver com povos de outras
religiões e sobre o Cristianismo com as outras religiões75.
problemática, porque precisamos primeiro esclarecer o que vem a ser teologia ou teológico;
nosso entendimento de teologia das religiões depende de nosso conceito de teologia. Teologia
textos sagrados para definir o certo e o errado no campo religioso e axiológico e o verdadeiro
estudo explicativo e classificatório das crenças religiosas e sua evolução histórica, por isso ela
é facilmente confundida com outra disciplina: História das Religiões. Se se adota a primeira
definição de Teologia pode-se usar dois nomes para a disciplina: Teologia da Religião e
75
Veli-Matti Kärkkläinen. An introduction to the theology of religious (Downers Grove IL: Intervarsity Press,
2003), p. 20.
48
Teologia das Religiões; se se adota a segunda definição a designação apropriada passa a ser
de essências, como por exemplo, qual seria a essência da experiência religiosa, o que é o caso
pela qual a religião é estudada como experiência singular humana, desta feita na área das
ciências empíricas, o que quer dizer analisar os aspectos psicofisiológicos apresentados pelo
(2) Teologia das religiões, por sua vez, volta-se para o mundo empírico, ainda que sem
abandonar o fundamento bíblico, desde que procura “estudar as várias tradições religiosas da
pensamos ter antecipado ao falarmos das demandas empírica e textual, esta metodologia é
híbrida entre indutiva e dedutiva e é a única que labora com os três princípios hermenêuticos
(3) Teologias das Religiões, também conhecida como teologia pluralista das religiões,
pode ter um caráter meramente descritivo, se for o caso de nos atermos à classificação e
tipologização das crenças religiosas, o que nos faria compartilhar seu objeto com a História
das Religiões. Mas, pode ser também normativa, se sua proposta for o diálogo inter-religioso
e o fim da violência simbólica. Neste caso, porém, apesar de atuar no campo axiológico, não
deve ser considerada uma disciplina teológica, pois o critério de sua normatização não seria
por desconsiderar o terceiro princípio, isto é, ignora a realidade empírica das outras religiões.
A última, por não levar em conta o segundo princípio, ou seja, não faz das Escrituras seu
ponto de partida e, eo ipso, torna-se uma proposta metarreligiosa, dado que a filosofia
abandona a coadjuvância lógica, com que aparece na primeira e segunda opção, para torna-se
o eixo teórico principal. Na verdade, na melhor das hipóteses, ela deveria ser classificada em
outro lugar da enciclopédia das Ciências da Religião: Filosofia da Religião; e, na pior das
daqueles que delas são inimigos, dado que destrói a relevância do discurso religioso,
relativizando-o82.
Esta metodologia nega à religião sua essência: sua pretensão ao absoluto, considerada
um problema, por supostamente estar na origem dos conflitos religiosos mundiais. Na prática,
porém, ao o discurso das religiões ser relativizado, ao ser extraído deles sua essência – sua
pretensão à verdade, o que resulta desta operação nada ganha em termos de diálogo inter-
religioso, pois troca-se um exclusivismo pelo outro. O que os filósofos da religião subtraem
das religiões assumem eles mesmos, posto que a abolição de seu absoluto decorre de uma
apesar de seus protestos em contrário. A religião segundo a ‘simples razão’, ou, deveríamos
dizer, ‘segundo a absoluta razão’ é uma religião mutilada e derruída de seus valores mais
importantes.
De sorte que, dada a incongruência dos resultados deste tipo de metodologia com o que
incluir todas as religiões em seu quadro conceitual reducionista. Exclusivistas, pelo fato de
influência da primeira crítica de Kant é visível em todos estes pensadores, por se tratarem de
tentativas de definir a religião a partir de uma experiência reduzida a uma forma, esvaziada de
seu conteúdo. Ou seja, pela descoberta de um a priori, que possa ser apontado como uma
83
Gavin D’Costa (edt.). The meeting of religions and trinity (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2000), pp. 1 e 2; Cf.
G. D’Costa. Christian uniqueness reconsidered. The myth of pluralistic theology of religions (Maryknoll, NY:
Orbis Books, 1990; Mark Heim. Salvations. Truth and differences in religion (Maryknoll, NY: Orbis books,
1995).
84
Mark Heim. Salvations. Truth and differences in religion (Maryknoll NY: Orbis books, 1995).
85
Sobre a religião: discursos aos seus menosprezadores eruditos (São Paulo: Novo Século/Fonte Editorial,
2000).
86
The new being (New York: Scribners, 1955); What’s religion? (New York/London: Harper & Row Publishers,
1973).
87
Aquilo que está fora da experiência, mas é sua condição de possibilidade.
51
Contudo, ao final deste processo analítico, qualquer fenômeno religioso específico vê-se
sentimento, uma espiritualidade; nosso acesso a ele dá-se apenas por meio de raciocínio
método fenomenológico. Não. Primeiramente, porque o caso típico destes intérpretes de Kant
assim o revela. Seu conceito do sagrado é na verdade um resíduo do teísmo Ocidental, posto
que a principal qualidade adstrita ao divino neste contexto é a transcendência, o númeno fora
originária, identificada pela fenomenologia, como seus defensores supõem. Ela resulta de uma
Husserl, seriam capazes de ir além da experiência religiosa que já se encontra fecundada por
esta ordem de coisas é algo extremamente improvável. Ela deixa fora de suas considerações a
principal conformadora do comportamento religioso, que são os textos sagrados. Esta teoria
só se tornaria plausível se se pudesse isolar uma experiência religiosa matricial89 que fosse “o
88
E. Kant. Crítica da razão pura (São Paulo: Nova Fronteira, 2000).
89
G. Lindberg. The nature of doctrine (Philadelphia: Fortress, 1984), p. 17.
52
ou qualquer outra coisa, dos textos sagrados que a conformam, entretanto, há evidências
gritantes do contrário atestando que há uma relação dialética entre estas duas coisas.
primeira, é impossível fazer uma síntese de todas as religiões por causa das diferenças
irredutíveis que as distancia, fazendo com que todos os pontos de contato entre as
experiências religiosas sejam superficiais 90 . Uma analítica deste tipo serve apenas para
distinguir o religioso do não religioso, não serve para lançar pontes entre um tipo de
experiência e outro.
suas doutrinas. Como já afirmado e reiterado, também se rejeita a opção (3) por um motivo
epistemológico. Não é possível fazer da Teologia das Religiões uma colcha de retalhos que
reúna elementos de todas as religiosidades, pois o ponto de partida deverá ser sempre alguma
sagrado, a relação com Deus, a salvação, as religiões sempre estão falando de coisas
diferentes. Para fazer sentido, a interpretação de cada aspecto desta realidade multifária, por
mais isolado que seja, tem que ter como referência um sistema como um todo 92 . Por
90
Um exemplo desta dificuldade é o conceito de amor: “a compaixão budista, o amor cristão – e se me for
permitido citar um fenômeno quaserreligioso – a fraternidade da França revolucionária, não são modificações
variadas de uma única consciência, emoção, atitude ou sentimento humano, mas são radicalmente (isto é, desde
as raízes) distintas formas de experimentar e ser orientado em relação a si mesmo, ao próximo e ao cosmo.”
(George Lindbeck apud Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religious –
London: SCM Press, 2010, p. 154).
91
O. Thomas. “Religious plurality and contemporary philosophy: a critical survey” (HTR, April, 1994), p. 198.
92
Baseio-me aqui na semântica de L. Wittgenstein: “Uma vez escrevi “a proposição está colocada em relação à
realidade como uma vara de medir...” Eu agora prefiro dizer um sistema de proposições está colocado em
relação à realidade como uma vara de medir. O que eu quero dizer é o seguinte. Se eu comparo a vara de medir
com um objeto espacial, eu comparo todas as linhas de graduação ao mesmo tempo... Se eu sei que o objeto se
estende até a linha 10, eu também sei imediatamente que ele não se estende até as linhas 11 e 12, e assim por
diante. As declarações descrevendo-me o comprimento de um objeto formam um sistema, um sistema de
proposições. Agora é este sistema de proposições que é comparado à realidade, não uma única proposição.”
(Friedrich Waismann e B. F. McGuiness (orgs.). Wittgenstein und die Wiener Kreis, Gespräche. (Schriften 3,
Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969), entrada de 25.12.1929.
53
conseguinte, o corpo doutrinário das religiões são sistemas fechados, estruturas sistêmicas, e
não meramente poemas e/ou definições éticas justapostas, como parecem pensar alguns
teólogos. Para W. C. Smith, por exemplo, o dado empírico da sabedoria religiosa não cristã é
Daqui em diante qualquer séria declaração intelectual sobre a fé cristã deve incluir
necessariamente, se quiser atingir seu propósito entre os homens, algumas doutrinas
das outras religiões. Nós explicamos o fato da via láctea mediante a doutrina da
criação, mas como explicar a existência do Bhagavad Gita?93
94
Os que defendem a possibilidade e a legitimidade de uma “teologia global”
Leonard Swidler 96 , Ninian Smart 97 , Keith Ward 98 . Estes autores laboram mais no campo
pela perda da visão sistêmica da realidade religiosa. Ou seja, assumem implicitamente que o
papel nomizante da religião foi mesmo transferido para a ciência claramente, cabendo à
religião uma dimensão estético-ética. Tornando discutível mesmo se neste contexto ainda
faria sentido falar de fé como categoria religiosa essencial, já que a religião não significaria
época para época e de pessoa para pessoa, como é o caso de compararmos a religiosidade dos
povos tradicionais e a dos industriais e pós-industriais. Contudo, é mais do que certo que
93
Wilfred C. Smith apud A. Race. Christians and religious pluralism, p. 2.
94
Anselm Kyong Suk Min. The solidarity of others in a divided world: a postmodern theology after
postmodernism (London: T & T Clark, 2004), p. 176.
95
Towards a World Theology: Faith and the Comparative History of Religion (Maryknoll, NY: Orbis, 1981).
96
Toward a Universal Theology of Religion (Maryknoll, NY: Orbis, 1987).
97
The world’s religions (Cambridge: the Press of Syndicate of University of Cambridge, 1998).
98
Religion and creation (Oxford: Oxford University Press, 2002); Religion and community (Oxford: Oxford
University Press, 2000); Religion and human nature (Oxford: Oxford University Press, 2002).
54
indivíduo. A religião é uma certeza que abarca toda a vida, e não apenas um aspecto dela. É
através dela que conhecemos o mundo e as coisas que nos cercam99. Infelizmente, isto não é
mais importante no contexto religioso pós-moderno, pois é fato que o aspecto estético da
religião está inflacionado, como ocorre também em outras subclasses da vida societária. M.
Maffesoli, por exemplo, chama nossa atenção para o vínculo que está sendo formado entre a
estética e a ética, por meio “da emoção compartilhada ou do sentimento coletivo” 100 no
homem pós-moderno. Sabe-se que o homem comum pós-moderno não está mais preocupado
com epistemologia, consequentemente fé para ele tem um significado muito mais superficial e
adotados pelo mundo pós-moderno, com toda a sua natureza consumista e hedonista, poderia
ser colocada a serviço de alguém que pensa a religião de um ponto de vista normativo.
O Pós-modernismo não atua num vácuo societário. A lógica coletiva apresenta-se bem
e controle social, embora de uma forma mais enfraquecida do que no passado101. Em suma, é
certo que hoje não existe mais o comprometimento do adepto com os assim chamados
religiosidade, cada vez mais normal em certos países orientais, como, por exemplo, a Índia102.
Mas, mesmo do ponto de vista normativo é coerente simplesmente adotar a perspectiva pós-
99
L. Wittgenstein. Da Certeza / Über Gewissheit G. E. M. Anscombe e G. H. von Wright (orgs.), Lisboa,
Edições 70, 1990.
100
Michel Maffesoli. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa (Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998.
101
Há ainda a questão da identidade religiosa, que faz com que indivíduos mantenham um grau de interação
entre si pela lealdade a um corpo de ritos e crenças comuns. Lealdade que pode variar quanto ao grau,
dependendo do tipo de comunidade onde é praticada (tradicional, carismática ou racional), mas que só existe à
medida que coexistente com ritos e crenças adotados por outros grupos, o que faz com que a afinidade interna
resulte em certa medida da diferença externa. Não há como negar que a hostilidade e a violência sejam formas
negativas de expressão de identidade, mas também é inquestionável que a diferenciação é um processo social
espontâneo e inevitável.
102
Michael Amaladoss. “Double Religious Belonging and Liminality: An Antropho-Theological Reflection”
(JTR, Jan., 2002).
55
paradigmáticos para a teologia se nem sequer a realidade empírica lhes presta total apoio?
Ricoeur, que é filósofo e sem estar diretamente envolvido no debate, pois parece defender um
ponto de vista pluralista particularista, tem uma posição que por ora serve de contraponto:
Evitando o relativismo que ainda se entremostra nas palavras de Ricouer, faz-se aqui um
adendo. Primeiro que, quanto ao problema kantiano das representações, nenhum cristão
minimante pensante pode hoje cogitar que nossos conceitos sobre Deus sejam informação
sobre sua essência. Desde Lutero, por sua vez, baseando-se em Paulo104, isto é assente. O
é Deus em sua essência, é incognoscível por uma incompatibilidade ontológica: finitum non
capax infinitus. Em segundo lugar, quanto a um ponto fixo, peremptoriamente negado nestes
tempos, pode-se dizer que sim, há um ponto fixo, uma estrela Sirius em todo este universo
religioso mundial: Jesus Cristo, que julga as religiões, e se constitui como critério exterior e
superior a elas.
103
Apud Carlos Cantone (org.). A reviravolta planetária de Deus (São Paulo: Paulinas, 1995), p. 54.
104
A palavra mistério (mysterion), assim como dela faz uso a teologia paulina, demonstra as limitações de nossa
compreensão do divino. Os diversos mistérios citados nas cartas de Paulo: “mistério de Deus” (I Co 4:1),
“mistério de Sua vontade” (Ef 1:9), “mistério do amor de Cristo por Sua Igreja (Ef 5:32), “mistério do
Evangelho” (Ef 6:19), “mistério de Cristo” (Cl 4:3), “mistério da fé” (II Tm 3:9), “mistério da piedade” (I Tm
3:16), etc.
56
Dizer isto, porém, não significa que como cristãos tornemo-nos juízes dos demais
adoradores, porque, não raro, estamos sob a condenação da mesma palavra profética de Jesus,
já que o que torna uma religião verdadeira não é só um correto discurso sobre Deus – a
ortodoxia –, mas também uma práxis correta em relação às criaturas de Deus, que somos
todos, cristãos e não cristãos – a ortopráxis. E nisto todos estamos a dever, não cabendo a
diante da demanda profética que nos é dirigida. A sombra do juízo obscurece todas as práticas
escatológica”105. Não significando esta expressão a referência a um evento futuro que venha
finalmente revelar quais religiões são aprovadas pelo juízo divino e quais não106. A própria
história terrena de Jesus já está constituída como verificação escatológica por meio do
Concluindo, resta-nos citar Harold Netland, cuja definição do âmbito da Teologia das
investigação transcorrente:
Com a ressalva que o segundo ponto (2) não será alvo de exame senão colateralmente,
dadas as dimensões limitadas deste trabalho. Em seu lugar será considerado o status salvífico
das religiões. Ou seja, coloca-se como pergunta inicial orientadora: como harmonizar a
105
Adolphe Gesché, “O cristianismo e as outras religiões”, in: Faustino TEIXEIRA (Org.), Diálogo de pássaros,
(São Paulo: Paulinas, 1993), p. 42.
106
E. Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus (São Paulo, Paulus, 1994), p. 211.
107
Harold Netland. Encountering religious pluralism. The challenge to Christian faith and mission (Downers
Grove: InterVarsity, 2001), p. 310.
57
Cristo, com o devido respeito às religiões e à sua sabedoria religiosa? Antes de seguirmos
formação?
Não há uma única forma de responder a pergunta pela nova configuração religiosa
mundial e quanto ao modo de o Cristianismo colocar-se neste quadro. Uma vasta gama de
teorias tem sido convocadas para classificar e sistematizar o modo como o Cristianismo pode
se relacionar com as outras religiões. Apresenta-se a seguir, algumas das mais importantes
Entre Católicos, conta entre as mais antigas a tipologia de J. P. Schneller108, que a meu
ver não é boa, pois não define com suficiente abrangência as possibilidades conceituais e os
ao famoso lema católico romano: extra ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação);
(b) o universo cristocêntrico - proposição inclusivista que toma o logos (o Cristo pré-
existente) como eixo central do diálogo religioso: extra Christo nulla salus; (c) e o universo
teocêntrico – proposta pluralista que faz de Deus uma experiência universal e o centro do
diálogo religioso: extra Deo nulla salus. Como se pode perceber, os sujeitos definidos por
medida o Protestante histórico, dado que sua ênfase é eclesiológica. Não seria adequada, por
exemplo, para a teologia Evangélica e para os Independentes, que são franca minoria.
108
Apud Jacques Dupuis, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (São Paulo: Paulinas, 1999), p.
255.
58
construiu uma teologia da cultura a partir da cristologia. Num possível encontro de Cristo
a cultura, Cristo na cultura, Cristo além da cultura, Cristo e a cultura em paradoxo e Cristo
transformador da cultura 109 . O trabalho de Niebuhr apesar de inovador para sua época
ainda não toca os problemas colocados hodiernamente, porque evita tratar diretamente do
seguinte formato. (a) Substituição, segunda a qual o Cristianismo, como única religião
Vaticano II, a teologia da preparação evangélica e de Karl Rahner com sua noção de
“cristão anônimo”. (c) Reciprocidade, pela qual as religiões são chamadas a um diálogo
diferentes formas. Este modelo não deseja e nem espera a superação das diferenças
religiosas; elas não são um estorvo ao diálogo, mas sua causa, ou seja, o que provoca a
109
H. R. Niebuhr. Christ and Cultures (New York: Harper Sanfrancisco, 2001 – reedição comemorativa aos 50
anos de sua publicação).
110
P. Knitter. “La tipología de las religiones en el pensamiento católico” (Concilium, no. 203, 1986), pp. 123-
184).
59
necessidade do diálogo. Este último é o modelo mais adequado para o diálogo inter-
religiosa: (1) nenhuma religião é verdadeira, (2) somente uma religião é verdadeira, (3) todas
as religiões são verdadeiras, (4) uma religião é verdadeira, as outras são verdadeiras à medida
que participam desta verdade112. Para Küng, do ponto de vista salvífico, todas as religiões são
verdadeiras, mas a que carrega a vida e a obra de Jesus Cristo é a única eticamente
normativa113.
pela abrangência e pela simplicidade conceitual, e porque de certa forma faz jus a todos os
dito mais acima compreende três tipos: (a) O Exclusivismo, em que o dado material da
salvífica do Cristianismo como o amor de Deus pelo gênero humano (a vontade salvífica
universal de Deus também se manifesta nas religiões, ainda que de maneira secundária); e,
111
Esta tipologia merece sérias ressalvas, contudo, ela de início está declarada Católica, o que esvazia nossa
intenção de fazê-las. O projeto imperialista, por exemplo, que está implícito em sua formulação, especialmente
do modelo da Substituição, só faz sentido na missiologia Católico Romana; o mesmo se aplica ao modelo do
Cumprimento, que tem por pano de fundo a doutrina da presença sacramental da Igreja Romana na vida de todos
os seres humanos. Estas ideias serão desdobradas mais adiante, quando ocorrer a discussão específica.
112
Hans Küng. “What is true religion? Toward an ecumenical criteriology” in Leonard Swidler (ed.) Toward a
universal theology of religion (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1987), pp. 231-250.
113
Mais a frente, no tópico sobre Hans Küng, isto será discutido com mais profundidade.
114
Christians and religious pluralism; patterns in the Christian theology of religions (New York: Orbis Books,
1986). Logo depois Gavin D’Costa publicou Theology and religious pluralism: the challenge of other religions
(London: SCM Press, 1986), seguindo a mesma terminologia.
60
parece ser a seguinte: os teólogos exclusivistas geralmente são: Protestantes Históricos mais
dos Últimos Dias e Testemunhas de Jeová) e teólogos católicos que ainda resistem às
Barth 115 , Emil Brunner 116 ; a maior parte dos Evangélicos: Clark Pinnock 117 , Gerald R.
Amos Yong 120 . Entre os inclusivistas, estão grandes expoentes da teologia Católica pós
Vaticano II: Karl Rahner121, Jacques Dupuis122, John A. DiNoia123 e Edward Schillebeeckx124.
115
Principalmente, Epistle to the Romans (New York, Oxford University Press, 1980), mas também em sua obra
magna: Church Dogmatics (Edinburgh, T & T Clark, 1961).
116
Natural Theology (London: Backwell, 1951).
117
A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions, op. cit.
118
God’s rivals. Why has God allowed different religions? Insights from the Bible and the early church
(Downers Grove: intervarsity Press, 2006); Can evangelicals learn from world’s religions? (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 2000.
119
Encountering religious pluralism. The challenge to Christian faith (Downers Grove, IL: Intervarsity Press,
2001); with Edward Rommen (eds.). Christianity and the religions. A biblical theology of world religions
(Pasadena: Evangelical Missiological Society, 1995).
120
Discerning of the Spirit (s). A Pentecostal-Charismatic contribution to Christian Theology of Religions
(Sheffield, UK: Sheffield Academic Press, 2000).
121
Curso fundamental da fé (São Paulo, Paulinas, 1989).
122
Teologia a caminho, fundamentação para o diálogo ecumênico (São Paulo, Paulus, 1999).
123
The diversity of religions: a Christian perspective (Washington, DC: The Catholic University of America
Press, 1992).
124
Jesús, la historia de un viviente (Madrid, Ediciones Cristianidad, 1981).
61
Figuram entre os pluralistas: primeiramente os teólogos católicos: Paul Knitter 125 , Hans
Küng126, Claude Geffré127, Roger Haight128, Galvin D’Costa129; teólogos asiáticos: católicos –
pelo propositor desta classificação, Allan Race; depois com Jürgen Moltmann 133 , John
Obviamente, esta lista tem vários problemas. Além das inevitáveis omissões e da
parcialidade que caracteriza alguém que escreve da perspectiva Ocidental – sem levar em
conta a teologia das Igrejas cristãs orientais, por exemplo –, estamos conscientes do quanto é
perigoso fazer categorizações tão genéricas, que quase sempre são incapazes de definir de
forma exata e adequada a posição dos debatedores, muitos deles não podendo com justiça ser
Gavin D’Costa tem várias ressalvas em relação à tipologia de A. Race. A primeira delas
como exclusivista, inclusivista e pluralista. Contudo, D’Costa chama nossa atenção para o
fato de que todos são defensores de uma reconciliação universal (apocatástasis) final, tal
125
No Other Name? (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1985); One Earth Many Religions (Maryknoll, NY: Orbis
Books, 1995); Jesus and the other names. Christian mission and global responsability (Maryknoll, NY: Orbis
Books, 1996).
126
Ser cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976); Christianity. The religious situation of our times (London: SCM
Press, 1995).
127
De Babel à Pentecôte: Essais de théologie interreligieuse (Paris: Du Cerf, 2006).
128
Jesus, symbol of God (Maryknoll NY: Orbis Books, 1999).
129
Theology and religious pluralism: the challenge of other religions (Oxford: Basil Blackwell, 1986).
130
The Asian Jesus (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2006).
131
The unknown Christ of Hinduism: towards am ecumenical Christophany (London: Danton, 1964).
132
One Christ, many religions: towards a revised Christology (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1991.
133
The Church in the Power of the Holy Spirit (London: SCM Press, 1977); Experiências de reflexão teológica:
caminhos e formas da teologia cristã (São Leopoldo, RS: Unisinos, 2004).
134
The Myth of Christian Uniqueness: Toward a Pluralistic Theology of Religions (New York: Orbis Books,
1987).
135
Pluralism: challenges to world religions (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1985).
136
Salvations. Truth and differences in religions (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1995).
62
como Orígenes, o que embaralha bastante as posições antes cridas tão distintamente
marcadas137.
problema não se deve à inaptidão da tipologia de Race, mas a que com o passar do tempo, os
debates tendem a se tornar cada vez mais sofisticados, devido a diferenças subsidiárias de
cada um dos disputantes, de modo que se torna bem difícil definir o locus de cada dentro
destes três tipos138. As religiões são organismos complexos. Não há como compará-las sem
um eixo referencial que sirva de parâmetro de comparação, que como vimos pode ser tão
Contudo, seria impossível nos acercar de tal gama de proposições sem lançar mão de
alguma sorte de tipologia para nos orientar dentro do quadro geral dos debates e assim poder
organizar o campo do conhecimento. Por isso, adoto a taxonomia de Allan Race com
ressalvas, as quais irão sendo pormenorizadas à medida que os nomes forem sendo
que, embora mais atenuada do que a de J. P. Schneller (dado que Race é Protestante e não
De fato, seria inadequado e até ridículo, por exemplo, falar de inclusivismo tendo como
indivíduos de outras religiões, jamais instituições religiosas que os abrigam. Além disso,
137
Gavin D’Costa. Christianity and world religion. Disputed questions in the Theology of religions (Malden
MA/Oxford: Wiley-Blackwell, 2009), p. 34.
138
Harold Netland. Encountering Religious Pluralism. The Challenge to Christian Faith and Mission (Downers
Grove III: InterVarsity, 1988), p. 47.
63
como já foi afirmado, há teorias tão complexas que não faz o menor sentido chamá-las de
tipologia de Race, com seus principais representantes, seguindo uma ordem cronológica (da
mais antiga para as mais recentes). Deploramos não ser possível senão uma apresentação
sucinta das ideias dos debatedores devido aos limites deste trabalho, proposto como discussão
CAPÍTULO II
Exclusivismo
2. a. Introdução
Cristianismo, variando apenas quanto à ênfase ou ao grau. São dois mil anos de
exclusivismos, atenuados apenas nas últimas décadas do século XX. Contudo, o Exclusivismo
não é um bloco monolítico onde imperam pretensões salvíficas monopolistas: extra ecclesiam
nula salus. Não existe um exclusivismo, mas vários. A palavra implica de si uma carga
semiótica dúplice: quem exclui e quem é excluído. Com efeito, do latim originariamente,
exclaudere significa fechar, expelir. Encerrar algo para usufruto de alguns e por extensão
impedir o usufruto de outros. Temos aí, portanto, quatro possibilidades de ênfase. Quanto ao
aspecto afirmativo, (a’) ela significa a salvação por um único meio, (a’’) também o acesso
(b’) a exclusão dos outros meios salvíficos e (b’’) a exclusão de outros grupos. Obviamente,
afirmar (a’ e a’’) é por extensão afirmar (b’ e b’’), com uma pequena, mas importante
diferença: afirmar (a’) pode significar exceções em (b’’); mas, afirmar (b’ e b’’) não deixa
margem a exceções.
Algo semelhante Ronald Nash diz em seu livro, ainda que de modo mais simples. Entre
conseguinte, não admite exceções; e o Exclusivismo-mas, que ressalta (a) e, mas deixa aberta
a possibilidade para exceções139. Podemos por isso chamá-los (a) Exclusivismo forte e (b)
139
Ronald Nash. Is Jesus the only savior (Grand Rapids: Zondervan, 1994), prefácio.
65
Exclusivismo forte, também chamado restritivista, cuja ênfase recai sobre o instrumento
escolhido por Deus (a Igreja), e que soberbamente limita todos os meios da graça divina à sua
Deus por meio de seu instrumento; (b) um Exclusivismo fraco, cuja ênfase é a escolha divina
pelo meio e os instrumentos declarados nas Escrituras, o que, entretanto, não impede de
Obviamente, seria muito simplista pensar que tudo se resume na polarização entre estes
dois extremos, e as respectivas concepções teológicas aderindo a eles como bananas em uma
penca. O melhor gráfico para representar a problemática relação entre estas teorias é uma rede
de pontos menores interligados e ligados aos pontos maiores (a’ e a’’) e (b’ e b’’), dos quais
exemplo, não deve ser confundido com o inclusivismo, a ser analisado no próximo capítulo,
porque nunca chega a afirmar como aquele que a salvação pode ocorrer sem que as pessoas
tomem conhecimento da graça de Deus na morte vicária de Jesus Cristo. Por outro lado,
Inclusivismo Católico Romano, do que com sua própria versão fraca, por causa da ênfase
soteriológica baseada na Igreja, sendo ela a comunidade dos crentes e sinal da salvação
divina, respectivamente.
tematicamente, agrupando estas abordagens de acordo com esta divisão dupla. Ficaríamos
obrigados a ziguezaguear na linha do tempo para compor os exclusivismos fraco e forte, o que
com certeza prejudicaria a compreensão plena das abordagens, dado que se perderia seu
critério cronológico, iniciando pelas abordagens mais antigas e terminando nas mais recentes.
66
As sutilezas específicas de cada tipo de abordagem serão esclarecidas à medida que forem
sendo apresentadas.
Não se pode classificar a Igreja do Novo Testamento como exclusivista tout court.
Além de sua problemática ambiguidade entre as versões fraca e forte do Exclusivismo, o fato
de ela defender a capacidade salvífica exclusiva de Jesus Cristo, bem como o exclusivo
agenciamento divino da Igreja fundada por ele, também não significa várias coisas. Por
exemplo, não significa a subsunção das outras modalidades salvíficas sob o que seria um
não quer dizer também um projeto expansionista da religião que caminhe pari passu com um
custódia. Todas estas atribuições pertencem à Igreja Pós-constantiniana, ou seja, àquela Igreja
Constantino. Foi esta Igreja que se organizou em bispados, cujo modelo administrativo e a
jurisdição coincidiam com as regiões geográficas das províncias imperiais. Foi ela que
recebeu autoridade judicial e a repassou a seus bispos, foi também ela que promoveu uma
guerra religiosa contra Donatistas, Monofisitas, Maniqueus, Nestorianos, etc. 140 , e que de
certo modo preparou o terreno para a expansão do islamismo em território antes dominado
pelo Cristianismo.
helenista vinha reunindo ao redor do mundo desde o III século a. C. Onde não havia religião
140
Roger Haight. Christian Community in history. Historical ecclesiology (New York: The continuum
international publishing group, 2004), p. 202.
67
oficial (pelo menos não no sentido aderido à palavra pela igreja Pós-constantiniana), naquela
para manter a ordem pública), onde, por conseguinte, todas as crenças e ideologias
adiante a rejeição da Igreja em relação às instituições pagãs de seu tempo era apenas parcial;
não implicava, por exemplo, a negação do valor ético e epistemológico da filosofia clássica,
condições históricas peculiares de cada comunidade. Isto em vista, é inegável que em muitas
passagens os evangelhos se utilizem de uma linguagem violenta e até virulenta para referir-se
estas passagens como teologia sistemática, como se fossem conceitos dissociados de sua
realidade histórica. Mesmo porque, por outro lado, as páginas do NT são até encomiásticas
com respeito a alguns personagens não cristãs da história de Jesus e dos Apóstolos. Por tudo
problemática.
concretos das comunidades. Entre estes problemas estava o Paganismo, que muitas vezes
entender como e por que os evangelhos foram redacionados é conhecer sua localização num
determinado locus social, uma questão que foi debatida pela Crítica Sociorredacional (Socio-
68
redation Criticism) 141. Este aspecto foi extremamente negligenciado tanto pela História da
(Redaktiongeschichte), mas sem o que a questão do significado dos textos não se resolve. Do
ponto de vista da semântica pode-se dizer que nos evangelhos existem dois tipos de
que visa à experiência das comunidades e dos potenciais ouvintes dos evangelhos. Sua técnica
discípulos e outros personagens dos evangelhos; fazer uma história incluir a outra; fazer com
que o passado de Jesus e o dos discípulos refletisse o presente das comunidades ou leitores
destinatários 142.
As comunidades receptoras das tradições de Jesus travavam uma luta encarniçada para
sobreviver num ambiente hostil à sua fé, com grau de oposição que crescia à medida que
também expandiam seus limites. A reconstrução da história de Jesus levada a efeito por cada
uma destas comunidades deveria ter em conta estas lutas. Para eles era essencial que Jesus se
lhes assemelhasse e fosse um modelo a ser contemplado e seguido, face às dificuldades que
enfrentavam.
debatiam com profundas transformações internas. Isto significa que estes textos foram
judaicas, por estarem deixando de ser um ramo do Judaísmo143. Com efeito, Mateus e Lucas
141
Gerd Theissen in epílogo de R. Bultmann. Historia de la tradición sinóptica (Salamanca: Ediciones Sígueme,
2000). p. 422.
142
François Viljoen. “Mathew, the church and anti-Semitism” (VE, 28, 2, 2007), p. 699.
143
O antagonismo entre Cristãos e Judeus cresceu muito depois da destruição do templo na primeira Guerra
judaica (68-70 d. C.). O Judaísmo em formação daquela época não tendo mais um templo ao redor do qual
orbitar, foi gradativamente transferindo sua lealdade para o Rabinismo, movimento originário do Farisaísmo. (J.
A. Overman. O evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo. O mundo social da comunidade de Mateus – São
Paulo: Loyola, 1997), p. 45.
69
escreveram para comunidades em transição 144 . Assim também Marcos e João. Marcos
muitos membros de sua comunidade delatados ao poder imperial por Judeus ressentidos pela
expansão cristã145.
Aí a chave que nos abrirá a compreensão das ambiguidades do Novo Testamento quanto
ao mundo que o circundava, e por que a algumas fontes neotestamentárias era um ambiente
decadentes, bem longe daquela qualidade moral originária, quando ainda era uma religião
mortais, fazendo com que muitos se dispuseram a seguir-lhes o exemplo nos desregramentos
morais de toda espécie 146 . As novas religiões de mistério apenas davam azo a mais
licenciosidade, a exemplo dos mistérios dionisíacos e eleusinos. Outras, que podemos chamar
144
Eugene Laverdiere e William Thompson G. “New Testament communities in transition: a study of Matthew
and Luke” (TS, no. 37.4, 1976), pp. 570.
145
Para uma história social destas comunidades conferir: L. Schottroff y W. Stegemann: Jesús de Nazaret,
esperanza de los pobres (Salamanca: Sígueme, 1981). H. C. Kee, Community of the New Age. Studies in Mark's
Gospel (Lonon: SCM Press, 1977). Phillip Esler, Community and Gospels in Luke-Acts; The Social and Political
Motivations of Lucan Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1987). J. Andrew Overman. O
evangelho de Mateus e Judaísmo formativo, o mundo social da comunidade de Mateus; Igreja e comunidade em
crise, o evangelho segundo Mateus, São Paulo: Paulinas, 1999. Gerd Theissen. Colorido local y contexto
histórico en los evangelios. Una contribución a la historia de la tradición sinóptica (Salamanca: Ediciones
Sígueme, 1997).
146
“O próprio antropomorfismo que tornou os deuses tão próximos dos humanos, uma extensão mesma do
sistema de patronato e honra da sociedade, talvez tivesse um aspecto negativo ao revelar os deuses tão
mesquinhos, corruptos e imorais como os seres humanos. Os mitos que os romanos aprenderam com Homero e
com as tragédias expuseram os deuses olímpicos (particularmente) como guiados pelas mesmas paixões” (Luke
T. Johnson. Among the Gentiles. Greco-Roman religion and Christianity – New Haven\ London: Yale
University Press, 2009, p. 38).
70
com Tillich de quase-religiões 147 , tinham sido fundadas por filósofos, e inicialmente até
possuíam um impulso ético e moral bastante elevado, mas época neotestamentária já tinham
(b) O Cristianismo como religião minoritária, num esforço para constituir sua identidade
e conquistar seu lugar ao sol era pressionado tanto por Judeus como por Gentios. Por isso,
tinham a tendência de se apresentar em seu aspecto mais polêmico e agressivo, tal como
Este espírito polêmico penetrara primeiro na Septuaginta (LXX, 250 a. C.), num
consequências para as futuras relações entre Cristãos e não Cristãos. Salmo 96:5 diz: “os
deuses das nações são ídolos”; “os deuses das nações são demônios (daimonia)” (Sl. 95:5),
Septuaginta ter sido a base do NT, a redação cristã não adotou este espírito intolerante, muitas
vezes abertamente hostil contra a gentilidade, que antes refletia as dificuldades dos Judeus
para preservar sua fé no mundo helenístico durante o período selêucida. Todos incluíram os
Gentios no projeto do reino de Deus, variando apenas quanto ao grau de submissão às práticas
147
Conceito aplicado por P. Tillich às ideologias radicais de esquerda e de direita do século XX (Nazismo,
Fascismo, Comunismo) por conta de suas pretensões totalitárias que incluíam mesmo a dimensão religiosa da
vida societária. Cf. Paul Tillich. El futuro de las religiones (Buenos Aires: Ed. La Aurora, 1976).
148
Ibid., p. 2.
149
Outros textos do AT não são menos encomiásticos: “vaidade, obra ridícula” (Jr. 10: 15); “carentes de sopro
vital” (Jr 51: 17); “nada” (Is 44: 9); “vazio” (Jr 2: 5; 16: 19); “mentira” (Jr 10: 14; Am 2: 4); “demônios” (Dt 32:
17. Os deuterocanônicos e/ou apócrifos os acompanham de perto: “coisas mortas” (Sb 13: 10); “mentira” (Br 6:
50); “as feras valem mais do que eles” (Br 6:67); “causa e fim de todo mal” (Sb 14: 17).
71
judaico-cristãs, o que denota que este projeto deve ter estado presente desde o início da
pregação de Jesus.
Entretanto, o NT não tem um tratamento muito mais ameno com respeito aos Gentios,
especialmente Paulo. Para ele a conversão dos tessalonicenses significou o abandono dos
ídolos para servir o verdadeiro Deus vivente (I Ts 1: 9); os colossenses foram transferidos do
domínio da escuridão para a luz (Cl 1: 13). Também não faltam as referências
veterotestamentárias aos demônios: “as coisas que eles sacrificam é a demônios que
sacrificam” (I Co 10: 20). Outra referência constante em Paulo é a gentilidade entendida como
ignorância no sentido intelectivo: os Gentios tiveram seus olhos abertos para o verdadeiro
Deus (At 26: 18; I Ts 4: 5). Mas igualmente no sentido de erro (I Rm 1: 27). Ele diz aos
Cristãos da Galácia vindos do Paganismo: “em outro tempo, quando não conhecíeis a Deus,
servíeis aos que em realidade não são deuses. Mas agora que conheceis a Deus”. Atos 17: 30
culmina com a inscrição do altar “Deus desconhecido” (At 17: 23). Ef 4: 18 caracteriza aos
Gentios como “submergidos nas trevas, excluídos da vida de Deus pela ignorância que há
neles” 150.
Nas cartas gerais fala-se também dos tempos da ignorância. Em 1 Pe 1: 14 se exorta [ao
cristão] a comportar-se de maneira digna: “não vos amoldeis às paixões que tínheis antes, no
tempo de vossa ignorância”. Outra palavra usada, embora menos usualmente, é erro (kláne)
(II Pe 2: 18). Os cristãos vindos da gentilidade eram “como ovelhas errantes” (I Pe 2: 25; cf.
Hb 5: 22). “Contudo, talvez, os mencionados aqui como ignorantes e errantes não sejam os
Gentios enquanto tais, mas os pecadores em geral”151. O Apocalipse não é menos incisivo em
150
R. Bultmann. La teologia del Nuevo Testamento (Salamanca: Ediciones Sígueme, 1981), p. 114.
151
Idem, ibid.
72
seus reproches, nele os Judeus são chamados “sinagoga de Satanás” (Ap 2: 9) e os Gentios
aceitar o convite do evangelho; por outro lado, há as referências vergonhosas, como as que
uma realidade dinâmica e em constante mutação, achando-se inundada por antigos e novos
credos, todos sofrendo transformações profundas por causa do intenso sincretismo que unia
tudo num caudal cultual comum, cuja convivência, tal como ocorre em nossos dias, era
Vindos de todas as partes para disputar espaço e conviver no mundo globalizado greco-
antiga sociedade romana (Lares); os deuses gregos de Homero e Hesíodo; os deuses das
deuses de religiões míticas de origem persa (Mitra)155 e siríaca (Júpiter Doliqueno)156, levados
152
Depois das conquistas de Alexandre (III século a. C.) o koiné mediterrâneo apresentava aos indivíduos os
novos desafios e oportunidades de uma salvação individualística, onde o sincretismo ocorria ao sabor do gosto e
inclinações de cada um (John Anton. “Theourgia – Demiourgia: a controversial issue in Hellenistic thought and
religion. in Richard T. Wallis (ed.). Neoplatonism and Gnosticism - Albany: State University of New York Press,
1992, p. 28).
153
“A partir do quarto século, a forma da religião grega que atraía a maioria das pessoas mais educadas não era a
religião dos deuses olímpicos, mas aqueles dos mistérios, que davam aos indivíduos uma relação mais pessoal
com a divindade” (Werner Jaeger. Early Christianity and Greek Paideia – Cambridge: Belknap Press of Harvard
University Press, 1961, p. 55).
154
Como deusa da reprodução seu símbolo mais importante é o falo. Segundo Apuleio no Asno de Ouro, seus
sacerdotes são homens emasculados e invertidos sexuais, praticantes da prostituição ritual. (Jaime Alvar. “Cultos
sírios”. In Jaime Alvar et al.Cristianismo primitivo y religiones mistéricas – Madrid: Cátedra, 1995, pp. 446 e
447.
155
“Ahura-Mazda ocupa a posição hegemônica do panteão [persa], enquanto Mitra aparece como comandante
militar, chefe dos exércitos da justiça, defensor da ordem contra o caos e da luz em confronto com as trevas”.
(Jaime Alvar. “El misterio de Mitra”. In Jaime Alvar et al.Cristianismo primitivo y religiones mistéricas, p. 508).
73
Algumas dessas religiões contavam com a boa vontade das autoridades, a exemplo,
obviamente, do culto ao imperador e das religiões tradicionais, tais como os antigos deuses
greco-romanos e o próprio Judaísmo, tolerado por sua antiguidade. Outras menos toleradas e
até restringidas por sua natureza perturbadora da ordem pública, tais como os Mistérios
vezes os levava a comportamentos pouco previsíveis; os Epicureus, por causa de seu notório
ateísmo; e os Cristãos por causa de sua misantropia (ódio ao gênero humano)157 e amixia
(autossegregação), que lhe dava aos olhos dos romanos um caráter antissocial e anticívico158.
Destaque seja dado entre as primeiras ao credo oficial, o culto ao imperador, que a
princípio sofreu resistência do senado, mas com o passar do tempo e por influência das
províncias orientais 159 , ganhou força, primeiro com Júlio César, depois de morto, e,
posteriormente, com Otávio Augusto, que, a exemplo dos reis orientais, tornou-se deus ainda
em vida. Augusto César tinha sido declarado filho de Apolo e assim todos os demais
imperadores Césares e Flavianos, por cujo poder, eram capazes de acalmar tempestades
156
Uma espécie de Baal, originário de uma cultura neohitita, que, depois de helenizado, adotou o nome de
Doliqueno, aludindo à origem de seu culto. Senhor dos trovões, do tempo e do ferro, tinha os atributos
necessários para se tornar um dos deuses da guerra dos romanos. (Jaime Alvar. “Deuses sírios”. In Jaime Alvar
et al.Cristianismo primitivo y religiones mistéricas, p. 448.
157
“Isto se compreende se recordarmos que todas as atividades [sociais] da época – o teatro, o exército, as letras,
os esportes, etc. – estavam tão ligadas ao culto pagão que os Cristãos viam-se obrigados a se ausentar delas.
Portanto, diante dos olhos de um pagão que amava sua cultura e sua sociedade, os cristãos pareciam ser
misantropos que odiavam toda a raça humana” (Justo Gonzalez. Uma história ilustrada do Cristianismo – vol. 1,
São Paulo: Sociedade religiosa edições Vida Nova , 1991, vol. 1), p. 55 e 56.
158
O culto ao imperador a que também se furtavam os cristãos era uma prática tão enraizada na civilidade
gentílica greco-romana que se pode dizer que os cristãos negando-se a prestar-lhe honra se assemelhariam aos
que hoje em dia desrespeitassem a bandeira nacional e o hino pátrio.
159
Luke T Johnson. Among the Gentiles, p. 37.
74
(Augusto César) e, segundo os dons concedidos por Asclepius – deus da Medicina, curar
doentes (Vespasiano),160.
Títulos tais como ‘Senhor’, ‘Salvador’, ‘Filho de deus’, eram normalmente usados pelos
(euaggelion), ou ‘Boas novas’ era usado pelos arautos do imperador quando anunciavam seu
beneplácito aos cidadãos de uma determinada cidade: distribuição gratuita de cereal e convite
territoriais, etc.161.
Não se deve subestimar a força dessa religião civil. Ela era o cimento que unia os povos
subjugados em torno de Roma, a capital do mundo, ainda que entre estes povos e na própria
cidade ‘eterna’ fossem adorados numerosos deuses, como vimos demonstrando. As elites
locais dos povos dominados tinham grande interesse em patrocinar o culto ao imperador162.
Fazendo-o, atraíam a si o favor de suas legiões, para garantirem seus impostos, e ficarem
Mas não era só uma questão de pragmatismo político, o que fazia o culto ao imperador
160
Amy-Jill Levine, Dale C. Allison Jr., John D. Crossan. The historical Jesus in context, Princeton: Princeton
University Press, 2006, p. 28.
161
Ibid., p. 29.
162
Havia em Atenas treze pequenos altares dedicados exclusivamente a Augusto. O imperador Cláudio, sob cujo
reinado Paulo chegou a Atenas, é descrito em uma das inscrições dedicadas a ele como “Senhor e Benfeitor”.
Também havia um culto completo a Antônia Augusta, designada como θεα Άvτovία, com sacerdotes e mais
tarde com sumos sacerdotes, já que Atenas era considerada o lugar de sua concepção (David Gill e Conrad
Gempf (eds.). The book of Acts in its first century setting – Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1994, p. 85).
163
Luke T. Johnson, Among Gentiles, p. 37.
75
até a metade do primeiro século, mas o Judaísmo que evoluiu do Rabinismo farisaico,
ganhando força após a destruição do templo de Jerusalém. Além de ser a seita mais antiga e
ter sobrevivido às suas rivais mais ponderosas (os Saduceus que desapareceram com o
templo, os Essênios e Zelotes, trucidados por Tito e por Vespasiano), o Judaísmo que evoluiu
do Farisaísmo veio a contar com a simpatia romana por causa da antiguidade de suas
seu Deus e praticarem suas tradições sem serem incomodados, ao templo de Jerusalém
garantiram o envio das ofertas e dízimos, sem que sobre a classe sacerdotal pesasse nenhum
imposto ou taxa. Assim que graças ao favor imperial as sinagogas judaicas eram ricas e
simpatizantes165.
que os Judeus compreenderam que o Cristianismo era muito mais do que uma seita dentro do
chocaram no mundo greco-romano, como atesta o livro de Atos dos Apóstolos. Como se sabe
difusão de ideias religiosas. Os Judeus por sua dispersão no ecumene e por contar com certa
simpatia das autoridades foram dos que mais se favoreceram, tornando-se conhecidos por seu
164
Cláudio promulgou um edito em 51 d. C. que expulsava os Judeus de Roma. Atos 18: 2 menciona este fato
sem, no entanto, dar dele as razões. “Mas o historiador romano Suetônio nos oferece um dado intrigante, aos nos
dizer que os Judeus foram expulsos de Roma porque estavam causando distúrbios constantes ‘por causa de
Cresto’. A maioria dos historiadores concorda em que Cresto é o próprio Cristo, cujo nome teria sido mal
escrito.” (Justo Gonzalez. Uma história ilustrada do Cristianismo, vol. 1, 1991, p. 51). Ou seja, os Judeus foram
expulsos de Roma por causa das dissensões com os Cristãos sobre Jesus Cristo.
165
“Escavações em Sardes [Ásia Menor] têm demonstrado quão grande e elaborada era a sinagoga judaica na
cidade, provendo uma demonstração visual da disparidade em tamanho e prestígio entre o Judaísmo e o
Cristianismo nascente.” (Luke T. Johnson. Among Gentiles, p. 22).
76
forte proselitismo166, merecendo por isso observações ferinas de escritores clássicos latinos.
Horácio, poeta latino do I século a. C., declara: “se não queres vir voluntariamente faremos os
Judeus e te obrigaremos a vir”167. Por conta deste proselitismo surgiu a figura religiosa do
sebomenon proselyton (prosélitos) (At 13: 43). Ou seja, Judeus não étnicos, mas religiosos,
que observavam a lei de Moisés tal como um Judeu de nascimento, ou, pessoas que
simpatizantes do Judaísmo.
A evidência para Gentios aderentes do Judaísmo, contudo, não pode se limitar a esta
terminologia. [...] Declarações de Philo e Sêneca falam sobre a expansão das leis
judaicas e Josefo argumenta que os Judeus de Antioquia incorporaram parcialmente
admiradores Gentios168.
Quando as missões cristãs começaram a penetrar nos lugares onde as missões judaicas
já atuavam, obviamente os Judeus não gostaram nada de ver concorrentes para atrapalhar seus
esforços de ganhar o mundo para sua fé. O livro de Atos apresenta a seus leitores um grande
número de Gentios justos que apesar de não abraçarem abertamente ao Judaísmo, mormente
por causa da incompatibilidade de sua ocupação no serviço público (onde teriam que prestar
culto ao imperador), ainda assim se mostravam dispostos a ouvir a pregação dos apóstolos e
evangelistas cristãos: o centurião Cornélio (At. 10: 1 – 5), o centurião cujo servo fora curado
(Lc. 7: 2 – 4), o pro cônsul Sergio Publius (At. 13: 7, 12), o carcereiro filipense (At. 16: 25-
34), o pro cônsul Gálio (18: 12 – 14) e Publius, principal da ilha de Malta (28:7-10).
166
“As massas desde muito têm mostrado entusiástico desejo de adotar nossas observâncias religiosas, e não há
uma cidade, grega ou bárbara, nem uma única nação, a qual nosso costume de nos abster do trabalho aos sábados
e onde jejuns e a festa das luzes e muitas de nossas proibições em questões de alimentação não sejam
observadas” (Ag. Ap. 2: 282).
167
Apud Daniel Rode “el Todopoderoso en la misión de bendecir a todas las etnias”. In Elias Brasil. Teologia e
metodologia da missão (Cachoeira: Ceplib, 2011), p. 430.
168
John J. Collins. Between Athens and Jerusalem. Jewish identity in the Hellenistic Diaspora (Grand Rapids:
Eerdmans Publishing, 2000), p. 266.
77
decretos imperiais que interditavam a prática da religião cristã169, agora não mais identificada
como uma seita do Judaísmo, mas como religião independente. Como se sabe o Estado
romano nunca moveu perseguições contra os cristãos nem promoveu investigações para
aqueles que eram acusados de serem seguidores de Cristo 170 . Ao que parece que alguns
Judeus devem ter delatado Cristãos e com isto desencadeado todo um processo inamistoso
Com tudo isto, o Exclusivismo Forte do NT não pode ser superestimado. O Novo
Testamento possui várias passagens que apontam nesta direção. Os escritores do NT são
claros em declarar Jesus Cristo como único e suficiente salvador “não existe nenhum outro
nome pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4: 12); “só existe um mediador entre Deus e
os homens” (Tm 2: 5); “Eu sou o caminho a verdade e a vida e ninguém vem ao Pai senão por
mim” (Jo 14: 6). E sua Igreja como agência difusa de sua mensagem (Mt 28: 19). O
Exclusivismo Fraco do NT, contudo, transparece na convicção de que a vontade divina é pela
salvação de todos os povos da terra, inclusive daqueles que praticam religiões não cristãs (II
Pd 3: 9; I Tm 2: 4). A convicção de que todos são filhos do mesmo Deus, de que o mesmo
Espírito opera em todos (Jo 3: 8), e ainda que ignorem o que expressamente está declarado
nas Escrituras serão todos julgados pela mesma lei, pois todos têm-na impressa na consciência
(Rm 2: 15) e podem perceber o Criador pelas obras de suas mãos (Rm 1: 20).
Em suma, o NT é exclusivista, mas pode ser mais ou menos, de acordo com a ênfase
sido como um pêndulo, ora oscilando em uma direção; ora, em outra. Num primeiro momento
a Igreja pré-constantiniana foi inclusivista em relação aos Judeus (até pelo menos próximo ao
à filosofia grega (pelo menos os filósofos da era clássica: Sócrates, Platão e Aristóteles) 171, e,
R. Panikkar muito argutamente identifica dois tipos de relação dos Cristãos com as
religiões: (a) a fase em que os cristãos se veem como testemunhas, como exemplarmente fica
patente no primeiro sermão de Pedro em Jerusalém: “Jesus ressuscitou, do que todos nós
somos testemunhas” (At 2: 32), àqueles que julgavam seus irmãos na mesma fé: os Judeus. E
uma segunda fase (b) em que há uma conversão de outra religião ao Cristianismo, que
Panikkar julga ter início na era constantiniana e Pós-constantiniana 172. De fato, embora o NT
uma vida pregressa cheia de pecado e sua substituição por uma vida nova, quando se é nova
criatura, sendo este o significado da alegoria do batismo como morte e ressurreição (6: 4). Em
Paulo a Igreja é um organismo, cujo crescimento é produzido pelos dons do Espírito. Apenas
Pedro e Mateus falam claramente de uma entrada numa comunidade de crentes (Mt 16: 19). A
ênfase institucional é, portanto, como corretamente identificada por Panikkar, a marca mais
Forte, simbolicamente mais violento, de modo algum chancelado pela Escritura. Portanto, a
rigor, a primeira igreja que apresentou este tipo de abordagem foi a Católica Romana.
171
Deveras, cada um dos Pais encontrará um ponto de contato teológico com a filosofia pagã da época. Justino
mártir falava de sementes do verbo (sperma tou logous), presentes em todas as culturas; Irineu de Lyon defendia
uma teologia das alianças de Deus; e Clemente de Alexandria, a concepção de que no decorrer da história teria
havido várias revelações de Deus: a lei e os profetas aos Judeus, a filosofia aos Gregos e a sabedoria aos hindus,
que ele chamava gimnosofistas.
172
R. Panikkar, Dwelling Place for Wisdom (Delhi: Motilal Banarsidass, 1993), capítulo 4.
79
Exclusivismo mais restrito. Ainda se discute o que o teria levado a esta guinada oclusiva tão
rápida desde o início do período pós-constantiniano (325 d. C.). Vários fatores podem ser
Constantinopla 173 . Secundariamente sob esta mesma rubrica, houve também a adoção do
foi uma influência muito importante. Em Santo Agostinho há uma visão profundamente
pessimista da humanidade, para ele, em sua condição caída, massa danata, gerada pela
incapacidade humana de evitar o pecado e promover a prática do Bem (non posse non peccare
pensar que fora da graça divina tudo já estivesse de antemão condenado175. Como corolário de
toda esta teologia lapsariana, há também a doutrina dos sacramentos e sua imprescindibilidade
para a salvação de todos os mortais, que fez com que a partir daí se desenvolvesse a prática do
batismo infantil e se criasse um lugar especial para os justos homens nascidos fora do espaço
Esta concepção atravessou os séculos na Igreja Católica e persuadiu até grandes mentes
como Tomás de Aquino a endossar firmemente e até contribuir para seu aprofundamento,
173
Helen C. Evans e William D. Wixom. The glory of Byzantium. Art and culture of the middle Bizantine era
(New York: The metropolitan museum of art, 1997), p. 21.
174
Sto. Agostinho apud K. Armstrong. Uma história de Deus, p. 166.
175
De Corretione et gratia. In Jean Chené e Jacques Pintard (eds.). Oeuvres de Saint Agustin. Bibliothéque
augustinien (Paris: Desclée de Brower, 1962), p. 344.
80
fazendo uso, por exemplo, do método exegético alegórico usado pela Patrística, especialmente
grega, para pontificar: “fora da Igreja não há salvação; ela é como a arca de Noé no tempo do
dilúvio”176.
Resumindo, ao fim da Idade Média, a Igreja Católica Romana via-se como exclusiva
mediadora da graça divina, a única porta pela qual poderia passar quem quisesse escapar da
Ruspe, no apagar das luzes da assim chamada Idade Escura, que acabou sendo adotada pelo
O concílio crê firmemente, professa e anuncia que ninguém, que viva fora da Igreja,
não apenas pagãos, mas também os Judeus, os Hereges ou Cismáticos, poderá ter
parte na vida eterna; todos eles irão para o fogo eterno, preparado para o diabo e
seus anjos (Mt. 25: 41), se antes do fim da vida não aderirem a ela. [...] Mesmo que
um tivesse dado muitas esmolas e tivesse inclusive derramado o sangue para Cristo,
se na viveu em união com a Igreja Católica não poderá ser salvo177.
desejassem pertencer à Igreja, sendo suficiente um desejo implícito, desde que precedido por
um propósito da própria consciência e seguido de uma vida condizente com ela. Além desta,
foram formuladas outras teorias como revelação primitiva ou geral e a conversão no leito de
morte, aplicadas à salvação de pessoas honestas que tinham vivido fora da Igreja178.
Mais adiante, no Concílio Vaticano I, ainda no século XIX, surgem outras sutilezas para
176
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to the theology of religions, p. 69.
177
Enchiridion symbolorum in C. Cantone. A reviravolta cósmica de Deus (São Paulo: Paulinas, 1996), p. 91.
178
J. Wong. “O Deus de Jesus Cristo em perspectiva pneumatológica”. In C. Cantone. A reviravolta planetária
de Deus), p. 415.
81
entrar, perecerá no dilúvio; porém, deve-se considerar igualmente certo que aqueles
que se encontram na ignorância da verdadeira religião, se esta ignorância for
invencível, não tem nenhuma culpa perante os olhos do Senhor179.
Mais tarde a encíclica Quanto conficiamur moerore (1863), do mesmo papa vem a
explicitar o alcance da “ignorância invencível”: ela diz respeito não só a cristãos não
Pio XII, na encíclica Mystici corporis (1943), identificou a Igreja Romana com o corpo
místico de Cristo e com ela relacionou “todos os que por certo anseio e desejo inconsciente
sejam direcionados para o corpo do redentor” 181 . Dupuis presume que este “desejo
conciliares do Vaticano II, porque o que separa este documento daquele é uma sutileza da
língua latina. O primeiro traz ordinantur (ordenado, orientado), palavra que indica o
direcionamento dos não cristãos ao Catolicismo mediante este desejo; o segundo (no Lumen
Gentium no. 15), ocorre o registro de coniuncti (unidos). Neste caso os Gentios são incluídos
na Igreja Católica Romana mediante a dilação da função sacramental da Igreja e não são
Exclusivismo inicialmente significou o mesmo que para os Católicos, ou seja, sua modalidade
179
Singularem quadam in J. Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 175.
180
Enchiridion symbolorum in J. Dupuis. Op. Cit., p. 175.
181
Ibid.
182
Ibid.
82
importância dada a soteriologia, que tem por base não uma aderência institucional, mas uma
resposta individual ao convite divino. Uma salvação unicamente pela graça de Jesus mediante
a fé foi fortemente defendida por todos os reformadores, e isto os impediu de ver a salvação
sendo obtida de outra maneira no seio das religiões não cristãs. À exceção de Zwinglio que,
em relação a alguns pagãos virtuosos, dissente dos outros reformadores, ou seja, em vez de
arrojá-los no inferno, coloca-os no Paraíso (Expositio Fidei, 1531), tal como fizeram os Pais
Apologetas183.
manter a abordagem exclusivista católica romana. Calvino, por exemplo, defendia uma visão
eclesiológica teocrática quanto ao governo da Igreja e quanto à filiação a ela, defendia uma
transmissão hereditária de filiação via batismo infantil, para ele uma espécie de circuncisão184.
com capítulos inteiros manchados de sangue. O erro foi continuar pensando a partir de uma
a guerra dos Trinta Anos (séc. XVII). O fervor sem entendimento de Lutero185 e Calvino foi
183
Apud Phillip Schaff. Creeds of Christendom. With a history and critical notes (vol. 1, Grand Rapids: Baker,
1993), p. 360.
184
João Calvino. A instituição da religião cristã (vol. 2, São Paulo: Editora Unesp, 2008), capítulos 9-11.
185
Lucy Kaennel. L’antisémitisme de Luther (Généve: Labor et Fides, 1997).
83
Com o fim da guerra dos Trinta Anos e o início do processo de laicização do Estado,
implementado sob a presunção de que isto fosse a solução do problema da intolerância, teve
início também a influência das ideias iluministas sobre a teologia protestante. A superioridade
Kant e Hegel. Este posicionamento em suas formas mais violentas e sutilmente ocultadas, que
perdurar entre nós esta noção, embora não mais sobre as antigas bases fundamentalistas ou
racionalistas, antes por meio de um refinamento teológico, da lavra de algumas dos maiores
2. d. 1. Karl Barth
Karl Barth, o teólogo reformado, que ficou famoso como o fundador de uma nova
dialéticos (R. Bultmann, F. Gogarten e E. Brunner) na revolta contra Teologia Liberal; não é
menos conhecido pela força de seus textos e pelo radicalismo de suas posições. Com efeito,
por causa deste radicalismo apriorístico186 que rejeita qualquer tipo de aproximação humana
ao divino, seja ela de origem mística ou racional, ele sequer tomou conhecimento dos debates
que tiveram lugar ainda em seus dias sobre o diálogo inter-religioso. Contudo, alguns dos
teólogos que tiveram participação importante nestas discussões tomaram-no como mentor
186
Peter Berger relata uma conversa deveras interessante entre Barth e o clérigo anglicano D. T. Niles, o
primeiro bispo da Igreja Unida do Sul da Índia. Eles discutiam a propósito da tese barthiana “Religion ist
Unglaub”. A certa altura da entrevista Niles pergunta a Barth: “com quantos hindus o senhor já conversou?”. A
resposta de Barth : “nenhum”. “Como o senhor sabe então que o Hinduísmo é incredulidade?” A resposta de
Barth revela o âmago de sua metodologia: “a priori”. (Peter Berger. The Heretical Imperative. Contemporary
possibilities of religion affirmation, London: Collins, 1980, p. 84).
84
composição do ideário barthiano na verdade não servem para identificar o cerne de seu
levou Barth de volta às Escrituras. Em Barth, os princípios protestantes, sola gratia, sola fides
e sola Scriptura, têm um significado muito mais radical do que usualmente, porque seu ponto
de partida é um espírito profético que tem por moto os dois primeiros mandamentos do
decálogo: o primeiro que diz respeito a quem seja Deus e o segundo, que tipo de adoração
Lhe é devida187.
Obviamente, o contexto histórico onde Barth fez ouvir sua voz, a saber, o ambiente
foi a moldura sem a qual a reação barthiana não poderia ser plenamente entendida. Ele foi o
único dos dialéticos que teve a coragem de reconhecer que a Palavra de Deus está acima de
seus ouvintes, e se, portanto, houver desacordo entre ela e eles, o juízo divino deve ser
proclamado sobre os homens não foram capazes de entendê-la, apesar de todas as pressões em
contrário. Ele não agiu como alguns de seus antigos colegas, entendendo hermenêutica como
teologia barthiana. A infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem é um obstáculo que
nenhum ser humano pode transpor. É um fosso indevassável, que não admite nenhuma
187
I. W. C. van Wik. “God and the gods: Faith and human-made idols in the theology of Karl Barth” (HTS, 63-4,
2007).
85
religião 188. O abismo só é superado pela iniciativa revelacional divina. Esta concepção da
separação radical de Deus leva-o a uma rejeição apriorística de qualquer religião que não
provenha da fé, e não seja resposta à divina graça. Neste parâmetro incluem-se todos os tipos
classes de erro em que incorrem as religiões não cristãs (e até as cristãs). Como não são
revelada em Jesus Cristo), todas as outras religiões que partem da palavra humana só poderão
A partir desta perspectiva move-se a cruzada barthiana contra toda divindade que não é
bíblica e não é resultado de uma autorrevelação de um Deus que é totalmente outro (der ganz
Andere). Em sua obra inaugural, a Epístola aos Romanos, por exemplo, Barth reage contra o
deus da Teologia liberal e do Socialismo Cristão, movimentos dos quais fizera parte, e não
propriamente às religiões não cristãs. Um deus com elementos ideológicos, por menores que
sejam, será o retrato de uma época, será um ídolo, mas nunca o Deus bíblico, aquele que é
acessível apenas por seu próprio beneplácito. Em obras menores que surgem nos anos
consumo, o indivíduo190.
negatividade – para a fase analógica, em que busca o ponto de contato entre Deus e o homem
e o encontra no princípio analogia fidei, sobre o qual será fundamentada sua obra
monumental, a Dogmática Eclesiástica. Nesta suma teológica vem à luz a forma mais
188
K. Barth. The epistle to the Romans (London/Oxford, Oxford University Press,1968), p. 248- 260.
189
K. Barth. Church Dogmatics, vol. II/1 (Edimburgh: T&T Clarck, 1961), p. 17.
190
K. Barth. Dádiva e Louvor (São Leopoldo: Sinodal, 1989).
86
si mesma e como tal não é nunca e em nenhum lugar verdadeira. Este verdadeira quer dizer
famoso moto barthiano “Religion ist unglaub” (religião é des-fé, incredulidade) significa que
podemos em realidade dizer que é a preocupação – de uma humanidade sem Deus 193”.
As religiões resultam de um processo religioso invertido, que começa com o ser humano
e tem como destino o transcendente, enquanto o verdadeiro processo começa com Deus e tem
como destino final o homem perdido em sua transgressão (Gn 3: 8 e 9). As religiões, por
estarem fora da graça reveladora de Deus, agem como os construtores da torre de Babel,
não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne” (Gn 9; 15). Portanto, a religião é um
tipo de pecado.
Neste rol encontram-se todas as religiões mundiais, sem exceção. O Deus dos
muçulmanos, por exemplo, é um ídolo, por sua rejeição ao Filho de Deus194 (a cristologia
muçulmana não apresenta um Jesus completamente humano; foi uma aparência de Jesus o que
foi pendurado na cruz, não o próprio – Docetismo). O Islamismo é uma religião cultural,
portanto, seus fundamentos são ideológicos, padecendo do mesmo defeito dos “ismos”
191
K. Barth. Church Dogmatics, vol. I/2, p. 26.
192
K. Barth. Church Dogmatics, vol. I/2, p. 356.
193
K. Barth. Church Dogmatics, vol I/2, p. 280.
194
K. Barth. Church Dogmatics, vol. IV/ p. 432.
195
K. Barth. Church Dogmatics, vol. IV/2, p. 615.
87
cristológica de sua teologia, que faz com que tudo o que o diz se inscreva seja metodológica e
ontologicamente em Jesus Cristo. Este seu cristomonismo, mais de uma vez criticado, fá-lo
Romana, por conta das outras vias para a percepção da vontade de Deus. Para ele a teologia
como a teologia de Paulo se baseava no escândalo da cruz. Jesus Cristo é o único fundamento
pelo qual a divindade pode ser entendida pelo ser humano. É através da encarnação de Cristo,
de sua Dogmática Eclesiástica ele radicaliza denunciando a analogia dos entes (analogia
entis) de Sto. Tomás é uma “invenção do anticristo”197, concluindo que o que emerge dela não
poder ser obtido o conhecimento do divino por meio da razão e das religiões. Esta via está
completamente cerrada, pois seu objetivo é enaltecer a graça divina e humilhar os meios
humanos usados para se chegar a Deus. Há dois motivos fundamentais para a dureza das
afirmações de K. Barth contra as religiões. Primeiro, sua luta sem trégua contra a Teologia
dependência”, pelo qual foram equiparadas todas as religiões. O segundo motivo é corolário
do primeiro. O monólogo cristológico barthiano, que pode ser consistente com suas ideias,
não é bíblico.
196
K. Barth. Church Dogmatics, vol. II/1, p. 1.
197
K. Barth. Church Dogmatics, vol. I/1, p. x.
198
Ibid., vol. II/1, p. 84.
88
Passado o calor da discussão e atenuado o ardor profético contra os liberais, mais tarde,
atingindo Barth a plena maturidade, sua pena sofre uma inflexão importante sobre a questão.
sobre Deus na natureza e na história: “as luzes, palavras e verdades da criatura podem ser o
lugar onde brilha a eterna Palavra de Deus”199, ou seja, sub-repticiamente ele admite que as
religiões podem ser usadas pela revelação divina para manifestar faíscas de sua verdade.
Coerente com esta percepção ele já teria rejeitado o particularismo, por cujo entendimento
apenas poucos estejam votados à salvação enquanto a grande maioria da humanidade está
destinada à danação final. Não. Barth é o que se pode chamar de universalista esperançoso.
Ora, sendo a salvação resultante de uma escolha de Deus e não dos seres humanos, ele espera
que no final os efeitos salvíficos e expiatórios do Calvário sejam aplicados a todos pela divina
decisão. Pois se o desejo de Deus é que todos se salvem (I Tm 2:4), então cumpra-se a
Dentro desta linhagem protestante e dialética que defende o exclusivismo avulta a figura
de Emil Brunner, outro teólogo reformado suíço, cuja maior parte da docência deu-se na
sobre cujas bases boa parte dos teólogos protestantes e evangélicos contemporâneos continua
laborando.
Ele acompanha Barth na distinção entre “revelação” e “religião”, e por isso também
um conceito religioso sui generis do Cristianismo. Por isso não se pode pensar na religião
199
Karl Barth. Church Dogmatics, XXIII, p. 171.
200
Karl Barth. Church Dogmatics, IV/3, pp. 477-478.
89
cristã como um gênero entre espécies religiosas (genus inter species). Jesus continua sendo a
verdade que as religiões buscam em vão, porque não se baseiam na revelação, sim em teorias
imanentistas201.
porque rejeita o cristomonismo de Barth, acreditando numa revelação natural geral, além da
especial, a qual fora atuante nos profetas, autores sacros e em Jesus Cristo. Nisto segue a
trilha aberta por João Calvino202, transformando, entretanto, sua ênfase negativa e judicativa
quanto ao conteúdo das religiões em algo positivo, veritativo e válido como conhecimento
para a salvação203. Brunner segue a tradição reformada de Zwinglio, que via toda a bondade, a
divina204.
Voltando à discussão com Barth, a ruptura entre os dois começa em 1929, com a
publicação de seu artigo “a outra tarefa da teologia”, pelo qual procura encontrar no homem
“uma ponte de inserção” para o aporte da palavra de Deus205. Tal como Barth, ele crê na
diferença absoluta entre Deus e o ser humano e que esta distância não pode ser vencida senão
pela graça divina e por sua iniciativa. Contudo, contrariando Barth, para ele deve haver um
ponto de contato na natureza humana, sendo isto o que nos torna capazes de entender a
201
A. Race. Christians and religious pluralism, p. 18 e 19.
202
“Está fora de discussão que é inerente à mente humana, certamente por instinto natural, algum sentimento da
divindade” (João Calvino. A instituição da religião cristã – vol. 1, São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 43.
203
[…] a fim de que ninguém recorra ao pretexto da ignorância, Deus incutiu em todos uma certa compreensão
de sua deidade, da qual renovando com frequência a memória, instila de tempos em tempos novas gotas, para
que, quando todos, sem exceção, entenderem que há um Deus e são sua obra, sejam condenados, por seu próprio
testemunho, por não cultuarem e não consagrarem a própria vida à vontade d’Ele (Ibid., idem).
204
Apud Philip Schaff. Creeds of Christendom, vol. 1, p. 380.
205
Rosino Gibellini. A teologia do século XX, p. 24.
90
Natureza e Graça206, publicada em 1934, onde delineia sua teologia natural, Brunner faz uma
distinção entre a imago Dei material, perdida na queda, e a imago Dei formal, que permanece
inscrita na natureza humana e nos distingue das outras criaturas, já que por ela se torna
capazes de reconhecer a Deus na natureza e nos eventos da história e estar conscientes de sua
Em outro livro, revelação e razão, Brunner defende, baseado na ideia de revelação, uma
religião totalmente revelada e a única que pretende ser uma religião com uma revelação final
para a humanidade. Em segundo plano, as religiões semíticas, que ele entende como
parcialmente reveladas, porque nelas pode ser encontrado o que para Brunner é o ponto de
contato em relação à fé: o senso de culpa ante o pecado: “a consciência pesada, o senso de
culpa, é o ponto de contato para a fé. É o lugar n qual a mudança de direção deve começar.
O senso de culpa, como uma relação negativa com Deus, é o ponto de contato para a fé.”209
que podemos chamar de consciência do pecado, ainda mescladas em seu âmago com
Ademais, nenhuma dessas religiões é completamente revelada. As duas últimas são sistemas
206
Emil Brunner. Natural Theology (London: Blackwell, 1951).
207
Joseph J. Smith. “Primal revelation and the natural knowledge of God: Brunner and Catholic theology”, TS
(no. 27, vol. 3, 1966), pp. 293 e 294.
208
Alister E. McGrath. Christian theology. An introduction (Oxford/Malden MA: Willey-Blackwell, 2011), p.
167.
209
Emil Brunner. Revelation and Reason (Philadelphia: Westminster Press, 1946), 214.
210
A. Race. Christians and religious pluralism, pp. 22 e 23.
91
de moralidade, porque não ensinam a justificação pela fé; a primeira, ainda espera a revelação
Em último plano, estão as demais religiões mundiais, que, como portadoras da imago
Dei formal, têm ainda sob sua custódia verdades elementares, relacionadas especialmente a
aspectos éticos e morais. Portanto, ainda que não completamente destituídas de insights
religiosos verdadeiros, salvificamente estas religiões nada têm a oferecer. Brunner é tão
favorecidos pela imago dei formal, pode ser convenientemente pensado como salvífico212,
visto que a revelação natural é incapaz de desdobrar o plano de Deus para salvar a
humanidade, por meio dos ensinos, da vida e da morte de Jesus Cristo, autor e consumador da
Independentes.
Conselho Mundial das Igrejas(WCC)215, demonstram as fortes disputas no interior das igrejas
protestantes. A princípio produzidas pela presença perturbadora de uma ala liberal que tentou
em várias ocasiões no transcurso dos anos levar os conciliares a adotar o pluralismo, ou pelo
211
Emil Brunner. Revelation and reason, pp. 258-273.
212
Emil Brunner. Revelation and reason, p. 79.
213
Daqui em diante IMC.
214
A partir deste ponto só LC.
215
A partir daqui WCC.
92
certo é que a duras penas os encontros (meetings) e conferências têm mantido a posição
defendiam um ecumenismo mais amplo que levasse em conta o papel salvífico das religiões.
Muitas destas disposições vinham de uma leitura da própria Escritura e do contanto dos
missionários com não cristãos. A antiga ideia do cumprimento, extraída de certas passagens
de Lucas-Atos e das Cartas de Paulo, gerava um entendimento de que as outras religiões eram
preparação para o evangelho216. Outras concepções tinham inspiração iluminista via teóricos
das ciências da religião (M. Müller, R. Otto, E. Troeltsch), de sorte que nas religiões era
reconhecida a presença do impulso religioso, ainda que ao Cristianismo fosse atribuído seu
coroamento: “apesar do profundo abismo entre as duas [Cristianismo e religiões não cristãs]
há uma evolução ininterrupta entre elas” (T. E. Slater e J. N. Farquhar)217. Além destas havia
tribais até o clímax ético e religioso dos profetas posteriores, por que não se daria o mesmo
Concluindo, o impacto destas ideias foi tão forte nesta ocasião que os organizadores do
evento tiveram necessidade de convocar uma comissão para redigir considerandos finais mais
Em nenhum lugar foi encontrado o mais leve fundamento para a ideia de que o
Cristianismo é apenas uma religião entre as demais, ou que todas as religiões são
simplesmente caminhos diferentes para buscar o mesmo Pai, e de que são, portanto,
216
Jan van Lin. Shaking the fundamentals. Religious plurality and ecumenical movement (Amsterdam: Rodopi
B. V., 2002), p. 19.
217
Jan van Lin. Shaking the fundamentals. Religious plurality and ecumenical movement, p. 20.
93
liberais, originários especialmente da Universidade de Harvard (que ainda não tinha sentido o
impacto das ideias de Karl Barth), assumiu o encargo de redigir estes documentos
preliminares. Kenneth Saunders, depois de vários anos de experiência com o Budismo, chama
a atenção de seus leitores para “o fato... de que por atrás de todas as religiões há a religião e a
“compele os missionários a entrar em parceria com os povos da Ásia numa grande busca
espiritual”219.
holandês, Hendrik Kraemer, o documento preliminar deu um passo atrás em busca do solo
religião sui generis no sentido mais estrito da palavra”220, o que também não deixa de ser um
manter a paz entre os antípodas, sem, contudo, esclarecer muito. Por um lado, afirma: “nós
somos mensageiros de Deus para proclamar a única redenção que não pode ter qualquer
218
Ibid., p. 25.
219
James L. Cox. “Jerusalem 1928. It’s message for today” (Missiology, 1981, 9, no. 139), p. 143.
220
James L. Cox. “Jerusalem 1928. It’s message for today”, p. 144.
94
paralelo nas religiões não Cristãs”221. Por outro lado, também reconhece o valor das religiões
não cristãs, inclusive valores religiosos, ainda que sem deixar de professar a superioridade do
Cristianismo:
A conferência de Jerusalém (1928) busca valores nas religiões e defende que mesmo
encontrando nelas muitos valores, é apenas no Cristianismo que todos estes valores
são achados articulados e em equilíbrio. A declaração final do concílio arrola tais
valores espirituais – “o sentido de majestade de Deus” no Islã, “a profunda simpatia
pelo sofrimento humano” do Budismo, “o desejo de contato com a realidade última”
do Hinduísmo, “a crença na ordem moral do universo” do Confucionismo, e “a
desinteressada procura da verdade e do bem estar humano” da civilização secular222.
uma das subcomissões da WCC, editou um documento (Re-thinking missions: report of the
exclusivismo de suas declarações finais, argumentando que a missão das igrejas cristãs nestes
novos tempos deveria se voltar para o mundo secularizado e não para os adeptos das outras
religiões: “em cada religião há uma inalienável intuição do verdadeiro Deus. Todos são
irmãos [e irmãs] uns dos outros na busca comum pela unidade última na mais perfeita verdade
última”223.
status salvífico das religiões. O grupo mais conservador volta à carga novamente, sob a
liderança do mesmo Hendrik Kraemer. Seu livro, The Christian Message in a Non-Christian
Tambaram declarou igualmente: “é da essência da fé cristã que Deus nunca tem se deixado a
221
Ibid., p. 145.
222
Leslie Newbigin. The open secret. An introduction to the theology of missions, Grand Rapids, MI: Wm. B.
Eerdmans Publishing, 1995, p. 170.
223
Jan van Lin. Shaking the fundamentals. Religious plurality and ecumenical movement, p. 263.
224
Wesley Ariarajah, verbete “Interfaith dialogue” in Dictionary of the Ecumenical Movement (Geneva/Grand
Rapids, WCC/W. Eerdemans, 2010).
95
si mesmo sem testemunhas, o que se torna manifesto nos valores religiosos das outras
religiões”225.
Em Evanston (1954) as ideias iluministas começam a perder força, mas o problema não
resultado final da conferência ter sido o reconhecimento de que “tudo o que Deus tem feito
“pressionada pelo fato de os Cristãos terem de viver num mundo religiosamente plural”226.
relação às religiões não cristãs. As razões agora decorriam de motivos civis e sociais. Visto a
Índia ter recém obtido sua independência do império britânico, estes teólogos reivindicavam
para si o direito de colaborar com as religiões não cristãs da Índia para a construção
nacional 227 . É neste contexto que aparece pela primeira vez o conceito de diálogo inter-
religioso, inserido num programa de melhoramento das condições de vida de seres humanos,
que viria a ser a marca do evangelho social que começava a despontar na Europa, mas
principalmente nas Américas do Sul e Central. Além disto, é o princípio do desconforto das
O comitê Lausanne sobre missão e evangelização mundial (LC) (1974), que reuniu
2.500 delegados de mais de 150 países, procurou reagir aos excessos da teologia liberal,
instalada sorrateiramente na WCC. Para os conciliares ainda existe a revelação geral presente
225
Jan van Lin. Shaking the fundamentals, p. 260.
226
Ibid., p. 265.
227
Wesley Ariarajah, verbete “Interfaith dialogue” in Dictionary of the Ecumenical Movement.
96
evangelização229.
teologia das religiões estavam causando uma profunda divisão entre as igrejas que
se aprofunda230.
No manifesto de Manila (1992) registrou-se: “somente Deus salva [...] toda salvação
reconhece ainda que as religiões têm o seu valor. Seguindo Brunner, o manifesto estatui:
“porque homens e mulheres são feitos à imagem de Deus, as religiões muitas vezes contêm
outras religiões puderam participar fazendo parte da assembleia, pois o programa do encontro
contemplava sessões onde ocorriam encontros inter-religiosos. A partir daí, dentro da WCC...
228
Marianne Moyart. Fragile identities: towards a theology of interreligious hospitality, Henry Jansen (trad.),
Amsterdam: Rodopi, 2011, p. 20.
229
Veli-Matti Kärkkleinen. Trinity and religious pluralism (Aldershots UK/Burlington USA: Ashgate
Publishing, 2004), p. 98.
230
Jan van Lin. Shaking the fundamentals, p. 265.
231
Veli-Matti Kärkläinnen. “Evangelical theology and the religions”. In Timothy Larsen e Daniel J. Treier
(edts.). The Cambridge companion to evangelical theology, p. 201.
232
Marianne Moyart. Fragile identities: toward a theology of interreligious hospitality, p. 21.
97
Holanda, demonstra que a discussão em torno da teologia das religiões ganhou os contornos
de uma crise: “Nesta discussão pareceu/parece que dentro do movimento ecumênico houve/há
resultado a WCC estar sendo desafiada hoje por uma crise de identidade”234.
2.e.2. Evangélicos
Genericamente, no Ocidente, todos os que não são Católicos Romanos e também não são
oposição à ala liberal”235. Algumas delas aderiram ao Fundamentalismo; outras, não. Todas,
porém, declarando sua confiança nas Escrituras fazem delas sua regra de fé e prática.
Em relação aos Católicos e Protestantes, este grupo foi o mais tardio a por em
consideração o tema com a profundidade requerida. Isto só passou a ocorrer a partir da década
de 1980 236 , e ainda assim em seu aspecto pragmático, pois o que inquietava os teólogos
evangélicos era o destino dos não evangelizados237, haja vista o incremento da percepção do
233
Wesley Ariarajah, verbete “Interfaith dialogue” in Dictionary of the Ecumenical Movement.
234
Jan van Lin. Op. cit., p. 269.
235
Veli-Matti Kärkkläinen. Introduction to Theology of Religions, p. 144.
236
Na verdade a primeira obra da cepa evangélica a tratar da questão foi da autoria de sir James N. Anderson.
Christianity and comparative religions (Downers Grove, IL: Intervarsity, 1970).
237
D. A. Carson. The Gagging of God: Christianity confronts pluralism (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1996);
Ajith Fernando. The Christians attitude toward world religions (Wheaton III: Tydale House, 1987); Gabriel
Fackre, Ronald Nash, John Sanders. What about those who that have never heard? Three views on the destiny of
the unevangelized (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1995); John Piper. Let the nations be glad (Grand
Rapids, MI: Baker, 1993); Ramseh Richard. The population of Heaven: a biblical response to the inclusivista
position on who will be saved (Chicago: Moody Press, 1994); John Sanders. No others name: an investigation
98
demonstram:
religiões deu-se em 1970 com a redação de um documento que ficou conhecido como
‘Declaração de Frankfurt’, e que foi produzido como reação à teologia das religiões liberal do
WCC. O proeminente missiólogo, Peter Bayerhaus, foi o redator do documento que entre
outras coisas dizia: “a Bíblia é o mais apropriado quadro de referência e de critérios para as
relações do Cristianismo com outras religiões. A salvação pode ser obtida apenas pela cruz de
tão sérios, estando o grupo fechado com o Exclusivismo. O que marca posições aqui é quanto
ao tipo a ser adotado, havendo adeptos das duas modalidades apresentadas na introdução. Há
Sproul 241 e Ronald Nash 242 , Gabriel Fackre 243 ; e teólogos que esposam um Exclusivismo
Fraco: John Sanders 244 , John Stott 245 . O grupo Forte é mais homogêneo, todos os seus
into the destiny of the unevangelized (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1992); Terrance Tiessen. Who can be
saved? Reassessing salvation in Christ and world religion (Downers Grove, IL: InterVarsity Press: 2004).
238
Apud Marianne Moyart. Fragile identities: towards a theology of interreligious hospitality , p. 16.
239
Velli-Matti Kärkkläinen. Trinity and religious pluralism, p. 97.
240
Gerald R. McDermott. Can evangelicals learn from world religions? p. 40.
241
Reason to believe (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1978).
242
Is Jesus the only savior (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994).
243
What about those who have never heard? (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1995).
244
Idem.
245
David Edwards e John Sttot. Evangelicals Essentials: a Liberal-Evangelical dialogue (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1988).
99
aproximação teológica que os liga e desde já nos desculpamos por não ser possível aqui
escrutinar de forma mais específica e aprofunda a posição de cada um, dada a exiguidade do
espaço disponível.
início deste capítulo, há outra distinção, do ponto de vista filosófico mais robusta, feita por
John Sanders, que nos ajuda a entender de forma mais clara o campo da controvérsia. Os
todos os seres humanos por meio da cruz de Cristo. O primeiro grupo crê na necessidade do
se agregam em torno desta concepção estão: Robert C. Sproul e Ronald Nash. O grupo que se
lhe opõe, entretanto, não entende ser possível conhecer os meios da graça usados por Deus
para salvar os que não ouviram, ou seja, John Sanders e John Sttot.
sênior de pregação e de ensino em Saint Andrews, Flórida, conhecido também por suas
Calvino e foi um dos primeiros a se manifestar sobre a condição ‘dos que não ouviram’.
da soberania e justiça divinas, bem como do Exclusivismo246, pelos quais identifica a questão
sobre a salvação dos que não ouviram como inequivocamente já decidida. Não se trata de
perguntar por que Deus salvaria só uns poucos. Antes deveríamos indagar por que existe
qualquer tipo de salvação, desde que todos os seres humanos subsistem em rebelião contra
Deus?247. Se existe salvação ela se deve a que graciosamente Deus decidiu não permitir que
todos se perdessem.
Quanto aos homens terem ou não ouvido o convite do evangelho, não importa, desde
que tenham ouvido a voz da criação de Deus. Para Sproul, assim como para Calvino,
Romanos 1: 18 e 19 é motivo suficiente para a condenação eterna de qualquer um, ainda que
nunca tenha ouvido um pregador cristão. Esta passagem significa que todos tem tido acesso
suficientemente claro e simples conhecimento de Deus para saber o que deve e o que não
deve fazer248. Ou seja, quem se perde sabe o suficiente para não se considerar vítima de uma
ignorância de que não padece, embora não lhe seja dada graça suficiente para a salvação249.
Sproul não demonstra a menor preocupação com este quadro de crueldade no cerne do qual se
encontra o Deus que os cristãos adoram. O Deus que ele prega é um Deus irado com a
humanidade. Por isso pode-se dizer que os que se salvam não o são por não terem rejeitado a
Porém, esta ira divina movida contra os rebeldes humanos parece não encontrar eco nas
Escrituras, consideradas em sua totalidade. Há diversos textos que apontam em outra direção.
246
“Sem um mediador, por certo de nada vale para a salvação o conhecimento de Deus depois da queda do
primeiro homem” (João Calvino. A instituição da religião cristã – vol. 2, São Paulo: Editora Unesp, 2008, p.
324).
247
Robert C. Sproul. Reason to believe, p. 43.
248
Ibid., p. 44.
249
Outros autores vão mais longe do que Sproul chegando a sistematizar o que o ser humano é capaz de saber
sobre Deus contando apenas com os recursos da revelação natural, presentes na criação divina, segundo
Romanos 1 e 2 ; 10: 18: “1) a crença num único bom e poderoso Deus; 2) a crença de que o homem deve a este
Deus perfeita obediência à sua lei; 3) a consciência de que não se encontra de acordo com padrão divino, e,
portanto, é culpado e está condenado; 4) o reconhecimento de que nada pode oferecer a Deus para compensá-lo
(ou fazer expiação) pelos seus pecados e culpa; 5) a crença de que Deus é piedoso e perdoará e aceitará aqueles
que se entregarem à sua misericórdia”. (Millard Erickson. “Hope for those who haven’t heard? Yes, but…” –
EMQ, 11, no. 2, April, 1975 –, p . 124-125.
101
Paulo escreve em sua Carta aos Romanos 5: 6: que Cristo morreu por nós sendo nós ainda
pecadores. Jesus nos ensinou a perdoar nossos inimigos e abençoar aos que nos amaldiçoam
Seminary, Louisville, Kentucky, até o dia de sua morte ocorrida por complicações decorrentes
Assim como Sproul, o DNA teológico de Nash vem de uma tradição calvinista adotada
pela confissão que abraçou: Batistas do Sul. Como evangélico adota a Bíblia como palavra
final para qualquer controvérsia de ordem teológica, contudo, como fundamentalista adota um
exclusivismo literal: “não há outro salvador ou outra religião, nós cremos, que possa trazer os
seres humanos à graça redentora de Deus”250. A afirmação de Jesus em João 14: 6: “eu sou o
caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” é entendida por ele de
modo mais restrito possível (daí o título dado à esta modalidade de Exclusivismo:
restritivismo). A partir de um texto paulino: “se com tua boca confessares que Jesus é o
Senhor e se em teu coração creres que Deus o levantou dentre os mortos, serás salvo”,
confissão, portanto, é conditio sine qua non da salvação251. Nos termos colocados por Sanders
transcurso de sua vida (Hb 9: 27-28) não teve a oportunidade de confessar seus pecados e de
aceitar a Jesus como seu salvador pessoal, mesmo que nunca tenha ouvido falar do evangelho,
250
Gabriel Fackre, Ronald Nash, John Sanders. What about those who that have never heard? Three views on
the destiny of the unevangelized, p. 107; Cf. Ronald Nash. Is Jesus the Only Savior, p. 16.
251
Gabriel Fackre, Ronald Nash, John Sanders. What about those who that have never heard? p. 108.
102
e tenha vivido uma vida irreprochável do ponto de vista moral e de sua religiosidade, estará
O problema de Nash, como também o de Sproul, é elidir os textos bíblicos que falam do
amor universal de Deus pelos seres humanos. Ainda mais quando este fato é potencializado
pelo dado estatístico inescapável de bilhões de pessoas que não ouviram nem ouvirão “a boa
nova da salvação”. Como calvinista ele não crê que a morte de Jesus tenha efeito vicário para
todos e, por conseguinte, será efetiva apenas àqueles que crerem (Jo 3: 16), estando os demais
condenados e sem justificativa para sua ignorância. Mas, Paulo pergunta a Nash “como crerão
naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10: 14).
Paulo não podia ter consciência da enormidade do problema que suas próprias palavras
propõem. O mundo ‘conhecido’ em que ele viveu resumia-se ao mare nostrum romano
decreto divino: “não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao
arrependimento” (I Pd 3: 9), que este crer não pode ser tão específico, assim como não foi o
crer dos patriarcas e outros santos não israelitas que se encontram na galeria da fé de Hebreus
11.
Do contrário fazemos de Deus um tirano cruel que admite salvar apenas alguns de uma
enormidade de criaturas que o ofenderam, sendo Sua graça suficiente para salvar a todos. O
monergismo calvinista só serve para ratificar a injustiça divina em salvar alguns por uma
vontade arbitrária, supostamente baseada no livro de Romanos, e enviar a estes que por Sua
Graça atenderam a seu chamado estender o convite a outros e, falhando estes, deixar que estes
outros que não ouviram se percam e tenham como destino eterno a danação.
103
Gabriel Fackre (1926-), clérigo da Igreja Unida de Cristo (United Church of Christ),
que resultou da fusão da Igreja Evangélica e Reformada (Evangelical and Reformed Church)
É autor de uma extensa lista de obras teológicas e foi professor de teologia e cultura em
Andover Newton Theological School, e como professor visitante em diversas outras. Também
esteve envolvido com as reuniões ecumênicas da WCC, tendo sido o representante de sua
Sua posição teológica sobre a condição dos que não ouviram é um pouco reflexo de seu
envolvimento com o movimento ecumênico. Por que então não está relacionado como
pluralista? Por que Fackre é exclusivista e, além disso, é adepto de um exclusivismo que
requer tanto o princípio ontológico quanto o epistemológico. Ou seja, tendo Jesus efetuado
sua obra de expiação na cruz torna-se necessário ainda que aqueles que forem salvos o sejam
por uma fé explícita no Salvador. A posição de Fackre é conhecida como Evangelismo Post
Mortem, assim chamada pela convicção de que todos terão uma segunda chance por
Para sustentar sua tese Fackre baseia-se em uma das passagens mais controversas das
Escrituras: “Ele também foi e pregou aos espíritos em prisão, que em outros tempos foram
desobedientes, quando Deus pacientemente esperava nos dias de Noé, enquanto a arca estava
razão, o evangelho foi pregado mesmo aos que agora estão mortos, para que sendo julgados
de acordo com o corpo, possam viver de acordo com o espírito; e João 5: 25: “em verdade vos
252
Há uma linhagem de importantes teólogos cristãos do passado que advogaram esta doutrina: Melito, Hipólito,
Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio e Gregório Nazianzeno. Após Agostinho a doutrina caiu em
descrédito, vindo a ganhar adeptos novamente no séc. XIX. (John Sanders, No other name, 184-188).
104
digo, vem o tempo e já chegou quando até os mortos ouvirão a voz do Filho do Deus, e os que
o ouvirem viverão”.
No frigir dos ovos, na realidade o que Fackre possui para implementar sua interpretação
outros falam de outra coisa: da ressurreição. Primeiramente, sem entrar no mérito exegético
de I Pedro 3: 18-20253, não é bom princípio hermenêutico basear doutrinas em um único texto
da Bíblia. Ainda mais em se tratando de algo da importância do destino eterno dos homens.
Em segundo lugar, ainda que fosse isto o que vem dito no texto, sua doutrina teria que
contradizer textos cristalinos que dizem exatamente o contrário: “foi dado aos homens morrer
uma única vez e depois disto o juízo” (Hb. 9: 27). Do jeito que vem posta, a proposição de
Fackre mais parece uma hypotesis ad hoc, que nasceu para salvar o Exclusivismo ontológico e
dos Cristãos.
Londres em All Souls, Langham Place. Sempre combativo, foi um dos líderes do movimento
Lausanne Covenant (1974), que resultou na criação uma vertente mais ortodoxa do
movimento ecumênico. Autor profícuo, deixando mais de cinquenta obras com sua assinatura,
muitas delas traduzidas até para línguas orientais. Stott foi condecorado pela realeza inglesa e
recebeu inúmeros doutorados honoris causa, haja vista a solidez de sua obra teológica, apesar
253
O texto em questão possui muitas coisas obscuras, além da própria estrutura da frase, repleta de subordinadas,
que tornam sua compreensão difícil: 1) quem são os espíritos em prisão? 2) o que Cristo pregou a eles? e 3)
quando Cristo lhes sermoneou? Nenhuma destas perguntas pode ser respondida sem a ajuda de argumentos
externos ao texto.
105
Stott nunca escreveu nenhuma obra tratando especificamente do tema de nosso, sem,
contudo, aqui e acolá deixar de dizer o que pensa. Na verdade não há muito a dizer por que a
ideia é exatamente esta, calar-se sobre o que não está explicitamente revelado nas Escrituras,
Deus, apresentada em vários lugares na Escritura, deduz-se que alguma maneira Deus irá
salvar estas pessoas, conquanto não saibamos como isto ocorrerá, já que a obra divina para a
Eu creio que a postura mais cristã é permanecer agnóstico sobre esta questão [...] o
fato é que Deus, ao lado dos avisos mais solenes quanto à nossa responsabilidade em
responder aos apelos do evangelho, não tem revelado como tratará com aqueles que
nunca os tenham ouvido.254
Parece ainda que Stott adota alguma sorte de princípio epistemológico. Ou seja, os que
serão salvos provindos das outras religiões deverão apresentar algum grau de conhecimento
pessoas necessitam antes de clamarem a Deus e serem salvas”255, ele continua, “isto nós não
sabemos”.
Não é uma convicção solitária, desde que a maioria dos pregadores das missões
evangelização, sem, no entanto, extinguir a esperança daqueles que nunca chegariam a ouvir o
Se há em algum lugar uma alma anelante por Deus, seguindo a luz da natureza e a
sua consciência, na confiança e na fé de que o Grande Desconhecido irá de alguma
maneira dar mais luz, e guiar a vida e a bem-aventurança, deixemos descansar tal
nos braços dos paternais cuidados256.
254
David Edwards e John Stott. Evangelicals essentials: A Liberal-Evangelical Dialogue (Downers Grove, IL,
III: InterVarsity Press, 1988), p. 327.
255
John Stott. The Contemporary Christians: Applying God’s Word to Today’s World (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1992), p. 319.
256
Apud Harold Netland. Encountering Religious Pluralism. The Challenge to Christian Faith and Mission
(Downers Grove, IL: InterVarsity, 2001), p. 51.
106
Além Stott e Pierson, há muitos outros nomes que se alinham a esta posição: Robert H.
Christian College e atualmente atua em Hendrix College. Tornou-se conhecido pela polêmica
conhecido como Teísmo Aberto. É autor de numerosas obras teológicas, inclusive No other
name, que vem amiúde citada nesta investigação, a qual trata exatamente do assunto que
transcorre. Sua posição se destaca da de Stott por uma sutileza. Ele não preserva o resíduo
epistemológico que Stott fez questão de manter, embora permaneça mantendo o princípio
ontológico, que reconhece ser o único válido para a salvação de todos os homens: a morte de
Para entender a posição de Sanders é preciso começar por sua concepção de Teísmo
Aberto, segundo a qual Deus não tem conhecimento do futuro, pela razão de que a rigor o
futuro não existe, porque a liberdade que Deus concedeu aos seres humanos está realmente
defendido por teólogos de tradição calvinista sem com isto negar a doutrina da onisciência
divina 259 e nem a soberania divina (onipotência). Em suma, segundo o Teísmo aberto de
Sanders, Deus não exerce um controle absoluto sobre Sua criação; ao invés, opera com base
257
The Progress of World-wide Missions (New York: Dorna, 1924).
258
Foreign Missions After a Century (London: Oliphant Anderson & Ferrier, 1984).
259
De acordo com J. Sanders, há diversas passagens da Escritura Sagrada que sustenta uma visão aberta da
divina providência: “(1) a Bíblia retrata Deus respondendo às petições das pessoas (II Rs 20; Mc 2: 5, 6: 5-6; Tg
4: 2); (2) a Bíblia retrata Deus como sendo afetado pelas criaturas e algumas vezes sendo surpreendidos por eles
(Gn 6: 6; Ez 12: 1-3; Jr 3: 7); (3) A Bíblia retrata a Deus mudando de ideia à medida que ele se relaciona com
suas criaturas (Gn 22: 12; Ex 32; I Sm 2: 30; Jn 4: 2, Jz 10); (4) a Bíblia retrata Deus antecipando certos eventos
que na realidade não ocorrem (Ez 26: 1-16, 29: 17-20). (J. Sanders. The God Who Risks: A Theology of
Providence – Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1998), capítulos 3 e 4.
107
numa “soberania geral” que se preocupa apenas com as estruturas gerais de seu plano de
governo260.
Deve-se levar em conta este pano de fundo arminiano extremado, para entender a
teologia das religiões que lhe é consequente. Isto nos impediria de pensar acompanhando
Kärkkäinen que Sanders é inclusivista 261 . Os meios de graça apresentados pelo teólogo
pentecostal não são definidos, mas sugeridos. Suas afirmações sobre a salvação dos que nunca
ouviram o evangelho estaria calcada numa espécie de liberdade por Deus concedida aos
mortais, e não num plano divino que contemple um meio de graça específico para eles. Todos
os meios de graça citados por Kärkkläinen aparecem no livro de John Sanders em apenas um
parágrafo262, o que significa que na realidade não são o ponto crucial de sua teologia. O que é
fundamental para ele é o “princípio da fé”, que vem a ser, segundo sua própria definição, uma
convicção que reúne três elementos fundamentais: verdade, confiança e ação efetiva: “fé em
Deus contém alguma verdade, venha esta verdade da Bíblia ou do trabalho de Deus na
criação” 263 . Páginas antes Sanders já havia usado a alegoria do abrigo que o salvara
milagrosamente de uma tempestade. E aqui o ponto em que me baseio para classificar Sanders
um passo a frente de Stott por reduzir ainda mais a necessidade de conhecer a obra de
salvação de Deus. Sua conclusão foi de que não houve necessidade de saber quem construíra
260
John Sanders. The God Who Risks: A Theology of Providence, p. 197.
261
Kärkkäinen destaca cinco pontos que o fazem perceber Sanders como inclusivista: “(1) enquanto os Cristãos
são salvos pela sua fé em Jesus Cristo, outros podem ter acesso à salvação ao responder fielmente à luz que lhes
foi dado, mesmo não tendo sido alcançados pelo evangelho; (2) a revelação geral não apenas serve para preparar
o povo para receber o evangelho, mas também como meio salvífico; (3) o Espírito do Deus Triuno pode atingir
salvificamente aqueles que não receberam o evangelho; (4) a exclusividade e singularidade de Cristo como
manifestação de Deus (através da encarnação) não torna sem sentido outras manifestações do Logos; (5) a Igreja,
através do ensino bíblico e experiência missionária, tem achado evidências da obra redentora de Deus em
culturas não previamente expostas à pregação da mensagem cristã.” (Veli-Matti Kärkkäinen. Introduction to
Theology of Religions, 144-145).
262
John Sanders. No other name, p. 36.
263
Ibid, idem.
108
e a quem pertencia o abrigo, o que importou naquele momento foi sua efetividade salvífica. E
Sanders termina citando C. S. Lewis quando pensa num processo salvífico mais amplo:
“eu penso que cada oração que é sinceramente feita mesmo a um falso deus é aceita pelo
verdadeiro Deus, e que Jesus Cristo salva muitos que não pensam que Ele os conhece”265.
Como exatamente isto ocorre? Qual a forma exata como Deus trabalha nas religiões?266 É
impossível saber, dado que o próprio Deus desconhece, segundo Sanders, como a liberdade
humana responderá às suas disposições salvíficas. De sorte que os princípios fornecidos por
Kärkkläinen são apenas possibilidades de uma salvação que só será conhecida de fato em
próprio Deus.
2.e.3. Independentes
embora, suas convicções sejam mais restritivas do que as deles. O que os agrupa numa seção
à parte do mundo cristão é sua condição, como seu nome indica, de não ser descendência
direta ou indireta do movimento religioso que teve origem na Reforma do século XVI. Sua
expectativas escatológicas que floresceram neste país na primeira metade do século XIX:
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, as Testemunhas de Jeová e os Adventistas
264
Ibid, p. 37.
265
John Sanders. No other name, p. 45.
266
“Há pessoas nas outras religiões que estão sendo guiadas pela secreta influência de Deus a se concentrar
naquelas partes de sua religião que está de acordo com o Cristianismo, as quais, assim, pertencem a Cristo sem
conhecê-lo” (Ibid., idem).
109
outra característica é aceitarem outros textos inspirados além da Bíblia, ainda que o grau de
Os Santos dos Últimos Dias, como preferem ser chamados, são quase universalistas,
visto que, no final da história deste mundo, poucas pessoas irão experimentar a danação
eterna 267 . Mesmo os ladrões, mentirosos, assassinos e outros transgressores da lei divina,
mesmo aqueles que rejeitaram a pregação do evangelho, terão seu quinhão,. Mas, isto não nos
soteriologia. Eles sustentam que todos são salvos pela graça de Deus em Jesus Cristo,
A solução teológica adotada para preservar a justiça divina foi a hierarquização da salvação, a
criação de vários graus de salvação, mais precisamente três reinos para onde irão no final de
tudo as almas dos homens: o celestial, o terrestrial e o telestial. Para o primeiro irão aqueles
que em vida cumpriram todas as prescrições divinas (éticas e cerimoniais), mas também
aqueles que não as cumpriram, porque post mortem, todos terão esta oportunidade. Na
teologia mórmon o evangelho é pregado às almas dos que já morreram, podem ser batizados
vicariamente quando seus familiares o são, podem se casar para a eternidade (se o viúvo ou a
viúva assim o desejar), etc. Para o segundo irão os não mórmons, ou seja, aqueles que não
confiaram na origem divina das revelações de J. Smith, aqueles que receberam o evangelho
post mortem e o rejeitaram, aqueles que se deixaram cegar pela iniquidade do mundo268. Para
o terceiro plano irão todos os que rejeitaram o evangelho, o testemunho de Jesus (as
267
Douglas Davies. The Mormon Culture of Salvation (Aldershot, England: Ashgate, 2000).
268
Joseph Smith. Doctrines and Covenants of the Church of Jesus Christ of Latter Days Saints (Whitefish, MO:
Kessinger Publishing, 2010), 76: 72-79.
110
mentirosos, adúlteros, assassino, a todos os que zombaram dos mandamentos de Deus. Seu
viver na presença de Deus, portanto, o reino celestial dos Mórmons, o que diz a maior
autoridade da Igreja dos Santos dos Últimos Dias, Joseph Smith, sobre o destino dos não
evangelho, mas que o teriam recebido caso tivessem tido oportunidade, estes serão herdeiros
do reino celestial”. Também que “aqueles que morreram sem terem tomado conhecimento
dele, mas que se o tivessem conhecido o teriam abraçado de todo coração, serão herdeiros do
reino” 270 . Por que então não classificar os Mórmons como inclusivistas? Por que o
conhecimento do evangelho, como o texto indica, está implícito. Além disto, há ainda a
evangelização post mortem, de modo que a melhor conclusão sobre eles é a de que são
diálogo inter-religioso 271 . Basicamente, quanto ao status salvífico das religiões, sustentam
ideias muito próximas a de E. Brunner, acreditando na revelação geral da natureza, desde que
são criacionistas. Além disto, creem na hierarquia revelacional de Brunner e dirigem seus
269
Ibid., 76: 81-86.
270
Ibid., 137: 7-8.
271
“Como membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, alegramo-nos por Deus amar e cuidar de sua criação –
todo ser humano de qualquer raça, cultura e crença. Nós reconhecemos que Deus tem se revelado de várias
maneiras, o que inclui certos valores e verdades encontradas nas grandes religiões do mundo. Respeitando as
crenças dos povos das outras religiões, nós como crentes em Jesus, queremos compartilhar importantes e únicas
verdades reveladas na Santa Bíblia. Queremos fazer isto numa linguagem e modo que sejam significativos e
compreensíveis aos povos, no contexto de suas próprias culturas.” Este texto foi composto pelo Comitê para
questões da missão global dos Adventistas do Sétimo Dia. (Stefan Höschele. Interchurch and interfaith
relations. Seventh-day Adventist statements and documents (Frankfurt am Main: Peter Lang, 2010).
111
porque historicamente (por serem uma minoria) vem defendendo a liberdade religiosa e uma
atitude ativa de seus membros em defesa de leis que a fomentem e garantam a liberdade de
Apesar de suas disposições favoráveis com relação às religiões, não possuem uma
teologia plenamente desenvolvida sobre a condição salvífica daqueles que não ouviram, até
porque só agora têm seu interesse voltado para a teologia das religiões. Talvez, dentre os
2.e.4. Pentecostais
Os pentecostais são os exclusivistas menos estritos. Porém, não é possível ainda chamá-
los de inclusivistas, com exceção de Amos Yong que será avaliado no capítulo subsequente.
Eles mantêm a assim chamada teologia negativa quanto à religião natural e o consequente
evangelizados também estão sob a ação da graça de Deus, por meio do Espírito, as religiões
das quais participam não desempenham nenhum papel salvífico significativo. “Eles são salvos
evangélicos, por causa da ênfase pneumatológica de sua teologia das religiões: “diversidade e
pluralismo são, portanto, intrínsecos à Igreja, onde Espírito é derramado. Pois, por outro lado,
272
Steve Studebaker. From Pentecost to the Triune God (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 2012), p. 210.
112
o envio do Espírito no dia de Pentecostes resultou num organismo vivo”, que não pode ser
importantes. Numa dessas faz uma análise abrangente da teologia das religiões, aproximando-
apreciação ligeiramente mais positiva das religiões em decorrência de uma eclesiologia com
ênfase pneumatológica. Com efeito, para ele, as religiões contêm elementos de verdade que
podem instruir os Cristãos. O Espírito atua também fora da Igreja e entre as religiões. Ele não
está subordinado a Cristo e isto abre possibilidade para serem encontradas boas coisas e
verdades nas religiões274. Contudo, as religiões de si não podem salvar275. A salvação nas
só ocorre quando as coisas boas e as verdades das religiões tornam possível o ingresso do
Ele está consciente de que não é uma tarefa fácil colocar o Cristianismo lado a lado com
percebe que o conceito de trindade gera uma incompatibilidade insuperável, como ele próprio
outras religiões, ele faz várias tentativas usando a Cristologia como base. Os problemas são
273
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh. Pentecostalism and the possibility of global theology, (Grand
Rapids, MI: Baker Academics, 2005), p. 173.
274
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to ecclesiology (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2002), p. 24.
275
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to theology of religions (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2003), p.
139.
276
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to theology o religions, p. 157.
113
inevitáveis. Veli-Matti começa seu arrazoado com argumentos pacíficos sobre a natureza
Até este ponto podemos ir sem nenhum problema. Todos estes movimentos religiosos
contextuais”278, em que uma síntese entre as culturas religiosas é ensaiada então o resultado
dá em soneto mal ajambrado, pois os limites da ortodoxia são cruzados, deixando a Bíblia de
Nas culturas africanas, por exemplo, onde vários conceitos religiosos favorecem o
encontro com o Cristianismo, gerando o que ele chama de cristologia “Cristo como ancestral”.
Contudo, há coisas na teologia cristã que são fundamentais, mas que não encontram paralelo
pecado, com toda a carga metafísica que possui no Cristianismo. Ou seja, Cristo não poderia
De igual maneira a Cristologia asiática “Cristo como salvador universal” teria grande
Apolinaristas e outros Docetistas, dado que nega a história e o valor da irrupção do divino na
história. Aqui, de novo, um problema com o conceito de salvação, que para as religiões
277
Veli-Matti Kärkkäinen. Christology. A global introduction. An ecumenical international and contextual
perspective (Grand Rapids, MI: Baker Publishing Group, 2007), p. 17.
278
Veli-Matti Kärkkäinen. Christ and reconciliation (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing, 2013), p.
71.
279
Veli-Matti Kärkkäinen. Christ and reconciliation, p. 73.
114
asiáticas não pode ocorrer na história, sendo o mundo material sede da escravidão da alma
humana. O encontro com o salvador tem que ocorrer fora do tempo. O Jesus de Nazaré,
2.f. Conclusão
Este capítulo foi organizado com base em alguns critérios. Estamos conscientes de que
completamente diferente. Outros nomes aqui apareceriam e outros estariam ausentes. Como o
leitor pôde perceber este é um campo cheio de sutilezas e nenhuma obra generalista do mundo
seria capaz de fazes justiça a todas elas. Ainda agora nos restam dúvidas de que alguns que
apareceram por último não estariam mais bem classificados no capítulo subsequente, ou se os
primeiros do capítulo vindouro não estariam mais coerentemente postos neste lugar. A região
Ademais, os próprios autores aqui listados poderão em alguns anos ter evoluído para mais ou
para menos exclusivismo. Claro que isto tudo deixa neste que vos escreve uma sensação de
frustração, provavelmente compartilhada pelos leitores, mas todas as obras introdutórias vêm
CAPÍTULO III
Inclusivismo
3.a. Introdução
O Inclusivismo tem uma larga história no Cristianismo. Alguns acham até que ela tenha
começado em seus primórdios, nos dias apostólicos, com Paulo e as teologias lucana e
marcana, onde se percebe certa visão continuista na passagem de uma cultura gentílica para
uma cristã, que até poderia ser classificado como um Inclusivismo brando280. Contudo, como
vimos expondo desde o capítulo anterior, nossa opção metodológica é não considerá-lo
princípios: (a) a vontade salvífica universal de Deus e (b) a salvação somente por meio do
ministério de Jesus Cristo. Contudo, este hibridismo ainda não dá conta da singularidade do
Inclusivismo quando comparado com as outras abordagens, visto que o Exclusivismo sustenta
meio de Cristo não precisa ser algo de que os adeptos salvos das outras religiões tenham
consciência:
280
Na teologia lucana, por exemplo, Paulo falando aos Gentios em Listra, registra-se que “Deus não se deixou
ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem”, dando-lhes do céu chuva e estações frutíferas, enchendo-
lhes o coração de fartura e alegria (At. 14: 17). Em Atos 17, onde aparentemente o registro de Paulo pregando
aos atenienses dá uma clara apresentação da ideia de continuidade entre o paganismo dos gregos e a adoração do
Deus verdadeiro, na verdade é uma referência à religiosidade, ao impulso religioso, dos gregos e não à sua
religião280. Ademais o motivo da ignorância gentílica permanece subentendido, posto que Paulo se apresente
como revelador da identidade do Deus que eles adoravam sem conhecer. Ainda Paulo em Romanos, capítulo 2,
argumentando com base na revelação natural, diz que mesmo aqueles que nunca ouviram a pregação do
evangelho não serão considerados inocentes. Contudo, parece que para o apóstolo das gentes a revelação natural
não é suficiente para salvar, mas o é para perder aqueles que se desviarem dos propósitos divinos impressos
como digitais de Deus em Sua criação. Podemos mencionar ainda II Pedro 3: 9 e I Timóteo 2: 4, ambos textos
usados para sustentar a vontade salvífica universal de Deus. Porém, o que nestes textos está dito sobre o desejo
de Deus de salvar a todos nada alude sobre uma ação divina nas religiões nem quanto à eficácia salvífica delas
como meio, ainda que secundário, de salvação. Podemos concluir que estes textos geralmente usados para
sustentar o Inclusivismo neotestamentário só tem a dizer sobre as religiões o que é reticente e inespecífico, o que
só reforça a ideia da inexistência neles de uma teologia das religiões.
116
A visão em que, embora Jesus seja o único salvador do mundo, a pessoa não precisa
crer no evangelho para ser salvo. O Inclusivismo concorda com o Exclusivismo
quanto a Jesus ser o único salvador da humanidade: nenhum ser humano será jamais
salvo do pecado e do inferno por nenhum outro a não ser por Jesus. Mas
Exclusivismo e Inclusivismo dissentem quanto à necessidade de pessoas não salvas
precisarem confiar em Jesus para a salvação281.
necessário que a pessoa que é salva creia nele, ou sequer tenha ouvido seu nome alguma vez
na vida282.
Pronto, temos aí a marca singular do Inclusivismo. Contudo, isto ainda não basta, pois
Cristãos são salvos por Cristo, mas não tomam conhecimento disto. Esta salvação ocorre
sempre por meio de Cristo, mas o instrumento pode ser o Espírito, que segundo esta
concepção atua fora dos limites da Igreja, ou pode ser através da revelação natural, que,
segundo certos inclusivistas, tem função positiva: é suficiente para guiar as pessoas para
Deus. No caso Católico Romano, além de todas estas razões, os Gentios são salvos por Cristo
nos-ia embasamento textual. O NT não é inclusivista porque os princípios acima citados não
se lhe aplicam. Não se apresenta no Novo Testamento nem a ideia do Espírito atuante fora da
circunscrição da Igreja, embora haja exemplos da atuação do Espírito fora dos limites
geográficos da Igreja. Em outras palavras, a atuação extra eclesial do Espírito Santo não
281
Robert A. Pearson’s introduction in Christopher W. Morgan (org.). Faith comes by hearing (Downers Grove,
IL: InterVarsity Press, 2008), p. 12.
282
Ibid., p. 13.
117
ocorre paralelamente ou à parte de Sua atuação na Igreja, mas sempre em relação à ela. Ele
prepara os que estão sem o conhecimento do evangelho para a recepção do evangelho. A ideia
lembrar que, embora tenham sido os pioneiros da elaboração da ideia do coroamento, nenhum
deles jamais teve em mente incluir as religiões de seu tempo na plataforma religiosa da qual o
Os pais nunca aceitaram o politeísmo, desde que era contrário aos ensinos do Antigo
Testamento. Em geral os pais eram extremamente céticos e hostis às Religiões de
Mistério, às mitologias pagãs e a muitos rituais pagãos. A Astrologia como meio de
adquirir um conhecimento secreto, tão prevalente entre as Religiões de Mistério e
outras, era constante alvo de suas críticas. Os pais também se opuseram a seitas
orientais, tais como Maniqueísmo, que encontrara portas abertas para o Ocidente nos
primeiros séculos d. C.283.
decadência do paganismo greco-romano. E ainda mais pela rivalidade com os pagãos e por
sua condição de minoria, o Cristianismo como igreja perseguida e caluniada não tinha como
entrar em convênio com a gentilidade de sua época. A ideia do coroamento, pelo menos em
relação à Justino, nasceu para refutar um argumento dos não Cristãos simpatizantes da
por que o Cristianismo demorou tanto a aparecer se o seu Deus é o Criador de todas as coisas?
filósofos e profetas da Antiguidade teriam sido inspirados quando ultimavam suas obras. Seu
objetivo era ressaltar entre a filosofia e o Cristianismo284. Jamais passou pela sua mente a
283
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to theology of religions, pp. 55 e 56.
284
Eric Osborn. “Justin Martyr and the Logos Spermatikos” (SM, vol. 42, 1993), p. 47.
118
doutrina de um Logos trans-temporal à parte de Jesus Cristo crido e afirmado pelos teólogos
asiáticos.
Por tudo isto, fica patente que o principal objetivo dos Pais Apologetas era demonstrar
que o Cristianismo era uma “filosofia”, ou seja, tinha respaldo intelectual, estava ligada
historicamente a outras manifestações religiosas e filosóficas, e que, portanto, não era uma
marginais à sociedade, o que de certa forma era verdade, dada a condição ilegal das práticas
religiosas cristãs. Em suma, sua intenção era vencer o preconceito contra o Cristianismo e
favorecer sua expansão entre os mais letrados de seu tempo. Nada tendo a ver com o projeto
de poder alternativo de uma religião que em outros tempos tinha sido hegemônica e
dominante, como é o caso do inclusivismo católico romano, tampouco tem relação com a
ideia de outras manifestações do Logos antes de Jesus Cristo, como infelizmente tem sido a
interpretação de alguns.
Este Inclusivismo surge como resultado das inquietações evangélicas com os que nunca
Colocamos esta designação dupla mais para deixar clara a origem dos autores do que para
demonstrar alguma peculiaridade teológica. Claro que os autores a seguir concordam entre si
e têm consciência disto, mas além da influencia mútua que exerce todo aquele que lê e é lido,
nada mais os une, sendo oriundos de suas respectivas denominações. O campo teórico comum
(2) Muitos inclusivistas levantam a questão da justiça de Deus: seria injusto se Deus
condenasse pessoas meramente porque nunca ouviram o evangelho de Cristo. Para
que Deus seja justo e misericordioso deve haver outros meios de vir a Ele.
(3) Muitos inclusivistas, não todos, têm argumentado que os adeptos das religiões
não cristãs mundiais podem ser salvos sem crer no evangelho. Não que estas
religiões por si mesmas ensinem o caminho da salvação, mas que Deus em Sua
graça aceita aqueles que sinceramente se arrependem e seguem-No nos limites de
sua religião.
(5) Todos os inclusivistas alegam que nas Escrituras algumas pessoas são salvas não
especificamente pela fé em Jesus, mas com base em um princípio de fé mais
genérico. As pessoas não alcançadas de hoje, de maneira semelhante, podem ser
salvos sem o evangelho baseados no mesmo princípio285.
Um pouco destas ideias vão aparecer em cada um dos autores avaliados abaixo,
diferindo apenas quanto à ênfase e o modo como são elaboradas por cada um deles.
College, tem sido acusado de se aproximar demasiadamente do pluralismo por causa de suas
convicções mais abertas com respeito à teologia das religiões. Ele se entende, entretanto, num
ponto de equilíbrio, não sendo nem restritivista nem universalista, segundo suas próprias
palavras, os dois maiores perigos para o teólogo das religiões 286 . De um lado, há textos
bíblicos que demonstram o desejo universal de Deus de salvar muito mais do que grupelhos
285
In Christopher W. Morgan (org.). Faith comes by hearing (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2008), p.
15.
286
Clark Pinnock. A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions (Grand Rapids:
Zondervan, 1992), p. 12.
287
Clark Pinnock. A wideness in God’s mercy, p. 18-19.
120
O ponto de equilíbrio entre estes pontos extremos é o que Pinnock julga ser seu
posicionamento:
Irineu ele acolhe a noção de concertos universais feitos por Deus com toda a humanidade,
antes do convênio firmado com Israel no Sinai. Contemporaneamente, esta não é uma
argumentação nova, no campo católico romano há a figura de Jean Danielou que sustentou
ideias parecidas, falando de “concertos cósmicos” de Deus, que tem tanta validade quanto os
concertos mosaico e neotestamentário, ou seja, são válidos por conta da teoria da preparação
qual o concerto cósmico é a preparação para o concerto mosaico e é aperfeiçoado por ele, o
mosaico é a preparação do crístico e é aperfeiçoado por ele289. Yong levanta contenções a esta
pela promessa de não mais cobrir-se a terra com as águas do dilúvio (Gn 9: 8-17), tal como o
com Adão, pela promessa da vinda do descendente (Gn 3: 15), não foi meramente uma
288
Ibid. , p. 17.
289
Jean Danielou. Holy pagans of the Old Testament (London: Longmans/Green & Co., 1957).
290
Segundo as Escrituras, todos os concertos celebrados por Deus com os seres humanos foram rompidos pelos
próprios, o que é prova da inconstância humana e da fidelidade divina. O concerto com Adão foi quebrado pelo
assassinato de Abel; o convênio com Noé espezinhado pela torre de Babel; o concerto abraâmico desfeito pelas
mentiras do próprio no Egito, que ocasionou a morte de pessoas da casa de faraó; o pacto com os israelitas
desrespeitado pela idolatria, o concerto de Jesus com os apóstolos foi desconsiderado por sua falta de fé, ao
fugirem e ao se esconderem depois de sua morte. Deve-se, portanto, ter cautela com o excessivo otimismo
quanto às manifestações religiosas humanas.
291
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh. Pentecostalism and the possibility of global theology (Grand
Rapids: Baker Academics, 2005), p. 230.
121
com Abraão é ainda mais evidentemente salvífico com a promessa: “em ti serão benditas
Dos capadócios ele extrai uma eclesiologia pneumatológica, que até hoje marca a Igreja
Oriental, enquanto na Igreja Ocidental impera uma eclesiologia cristológica, onde a ênfase
está sobre a hierarquia e não sobre os dons espirituais. A visão de Pinnock tem fundamento
trinitário. Ou seja, não se trata meramente de colocar os holofotes no Espírito Santo, mas de
perdida por uma ênfase indevida na assim chamada economia da salvação, onde há uma
pessoas da Trindade, em que o Pai envia o Filho, o Filho envia o Espírito; O Espírito conduz a
Cristo e Cristo, ao Pai. Por conta deste arranjo perdeu-se a noção da Trindade como
comunidade em amor293, substituída por um modelo hierárquico, que mais retrata o bispado
Abandonada a rigidez da economia da salvação, Pinnock abre espaço para uma noção
mais universalizada da obra do Espírito, a qual será o fundamento dos convênios universais de
Deus mencionados mais acima. Assim como ao Espírito coube uma ação preparatória na
criação, desde que antes que o mundo fosse criado o Espírito pairava sobre as águas (por
assim dizes apaziguando o caos para que a Palavra pudesse trazer a vida à luz), da mesma
292
Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy, p. 22.
293
Cf. Miroslav Volf. After our likeness: The Church as Image of the Trinity (Grand Rapids, MI, Wm. B.
Eerdmans, 1998).
294
Clark H. Pinnock. Flame of Love. A theology of the Holy Spirit (Downer Grove, IL: InterVarsity Press, 1996),
p. 41.
122
sorte, há uma obra do Espírito Santo antes da fundação da Igreja, da qual fazem parte dos
convênios citados, e que funcionam como praeparatio evangeli. O Espírito, portanto, realiza
O lugar no quadro de discussão onde Pinnock se insere é complexo, porém, a meu ver
Esta complexidade deve-se às próprias fontes cristãs, que, além daquela dimensão
polêmica aventada linhas acima, negativas às religiões, possuem textos que demonstram a
De acordo com a Bíblia, também existem entre as nações religiões que estão do
outro lado do espectro [não estão sob a condenação de Deus]. Ela reconhece fé, não
cristã e nem judaica, que é, não obstante, nobre, edificante e sã. E a nós vêm nesta fé
primordial e na categoria de santos pagãos, crentes tais como Abel, Enoque, Noé, Jó,
Daniel, Melquisedeque, Ló, Abimeleque, Jetro, Raabe, Ruth, Naamã, Rainha de
Sabá, o centurião romano, Cornélio e outros. Eles foram crentes, homens e mulheres
que experimentaram um correto relacionamento com Deus e viveram vidas santas,
sob os termos mais amplos do concerto feito com Noé297.
Para Pinnock, porém, nem de longe significa uma licença bíblica para o pluralismo.
Todos os elogios da citação acima são dirigidos a pessoas, seres humanos, que, a despeito de
295
Clark H. Pinnock. Flame of Love, p. 63.
296
Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy, p. 15.
297
Ibid., p. 92.
123
Deus” e foram fieis na medida do seu conhecimento sobre as demandas divinas a seu respeito.
Não se pode transformar situações isoladas, tais como o discurso de Paulo no areópago de
evangélico. Esta também é a opinião de críticos mais equilibrados, tais como Veli-Matti
Como contenções pode-se dizer, porém, que Pinnock, apesar dos esforços para dar uma
base bíblica à sua posição, persiste em perorações e ilações injustificadas do ponto de vista
textual. No capítulo 3 de seu livro mais importante sobre o tema das religiões ele baseia sua
infusão do Espírito. Como vimos, há textos no AT e no NT que dão lastro à ideia de que a
ação do Espírito não se restringe à Igreja, mas aí não está declarado que se estende às
298
Ibid., p. 92.
299
Veli-Matti Kärkkläinen. Trinity and religious pluralism, p. 103.
124
tempos, não quer dizer que aja em instituições religiosas não cristãs, qualquer que seja a
medida com que isto ocorra. Por outro lado, apenas aludindo ao que já foi dito na introdução,
a ação extra eclesial do Espírito dá apenas numa dimensão geográfica, pois todas as vezes que
esta ação é aventada nas Escrituras há conexão com a Igreja ou com o povo de Deus, não
existindo nenhum relato de pessoas impressionadas pelo Espírito que vivam ignorando a
tradição bíblica. Isto, obviamente não vale para os patriarcas pré-abraâmicos. Na conclusão
Até aqui é inegável que o referencial teológico pentecostal, tal como o evangélico, é
bíblico e exclusivista, marcado especialmente por dois aspectos fundamentais: (a) a já referida
teologia das religiões negativa, que não admite seja aderida às religiões uma dimensão
salvífica e (b) a ação do Espírito Santo sempre estando relacionada ao ministério do Filho300.
Mais recentemente, contudo, Veli-Matti Kärkkäinen e Amos Yong deram provas de ter
Tal como Pinnock, Yong não se mostra satisfeito com os resultados das teologias das
religiões que conhece e não se vê incluído em nenhum dos três grupos tipológicos de Race
não acha correto decidir a priori que as religiões sejam irrelevantes; não é inclusivista, porque
esta perspectiva sugere que as religiões sejam substituídas ou completadas pelo Cristianismo;
não é adepto de um Pluralismo sintético por causa da metanarrativa filosófica usada para
constituir a síntese da religiosidade humana301. Seu objetivo é constituir uma teologia das
300
Steve Studebaker. From Pentecost to the Triune God, p. 210.
301
Amos Yong. Pneumatology and the Christian-Buddhist dialogue. Does the Spirit blows through the middle
way (Leiden: Brill, 2012), p. 14.
125
religiões cristã que realmente leve a sério o discurso das religiões, que as analise como lugar
onde também atua o Espírito Santo, sendo o principal papel do teólogo das religiões discernir
onde está a presença e onde não está a ausência do Espírito, partindo do pressuposto de que a
presença e a atividade de Deus por meio Espírito atua na vida de todas as pessoas que
exercem fé302.
Para tanto, Yong começa seu edifício teológico contrariando a bem aceita subordinação
Pinnock, ele crê que o Espírito aja além dos limites da Igreja, porque há uma “relação em
Lossky, seus argumentos remontam às discussões conciliares e àquilo que ele chama de “a
O filioque, cuja tradução literal é ‘e do filho’, foi uma cláusula acrescentada ao credo
niceno pelas igrejas ocidentais desde o Toledo III (589 d. C.), com a intenção de estender a
subordinação do Espírito não somente ao Pai, mas também ao Filho. Longe de ser uma
‘questão bizantina’, a cláusula reflete a disputa pela hegemonia entre as Igrejas Latina e
Grega, sendo a independência do Espírito mantida pela Igreja Grega e sua dependência ao
Filho pela Igreja Latina. À Igreja Latina interessava a subordinação do Espírito ao Filho,
porque cria que sua instituição procedia do próprio Filho, posto ser seu bispado herdeiro do
interessou ao Ocidente, bem como uma economia da salvação rígida, por causa de sua ênfase
hierárquica, porém a subordinação do Espírito ao Pai e ao Filho torna o Espírito Santo uma
302
Amos Yong. Discerning the Spirit (s). A Pentecostal-Charismatic contribution to Christian Theology of
Religions (Sheffield UK: Sheffield Academic Press, 2000), p. 24.
303
Amos Yong. Discerning the Spirit (s). A Pentecostal-Charismatic contribution to Christian Theology of
Religions , p. 58.
304
Amos Yong. “The Turn to Pneumatology in Christian Theology of Religions: Conduit or Detour?” Journal of
Ecumenical Studies (Summer-Fall, 1998), p. 451.
126
figura menor da Trindade, submetida ao Filho e sem liberdade para atuar no mundo fora da
Igreja305.
controversos que nada fazem para aumentar a solidariedade entre as confissões religiosas”,
Yong rejeita todo tipo de subordinação em nome de uma “mutualidade das economias da
Espírito tem a liberdade de atuar diretamente relacionado ao Pai, como sua segunda mão
universalidade que caracteriza o Espírito. Como é evidente, suas conclusões abrem espaço
para a admissão das religiões na esfera do mistério divino, sob os auspícios da ação livre do
Espírito, coordenada unicamente à vontade salvífica do Pai308. Isto nos leva, como a princípio
foi dito, à conclusão de que Yong defende uma espécie de Inclusivismo, à moda rahneriana,
ou algo para lá do limite entre o Exclusivismo e o Inclusivismo, tendo por base em vez de
Eu sugeri em outro lugar que as religiões nem são acidentes da história nem
usurpações da divina providência, mas, de diversas maneiras, instrumentos do
trabalho do Espírito Santo a partir dos propósitos divinos no mundo e que se os não
evangelizados são salvos, são-no através do trabalho de Cristo pelo Espírito (mesmo
que por meio das crenças e práticas religiosas a eles disponíveis)309.
305
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh, p. 216.
306
Ibid., p. 226.
307
Amos Yong. Beyond the Impasse: Toward a Pneumatological Theology of Religions (Grand Rapids: Baker
Academic, 2003), p. 69.
308
Amos Yong. “A P(new)matological Paradigm for Christian Mission in a Religiously Plural World”. In
Missiology: An International Review, XXXIII no. 2 (April, 2005), p. 176.
309
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh, p. 236.
127
Há que se dar razão a Yong quanto ao filioque. Realmente não há porque deixar que a
compulsão pela sistematicidade nos leve tão longe a ponto de entendermos que a economia da
salvação, constituída por ilação (já que não existe nas Escrituras nenhuma afirmação
categórica sobre ela), limite as ações da Trindade. A economia da salvação não é um quadro
hierárquico entre as pessoas da Trindade. Se fosse não haveria uma Trindade, mas uma
teológico para uma religião monoteísta. A relação existente é de interdependência, entre o Pai,
salvífico), deve ser abandonado em favor de um modelo comunitário, porque este é o mais se
coaduna com o texto bíblico. Com efeito, a ordem e o agente das ações divinas variam
enormemente no NT. Não se vai ao Pai senão pelo Filho (Jo. 14: 6), não se vem ao Filho
senão pelo Pai (Jo. 6: 44, 45 e 53); o Pai glorifica o Filho (Jo. 8: 50) e o Filho glorifica o Pai
(Jo. 7: 18); o Filho envia o Espírito e o Espírito guia o Filho (Lc 4: 1 // Jo 20: 22); o Espírito
batizou Jesus (Lc 3: 22), Jesus batizou os discípulos com o Espírito no Pentecostes (Mt 3: 11).
Jesus revela o Pai, mas pelo Espírito Jesus tem acesso ao Pai (Ef 2: 18). Na ressurreição de
Jesus as três pessoas estão presentes e atuantes para trazê-lo de volta à vida (At. 2: 24, 32 – o
Pai //Jo. 10: 17 – o Filho //Rm. 8:11 – o Espírito). A ordem das operações da Trindade
também não é rígida. Nem sempre vem primeiro o conhecimento da Palavra e depois o
evangelho e serve de sinal para legitimar sua pregação aos que o recebem (At 10: 44-47), etc.
310
Clark Pinnock. Flame of Love. A Theology of the Holy Spirit (Downers Grove: InterVarsity Press, 1996), p.
22.
128
Portanto, é uma ilusão teológica dizer categoricamente que a obra de um é isto, e a obra de
outro é aquilo.
Contudo, também não há respaldo bíblico para a clivagem entre as obras do Espírito e
do Filho, como defendido por Yong. A Palavra, o Espírito e o Pai trabalham em consonância.
Foi assim no início da criação, quando o Espírito pairava sobre as águas caóticas primordiais
e Deus criava o mundo pela Palavra ou Logos (Jesus) de seu poder. De igual maneira ocorreu
na fundação da Igreja, onde impera uma mutualidade, para usar uma palavra cara a Yong. A
liberdade do Espírito defendida através de diversos textos não significa que o Espírito trabalhe
dissociado do Filho, quer dizer que o Espírito não depende de elementos humanos para
efetuar sua obra. É a Igreja que é usada pelo Espírito e não o contrário. A igreja não atua sem
o Espírito, mas o Espírito pode prescindir da Igreja. A obra da Igreja pertence à história da
O Espírito pode, sim, atuar fora da Igreja, e aí a importância da nota enfática de Yong e
dos outros teólogos que valorizaram a pneumatologia, trazendo à luz a misteriosa ação do
Espírito. Mas é teologicamente incorreto transformar este ‘pode’ em um ‘deve’, esquecer que
‘fora dos limites da Igreja’, é apenas uma ação supletiva do Espírito; sua ação principal dá-se
nos limites da Igreja. A obra do Espírito pode se distanciar dos instrumentos humanos
comissionados quando estes falham, mas isto não é uma prescrição. Quando se diz que a obra
do Espírito pode ocorrer fora dos limites da Igreja, é ortodoxo pensar que Ele pode agir e falar
311
Jürgen Moltmann. La iglesia fuerza del Espíritu. Hacia una eclesiología mesiánica (Salamanca: Ediciones
Sígueme, 1978), 88.
129
de modo que as pessoas entendam (At 2: 5-11), num sentido que inclusive vai além da
religiosa dos povos, como aconteceu na mudança nas expectativas messiânicas dos discípulos
(Jo 16: 13) depois do derramamento do Espírito, expectativas estas que a convivência deles
com Jesus não foi suficiente para mudar. Pode igualmente afastar ideias religiosas
incondizentes com as tradições bíblicas 312 . Contudo, admitir que o Espírito guie certas
da inspiração de outras Escrituras, algo que, com efeito, Yong sugere: “os teólogos cristãos
É melhor pensar, acompanhando a lição de Paulo na Carta aos Romanos, em seus três
primeiros capítulos, que atuação divina no coração dos não evangelizados dá-se mais de
forma negativa, quanto à orientação do que não fazer no tocante aos pecados da carne. Sobre
a natureza divina e a salvação, não há autorização escriturística para admitir outros textos
âmbito da Igreja. É pela circuncisão do coração por meio do Espírito que cada pessoa se torna
um membro do povo de Deus (Rm. 2: 29; Gl. 3: 28). Um batismo comum no Espírito e uma
experiência compartilhada no mesmo Espírito é o que une o povo de Deus (I Co 12: 13; Ef. 4:
4). Deus derrama amor no coração dos crentes pelo Espírito (Rm 5: 5). Para Paulo, a vida
cristã é compreendida como vida no Espírito. O Espírito distribui dons (Rm 12: 6-8; I Co 12:
1-8; Ef 4: 10-13), o conhecimento sobre Deus só pode vir por meio de Seu Espírito (I Co. 2:
10), etc.
312
Steve Studebaker. From Pentecost to Triune God, p. 226.
313
Amos Yong. Discernig Spirit (s), p. 317 e 318.
130
louvável e bem vinda, Yong merecer nosso aplauso por isto. Porém, a ideia de fazer o Espírito
trabalhar diretamente nas religiões como agente inspirador de outras Escrituras é doutrina
perigosa e heterodoxa, que fortalece as religiões não cristãs e enfraquece o Cristianismo aos
num concílio convocado por João XXIII e realizado nos anos de 1962 a 1965, quando o
Catolicismo saía da assim chamada era dos Pios, cujo símbolo maior foi o Sylabus errorum,
uma lista de obras proibidas pela Sé, considerada o ápice da síndrome megalomaníaca de uma
Igreja em guerra com o mundo. Ocorre também nesta época a condenação do pluralismo
liberdade religiosa, e a censura aos regionalismos litúrgicos, que tiveram por consequência
abertura à diversidade teológica e à diversidade religiosa. O primeiro passo para esta abertura
generalizada foi a Igreja ter admitido um novo conceito de verdade, verdade relacional, que a
Chenú foi decisiva para esta reviravolta hermenêutica da Igreja Católica. Seu método
histórico recuperou a dimensão conjuntural da verdade divina, que faz com que o conceito de
revelação não seja mais prioritariamente um conjunto de verdades fáticas sobre Deus e o ser
erro assim perde espaço para uma ideia de verdade completa contraposta a verdades parciais.
131
Embora não tratem exclusivamente do problema das religiões não cristãs, como já
sugerido acima, todos os documentos conciliares falam algo do tema, entre estes,
especialmente, Lumen Gentium, Nostra Aetate e Ad Gentes. Neles estão desenvolvidos três
temas: (1) a salvação dos que estão fora da Igreja Católica; (2) Valores autênticos que podem
ser encontrados nos não Cristãos e em suas tradições religiosas; (3) a recepção destes valores
na Igreja Católica, ou seja, a atitude da Igreja em relação às suas tradições religiosas e seus
concílios e encíclicas, é que o problema da salvação nas religiões não é mais tratado num
âmbito meramente pessoal, mas num contexto institucional, isto é, trata do status salvífico das
ofensivos preconceituosos tais como paganus e gentilis. Os textos reconhecem aos não
cristãos “as riquezas espirituais dos povos”, “coisas verdadeiras e boas”, “bens preciosos,
secreta presença divina”. Porém, apesar de todas estas expressões reconhecerem nas religiões
um valor humano e religioso que lhes é peculiar, não se chega a conceder-lhes um status
salvífico próprio – as pessoas são salvas nas religiões, não mais apesar delas, e, no entanto,
ainda não através delas. Cristo é o salvador universal e o Espírito, o agente difusor desta
Católica, ainda que possam ser encontrados ‘elementos’ (vestigia) da vera religio também em
outras religiões”315.
Na prática o Vaticano II serviu apenas para que as interpretações mais tolerantes quanto
às religiões pudessem sair dos subterrâneos da Igreja Católica, dominada até então pela
314
J. Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 228 a 229.
315
F. Conesa. “Sobre la religión verdadera: aproximación al significado de la expresión” (ST, vol. XXX, Enero –
Abril, 1998), p. 47.
132
Com a diferença de que ideias como as dos teólogos subsequentemente apresentados podem
ainda permaneçam.
humana como resultante indiretamente do mistério crístico em sua atuação universal, levando
à conclusão de que todo ser humano, sendo religioso ou não (e se religioso), sua religião
sendo qual for, é um cristão anônimo316. (2) A outra concepção é mais próxima do Pluralismo,
pois amplia o ministério de Jesus de modo a que se torne abrangente a respeito das outras
religiões. Esta é a posição de Jacques Dupuis e Edward Schillebeeckx. Vale ainda ressaltar,
que os membros de ambos os grupos também estão envolvidos com um projeto hermenêutico
voltado para o mundo secularizado, com pensadores que não serão tratados no resumo a
seguir. É o caso de Juan Luis Segundo, apesar de toda a sua importância e envergadura
teológica317.
316
“[o homem] já aceita a revelação [de Deus] quando quer que ele realmente aceite a si próprio inteiramente,
porque ela [a revelação] já fala nele. Antes de uma fé eclesiástica oficial tomar uma forma explícita, onde quer
que uma pessoa se comprometa e viva o dever de cada dia na quieta sinceridade da paciência, na devoção a seus
deveres materiais às demandas feitas a eles pelas pessoas sob seus cuidados... Portanto, não importa o que um
homem declare em sua conceitual, teorética, reflexão religiosa, qualquer um que não diga em seu coração, ‘não
existe Deus’(como o tolo do salmo), mas dá testemunho dele pela radical aceitação de seu ser, é um crente. Mas
se neste percurso ele crê de fato e de verdade no santo mistério de Deus, se ele não suprimir esta verdade, mas
dar a ela livre curso, então a graça desta verdade pela qual ele permite a si mesmo ser levado é sempre já a graça
do Pai em seu Filho. E qualquer um que se deixe guiar por esta graça pode ser chamado com muita justeza de
‘cristão anônimo’ ”(Karl Rahner. Theological Investigations Vol. 6, pp. 394-395).
317
La historia perdida e recuperada de Jesús de Nazaret. De los Sinópticos a Pablo (Santander: Editorial Sal
Terrae, 1991).
133
várias instituições alemães, de sorte que quando o concílio ecumênico aconteceu já era um
teólogo renomado e reconhecido nos meios eclesiásticos. Ele foi um dos principais arquitetos
das religiões tem nele o primeiro teórico a romper com a dicotomia religião natural ou as
com razão que em Rahner ocorre uma mudança metodológica importante, chamada por ele de
“giro antropológico”, que faz com que a teologia católica pós Vaticano II abandone o solo
investigação teológica não tem mais seu ponto de partida na revelação divina, mas no homem
Foi Kant, via Joseph Maréchal, que possibilitou a Rahner este giro, graças a um a priori
cognitivo descoberto pelo filósofo de Königsberg. Interpretando Kant além de dele mesmo,
318
Rahner foi aluno de Heidegger na década de 30, portanto, ainda à época do primeiro Heidegger de O ser e o
tempo. Segundo indicações do próprio autor, a influencia de Heidegger foi mais metodológica, o rigor e a
hermenêutica heideggeriana, do que fornecer um arcabouço teórico para Rahner construir sua teologia. (Carlos
Schickendantz. “Una relación entre Martin Heidegger y Karl Rahner. Una recepción y diferenciación todavía por
escribir” – TV, XLIX, 2008, p. 378).
319
Eduardo S. Santos. “Considerações sobre a escatologia em Karl Rahner” (Teocomunicação, v. 35, no. 150,
Dez. 2005), pp. 776-777.
134
ao ser absoluto”320. Como mais tarde Rahner explicaria, além de uma atividade categorial da
como constituintes fundamentais a vontade e a liberdade humanas, que nos remetem a algo
colocado além dos objetos conhecidos pela consciência explícita321. Em suma, na experiência
tradições ou doutrinas, e cuja pré-condição é a graça divina, ele encontra a base comum de
todas as religiões do mundo. A estrutura cognitiva humana, que parece ter sido preparada para
Deus322”. Todos os seres humanos estão estruturalmente incluídos na graça de Deus, existindo,
entretanto, aqueles que sabem qual a natureza desta abertura ao transcendente e aqueles que
anônimos. Do ponto de vista antropológico, não há nenhuma diferença importante entre eles.
A diferença dá-se no campo cognitivo: “o cristão sabe o que é e o não cristão não o sabe; é
um cristão anônimo.”323
320
Carlos Schickendantz. “Una relación entre Martin Heidegger y Karl Rahner. Una recepción y diferenciación
todavía por escribir”, p. 376.
321
Karl Rahner. Curso Fundamental da Fé: introdução ao conceito de Cristianismo (São Paulo: Edições
Paulinas, 1989), pp. 33 e 34.
322
Karl Rahner apud Faustino Teixeira.”Karl Rahner e as religiões”. In Pedro R. R. Oliveira e Cláudio Paul.
Karl Rahner em perspectiva (São Paulo: Loyola, 2004), p. 249.
323
J. Morales. “La teología de las religiones” (ST, vol. XXX, Sept.-Dic., 1998), p. 765.
135
explícito do fato de que sua vida está orientada para a graça salvadora de Jesus
Cristo324.
subordinação ao Cristianismo, porque embora não o saibam, sua salvação ocorre através da
ação redentora de Cristo. As religiões, portanto, não têm status salvífico próprio. Sua
sensibilidade religiosa precisa ser reinterpretada pelas categorias religiosas cristãs. Contudo,
elas salvam assim mesmo, bastando ao adorador não cristão ser fiel ao mistério divino ao qual
aportou pelos meios de que social e culturalmente dispunha. Com razão ecoa a crítica de
implícito é suficiente para a salvação de quem não conhece outro, por que colocar-se em
J. Dupuis, em defesa de Rahner, afirma que este conceito de “cristão anônimo” não só
nega às religiões um status salvífico próprio, como também vê em seus adeptos uma
deficiência existencial implícita, porque o conteúdo temático das religiões não é levado em
conta, e é valorizado apenas em sua abertura ao mistério divino, o adorador não cristão fica
restrito a um estágio preliminar místico que lhe fornece apenas a condição de possibilidade do
Igreja Católica Romana. O Cristianismo anônimo, deste modo, permaneceria como realidade
H. Küng faz duras críticas à teoria do cristianismo anônimo de Rahner. Para ele a teoria
324
Karl Rahner, Theological Investigations, Vol. 14 (London: Darton, Longman & Todd, 1976), p 283.
325
Apud Faustino Teixeira. “Karl Rahner e as religiões”, p. 255.
326
K. Rahner apud J. Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 205.
327
H. Küng. Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico (São Paulo: Edições Paulinas,
1999), p. 270.
136
única verdadeira, enquanto as demais são apenas estágios inferiores de religiosidade que
precisam se completados pela presença sacramental da igreja católica no mundo. De sorte que
[a teoria de Rahner .] apenas uma nova interpretação do antigo dogma. A Igreja não
se refere mais como em Florença: a Santa Igreja Romana, mais propriamente,
interpretada corretamente, refere-se a todos os homens de boa vontade, que, sem
exceção, fazem parte da Igreja de algum modo. Mas não se estão introduzindo aqui,
alegadamente pela porta dos fundos, na Santa Igreja Romana, todo o gênero humano
de boa vontade [...], que não resta fora nenhum elemento que disponha de boa
vontade, queira ou não? Fora da Igreja não há salvação. A fórmula está certa como
nunca, porque todos se encontram dentro, de antemão, como cristãos não formais,
mas anônimos, ou, como se deveria exprimir para salvar a lógica: católicos romanos
anônimos328.
O livro mais famoso de Dupuis Rumo a uma teologia do pluralismo religioso criou
tanta polêmica no meio Católico Romano que ele teve que se explicar quanto ao que escreveu
e quanto ao que não escreveu, por causa da suspeita de heterodoxia. Pressionado, teve que
escrever um adendo, uma glosa em forma de artigo329. Por alguns trechos de suas obras, a
cúria romana foi levada a pensar que suas conclusões estariam eivadas de possíveis rupturas
Dupuis assevera que a teologia das religiões “deve ser vista como um novo modo de fazer
hodierno, cabe-lhe fazer um síntese entre estes dois elementos constitutivos. Este é, portanto,
328
H. Küng, Ser cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976), p. 79.
329
J. Dupuis. “The truth will make you free. The theology of religious pluralism revisited (Louvain Studies, vol.
24, Fall, 1999), pp. 211-263.
330
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso (São Paulo: Paulinas, 1999), p. 32.
331
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, p. 36.
137
Yong, com exceção de que no caso de Dupuis os elementos textuais necessários à síntese não
Com efeito, a respeito ao texto ou o dado da fé, ele opta pelo método “genético” ou
“histórico evolutivo”, o qual se baseia nas Escrituras, mas também nas disposições finais do
concílio Vaticano II, que atribui também à Tradição e ao Magistério a qualidade de texto
fonte do Cristianismo. Isto faz com que o teólogo sistemático, mesmo ao proceder um estudo
exegético da cristologia do NT, tenha que estender seus estudos à cristologia da tradição pós-
bíblica dos Padres e do Magistério 332 . A intenção deste método, segundo Dupuis, visa a
fundamentalmente diacrônica. Ou seja, ela vai atingindo patamares mais elevados à medida
que a reflexão teológica progride, até culminar no prólogo joanino334. Este é o motivo por que
fundamentar sua teologia das religiões. Nisto ele segue a tradição dos Padres Apologetas, cuja
conclusão de Dupuis é de que “é o Verbo de Deus que salva, e não propriamente o Verbo-
332
Ibid., pp. 14 e 15.
333
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, p. 22.
334
Ibid., p. 101.
335
Ibid., p. 274.
138
aparentemente sem chegar à pretensão de ver no Logos joânico como fundamento de outras
Se não chega a tanto como seus colegas asiáticos, pelo menos vê “no prólogo de João uma
presença universal do Logos antes da encarnação em Jesus Cristo” 337 , que não pode ser
exaurida na figura histórica de Jesus Cristo338. Dupuis logo se apressa em dizer que não há
desconfortável posição de negar a distinção já tendo-a feito. Ora, Dupuis prefere ser
Caldedônia340.
A diacronia defendida por Dupuis está correta. De fato a cristologia vai no NT num
crescendo, das cristologias de baixo para as do alto. Mas a afirmação de que o Logos é o ápice
cristológico do evangelho de João requer melhor justificação textual, contudo, ao que parece,
Dupuis já está satisfeito com a autoridade dos Pais e do Magistério. Na opinião de Dupuis a
mudança de uma cristologia funcional para uma cristologia ontológica ocorre ainda nas
páginas do NT341.
Esta teoria não resiste a uma análise mais detida do NT. A cristologia joanina é dialética
joanino é o verso 14: “e o verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos sua glória,
336
A. Pieris, An Asian Theology of Liberation (New York: Orbis Books, 1988); Fire and Water: Basic Issues in
Asian Buddhism and Christianity (New York: Orbis Books, 1996).
337
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religios.,p. 274.
338
Diz Dupuis, que embora reconhecendo a excepcionalidade do homem Jesus:“o Verbo divino permanece além
do que possa manifestar e revelar o ser humano Jesus. [...] ainda que uma vez recuperada sua glória, o Jesus
Cristo ressurgido não substitui o Pai; tampouco o seu ser humano glorificado exaure o Verbo, nunca totalmente
contido numa manifestação histórica, qualquer que seja”. (Idem, p.300 sg.).
339
Ibid., idem.
340
A posição nestoriana não aceita dizer que o Verbo de Deus nasceu de Maria ou que o Verbo de Deus morreu
na cruz. No fundo, a posição nestoriana introduz uma separação entre o homem Jesus e o Verbo de Deus. Mas, a
decisão conciliar de Calcedônia declara: “a natureza humana e a natureza divina se uniram numa pessoa, sem
confusão, sem mudança, sem divisão e sem separação”.
341
J. Dupuis. Introdução à cristologia (São Paulo: Loyola, 1999), p. 101e 102.
139
glória de Filho único junto ao Pai”. Não é por acaso que o verbo habitou entre nós mantendo
sua glória junto ao Pai. Ele está no tempo e fora do tempo simultaneamente. Ou seja, ele está
não, como ensinam estes teólogos, como entes diferentes, um maior: o Logos, e um menor: o
Há um uso constante deste recurso estilístico em João. Nos lábios de Jesus, o verbo eimi
passado: “antes que Abraão existisse eu sou” (Jo 8: 57); ou, então, no futuro: “[e vos levarei
comigo,] para que onde estou estejais vós também” (Jo 14: 3). Nisto a teologia joanina é
coerente com o conceito de reino de Deus dos sinóticos, onde também aparece esta tensão
entre o já e o ainda não. Não havendo, portanto, nenhuma alteração importante entre as fontes,
exceto o fato de que a referência das primeiras é o reino de Deus e a da segunda é a pessoa de
Cristo. A funcionalidade está presente em ambas, a saber, demonstrar uma realidade espiritual
qual compartilha João, não sendo seu objetivo outro além de demonstrar que a ação divina no
342
A teoria platônica da participação não pode ser encontrada no evangelho de João, nem aí ou qualquer outro
lugar. Não se trata da realidade do Logos e sua sombra humana, Jesus Cristo, uma realidade passageira ou
temporária, cuja existência é derivativa e não essencial. Jesus Cristo é o Logos no tempo. Ele, o Logos, não está
no topos uranos tendo uma sombra projetada na terra, Jesus de Nazaré. Ele está no céu junto ao Pai e está na
terra, perto de seus discípulos. Ele é onipresente, embora sua divindade esteja oculta na humanidade. Crer na
doutrina da participação nos torna Docetistas, doutrina condenada já no primeiro século e que teve a condenação
ratificada no concílio de Nicéia.
140
contexto cristão esta ação não é mais pontual e isolada343. É uma presença constante na vida
da Igreja, seja pelo reino de Deus, seja por meio do Logos, ou, seja pelo Espírito Santo, o
Consolador.
O que se pode dizer como conclusão é que, lamentavelmente, a síntese pretendida por
Dupuis falhou. Ficou a dever ao texto, o dado da fé. Efetivamente, foram contemplados
hodierna. Ele comete o erro que caracteriza os pluralistas como um todo: a subsunção à
pressão dos tempos, desprezando ou descurando do texto bíblico. Em seu caso ainda houve a
pressão eclesiástica que o impediu de sequer ser coerente com seu próprio pensamento, pois
ao final não se sabe realmente o que pensou Dupuis, haja vista a multidão de adendos e glosas
na Holanda. Estudou em Paris com diversos teólogos pré-conciliares, tais como Chenu, Yves
Congar, Henri de Lubac, De Petters, entre outros. Depois de ter sido docente em Louvain
Schillebeeckx teve o nome ligado ao concílio Vaticano II, onde atuou, assim como os demais,
como teólogo consultor, e foi influenciado por seus resultados344. Dedicou boa parte de suas
obras a dar continuidade às reflexões teológicas inauguradas pelo concílio que ajudou a
construir, sempre em diálogo com o mundo e com a teologia secularizada, por isso em muitas
343
Ainda que se tenha consciência de que ela se repete todas as vezes que o povo eleito clama debaixo do jugo
da opressão, o primeiro ato de libertação de Deus permanece como arquétipo que explica os demais e do qual os
demais tiram seu sentido.
344
Erik Borgman. Edward Schillebeeckx. A theologian in his history (London: Continuum, 2003), p. 2.
345
Existem alguns exemplos: sua decisiva colaboração para a formação do Conselho Pastoral Holandês, cujos
membros eram eleitos e podiam ser leigos, e que foi vetado pela cúria romana, por não admitir ingerência leiga
141
Sua obra pode ser dividida em antes e depois de Vaticano II. Antes muito próximo de
uma teologia neotomista e conservadora (até o início da década de 60), depois, obviamente,
enfatizando muito mais a relação da Igreja e do Evangelho com o mundo346. Sua teologia
evoluiu buscando o diálogo com o mundo secularizado, o que fez adotando uma abordagem
“metadogmática”347, assume uma metodologia muito próxima a de H. Küng por perceber três
ocupa-se apenas da manifestação da história da salvação naquele tempo concreto, ou seja, que
pode unicamente “constatar o que e de que maneira alguns homens concretos falaram de Deus
e de que maneira este falar está codeterminado por sua própria cultura”348. A segunda trata da
primitivo” 349 . A terceira diz respeito a uma “atualização com respeito ao presente” 350 .
recuperar as cristologias sinóticas, as quais têm muito mais em comum com o homem
moderno do que as cristologias conciliares351, isto não significando haver deixado de defender
na administração eclesiástica; a publicação do Novo Catecismo Holandês, a qual não recebeu o imprimatur; a
publicação do livro Jesus: uma experiência em cristologia, considerado inadequado pela Congregação para
doutrina da fé, etc. Cf. Peter Hebblethwaite. The new inquisition? The case of Edward Schillebeeckx and Hans
Küng, New York: Harper Row, 1980.
346
Franco Brambilla. Edward Schillebeeckx (São Paulo: Loyola, 2006), p. 49.
347
Rosino Gibellini, A teologia do século XX, p. 334.
348
E. Schillebeeckx apud Andrés T. Queiruga. Repensar a cristologia, sondagens para um novo paradigma (São
Paulo: Paulinas, 1999), p. 77.
349
A. T. Queiruga. Repensar a teologia, sondagens para um novo paradigma, p. 77.
350
A. T. Queiruga. Repensar a teologia, sondagens para um novo paradigma, p. 77.
351
E. Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus (São Paulo: Paulus, 1994), pp. 46 a 58.
142
espírito do teólogo 352 . Na prática, uma teologia bifronte que faz com que cada afirmação
especulativa tenha que ser compensada por outra, fiel reprodutora do pensamento da
Tradição, malgrado, em não poucas ocasiões, estejam sendo postas lado a lado ideias
É a primeira vez que manifesto minha reflexão sobre a Trindade tão abertamente.
Para mim, a Trindade é o modo de Deus ser pessoa. Admito todas as exigências do
dogma sem correr o risco de falar de três pessoas, de uma espécie de família, e, de
fato, de um triteísmo, que é bastante popular na fé cristã353.
católico que lhe antecede. Sua intenção ao sustentar afirmações contraditórias é manter as
aparências e safar-se de sanções curiais, tal como ocorrera a seu colega J. Dupuis. Com efeito,
Schillebeeckx não crê no Espírito Santo354. Também não crê que Jesus seja Deus355 e menos
que tenha ressuscitado 356 . Sua cristologia é de baixo e completamente secularizada, sua
realidade elide o elemento sacramental: “o mundo, agora definido de modo mais específico e
352
A. T. Queiruga. Repensar a teologia, sondagens para um novo paradigma, p. 127.
353
Ibid., idem.
354
“Aceito plenamente o credo, porém na profissão de fé, não estão as três pessoas divinas. Creio em Deus
Onipotente, em Jesus Cristo, o amado do Pai, filho de Deus por excelência; creio no Espírito, que para mim é o
verdadeiro problema. Na Bíblia, O Espírito é um dom, não uma terceira pessoa, é o próprio modo de ser de Deus
[...]. Confesso a Trindade, mas estas especulações sobre as três pessoas não me dizem nada [...]. (Schillebeeckx
apud Queiruga. Repensar a cristologia, sondagens para um novo paradigma, p. 150).
355
Schillebeeckx considera ridícula a ideia “de um homem divino, isto é, um Deus terrestre disfarçado de
homem” (E. Schillebeeckx, Jesús, historia de un viviente, p. 27); em outro lugar diz que “em sua humanidade
Jesus é tão intimamente algo que vem do Pai que precisamente por isso é Filho de Deus (logo, não enquanto
Verbo)” (Ibid., p. 697).
356
Sobre a ressurreição Schillebeeckx se expressa de forma ambígua e pusilânime: “algo deve ter ocorrido de
modo a ter produzido a conversão dos discípulos” (Ibid., p. 400).
357
Daniel S. Thompson. The language of dissent: Edward Schillebeeckx and the crisis of authority in the
Catholic Church (Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2003), p. 89.
143
Extra mundum nula salus, expressão cunhada por Schillebeeckx, depois transformada
em lema do pluralismo, quer dizer então que “a presença criativa e salvífica de Deus é
mediada pelos seres humanos” em sua experiência de Deus. Ainda que se arriscando a
psicologizar esta experiência, para ele ela é a última palavra para sua validação, não havendo
nada fora dela que a recomende, exceto aquilo que possui de mais fundamental: o senso de
finitude criatural. Neste lastro ele procura fazer uma fenomenologia da experiência religiosa a
partir da manifestação de Jesus Cristo: Deus como Abba, a entrega total à vontade divina – a
páscoa. Estes são os elementos fundamentais para entender a religião, ou seja, por meio da
relação de Jesus com Deus. A experiência religiosa de Jesus, entretanto, não é normativa nem
serve para aferir a experiência religiosa das outras religiões. Não podemos ter uma visão total
Jesus não somente revela a Deus, mas também o oculta, visto que apareceu entre nós
como criatura humana e não em forma divina. Como homem é um ser contingente,
histórico, que de modo algum pode representar a plenitude de Deus [...], a não ser se
negarmos a realidade de sua autêntica humanidade.
Isto impede toda a pretensão exclusivista: quem não leva a sério o fato do existir
concreto e particular de Jesus, precisamente em sua qualidade de homem
condicionado geograficamente, e marcado culturalmente, e por isto mesmo limitado,
faz de Jesus uma emanação, ou um efeito divino necessário, com a consequência de
que todas as outras religiões desaparecessem no nada358.
O que nos impede então de classificar Schillebeeckx como pluralista, haja vista tantos
indícios em seus escritos de ser este seu direcionamento. Porque embora abra a possibilidade
da experiência de Deus ocorrer fora dos limites das igrejas cristãs e mesmo entre aqueles que
não professam nenhuma religião, ele nunca abandona o ponto as referências cristãs. E talvez
seu próprio projeto teológico não tenha contribuído para que isto ocorresse, a saber, falar ao
358
E. Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus,, p. 254.
144
3.d. Conclusão
Deste grupo é mais difícil fazer uma síntese porque de todos é o que se mostra mais
variegado, sendo composto por evangélicos e católicos, e entre estes, por três abordagens, do
teologia fundamental, seu propósito não é propriamente construir uma teologia das religiões,
mas fornecer possibilidades para seu nascimento a partir de uma atualização das bases
filosóficas necessárias à operação. Sua hermenêutica é mais sólida do que a dos demais, mas
ele avança pouco em relação ao que havia antes dele porque enfatiza o atemático, o apofático
e não o conteúdo das religiões. Como homem do Vaticano II, a palavra aggiornamento define
bem seu projeto. Jacques Dupuis leva em si as marcas da incoerência porque não foi capaz de
fazer chegar seu pensamento a uma conclusão fiel a suas ideias em função das pressões
eclesiais que sofreu. Edward Schillebeeckx também não conseguiu ser consistente, mas tem a
seu favor uma tentativa de construção de uma fenomenologia da experiência religiosa cristã.
Tal como Rahner, em termos de teologia das religiões, tratou de apenas lançar os alicerces.
CAPÍTULO IV
Pluralismo
4.a. Introdução
mais congestionado: o número de pensadores que são classificados como pluralistas é igual ao
das duas outras tipologias somadas. Apesar das muitas idiossincrasias quem marcam
singularmente cada um dos componentes deste grupo, eles podem ser subdivididos em duas
grandes vertentes: (a) os pluralistas sintéticos, que procuram fazer uma síntese religiosa da
Ocidental. Fazendo uso de um neologismo, pode-se dizer que no que respeita oikumene
sem síntese, cada um nos limites de sua respectiva tradição religiosa. Ou seja, o diálogo existe
encontrar no espaço público externo ao espaço religioso de cada uma, para buscar pontos de
contato, cada um a partir de sua própria tradição e sem abrir mão de sua herança religiosa.
Cristianismo neste contexto é apenas uma entre tantas manifestações da experiência com o
sagrado, perdendo seus privilégios. Os pluralistas sintéticos pensam que isto deve ocorrer por
que Deus não deixaria a maior parte da humanidade fora do espaço salvífico, pela única culpa,
se assim o pudermos chamar, de terem nascido num ambiente cultural não cristão. Os
particularistas, por sua vez, pensam que não se pode limitar a ação do Espírito Santo ao
146
âmbito cristão359, e tomam como base da liberdade do Espírito a clássica passagem de João
3:8360. Portanto, Sejam de uma ou de outra vertente, todos enfatizam o terceiro ponto da tríade
seu discurso se reveste, o grande empecilho para o sucesso de suas disposições na persuasão
dos que não pensam como eles são as declarações exclusivistas da própria Escritura.
argumentam baseados numa espécie de agnosticismo inter-religioso. Para eles era natural que
este exclusivismo ocorresse na Igreja dos primeiros tempos, porque os cristãos daquela época
não viviam num mundo pós-moderno, embora tivessem experiência com o mundo
quais o mundo antigo passara com a queda de Roma por causa da estabilidade ideológica
conferida pelas Escrituras. A igreja podia se remeter a estes modelos éticos e metafísicos
externos e fixos, mantendo-se inalterada diante da marcha dos tempos e dos costumes. E é
exatamente esta qualidade que vem sendo deplorada pelos pluralistas particularistas, com a
quais está imersa a vida humana são epistemologicamente intransponíveis. Como aventado
alhures, eles são sistemas completos e fechados e semanticamente autorreferidos, daí não
haver possibilidade de uma abordagem externa que produza uma síntese compatibilizadora
359
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religions (London: SCM Press,
2010), p. 146.
360
“O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não saber de onde vem nem para onde vai; assim é todo o
que é nascido do Espírito.”
147
das diversas religiões. Eles são mutuamente incompreensíveis no sentido mais profundo da
palavra. A base do que dizem os utentes das linguagens religiosas são “formas de vida”, que
Wittgenstein tem um sentido bem mais amplo e profundo do que mera troca de informação
por meio de signos linguísticos escritos ou orais, envolve o entorno dos utentes da linguagem,
linguagem sem estas ações perde seu quadro referencial Em suma, assim como a linguagem,
Seguindo Wittgenstein um pouco mais adiante, chega a ser difícil até mesmo fazer
religiões diferentes. Elas são “semelhanças de família”, isto é, tal como os membros de uma
mesma família são parecidos de forma desigual por meio de aspectos morfológicos similares e
não coincidentes para a maioria: um tipo de nariz, de boca, cor de cabelo, etc. Assim também
cristãos significa a ressurreição da carne, novos céus e nova terra onde habita a justiça e uma
comunhão mais estreita com o Criador, ou seja, a beatitude. O caminho para ela é Jesus
samsara. É anatman (não eu), uma imersão na imensidão do cosmo, com consequente perda
361
L. Wittgenstein. Philosophical Investigations / Philosophische Untersuchungen (G. E. M. Anscombe & R.
Rhees (eds.), U. S. A., The Macmillan company, 1969), parágrafo: 205.
362
L. Wittgenstein. Philosophical Investigations / Philosophische Untersuchungen, parágrafo 67; Cf. Zettel, (G.
E. M. Anscombe e G. H. von Wright (ogs.), Lisboa, Edições 70, 2000), parágrafo 646.
363
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religions, pp. 187 e 188.
148
palavra, a serenidade. Para um hindu, salvação é moksha, que na tradição bahkti significa sair
Brahman, do pós-morte a suprema deidade, ou seja, o repouso. “E isto pode ser obtido por
Em suma, nada pode ser mais diferente do que conceitos teológicos. Eles carregam uma
imensa carga semiótica de séculos de discussões e reflexões. Ou seja, não podemos deixar de
notar certo agnosticismo nesta posição, logo tratado de ser atenuado pelo benéfico da dúvida
sofisticada de Pluralismo, que consegue evitar todas as contenções colocadas em relação aos
pluralistas sintéticos. Como veremos mais adiante o Pluralismo particularista merece outras.
Malgrado as grandes diferenças existentes entre os partidários deste grupo, podem ser
4. Não existe nenhum poder salvífico nas outras religiões, não obstante elas estão
incluídas nos planos de Deus para a humanidade, mas por maneiras que nós não
conhecemos.
364
Chad Meister. Philosophy of Religion (Abingdon,UK/ New York: Routledge, 2006), p. 25.
149
1948, adota integralmente estes pontos. Não foi uma decisão fácil. Pelo contrário, uma
declaração das políticas sobre outras religiões em 1971. Depois de uma década de difíceis
Guidelines on Dialogue, a declaração teológica: “nós sentimos poder assegurar aos nossos
parceiros de diálogo que nós não nos aproximamos como manipuladores, mas como
peregrinos companheiros”366.
fundamentais do Cristianismo, como pode ser percebido na lista apresentada, exceto um: a
pregação não é mais um reino de Deus transcendente que invade a realidade humana desde
fora, a partir da realidade divina, e sim um reino de Deus imanente que cresce no meio de nós,
teologia Protestante depois do desaparecimento de seus grandes nomes (K. Barth, P. Tillich,
365
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religions, pp. 146-147.
366
Apud Stanley Samartha. “The Cross And the Rainbow – Christ in a Multireligious Culture” in John Hick and
Paul Knitter (eds.) The Myth of Christian Uniqueness, p. 70.
367
O tratamento dado às ideias de Moltmann neste lugar terá menos espaço do que julgaríamos adequado, isto
devido ao fato de muito de sua argumentação já ter sido usado na introdução aos pluralistas particularistas.
150
modelo tipológico utilizado por Moltmann para classificar as religiões é dúplice: (a) a religião
bíblica se caracteriza por ser uma religião de promessa e (b) a Cananita e Greco-romana por
serem religiões de epifania. São dois tipos de religião opostos e inconciliáveis, não admitindo
Por outro lado, embora o ponto de partida da teologia das religiões de Moltmann
fato de que vivemos num mundo multirreligioso e que a relação entre as religiões não pode
mais ser a mesma de um século atrás. O mundo globalizado impõe a todos os habitantes do
planeta a condição de conviventes e não pode haver convivência sem diálogo370. Portanto, o
pelo motivo de manter no campo religioso a tensão entre estes dois polos antagônicos: a
particularidade e a pluralidade.
Se bem não possa propriamente ser chamado de um teólogo das religiões, posto que
seus interesses teológicos não se dirigem exatamente para este debate e só podemos conhecer
Esperança dedica infelizmente apenas capítulos de algumas de suas obras ao tema. Trata-se
obra Experiências de reflexão teológica 371 . Além destes capítulos há ainda um artigo de
368
Per Lonning. Is Christ a Christian? On interreligious dialogue and intra-religious horizon (Götingen:
Vandenhoeck and Ruprecht, 2002), p. 132.
369
Jüngen Moltmann. Teologia da Esperança. Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã (São Paulo: Teológica/Loyola, 2005), p. 62.
370
Jüngen Moltmann. La iglesia fuerza del Espíritu ( Salamanca: Ediciones Sígueme, 1978), p. 186.
371
Jürgen Moltmann. Experiences in theology. Ways and forms of Christian Theology (Philadelphia: Fortress
Press, 1980).
151
Moltmann, cuja aparição ocorreu na coletânea já citada, editada por G. D’Costa, The myth of
Christian uniqueness reconsidered 372 : “É a teologia pluralista útil para o diálogo entre as
religiões mundiais?”, onde dirige suas críticas mais veemente ao relativismo decorrente das
noções dos pluralistas citados. Resumindo, apesar de exígua, sua contribuição é coerente e
decisiva, especialmente quando critica J. Hick e P. Knitter; a ela recorremos em vários pontos
Neste artigo Moltmann aponta-lhes três principais problemas: (a) a questão da verdade é
deslocada de sua centralidade, e isto não pode ocorrer se não o debate perde completamente a
relevância; (b) o diálogo inter-religioso não pode ser conduzido como se fosse um critério
observa na modalidade de Hick e Knitter, uma teologia das religiões pluralista pode ser tão
Quanto à questão da verdade, é bem óbvio que nada se ganha elidindo-a em favor de um
relativismo baseado na filosofia de Kant. Isto não é bom nem para Cristãos nem para não
Cristãos. Para Cristãos não é útil porque o diálogo que daí decorre será ao preço de sua
própria fé; para não Cristãos, o secularismo subjacente a estas ideias também os acaba
atingindo. Por isso, Moltmann conclui, “os representantes das outras religiões não querem
Judeus convictos [...]”373. Porque o diálogo inter-religioso ocorre não pela relativização do
discurso dos debatedores, mas à medida que todos submetem seu próprio discurso à crítica do
outro e evitando a pressuposição de que sairão do diálogo assim como nele entraram, sem
terem aprendido nada uns com os outros374. Outrossim, o diálogo inter-religioso não é sobre
nenhum dos debatedores mas sobre um terceiro assunto: a paz entre os seres humanos e entre
372
“Is pluralistic theology useful for the dialogue of world religions?”
373
Jürgen Moltmann. Experiences in theology. Ways and forms of Christian Theology, p. 19.
374
Jürgen Moltamann. “Is pluralistic theology useful for the dialogue of world religions”, p. 153.
152
estes e o planeta, a luta para que não haja opressão do homem pelo homem e nem da natureza
pelo homem375.
De acordo com Moltmann, o papel salvífico das religiões decorre primeiro do fato de
todos os homens serem capazes de se voltar para o transcendente, de que é prova o grande
número de religiões existente no mundo. Por outro lado, a salvação nas religiões pode ser
pensada inclusivamente, que Jesus morreu por todos, reconciliando consigo o mundo inteiro.
Esta questão não fica muito clara em Moltmann nem vê necessidade em clarificá-la, estando
planeta (o que nos leva a pensar que seu conceito de salvação é imanente): “De fato, as
religiões, para serem aceitas no mundo, isto é, para se tornarem religiões mundiais, precisam
promover e garantir a segurança e o bem estar do ser humano, que depende da sobrevivência
consumação fatalista, mas por um “enfoque e valorações fundadas na promessa peculiar feita
cujo guarda-chuva todas as religiões devem ser incluídas378. Neste contexto o papel da missão
cristã muda completamente de objetivo. Já não é mais uma missão quantitativa, voltada para a
implantação e o crescimento de igrejas nos campos missionários. Este novo papel “consiste
em contagiar os homens, sejam de que religião forem, com o espírito da esperança, do amor e
379
da responsabilidade para com o mundo” . Tendo abandonado a concepção de verdade
375
Jüngen Moltmann. Experiences in theology, p. 20.
376
Jüngen Moltmann. Experiences in theology, p. 21.
377
Jüngen Moltmann. La iglesia fuerza del Espíritu, p. 185.
378
Jüngen Moltmann. The coming of God: Christian eschatology (Minneapolis: Augsburg Fortress Press, 1996),
p. 250-255.
379
Idem, La iglesia fuerza del Espíritu, p. 188.
153
demonstra que a ideia de kenosis presente no NT (Fp 2: 5-8) e estendida ao Criador por
Moltmann381 pode ser aproximada da de sunyata do Budismo Zen. Ou seja, a noção de amor
de Deus ao este criar o mundo, entendida como uma autolimitação em face da necessária
adoção de uma imanência em relação ao mundo pode ser aproximada de uma autonegação, de
uma absoluta negatividade presente na noção do divino nishida382. Esta concepção de Deus
Mas, ainda que este mundo não agrade a Deus, ele não pode mais destruí-lo, por três
razões: porque depois de haver começado a criar o mundo sob o atributo da
severidade (expresso pelo nome Elohim em Gênesis 1), depois decidiu acrescentar o
atributo da misericórdia (expresso pelo nome Jhwh, em Gênesis 2), como afirma
Rashi sobre Gn. 1: 1; porque no pacto com Noé Ele prometeu não mandar outro
dilúvio (Gn. 9: 11); porque Ele é um Deus mãe, além de ser Deus pai, (Is 46: 3; 49:
383
15; 66: 13; Os. 11: 1 – 4) .
Este exemplo parece resumir o projeto eclesiológico de Moltmann para os novos tempos
que vivemos: que cada religião a partir de suas próprias tradições trabalhe para se aproximar
das demais, buscando fundamentos comuns. O espírito contemporâneo não é mais disjuntivo
como no passado, mas conjuntivo. Ele encontra razões para sustentá-lo até mesmo quando
estuda a Trindade, usando uma espécie de teomorfismo, que aprendera com K. Barth:
380
Jürgen Moltmann, La iglesia, fuerza del Espíritu, p. 195.
381
Jürgen Moltmann. God in creation. A new theology of creation and the Spirit of God (San Francisco: Harper
and Row Publishers, 1985).
382
Hisazaku Inagaki e Nelson Jennigs. Philosophical theology and East-West dialogue (Amsterdam: Editions
Rodopi B. V., 2000), p. 39.
383
Paolo de Benedetti. Quale Dio? Una domanda dalla storia (Brescia: Morcelliana, 2004), p. 10.
154
A unidade do Deus triuno não é mais vista num aspecto de divina homogeneidade
nem como divina identidade, mas como eterna perichoresis do Pai, do Filho e do
Espírito [...]. As ideias monárquicas, hierárquicas e patriarcais, usadas para legitimar
o conceito de Deus estão, portanto, tornando-se absoletas. Comunidade,
companheirismo, é a natureza e o propósito do Deus triuno384.
Moltmann conclui fazendo uma aplicação política, mas que pode ser estendida à
Deus é uma comunidade de Pai, Filho e Espírito, cuja unidade é constituída pelo
mútuo habitar e recíproca interpreta. Assim, encontramos o reflexo mundano desta
divina sociedade, não numa autocracia de um governante solitário, mas na
comunidade democrática dos povos livres.
Exclusivismo bíblico, como é de se esperar, são mais perigosos. Contam basicamente com
conceitos peculiares à Escritura, tais como, pecado, revelação e salvação; (C) o esvaziamento
Jesus histórico.
cristão remonta ao século XIX. Contudo, o início deste processo recua a tempos mais
remotos. Começou quando o Protestantismo deu nascimento ao pensamento secular, por meio
de Lutero, por ter ele colocado sua consciência acima de suas obrigações políticas e sociais.
Não que esta ideia radical da liberdade cristã esteja errada, mas ela abalou os fundamentos da
mais perniciosas. Depois, este mesmo valor supremo da honestidade intelectual e moral do
384
Jürgen Moltmann. History of triune God: contributions to Trinitarian theology (New York: Crossroad, 1992),
p. xii.
155
Em seguida, o ceticismo de Descartes (que era francês e católico, porém sempre mais a
que o verdadeiro conhecimento sobre Deus só era possível quando obtidos por meios
Foi esta mesma busca da ‘verdade’ que fez a assim chamada Alta Crítica aplicar os
métodos dos estudos literários à análise das Escrituras, destruindo a confiança nelas e
Assim, quando os mestres da suspeita (Marx. Nietzsche e Freud) vieram fazer filosofia com o
martelo, demostrando quão frágeis eram os resultados das filosofias burguesas, acabaram por
sistemáticas construídas sobre este falso fundamento se viram de repente sem sustentação, o
Escritura com o intuito de questionar seu discurso, e não mais seu texto físico – como fora o
americanos, Pós-modernos, todos vieram buscam seu butim nas Escrituras, visando à
pelos métodos da Crítica Textual e da Análise do Discurso ficam tomadas por um estado de
385
S. Mcfague. Metaphorical theology, models of God in religious language (Philadelphia: Fortress Press,
1982), p. 13.
156
estupefação. Seu erro, contudo, havia sido cometido nos anos do século XIX, quando pela
mão de W. Wrede, J. Wellhalser e outros críticos a Escritura fora atirada nos braços do
(milagres, revelação e salvação) não deixou outra opção à teologia, senão procurar guarida na
filosofia que eles próprios haviam ajudado a constituir, consumando assim sua perdição.
Mas ainda não era o fundo do poço. Mesmo os teólogos mais conservadores – pelo
inspirados são humanos e que por isso, não raro, deixam-se influenciar pelos usos e costumes
de seu tempo, justificando práticas inaceitáveis do ponto de vista ético, tais como
páginas das Escrituras e se multiplicar à medida que seus objetos também se multiplicavam.
Mas, em nada esta devassa fazia ainda perigar a fé cristã, por conta de dois princípios
que vai se aperfeiçoando até atingir sua plenitude na palavra de Jesus Cristo (Gl 1:8; Hb 1: 2);
(b) a inerrância bíblica não deve ser entendida em termos absolutos, pois ela diz respeito
Contudo, neste novo contexto teológico, que marca o nascimento da teologia das
religiões, não se pode mais contar com esta salvaguarda. Neste caso não são alguns elementos
da Escritura que são colocados em questão, mas ela em sua totalidade. Neste ambiente a
Bíblia deixa de ser um texto sagrado, revelado e definitivo, que pretende dar acesso ao
absoluto; e passa a ser, num degrau mais abaixo, apenas um escrito “espiritual”, contingente e
em seu lugar se lhes pespega uma ideia fluida e secularizada: “a revelação ocorre quando
157
humanos que estão abertos ao divino têm uma vívida consciência de Deus” 386 . Ou seja,
qualquer pessoa pode receber uma revelação divina, mas o que resulta dela perde toda a
relevância.
experiência humana mais profunda, permeada por uma polissemia simbólica, de cuja riqueza
experiências que pedagogicamente conduzem seus leitores a uma transformação interna, que
salvação nasce daí e pode ser resumido como “a totalidade e a plenitude de um processo de
libertação do ser humano, que envolve uma série de níveis”388. Afastando o conceito de uma
história se constituem como base de toda a realidade salvífica divina”389. Tudo isto fica bem
sintetizado no mote cunhado por E. Schillebeeckx: “fora do mundo não há salvação”: “não se
pode fazer experiência de Deus somente na oração e na liturgia, pois essa experiência
de sua mensagem, apresentando seu livro sagrado como mera fonte de espiritualidade, assim
como o das demais religiões, não lhe cabendo, portanto, nenhum privilégio epistemológico ou
teológico.
estrutural, um novo paradigma ecumênico391, que nasce e cresce à sombra do diálogo inter-
religioso392, o que por si não é negativo, senão no modo como este diálogo pode decorrer. Por
que ponto permanece cristão aquele que afirma, por exemplo, que Jesus Cristo encarnou
simbolicamente. Ou, que Deus interveio simbolicamente na história de Israel, quando estava
sob o jugo da servidão no Egito? Evidentemente, negar a fatuidade destes eventos é ingressar
391
H. Küng. Christianity. The religious situation of our time (London: SCM Press, 1995).
392
Depois da formação do Concílio Mundial de Igrejas (1948), órgão inter-denominacional criado para fomentar
o diálogo entre os Cristãos, e do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII para oficializar aquilo
que muitos teólogos católicos já estavam fazendo, o Ecumenismo transbordou do ambiente cristão rumo a todas
as formas de religiosidade da Terra, para abraçá-las como coirmãs. Na declaração conciliar Nostra aetate de 28
Outubro de 1965, pela primeira vez em sua história, a igreja católica reconheceu solenemente que as religiões
não cristãs produzem raios da verdade que iluminam todos os homens e exortam a seus fieis a dialogar e
colaborar com elas, “para reconhecimento, preservação, e para fazer progredir os valores espirituais, morais e
socioculturais de que são portadoras”. E para que isto não ficasse como letra morta, dois decênios depois, o papa
João Paulo II convidou os chefes das principais religiões do mundo para um encontro em Assis, na Itália. O lugar
escolhido tem um sentido simbólico. Sendo a cidade de nascimento de S. Francisco de Assis, significa que a
Igreja Católica abandona sua soberba espiritual e adota uma atitude mais humilde em relação às outras religiões.
393
David Bosch. Missão transformadora. Mudança de paradigma na teologia da missão (São Leopoldo:
Sinodal, 2002), p. 20.
394
“Muitos estudantes da História das religiões destacam três principais correntes nas quais tais
desenvolvimentos tomam lugar. Uma delas é a corrente semítica, que começa com a crença hebraica num Deus
tribal que liberta da opressão, e desenvolve uma tradição profética de julgamento da injustiça de libertação rumo
a uma verdadeiramente justa e compassiva sociedade. Nesta corrente, a ideia de Deus como uma autoridade
moral e transformadora da história torna-se a dominante imagem da Bíblia hebraica. O ideal da humanidade é
visto o estabelecimento de uma sociedade de justice e misericórdia, onde os indivíduos podem complementar
suas distintivas personalidades relacionando-se uns com outros. A corrente Indiana desenvolve um caminho
diferente, de rituais sacrificais a deuses e espíritos da natureza e daí a uma suprema realidade de sabedoria e
159
Do outro lado da arena, entretanto, esta não é a opinião, por exemplo, de R. Panikkar,
cuja análise prefere ver uma mudança paradigmática 395 , pela qual na contemporaneidade
relação do ser humano com o sagrado, que são diversas à medida que revestidas de
contexto, a pretensão das religiões ao absoluto deve ser entendida mais como intenção do que
falsas; o Inclusivismo liga-se à ideia de coroamento, ou seja, todas as religiões têm verdades,
mas apenas uma delas é a verdade completa e final: o Cristianismo; o Pluralismo sintético
ensina que todas as religiões possuem verdades parciais e imperfeitas e que devem, por
bem-aventurança que se diversifica num universo finito, unidade que só pode ser imaginada pela mente se
retirados os sentidos. Nesta corrente a ideia de Brahmam como a mais íntima realidade das coisas, a ser
conhecida pela renúncia da ação e do desejo, torna-se a imagem dominante dos Upanishads. O universo está sob
a influência da lei do karma, e o objetivo dominante da religião é obter a libertação desta lei do karma, não
retornando a renascer neste mundo. A corrente oriental, na qual Budismo, Taoísmo e Confucionismo interagem,
desenvolveu-se de formas de animismo para a ideia de uma ordem cósmica, um caminho de equilíbrio e
harmonia, seguindo os quais atinge-se a estabilidade e a calma da mente, e paz e correta ordem social. Nesta
corrente há pouca ênfase no ser absoluto ou Deus. A ênfase é colocada em viver em meio a um fluxo sem fim de
seres, sem se fixar em nenhum deles, mas com cuidado e compaixão por todos os seres sofredores. O objetivo é
abandonar qualquer ideia de ego, de dualidade objeto-sujeito, e experimentar o vibrante fluxo do ser, além da
paixão e do apego.” (Keith Ward. God, faith and the new millennium. Christian belief in an age of science -
Oxford: One World Publications, 2002, pp. 153 e 154).
395
Sobre esta questão da mudança paradigmática vide Márcio Fabri dos Anjos (org.). Teologia e novos
paradigmas (São Paulo: Soter/Loyola, 1996).
396
“Cristiania, dimensione nascosta del Cristianesimo” (Micromega, 2, 2001), p. 274.
160
conseguinte, buscar o diálogo umas com as outras para se aperfeiçoarem, ampliando sua base
espiritual397:
Com o conceito de verdade provisória, verdades relativas que surgem como resposta à
raciocínio tertium non datur (o terceiro excluído), que é a base da conclusão de A. Race, por
exemplo: “se todas as religiões são igualmente verdadeiras, todas são igualmente falsas.” 399.
Para estes pluralistas de última geração, portanto, o que as religiões pretendem oferecer não é
objeto é absoluto, mas os meios para atingi-lo são relativos, pelo que, nunca pode ser
plenamente atingido. Usando uma linguagem jaspersiana, as religiões são apenas cifras do
absoluto400. Há uma farta fundamentação filosófica para a realização desta operação. Tanto no
Ocidente – como já vimos ser o caso de Kant, quanto no Oriente – especialmente as filosofias
hindus.
revelação) tem como corolário o esvaziamento das instituições que se pretendem suas
que não é mais antirreligioso, mas plurirreligioso. Ou seja, o ambiente pós-moderno não
propõe mais a substituição da religião por ideologias políticas quase religiosas (Comunismo,
397
Galvin D’Costa. “The impossibility of a pluralist view of religions” (RS, June – 1996), pp. 223-226.
398
Nicholas Lossky (et.al.). Dictionary of the Ecumenical Movement (Geneva/Grand Rapids: WCC
Publications/William B. Eerdmans Publishing Company, 1991), p. 285.
399
A. Race. Christians and religious pluralism, p. 78.
400
Karl Jaspers. La fe filosófica ante la revelación (Madrid: Gredos, 1968).
161
palavra. Em suma, a experiência do sagrado que irmana todos os seres humanos deve ser
das religiões e denominações passa a ser visto como manifestação de um sistema opressivo de
exercício do poder religioso, que usa os símbolos religiosos como instrumento de barganha,
para locupletar uma hagiocracia que os manipula; ou então, como mero reflexo de
estas distorções:
Ao definir desta forma espiritualidade, Faustino Teixeira chama para o diálogo inter-
Ocidental, ou seja, aqueles que não creem, ampliando ao máximo o círculo dos sujeitos
envolvidos nesta conversa sobre o sagrado, à qual os cristãos são convidados a participar, mas
histórico; só variam quanto ao grau com que o fazem. Por que praticamente todas as
cristologia neotestamentária ser de fato a cidadela da ortodoxia, contra ela são dirigidos os
argumentos mais fortes e é também nela que resistem as declarações cristológicas mais
401
F. Teixeira. Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora), p. 176.
162
Amaladoss (c) as cristologias basilocêntricas (têm como centro o reino de Deus) de H. Küng e
S. Samartha. Como é perceptível pelos nomes e pela ordem em que aparecem, fizemos uma
torna-o muito mais próximo de Küng do que dos outros teólogos asiáticos.
filósofo da religião 402 . Com passagem em pelo menos meia dúzia de universidades
importantes do velho e do novo mundo de fala inglesa, tem contribuições nas áreas de
pôs sua assinatura em numerosas e importantes obras sobre o tema em discussão, o que o tem
colocado nas últimas décadas no pluralismo como figura de proa, prova disto foi a coedição
com P. Knitter de uma obra que reuniu artigos de alguns dos pluralistas mais destacados do
singularidade da mediação crística entre Deus e os homens. Como outros pluralistas, entende
402
Cf. C. Gillis. “Radical Christologies? An analysis of the Christologies of John Hick and Paul Knitter”. In T.
Merrigan e J. Haers (edt.). The myriad Christ (Leuven: Leuven University Press, 2000.
403
The myth of Christian uniqueness, op. cit..
163
Se Jesus foi literalmente o Deus encarnado, e se é somente através de sua morte que
os homens podem ser salvos, e se somente pela resposta a ele é que eles podem se
apropriar desta salvação, então o único caminho para a vida eterna é a fé cristã. O
que se segue deste fato é que a grande maioria da raça humana não tem sido salva.
Mas é crível que o Deus de amor e Pai de todos os homens, desse modo houvesse
decretado que somente os que tivessem nascido dentro de uma particular história
humana devessem ser salvos? Não é esta uma ideia excessivamente paroquial,
apresentar Deus, com efeito, como uma deidade tribal do Ocidente
predominantemente cristão?404
Foi em 1973 que Hick começou seu percurso rumo a um pluralismo amplo com sua
obra, Deus e o universo das religiões405, escrita em 1973. Nela pretende retirar de Jesus o
eterna. E ainda mais que isto, deve nos levar a abandonar até mesmo a perspectiva
salvífico de Jesus para validação das religiões não cristãs. As religiões salvam por si mesmas
e não em virtude da atuação mística de Jesus nelas, como ensinam as declarações do Vaticano
II.
uma metáfora que antes já havia sido aplicada à guinada kantiana em tirar o interesse da
filosofia do objeto e trazê-lo para o sujeito. Por ela Hick compara sua missão na teologia em
transferir o eixo central de Jesus para Deus com a realização de Copérnico em demonstrar que
o centro do sistema solar não era a terra, mas o sol. “Temos que compreender”, diz Hick, “que
o universo religioso está centrado em Deus, não no Cristianismo ou em outra religião. É Ele o
404
J. Hick. “Jesus and the world religions”. In J. HICK. The myth of God incarnate (London: SCM Press, 1977),
p. 180.
405
J. Hick. God and the universe of religions (Oxford: One World, 1993).
406
Ibid, p. 131.
164
Sol, a fonte da qual vêm a luz e a vida, Ele, o que todas as religiões refletem, cada uma a sua
maneira”407.
exclusiva mediação de Jesus na relação divino-humana (1Tm 2:5-6; At 4:12; Jo 3,17; At 5:31,
literal pelos cristãos seguidores da filosofia dogmática grega (Platão e Aristóteles) e pelos
concílios, já que Jesus mesmo nunca teria ensinado estas coisas 409 . Além disto, no novo
contexto religioso é inaceitável a pretensão do Cristianismo a ser uma religião fundada pelo
próprio Deus encarnado (At 13:32-33; Rm 1:1-4; Hb 1:1-5; Jo 5:18, 8:18-19, 10:30, 20:30). A
linguagem dos evangelhos quando falam de Jesus como “Filho de Deus”. Para Hick Jesus foi
reino de Deus 411 . Em suma, ele segue os passos do decano do pluralismo, Allan Race,
tornando irrelevante a figura de Jesus: “A divindade de Jesus é mais uma qualidade em ele ter
aberto completamente o acesso a Deus, ao amor e à graça do Pai, do que [...] de sua natureza
Cristianismo chega ao fim com saldo zero. A doutrina bíblica da morte vicária de Jesus, bem
407
J. Hick. God has many names, (Philadelphia, PN: The Westminster Press, 1982), pp. 70-71.
408
Idem. The metaphor of God incarnate (Louisville, KT: Westminster / John Knox Press, 1994).
409
J. Hick. Disputed questions in theology and philosophy of religions (New Haven, CT: Yale University Press,
1993), p. 98.
410
J. Hick. The non-absoluteness of Christianity, p. 31.
411
Idem. The metaphor of God Incarnate, p. 25.
412
A. Race. Christians and religious pluralism, p. 128.
165
como a justificação pela fé que nela se baseia, não existiu: “um perdão que deveria ser
efetivado pelo pleno pagamento de uma dívida moral, de fato não é perdão” (destaque
nosso) 413 . Não é preciso ler a expressa declaração de Hick sobre a superfluidade da
proclamação do evangelho para concluir que suas ideias o levariam a tal ponto414.
Mais tarde, numa obra escrita em 1990, Uma interpretação da religião 415 , Hick
responde a objeções quanto ao fato de seu pluralismo não ser suficientemente aberto, por
ainda estar preso ao conceito teísta de um Deus pessoal, incompreensível para o Budismo
Theravada e religiões animistas e xamânicas, por exemplo. Para resolver o problema ele
do mundo têm formas diferentes de dar corpo a este real, daí a grande diversidade religiosa
existente, pois cada uma dará uma resposta diferente à mesma manifestação do chamado
Esta abordagem não é propriamente uma novidade. Outro neokantiano estudioso das
religiões, Ernst Troeltsch, o pai do relativismo histórico, já o havia proposto no século XIX.
Segundo esta concepção, o absoluto manifesta-se na história do mundo, contudo, todas estas
A conclusão de Troeltsch e de Hick é que todas as religiões são verdadeiras, mas não
absolutamente verdadeiras; apenas sua intenção é verdadeira, ou seja, tentar traduzir este
413
J. Hick. Disputed questions in theology and philosophy of religions, p. 98.
414
J. Hick. “A philosophy of religious pluralism”. In R. J. Plantinga, (ed.), Christianity and the plurality,
(Malden, MS: Blackwell Publishers Inc., 1999), p. 339.
415
J. Hick. An interpretation of religion. Human responses to the Transcendental (London: Palgrave Macmillan,
2004).
416
Ibid., p. 240.
417
Ernst Troeltsch. Christian Thought: its history and application (London: University of London Press, 1923),
p. 22.
166
absoluto. Suas realizações, porém, sempre ficarão aquém daquilo a que se propõem. Mesmo
Há pelo menos três grandes problemas com a proposta de J. Hick. O primeiro deles é o
originária de Jesus; a do alto promovida pela Igreja e seus concílios. Segundo ele, Jesus teria
preferido o “filho do homem” apocalíptico aos outros títulos cristológicos: Filho de Deus.
Messias e Senhor 419 . Jesus pode até ser chamado de messias, desde isto não implique
palavra nas páginas do Novo Testamento. Hick ignora Daniel e toda a literatura
intertestamentária apocalíptica, que faz com que mesmo o título de “filho do homem” esteja
longe de ter o prosaísmo pretendido por ele. Em suma, seu único fundamento é o velho
preconceito iluminista.
O problema é que Hick depende demais do raciocínio dedutivo, o que o leva a descurar
das fontes. Quando examina o conteúdo assertivo restringe-se a uma crítica das doutrinas
que a base destes documentos, e que toda esta cristologia posterior foi desenvolvida e não
criada pelos concílios. Surgiu como resposta ao espírito sistemático grego, ao este substituir o
ambiente semítico originário, mas sempre o fez tomando as fontes neotestamentárias como
418
Galvin D’Costa. The meeting of religion and the Trinity, p. 26.
419
J. Hick. Disputed questions in theology and philosophy of religions, p. 40, 46.
420
J. Hick. “o caráter não absoluto do Cristianismo” (Numen, Out – Dez, 1998), pp. 37 a 42.
167
ponto de partida. Este descaso pelas fontes faz com que os leitores de Hick tenham a
descartar várias passagens da Escritura com a justificativa de serem mitos piedosos, só para
entanto, sequer do ponto de vista pragmático é positivo, pois acaba produzindo um efeito
aceitável, sem considerar com seriedade o que as religiões dizem sobre si mesmas. Ele
promove a redução das religiões a um formato específico – neste caso a filosofia crítica de
Kant, que as distorce, e que em fim de contas, torna-se tão violenta do ponto de vista
‘Real - coisa em si’, sempre está além de todos os conceitos que possam ser criados para
como a podemos conhecer’, toda a pretensão ao absoluto das religiões deve desaparecer. Em
seu lugar restarão apenas tentativas de alcançar este absoluto, a que todas as religiões se
Quanto à questão da verdade, como consequência desta clivagem radical entre o Absoluto e o
mundo humano, predomina “o conceito de verdade mitológica, que não tem adequação com a
168
realidade, mas simplesmente desperta no sujeito uma disposição adequada para com o
enunciado”421.
Contudo, a mesma crítica dirigida a Kant quando deu por acabada sua primeira crítica
Ou seja, como posso saber se existe o incondicionado se não tenho acesso a ele? A
teorias da Física relativista de Einstein: o espaço e o tempo não são absolutos como pensava
Kant, mas relativos. Neste novo contexto científico, o incondicionado kantiano hoje não passa
de uma hipótese mal fundada. Quando aplicamos estas críticas à religião, mais objeções. O
que poderia servir de apoio a Hick, a fenomenologia, mostra-se insuficiente para demonstrar a
gênese da religião num sentimento transcendental, que tornaria o que dizem apenas variações
que, quanto à religião, não existe uma estaca zero fenomenológica, porque todo o simbolismo
religioso existente é produto do que dizem os textos sagrados sobre eles. E no máximo pode-
se dizer que haja uma dialética entre os aspectos socioculturais condicionantes e eles. Em
De tal modo que Hick fica sem alternativa senão admitir que transferiu sua confiança
religiosa das Escrituras para uma hipótese infundada e já desgastada de Kant, sem nenhuma
outra garantia. Pois Deus, conforme sugeriu Feuerbach, bem pode ser a projeção do desejo
421
H. Hick apud W. H. Capps. Religious studies. The making of a discipline (Minneapolis: Fortress Press, 1995),
p. 272.
422
M. F. Miranda. O Cristianismo em face das religiões (São Paulo: Loyola, 1998), p. 21.
169
humano de um grande outro com seu rosto 423 . E isto não é suficiente para fundamentar
primeiras críticas e em ambas são muito mais fracos do que o resto de sua argumentação. Na
Crítica da razão pura, Deus “é apenas a relação entre um ente em si totalmente desconhecido
maior uso empírico possível de minha razão” 424 , ou seja, é uma ideia que gera um
pressuposto: é natural à razão humana esta dilação. Na Crítica da razão prática, sua
existência é provável e até necessária do ponto de vista prático; do contrário, a ação moral não
passaria de um absurdo. Sem estes dois elementos: fé e felicidade, todo dever, por mais que
Em suma, na primeira crítica Deus pode ser pensado, mas não pode ser conhecido; na
segunda, Deus é apenas “um postulado da razão”, ou seja, uma hipótese sem a qual a
existência moral dos homens careceria de fundamento. Numa e noutra obra, apenas um
elemento essencial para completar um sistema, uma hipótese de trabalho e não uma certeza
fundante.
O resultado de toda este arrazoado sustentado por Hick não é um diálogo inter-religioso
mais eficaz, mas a destruição da religião, pela prática de uma espécie de agnosticismo:
423
Ludwig Feuerbach. A essência do Cristianismo (Campinas, SP: Papirus. 1988).
424
Crítica da razão pura - do propósito último da dialética natural da razão pura (São Paulo: Nova Fronteira,
1999).
425
I. Kant. Os Progressos da Metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000); Cf. também Kant. Crítica da razão prática
(São Paulo: Vitório Civita, 1982) - Dialética da razão prática na determinação do sumo bem, livro V.
426
Galvin D’Costa. The meeting of religions and the Trinity (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2000), p. 26.
170
Bíblia se limitou à repetição de bordões teológicos, tais como, “é preciso abrir mão de Jesus
justifique.
começou sua carreira como aluno de Karl Rahner e posteriormente decidiu dar um passo além
sofreu grandes modificações no decorrer de sua vida, pois tendo começado no estrito
Vaticano II, Karl Rahner, a torna-se inclusivista. Depois, dando continuidade a seus estudos,
reino de Deus, que, por mesclar princípios da teologia da libertação e da ecoteologia, acabou
Seus argumentos em prol do pluralismo vão se acumulando à medida que escreve seus
textos. É nos primeiros que ataca o inclusivismo cristológico. Como Hick, ele decidiu
próprio teocentrismo pluralista, já que são convocados para o diálogo também aqueles que
427
Ibid., p. 30.
171
exclusividade de Jesus, sua mensagem e seu papel salvífico 428 . Porém, diferentemente de
não se faz a partir de bases completamente empíricas, mas também textuais, embora sejam
insuperável de Deus, mas traz uma mensagem universal, decisiva e indispensável”430. Knitter
faz uma longa defesa em prol destes novos conceitos, compostos para fundar uma nova
Jesus é totalmente Deus, mas Deus não é totalmente Jesus431. Ou seja, o Jesus histórico não
esgota a divindade nem o poderia. Deus se manifesta de outras formas em outras comunidades
humanas.
428
As declarações tradicionais cristãs sobre Jesus como final, completo e insuperável, é, para dizer o menos, uma
ameaça ao diálogo, e é contrário ao imperativo moral, que exige a cooperação entre as religiões. Qualquer coisa
que torne o diálogo problemático é ele mesmo um problema e deve ser descartado. P. Knitter citado por G.
D’Costa. The meeting of religion and the Trinity, p. 37.
429
Albert Moliner. “A cristologia relacional” (Ciberteologia, ano V, no. 24), p. 28.
430
P. Knitter. Jesus and the other names. Christian mission and global responsibility (Maryknoll, NY: Orbis
Books, 1996), p. 79.
431
P. Knitter. Jesus and the other names, p. 73s.
432
P. Knitter. Jesus and the other names., p. 72.
172
A base escriturística desta afirmação é a teologia do Logos que Knitter compartilha com
outros teólogos pluralistas, uns e outros não sendo muito fieis às fontes. Com efeito, o que
João 1: 1 diz é que Jesus pré-existe à sua manifestação carnal e que é Deus com o Pai, desde o
princípio. Contra isto pode-se argumentar que a presença de uma teologia da palavra,
responsável pela conexão do Logos joanino com a sabedoria (hokmah) do livro de Provérbios
ou com a palavra (memra) dos Targumim é bastante especulativa, não havendo elementos que
comprovem uma ligação da tradição joânica com a rabínica, originadora dessas ideias433. O
texto silencia também sobre a extrapolação do Logos em relação ao Jesus histórico, com
manifestação em outras figuras históricas e religiosas, e quem o afirma faz uma ilação sem
base textual, seja de João ou de qualquer outro lugar nas Escrituras. O que o quarto evangelho
afirma é que o verbo se fez carne e habitou entre nós e não que o espírito do Logos tivesse se
encarnação fere a boa hermenêutica por fazer uma transposição indevida da história sagrada
“decisivo”. Para ele “definitivo” é uma afirmação idolátrica 434 , já que o humano jamais
poderá conter o divino, o que se supõe ocorresse caso Jesus fosse a revelação definitiva de
Deus. Esta objeção é comum à grande maioria dos pluralistas e se baseia na rejeição do
conceito encarnacional tradicional defendido pelos concílios, pelo qual se entende Jesus
das Escrituras e a uma negação iluminista daquilo que não existe em nosso cotidiano. Em
suma, Jesus pode ter sido um homem excepcional, mas que ainda assim permaneceu sendo
433
K. Armstrong, Uma história de Deus, p. 125.
434
Ibid., p. 74.
173
Portanto, levando em conta as fontes, a revelação definitiva de Jesus não é idolátrica por
três motivos: (a) Esta revelação não foi dada por um mero ser humano – Hb 1: 1-2: “Havendo
Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras , aos pais, pelos profetas, nestes
últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por
quem fez também o mundo”; (b) toda revelação divina é dada no contexto da economia da
salvação, por isso ela se destina apenas a indicar o caminho da salvação aos seres humanos,
não tendo a pretensão esgotar a riqueza infinita da divindade; (c) o próprio Jesus histórico, ao
qual Knitter parece se referir, está longe de ser uma figura idolátrica, porque ainda que no
mundo, seu reino não era deste mundo: era o reino de Deus.
de novo a noção de ídolo é utilizada. Ele evoca a promessa do Espírito Santo (Parácletos)
como indício de que o canal revelacional ao mundo se mantém aberto435, mas Jesus restringiu
a plenitude do dom do Espírito à Igreja Cristã, embora não o tenha interditado a outros povos.
Para encerrar sua argumentação cristológica, ele toma de empréstimo as reflexões dos
teólogos da libertação com o objetivo de evitar a redução do reino de Deus à aparição de Jesus
Igreja rumo aos confins da terra, não para impor sua confissão, mas para compartilhá-la com
as outras crenças. Pois a relevância do evangelho não se perdeu nem sua normatividade,
apenas não é a única mensagem a ser proclamada nem a única normatividade a ser aplicada. A
boa nova dos evangelhos define Deus, mas não o confina436. Há outras definições de Deus que
435
P. Knitter. Jesus and the other names, p. 75.
436
P. Knitter. Jesus and the other names, p. 77.
174
são necessárias para que se mantenha a infinitude das riquezas da divindade e a melhor
Em uma de suas últimas obras, Uma Terra, muitas religiões 437 , Knitter procura
responder àqueles que o chamavam de relativista, criando um princípio normativo. Nesta obra
ele reconstrói alguns conceitos básicos do Cristianismo, como por exemplo, salvação. Para ele
“soteria [...] deve definir amplamente o bem estar eco-humano”438. E religião neste quadro
pode variar, mas todas concordam com a necessidade de buscar o bem estar da comunidade
humana a saúde ecológica da terra439. Se houver alguma exceção a esta regra, deve-se negar a
entre uma religião que busque ser uma agência de salvação e uma outra que não o faça. Este
então passa a ser o critério definidor dos parceiros no diálogo e a pedra de toque que confere
das religiões inclusivista, pois as religiões ditas proféticas serão favorecidas por ele e as
Resumindo nossas impressões sobre as ideias de P. Knitter podemos dizer que sua
evolução teológica na verdade parece-se mais com o tatear cego de alguém que busca
construir um caminho novo, mas encontra-se perdido por onde quer que ande. Propôs a si
mesmo uma missão titânica que é a de incluir todas as religiões – inclusive o Cristianismo –
num projeto humanístico universal, contudo, não tem um ponto de partida religioso bem
definido. No inicio de sua evolução, seu pluralismo adota uma teologia soteriocêntrica e
logocêntrica afeita ao conceito de avatar do Hinduísmo. No meio, advoga uma teologia das
opressor. No Ocidente até que isto tem pertinência, porém, se estamos no Oriente, Médio ou
Próximo, então as coisas se invertem, pois a religião cristã é a minoria oprimida. O conceito
de reino de Deus que ele utiliza em sua última fase é uma tentativa de aproximação em
relação às religiões proféticas. No entanto, ainda que se entenda estas ideias numa perspectiva
usados ad hoc, estando aí apenas para sustentar uma argumentação pro diálogo inter-
religioso.
1957. Como professor, Geffré passou por inúmeras faculdades teológicas, chegando ao ápice
Porém, seus escritos e palestras fizeram-no sofrer algumas sanções eclesiásticas que o
Por exemplo, um doutorado honoris causa oferecido pela Faculdade de Teologia de Kinshasa
e cuja cerimônia acabou não ocorrendo por um veto da congregação para a doutrina da fé,
provavelmente motivado pela publicação de seu último livro, De Babel à Pentecôte, o qual
Neste início do século XXI, a teologia deve-se confrontar com um novo desafio, este
do pluralismo religioso. E, além disso, não se trata apenas de agregar um novo
capítulo ao edifício solidamente construído da teologia clássica. Trata-se de realizar
uma reinterpretação da fé que entranha os lugares mais importantes no interior dos
capítulos fundamentais de uma dogmática cristã442.
442
C. Geffré. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse (Paris : Du Cerf, 2006), p. 28.
176
hermenêutico para além do texto escriturístico e a inclusão nesse círculo a “existência humana
em todas as suas dimensões”444. Geffré, assim como J. Dupuis, quer manter-se nos limites de
uma hermenêutica triádica que caracteriza a teologia católica: o texto, a Igreja e o contexto
histórico do ouvinte da palavra, mas não em fidelidade à letra do texto, e sim à mensagem
A fé só é fiel ao seu próprio impulso e ao que lhe permite crer se levar a uma
interpretação criadora do Cristianismo. O risco de não transmitir mais que um
passado morto, por falta de audácia e de lucidez, não é menos grave do que o do
erro445.
Como é evidente, não era possível, mantida esta opção hermenêutica, evitar o confronto
com a cúria romana. Ora, a proposta de Geffré parece ser, de certa forma, reescrever as fontes,
defendendo, como ele diz, o aporte de “novas figuras históricas na forma de escrituras ou
novas escriturações por três motivos: primeiro, o mistério divino está entretecido na própria
estrutura do ser humano, daí a capacidade de todas as religiões revelarem algo sobre Deus.
Segundo, para ele, conforme uma orientação tillichiana, religião é uma experiência de
Palavra de Deus não se reduz a um livro, mas existe à medida que faz parte da história de uma
comunidade confessante448.
443
C. Geffré. “Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne” (RTL, 31,
2000), p. 9.
444
Idem. Un nouvel âge de la théologie (Cogitatio fidei 68, Paris: Cerf, 1972), p. 61.
445
C. Gefré. Le christianisme au risque de l'interprétation (Paris, Éd. du Cerf, 1983), p. 18.
446
C. Geffré. Le christianisme au risque de l'interprétation, pp. 70-72.
447
C. Geffré. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse, p. 19.
448
C. Geffré. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse, p. 20.
177
a uma figura abstrata, o Logos, Geffré está consciente da importância do Jesus histórico para a
para chegarmos ao conhecimento de Deus: “Só podemos conhecer o Deus de Jesus a partir da
particularidade da história de Jesus”449. Por outro lado, também não entende a encarnação
como poesia ou metáfora piedosa. O verbo é realmente o Deus encarnado. Contudo, o Jesus
histórico não esgota como “absoluto concreto” toda a riqueza da manifestação divina:
Depois da idade apostólica, a Igreja confessou Jesus como Filho de Deus. Mas uma
teologia prudente deve se guardar de identificar o elemento crístico contingente de
Jesus a seu elemento crístico divino. A manifestação do absoluto de Deus na
particularidade histórica de Jesus de Nazaré nos ajuda a compreender que a
unicidade de Cristo não é exclusiva em relação a outras manifestações de Deus na
história. Há uma identificação de Deus com Jesus, segundo a forte expressão da
epístola aos Colossenses (2: 6): “a plenitude da divindade habita nele
corporalmente”. Porém, esta identificação nos reenvia ela mesma ao mistério
inacessível de Deus que escapa a toda identificação. O Cristianismo não é, portanto,
não exclui as outras tradições religiosas que de outra forma identificam a realidade
última do universo450.
Geffré também adverte o leitor quanto ao perigo de o Jesus histórico tornar-se um ídolo,
por se pensar nele como limite e continente do divino451. Jesus é ícone, é sinal, é o horizonte
humano pelo qual se pode vislumbrar o divino, mas assim como o céu não cabe no horizonte,
o Logos não se esgota em Jesus. Nossa limitação não é só ontológica, mas também histórica,
revelação de Deus em Jesus é completa e definitiva, mas sua compreensão plena nos remete
ao ministério do Espírito, que para Geffré é uma promessa para toda a humanidade e não só
para a Igreja452.
449
C. Geffré. “O sentido e o não sentido de uma teologia não-metafísica” (Concilium, no. 6, 1972), p. 790.
450
C. Geffré. “La théologie des religions ou le salut d’une humanité plurielle (RP 2001/4), p. 117.
451
Idem. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia (Petrópolis: Vozes, 2004), pp. 164-165.
452
C. Geffré. “La verdad del Cristianismo en la era del pluralismo religioso” (ST, v. 37, no. 146, 1998), p. 138.
178
cristão. As outras religiões também são mediadoras à medida que seu ministério é derivado
deste mesmo Logos. Em suma, através das práticas religiosas das outras religiões Deus
também manifesta seu amor e sua vontade salvífica453. Qual é então o papel das Igrejas cristãs
e de seu novo conceito de verdade relacional, o papel dos cristãos é compartilhar uma verdade
que transborda, que se articula a das outras religiões; e que, enfim, aprende mais sobre si
mesma à medida que se acerca daqueles que proclamam e vivem de uma forma diferente a
salvação divina454.
Geffré, assim como para outros pluralistas: “A igreja como realidade histórica, não tem o
monopólio dos signos do reino; Deus é maior que os signos históricos pelos quais ele
manifesta sua presença”455. O caráter universal da igreja não depende mais do caráter absoluto
do Cristianismo, depende do mistério divino, pelo ministério do Espírito, que faz com que o
reino de Deus se amplie no mundo. Cabe à Igreja colaborar com este processo.
elementos para ambas conclusões e talvez isto se deva à própria condição de eclesiástico que
deve lealdade a seus superiores hierárquicos e à doutrina da Igreja Católica. O que diz, por
exemplo, sobre Jesus é bem sintomático, pela falta de coerência: o Logos não se esgota no
Jesus histórico; este não perde sua importância e é apenas ícone, sinal da presença de Deus na
história; suas palavras e mensagem devem ser reescritas pelos leitores atuais. De tudo isto,
para mim o maior indício de que Geffré é pluralista é seu relativismo que faz com que a Igreja
453
C. Geffré. “La place des religions dans le plan du salut” (Spiritus, no. 138, 1995), p. 88.
454
Idem. “Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne”, p.32.
455
C. Geffré apud Giles Langevin e Raphaël Pirro. Le Christ et les cultures. Dans le monde et l’histoire
(Quebec: Les Éditions Belarmin, 1991), p. 23.
179
Cristã encontre as demais religiões num espírito de compartilhamento de verdades, cuja efeito
não é as religiões conhecerem o Deus pregado pelos cristãos, mas os cristãos conhecerem
melhor a si mesmos e a salvação divina também presente e agindo de forma diferente nas
outras religiões.
Raimon Panikkar foi um religioso católico romano, filho de mãe espanhola, católica, e
de pai indiano e hindu. Graduado em Filosofia, Química e Teologia e doutor nas três áreas
religião hindu e budista, o que o qualificou à tentativa de realizar uma grande síntese do
o Hinduísmo e o Budismo. Seu projeto não é um expediente meramente teórico, mas algo que
tem relação com sua experiência inter-religiosa, obtida por nascimento e educação456. Atuou
religioso, ciências e educação457. Escritor profícuo e solicitado pelas mais renomadas editoras
do mundo, tem sua assinatura em mais de 40 obras, além de centenas de artigos, sendo a mais
456
“Tem havido um companheiro de viagens em minhas jornadas para as diferentes terras dos homens. Os filhos
de meu tempo e ambiente, / pensamento/souberam bem quem era o companheiro em minhas visões intelectuais e
espirituais de mais de meio século atrás. Ocorreu, porém, um momento crítico quando eu atingi meu lar ancestral
no ápice de minha vida: meus passos para a cidade da paz, para procurar e talvez encontrar meu companheiro
outra vez, eu prossegui sozinho, para o campo de batalha perpassado de guerras fratricidas. Chocado e
envenenado eu me recusei a permanecer lutando contra qualquer dos partidos... Eu permaneci um consciente
opositor, rejeitado por ambos... Arriscando minha vida ao oferecer meus serviços a todos sem aceitar suas
respectivas dialéticas, eu me encontrei de repente no mundo do tempo. E daí me veio a sacralidade de tudo,
mesmo do secular, raiando sobre mim. Assim, eu estou na confluência (sangam) de quatro rios: as tradições
Hindu, Cristão, Budista e Secular.” (Raimon Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 23)
457
Camilia G. MacPherson. A critical reading of the development of Raimon Panikkar’s thought on the Trinity
(Lanham, Ml: University Press of America, 1996), p. 2.
180
É sempre complicado abordar o pensamento de Panikkar. Além de ter trânsito por várias
sistematizar suas ideias. De acordo com a tipologia de Isaiah Berlin459, segundo a qual os
quadro de suas ideias, pois seu gênio está na capacidade sintética que possuem de relacionar
as coisas; já os ouriços são os que desprezam a multivacidade, possuindo uma visão monista
do mundo, contudo, analisam com tanta profundidade esta única coisa, que logram
Montaigne, Goethe e outros, uma das características mais fundamentais deste tipo de
de suas ideias; as conexões são tantas que o analista perde o fio das ideias e não tem como
sintetizar o autor posto sob exame. A melhor forma de estudar este tipo de pensador é
escolher temas que pelo número de aparições indiquem sua importância no escopo total de
suas ideias. No caso de Panikkar, podemos empreender a tentativa de entendê-lo por uma
percepção que é comum a outros teólogos das religiões, a saber, a de que em nossos dias
458
Este texto tem duas edições bem distintas. A primeira, de 1964, estava alinhada à teologia conciliar de
Vaticano II, o Cristo do qual fala era desconhecido pelos hindus, mas era conhecido pelos cristãos, e estava
comprometido com um projeto de enculturação em que conceitos hindus foram reinterpretados ou traduzidos
para a plataforma conceitual cristã. A edição de 1981 é completamente diferente, o Cristo de que fala é uma
figura universal, de que o Jesus histórico é apenas uma representação entre outras. Em suma, “Panikkar insiste
[…] que Jesus é Cristo, mas que o Cristo não é apenas Jesus” (Rudolf von Sinner. Confiança e convivência:
reflexões éticas e ecumênicas – São Leopoldo RS: Sinodal, 2007, p. 125.
459
Isaiah Berlin. The hedgehog and the fox (Princeton: Princeton University Press, 2013), p. 2.
460
Berlin baseou-se num fragmento de Anquíloco para criar a tipologia: “a raposa tem muitos truques; o
cacheiro, apenas um único grande truque”
181
vivemos sob a égide de uma mudança paradigmática, segundo a qual nossa forma de pensar
A base desta ideia está fundada no conceito de Thomas Kuhn461, filósofo da ciência, que
demonstrou que a objetividade científica é um mito. A ciência não evolui por alguma
qualidade intrínseca, mas porque certas teorias se tornam insustentáveis em face à realidade
períodos em que a ciência permanece estacionada por seu próprio dogmatismo as questões
institucionais pesam mais do que o suposto amor ao conhecimento e à verdade dos cientistas,
de modo que elementos sociológicos também são levados em conta no processo de validação
Esta, no entanto, não é a parte da tese de Kuhn que interessa aos teólogos citados,
definida por ele como “ciência normal”. O que lhes interessa são os momentos de crise em
novo sistema462. Para alguns teólogos (H. Küng e J. Dupuis) as anomalias que impedem a
causado pelo secularismo, e (b) eflorescência das outras religiões mundiais. Estes eventos
produziram furos naqueles sistemas teológicos pré Vaticano II e obrigaram a teologia a olhar
para o mundo como uma realidade multirreligiosa. Para Panikkar, assim como para P. Knitter,
além destes problemas, deve-se colocar uma nota enfática nos problemas ambientais e na
461
The structure of scientific revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1970).
462
Usando a metáfora da construção civil, paradigmas são as estruturas dos prédios que servem de suporte e ao
mesmo tempo de modelo no qual cada tijolo, janela, porta devem ser encaixados, definidos pelo mesmo modelo,
o lugar de cada um. Os paradigmas são estruturas construídas para receber objetos ainda desconhecidos, porque
a ciência não pode trabalhar com o caótico, por isso estes modelos são chamados de teorias. Momentos de crise
paradigmática ocorrem quando existem objetos, informações do mundo factual, que não se encaixam na
estrutura teórica previamente construída: anomalias. Quando isto ocorre é necessário a substituição do
paradigma, ou do modelo, em sua totalidade.
182
Como vimos páginas acima, Panikkar compreende a história da religião cristã por meio
Esta contribuição do Cristianismo de que fala a citação pode ser, por exemplo, uma
“a totalidade da realidade poderia ser chamada usando uma linguagem cristã, Pai, Filho e
modos como Deus é adorado, que ele aprendeu com a tradição hindu, os quais consistem em
três tipos de espiritualidade, cada uma delas correspondendo a uma das pessoas da Trindade,
“o silêncio do Pai está expresso no Budismo; o Logos pode ser encontrado no Judaísmo,
463
R. Panikkar. “Cristiania, dimensione nascosta del Cristianesimo”, p. 278.
464
R. Panikkar. “A christophany for our time” (TD, Spring, 1992), p. 37.
465
Apud Francis X. D’Sa. “How Trinitarian is Panikkar’s Trinity (CR, no. 3, supplement), p. 38.
466
Ilia Delio. Christ in evolution (New Delhi: Logos Press, 2010), p. 140.
183
pelo prisma cristológico, sendo Cristo o símbolo de uma unidade, dividida em três elementos
inseparáveis, mas distinguíveis: o cosmo, o homem e Deus, perceptíveis por três faculdades
humanas, respectivamente, sentido, mente e consciência 468 , que por sua vez também são
faltar-lhe bases mais sólidas para a argumentação teológica além do misticismo, do método
alegórico da Patrística grega, aplicado de forma mais ampla do que ousaram seus criadores; e
pela utilização de conceitos cristãos para definir experiências religiosas que escassamente são-
lhe compatíveis.
correto substituir a palavra Pai por Brahman471 e conscientização por Ioga472, pois o deus que
é perceptível por meio da meditação não é o Deus bíblico, que ouve, comunica-se e atua, mas
apenas a condição de possibilidade da realidade, ou ainda, o poder que tudo mantém, no qual
467
Haveria muito que esclarecer sobre este conceito de Panikkar e seu aparente monismo inspirado, na filosofia
hindu (advaita) que rejeita a tricotomia cartesiana homem, Deus e mundo. Vamos deixar este capítulo de lado. O
autor nos adverte, contudo, trata-se de uma intuição mística e não analítica. Ou seja, não é uma rubrica subscrita
ao capítulo da ontologia filosófica, desde que não está pensada em relação à epistemologia, mas à teologia e à
mística. Contudo, em outro lugar vem afirmado que são “três dimensões do real” (R. Panikkar. Entre Dieu et le
cosmes. Entretiens avec Gwendoline Jarczyk – Paris: Albin Michel, 1998, p. 135).
468
Muitos intérpretes têm apontado para a natureza excessivamente esquemática dessas ideias, em que, por
exemplo, o número três acaba servindo de pretexto para estas aproximações do Cristianismo e as outras
religiões, ou melhor dizendo, atitudes em relação ao Real, ou seja, baseado em dados materiais bem irrisórios. A
exemplo do artigo já citado de Francis X. D’SA. “How trinitarian is Panikkar’s Trinity”, p. 40.
469
R. Panikkar. The rhythm of being. The Glifford Lectures (New York: Orbis Books, 2010), p. 183.
470
Rudolf von Sinner. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecumênicas (São Leopoldo RS: Sinodal,
2007), p. 102.
471
“O mundo inteiro era visto como atividade divina brotando do misterioso Brahman, o significado oculto de
toda a existência. Os Upanishads estimulavam as pessoas a cultivar o senso de Brahman em todas as coisas. Era
um processo de revelação no sentido literal da palavra: um desvelar da base sagrada de todo ser, tudo o que
acontecia constituía numa manifestação do Brahman: o verdadeiro discernimento estava na percepção da
unidade existente por trás dos fenômenos”. (Karen Armstrong. Uma história de Deus, p. 46).
472
“As técnicas da yoga levam os adeptos a conscientização da existência de um mundo interior, que é Atman,
princípio eterno um com o Brahman”. (Karen Armstrong. Uma história de Deus, p. 47).
184
se pode ter uma experiência de imersão, mas não de comunhão. O Espírito presente no culto
ou Karma-mag, não é o que guia em toda a verdade, mas o que torna tudo verdade. O Cristo
da Bhakti-mag em Panikkar tem um perfil mais complexo, com certo fundamento na teologia
paulina473.
Com efeito, o papel de Cristo nesta realidade total, holisticamente entendida por
Panikkar é ser ele o catalisador e unificador destes elementos, constituindo a união mística
paulina de todas as coisas com Cristo: (a) do homem com os outros homens, (b) do homem
(a) Do homem com os outros homens, desde que a base das culturas é a religião, Cristo
fazendo parte do mesmo mistério indivisível, cada um deles uma dimensão desconhecida do
Cristo474. A base desse mistério é a teologia do Logos do prólogo joanino, porém, com uma
dimensão que vai muito além do Jesus histórico, que é apenas uma das manifestações crísticas
culturais, históricos e geográficos que lhe são pertinentes 475 . Com isto, a salvação do ser
humano por Cristo pode ser mediada por qualquer religião não possuindo o Cristianismo mais
O bom e bona fide hindu, tanto quanto o bom e bona fide cristão são salvos por
Cristo – mas não pelo Hinduísmo ou Cristianismo per se, mas através de seus
473
II Cr 5: 19; Gl 3: 28; Cl 3: 11.
474
R. Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 23-30.
475
A forma como a cristologia de Panikkar evoluiu diz muito sobre sua própria evolução no panecumenismo. Na
primeira edição de seu livro The unknown Christ of Hinduism (1964) ele escrevia: “o lugar onde Cristo é
plenamente revelado é Jesus Cristo”. O Cristianismo, portanto, “é o lugar onde Cristo é completamente revelado
e é a plenitude de todas as religiões”. Na mesma obra, na edição de 1981 ele mudou do vinho para água: “quando
eu chamo de Cristo o link entre o finito e o infinito, não estou pressupondo sua identificação com Jesus de
Nazaré” (p. 27). Ele abre mão do escândalo da particularidade paulino, com isto, em minha opinião, deixa de ser
cristão.
185
sacramentos e, em última instância, por meio do mistério ativo no interior das duas
religiões476.
Brahman, o deus originador de todas as coisas. E este é a origem não originada de tudo, o
princípio criador e unificador de tudo o que existe e o que não existe. Mas, é um deus
impessoal, muito parecido com o primeiro motor imóvel de Aristóteles. Ato puro e por isso,
por não haver nele movimento, desde que nele não há o trânsito entre potência e ato, é um
deus inerte, incapaz de se ocupar de outra coisa a não ser de si mesmo. Brahman é o “abstrato
aspecto pessoal, o criador, o revelador de Brahman, o que desce aos homens em forma de
Brahma e Yaweh/Elohim não coincidem. Brahman é um típico deus otiosus (deus ocioso),
pessoal, que intervém na história humana. (b) a missão de Ishvara e do Logos joânico também
divergem. A missão de Jesus é a salvação dos homens, por inaugurar a chegada do reino de
Deus e por sua morte vicária; a missão dos avatares é a salvação dos homens por ajudá-los a
encontrarem o caminho para fora do ciclo do karma. Sem falar em outras diferenças como as
Ishvara e o Logos 480 . Não tem importância. Tudo o que ele pretende é retirar a ênfase
476
Idem. The unknown Christ of Hinduism, p. 85.
477
Raimon Panikkar. The unknown Christ of Hinduism., p. 106.
478
Raimon Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 122-124.
479
Origens (Lisboa: Edições 70, 1989), p. p.66.
480
R. Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 132.
186
religiosa cristã do Jesus histórico e transferi-la para o Logos. Pois se os cristãos quiserem que
a figura de Cristo se torne aceitável para os hindus devem deixar de lado o Jesus histórico e
permitir que o Logos a-histórico ou trans-histórico entre na boca de cena do diálogo inter-
religioso. Por outro lado, os cristãos devem passar a crer que por uma autocompreensão
Os cristãos creem que Deus tenha se tornado homem, mas têm medo de crer que o
homem possa ser chamado a se tornar Deus. Os hindus ao contrário têm dificuldade,
não tanto que o homem possa se tornar Deus, mas de crer que Deus possa ter se
tornado homem481.
aventado leva o homem a Deus e ocorre quando aquele faz “uma descoberta pessoal do
Logos é a maior prova da possibilidade humana para o divino: “Ele [Cristo] nos revela que
também nós podemos chegar a ser Deus, pois Cristo diviniza o homem”483. Primeiramente, a
Brahman sendo o fundamento do ser, todo homem pode dizer: ahambrahmasni (eu sou
encarnação do Logos. O homem quando chega a esta compreensão entende sua comunhão
implica uma visão mais abarcante da encarnação, pois ele também veio restaurar o mundo
em relação ao destino do planeta485. Neste contexto deve ser pensada a degradação ambiental
481
R. Pannikar. “Nove sutra sul Cristo asiatico” (Micromega, 2, 2001), p. 289.
482
R. Panikkar. Salvation in Christ . Concreteness and universality. The supername (Santa Bárbara, CA:
University of California Press, 1972), p. 62.
483
Idem, La plenitud del hombre (Madrid: Siruela, 1999), p. 39.
484
Ibid, p. 220.
485
R. Panikkar. Ecosofia. Para una espiritualidad de la tierra (Madrid: San Pablo, 1994), p. 45.
187
e a exploração do homem pelo homem, ou seja, a questão ambiental é uma questão ética e a
Cristianismo e as demais religiões ao diálogo. Segundo ele, somente deste modo será possível
cada um de nós é Brahman. A essência de Buda subjaz no fundo de cada ser. Todos estamos
Jesuíta, nascido em 1936 em Tamil Nadu, Índia, doutorou-se em Teologia pelo Institute
Estados Unidos e diretor do Institute for dialogue with cultures and religions, Chenai, além de
mundo.
Como seus colegas apresentados mais acima, Amaladoss é um teólogo das religiões
pluralista, preocupado com a convivência pacífica das religiões na Índia, onde o Cristianismo
é minoritário e os conflitos religiosos são comuns. Esta preocupação permeia toda sua
trajetória como clérigo católico e como pensador cristão, desde meados da década de 70,
quando ele começou a ganhar projeção nos círculos cristãos de seu país. Naquela época,
486
Idem. Sobre el diálogo intercultural (Salamanca: Editorial San Esteban, 1990), p. 96.
487
Em inglês o autor usa a palavra inculturation. Há um pequeno imbroglio linguístico envolvendo esta palavra.
Aparentemente trata-se de um neologismo, criado pelo autor para evitar o uso da palavra aculturação, por conta
do cunho negativo que possui, vinculado ao colonialismo e suas mazelas. Em português está consagrado o uso da
palavra aculturação para designar a adoção de uma nova cultura e enculturação para a socialização da criança na
cultura do lugar onde nasceu. Para evitar a carga semântica negativa, achamos por bem conservar a palavra
usada pelo autor na tradução, apesar de não existir na língua portuguesa. Inculturação neste caso tem o objetivo
188
o evangelho à cultura dos povos, para que não houvesse mera tradução das palavras do
evangelho, mas sim uma simbiose não alienante do novo com o antigo. O modelo de
Amaladoss naquela altura eram as igrejas paulinas, que não se satisfizeram com a mera
replicação do modo de vida judaico, mas adaptaram o evangelho às suas próprias práticas e
vivências greco-romanas488.
Ainda ligado à perspectiva inclusivista Amaladoss publicou sua obra mais famosa The
Asian Jesus, onde apresenta as várias imagens enculturadas de Jesus em seus dias na face da
terra, para justificar a tarefa que toma por encargo: o delineamento das faces asiáticas de
Jesus. A partir daí Amaladoss passa em revista vários conceitos que consistentemente tinham
sido aplicados a Jesus por outros pensadores hindus: Jesus como mestre da moral; Jesus como
violência (ahimsa); Jesus como advaitin, aquele que entendia a sua relação com Deus de um
modo não dual: “eu e o Pai somos um”; Jesus solidário com a humanidade sofredora; Jesus
como Bodhisattva, o iluminado que adia sua entrada no nirvana a fim de mostrar o caminho
da libertação a outros seres humanos489. Amaladoss por assim dizer dá por concluída esta
primeira fase de sua reflexão, com a execução de um projeto de aculturação asiática da figura
de Jesus.
Porém, as coisas não ficariam neste pé. O teólogo indiano percebe que a enculturação
não só possibilita um ganho para a cultura que recebeu o evangelho e o amalgamou ao seu
modo de viver, mas o próprio evangelho ganha ao ser enculturado porque se enriquece pela
manifestação de aspectos inéditos da verdade, provocados pela nova situação490. Nesta esteira,
de ressalvar, o fato de que não se trata de mera substituição de uma religião por outra e nem de sincretismo
indiscriminado.
488
M. Amaladoss. “Inculturation: theological perspectives” (Jeevadhara, 33, 1976), p. 300.
489
Cf. Jacques Dupuis. Jésus-Christ à la rencontre des religions (Paris: Desclée, 1989).
490
M. Amaladoss. “Théologie indienne” (Études, n. 3783, 1993), p. 342.
189
alguns anos depois, viria à lume a obra Além da enculturação. Podem muitos serem um491.
Nela Amaladoss romperia com dois princípios fundamentais presentes em suas obras
apropriada a mensagem divina devem-se à convicção de que a ação salvífica de Deus através
de seu Espírito aja também fora dos limites da Igreja. Ou seja, estas comunidades, não
importando a confissão religiosa que professem, estão sob a ação do Espírito de Deus e do
Verbo divino: “o verbo que se tornou humano em Jesus tem sido ativo de várias maneiras
através da história. As diferentes religiões deveriam ser vistas como expressões das diferentes
uma função especial em humildade, qual seja, estar a serviço do mistério e de suas
manifestações onde quer que surjam495, estar a serviço do reino de Deus, sem se importar em
mundo e suas religiões; o papel da Igreja é levá-lo à completude. “Assim, a Igreja se relaciona
491
Idem. Beyond inculturation. Can the Many be One (Delhi: ISPCK, 1998).
492
M. Amaladoss. Beyond inculturation. Can the Many be One, pp. xii a xiv.
493
Idem. “Inculturation and Internationality” (EAPR, 28, 1981), p. 248.
494
Idem. “O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso” (CTP, ano 2, no. 10, 2005), p. 17.
495
Ibid.
190
universo”496.
Obviamente, o conceito de missão não permanece o mesmo. Com efeito, a Igreja neste
novo contexto é chamada a colaborar com o reino de Deus e com a obra do Espírito, atuante
onde homens e mulheres estejam se abrindo para o mistério de Deus. A missão da Igreja cristã
é dialogar e colaborar, principalmente em três frentes: com a multidão dos pobres, com a
riqueza cultural e com as ativas religiões da Ásia497. Em última instância, portanto, promover
a harmonia e a paz entre os povos e não necessariamente a Igreja. Conceitos ligados à missão
também sofrerão alteração. Por exemplo, a conversão neste novo contexto torna-se algo
secundário na vida da Igreja Católica Asiática. Ou seja, são bem-vindos aqueles que se
julgarem chamados por Deus a abandonar sua religião originária e se unir à Igreja, mas o
por exemplo, poderá fazê-lo. Não se pode obstar a liberdade do Espírito de Deus498.
ocorreu aos poucos, mas a ruptura foi definitiva: o pensamento de Küng diverge em vários
cristológico.
De fato, Küng faz teologia quase como um protestante liberal faria, ou seja, sem
amarras dogmáticas. Em suas palavras: “a situação atual não exige a separação entre teologia
496
M. Amaladoss. “O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso” , p. 15.
497
M. Amaladoss. “Nuevas imágenes de misión” (PI, 94, 2007-1), p. 23.
498
M. Amaladoss. “Religions: an Indian Christian point of view of conversions” (JHCS, vol. 15, 2002), p. 4.
191
e as ciências da religião (como queria Barth). Mas tampouco sua identificação, com a
crítica entre as duas.”499 Esta metodologia não é uma novidade, Küng só está retomando um
projeto de P. Tillich, que, infelizmente, ficou na intenção devido à morte do teólogo teuto-
americano500.
que é essencial no Cristianismo. Porém, concernente a esta questão Küng faz duras críticas ao
supremo e instância definitiva para a reforma da Igreja”. De modo que, segundo ele, a decisão
conciliar acaba produzindo um “círculo vicioso”, que impede a Igreja Católica a romper com
o pensamento dogmático, desde que estabelece como “Palavra de Deus” não só as Escrituras,
também nos estudos cristológicos502, ou seja, pensar a cristologia a partir de baixo, a partir do
nele503.
“o verdadeiro homem Jesus de Nazaré que é, pela fé, a verdadeira revelação do único e
verdadeiro Deus”505. A encarnação, portanto, não pressupõe um Logos pré-existente nem este
é uma realidade fática. É apenas uma definição mítica que significa Jesus representa a Deus.
Se por um lado Küng não aceita que se fale da singularidade do evento crístico, porque
culturas, por outro lado, ele não abre mão da definitividade e normatividade da missão de
Jesus. Sua argumentação, contudo, não está ancorada na doutrina da encarnação, sim na
outros, vivenciados pelos fundadores das outras religiões. Küng chama Jesus de “o catalisador
E isto ocorre porque o ministério de Jesus foi a realização plena e por isso também
crítica das qualidades religiosas de todos os fundadores das religiões universais não cristãs. A
sabedoria de Confúcio, que leva a uma ordenação moral do mundo (harmonia); a iluminação
do Budha, que leva a uma renúncia do mundo (meditação); o fervor profético de Maomé, que
leva à conquista religiosa do mundo (teocracia); e o ministério profético de Moisés, que leva
superlativamente e definitivamente no ministério de Jesus e por isso podem ser julgadas à luz
504
C. LaCugna. Theological methodology of Hans Küng, p. 44.
505
H. Küng apud C. LaCugna. Theological methodology of Hans Küng, p. 44.
506
H. Küng. Proyecto de una ética mundial, p. 125.
507
Idem. Christianity. The religious situation of our time, p. 35.
193
Küng ataca a fossilização da teologia cristã reclamando dela uma adaptação aos novos
tempos:
Não seria adequado numa nova era, em vez de estar simplesmente repetindo os
velhos dogmas helenísticos, concentrarmo-nos outra vez na mensagem do Novo
Testamento e interpretá-la de novo para os cristãos contemporâneos, tal como os
teólogos helenistas uma vez, corretamente fizeram para seu tempo508.
Portanto, a meu ver, em dois pontos a teologia das religiões de Küng fica exposta à
crítica. (1) Primeiro, uma contenção metodológica, a saber, sua tese sobre os paradigmas, em
muito frouxa, discricionária mesmo, pois não há qualquer argumento aduzido que discipline
as atualizações hermenêuticas das quais fala. Ora, isto equivale a relativismo. Em tempos
entre a Teologia e as Ciências da Religião não se apresenta de uma forma coerente, porque
não há um critério claro de quando a crítica das ciências da religião devem calar as Escrituras
estamos fora dos trilhos faz tempo, desde que a igreja se recusou a endossar o Gnosticismo de
relação ao que se propõem, pois no final sua conclusão é de que existe uma única religião
basicamente a critérios gerais (tanto éticos como religiosos)”509. O problema é evidente. Sua
autocrítica cristã e a normatividade de Jesus não resulta numa simetria quanto às relações
normatividade da figura de Jesus, o próprio cerne das religiões não cristãs é atingido, desde
que a vida e morte de Cristo é uma crítica a seus fundadores. Assim, no diálogo inter-religioso
os não cristãos perdem mais do que os Cristãos. Contudo, todos perdem e o diálogo inter-
também completou sua formação básica até a universitária, estudando teologia sob a
de pais cristãos, evangelizados pela Missão Evangélica da Basileia, ambos servindo esta
mesma instituição em Bangalore, seu pai como pastor, sua mãe como professora do ensino
fundamental. Mais tarde Samartha estudou com P. Tillich no Union Theological Seminary em
Nova York, quando completou o mestrado. E, posteriormente, em nova viagem aos Estados
ele já estava ocupado com o diálogo inter-religioso, contudo, a partir daí houve uma
obra Hindus perante o Cristo universal510, para pluralista daí em diante, e é como tal que
escreve a obra que marca esta segunda fase de seu pensamento: One Christ, many religions,
onde abandona as declarações universalistas sobre Jesus “a fim de não incomodar aquelas
510
Hindus vor dem universalen Christus (Sttutgart: Evangelisches Verlag, 1970).
195
pessoas que buscam e também encontram seu caminho da salvação em outras religiões, sem
A cristologia pluralista de Samartha está baseada nos Sinóticos e por isto todas as
declarações cristológicas das tradições paulina e joanina são rejeitadas, e, a fortiori, também
protestante europeia e a utiliza como base para esta rejeição. Para ele não há sinal da doutrina
imbuído de um espírito profético, separado pelo Espírito para uma missão especial em
Israel 512, que também não fez milagres, não ressuscitou de fato e não ascendeu aos céus.
Todos estes ornatos teológicos são produto da fé pós-pascal da Igreja, pois nos relatos
sinóticos se apresenta como teocêntrica513. Sua consciência de Deus e do reino é mais útil
para estabelecer novas relações com vizinhos de outras religiões514 do que as cristocêntricas
para uma teologia teocêntrica, baseada na doutrina do Espírito Santo, o qual não pode ser
restrito ao canal cristomonista. Não se pode limitar o Espírito a um determinado tempo, lugar
e povo 515 ; aqui Samartha faz uma referência negativa à crença cristã do Espírito agindo
exclusivamente na Igreja. O Espírito é livre para cumprir o mandato de Deus de agir e levar a
511
Christine Lienemann-Perrin. Missão e diálogo inter-religioso (São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005), p. 122.
512
S. Samartha. One Christ, many religions: towards a revised Christology (Maryknoll NY: Orbis Books, 1991),
p. 120.
513
Idem. “The cross and the rainbow – Christ in a multireligious culture”. In John Hick and Paul Knitter. The
myth of Christian uniqueness, p. 86.
514
Idem. One Christ, many religions: towards a revised Christology, p. 77.
515
Ibid. p. 97.
516
S. Samartha. “The Holy Spirit and people de other faiths” (ER, 42, 1990), p. 255.
196
É o mesmo Espírito que pairou sobre as águas de toda a criação, que falou através
dos profetas no Antigo Testamento, que estava presente com Jesus nos momentos
críticos de sua vida e ministério, e que se manifestou sendo derramado nos Atos, é o
que também ativou Yajnavalkya, Buda, o profeta Maomé e (por que não?) Gandhi,
Karl Marx e Mao Tse Tung517.
Neste contexto a missão dos cristãos não deve ser um fato isolado, mas compartilhado
com as outras religiões. Nada tem a ver com a expansão estatística do Cristianismo no mundo,
mas com o combate à miséria, à exploração, à intolerância, à doença, e tudo que negue o
desígnio último de Deus, que é a salvação da humanidade. Todas as religiões que possuem
esta agenda são chamadas a compartilhar com os cristãos sua vocação. Devemos reconhecer
que a ação salvífica de Deus ocorre também fora dos limites da Igreja518.
4.d. Conclusão
das religiões, agora passamos à Cristologia. Um aspecto fundamental que une os pluralistas é
Calcedônia, com exceção de S. Samartha, não por acaso o único dos teólogos asiáticos que
não é católico, e que, portanto, não se inscreve no rol de influenciados pela Patrística grega.
Ele rejeita a doutrina do Logos como um todo, adotando exclusivamente uma “cristologia de
afastar os indícios fontais que se tornem impeditivos para a hermenêutica pluralista que
praticam. Os outros farão o mesmo que Samartha, obnublando por sua vez a relevância do
Jesus histórico. O que importa neste tipo de abordagem é evitar as fontes quando elas não
517
Idem. Courage for dialogue: ecumenical issues in inter-religions relationships (Geneva: World Council of
Churches), p. 11.
518
S. Samartha. “The Quest for Salvation and the Dialogue between Religions” (IRM, October, 1968), p. 425.
197
estão de acordo com a percepção pluralista da realidade religiosa. Portanto, as fontes têm
ou então, separada da “cristologia do alto” (fazendo com que o Logos e o Jesus histórico já
Filho, mas do Pai e age em todos aqueles que se abrem ao mistério divino e o conceito de
reino de Deus, que absorve o da Igreja, caracterizando uma mudança paradigmática profunda
A exclusividade religiosa de Jesus fica assim resolvida. No caso dos pluralistas radicais,
tudo fica reduzido a mero simbolismo, cuja relevância restringe-se à academia, não tendo a
menor importância para aqueles que não estão interessados em estudar fenômenos religiosos
de um ponto de vista não religioso, ou seja, sem levar a sério as fontes. No caso dos
referência for o conceito de Logos ou de Cristo, e este passe a cooptar conceitos religiosos
Não se pode negar que a doutrina do Logos tem o mérito de tornar o Cristianismo
menos escandaloso à religiosidade hindu, contexto religioso onde todos os teólogos citados
519
M. Amaladoss. “O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso”, p. 13.
198
longa história religiosa sincrética, que passou por várias etapas, reformas, e que possui
milhares de deuses em seu panteão; (b) uma tendência natural a abstrair o deus supremo
(Brahman) de toda e qualquer realidade palpável. Os Vedas já falavam deste mundo como
maya (véu), que em sua multiplicidade obsta a visão do Uno, sendo, portanto, um obstáculo à
compreensão do divino. Desta forma, causa perplexidade à compreensão hindu dizer que
Deus pode entrar na história e assim fazer parte desta multiplicidade ilusória do mundo.
descrito como pano de fundo do Jesus histórico. Daí a conclusão de que a abordagem
logocêntrica não faz justiça à intenção da fonte. Por causa da referência religiosa e cultural
acima, tenta-se sacrificar a história terrena de Jesus no altar do diálogo inter-religioso. Dela
restando apenas uma aparência, pelo menos no âmbito sacral, porque perde a marca da ação
divina, ou, melhor dizendo, deixa de ser o lugar privilegiado da ação divina. Cristo como
categoria religiosa universal está presente na teologia hindu sob o nome de Avatara, que
do discurso e das práticas religiosas. Contudo, cabe ainda perguntar se esta inflação do Logos
acomodar novas ideias religiosas em seu seio é uma qualidade do Hinduísmo, não do
Cristianismo. Não seria mais verdadeiro dizer que a teologia do Logos, assim como entendida
pelos pluralistas moderados, tem apenas uma aparência cristã e deve ser entendida como um
capítulo importante na teologia das religiões da perspectiva hindu? Não teria ocorrido algo
e nas religiões de mistério se apresentaram ao mundo antigo com uma face cristã? Se não
se presentes no projeto de Panikkar: (a) o uso de vocabulário cristão para designar conceitos
forâneos, (b) a defesa de um tipo de conhecimento esotérico, (c) tentativa de síntese entre as
religiões, (d) desvalorização do ministério do Jesus histórico, (d) desvalorização das fontes
neotestamentárias cristãs.
E, como última crítica cabível, o conceito de reino de Deus, que parece ser muito mais
uma critica velada às instituições religiosas cristãs e um elogio às organizações religiosas não
cristãs, onde, segundo estes teólogos, o Espírito atua e onde o mistério divino é adorado.
reino de Deus.
Cristianismo, tais como pecado e mal foram varridos para baixo de seu tapete hermenêutico,
de sorte que na realidade empírica que eles contemplam já não há nenhuma destas coisas,
senão uma humanidade irênica a ter sua paz perturbada por um grupo de cristãos contenciosos
insistindo em criticar as sociedades humanas e as religiões que lhe servem como plataforma
de sustentação.
Paul Knitter foi o único destes pensadores que foi incoerente, mas na verdade, também
perniciosidade do relativismo geral e irrestrito proposto pelos demais, fazendo isto destruiu
seu próprio pluralismo, mas recuperou um aspecto fundamental do Cristianismo: sua vocação
profética, e a percepção de que não está tudo bem no mundo religioso não cristão; e de que a
necessidade da humanidade não é tanto o Logos apofático, mas o Jesus histórico, o pregador e
o anunciador do juízo.
200
recuperação das fontes cristãs em relação à necessidade hermenêutica atual. As fontes devem
ser consultadas seriamente quanto ao que nos aflige atualmente enquanto cristãos. Não podem
ser meramente usadas como pretexto para defesa deste ou daquele ponto de vista. Veli-Matti
Kärkkäinen empreendeu algo na direção do que estamos pensando ser necessário para uma
teologia das religiões Evangélica, Protestante ou não Católica. Sua última obra Christ and
reconciliation posssui, publicado no ano corrente (2013) numerosos insights que apresentam
vários pontos de contato com o que vem desenvolvido nas próximas páginas. Se não lhe posso
agradecer pela influência, dado que já venho escrevendo esta investigação há alguns anos,
posso pelo menos reconhecer seu endosso às ideias daqui para frente apresentadas.
201
CAPÍTULO V
5.a. Introdução
sistemática até aqui adotada e nos aventurarmos em terreno bíblico. Isto é necessário, pois
este é o único modo de considerar com seriedade o elemento escriturístico daquela tríade
negativo, ou seja, restringindo-se ao que a teologia das religiões não pode ser. A partir de
agora buscaremos desvendar seu aspecto positivo, demonstrando como as Escrituras podem
Não é de todo novo este projeto. Outros já realizaram trabalhos importantes usando a
Protestantes520 que tentaram basear suas ideias nas Escrituras. A meu ver, entretanto, estes
trabalhos não atingiram seu objetivo porque quanto ao tema as Escrituras não têm uma norma
clara e una; sua perspectiva varia muito, dependendo dos tempos a que pertencem seus
documentos, sendo mais ou menos tolerantes. Como já foi dito, “há uma tensão entre os
textos” 521 , que possibilita visões diametralmente opostas da situação plurirreligiosa. Por
exemplo, de um lado um C. Pinnock que com ajuda dos Pais da Igreja consegue encontrar nas
Escrituras nelas tantos “santos pagãos”; de outro, Robert C. Sproul e Ronald Nash conseguem
520
Dois teólogos dentre tantos de grande valor que gostaríamos de citar como inspiração de nossa investigação
foram Clark Pinnock (Wideness in God’s mercy) e, principalmente, Veli-Matti Kärkkäeinen (Introduction to
Theology of Religions, especialmente a parte 1, em que aparece o tópico “Jesus e os Gentios”). Bem como todos
os que perceberam no conceito de “reino de Deus” a chave para uma teologia das religiões cristã.
521
C. S. Cowles et al. Show them no mercy. Four views on God and canaanite genocide (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2003), p. 15.
202
ler que todos os que não aceitaram a Jesus como seu salvador pessoal estão perdidos. Nossa
conclusão parece inevitável: não é impossível construir uma obra sistemático-normativa deste
comprovada relevância hermenêutica e a partir dele organizar toda esta diversidade textual e
definir a norma para estes novos tempos. Não é necessário imergir em profundas reflexões
para identificar este eixo. Nada é mais central na Escritura do que a palavra de Jesus (Hb. 1:1)
e nada é mais importante nos ensinos de Jesus do que “o reino de Deus”523, os estudiosos
dissentem apenas quanto ao que significa exatamente este reino de Deus. Stanley Samartha,
Claude Geffré e outros teólogos das religiões, já haviam chegado à mesma conclusão, mas
não pela perspectiva que pretendemos. Estar completamente comprometido com o que diz a
Bíblia, ainda que isto não nos agrade ou não vá tão longe como desejamos.
Deus”: (a) é adequado: por ser menos difícil de lidar teologicamente (o que não quer dizer que
seja fácil); (b) é normativo, pois conta com uma prioridade revelacional presumida; (c) é
apodítico, vale para todos os tempos, desde os dias de Jesus até a consumação final, e para
Deus de Jesus como eixo norteador de uma teologia das religiões bíblica não é entendido aqui
somente como um evento ainda no futuro, a saber, um Juízo sobre as religiões, a última
todas as coisas. Esta concepção fica bem aquém do princípio original. A escatologia assim
solução do problema das religiões, que não tem força suficiente para mover o presente –
porque não sabemos ainda qual a religião verdadeira; só no fim dos tempos saberemos.
Ocorre que para Jesus e todo o NT o eschatos está em curso desde que andou pelas estradas
É extremamente dubitável que a noção de tempo para Jesus fosse uma progressão
linear, que parte do presente em direção a uma consumação futura. No primeiro
século, o tempo era pensado como se movendo em termos de gerações, épocas e
eras; o fim de um era entendido como o começo de outro. O perigo de se usar
‘último’ e ‘final’, ou ‘fim’ em nosso próprio sentido pós-iluminista para descrever as
expectativas apocalípticas do primeiro século é ter delas uma visão bifurcada e
compartimentalizada que destrói sua vitalidade. No nosso moderno e conceitual
mundo, a linguagem apocalíptica comunica outra realidade, uma esperança
ahistórica, enquanto no primeiro século, ela continha uma crítica dinâmica aos
símbolos herdados, aos interesses, às instituições, e às redes de relações, que
ordenavam a era presente524. (BATSTONE, p. 389).
Portanto, os elementos que devem nos ajudar na composição de uma teologia das
religiões a partir de Jesus não se referem a um futuro distante e escatológico, que por
enquanto pouco tem a nos dizer sobre as relações inter-religiosas. Mas na escatologia
inaugurada já em seus dias, que nos apontam o eschatos normativo por antecipação. Ou seja,
por princípio escatológico entendemos que Jesus já nos tem demonstrado claramente como
deve ser nossa relação com as religiões, de forma muito mais positiva do que um
porque lidamos com formas de pensar estranhas ao logocentrismo que herdamos da cultura
grega. Depois, porque precisamos penetrar numa densa selva de argumentos e teorias de
524
David Batstone .“Jesus, apocalyptic and world transformation” ( ThT, 49, no. 3, 1993), p. 389.
204
estudos neotestamentários, tão ou mais complexa do que aquela que viemos atravessando até
complexidade. Porém, nossa argumentação precisa chegar a um fim e não podemos nos furtar
com as Escrituras, o saldo é positivo: o terreno está limpo, tendo sido eliminadas muitas ervas
que o Senhor não plantou, mas falta lançar a semente. Ou seja, fazer o que foi proposto no
primeiro capítulo: uma teoria baseada na pregação de Jesus Cristo para a autocompreensão
Os evangelhos explicitamente nada têm a nos dizer sobre o que queremos saber. As
perguntas que procuram responder eram outras e por isso muita coisa ficou subentendida entre
eles e seus leitores, a exemplo, infelizmente, de nosso tema. Portanto, para saber o que Jesus
pensava sobre o “reino de Deus” na tentativa de uma conexão com uma presuntiva teologia
das religiões, precisamos examinar o que isto pode ter significado para Seu tempo e deduzir o
525
Para evitar que esta obra se estenda muito e também para que o fio argumentativo não perca sua fluidez por
conta de necessárias digressões e remissões técnicas, resolvemos colocar em nota de rodapé a maior parte dos
referenciais teóricos que norteiam esta pesquisa, bem como o que a honestidade intelectual solicitar em respeito
o contraditório. Não produzirá um excesso remissivo, a parca erudição do autor não chega a tanto, mas o leitor
notará que este capítulo ficará assimétrico comparado aos precedentes. Isto deve-se à mudança de metodologia.
526
Um dos problemas mais candentes da pesquisa neotestamentária atual é como Jesus teria se relacionado com
seu tempo. Há estudiosos que defendem uma pacífica continuidade entre Jesus e seus contemporâneos, ou pelo
menos a uma classe deles a que se presume ser o contexto sociorreligioso de Seu movimento. Alguns associam
Jesus a um suposto Cinismo Galileu, ao pensar nele como uma espécie de sábio andarilho: R. Funk, J. D.
Crossan, R. Funk, B. Mack, S. J. Petersen, etc.; outros fazem dele um dos próceres do Rabinismo do segundo
século: G. Vermes, por exemplo. A posição aceita e defendida pela maioria dos teólogos e historiadores do NT e
período neotestamentário é uma descontinuidade moderada: M. Borg, P. Fredrieksen, J. P. Meier, J. Neusner, E.
P. Sanders, G. Theissen e N. T. Wright e outros. Nossa opção teórica é pelos mais descontinuístas dentre os
descontinuístas, ou seja, J. Neusner. Jews and Christians. The myth of a common tradition (London: SCM Press,
205
não por covardia teórica, mas por convicção. Se a mensagem de Jesus coincidisse
completamente com o contexto circundante, como explicar que tenha sido preservada e tenha
chegado até nós? Se Jesus não fosse mais do que um dos numerosos carismáticos ou
taumaturgos, como tantos que perambulavam pelos caminhos da Palestina, como explicar
haver Ele deixado uma marca tão profunda em sua época e na posteridade? Se a mensagem de
Jesus fosse idêntica ou subserviente à Seu tempo, se nenhuma concepção teológica nova
tivesse surgido com Ele, como explicar sua mensagem ter atravessado ilesa à bulha de tantos
messianismos Dele coetâneos? Seus ensinos teriam chegado até nós? Onde estão os
ensinamentos dos outros taumaturgos e líderes messiânicos que viveram e pregaram naquele
mesma época?
perspectivas que atravessam três séculos (apocalípticas ou não 527 ) têm em comum é o
pergunta e a resposta têm uma pertinência muito ampla para a vida dos palestinos. Ela define
2001) e G. Theissen e Annette Merz. O Jesus histórico. Um manual (São Paulo: Loyola, 2004). As razões para
que assim tenhamos decidido ficarão claras no transcurso das páginas deste estudo.
527
“1Enoque 1 – 36 (terceiro século a. C.); 1Enoque 72 – 82 (terceiro século a. C.); 1Enoque 93 – 110 (200 a.
C.); 1Enoque 85 – 90 (170 a. C.); O livro dos Jubileus (150 a. C.); Rolos de Qumram (segundo século a. C. ou
um tempo mais recuado); Os oráculos sibilinos, livro III (150 a. C.); Os testamentos dos doze patriarcas (a
última parte do segundo século a. C.); Os salmos de Salomão (48 a. C.); 1Enoque 37 – 47 (fim do primeiro
século a. C.); Assunção de Moisés (6 – 30 d. C.); Martírio de Isaías (antes do ano 70 d. C.); Apocalipse de
Abraão (primeiro século d. C.); Apocalipse de Moisés (pouco antes de 76 d. C.); 2Enoque (primeiro século d.
C.); Os oráculos sibilinos IV (80 d. C.); 2Esdras 3 – 14 (90 d. C.); 2Baruque (depois de 90 d. C.); 2Baruque
(segundo século d. C.)”. (John Collins. Daniel with an introduction to Apocalyptic literature (Grand Rapids Mi:
B. Eerdman, 1984), p. 4).
528
“No período pós-macabeu, na terra de Israel, nós encontramos um tema comum regularmente recorrente –
uma afirmação inflexível de serem os únicos legítimos herdeiros da herança de Israel, e fortes, hostis e com
frequência criticismo ofensivo aos outros Judaísmos” (James D. G. Dunn. Jesus remembered (Grand Rapids:
Eerdemans, 2003), p. 281. O sectarismo judaico vai da metade do segundo século a. C. até a destruição do
templo em 70 d. C. (Anthony J. Saldarini. Pharisees, Scribs and Saducees, Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans,
2001), p. 210-211.
206
sua identidade política e religiosa529. Com efeito, a condição de povo de Deus, definida pela
estava sob ameaça. A comparação com o tempo dos Macabeus e Asmoneus era inevitável e a
conclusão, incômoda: no período romano a hierocracia tinha poderes limitados no tempo dos
conflituosa entre Israel e a dominação gentílica criava outros conflitos: (a) dos Judeus com os
Gentios que conviviam com eles e (b) a dos Judeus entre si, por causa da disputa sobre como
Havia outras não menos pertinentes, ‘como Israel pode ser o povo de Deus em face da
convivência com a gentilidade pode ser admitida por aqueles que têm a pretensão de ser o
povo de Deus?’As diversas seitas judaicas vão se organizar respondendo a estas perguntas e
vão definir os limites entre si pelo modo como são respondidas. O divisionismo e o
sectarismo nasceram por que “elas apresentavam respostas concorrentes para o mesmo
conjunto de questões”531.
529
“O sistema judaico deriva de e põe em foco uma entidade social, um grupo de Judeus que (na mente deles
pelo menos) não um Israel, mas o Israel” (Jacob Neusner, Jews and Christians. Mith of common tradition, p. 11).
530
Marcus Bog. Conflict, Holiness and Politics in the teachings of Jesus (New York/London: Continuum
International Publishing Group, 1998), 43.
531
Albert Baugarten. The flourishing of Jewish sects in the maccabean era: an interpretation (Leiden/Köln:
Brill, 1997), p. 57.
207
em perigo de Juízo. Tais doutrinas teriam sido cultivadas no Judaísmo porque Israel
não era uma comunidade unificada naquele tempo. Estava severamente dividida e
como resultado havia muitos conflitos intrarreligiosos, surgiram divisões entre o
Israel étnico e o religioso, onde cada parte reclamava para si o título de
remanescente532.
nos Profetas Posteriores (Is. 10: 22, 16: 11; Am. 3:12, 5:16; Ez. 6: 8; So. 3: 13; Zc. 9: 7); o
533
julgamento e a punição tinham como referência os indivíduos transgressores que
receberiam a retribuição das mãos do próprio Messias no Juízo e não mais a nação como um
todo. O que mais concorria nos textos apócrifos e pseudoepígrafos era o tema da restauração
de Israel. Uma vez que esta pretensão a remanescente era universal e porque todos os
movimentos religiosos da época viam-se como tal, tornou-se cada vez mais comum os textos
castigar a petulância dos Gentios e dar o veredito final sobre quem era o verdadeiro Israel e
assim criar condições para a restauração de sua glória antiga, impedida pela infidelidade dos
(a) Havia aqueles que esperavam a subversão de todas as coisas, o Juízo Final e a recriação de
Deus, imediatamente à aparição do messias, ou então logo após seu curto ministério; (b) havia
outros que aguardavam antes destas coisas (eventos cataclísmicos) um governo messiânico
com a expulsão e derrota militar dos Gentios. A primeira é uma escatologia apocalíptica,
532
Joel B. Green, Scott Mckigh e Howard Marshall. Dictionary of Jesus and the Gospels (Downers Grove:
InterVarsity Press, 1992), p. 361.
533
Judaism. Practice and Belief (London: SCM Press, 1992), p. 113.
208
terminologia cristã com que estamos acostumados, pode-se dizer que a primeira é
(b) O Messias é aquele que apenas vem executar um juízo, que de certo modo já tem
acontecido antes de sua manifestação535, dado que justos e injustos já estariam separados e
discriminados a este tempo pelo respeito ou desrespeito aos mandamentos divinos. De certa
forma a condição de salvo e perdido são patenteáveis pela adesão ou não a certos costumes e
Além de não ser sectarista, outro importante contraste entre Jesus e Seus
com o que o hoje invada o tempo escatológico, por meio de Suas ações ou sinais 537 ,
prenúncios da restauração e consumação finais. Todas as Suas ações simbólicas têm esta
A peculiaridade dos milagres do Jesus histórico repousa sobre o fato de que as curas
e os exorcismos que têm lugar no tempo presente estão de acordo com um
significado escatológico. Como um fazedor de milagres apocalíptico e carismático
Jesus é único na história religiosa. Ele combina dois mundos conceituais, que nunca
antes haviam sido combinados, a apocalíptica expectativa de salvação universal no
futuro e a episódica realização da salvação no presente, através dos milagres538.
534
“Depois de um longo período de tempo, talvez mil, este período de paz e felicidade sem paralelo chegaria a
um clímax: todos os elementos corrompidos seriam destruídos por um fogo purificador” (Tom Holmén. Jesus
and Jewish covenant – Leiden/Boston/Köln: Brill, 2011, p. 101.
535
Entendido em seu sentido original grego: krisis, separação.
536
Conceito criado ou popularizado por C. H. Dodd no livro Parables of Kingdom (New York: Scribner’s,
1936). “Em termos simples quer dizer, que a carreira de Jesus como Messias servo, do Jordão ao Calvário, é o
reino de Deus”. Também que “o reino de Deus é presente e futuro, a um tempo” (Clayton Sullivan. Rethinking
realized eschatology – Macon GA: Mercer University Press, 1988, páginas 6 e 11, respectivamente).
537
Os Sinóticos têm duas formas de denominar os milagres de Jesus: “atos poderosos” (dynameis) e “sinais e
maravilhas” (semeia kai terata). João prefere “sinais” (semeia) (Joel B. Green, Scot McKnight e Howard
Marshall. Dictionary of Jesus and Gospels – Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1992, p. 755).
538
Gerd Theissen e Annette Merz. The historical Jesus. A comprehensive guide, p. 309.
209
Jesus tem em comum com este tempo a ideia da restauração de Israel539. Contudo, não
se pode falar de ideia de restauração neste tempo de modo consensual. Havia tal a profusão de
profeta como Moisés (Dt. 18: 15) e o Messias sacerdote (4Q252 1: 5; 1QS, 9: 9b-11)540, cada
uma delas com um papel nos eventos escatológicos. (b) Outros grupos apocalípticos preferiam
que apresentam o messias como Filho do Homem (bar anasha), convergindo a respeito da
ênfase teológica sobre sua função de juiz. (c) Outros, ainda, optavam pela figura messiânica
davídica, o rei restaurador do fim dos tempos, que viria destruir os ímpios, governar com
equidade e poder para restaurar a harmonia original da criação, tal como é descrito em alguns
messianismo popular está representada por Elias, o messias milagreiro do livro de Malaquias,
deuteronomista, o profeta que viria no fim dos tempos para ensinar a Torah aos verdadeiros
israelitas. (Dt. 18: 15, 18 e 19)541, esperado pelos Essênios e pelos Samaritanos.
E para levar a complexidade religiosa destes tempos a um paroxismo, não era possível
539
E. P. Sanders. Jesus and Judaism (Minneapolis: Fortress Press, 1985), pp. 335-338; George B. Caird. Jesus
and the Jewish nation (London: Athlone Press, 1965); B. F. Meyer. The aims of Jesus (London: SCM Press,
1979).
540
Apud Paul E. Hughes. “Moses’ birth story: a biblical matrix for prophetic messianism”. In Craig E. Evans
and Peter W. Flint (edts.). Eschatology, messianism and Dead Sea Scrolls, p. 12.
541
Há ainda outros exemplos menos importantes de tipologia profético-escatológica apresentados por Josefo e
pelos Evangelhos. Josefo fala de um profeta que assumiu o modelo de Josué, conhecido como Egípcio que
pretendeu abrir o Jordão para o povo passar à outra margem, levando-os de volta para o deserto (Ant. 20: 97). O
evangelho fala de que em resposta à pergunta de Jesus sobre quem dizia o povo ser o Filho do Homem, alguns
pensavam que fosse Jeremias (Mt. 16: 14).
210
escatológicas dos vários movimentos religiosos da época não tinham limites institucionais
Nos dias de Jesus o sincretismo e o sectarismo eram as duas faces da mesma moeda, por
um mecanismo social bem simples. De um lado, o sincretismo, com uma enxurrada de seitas e
judaicas a procurar criar sua própria identidade, por meio da escolha de certas porções dos
religiosas que competiam, mais elas procuravam enfatizar suas diferenças, e isto as levava ao
sectarismo542.
escatológicos conviviam mais ou menos amalgamados e tendo por âncoras teológicas que os
ligavam uns aos outros, o Templo, o monoteísmo e o concerto545. Resta agora saber como
Jesus se coloca em relação a esta religiosidade complexa praticada em Israel e como fez Suas
542
“Realmente, quando visto à luz de sua semelhança fundamental, a mútua hostilidade destes grupos torna-se
mais explanável: porque os grupos eram tão parecidos, e ofereciam mais ou menos a mesma coisa para um
relativamente restrito grupo de pessoas, o ódio mútuo deles faz mais sentido.” (Albert Baumgarten. The
flourishing of Jewish sects in the maccabean era: an interpretation, p. 56.
543
Terminologia usada por Andrew J. Overman, para definir este caudal de crenças e teologias que cobre um
período que vai do ano 165 a. C. até o 100 d. C. (O evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo. O mundo
social da comunidade de Mateus – São Paulo: Loyola, 1997, p. 20).
544
Judaism. Practice and Belief (London: SCM Press, 1992), pp. 182-188.
545
Frederick J. Murphy. “Second Temple Judaism” in Jacob Neusner (edt.). The Blackwell companion to
Judaism (Oxford: Blackwell Publishing, 2003), p. 77.
211
escolhas doutrinas neste milieu extremamente sedimentado. As perguntas que nos inquietam
não podem ser respondidas de outra forma, pois os evangelhos são bastante parcimoniosos em
contextualizar os ditos e feitos de Jesus. Primeiro, porque foram escritos num tempo posterior
ao da narrativa; depois, porque não era seu interesse falar do que nos impele, pois seus
rejeitou a escatologia sectária e exclusivista de seu tempo, que punha todos estes
messianismos em guerra entre si e com a gentilidade546, é provável que tenha adotado uma
teologia inclusivista. Mas, de que tipo? Colocaremos doravante, sucintamente, sob exame
todos os ismos, ideológicos e religiosos do tempo de Jesus para, a partir daí, aduzirmos
contexto escatológico daqueles idos. O que está documentado representa bem pouco
546
Dizíamos mais acima que, em certa medida E. P. Sanders está correto em pensar num “Judaísmo comum” ao
tempo de Jesus. A hostilidade entre as seitas judaicas parece ter sido mais forte no último século antes da era
cristã, quando o Helenismo do período selêucida obrigou os Judeus piedosos a solucionarem o problema da
interferência gentílica em sua religião, com a criação das três formas básicas de religiosidade, que
embrionariamente geraram os Essênios, Saduceus e Fariseus; e deve ter recrudescido nos anos mais próximos à
revolta, com a ascensão dos radicais e a hegemonia do Farisaísmo. A ausência de instituições normativas neste
meio tempo pode sim ter favorecido a competição simbólica e o surgimento do sectarismo, responsável pela
efervescência religiosa dos dias de Jesus. A administração romana, historicamente tolerante para com a
diversidade religiosa, deve tê-la incentivado com sua omissão, a cujas polêmicas suas autoridades referiam-se
desdenhosamente como “questões referentes às suas leis [dos Judeus]” (At. 23: 29, 25: 19 e 26: 3).
547
Sendo ainda mais restritos neste tocante, não incluiremos os documentos Gnósticos e Protognósticos de Nag
Hamadi e tampouco o material de Philo de Alexandria, bem como outras fontes helenísticas. Apesar de que
certamente tinham leitores e divulgadores no tempo de Jesus, preferimos seguir a orientação de Flávio Josefo
sobre a natureza judaica da religiosidade palestinense (malgrado os protestos dos scholars do Jesus Seminar).
548
A religião institucionalizada na Palestina não contava com mais do que 10 a 25 mil adeptos, considerando-se
que toda a população do país deveria rondar os 500 ou 600 mil habitantes, provavelmente mais de 95 por cento
212
Porém, também não se deve pensar que as fontes não sejam historicamente representativas.
Temos em favor de sua relevância que estes grupos institucionalizados que nos deixaram seus
testemunhos, contando ou não com a aderência popular direta, eram os mais influentes e os
5.b.1. Essênios549
Filhos de uma e os Filhos da outra (1QS 3: 13- 4: 26) 550. Em seus documentos estão de um
lado, “os filhos de Belial”, “os homens do lote de Belial”, “os traidores”, “os ímpios” (1QS 2:
casa da suprema santidade de Arão”, “a casa da Justiça de Israel” (1QS 8: 4-9ss.). Eles se
2-3). E indo além, até criaram uma liturgia com bênçãos a serem pronunciadas sobre os
membros da comunidade e com maldições sobre os estranhos, “sobre aqueles que não se
(1QS 5: 8-9).
dessa população não era afiliada a nenhum dessas religiões (Morton Smith. “Studies in the cult of Yahweh”, p.
100. In Shaye J. D. Cohen (edt.). New Testament early Christianity and magic).
549
Não é possível falar dos Essênios sem acabar enredado pela polêmica. Com efeito, tanto tempo depois da
descoberta dos rolos de Qumran os estudiosos ainda discutem sobre praticamente tudo (onde moravam, qual era
sua ocupação, qual sua religião?). Não faz parte de nosso escopo entrar nestas discussões, que, ademais, dizem
respeito a especialistas. Para avaliar estas discussões consultar Lena Cansdale. Qumran and Essenes: a re-
evaluation of the evidence (Tübigen: Mohr, 1997).
550
Apud George W. E. Nickelsburg. “Polarized self-identification in Qumran texts”, p. 24. In Florentino García
Martínez e Mladen Popovic. Defining identities: We, You, and the Others in the Dead Sea Scrolls: proceedings
of the Fifth Meeting of the 1OQS in Groningen. A partir daqui todos os textos do corpus qumrânico terão sido
extraídos desta obra.
213
No Documento de Damasco os termos usados para criar a polarização são outros, mas
não menos ofensivos e discriminatórios: os que andam nos caminhos de Deus e os que erram
contraste o seu intérprete e o intérprete dos outros: “o mestre da justiça” (1QpHab 8: 1-3; 7:
(1QpHab 2: 1-2; 5:11); o sacerdote que fala por Deus e “o sacerdote ímpio” (1QpHab 2: 1-3;
5: 10-12).
Resumindo, para os Essênios deveria haver uma segregação total e completa entre estes
dois mundos, a ponto de certas facções essênias a viverem isoladas da sociedade circundante,
como foi o caso do ramo qumraniano, cujos membros, por causa de sua pretensa pureza ritual,
acreditavam estar em comunhão com os próprios anjos de Deus551. Nos segmentos menos
ascéticos, cujos membros se permitiam viver nas cidades com as pessoas comuns, era exigido
o cumprimento de certas regras: que os perfeitos fossem celibatários (Guerra, 2: 120), que o
sexo, quando permitido, o fosse apenas para procriação (Ant.18: 21), que se cortassem os
laços familiares ou que esses fossem mantidos sob o estrito controle dos líderes (Guerra, 2,
134)552. Esta discriminação tão minuciosa e radical do que era santo e do que era profano dava
aos ‘perfeitos’ a sensação de já haverem invadido o tempo escatológico, mas tudo acabou com
a campanha romana de 68 d. C.
551
John J. Collins. “The expectation of the end in the Dead Sea Scrolls”, p. 90. In Craig A. Evans e Peter w.
Flint. Eschatology, messianism in Dead Sea Scrolls.
552
Sobre o ascetismo dos Essênios há o testemunho de outros autores clássicos, tais como Plínio, o Velho e Filo
de Alexandria (Roger Steven Evans. Sex and salvation. Virginity as a soteriological paradigm in ancient
Christianity – Lanham ML: University Press of America, 2003), p. 21.
214
alguns aludidos também pela Bíblia (At. 5: 36). Este é o caso de Teudas, o comandante de
uma revolta na Judeia anos após o suplício de Jesus (46 d. C.), o qual tendo assumido o
modelo profético de Josué, pretendeu dividir com sua palavra o rio Jordão, aparentemente,
para fazer com o povo o caminho inverso, rumo ao deserto, onde lhes manifestaria sinais da
libertação (Ant. 20: 97ss.). Outro profeta que encarnou este mesmo modelo profético ficou
conhecido como o Egípcio (Ant. 21: 38). Em ocasião de grande morticínio pretendeu à sua
ordem fazer ruírem os muros de Jerusalém, tal como ocorrera com os muros de Jericó
(Guerra 2: 262ss e Ant. 30: 169ss.), coisa que não acontecendo, facilitou o trabalho de Félix
e seguidores em relação à sociedade, que segundo estes porta-vozes do juízo divino já havia
Outro tipo de messianismo apocalíptico corrente nos dias de Jesus eram os “profetas da
destruição”554, para os quais nada mais importava senão anunciar o fim iminente. Em contexto
extracanônico temos alguns exemplos deste tipo de messianismo apocalíptico. Pela pena de
Flávio Josefo, por exemplo, é mencionado um tal Jesus Ben Ananias (Guerra 6: 300ss.), o
qual vindo à Jerusalém quatro anos antes da revolta começar (68 d. C.), passou a anunciar a
553
Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann. História social do Protocristianismo (São Leopoldo RS/São
Paulo: Sinodal e Paulus, 2004), p. 194.
554
Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann. História social do Protocristianismo, p. 198.
215
destruição do Templo, da cidade e do povo; sem fazer caso de mais nada555. Ele prosseguiu
fazendo suas lamentações até que no cerco a Jerusalém em (70 d. C.) foi asseteado e morreu.
No evangelho de Mateus ocorre uma alusão a este tipo de profeta, quando os discípulos dão
relatório sobre quem o povo pensava ser Jesus, uma das respostas foi Jeremias (Mt. 16: 14), o
que provavelmente remetia a este modelo profético, dada a natureza da missão profética de
João Batista é outro exemplo deste tipo de messianismo apocalíptico. Mas, em seu caso,
a rigor, seria mais bem denominado profeta pré-messiânico, dado que ele não se via como
messias, mas apenas como um Seu arauto; aquele que o precederia, que aplainaria o caminho
de Sua passagem, preparando o povo para Sua vinda, fazendo um chamado ao Juízo, que
vinha como fogo calcinador dos réprobos (Mt. 3: 11-12; Mc. 1: 7-8; Lc. 3: 15-17)556. Porém,
ele não ignorava completamente que vivia ainda no tempo da história e não no eschatos
messiânico (Mt. 3: 1-10; Mc. 1: 2-6; Lc. 3: 1-9). Além disso, o Batista não era um
apocalíptico puro, mas um profeta em transição para carismático que estava preocupado em
criar uma comunidade, visto que ele ensinava uma ética (Lc. 3: 11-14), uma oração (Lc. 11:
555
Ibid., pp. 103 e 104.
556
Comparar com Malaquias 4: 1: “Pois eis que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos, e todos os
que cometem perversidade serão como restolho; o dia que vem os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte
que não lhes deixará nem raiz e nem ramo”.
216
5.b.4. Fariseus557
O messianismo farisaico, assim como outros aspectos de sua vida religiosa, não é algo
fácil de apreender pelas fontes disponíveis. Os evangelhos, obviamente, não falam disto
diretamente. Sua escatologia, contudo, é dedutível por sua condição de elite558, que embora
tenha perdido a maior parte do poder político no período Asmoneu (Ant. capítulo 13), ainda
tinha esperança de retornar à antiga condição hegemônica, pelas mãos do próprio Messias,
como se pode perceber pelas invectivas dos Salmos de Salomão559, documento redigido em
proféticos560, embora não se saiba em que medida ou se tudo isto estava mesclado num único
557
Intensos debates polêmica sobre os Fariseus dividem hoje os especialistas. Como pode ser entendida sua
identidade religiosa, de acordo com os textos apocalípticos do período intertestamentário ou de acordo com a
literatura rabínica pós 70? Neste contexto a polêmica sobre as fontes entre Sanders e seu “Judaísmo comum” a
partir de Paulo (Judaism. Practice and Belief, obra já citada) e o Rabinismo pós – 70 d. C. de Neusner (The
rabinic traditions about the Pharisees before 70 C. E. – Leiden: Brill, 1971) pode funcionar como balizas
extremas em busca de um ponto de equilíbrio. Ou seja, nem o “common Judaism” sugerido pelos textos paulinos
nem o extremo purismo rabínico, mas um contexto onde todas estas vertentes permaneçam coexistentes,
disputando o mesmo espaço simbólico, sem, contudo, lograr hegemonia. Ademais, nenhuma das duas opções
parece muito adequada como fonte pelo distanciamento do período em estudo: o primeiro, geograficamente, o
segundo, cronologicamente. Não achamos necessário para o desenvolvimento dos argumentos aqui propostos
adentrar nesta discussão. Nosso objetivo não é definir com exatidão a vida religiosa dos Fariseus ao tempo de
Jesus, apenas estabelecer padrões básicos para os contrapor à proposta messiânica de Jesus.
558
Eles estavam profundamente imiscuídos com as estruturas de poder da época, às autoridades do Templo (Mc
8: 31, 11:27, 14: 43-53, 15: 1), às autoridades políticas (Herodianos) (Mc 3:6, 12:13) e tinham assento em
algumas das cadeiras do Sinédrio (autoridade máxima para questões religiosas na Palestina judaica) (Jo. 3: 1).
Ademais, alguns deles, tal como as autoridades sacerdotais, compunham uma aristocracia agrária que dominava
a Galileia. (J. D. Crossan. The birth of Christianity – San Francisco/New York: Harper, 1998, p. 106).
559
O documento fala do Messias “quebrando os poderes de governantes injustos” (xvii, 25, 27 e 31), expulsando
da herança de Deus “os orgulhosos pecadores” que obtiveram “ilícita possessão” (xii, 26, 27, 41, 51; cf. 6-8). O
texto dos Salmos de Salomão usados é o que aparece em Montague R. James e Herbert E. Ryle. Psalms of
Pharisees commoly called the Psalms of Solomon (Cambridge: Cambridge University Press, 1891).
560
Outros textos reputados como farisaicos dão conta da complexidade deste quadro, que têm como ponto em
comum as esperanças dos Fariseus oprimidos da dinastia asmoneia: Enoque Etíope, As similitudes de Enoque,
partes do Testamento dos doze patriarcas, Salmos de Salomão e A assunção de Moisés (E. C. Dewick. Primitive
Christian Eschatology – Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 81).
561
Quanto a esta questão, dentro do Farisaísmo, só se tem notícia de sua subdivisão entre hilelitas e shamaítas.
Os primeiros seguidores de Hillel, que defendia uma interpretação mais criativa da lei; os segundos adeptos de
Shammai, que tinha uma interpretação mais estrita. A partir da revolta de Bar Kochba (132-135 d. C.), os de
Hillel prevaleceram. (Stephen M. Wylen. The Jews in the time of Jesus. An introduction – Mahwah, NJ: Paulist
Press, 1996, p. 137).
217
(A) Por parte dos elementos davídicos. O Messias fariseu era um rei, um governante,
um “enviado divino para introduzir uma nova era, expulsar a necessidade, a doença e a morte,
vencer Satã. [...], que apareceria como filho de Davi para reunir as tribos dispersas e erigir um
novo reino”562. Ele iria fazer de Jerusalém sua capital e restaurar a glória da adoração do
templo (PsS xvi: 33-35). Os Gentios se lhe submeteriam e lhe pagariam tributo e até seriam
convertidos à fé judaica (PsS xvii: 31, 32 e 34). Flávio Josefo fala de alguns indivíduos que
Atronges (Guerra 2: 55; Ant. 17: 269). Desses, Atronges foi o que mais se aproximou do
ideário davídico. Ele reunia qualidades carismáticas e havia sido pastor de ovelhas como
Davi, apresentando-se como rei e ocupando-se apenas dos negócios mais dignos (Guerra 2:
61). Contudo, pela falta de um programa efetivamente messiânico, a melhor designação que
a vinda do Messias não há a consumação final, apenas a derrota dos inimigos do povo de
conforme as profecias dos profetas literários, o fundador de um reino Judeu universal. Mas,
não sem primeiro vingar-se das nações que consumiam sua herdade, destruindo idólatras e
seus ídolos, “para só então reunir os hebreus dispersos da diáspora, ajuntando-os dos quatro
562
Eduard Lohse. Contexto e ambiente do Novo Testamento (São Paulo: Paulinas, 2000), pp. 50 e 74.
563
Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann, Op. Cit., p. 207.
564
Parece que o grupo de João Batista, pelo menos depois de sua morte compartilhava com os Fariseus estas
ideias. A evidência textual da aliança entre os discípulos de João Batista é os Fariseus é o dito do vinho novo em
odres velhos, triplamente atestado (Mt. 9: 14-17, Mc. 2: 18-22, Lc. 5: 33-39). O dito foi uma crítica de Jesus à
adoção do continuísmo farisaico por parte dos discípulos de João. O vinho novo é a mensagem do reino de Deus
e os odres velhos são as instituições e doutrinas farisaicas, que recusavam o apocalipsismo radical de Jesus. Mais
adiante, no tópico sobre a taumaturgia de Jesus, tornaremos a esta questão.
218
cantos da terra”565. O Messias fariseu é um governador para o tempo do fim e sua vinda
18: 15, 18 e 19), mencionado alhures, cujo poder provém da santidade e da pureza (PsS xviii,
33, 36 e 46). Ele é um estudioso da Torah, em tudo leal e fiel a ela; o conceito de justiça do
livro é farisaico. É cumprida em ações de justiça (PsS ix: 7, 9; xvii: 21; xiii: 9), e
especialmente atos decorrentes de regras que evitem a violação das leis cerimoniais (PsS iii:
8-10, 20). Tudo aquilo que negligencia tais regras são a própria contradição da justiça (PsS i:
Fariseus julgavam ser a maior qualidade deles e o maior defeito de Jesus: Sua reverência e
compartilhada pelas outras seitas: quem é o povo de Deus e como pode Deus habitar no meio
dele? Podemos chamá-la de santidade restritiva e cerimonial 568 , segundo a qual há uma
intensa preocupação com a pureza e a impureza rituais e outras questões cúlticas. A pureza,
565
Eduard Lohse. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 74.
566
Segundo Sofonias 3: 9, até os Gentios iriam participar desta santificação escatológica, desde que se
submetessem ao governo do Messias, especialmente adotando os rituais de pureza cúltica, caso contrário seriam
exterminados.
567
Havia uma divergência entre Jesus e Seus discípulos e os Fariseus quanto à validade canônica da Torah oral,
que era possessão dos últimos e segundo os quais remontava ao próprio Moisés (Stephen M. Wylen. The Jews in
the time of Jesus, p. 58). Jesus nunca aceitou esta Torah oral porque sua fonte era sectária e induzia a mais
sectarismo, já que pretendia definir o comportamento ideal do povo de Deus e separá-lo do povo comum.
568
Os escritos de J. Milgrom tem trazido boas ideias para esclarecer a questão. Em uma delas ele identifica
quatro estados pelos quais deve ser entendida a santidade levítica . Pace Fredriksen estes quatro estados se
opõem quiasticamente dois a dois. Os dois primeiros são puro (tahor / kátharos), impuro (tameh / akathartos); os
outros, santo (qodesh / hagios) e profano (chol / bíbelos). Segundo a teologia levítica, estes estados podem se
combinar de diversas formas. (J. Milgrom. “Leviticus 1-16. A new translation and commentary” (Anchor Bible,
vol. 3, New York: Doubleday, 1991, p. 231). Excetuando-se, é claro, a impossibilidade de alguém ou alguma
coisa ser pura e impura, santa e profana, simultaneamente, pode-se ser profano e puro, santo e puro, mas nunca
santo e impuro (J. Milgrom apud Christian Grappe , “Jesus et l’impureté”, RHPR, vol. 84, 84 (2004), p. 397).
219
verdadeiro Deus, os quais os Fariseus pensavam serem eles mesmos 569. E a impureza era
impeditiva à presença de Deus, conforme ocorre na Torah, para eles, a parte mais importante
da Tanakh570.
Os Fariseus são descendentes espirituais dos judaítas devotos do exílio, fundadores dos
templo e o fim do sistema cúltico: “os sacerdotes foram substituídos pelos sábios; o templo de
Jerusalém, pela sinagoga e pelo lar; o sistema cúltico – sacrifícios pacíficos e pelo pecado,
pelos ritos e pela leitura da Torah” 571. De volta do exílio à Palestina ocupada e dominada pela
cultura helenística selêucida, inundada por idólatras e por costumes que eram abominação à
Torah, muitas pessoas pias sentiram sua fé ameaçada e procuraram protegê-la praticando
risca. Todas as regras de pureza que antes diziam respeito apenas aos sacerdotes, em seu
569
J. Jeremias. Jerusalém en tiempos de Jesús, pp. 324-326.
570
Tanakh, como era conhecida a Bíblia Hebraica nos dias de Jesus, é um acróstico com as iniciais de três
grupos de livros em que está dividida: Ta de Torah - Pentateuco, na de Nevi’im – Profetas (anteriores e
posteriores) e kh de Khetuvim - Escritos. Esta organização dos livros não era meramente cronológica, mas
também hierárquica em ordem decrescente: Moisés vinha em primeiro lugar, em seguida os Profetas e por último
os Escritos (Daniel, Salmos, Provérbios, Jó e Eclesiastes) (Michel L. Brown. What do Jewish people think about
Jesus? And other questions Christians ask about Jewish Beliefs, Practices and History – Grand Rapids, MI:
Baker Publishing Group, 2007, pp. 34-36). Outro indício desta hierarquização é o fato de todo o corpus
escriturístico ser também chamado de Torah, denotando que a sacralidade dos demais textos do AT dimana dos
cinco primeiros livros de Moisés. “Todas as seções da Escritura são chamadas de Torah num esforço de manter a
unidade da revelação divina. Contudo, é claro que os cinco livros de Moisés têm, desde a antiguidade, sido
entendidos como os mais sagrados (e, portanto, não é por acaso que tratam das leis referentes ao concerto de
Deus com o povo de Israel). As passagens dos Profetas e Escritos são sempre interpretadas de modo a se
harmonizarem com o Pentateuco.” (M. Signer. “How the Bible was been interpreted in Jewish traditions” – NIB,
vol. 1, Nashville, TS: Abingdon, 1994 – p. 65). A hermenêutica de Jesus não é convergente. Para Ele a ordem é
invertida: Os Profetas vêm em primeiro lugar, os Escritos vêm em seguida e por último a Torah. Jesus
compartilha com os Profetas posteriores a condenação dos excessos ritualísticos de Israel, bem como a denúncia
ao fato de serem usados como pretexto para que a justiça, a misericórdia, a lei moral, pudessem ser colocadas de
lado.
571
Alan Unterman. Historical dictionary of the Jews (Plymouth, UK: Scarecrow Press, 2011), pp. xxx e xxxi.
572
Jacob Neusner. “The pharisaic agenda: laws attributed in the Mishnah and the Tosefta to pre – 70 Pharisses”
in Jacob Neusner e Bruce D. Chilton (edts.). In quest of the historical Pharisees (Waco, TX: Baylor University
Press, 2007), p. 315; Cf. David J. Rudolph. A Jew to the Jews (Tübingen: Mohr Siebeck, 2011), p. 118.
220
A presença de Deus repudia o impuro, pois a pureza ritual, de acordo com estes códigos,
é um símbolo da pureza moral e ética; puro (tahor) também significa completo. Portanto,
segundo esta teologia, onde há impureza não pode haver santidade (voltaremos a esse tema
santo, Um risco, portanto, coletivo se pensarmos que, segundo a teologia farisaica, o foco
Messias daniélico, cujas principais fontes inspiradoras são os apócrifos Enoque Etíope e
Similitudes de Enoque, escritos no primeiro século a. C., onde o Messias é retratado como
“um ser divino ou semidivino, preexistindo com Deus antes de todos os mundos, tomando seu
assento no trono de Deus e fazendo o papel de Juiz divino” 573 . Esta concepção é
importante espaço neste quadro. Com efeito, na composição do ideário farisaico do Messias
também deve ter tido grande importância o episódio veterotestamentário de Elias sobre o
quando, por meio de raios que descem do céu em resposta à oração e consomem o holocausto
depositado no altar, demonstra que Javé era Deus, (II Rs. 18). Portanto, para os Fariseus,
qualquer pretendente ao messiado deve possuir a capacidade de mover as potestades dos céus,
conforme a profecia de Joel 3: 3. Eis porque eles constantemente pressionavam Jesus a que
fizesse um sinal nos céus (Mt. 16: 1-4; Mc. 8: 11-13; Lc. 11:16) e a isto condicionassem a
573
E. C. Dewick. Primitive Christian eschatology (Cambridge: Cambridge University Press, 2011), p. 88.
574
O capítulo X do Testamento de Moisés, composto em ambiente antifarisaico demonstra que a ideia era bem
difundida: "então se manifestará seu reino sobre toda a criação, então o diabo terá seu fim e a tristeza se afastará
com ele. Então será investido o enviado, que no mais alto se acha estabelecido (...). Pois se levantará o Celeste
de seu trono real e sairá de Sua santa morada, inflamado de cólera em favor de seus filhos, [...] Pois o Altíssimo
Deus Eterno se levantará sozinho, aparecerá para se vingar das nações e destruir todos os seus ídolos. Então, tu,
Israel, serás feliz." (10. 1-2a; 3. 7-8a). In A. Diez Macho. Apócrifos del Antíguo Testamento (Madrid:
Cristianidad, 1987).
221
aceitação de Sua dignidade messiânica. E talvez pelo mesmo motivo Jesus não tenha querido
fazer descer fogo dos céus diante dos Fariseus575. Dominar os fenômenos da natureza não
seria problema para quem havia andado sobre as águas e acalmado os ventos no mar da
Galileia. A razão de sua negativa é simples. Não lhes daria motivo para o confundirem com
A perspectiva messiânica dos Fariseus envolvia um Messias com uma única missão, a
Apesar de a escatologia farisaica ser muito próxima da de Jesus, apenas alguns destes
desdobramentos teológicos são compartilhados com Ele; a maioria, descartada. Jesus aceita a
ideia geral da restauração, mas sem o ingrediente étnico 577 . Mas, o aspecto político do
tribos nem restauração do poder político de Israel, o templo não tem papel escatológico
ritual e santidade. Por fim, a ambiguidade das fontes intertestamentárias atinente aos
575
Certa ocasião, atravessando o território de Samaria, uma de suas cidades se negou a dar pousada a Jesus.
Tiago e João então lhe perguntaram se queria que mandassem descer fogo dos céus para consumir os
Samaritanos (Lc. 9: 51-56). Jesus os repreendeu severamente: não sabiam a que Espírito pertenciam. Jesus não
era este tipo de messias. Não viera para destruir os réprobos (maus Judeus e Gentios) nem para reformar o povo
com o tipo de reforma que os Fariseus esperavam (ou seja, com a eliminação dos ímpios e observadores
negligentes das obrigações haláquicas).
576
Michel F. Bird. Jesus and the origins of the Gentiles mission (London: T&T Clark, 1988), p. 27.
577
A ideia de restauração da escatologia farisaica inspira-se na Sabedoria de Ben Sirac entendendo-a como
futura reunião das doze tribos (Sir. 48: 10).
578
“Não se deve esquecer o fato de a expectativa da destruição dos Gentios frequentemente aparecer em
justaposição com a esperança de sua eventual ou parcial salvação. Em 1Enoque, Oráculos Sibelinos, 4Esdras,
2Barucque, Testamento dos Doze Patriarcas e Mishnah, há paradoxalmente tanto a destruição como a salvação
dos Gentios.” (Michel F. Bird. Jesus and the origins of the Gentiles mission, p. 28).
222
símbolo de sua participação no Israel escatológico, como veremos mais próximo do final
desta investigação.
5.b.5. Zelotes
Pseudoepígrafos quanto aos Gentios optando por sua danação. Trata-se da ala radical dos
Zelotes579 que tomaram o modelo messiânico de Fineias – Elias como paradigma580. Segundo
Messias estaria sob seu encargo, e isto significava para eles ter a obrigação religiosa de
quanto antes581.
Sua disposição de lutar pela liberdade, conforme testemunho de Josefo, não temendo a própria
morte e nem a dos seus (Ant. 18, I, vi.), não era um amor exacerbado por Israel, mas uma
579
Flávio Josefo não os associa diretamente aos Fariseus, dando-lhes uma origem independente como uma das
quatro filosofias (hairesis) mais importantes dos Judeus (Ant. XVIII, i, 1-5; Cf. Guerra, II, viii). Segundo o
relato de Josefo os Zelotes surgem já nos anos próximos à revolta, o que entra confronto com o relato dos
evangelhos. Provavelmente, a organização e o programa religioso zelote só ganhou notoriedade neste tempo.
Contudo, já havia um Zelotismo difuso nos dias de Jesus, o que Josefo não quis reconhecer porque não lhe
interessava como Fariseu associar seu nome ao dos revoltosos.
580
Fineias era um tradicional modelo dos Zelotes. Assim “aparece no quarto livro de Macabeus”. Em Números
25: 7-11 ele aparece tomando a iniciativa de trucidar os israelitas que erraram na idolatria de Baal-Peor
atravessando um homem e sua mulher com uma lança. “Em certos círculos judaicos durante este período Fineias
é identificado e igualado a Elias.” (Samuel F. G. Brandon. Jesus and the Zealots – Machester: University of
Manchester, 1967, p. 45), muito provavelmente pelo perfil religioso de ambos coincidir quanto ao espírito
reformador e impiedoso com os que erram (comparar com a matança dos profetas de Baal e Asera por Elias – II
Rs. 18). O Zelotismo acabou se tornando um elemento típico da piedade dos Judeus do primeiro século d. C. e
conforme os tempos corriam e se aproximavam da primeira revolta dos Judeus, mais sua influência aumentava.
581
“Os membros de um destes partidos colocavam tal ênfase sobre os preceitos que eles nunca tocavam uma
moeda baseados no fato de que não podiam sequer carregar, olhar para ou fazer uma imagem [as moedas em
geral traziam a esfinge de um imperador romano]. Eles entram na cidade evitando passar por um portão que
contenha estátuas (andriates), pois eles creem ser errado passar sob estátuas [...]. se eles ouvem alguém
incircunciso discutindo sobre sua lei e seu Deus, eles esperam-no para pegá-lo sozinho e ameaçá-lo de morte
caso não queira se circuncidar [...]. Por esta razão eles têm ganho o nome de Zelotes; alguns os chamam Sicários.
Os adeptos de um destes grupos chegam ao ponto de não nomear outro Senhor, senão seu Deus, mesmo se
torturados até a morte.” Hippolytos. Refutatio omnium haeresium in Samuel F. G. Brandon. Jesus and Zealots,
pp. 45 e 46.
582
Doron Mendels. The rise and fall of Jewish nationalism. Jewish and Christian ethnicity in ancient Palestine
(New York: Doubleday, 1992), p. 320.
223
devoção fanática a Deus, inspirada nas páginas mais sangrentas das Escrituras. O Zelotismo
macabaico. Não é, portanto, errôneo qualificá-los, como vimos fazendo, como uma ala radical
dentro do Farisaísmo, mais tarde independente de seu ramo principal em virtude da guerra.
Movidos por seu fervor religioso, eles imaginaram-se capazes de atingir a libertação final de
todos os poderes (especialmente dos Romanos), tal como fizeram os Macabeus, seus
chamado Zelote, entre os apóstolos (Mt.10: 1-4, Mc. 3: 13-19; Lc. 6: 12-16). Um zelote ou
ex-zelote entre eles indica duas coisas: ou que era muito comum encontrar zelotes e
simpatizantes entre a população, ou que o ideário zelote encontrava respaldo também entre os
outros discípulos, como se pode verificar na perícope das duas espadas (Lc. 22: 35-38) e na
reação violenta e homicida de Pedro quando da prisão de Jesus (Mc. 14: 43-50, Mt. 26: 46-57,
Em Paulo, quando ainda Saulo de Tarso, há também sinais de Zelotismo. Ele diz de si
mesmo ter sido educado “na lei dos antepassados, sendo zeloso para com Deus” (zelotes tou
Theou) (At. 22: 3-4). E em outro lugar: “eu persegui a Igreja de Deus [...], sendo
excessivamente zeloso por minhas tradições ancestrais” (zelotes ton patrikon mou
paradoseon) (Gl. 1: 13, 14 e 23). E ainda: “quanto ao zelo (zelos) perseguidor da Igreja de
Deus” (Fl. 3: 5). Nestas passagens, Paulo não tem o menor pudor de autodenominar-se
zelotes, àquele tempo sem a conotação política que depois adquiriria (cerca de vinte e cinco a
trinta anos depois de sua conversão)583, mas o sentido religioso é bastante claro pelo zelo
devastador com que perseguia a seita dos cristãos. Para ele “o Cristo kerigmático era um rival
583
James D. G. Dunn. Beginning from Jesusalem (vol. 2, Grand Rapids. MI: Wm. B. Eerdemans, 2009), p. 342.
224
da Torah”584 e os Cristãos eram maus praticantes do Judaísmo, donde sua decisão de extirpar
Seu zelo estava completamente afinado com a piedade farisaico-zelote que pode ser
definida como uma firme disposição para usar de todos os meios, inclusive a violência para
religiosa, que leva os que assim pensavam a uma devoção tão intransigente que estavam
dispostos a tudo: matar, morrer, sofrer, torturar. O Zelotismo ou Farisaísmo radical de Paulo
era uma devoção intransigente à Torah, que o levava a estar disposto a matar, a sofrer e a
Jesus, apesar de também apocalíptico585, não adotava nenhum destes tipos messiânicos.
Principalmente, porque Ele não anunciava uma mensagem sectária e disjuntiva, mas
584
Terence L. Donaldson. Paul and the Gentiles. Remapping the apostle’s convictional world (Minneapolis,
MN: Fortress Press, 2006), p. 284.
585
A condição de Jesus como profeta apocalíptico continua muito contenciosa na literatura especializada. Há
razões para incluí-lo em seu rol e há razões para tirá-lo daí. J. Charlesworth, por exemplo, aponta seis motivos
para sua exclusão desta ilustre lista (Jesus and Dead Sea Scrolls – New York: Doubleday, 1992, pp. 52 2 53): (a)
Jesus não escreveu nada, e os escritores e redatores apocalípticos intertestamentários eram eruditos; escribas
notórios e leitores ávidos; reconhecidos pelo excesso remissivo de seus textos, frequentemente beirando a
extravagância. (b) Jesus não valorizava a sabedoria apocalíptica, nunca esteve ocupado com um conhecimento
enciclopédico, menos ainda com um científico, nem jamais afirmou que os “sábios herdariam a nova terra” (Dn.
12:3) (embora Daniel se referisse às letras sagradas). (c) Em vez de debater assuntos judaicos, como por
exemplo, a condição de Judeu sob o domínio romano, estava mais preocupado em anunciar a iminência do reino
de Deus e as consequências universais deste evento; (d) Não era vingativo; não anunciava a ira de Deus para a
destruição dos réprobos e pagãos opressores, mas a graça salvadora para todos. (e) Nunca se ocupou em
descrever o paraíso e as realidades extraterrenas; pelo contrário, desestimulou quem disso se ocupava (Mt. 23-
30). (f) Nunca enfatizou a transcendência e o distanciamento de um Deus santo e justo e a intermediação por
seres viventes (Ezequiel) ou por anjos (Daniel); ao contrário, ensinou seus discípulos a chamarem Deus de Abba
(a oração do Pai nosso) e o retratou magistralmente como um Pai a espera de seu filho perdido, para acolhê-lo
em seus braços (a parábola do filho pródigo – Lc. 15: 11-32). Fiz alguns desenvolvimentos nesta lista,
acrescentando mais três motivos, de alguma sorte antecipados nas letras (a) e (b): (g) Ele não procurou conectar
seus ensinos com o de outros no passado, nem fundamentou sua autoridade nas Escrituras, o que não quer dizer
que não tenha feito muitas e abundantes remissões a ela. (h) Jesus não era dado a sonhos e visões. E finalmente,
(i) nunca construiu esquemas cronológicos, nem dividiu a história do mundo em eras ou idades, como fizeram
Daniel e seus discípulos da Apocalíptica intertestamentária. Por outro lado, há sinais de Apocalipsismo em Jesus,
desde que ensina (a) a iminência do reino de Deus, bem como a pronta subversão do mundo (Mc. 1: 15, Mt. 12:
28, Lc. 9: 27 e 11: 20); (b) alguns temas de sua pregação são escatológicos ou apocalípticos: a Geena, os
225
morais, compartilhadas por todos 587 . O halaquismo desta época estava à serviço de certa
expectativa escatológica que punha em relevo o julgamento dos povos e a retribuição final. As
Para Jesus não havia razão para um antagonismo prévio ao Juízo (os eleitos de um lado,
os réprobos de outro) e/ou uma separação de Seu grupo daqueles que tinham outra opção
religiosa588. O reino de Deus não vem para preparar o mundo para o julgamento final, para
por de uma parte os santos e de outra os réprobos. A separação ocorre apenas no último dia.
Assim ensinam a parábola do joio (Mt. 13: 24-30), da rede (Mt. 13: 47-50), a das dez virgens
(Mt. 25: 1-12), o dito “um será tomado e o outro deixado” (Mt. 25: 40-41). As bases do Juízo
são morais e éticas (um cumprimento mais profundo da lei moral) e não cúlticas ou
Ao contrário dos outros messianismos, não há em Sua mensagem um apelo para sair do
mundo, mas um Ide, numa busca mais decisiva pelos excluídos. Por isto, o ainda-não de Jesus
cataclismos cósmicos, o julgamento final, a recompensa, a punição, a ressurreição (Mc. 13: 1-37, Mt. Capítulos
24 e 25, Lc. 21: 5 – 36); (c) nas obras de Jesus e nas cenas ligadas à sua vida há um constante trânsito de seres
celestiais e demoníacos (Mt. 4: 1-11, Mc. 1: 12-13, Lc. 4: 1-13, Jo. 1: 51); (d) usa constantemente o título
apocalíptico-messiânico “Filho do homem”; (e) faz alusões ao profeta Daniel (Mt. 24:15), que é o pai de toda a
literatura apocalíptica, o texto-fonte de todos os apocalípticos, do Apocalipsismo intertestamentário até o
Apocalipse de João. C. H. Dodd em Parables of Kingdom já havia fechado a questão. Jesus é apocalíptico, pois
usa uma linguagem apocalíptica, embora não em termos suprarreais como os apocalípticos clássicos. A
linguagem apocalíptica caracteriza-se pelo “uso de símbolos para representar realidades que a mente humana não
pode diretamente apreender” (apud George E. Ladd. Kingdom of God – New York: Harper and Row, 2002, p.
19). O modo de ver o mundo apocalíptico “é ver uma ordem transcendente além do espaço e tempo”. Jesus usou
uma linguagem deste tipo, embora usando motivos da vida prosaica, o que só intensificam esta referência ao
transcendente, e a realização do futuro no presente, apesar deste presente ser o pobre e bucólico mundo dos
camponeses da Palestina de seu tempo.
586
Gerd Theissen e Annette Merz. O Jesus histórico. Um manual, p. 167.
587
Idem, ibid.
588
Não se pode olvidar que há certas passagens onde aparecem conflitos (Mt. 10: 34-37; Lc. 12: 53), mas eles
são de uma natureza diferente daqueles das outras religiosidades coetâneas a Jesus e seus discípulos. Eles
refletem uma situação de perseguição religiosa e de rejeição que Jesus experimentou e os seus viriam a sofrer, e
não era uma prescrição para a entrada no reino.
226
porque também é apocalíptica e não política, mas trata-se de uma ruptura com as instituições
politicorreligiosas de sua época, mas não com as pessoas que delas faziam parte.
Uma parte importante da teologia sectária da época era o conceito de santidade, pela
qual podiam ser identificados os santos e réprobos deste juízo prévio à manifestação do
O tema da santificação tão caro a Paulo e a João não tem o mesmo peso na mensagem
de Jesus. Isto é bem insólito em se tratando de literatura apocalíptica, pois este é um tema
escatológico clássico, marcante na Tanakh e expresso pela antítese santo e profano (Zc 14:
20-21; Is 4:3; Ez 36 e 37). Contudo, Jesus evita o tema; a redação dos evangelhos evita até a
palavra (exceto João)589. A questão é algo ambígua, porque de um lado, a ética do reino é
mais rigorosa do que a dos Fariseus, conforme está claramente declarado no sermão mais
importante de Jesus: o sermão da montanha/planície: “porque vos digo, se a vossa justiça não
exceder a dos Escribas e Fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mt. 5: 20).
Por outro lado, Jesus parece atacar o tema da santificação em Suas frequentes diatribes contra
os Fariseus. Ou seja, ou temos dois tipos diferentes de santidade, uma aprovada e outra
Realmente, são dois conceitos diferentes de santidade: uma prevalente naqueles dias e
outra de Jesus. Com efeito, para Fariseus, Saduceus, Escribas, Zelotes e Essênios, santidade e
pureza rituais aparecem invariavelmente como equivalentes 590 . A pureza haláquica era a
santidade necessária para que Deus pudesse habitar no meio de Seu povo e, portanto, estava
589
A palavra santo e seus correlatos jamais aparece nos lábios de Jesus nos evangelhos, exceto em João 17:17
(“santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”) e em discurso privado.
590
Marcus Borg, Conflict, Holiness and Politics in the teachings of Jesus, p. 8.
227
relacionada com a teologia do concerto e com a teologia do templo, como irmãos siameses
presos pelo tronco. O conceito era a coluna cervical do Judaísmo dos tempos de Jesus:
“unidade de culto, pureza cúltica, adoração exclusiva de Yahweh, unidade de Israel, eleição e
concerto, posse da terra, etc., tem se combinado numa ordem israelita fechada para o povo e
para a vida.”591
com estas ideias. De início deixou-se batizar por João Batista, aderindo exemplarmente a uma
Essênios).
Também não era estrito observador das normas haláquicas, quando estas diziam respeito
uma posição superior. Os exemplos são tantos que seria impossível ser exaustivo no espaço de
que dispomos. Ele não evitava tocar em mortos (ressurreição da filha de Jairo – Mc 5: 22, Lc.
cura do endemoninhado em Marcos 5); comer com pecadores (pessoas impuras ritual e
moralmente) (Mt. 9: 11; Mc. 2: 16; Lc. 7: 34, 15: 2), cobradores de impostos (pessoas impuras
por se relacionarem com romanos e pagãos) (Mt. 9:10, Mc. 2: 15), prostitutas (Mt. 21: 31);
deixar-se tocar por mulheres adúlteras (Lc. 7: 36-50), samaritanas (Jo. 4: 9), hemorrágicas
(Lc. 8: 43); curar tocando os órgãos doentes dos enfermos que o procuravam (Lc. 22; 51),
tocar em pessoas possessas por espíritos imundos, ainda que libertas (pouco tempo depois)
(Mc. 9: 25-27); falar com leprosos, desrespeitando o distanciamento exigido (Mc. 1: 40, 14:
3). Também não respeitava as normas haláquicas da guarda do Sábado, pois curava neste dia.
591
Gehard F. Hasel. Old Testament theology: basic issues in current debates (Grand Rapids, MI: Eerdemans
Publishing, 1991), p. 157.
228
moribundo por causa da proscrição levítica de tocar em mortos (Lv. 21: 1), e são
Outra evidência de que Jesus pensasse numa superação das teologias do templo (e do
concerto) são os vários ditos sobre sua destruição. Os evangelhos associam a morte de Jesus
ao fim da dispensação do templo (Mt. 27: 51; Mc. 15: 38; Lc. 23: 45). João vai além,
atribuindo ao corpo de Jesus a condição de novo templo, como sugere o famoso dito: “destruí
este templo e em três dias o reerguerei (mas ele falava do templo de seu corpo)” (Jo. 2: 21). A
quádrupla atestação deste dito diz muito sobre sua importância no quadro geral das ideias
religiosas de Jesus e seu movimento (mas nada diz sobre sua autenticidade; rejeitamos esta
metodologia). A superação do templo ocorre não somente pelo fim do sistema sacrifical, que
com Sua morte perde completamente o sentido; mas também porque com a irrupção do reino
aproximação humana em relação a Deus deixa de ser necessário. Portanto, o templo neste
novo contexto é supérfluo. Mas, então por que Jesus não falou abertamente do fim da
Com efeito, era frequentemente visto ensinando no templo (Mc. 14: 49; Lc. 19: 47, 21:
37); como seus contemporâneos Judeus, cria que o templo era a habitação divina (Mt. 23: 21),
e, por isso, um lugar santo (Mt. 24: 15). Pagou o imposto do Templo (Mt. 17: 24), aprovou as
ofertas (Mt. 5: 23) e os dízimos (Mt. 23: 23; Lc. 11: 42). Manda leprosos por ele curados se
mostrarem aos sacerdotes ((Mt. 8: 2-4; Mc. 1: 43-44 e Lc. 5: 2-14, 17: 11-19), para que
Jerusalém no tempo das festas (segundo a tradição joanina)592 e por isso também devia seguir
as regras de pureza ritual, exigidas de todos seus participantes (Nm. 9: 6). Segundo Lucas, aos
doze anos de idade, Jesus chamou o templo de ‘a casa de meu Pai’ (Lc. 2: 49).
O que podemos dizer sobre esta atitude inconsistente de Jesus? Várias respostas são
possíveis. Uma delas é a simples elisão das passagens em que Jesus aparentemente endossa o
sistema cúltico do templo. Os que adotam esta operação afirmam que Jesus teria rejeitado o
templo por motivos sociopolíticos593. Para estes autores Jesus confrontou o sistema cúltico
que geria a doença e a cura, o pecado e a culpa, colocando no lugar seu próprio sistema
paralelo e concorrente, por uma motivação revolucionária – ainda que não armada, o que não
quer dizer destituída de inspiração religiosa594. O que defendemos é o contrário. Jesus criou
o que não quer dizer destituída de consequências sociopolíticas595, como Sua própria morte o
indica. Isto explicaria Sua relutância em rejeitar definitivamente o sistema cúltico do templo,
por ser potencialmente uma ação subversiva, que daria à sua audiência um sinal trocado: seu
reino não era deste mundo e um ataque ao templo significaria o oposto, porque o templo era
uma das instâncias de poder na Judeia, através do Sinédrio, supletiva à outra instância que era
o prefeito de Jerusalém. Uma parcela da população judaica vivia na ilusão de que era
592
Segundo o evangelho de João, Jesus teria feito cinco viagens a Jerusalém, com o objetivo específico de
participar das festas sabáticas: duas vezes para a Páscoa (pessach) (Jo. 2: 15 e 11: 55), uma vez para participar da
festa das tendas (sukkot) (Jo. 7: 10), uma vez para uma festa não especificada (Jo. 5: 1), e uma vez para o festival
de (re)dedicação do templo, que fora criado no período macabaico (Jo. 10: 22).
593
Marcus Borg. Conflict, holiness and politics in the teachings of Jesus (obra já citada); John Dominic Crossan.
Jesus, a revolutionary biography (New York: Harper Collins Publishers, 1995); Obery M. Hendricks. The
politics of Jesus. Rediscovering the true revolutionary nature of Jesus’ teachings and how they have been
corrupted (New York: Doubleday, 2006); Richard Horsley. Bandits, prophets & messiahs (Harrisburg PA:
Trinity Press International, 1999); N. T. Wright. The New Testament and the people of God (Minneapolis:
Fortress Press, 1992).
594
Marcus Borg. Jesus in contemporary scholarship, p. 32.
595
Num artigo publicado em 1986, Bruce Malina (“Religions in the world of Paul” – BThB, no. 16, p. 92),
aplicando as ideias sociológicas de K. Polanyi aos estudos neotestamentários, faz uma importante observação
que muito contribuiu para uma melhor compreensão do mundo do Novo Testamento. A antiga sociedade
mediterrânea estava “impregnada de religião”, o que significa dizer que todas as dimensões da vida social
estavam dominadas pela religiosidade: a economia, a política, a família. Era, portanto, impossível que a rejeição
de Jesus à religiosidade de seu tempo não produzisse reflexos nestas outras áreas da vida daquela sociedade.
230
governada por uma teocracia (o povo comum, Fariseus e Saduceus), outra parte era consciente
da aliança do Templo com Roma e a repudiava (Essênios, Zelotes). Jesus tinha uma linha
tênue sobre a qual caminhar; pisar fora deste espaço exíguo seria de alguma forma tomar
partido e, mesmo sem o querer, conseguir o apoio e a adesão política da parte grata596. Isto
explica o fato de Ele ter deixado suas ações mais decisivas contra o tempo para o final de Seu
ministério.
intertestamentário, quando Israel convivia com Gentios no exílio babilônico e tinha que se
adaptar à sua incômoda presença e de seus costumes. Neste contexto a lista levítica de coisas
pelo toque dos doentes, misturas de alimentos, misturas de tecidos, foi acrescida pelas 630 leis
da Hallakah 597 , que pretendiam “contextualizar os preceitos gerais da Torah à vida dos
exilados”598.
propagam, passam de pessoa para pessoa, porque qualquer coisa ou pessoa que entre em
596
Observar como em Sua última semana, na qual a assim chamada purificação do templo ocorre, uma ala mais
exaltada dos discípulos parece assumir a liderança nas ações do grupo: o ataque de Simão a mão armada contra o
servo do sumo sacerdote (Jo. 18: 10), o dito das duas espadas aparece neste contexto (Lc. 22: 38), a fuga e o
medo dos discípulos após a prisão de Jesus são indício da dimensão do problema (Jo. 20: 19).
597
Obra escrita durante o exílio, cujo título significa em aramaico “Caminho” (subentendido, “para Deus”). O
título da obra por si só já dimensiona a importância do aspecto ritualístico da religião judaica neste tempo.
598
Christian Grappe. Initiation au monde du Nouveau Testament (Genève : Labor et Fides, 2010), p. 76.
231
(1) Como já foi dito, primeiro o conceito de pureza perde sua importância religiosa. O
crente pode adorar a seu Deus e comungar com os outros sem se importar com as questões
presença de Deus passa a ser imediata e a santidade passa a ser entendida como relacionada
(2) Segundo, em Jesus o conceito de pureza ganha uma força e um dinamismo que na
Resta pouco a dizer depois desta citação. Pode-se acrescentar que esta nova relação
entre pureza e impureza só pode ser entendida à luz da irrupção do reino de Deus no
ministério de Jesus: uma força restauradora irresistível. Assim, como o caos não pode resistir
à palavra de Deus, da mesma maneira o mundo dominado pelas forças destrutivas do mal não
pode resistir ao toque de Jesus: “se, porém, expulso demônios pelo dedo de Deus, é chegado o
reino de Deus sobre vós”. (Lc. 11: 28). É como se o ministério de Jesus tirasse o Bem e a
Marcus Borg em seu livro Conflito, santidade e os ensinos de Jesus 600 defende
Contudo, o que ele define como o conceito de santidade de Jesus não é fiel às fontes. Ele diz
que Jesus substitui “o paradigma” da santidade pelo da misericórdia, o que tornaria Sua
599
Apud Christian GRAPPE, “Jesus et l’impureté ”, RHPR, vol. 84, 84 (2004), pp. 394.
600
Que vem sendo citado como Conflict, holiness and the teaching of Jesus.
232
religiosidade e dos discípulos inclusiva em relação aos Gentios 601. Ora, páginas acima do
texto que transcorre mencionamos o fato de a ética do reino ser mais radical do que a dos
Fariseus, como atesta o Sermão do monte. Contra Borg é preciso dizer que não é possível
simplesmente elidir Mateus 5: 48 (“Portanto, sede vós perfeitos, como é perfeito vosso Pai
que está nos céus”), em favor de Lucas 6: 36 (“Sede, pois, misericordiosos, como também
vosso Pai é misericordioso”). As ênfases redacionais dos evangelistas não podem ser
transformadas em “paradigmas”, assim, tout court, e ainda menos dizer que uma delas é a de
Jesus.
de restritivo e cúltico, como na teologia do templo. Além disso, é uma santidade privada.
Todos os sinais exteriores de santidade que serviriam a este propósito (inclusive a noção de
pureza), ou seja, definir quem é e quem não é santo (e segregar com base nisto), são
repudiados em favor de sinais interiores no plano devocional e ético e ambos anônimos, como
ensinam o sermão do monte 602 e a parábola do Bom Samaritano (Lc. 10: 30-37).
Consequentemente, não é sectarista nem serve para definir um povo eleito, separado de um
sopesando a santidade alheia. A falta de santidade de quem está próximo não tem efeito
o santo, mas o contrário. Esta é a lição da parábola que apresenta a Igreja como o sal que
purifica e tempera o que toca (Mt. 5: 13). Portanto, tudo o que deveria ocupar a atenção dos
discípulos de Jesus era sua própria santidade, cuja fonte era devocional e ética e não a
601
Marcus Borg. Conflict, holiness and the teachig of Jesus, pp. 16-17.
602
“Quando orares entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai que vê
em secreto, te recompensará” (Mt. 6: 6); “quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti [...]Tu,
porém, ao dares esmola, ignore tua mão esquerda o que faz tua mão direita; para que tua esmola fique em
secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mt. 6: 2,3,4).
233
santidade do outro. Sua ênfase é a devoção à Deus produzindo uma vida condizente com esta
comunhão e não uma vida condizente com esta comunhão produzindo (a aparência de) uma
devoção à Deus.
É por este motivo que em muitas outras passagens Jesus recomenda tudo o que era feito
pelos Fariseus, porém, repudia o modo e o motivo de seus atos pios. Deve-se guardar os
mandamentos, mas não meramente evitando os atos pecaminosos, guardando acima de tudo o
coração do pecado (Mt. 5: 21-32)603. Deve-se jejuar, mas não com face contrafeita. Deve-se
orar, mas não publicamente (Mt. 6: 16-18). Deve-se esmolar, mas não ao som de trombetas;
porém discretamente (Mt. 6: 2-4). Deve-se interceder, mas não meramente pelos amigos e
parentes; mas também pelos inimigos, pelos que nos perseguem (Mt. 6: 44). Deve-se ajudar
aos necessitados, ainda que não tenham como devolver os favores, como no caso da parábola
da ceia (porque os convidados eram paupérrimos) e o do bom samaritano (porque aquele que
estivera estirado no caminho estava desacordado e não poderia sequer reconhecer seu
benfeitor). Portanto, para Jesus a santidade era algo privado, restrita ao plano devocional e
moral, não havendo nada no mundo social que pudesse ou devesse denunciá-la. Seu palco é o
Por conta disto, Jesus fala de Publicanos e meretrizes de modo bastante ofensivo à
10-14). Quando diz que os Publicanos e as meretrizes precedem os Fariseus no reino (Mt.
21:31), isto ocorre pelo mesmo motivo da rejeição da oração do Fariseu, sua pretensão à uma
justiça que eles não possuíam. Estes textos são de autoridade inquestionável, porque se
603
Jesus rejeita o casuísmo escribo-farisaico. Segundo Jesus, é impossível estruturar casuisticamente o
cumprimento da lei, e por este meio determinar quem é seu transgressor e quem não é, porque as piores
transgressões contra lei são perpetradas no coração, onde estão a salvo da percepção humana (Eduard Lohse, Op.
Cit., p. 103).
234
Vendo os Fariseus que Ele comia com publicanos, disseram: Por que come com pecadores?
(Mc 2: 16). Ao que Jesus respondeu: “não necessitam de médico os sãos, mas sim os
enfermos, eu não vim chamar justos, mas pecadores, ao arrependimento.” (v. 17).
Assim, rejeitadas as noções de santidade e pureza como critério de separação entre maus
separação dos bodes das ovelhas, entre salvos e réprobos é feita por ocasião do advento e não
pré-advento (Mt. 25:32). Nenhuma pista é deixada quanto a quem são uns e outros604. Pois
Ele diz em outro lugar: “estarão dois no campo, um será tomado e o outro deixado; estarão
duas no moinho, uma será tomada e a outra deixada”. (Mt. 28: 40-41; LS 17: 34-36). Na
parábola do joio semeado em campo de trigo. Jesus diz que ambos crescem juntos até o dia da
ceifa final, quando Senhor da seara há de guardar o trigo em seu celeiro e lançar o joio no
Em Lc 14: 15-24 o convite escatológico para as bodas, depois de haver sido rejeitado
pelos puros e justos (as pessoas religiosa e socialmente mais bem posicionadas), foi levado
aos descartes sociais, aos paralíticos, inválidos, discriminados, o justo retrato dessas
Ainda que Jesus seja hóspede da casa de Levi, considera sua comunidade de mesa
com publicanos à luz de sua própria atividade de mensageiro escatológico de Deus
que anuncia a proximidade da chegada do reino de Deus e comunica aos Publicanos
604
Porém, isto não é tudo. Jesus não só fecha todas as portas possíveis ao sectarismo, como também as confunde.
Os pobres, tidos como os menos qualificados para o reino, porque não tinham como cumprir estritamente as
tradições haláquicas dos Fariseus, passam a ser seus verdadeiros herdeiros. Com eles, os injustiçados, os
perseguidos, conforme os macarismos de Mt. 5: 1-12 e Lc 6: 20-23. Os servos serão os maiorais no reino e quem
não se tornar como uma criança não poderá ter assento entre os redimidos. As crianças, que nas sociedades
greco-romanas eram consideradas o estrato mais baixo da sociedade, serão as primeiras no Reino de Deus (Mt.
19:14). Não é por acaso que no Juízo escatológico, os salvos são representados como ovelhas e os réprobos,
como bodes (Mt. 25: 33 e 34), já que os chifres na linguagem apocalíptica desde sempre tem sido símbolo de
poder político e econômico.
235
(ou seja, aos pecadores) o convite divino para formarem uma grande comunidade de
mesa escatológico com Deus (Mt 22:1-14; Lc 14: 16-24)605.
A ruptura do reino com o ethos circundante, inclusive com a rejeição deste conceito de
santidade excludente, dá-se justamente por que os critérios sociorreligiosos com que o ‘hoje’
substituídos pela práxis do reino, que os abole vê apenas uma comunidade governada pelo
Bem em sua pureza sem nome. O nome de quem faz e de quem recebe o benefício desaparece
neste contexto passa a ser Tudo em Todos, como dirá mais tarde Paulo (I Co 15: 20).
O nome disto não é comunismo, comunitarismo nem revolução não violenta, mas uma
santidade que é o motor da transformação dos seres humanos. Não se trata de atos privados
reconhecidos como santos por Deus e pelos homens, mas o que pessoas completa e
integralmente comprometidas com o reino de Deus e sua justiça fazem umas pelas outras.
Quando se compara a redação de Lucas e Mateus isto fica ainda mais evidente, porque
Mateus registra no sermão do monte: “sede perfeitos como perfeito é vosso Pai que está nos
céus” (5: 48)606; e Lucas, no sermão da planície: “sede misericordiosos, como misericordioso
é vosso Pai que está nos céus.”. Havendo, portanto, uma sinonímia entre perfeição (santidade)
e misericórdia. Isto significa que, no reino de Deus, o que move a sociedade dos homens de
santidade sectário subsiste, mas o Bem de todos, ao qual está referido o conceito de santidade
como misericórdia.
605
E. Schllebeeckx. Jesús, história de um viviente, p. 192.
606
A referência veterotestamentária de Mateus nesta passagem é Levítico 20: 7: “Portanto, santificai-vos, e sede
santos, pois eu sou o Senhor vosso Deus.” A redação mateana evita a palavra hagios tão cara ao sectarismo
judaico e utiliza em seu lugar teleios, que evita confusões com o conceito de santidade judaico e ao mesmo
tempo indica a radicalidade da santidade do reino de Deus.
236
teológica mais importante talvez fosse a profecia de Malaquias 4: 5-6 sobre a vinda de Elias,
antes do “dia do Senhor”. Sendo o ministério profético de Elias desta natureza, era, portanto,
esperado que seu retorno viesse acompanhado de muitos milagres. O profetismo de Elias,
desta maneira, teria tido de princípio um papel fundamental no modo de pensar dos
ações607. Não é casual que muitos o tenham tomado por Elias redivivo ou por João Batista
(que em fim de contas dá no mesmo) (Mt. 16:13-23, Mc. 8:27-33 e Lc. 9: 18-22).
aquela sob influência farisaica), os oráculos sobre a vinda de Elias e a chegada do dia do
Senhor (com o fim do milênio para alguns) e a promessa da efusão do Espírito nos últimos
dias (Joel 2: 28-32), produziam uma forte expectativa escatológica. A reaparição de Elias era
o sinal de que todos estes acontecimentos em seguida ocorreriam. A figura de Elias era,
portanto, escatológica e messiânica, e, por isso, não era difícil confundi-lo com o próprio
Messias608. O que determinava esta contaminação da figura de Elias pela messiânica e vice-
versa era a crença geral de que os milagres estavam relacionados com o cumprimento
Respondendo aos discípulos de João Batista (nesta ocasião prisioneiro nas masmorras
de Herodes Antipas) sobre se ele era o que havia de vir ou se deviam esperar outro, Jesus
apontou seus milagres como o maior sinal de que o reino de Deus de fato já havia irrompido
neste mundo por seu intermédio (Mt. 11: 1-6; Lc. 7: 18-23). Ele descreve seu ministério como
cumprimento da profecia de Isaías 35: 5-6, e com isso indica a restauração de Israel como
cumprimento escatológico par excelence de tudo o que os profetas haviam dito antes sobre o
Reino de Deus. Notar a omissão que Jesus faz do resto da citação de Isaías: “para apregoar o
ano aceitável do Senhor e o dia da vingança de nosso Deus” (61: 2). O que, segundo a
exegese do Batista, deveria também compor o quadro dos feitos messiânicos, desde que para
o Batista a vinda do messias seria acompanhada do juízo, do ajuste de contas final (Mt. 3: 7-
religioso que não cria no Juízo como imediatamente ocorrente à vinda do messias. Alguns
Fariseus são reprovados pelo Batista em todos os evangelhos justamente por este motivo:
“raça de víboras; quem vos ensinou a fugir da ira vindoura”. Ou seja, parafraseando: ‘o que
vocês fazem aqui Fariseus? Vocês não creem que chegou o tempo da escatológica ira divina.’
Desta forma, embora os milagres de Jesus causassem grande impacto e fossem considerados
por muitos como sinais de que Deus se aproximava da história humana (Lc. 4: 18-19), não
havia consenso quanto ao que eles realmente significavam. Para muitos, os feitos de Jesus
pareciam levar a um cumprimento apenas parcial das profecias, daí a confusão instaurada na
(a) Jesus rejeita a teologia que relaciona doença e pecado, implícita na teologia do
marcavam seus possuidores como grandes pecadores, afligidos de Deus610. Por conta desta
à infidelidade de Israel 611 , nos tempos neotestamentários passaram a ser entendidas como
dirigidas a indivíduos, aos Judeus infiéis, e não mais a Israel como um todo. Neste contexto,
alta carga tributária a que estavam submetidos 612 deixava os camponeses mal nutridos e
predispostos a doenças, que por uma coincidência infeliz, eram praticamente as mesmas da
609
“O pecado não somente põe em perigo, mas também polui, o ritual deve, portanto, realizar não somente a
expiação, mas também a purificação. Isto demonstra por outro lado, que a impureza não apenas polui, mas
também coloca em perigo; o rito de purificação, portanto, não só realiza a purificação, mas também a expiação.”
(Jay Sklar. Sin and impurity: atoned or purified? Yes. In Baruch J. Schwartz et al. Perspective on purity and
purification in the Bible, p. 18.
610
Na tradição joânica está clara a imbricação destas ideias no imaginário popular, quando os próprios discípulos
perguntam de Jesus ao ver a um cego de nascença: “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse
cego? Ao que Ele lhes respondeu: nem ele pecou nem seus pais, mas foi assim para que se manifestassem nele as
obras de Deus”. (Jo. 9: 2 e 3).
611
“O Senhor te castigará com doenças; tuberculose, febre e inflamação”; “o Senhor te ferirá com úlceras do
Egito, com tumores, com sarna e com prurido”; “o Senhor te ferirá com loucura, com cegueira e com
perturbação de espírito” (respectivamente, Dt. 28: 21, 22, 27 e 28).
612
Nos tempos de Jesus havia uma incidência e uma reincidência tributária sufocante sobre os moradores da
Palestina, sendo diversas as demandas fiscais que os Judeus tinham que satisfazer. (1) Os primeiros e mais
gulosos gafanhotos eram os Romanos: (1.a) tributos sobre a posse da terra, arrecadados tendo por base dados
fornecidos pelos contínuos sensos, promovidos pelas autoridades romanas; (1.b.) tributos sobre a produção
agrícola: 25 % de tudo o que era produzido no campo era recolhido aos cofres imperiais (Daniel Godoy. “Roma,
Palestina e Galileia no século I”, Ribla, Petrópolis, 2004, p. 54); (1.c) tributos individuais, cobrados às famílias
anualmente: 1 denário por cabeça, dos meninos a partir dos 14 anos, das meninas a partir dos 12 (Stegemann &
Stegemann, Op. Cit. p. 142); (1.d) tributos indiretos, cobrados pelo uso de estradas e rotas comerciais (Daniel
Godoy, “Roma, Palestina e Galileia no século I”, p. 54). Além disto, havia ainda a possibilidade de saques e
pilhagens feitos pelos legionários por causa do atraso na prestação fiscal (John S. Hanson e Richard Horsley.
Bandits, prophets & messiahs – Harrisburg, PA: Trinity Press International, 1999, p. 69). (2) Impostos
herodianos: 12 a 50 % do que era produzido ia para o erário herodiano (Stegemann & Stegemann, Op. Cit., p.
142). (3) Impostos do templo: 900 talentos anuais eram recolhidos de uma população entre 1 e 3 milhões de
habitantes (Idem, p. 145), oriundos, do primeiro dízimo (10 % de toda a produção familiar), e do segundo
dízimo, ou seja, dinheiro reservado para ser gasto em Jerusalém, por ocasião das santas convocações (Paula
Fredriksen .“Did Jesus oppose the purity laws?” – BR, June, 1995, p. 23) . Conclusão. Os camponeses dos
tempos de Jesus viviam no limite da insolvência, sofrendo para se manter para aquém do tênue limiar que separa
a pobreza da miséria. Um ano mais seco, uma praga na lavoura, bandidos sociais pelas imediações ou legionários
romanos, poderia facilmente empurrar o pequeno proprietário de terra para o outro lado desta linha e fazer dele
um novo alistado no exército de diaristas, que trabalhavam pelo pão do dia, ou então, o que era pior, um
mendigo, sob um dos pósticos de Jerusalém, dependendo da misericórdia alheia.
239
remédio: o dispendioso serviço sacrifical do Templo 613 . Em suma, para quem não tinha
recursos não havia esperança, nem neste mundo nem no outro. A situação permanente de
impureza os mantinha fora do alcance das funções expiatórias do templo, dado que não
(b) A taumaturgia de Jesus promovia não era só a cura física, mas também a espiritual
(perdão dos pecados) (Mt. 9: 6, Mc. 2: 10, Lc. 5: 24), e assim destituía o sistema cúltico do
templo de sua principal função. Jesus trazendo a si a prerrogativa de curar e perdoar pecados,
a seu serviço), inclusive a acusação de blasfêmia: porque só Deus podia perdoar pecados
(traduza-se aqui Deus por serviço sacrifical do Templo) (Mc. 2: 7, Lc. 5: 21). O mesmo
ocorre na história da mulher pecadora que unge os pés de Jesus, que aparece em Lucas
Especial (Lc. 7: 36-50). Ele diz depois que a vida desviante da pecadora começou a ser
cochichada entre os presentes: “perdoados te são os pecados” (Lc. 7: 48), para consternação e
613
John D. Crossan. O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo (Rio de Janeiro: Imago, 1994), p.
354.
614
Paula Fredriksen nega qualquer possibilidade de equivalência entre pobreza e a condição espiritual: “na
tradição judaica pureza não corresponde a uma classe social. O mais pobre camponês que tenha completado o
ritual de purificação é puro, enquanto o mais aristocrático sacerdote, tendo recém enterrado um de seus
progenitores, não é. O fariseu mais exigente, o mais elevando sumo-sacerdote, não é nem mais nem menos
tameh [impuro] depois do intercurso marital com sua esposa do que o mais imundo pescador da Galileia” (Op.
Cit., p. 23). É no mínimo ingênuo pensar desta forma. Obviamente, a pobreza extrema deve ser estigmatizada
por aqueles que querem justificar seus privilégios. Isto é um dado social universal. Ademais, não é tão simples
assim: ‘realiza-se o ritual de purificação, logo já se é puro’. J. Jeremias já faz alguns defendia a tese de que certas
profissões eram estigmatizadas na Palestina, justamente porque os trabalhadores diaristas não tinham como fazer
o resguardo de sua purificação: tratadores de animais, pescadores, comerciantes, garis, etc. (Joachim Jeremias.
Jerusalén en tiempos de Jesús – Madrid: Ediciones Cristianidad, 1980, p. 315-323). O trabalhador pobre da
Palestina nos dias de Jesus, no dia que não trabalhasse, fosse por que fosse o motivo, não tinha o que comer.
615
Mais uma vez Fredriksen, rejeita o peso textual contra si e tenta dissociar impureza ritual de pecado e,
consequentemente, de pureza à santidade: “o remédio para a impureza não é o perdão, mas a purificação” (Op.
Cit., p. 22). Só podemos interpretar esta negativa reiterada diante de tantas evidências como preconceito
intelectual, devido a que, neste tempo, os scholars do Jesus Seminar pareciam dominar o cenário dos estudos
neotestamentários com sua teoria sociopolítica de um Jesus revolucionário.
240
(c) Jesus também desautoriza outra importante função do templo: declarar o puro e o
protegido, contra muitas ameaças. É compreensível que uma ideia tão desarrazoada tenha
templo-tabernáculo foi criado para habitação divina (Ex. 25: 8) e que a principal qualidade do
Deus de Israel naquela época era a santidade (Ex. 15:11, 15: 13), atestada por meio de muitas
epifanias terrificantes (raios, trovões, terremotos, mortandades, etc.). Ora, habitar Deus no
meio do povo implicava uma natural preocupação com a pureza ritual, que neste caso tem o
sentido último de reverência. Mas, a pureza ritual não significava, ela mesma, santidade.
Apenas existia em seu respeito. Contudo, com o passar do tempo, na história da religião de
Israel, houve uma conflação entre as duas coisas e a pureza ritual passou a se confundir com a
Satanás começavam a ser desfeitas, pois Jesus é retratado nos evangelhos como um
restaurador da ordem harmoniosa primordial, tal como na criação do mundo, recém saída das
restauradora. Trata-se da cura da mulher corcunda. Ao se defender das acusações dos Fariseus
por realizar a cura no Sábado, Jesus diz: “por que motivo não se devia tirar deste cativeiro, em
dia de Sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?” (Lc.
13:16).
616
Os profetas já tinham em seu tempo se defrontado com o mesmo problema: “misericórdia quero, não
sacrifício” (Os. 6:6), “não posso suportar iniquidade associada a ajuntamento solene” (Is. 1: 13), “obedecer é
melhor do que o sacrificar” (I Sm. 15: 22).
241
O título messiânico “Filho de Davi” 617 , frequente nos livros de Mateus e Marcos,
também aponta nesta direção. Conquanto aparente, este título nada tem a ver com o messias
guerreiro e dominador das nações, conforme o ensino de outras teologias messiânicas; está
antes ligado ao Messias escatológico restaurador. De fato, sempre que Jesus é assim chamado
nos evangelhos está curando alguém, ou então sendo solicitado como taumaturgo: a cura de
dois cegos (Mt. 9: 27), a cura do endemoninhado cego e mudo (12: 22 e 23), a cura da mulher
cananita (siro-fenícia) (Mt. 15:22), a cura do cego de Jericó (Mt. 20: 30; Mc. 10: 47; Lc. 18:
38). A teologia do filho de Davi restaurador está bem assentada no AT, especialmente nos
escatológico. Ele cura um cego com o lodo feito de terra e de sua própria saliva (Jo. 9: 6),
617
Há exegetas que fazem verdadeiros malabarismos textuais para justificar a conexão entre as curas de Jesus e o
título de Filho de Davi, sem entender sua verdadeira origem. K. Paffenroth – “Jesus, anointed and healing Son
of David in the gospel of Matthew”, Biblica, 80 (1999), pp. 547-554 – por exemplo, relaciona-os baseando-se
em II Samuel 5: 8, onde se lê: “Davi, naquele dia, mandou dizer: todo o que está disposto a ferir os Jebuseus
suba pelo canal subterrâneo e fira os cegos e os coxos a quem a alma de Davi aborrece (por isso se diz nem cego
e nem coxo entrar. na casa)”. O autor se perde em sua argumentação, dizendo que “Jesus é Filho de Davi, por
que ao contrário de Davi [...]”.
618
“Então se abrirão os olhos dos cegos; e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como
cervos; e a língua dos mudos cantará; [...]”. (Is. 35: 5). “Porque te restaurarei a saúde e curarei as tuas chagas, diz
o Senhor”. (Jr. 30: 17) “E eis que trarei saúde e cura e os sararei; e lhes revelarei abundância de paz e segurança”
(Jr. 33: 6).
619
O modus operandi dos milagres de Jesus tem se tornado nos últimos anos um problema para os estudiosos
mais conservadores. Há algumas obras na literatura extracanônica que sugerem um parentesco da taumaturgia de
Jesus com as ações terapêuticas de curandeiros gentios. A biografia de Apolônio de Tiana, de autoria de
Philostratus, apresenta este filósofo taumaturgo e andarilho, supostamente contemporâneo de Jesus, fazendo uma
obra muito parecida à dele. Suetônio, em sua Vida dos césares, relata que quando Vespasiano chegou a
Alexandria, um cego pediu-lhe que untasse seus olhos com saliva para que fosse curado. Os adeptos de que uma
taumaturgia pagã tenha sido adotada por Jesus aplaudem e apresentam estas passagens como indícios favoráveis
às suas ideias (J. D. Crossan. O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo, p. 262). Contudo,
devemos indagar: quando foram escritas estas estórias tão parecidas às de Jesus? Ambas, no segundo século,
quando os evangelhos já estavam concluídos e eram provavelmente conhecidos destes autores. Basta compará-
las com os relatos de um autor contemporâneo a Jesus e testemunha ocular dos fatos descritos, que também trata
de assunto similar, como é o caso de F. Josefo, para quem seu benfeitor e ilustre citado por Suetônio, não realiza
nenhum milagre, mas testemunha de um milagre realizado em sua presença, por certo Eleazar, notório exorcista
judeu. Na descrição de Josefo o taumaturgo faz acompanhar todo o processo de expulsão do demônio por
encantamentos supostamente criados por Salomão (Ant. 8: 46). Nossa atenção é atraída para o fato de não haver
similaridade com os exorcismos realizados por Jesus e o descrito por Josefo, embora Josefo tivesse todas as
razoes para fazê-lo (para ele em Vespasiano cumpriam-se as profecias messiânicas – Guerra 3: 361; 6: 312-313).
A conclusão mais sensata, portanto, será de que os dois autores do segundo século, embora biografem
personagens do século I, foram influenciados pela história de Jesus.
242
numa alusão à criação do homem em Gênesis (2: 7-8), onde Adão é feito do pó da terra. A
mesma linha segue o evangelho de Marcos, onde Ele cura frequentemente com saliva (o
surdo-gago decapolitano: 7: 31-37 e o cego de Betsaida: 8: 22-26). Sua palavra tem poder, tal
como teve a de Deus, ao chamar o mundo e o que nele há à existência. Ele apaziguou a
tempestade (Mt. 8: 24; Mc. 4: 35-41; Lc. 8: 22-25); curou o servo do centurião com uma
palavra (Mt. 8: 5-13; Lc. 7: 1-10); chamou os mortos de volta à vida (a ressurreição da filha
de Jairo em Mt. 9:23-25, Mc. 5: 35-43, Lc. 8: 49-56; a ressurreição de Lázaro em Jo. 11: 1-
46).
Em suma, temos até agora um quadro geral de ações simbólicas (o que não quer dizer
destituídas de conteúdo factual) que antecipam como escatologia inaugurada o que ainda está
no porvir, pois...
A natureza do reino é antecipada e manifesta em suas curas, as quais eram sinais (na
terminologia do evangelho de João) da completude e paz escatológicas: os
exorcismos, que assinalavam a superação do mal; a interpretação revisionista da lei
[cerimonial] como manifestação do paternal amor de Deus acima das tradições; e a
declaração do perdão dos pecadores é uma indicação da inclusão dos Gentios nas
promessas de salvação do concerto [são como uma] antecipação do futuro
companheirismo escatológico que também incluiria as nações. 620
Durante toda a Sua vida e ministério Jesus viveu como judeu entre Judeus. Nos
e missões, sempre em territórios povoados por Judeus (com raras exceções). Em suma, poucas
620
Veli-Matti Kärkkäinen. Christ and reconciliation, p. 98.
243
francamente pagãs621.
E no ápice desta perplexidade está a palavra expressa de Jesus de que: “não fora
enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. (Mt. 10:6 e 15: 24). Geza Vermes
característico do Galileu Jesus622. Já sabemos que não é bom princípio hermenêutico basear
mesma ideia aparece de novo em Paulo: “Digo, pois que Cristo foi constituído ministro da
circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais”
(Rm. 15: 8). J. Jeremias em uma obra já antiga, mas ainda atual, destaca que Jesus realmente
decidiu não colocar os Gentios em Sua agenda missiológica, limitando Suas atividades a
Israel e até proibindo os discípulos de laborarem com os Gentios (Mt. 10: 5-6)623.
Jesus rejeita o sectarismo, mas isto não o impede de anunciar uma mensagem
restauracionista624. Ou seja, a noção de que no final dos tempos Israel seria restaurado, e sua
glória seria maior do que aquela que possuíra em quaisquer de seus períodos históricos. Para
621
Michel Bird acrescenta alguns outros motivos para causar perplexidade a relação de Jesus com o tema: Jesus
especificamente limitou Seu ministério a Israel (Mt. 10: 5-6, 15: 24), jamais chamou discípulos dos territórios
Gentios e até dissuadiu ao endemoninhado que, depois de curado, dispôs-se a segui-lo (Mc. 5: 19-20), os
primeiros líderes da Igreja eram todos Judeus, “o movimento de Jesus não se originou na diáspora, mas no
coração da Palestina”, os primeiros Cristãos tiveram visões desencontradas sobre a inclusão de Gentios em suas
igrejas. (Jesus and the origins of Gentiles mission, p. 1).
622
Ele baseia-se numa passagem do evangelho de Mateus em que se lê: “não deis aos cães o que é santo nem
atireis vossas pérolas aos porcos.” (7: 6), à qual relaciona o relato do encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia
(Marcos 7: 24-30), para concluir que a mulher siro-fenícia é chamada de cão por Jesus (v. 27) por motivo étnico,
e por isso Jesus é um etnófobo dos mais estritos. Vermes tem poucos elementos para sua ilação. Do ponto de
vista exegético, os versículos em questão nada têm a ver um com o outro. Até porque, nem se sabe qual é o
contexto do dito que aparece em Mateus 7: 6, citado pelo historiador húngaro. Ademais, Vermes com certeza
teria dificuldades para contextualizar este suposto chauvinismo de Jesus em sua soteriologia inclusivista
apresentada até aqui. Há entre estas coisas uma contradição tão flagrante que ele terá que admitir que o grande
número de ditos e feitos inclusivistas atribuídos a Jesus devem ser invenção dos redatores, ao passo que este e
alguns outros poucos ditos “chauvinistas” seriam os únicos realmente tributáveis a Ele. Isto significa propor que,
para a composição do Jesus histórico, devemos atirar fora o NT e estudar apenas a literatura rabínica, que
começa a ser escrita só a partir do segundo século de nossa era; não por acaso, a especialidade do scholar citado
(Gèza Vermes. Jesus e mundo do Judaísmo – São Paulo: Loyola, 1996, p. 19).
623
Jesus’ promise to the nations (London: SCM Press, 1958), pp. 11-39.
624
Michel Bird. Jesus and origins of the Gentile mission (London: T&T Clark, 1988), p. 45.
244
Ele a restauração de Israel começava com Seu ministério. Como vimos, a própria taumaturgia
de Jesus era um sinal desta restauração. Outras ações simbólicas o evidenciavam: a criação do
“pequeno rebanho” (Lc. 12:32) 625 e de “os escolhidos” 626 (Mc. 13: 20; Mt. 24: 22),
(Mt. 26: 26-30, Mc. 14: 22-26, Lc. 22: 14-20 e I Co. 11: 23-25)627.
Quando criou Sua comunidade Jesus não tinha em mente um remanescente628, o resto
santo da concepção salvífica exclusiva e elitista dos movimentos religiosos judaicos de Seu
tempo. A concepção de remanescente das seitas judaicas estava voltada para o passado629, e
tinha como objetivo a constituição de uma solidariedade identitária entre a comunidade e seus
progressão irresistível do reino de Deus rumo ao preenchimento de toda a terra. Para Jesus, o
tribulação final (Mc. 13: 24-27, Mt 24: 29-31, Lc. 21: 25-28).
Jesus não pensa neste Novo Israel como um resto ou um minguado grupo de santos que
restou de uma maioria apóstata, que se recolhe à sua fidelidade e espera livramento divino630.
O Novo Israel de Jesus produz uma reversão na história da redenção: o reino de Deus sai da
625
Rebanho é uma metáfora importante do AT para representar o povo de Deus. Ela aparece em Isaías 40: 11;
Jeremias 13: 17; 31: 10, e outros. Mas, a utilização da expressão pequeno rebanho nos leva a pensar que Jesus
não estaria enfatizando o amor e o cuidado do Deus de Israel, antes a condição escatológica do povo de Deus
como remanescente, conforme a profecia de Amós 3: 12, onde se fala de um pastor tirando da boca do leão os
restos de um cordeiro. Ou seja, uma teologia do remanescente, construída durante e após o exílio.
626
A referência aos escolhidos aparece especialmente em Isaías 45:4 "por amor de meu servo Jacó e Israel, meu
escolhido".
627
As bases desta nova aliança já estavam preditas nos profetas, como é o caso de Jeremias 31: 31-34. São duas:
(a) a espiritualização da lei, ou seja, a lei não mais em tábuas de pedra, mas na mente e no coração; (b) o perdão
e a expiação completa dos pecados, dos quais Deus não toma mais conhecimento.
628
“Os doze implicam restauração e não teologia do remanescente” (James Dunn, Op. Cit., p. 510).
629
Joel B. Green, Scot McKight, Howard Marshall. Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 362.
630
Existe um trecho do evangelho de Mateus que parece contradizer este conceito de restauracionismo inclusivo.
Trata-se de Mt. 19: 28-29, que menciona os dozes apóstolos sentando-se em doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel. O que quer que isto signifique, ou seja, qual a natureza deste julgamento escatológico (mais
provavelmente uma remissão ao Juízo vindicativo), esta ocorrência não tem como referência a escatologia
inaugurada de Jesus, mas como diz o próprio texto, a escatologia consumada, o tempo da “regeneração” ou
restauração final.
245
defensiva e vai para a ofensiva. Em vez de decrescer ele cresce. É como a semente (Mc. 4: 26-
29); como um grão de mostarda, que originalmente é a menor das sementes, mas torna-se a
maior das hortaliças (Mc. 4: 31, Mt. 13: 31, Lc. 13: 19); é como o fermento que faz a massa
crescer misteriosamente (Mt. 13: 33 e Lc. 13: 21). não substitui o antigo, mas o amplia e o
envolve.
Esta nova comunidade não vem à existência para se constituir como guarda ou depósito
dos oráculos divinos e para se resguardar contra a impiedade generalizada. Jesus abole este
conceito de santidade e cria uma comunidade para ser o arauto do convite de Deus a uma festa
em que os convidados são o grande Israel escatológico que abrange tanto Judeus quanto
Gentios 631 . Ou seja, os que chamados não o são para serem o povo de Deus, mas para
proclamarem as boas novas de uma salvação universal 632 para todos os que a ouvirem e
atenderem, sejam quem forem: os ricos (o chamado do jovem rico – Mt. 19: 16-22, Mc. 10:
17-22, Lc. 18: 18-23), os pobres, os cegos, os aleijados e os coxos (Lc. 14: 15-24)633.
ensinam quatro grandes lições de como Sua comunidade deveria se relacionar com o mundo,
não sendo perceptível em nenhuma delas algum tipo de isolamento ou sectarismo. Sua
comunidade deveria ser sal para purificar, luz para guiar, árvore para abrigar e fermento para
fazer crescer o reino de Deus. Seu papel não é definido em antagonismo aos de fora, mas por
631
Diversos textos messiânicos dos profetas explicitamente faltam deste Grande Israel que inclui os Gentios. Em
Isaías: 11: 10, 42: 1 e 6, 49: 6 e 22, 60: 3, 5, 11, 16; em Zacarias 14: 16 em Malaquias 1: 11. Além disso, há
passagens no AT que refletem a expectativa de que os Gentios finalmente iriam reconhecem Yahweh como Deus
(Dn. 3: 28, 4: 1-37, 6: 26-28; Sl. 66: 1-20, 22: 27-28, 46: 10, 47: 8, 96: 7-10, 98: 2, 117: 1-2; Ez. 39: 7). Gerd
Theissen e Annette Merz opinam quanto ao universalismo jesuíno não se tratasse de um programa missiológico a
concretizar-se por etapas: primeiro os Judeus excluídos e depois os Gentios, mas do restauracionismo clássico,
segundo o qual, Israel exerceria uma atração sobre todos os povos, pela inauguração de uma peregrinação
universal a Jerusalém (O Jesus histórico, p. 167). Como adepto da metodologia das pesquisas do Jesus histórico,
Theissen e Merz acham que o programa missiológico explicitado no final dos Sinóticos não é material originário
de Jesus, mas acréscimo redacional.
632
O verbo chamar (kaleo no grego koiné) designa a missão do servo que transmite o convite para uma festa.
Jesus é o arauto da parábola, encarregado por Deus de criar uma comunidade inclusiva.
633
A referência veterotestamentária deste texto é Jeremias 31: 7-10. Especialmente o verso 8: “Eis que os trarei
da terra do norte e os congregarei das extremidades da terra, e, entre eles, também os cegos e os aleijados, as
mulheres grávidas e as de parto; em grande congregação voltarão para aqui”.
246
uma ação transformadora sobre eles. Mesmo as noções negativas, como por exemplo, o
por uma comunidade israelita inclusiva: os bons Judeus, os maus (da perspectiva cúltica e
moral), e os Gentios636, não se tratando, portanto, de uma comunidade étnica, como a maioria
dos contemporâneos pensava (Sir. 48: 10). Jesus ter sido enviado apenas às ovelhas perdidas
da casa de Israel significa apenas parte de seu programa missiológico637, que de acordo com
sua escatologia realizada, já pode ser percebida em Seu próprio ministério, como antecipação
foi pioneiramente defendida por Norman Perrin 638 . A ideia depois acabou adotada pela
maioria dos scholars do Novo Testamento 639 . Obviamente, variando quanto ao seu exato
634
1Enoque 80: 2; Jubileu 7; 29, 16: 26, 22: 13, 270, 31: 20; 4Esdras 4: 28-32; Apocalipse de Baruque 42: 4-5;
CD 2: 11-12.
635
“[...] Queres que vamos e arranquemos o joio? Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio, não arranqueis
também com ele o trigo. Deixai crescer juntos até a colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai
primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado, mas ao trigo, recolhei-o ao meu celeiro.” (Mt. 13: 29-30).
636
“O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede que lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie [...].”
(Mt. 13: 47-50).
637
T. W. Manson defendeu que ao Jesus direcionar Sua pregação primeiro para Israel com isto não quis significa
só para os Judeus, no que está correto. Quanto a dizer que Jesus alimentava a esperança que a transformação de
seu próprio povo iria produzir uma reação em cadeia e acabar transformando o mundo inteiro, é uma conclusão
pífia diante do que se lê nas páginas dos evangelhos. (Only to the house of Israel – Philadelphia, Fortress Press,
1964, pp. 23-24). Não se trata de uma “esperança”, mas de um programa missiológico, inteiramente condizente
com o resto de Sua mensagem sobre o reino de Deus.
638
Rediscovering the Teaching of Jesus (New York: Harpers and Row, 1967), pp. 46, 104-108.
639
James Breech. The silence of Jesus: the authentic voice of the historical man (Philadelphia: Fortress, 1985);
Richard Horsley. Jesus and the spiral of violence. Popular Jewish resistance in Roman Palestine (New York:
Harper & Row, 1987); Marcus Borg. Conflict, holiness and politics in the teaching of Jesus (Studies in Bible and
247
significado. Não gostaríamos de ingressar nesta discussão, mas de antemão marcar nossa
religioso640, deixando com isto, a um lado, os primeiros que enfatizam mais o aspecto político
e econômico641.
Como já defendeu Perrin, o fato de Jesus ter oferecido o companheirismo de mesa aos
impostos, indivíduos impuros (aqueles que não observavam as normas haláquicas), não se
constitui como algo um elemento marginal de seu programa messiânico. Era tão importante e
tomava tanto tempo a ponto de ter sido chamado de “glutão e amigo dos pecadores” (Mt. 11:
16-19).
Perrin só não explicou satisfatoriamente por que era tão importante. O que ele diz é que
a base teológica deste ensino é o banquete messiânico (Mt. 8: 11; Lc. 13: 28-29)642 também
presente nas expectativas escatológicas e messiânicas do primeiro século, por sua vez,
inspiradas em Isaías 25: 6 - 9643 e Zacarias 8:7–8, 20–23644, onde os Gentios comparecem
como convidados de última hora, convertidos pelas maravilhas operadas por Deus nos últimos
Early Christianity 5, New York and Toronto: Edwin Miller, 1984); J. D. Crossan. The historical Jesus. The life
of a Mediterranean Jewish peasant (San Francisco: Harper, 1991).
640
Gunter Bornkamm. Jesus of Nazareth (New York: Harper & Row, 1960); Joachim Jeremias. The parables of
Jesus (London: SCM, 1963); New Testament Theology: the proclamation of Jesus (New York: Charles
Scribner’s, 1971); Géza Vermes. Jesus, the Jew: a historian reading of the Gospels (London: Willian Collins,
1973); Martin Hengel. The charismatic leader and his followers (New York: Crossroad, 1981).
641
A mesa aberta segundo a interpretação de J. D. Crossan não tem qualquer enfoque religioso, num chamado ao
arrependimento, por exemplo, mas na restauração do reino de Israel com base num “igualitarismo radical” que
Jesus pretendia estabelecer entre seus seguidores (O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo, p.
66-74).
642
Norman Perrin. Rediscovering the Teaching of Jesus, pp. 102 – 118.
643
“Neste monte o Senhor dos Exércitos fará para todos os povos uma festa de coisas gordurosas, um festa de
vinho, de coisas gordurosas cheias de, uma festa com vinhos velhos, pratos gordurosos com tutanos e vinhos
velhos bem clarificados. Destruirá neste monte a coberta que envolve todos os povos e o véu que está posto
sobre todas as nações. Tragará a morte para sempre, e, assim, enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os
rostos, e tirará de toda a terra o opróbrio de seu povo, porque o Senhor falou. [...].”
644
“E assim diz o Senhor dos Exércitos: Eis que salvarei o meu povo, tirando-o da terra do Oriente e da terra do
Ocidente; e eu os trarei, e habitarão em Jerusalém; eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus, em verdade e
em justiça. [...].”
248
tempos. Jesus provavelmente fala destes Gentios em Mateus 8: 11–12645 e Lucas 13: 28-29646.
descendentes de Abraão segundo a carne, o que, se levarmos em conta o dito de Jesus de que
Ele “não fora enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt. 10: 6 e 15: 24),
acreditavam no retorno literal das dez tribos setentrionais perdidas, para assim ser restaurada a
glória original de Israel (Jr. 30: 2, 31: 1; Ez. 37: 19-28)), para Jesus não desempenha qualquer
papel em sua escatologia. Para Jesus, Israel não seria restaurado senão num plano espiritual.
As tribos perdidas de Israel não seriam reunidas a Judá, Benjamim e Levi, vindas de um
remoto Oriente. Elas já viviam nas cercanias das que não se perderam. Eram as populações
meio dos Judeus. “As ovelhas perdidas da casa de Israel” são os excluídos da santa
congregação, aqueles que por algum motivo ritual, moral ou ético não eram admitidos nas
A menção, portanto, da perdição dos filhos de Abraão, não se dá por sua falta de
qualificação espiritual, pelo menos não da perspectiva humana. Eles são rejeitados porque não
atenderam ao chamado do rei ao banquete escatológico. A mesa aberta, portanto, é uma ação
do Israel escatológico que abrange Judeus praticantes, Judeus não praticantes e Gentios647. B.
645
“Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no
reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de
dentes.”
646
“Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes no reino de Deus, Abraão, Isaque e Jacó e todos os
profetas; mas vós, lançados fora. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à
mesa no reino de Deus.”
647
Ressalte-se que a comensalidade aberta de Jesus não o é meramente do ponto de vista haláquico. Pois seus
convidados não são apenas o povo da terra que não respeita todas as leis rituais, dietéticas e sabáticas. Mas
todos, “maus e bons, e a sala do banquete ficou repleta de convidados”. (Mt. 22: 10). E Jesus mesmo o
249
Pitre fecha a questão ao lembrar que a passagem que serve de base para o dito de Jesus é
Isaías 25: 6 – 9648, onde o profeta descreve o banquete escatológico como “para todos os
povos” e, além disto, também o mencionam Isaías 43: 5 – 9649 e Zacarias 8: 7 – 8; 20 – 23.
escatológico é formado por dois grupos de pessoas: os Judeus e a grande multidão, formada
por todos os povos. E ainda pode se aderir como nota explicativa à pergunta: que tipo de
Judeus? O fato de o vidente de Patmos não se referir por ‘israelita’ aos meramente nascidos
dentro desta classificação étnica, pois as doze tribos de Israel listadas por João não há nem
Rubenitas nem Danitas. Os primeiros, herdeiros do patriarca que subiu ao leito de seu pai,
coabitando com concubina de seu pai Jacó; e os segundos, notórios idólatras. Trata-se,
portanto, de um Israel espiritual, que por isso está de conformidade com o ensino de Jesus.
Vale lembrar que na versão mateana da parábola das bodas a sala do banquete
escatológico é pré-advento, o Juízo ocorre depois quando o rei vem ver os convivas (Mt. 22:
11). É neste momento que um dos convidados achado sem veste nupcial é expulso da festa,
por soberba espiritual, porque rejeitara a túnica especialmente fornecida pelo rei para seus
convidados. A lição parece muito clara. Não há nenhum tipo de exclusão aqui. Todos são
potencialmente salvos, depende de cada um tanto quanto do rei que faz o convite. E ao que
parece, a única coisa capaz de tornar alguém inabilitado para a ceia escatológica é a soberba
demonstrou admitindo em sua mesa pessoas com sérios problemas morais: Maria Madalena, Judas Iscariotes,
Simão, o Fariseu, Zaqueu, etc.
648
Brent PITRE. “Jesus, the Messianic Banquet, and the Kingdom of God” (Letter & Spirit, 5, 2009), p. 142.
649
“Não temais, pois, porque sou contigo; trarei a tua descendência desde o Oriente e os ajuntarei desde o
Ocidente. [...]. Trazei meus filhos de longe e minhas filhas, das extremidades da terra. Trazei o povo que ainda
que tendo olhos é cego e surdo, ainda que tendo ouvidos. Todas as nações congreguem-se e povos, reúnam-se
[...]”.
250
concluir sobre sua importância. O problema é que cada uma delas tem uma cronologia
diferente: Os Sinóticos situam o evento na última semana do Senhor antes de sua morte; João,
logo no início de Seu ministério. Além disto, cada um enfatiza um aspecto deste evento, tendo
como ponto de partida certo significado teológico que lhe é peculiar. Em primeiro lugar trata-
próprio templo? O corpo ressurreto de Jesus? Uma nova realidade que podemos chamar
escatológica? Em suma, cada um dos evangelhos traz uma interpretação diferente, e embora
todas sejam válidas, pensamos que seu denominador comum seja o sentido escatológico.
simbólica do templo a partir do texto de Marcos, que elegem como o mais antigo e confiável.
Segundo sua interpretação o que Marcos diz sobre a purificação do templo deve ser
interpretado à luz da maldição da figueira estéril, a qual aponta para a destruição do templo,
ocorrida 30 ou 40 anos depois. A intenção de Marcos era demonstrar que a aliança das
autoridades do templo com os romanos era condenada por Jesus, e que, portanto, Jesus era um
revolucionário, um socialista radical (não no sentido marxista, é claro), para quem os códigos
Por mais que os scholars acima tenham uma reputação de erudição inquestionável e
sejam capazes de agregar uma quantidade imensa de informações históricas em seus textos,
não podemos deixar de reconhecer que sua conclusão é teologicamente pobre e não faz justiça
às fontes.
650
John Domic Crossan e Marcus Borg. The last week. A day-by-day account of Jesus’ final week in Jerusalem
(San Francisco: Harper San Francisco, 2006), capítulo II.
251
Nos Sinóticos a referência escriturística é e Isaías 56:7: “minha casa será chamada de
casa de oração para todos os povos”651. Mas, enquanto Marcos reproduz na íntegra o texto de
Isaías, Lucas e Mateus omitem a última parte do verso: “para todos os povos” (Mt. 21: 13, Lc.
19: 46). Estão certos os scholars do Jesus’ Seminar, em pensar que Marcos foi consultado
pelas outras redações. Esta hipótese se reforça de vez que a redação de João sobre o
acontecimento (Jo 2: 13-22): “não façais da casa de meu Pai casa de negócio”, parece
relacionada a outra tradição da purificação, que, ancorada em Zacarias 14: 20-21652, enfatiza o
anúncio do fim da necessidade de mediação litúrgica por meio do templo, versão muito mais
afinada com o propósito teológico geral da redação joanina de espiritualizar toda a liturgia do
templo concentrando-a no corpo de Jesus, o único templo que resta na nova dispensação653.
A redação de Marcos não defende que Jesus tenha pretendido uma destruição do
Templo. Isto não se coaduna com o quadro geral da pregação de Jesus, como vimos
demonstrando até agora. Jesus não defendeu uma destruição do templo, mas sua purificação
escatológica, e uma mudança de sua natureza. Primeiramente não é casual que os Sinóticos
tenham preferido Isaías 56: 7 a Jeremias 7: 11, embora não compartilhassem os mesmos
todos, dado que no tempo de suas redações o templo já havia sido destruído. Para Marcos,
escrito antes de 70 d. C., a referência aponta para seu universalismo (a ser analisado mais
651
Apesar de Jeremias 7: 11: “será esta casa que se chama pelo meu nome um covil de salteadores aos vossos
olhos?”
652
“Naquele dia será gravado nas campainhas dos cavalos: Santo ao SENHOR; e as panelas da casa do
SENHOR serão como as bacias do altar; sim, todas as panelas em Jerusalém e Judá serão santas ao SENHOR
dos Exércitos; todos os que oferecem sacrifícios virão, lançarão mão delas e nelas cozerão a carne do sacrifício.
Naquele dia já não haverá mercador na Casa do SENHOR dos Exércitos.” (destaque nosso).
653
Isto é uma constante na redação joanina: Jesus é o pão que desceu do céu (Jo. 6: 35), Jesus é a água da qual se
bebe e não se torna a ter sede (Jo. 7: 37), Jesus é a luz da vida (Jo. 8: 12), segundo a cronologia de Jesus os
discípulos não comeram a páscoa na noite anterior à morte de Jesus, mas a páscoa coincidiu com o dia em que
foi pendurado no madeiro (Jo. 19: 14). Ou seja, todos os elementos litúrgicos do templo estão personificados em
Cristo. Ora, é bem coerente com o propósito geral do evangelho de João que a purificação do templo ocorresse
no início do ministério de Jesus. O templo tinha que ser abolido para que o verdadeiro templo pudesse ser
vislumbrado: a própria pessoa de Cristo.
252
adiante)654. Porque o reino de Deus tinha chegado não fazia sentido que o pátio dos gentios
trocavam as moedas correntes pelo dinheiro do templo, etc.) permanecesse assim profanado,
pois chegara o tempo de o mundo inteiro se irmanar na adoração do Deus que Jesus
referência à proibição imposta por Jesus àqueles que ainda insistiam em conduzir utensílios
através do templo. Isto significava que Jesus não só purificou o templo, como também
destituiu todo o serviço cúltico655, implantando em seu lugar uma casa de oração para todos os
povos.
Escrituras. Não podemos esquecer que foi a leitura grega do Antigo e Novo Testamento, a
paradigmática que nos impacta até hoje: o logocentrismo, ou seja, a exagerada preocupação
com o discurso e a falta de ênfase com a práxis religiosa. No Antigo Testamento, por
exemplo, não existe nenhuma palavra que de longe evoque a carga semântica que carrega o
A congênere mais próxima é yare ‘temor’, mas como noção abstrata geralmetne
significa susto ou temor. Quando usado como designação aproximada para fé
regularmente é seguida pelo objeto divino relacionado, a saber, ‘o temor de
Yahweh’, ou o temor de algum outro deus/outros deuses. O hebraico bíblico também
carece de uma palavra para religião. Ao invés, a devoção religiosa é concretizada
com uma expressão específica, tal como histahawa lipne ‘prostrar-se diante de uma
deidade’, hithalek/ hallak lipne ‘andar diante de uma deidade’, hallak `aharê ‘andar
654
Andrea Spatafora. From the “temple of God” to God of the temple (Roma: Gregorian University Press),
1997), p. 89.
655
Andrea Spatafora. From “the temple of God” to God as the temple, p. 89.
253
após, seguir uma deidade, abad ‘servir uma deidade’, pelah servir, adorar,
reverenciar, ministrar a uma deidade656.
dos apóstolos naturalmente reforça o aspecto doutrinal das religiosidades daquele tempo. As
discussões sobre filigranas teológicas exerciam grande fascínio sobre a imaginação dos
As mensagens de Jesus são dominadas por temas práticos e nem por isso menos importantes.
Seu pensamento está voltado para o futuro, a concretização das esperanças escatológicas, e
denominacionais; apenas dois grupos, o dos salvos e o dos perdidos. A parábola do joio e do
trigo, em que ambos crescem juntos até o dia do Juízo (Mt. 13: 24-30), a parábola dos peixes
bons e maus separados somente ao tempo do ajuste de contas final (Mt. 13: 47-50), a parábola
dos lavradores maus que têm sua retribuição apenas com a chegada do dono da vinha (Mc. 12:
1-12, Mt. 21: 33-4, Lc. 20: 9-19), a parábola das dez virgens (Mt. 25: 1-13) e a parábola dos
talentos (Mt. 25: 14-30), em ambas o leitor é capaz de distinguir entre os bons e os maus. A
redação de Lucas, porém, enfatiza a absoluta impossibilidade de se saber qualquer coisa sobre
a identidade de uns e de outros: “estarão dois numa cama, um será tomado e o outro deixado”,
“estarão dois no campo, um será tomado e o outro deixado” (Lc. 17: 34-36). Por tudo isto,
pode-se concluir que o Juízo divino é inescrutável e que não há nenhuma forma de antecipá-
lo, senão pelo critério acima e segundo o escrutínio divino, que é o único capaz de por sob
656
Daniel Block. “The other religions in Old Testament Theology”. In David W Baker (edt.). Biblical faith and
other religions. An evangelical assessment (Grand Rapids: Kregel Publications, 2004), p. 44.
254
De fato, como vocativo de Deus o termo Pai é fundamental nos ensinos de Jesus.
Certamente isto está atrelado, primeiramente à sua consciência messiânica e em segundo lugar
às suas ideias restauracionistas 658 . Não há, no entanto, (como poderia nos interessar na
paternidade divina ser entendida como universal. As passagens bíblicas que existem parecem
indicar o contrário: esta relação ser restrita a Israel e expressamente excludente quanto aos
Gentios659 (Mt. 15: 21-28 e Mc. 7: 24-30)660. Por outro lado, conforme já apresentamos o
657
O aparato crítico relacionado a esta questão abrange um longo período de discussões que remontam ao
Dicionário teológico do Novo Testamento (editado em língua inglesa como Teological Dictionary of the New
Testament – Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1985) de Gerhard Kittel e seus nove volumes publicados
entre 1933-73 na Alemanha, passando pelas obras de J. Jeremias (The central message of the New Testament –
New York, Charles Scribners’ Sons, 1965; The prayers of Jesus – Naperville, IL: Alec R. Allenson, 1967; New
Testament Theology – New York: Charles Scribners’ Sons, 1971), de Geza Vermes (Jesus e o mundo do
Judaísmo – São Paulo: Loyola, 1996), do grupo de teólogos do Jesus Seminar, neste caso Mary Rose D’ângelo.
“Abba and Father: imperial theology in contexts of Jesus and the Gospels” in Amy-Jill Levine, Dale C. Allison
Jr., John Dominic Crossan. The historical Jesus in context (Princeton: Princeton University Press, 2006), além de
muitos outros que tornariam nossa lista impraticável numa obra destas proporções. Entretanto, a este respeito, a
divergência teórica pode ser dividida em três grupos: (a) os dois primeiros que acentuam a descontinuidade entre
Jesus e seu tempo, concluindo por um uso jesuíno exclusivo do termo; (b) o segundo, que acentua a
continuidade, aproximando Jesus do Judaísmo de Seu tempo; (c) os terceiros, que enfatizam a continuidade,
contextualizando Jesus na cultura Greco-romana da época. Vejo esta discussão como supérflua, visto que provar
que havia outras fontes em que Abba era uma expressão usual só indica que Jesus não era um extraterrestre ou
uma aparição fantasmagórica à moda docética. O que importa é o uso teológico do termo, o que no caso de Jesus
é plenamente demonstrável, ou seja, Abba tem um papel fundamental nos ensinos de Jesus e nas demais
remissões (literatura Greco-romana e rabínica) esta conclusão está atrelada a elementos circunstanciais.
658
Em Mateus aparece como autoconsciência de Jesus 19 vezes e referente aos discípulos 20 vezes; em Marcos é
mais raro: uma vez referida à autoconsciência e três vezes, aos discípulos; em Lucas são sete vezes relacionadas
aos discípulos e sete, à autoconsciência de Jesus; no texto joânico é o vocativo predileto de Jesus, nada menos do
que 81 vezes, com relação aos discípulos, só três vezes.
659
Scot McKight. A new vision for Israel. The teachings of Jesus in a national context (Grand Rapids, MI: Wm.
B. Eerdmans, 1999), p. 64.
660
Embora a redação mateana queira marcar de forma acentuada separação Israel – Gentios, fazendo com que
Jesus pronuncie uma palavra altamente ofensiva aos ouvidos dos ocidentais contemporâneos a mulher
estrangeira (cananita) que lhe pedia um milagre: “porque não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos” (15: 26); não sem antes afirmar peremptoriamente: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da
casa de Israel” (15: 24). A versão marcana suaviza a clivagem. Primeiramente construindo certa cumplicidade
entre Jesus e a siro-fenícia, já que em Mateus Jesus só está passando pelas terras gentílicas (Mt. 15: 21-23), ao
passo que em Marcos entra em uma casa (Mc. 7: 24). Em seguida a própria resposta de Jesus em Marcos tem um
teor mais suave ligado ao tempo e não à essência: “deixa primeiro que se fartem os filhos, porque não é bom
tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos” (Mc. 7: 27). Não há uma diferença muito expressiva entre as
duas redações, mas a de Mateus é mais etnofóbica, de certo mais voltada para um público judaico-cristão e a de
Marcos para um estrato siro-palestinense.
255
populações infames más praticantes do Judaísmo, da perspectiva moral e cúltica, o que nos
O capítulo 15 do evangelho de Lucas, por exemplo, é mais do que três parábolas sobre
coisas perdidas, retrata, na verdade, a alegria de Deus pelo que estava perdido e foi
encontrado e por outro aspecto também retrata a missão de Jesus. As parábolas ensinam entre
outras coisas: (a) o amor de Deus, (b) o valor do que estava perdido e (c) e o fato de que,
infelizmente, nem todos se alegravam com os perdidos recuperados. A última lição ocorre
especificamente na parábola do filho pródigo, que na verdade devia se chamar a parábola dos
dois filhos, o mais velho e o mais moço661. O mais velho representa os Judeus praticantes; o
desprezados pelos Fariseus. A parábola retrata o desgosto dos adeptos do sectarismo pelo fato
de estes maus Judeus serem chamados a herdar a salvação, como eles, na mesma condição de
filhos, da mesma maneira como na parábola o filho mais velho e justo enche-se de ira contra o
Pai por este ter recebido com festa aquele que havia dissipado seus bens em orgias. Segundo
seu conceito de justiça, o filho mais novo deveria ser tratado como empregado, como inferior,
por paga de seus maus atos (Lc. 15: 29-30). Mas, o Pai não aceitou os argumentos de seu filho
Por tudo isto, Abba pode sim ser interpretada como paternidade universal de Deus, à
medida que Israel, ou a salvação das “ovelhas perdidas da casa de Israel” são a primeira etapa
661
Na redação mateana, a mesma parábola ocorre numa versão mais resumida. Também são dois filhos, um se
declara obediente (os Judeus praticantes), mas age de modo contrário ao mandato do Pai; ao passo que o outro
que se diz rebelde (os maus Judeus), vai e cumpre o mandato do Pai (Mt. 21: 29-31). A ordem era que todos
fossem responsivos ao amor do Pai. Porém, enquanto os Fariseus e outros sectários faziam de sua religiosidade
seu próprio Deus e os demais viviam como se não houvesse Deus, quando Jesus estende Seu apelo a Israel,
surpreendentemente, são os últimos que atendem (Mt. 22: 1-14).
662
Outra parábola que ensina esta mesma lição é a dos trabalhadores da vinha (Mt. 20: 1-16), em que os
trabalhadores que laboraram o dia inteiro ganham o mesmo salário dos que chegaram por último e trabalharam
apenas uma hora, e se revoltam por isso. Trata-se de mais um exemplo de como Jesus condena e denuncia o
comportamento sectário dos Judeus. O salário é a salvação e ela é igual para todos, não diz respeito a tempo de
serviço, eleição, mas à graça divina.
256
5.e.1. Marcos663
Por tudo o que foi afirmado nas páginas precedentes, cremos ser o evangelho de Marcos
o mais fiel ao expor o programa de Jesus, aquele que melhor captou seu projeto missiológico.
A estrutura literária do evangelho de Marcos, pelo menos em suas linhas mestras, é simples,
de fácil percepção. Há duas concentrações ao redor das quais orbitam todo o texto, uma
temporal e outra geográfica. (a) A temporal faz com que um terço do livro se concentre na
16 (a partir do verso 9) sobre a ressurreição, ausente nos mais antigos manuscritos, os unciais
663
A maioria dos estudiosos concorda com a assim chamada hipótese das duas fontes, segundo a qual a redação
dos evangelhos de Mateus e Lucas foi feita tendo por base o texto marcano e Q. A prioridade marcana e a
existência de Q são deduzidos indiretamente. Conforme a argumentação de J. D. Crossan, de serem os versos 8,
9 e 10 de Mateus, capítulo 3 idênticos aos versos 8 e 9 de Lucas 3, e se desconhecerem mutuamente, não sendo
ainda a perícope encontrável em Marcos, depreende-se que Lucas e Mateus devem haver dependido de outra
fonte, ou seja, Q (J. D. Crossan. The birth of Christianity – San Francisco/New York: Harper, 1998, p. 105).
Estes são os principais argumentos para a prioridade marcana: (a) Argumento a partir da omissão. É mais fácil
admitir que certos materiais (relatos sobre a infância e o Sermão da Montanha) tenham sido acrescentados por
Lucas e Mateus ao texto de Marcos do que supor que tenham sido suprimidos pelo último ao material destes (b)
Argumento a partir da extensão. É mais fácil pensar que Mateus e Lucas tenham usado seu próprio material para
expandir Marcos do que imaginar que este tenha resumido aqueles. (c) Argumento a partir da dicção. É mais
fácil pensar que Mateus e Lucas tenham refinando os coloquialismos de Marcos do que pensar que Marcos tenha
tentado tornar Mateus e Lucas menos literários. (d) Argumento a partir da gramática. É mais provável que
Mateus e Lucas tenham tentado melhorar a gramática de Marcos do que imaginar que Marcos tenha procurado
deliberadamente piorar o grego deles (e) Argumento a partir das expressões aramaicas. É mais provável que
Mateus e Lucas tenham removido os aramaísmos do texto de Marcos por causa de sua audiência gentílica do que
do que pensar que Marcos os tenha acrescentado aos textos de Mateus e Lucas. (f) Argumento a partir da
redundância. É mais fácil ver Mateus e Lucas eliminando as redundâncias de Marcos do que Marcos criando
redundâncias nos textos de Mateus e Lucas. (g) Argumento a partir do embaraço. É mais fácil ver Lucas e
Mateus tentando amenizar as passagens difíceis de Marcos (“Deus meu, por que me desamparaste?”) do que
pensar em Marcos inserindo-as ao texto dos citados. (h) Argumento a partir da ordem. É mais fácil entender as
específicas divergências de Mateus e Lucas quanto à ordem a partir de Marcos do que vice-versa. (i) Argumento
a partir da concordância literária. Isto explica como Mateus e Lucas parecem ocasionalmente ser referir a um
material omitido de Marcos. (k) Argumento a partir da redação. É mais fácil pensar em Mateus acrescentando
suas ênfases redacionais do que em Marcos removendo-as (l) Argumento a partir da teologia. É mais provável
que o uso mais frequente do pronome de tratamento Senhor tenha se desenvolvido posteriormente a Marcos, que
o faz apenas uma vez. (Robert H. Stein. The Synoptic Problem. An Introduction – Grand Rapids, MI: Baker,
1987, pp. 48-86).
257
eventos descritos do capítulo 1: 16 até o 7: 13, ou seja, praticamente metade do texto. Esta
região era o centro irradiador do ministério de Jesus, uma Galileia estendida que abarca
cidades gentílicas: Decápolis e Tiro e Sidon, onde, segundo o evangelista, Jesus também
atuou665.
A importância dos Gentios é tal no texto de Marcos que os estudiosos creem que
segundo sua teologia a missão aos Gentios começara mesmo com Jesus666, sendo alguns de
seus indícios a cura do endemoninhado de Gadara ou Gerasa, tendo Jesus lhe dado como
missão, não o seguimento, mas a sua permanência ali, falando do que o Senhor havia feito por
ele (Mc. 5: 19). Além disso, Jesus fez outras curas em terras gentílicas, especialmente no
território de Tiro: a cura da mulher siro-fenícia, a cura do surdo e gago. A importância disto
fica demonstrada na assim chamada segunda multiplicação dos pães (Mc. 8: 1-10), desta vez
em território gentílico, que ocorre logo em seguida a cura do gago. O significado deste duplo
marcano é enfatizar que a mesa escatológica, representada pelo ato simbólico de Jesus ao
multiplicar os pães e peixes, não era só para os Judeus, mas também para os Gentios667.
Galileia representa para a comunidade marcana que não só os Judeus, mas todas as
Um passo além na expansão da igreja por todo o mundo. Os discípulos fieis a seu
mestre terão que sair dos estreitos limites do Cristianismo judaizante e lançar-se à
pregação e atuação em meio a outros povos, sem pensar se estes são ou já não são
estritamente Judeus668.
664
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. Teología de los evangelios de Jesús (Salamanca: Ediciones Sígueme,
1977), p. 63.
665
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. Teología de los evangelios de Jesús, p. 62-64 .
666
Gerd Theissen. “Les quatre phases de la naissance du Nouveau Testament” (RHPR, vol. 87, 2007), p. 25.
667
David Sim. “Matthew, Paul and the origin and nature of the gentile mission: the great commission of
Matthew 28: 16-20 as anti-pauline tradition” (HTS, no. 64, I, 2008), p. 383.
668
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. Op. Cit., p. 63.
258
Esta descrição inclusiva do ministério de Jesus somada ao papel pífio que discípulos e
que é sua linha mestra. Com efeito, “a presença marcante Gentios em suas páginas”669, fica
obra de Jesus, apesar de ser esperado que pelo convívio deles com Jesus viessem a aprender
algo com o passar do tempo: primeiro eles são falhos em perceber a real grandeza de seu
mestre (Mc 1:16 – 8: 26); depois foi-lhes revelado pelo Espírito quem era Jesus (a confissão
8:27 – 14: 9); e, por fim, houve a rejeição quando declarou claramente sobre que sorte de
morte deveria morrer, sendo ele o messias (Mc. 14: 10-72) ) 671 . Além do péssimo
dorminhocos e glutões. Até que a preocupação com a própria vida culmine com o
669
William R. Telford. “Mark’s portrait of Jesus”. In Delbert Burkett. The son of man debate (Cambridge:
Cambridge University Press, 1999), pp. 18-19.
670
Leif E. Vaage. “El evangelio de Marcos: una interpretación ideológica particular dentro de los cristianos
originarios de Siria-Palestina” – Ribla (no. 29, Quito, 1998), p. 23.
671
Cf. T J. Weeden. “La herejia que exigió al evangelio de Marcos”. In Rafael Monasterio e Antonio R.
Carmona, p. 112.
259
“verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (Mc. 15:39). Por fim, no encerramento do
mãe de Jesus, Maria Madalena e as outras, percebendo que ele não estava mais lá e recebendo
em seguida a ordem do anjo de comunicar aos discípulos e a Pedro que Jesus havia
ressuscitado e os precedia na Galileia, nada disso fizeram, ficando caladas, “porque temiam”
(Mc. 16: 8). Para muitos estudiosos, é assim, desta forma estranha e em suspense que termina
É evidente que estas duas coisas têm relação, como conclui Francisco de la Calle. Havia
crentes que sua missão evangelística era dirigida ao mundo, os segundos ainda se entendiam
como seita judaica672 e à sua missão como igreja, restrita a anunciar Jesus aos Judeus, como
atesta também Paulo em seus escritos (Rm. 11: 13; Gl 11: 16).
Portanto, o aparente exclusivismo de Jesus tendo Ele declarado que “não fora enviado
senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt. 10: 6 e 15: 24), na verdade não é
que começa com as parcelas populacionais israelitas religiosamente excluídas e termina com a
inclusão de todos no reino. A agenda do reino de Deus segundo Jesus é gradual. Não há duas
agendas uma de Jesus entre os Judeus e outra dos discípulos mandados aos confins da terra
Jesus até nossos dias. Não esquecer que o Israel escatológico para Jesus envolve todos os
filhos de Deus.
672
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. La teología de los evangelios de Jesús, p. 62.
673
Esta agenda do reino de Deus em dois tempos é mais perceptível no evangelho de Mateus, pois aí aparece
Jesus fortemente recomendando aos discípulos, ao enviá-los em missão, que não fossem aos Gentios nem aos
Samaritanos (Mt. 10: 5); por outro lado, depois da morte e ressurreição de Jesus, é neste evangelho que ocorre a
assim chamada grande comissão: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt. 28: 19).
260
Também não pode ser chamado de projeto inclusivista, na acepção forte da palavra,
conforme visto no capítulo 3. Primeiro, porque o projeto de Jesus não parte de uma
que são chamados não são integrados aos primeiros ocupantes dos assentos no banquete. É
dito que muitos filhos de Abraão seriam atirados fora, o que denota a ausência de privilégios.
O dito “um será tomado e o outro deixado” também aponta para a natureza misteriosa da
salvação escatológica, que neste caso não tem qualquer indicativo exterior, tal como a adesão
5.e.2. Mateus
O que foi dito mais acima sobre a condição mutante das comunidades destinatárias dos
viam em meio a estas mudanças já foi objeto de estudo de muitos eruditos 675 . Não será
oportuno discutir amplamente esta questão neste lugar. Resta-nos apenas destacar que a
ambiguidade quanto aos Gentios na redação mateana são reflexos de problemas com sua
674
Eugen Laverdiere e William Thompson. “New Testament communities in transition: a study of Matthew and
Luke”, pp. 570-571.
675
Anders Runesson. “Rethinking early Jewish-Christian relation: matthean community history as farisaic
intragroup conflict” (JBL, vol. 127:1, Spring – 2008); Anthony Saldarini. Mathew’s Christian – Jewish
community, Chicago: University of Chicago Press, 1994; David Sim e Boris Repschinski. Mathew and his
Christian contemporary (London: T & T Clark, 2008); G. N. Stanton. A Gospel for a New People: Studies in
Matthew (Edinburgh: T & T Clark, 1992).
261
comunidade mateana produziu uma reação que os fez buscar no AT e nas tradições de Jesus
seu espaço simbólico ameaçado. Por este motivo a redação de Mateus irá enfatizar um aspecto
do ministério de Jesus, em face das ameaças e calúnias que sofriam. Para a redação mateana
Jesus é o profeta semelhante a Moisés que havia de vir depois dele (Dt. 18: 15, 18 e 19): “ele
lhes falará tudo o que Eu lhe ordenar” (v. 18). Portanto, Jesus não é mero aperfeiçoador da
Torah, mas corretor e suplantador. Moisés permitiu o divórcio, Jesus o proíbe676. Esta ideia já
estava presente no evangelho de Lucas, o qual também apresenta a aparição de Jesus como
novidade radical (Mt. 11: 13 e Lc. 16: 16). Mateus apenas ressalta esta tradição de Jesus e a
cabo pelos líderes religiosos Judeus, os quais decidiram, pela padronização de seus serviços
litúrgicos, pelo estabelecimento do cânon do AT, pela instituição do rabinato como intérprete
Minim (maldição dos hereges)677, a ser recitada pela congregação no serviço litúrgico, que
676
Mais de uma vez já foi dito que em Mateus Jesus é o novo Moisés e que há muitos paralelos nas duas
biografias. O nascimento do segundo Moisés, assim como o do primeiro, foi marcado pela morte de inocentes,
bebês de dois anos para baixo, assassinados por Herodes, o segundo faraó (Ex 1: 115 e Mt 2: 10). Como Moisés,
Jesus também funda uma nova comunidade religiosa, dando a ela novas regras e ordenanças (Mt capítulos 5, 6 e
7), também no sopé de uma montanha. Ademais, há uma preocupação da redação de Mt em colecionar logia que
tratem de temas caros ao Judaísmo, como por exemplo, questões haláquicas e cúlticas. Jesus também alimentou
o povo no deserto, tal como fizera Moisés (Mt 14: 13-21; 15: 29-39). E como Moisés também, Jesus é
transfigurado no monte (Mt 17: 1-13). Como se pode perceber, a relação é vasta (Cf. Wayne S. Baxter. “Mosaic
imagery in the gospel of Mathew”, TJ, 20:1, Spring – 1999, pp. 69-83). Deve-se ressaltar que esta relação de
Jesus com Moisés não é uma invenção da redação de Mateus. Ela está presente também nos outros evangelhos, e
que, se considerarmos a prioridade marcana, fica ainda mais evidente que se trata apenas de ênfase.
677
“Para os apóstatas que não haja esperança//O domínio da arrogância se elimine rapidamente em nossos
dias//E deixe os nazarenos e os minim perecerem em um momento// Deixe-os ser apagados do livro da vida// E
que não sejam inscritos com os justos.” (Andrew Overman. O evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo, o
mundo social da comunidade de Mateus, p. 59).
262
diatribes e a oposição acerba, recebidas e retribuídas por Jesus em relação aos Fariseus na
mesmo espaço simbólico. Por exemplo, quem realmente observava a Torah a comunidade
a orientação de Jesus?679. Daí decorre a necessidade de apresentar Jesus como novo Moisés e
apresentação tão amiúde das batalhas teológicas entre Jesus e os Escribas e Fariseus nesse
evangelho.
Além disso, a comunidade de Mateus começava a ter sucesso com a evangelização dos
Gentios e isto gerava a necessidade de justificar o empreendimento missionário entre eles. Tal
como Marcos a redação mateana acolhe as logia de Jesus sobre a pregação aos Gentios, mas a
demarcação separatória entre a missão de Jesus e a dos discípulos, antes de sua ascensão é
muito mais excludente do que a dos outros evangelistas. Sua condição de fronteira de
Hoje parece claro que o evangelho de Mateus foi escrito para uma comunidade
Judeu-cristã, que se abre aos Gentios. Mais ainda, uma das finalidades principais da
obra é legitimar esta abertura diante de uma comunidade, ainda não apta a entendê-
la. Diferentemente de outras correntes Judeu-cristãs que permaneceram cerradas em
si mesmas, a comunidade de Mt se encaminha rumo à confluência com a grande
Igreja680.
confusão identitária que transparece aqui e ali em sua redação, revelando uma ambiguidade
678
Eugene Lavardiere e William Thompson. “New Testament communities in transition”, p. 573.
679
François Viljoen. “Jesus teaching on the Torah in the sermon on the mount” (Nt, 40.1, 2006).
680
Rafael Monasterio. “Historia de la investigación sobre el evangelio de Mateo”, p. 164. In Rafael Monasterio e
Antonio Carmona.
263
exclusivista em relação aos Gentios, à medida que esses são retratados, ora positivamente, ora
negativamente.
Por conta da rivalidade com os Judeus-rabínicos quanto a quem era o verdadeiro Israel,
não poderia eliminar séculos de avaliação negativa da gentilidade de um momento para outro,
presente desde o retorno dos judaítas do exílio babilônico. Muitos dos estereótipos
antigentílicos que povoavam a religiosidade popular judaica ainda aparecem no evangelho nas
entrelinhas. A redação mateana ressalta ditos negativos de Jesus sobre os Gentios e é o único
“quando orardes não façais como os gentios, usando de vãs de repetições [...] (Mt. 6: 7);
Gentios são contraexemplos da ética do reino: “e se saudardes somente vossos irmãos, que
fazeis de mais? Não agem os Gentios do mesmo modo?”(Mt. 5: 47); o termo ‘Gentio’ é usado
como sinônimo de publicano, cuja preocupação maior existencial eram as riquezas (Mt. 6: 32)
681
; Gentio é sinônimo daqueles que não seguem a fé da comunidade mateana (Mt. 18: 17) e
Por outro lado, agora respondendo à demanda da comunidade mateana pela recepção de
novos conversos oriundos do mundo gentílico, a redação mateana acolhe outros logia de Jesus
que retratam os Gentios sob uma luz muito mais positiva. Eles são frequentemente retratados
manifestando fé em Jesus, ou pelo menos aprovando Suas palavras e obras: mulheres gentias
entraram na genealogia de Jesus (Mt. 1); os magos do Oriente que vieram venerar o menino
681
No sermão do monte, onde é definida a ética do reino, Gentio e Fariseu são os extremos usados para definir
por oposição o cristão mateano que se coloca ao centro. Portanto, cuja fé e prática não é nem hipócrita como a
dos Fariseus nem leviana e mundana como a dos Gentios. Aqui a manifestação mais cabal e perspícua daquela
necessidade de definição identitária da comunidade mateana, aventada mais acima. Podemos afirmar, no entanto,
ser o sermão do monte um acréscimo redacional da comunidade mateana? De forma alguma. Basta compará-lo
com o sermão da planície, seu paralelo em Lucas, onde a mesma mensagem aparece, na sua essência,
praticamente sem alterações, menos os nomes Fariseu e Gentio, donde se conclui que a tríade onomástica
Fariseu – Cristão mateano – Gentio (tão amiúde citada) é o acréscimo redacional.
264
de Pilatos chama Jesus de “justo” e aconselha o marido a não se envolver no complô contra
Ele (Mt 27: 19); o centurião amigo da sinagoga crê na autoridade de Jesus sobre as doenças
(Mt. 8: 5-17).
No tempo escatológico ainda fica mais clara a apreciação dos Gentios pela redação de
Mateus: os Ninivitas se levantarão no Juízo para condenar aquela geração a quem Jesus
pregou (Mt. 12: 41); e o mesmo quanto à rainha do Sul (de Sabá) (Mt. 12: 42); quanto às
com Abraão, Isaque e Jacó” (Mt. 8: 11). E, como clímax do evangelho, há a grande comissão:
O único texto que destoa deste quadro de Mateus é o capítulo 15 verso 16, em que Jesus
se encontra com a mulher sírio-fenícia, chamada por Mateus de cananita, uma recordação
resposta de Jesus ao pedido da mulher é aos nossos olhos um tanto quanto grosseira. Primeiro
diz que não tinha sido “enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (15: 24); depois
afirmando não ser conveniente “tomar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos”. Mas, ao
fim acaba cedendo a seus clamores, concedendo à mulher o que lhe pedia.
que ainda resistia na comunidade mateana. Contudo, o episódio também ocorre nas outras
redações e é fundamental para entender o programa missiológico de Jesus restrito aos Judeus
(incluindo os não praticantes), exceto pela utilização do gentílico mais antigo, ou seja,
“cananita”. Aos discípulos Jesus fez a mesma recomendação que não fossem aos Gentios nem
entrassem nas cidades dos Samaritanos, mas limitassem sua pregação à casa de Israel. (Mt.
10: 5). A comunidade mateana entendia sua missão e a dos discípulos pregar às nações e a de
Jesus reunir as ovelhas perdidas da casa de Israel ao aprisco de Seu Pai. Como vimos, isto
265
outras etnias, inclusive de Tiro e Sidom, presentes nos sermões (da planície) e curas de Jesus
(Mc. 3: 8).
5.e.3. Lucas-Atos
um movimento religioso que começa na periferia do mundo e atinge seu centro. Com efeito,
evita toda a sugestão de que a missão universal não tenha se iniciado com Jesus. No relato
sobre o envio dos setenta a pregar não há nenhuma proibição de estender a missão aos
Gentios (Lc. 10: 1). Embora seja menos enfático do que Marcos quanto à missão aos Gentios
haver começado nos dias de Jesus, Lucas inclui tírios e sidônios entre os ouvintes do sermão
da planície (Lc. 6: 17). H. Conzelman vê nestes indícios textuais a demonstração que, tal
dispensação de Israel.
estrutura literária de seu texto o reflete, tendo redigido sua obra em dois tomos. Um, o
evangelho propriamente dito, contendo o ministério de Jesus; dois, o livro de Atos, contendo a
pregação a Roma, por intermédio do ministério de Paulo (At. 28). Além disso, Seu projeto
Jesus com “as ovelhas perdidas da casa de Israel”: “publicanos e pecadores” (Lc. 7: 34//Mt.
21: 31), meretrizes (Lc. 7//Mt. 21: 32), pessoas que por causa de certas doenças se tornavam
266
culticamente impuras (Lc. 8: 43), pessoas de quem foram expulsos demônios (Lc. 8: 26-39).
Do material especial de Lucas destaca-se o capítulo 15 onde ocorrem várias parábolas sobre
os perdidos e onde Jesus é retratado como aquele que busca e salva os perdidos (Lc. 19: 10).
Estes são tribos perdidas de Israel, que no banquete escatológico se sentarão à mesa com
Abraão enquanto os filhos do reino serão lançados fora (Lc. 13-29//Mt. 8: 11).
lucanas, amiúde citadas pelos teólogos das religiões: “e, contudo, Deus não se deixou sem
testemunho, beneficiando-vos lá do céu, dando-vos chuva e tempos frutíferos.” (At. 14: 17).
Também no célebre discurso de Paulo no areópago (At. 17: 16-34), que pode ser considerado
do gênero humano (v. 26) 682 , a inecessidade de um local de culto para Deus (v. 24), a
religiosidade universal da humanidade que, na verdade, muitas vezes adora ao que não
projeto inclusivo. Há um grande número de “Gentios justos”: o centurião Cornélio (At. 10: 1-
5 – comparar com o centurião do evangelho Lc. 7: 2-4), o procônsul Sergius Publius (At. 13:
7, 12), o carcereiro filipense (At. 16: 25-34), o procônsul Gallio (At. 18: 12-14), e Publius,
autoridade da ilha de Malta (At. 28: 7-10). Ressalve-se que são chamados justos não por sua
período de Israel, (b) período de Cristo, e (c) o período da Igreja 683 . Contudo, não há
682
Trata-se de uma ênfase redacional lucana. Notar que a genealogia de Jesus no evangelho de Lucas remonta a
Adão e não a Davi, como na versão mateana.
683
Hans Conzelmann. The theology of St. Luke (New York: Harper and Row. 1961), pp. 9-17.
267
escatologia seja substituída pela história da salvação, como o próprio título de sua obra em
alemão sugere die mitte der zeit (o meio do tempo). A própria missão aos Gentios só ocorre
portanto, não se trata propriamente de um meio do tempo, mas do fim dos tempos, no formato
lucana. Pedro, em seu discurso no pórtico, fala de um tempo de retorno de Jesus dos céus para
inaugurar a era da restauração universal (apokatástasis), que Deus havia anunciado por meio
de seus profetas (At. 3: 21). No assim chamado concílio de Jerusalém, Tiago discursa em
favor da boa recepção dos resultados das missões aos Gentios e contra os argumentos dos que
gostariam que os Gentios se tornassem Judeus primeiro antes de se tornarem Cristãos (Lc. 15:
16-17). O argumento de Tiago para que “não se perturbassem aqueles que dentre os Gentios
se convertem a Deus” (At. 15: 19), não os submetendo ao jugo de questões haláquicas (At. 15:
20), é a profecia de Amós sobre a reedificação do “tabernáculo caído de Davi” (Am. 9: 11),
“para que os demais homens busquem ao Senhor e também todos os Gentios” (At. 15: 17)684.
Discute-se o que seria este tabernáculo de Davi, mas ao que parece a ideia do texto é apenas
Lucas usa as profecias do AT para “demonstrar que a missão aos Gentios é, desde o início,
5.e.4. João
O evangelho de João, por suas características textuais, tem sido considerado um dos
lugares menos prováveis para serem encontrados textos favoráveis ao diálogo inter-religioso
ou para uma missiologia inclusiva. Por seu exclusivismo salvífico e pela animosidade acerba
que transparece nas palavras dirigidas de parte a parte, de Judeus a Jesus e vice-versa, João
684
“Todas as nações que são chamadas pelo meu nome, diz o Senhor, que faz estas coisas” (Am. 9: 12).
685
S. G. Wilson. The Gentiles and the Gentile mission in Luke-Acts (Cambridge: Cambridge University Press,
1973), p. 95.
268
tem servido de pedra de escândalo para muitos de seus leitores. Seu ponto crítico é o capítulo
8, em que Jesus chama “os Judeus” de “filhos do diabo” (v. 44) e os Judeus devolvem dizendo
de Jesus que “tem demônio” (v. 48). De sorte que já foi sugerido que todo o capítulo 8 do
evangelho de João fosse excluído do texto canônico de João ou que se fizessem reparos nestes
étimos-chave que aparecem entre aspas686. Contudo, por cômodo que seja, não podemos agir
desta forma; seria reeditar a heresia marcionita, também ela metodologicamente afeita à
simples remoção das Escrituras do que não se encaixa em determinado quadro de ideias.
joaninos em Éfeso e os Judeus da Ásia Menor ocorreria687. É inegável que o evangelho sendo
escrito em primeira mão para sustentar a fé dos Cristãos da época fosse resposta às suas
perguntas e angústias. Nosso problema é que uma suposta comunidade joanina até agora tem
sido uma apenas uma hipótese de trabalho, cuja existência tem pouca sustentação textual,
relação às fontes sinóticas, quase nenhuma referência às tradições sinóticas dos ditos de Jesus,
que, pelos acréscimos e omissões, poderiam fornecer indícios sobre a identidade de seus
leitores 688 . A melhor pista para o contexto do quarto evangelho ainda é a designação
686
T. Pippin apud R. Bieringer, D. Pollefeyt e F. Vandecasteele-Vanneuville. AntiJudaim and the Fourth Gospel
(Louisvilee, KT: Westminster John Knox Press, 2001), p. 4.
687
J. Louis Martyn é o teólogo que primeiro propôs a tese segundo a qual o evangelho de João está construído
como edifício de dois pavimentos. O primeiro e mais evidente onde se conta a história de Jesus, e o segundo, e
mais profundo, com o relato dos transes e dificuldades enfrentados pela comunidade onde foi redacionado (J. L.
Martyn. History and theology of fourth gospel (1968) (reimpresso em 2003 – Louisville, KT: Westminster John
Knox Press). Posteriormente Raymond Brown popularizou ainda mais esta hipótese e quase a transformou num
dogma religioso) (The community of the beloved disciple. The life, loves, and hates of an individual church in
New Testament, Mahwah, NJ: Paulist Press, 1979).
688
Há pouca coisa pacífica a este respeito, uma delas é de que João teve acesso a uma fonte dos sinais de Jesus,
onde estariam registrados seus milagres (Francis J. Moloney. The Gospel of John – Collegeville, MN: The
Liturgical Press, 1998, p. 86) e uma fonte da paixão (Robert Kysar. “The source analysis of the Fourth Gospel. A
growing consensus?”. In Howard M. Teeple et al. The composition of John’s Gospel – Leiden: Brill, 1999, p.
269
anacronística de “os Judeus” (hoi Ioudaioi) 689 , aposta aos líderes religiosos que faziam
oposição a Jesus690. Alguns teólogos têm tentado atenuar os estragos destas disputas joaninas
enfatizando que os evangelhos não são histórias de comunidades, mas a história de Jesus e,
portanto, “os Judeus” que aí aparecem são apenas oponentes ocasionais de Jesus
contextualmente sem peso teológico691. O problema desta tese é que o número de menções
aos Judeus (hoi Ioudaioi) excede em muito ao que se pudesse esperar de adversários de
ocasião. De 180 ocorrências do termo no NT, nada menos que 70 delas ocorrem no evangelho
de João 692 . Como já foi dito alhures, uma das técnicas redacionais dos evangelistas para
tradição de Jesus em que Ele e os discípulos passem pelas mesmas experiências e dificuldades
dos leitores693. Por exemplo, a confissão de Pedro: “Tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6:
68), a admoestação de Jesus aos discípulos: “Eles vos expulsarão das sinagogas” e vos
matarão (Jo. 16: 2), parecem ser experiências comuns de Jesus e dos Cristãos leitores do
evangelho.
Não sabemos se havia uma comunidade joanina específica sobre a qual o texto se
baseie, cujos membros teriam sido expulsos da sinagoga após a inclusão das 18 bênçãos na
132) . Alguns logia de Jesus são citados livremente por João, ou por questão estilística ou por João ter tido
acesso a uma tradição oral, ainda não se sabe ao certo (Ibid., p. 129).
689
É considerada anacronística porque os adeptos do Judaísmo formativo só começaram a ser chamados desta
forma perto do final do primeiro século, quando a hegemonia do Judaísmo rabínico destronou as designações
anteriores: Fariseus, Saduceus, Zelotes, Essênios.
690
Está em curso uma discussão sobre a identidade destes Judeus no texto joanino. Um grande número de teorias
tem sido oferecidas para revelá-la: basicamente há dois sentidos: (a) Judeus é um gentílico não uma designação
religiosa, sendo mais bem traduzido por Judaítas, ou seja, indivíduos nascidos na Judeia (F. W. Danker, S.
Mason, J. H. Elliot, P. F. Esler, etc); (b) por outro lado, há os que sustentam que Judeus é designação religiosa
dos outsiders, enquanto Israel é designação dos insiders (K. G. Kuhn). Cf. David M. Miller. “The meaning of
Ioudaios and its relationship to other group label in ancient Judaism” (CBR, 9, 1, 2010), pp. 98-126.
691
Cornelis Bennema. “Religious violence in the gospel of John: a response to the Hindutva culture in modern
India”. In F. F. Fox (ed.). Violence and peace: creating a culture of peace in the contemporary context of
violence (Bangalore: ATC/CMS, 2010), p. 136.
692
Kasuo Matsunaga. “Christian self-identification and the Twelfth Benediction”. In Harold W. Attridge e Gohei
Hata (eds.). Eusebius, Christianity and Judaism (Detroit, MI: Wayne State University Press, 1992), p. 361.
693
Conferir mais algumas ideias sobre a questão no início do capítulo II.
270
liturgia sinagogal 694 ou se a perseguição religiosa aos Cristãos era uma situação universal
promovida pelo Estado romano, que foi facilitada por uma maior clivagem entre Cristianismo
e Judaísmo. Parece mais plausível a segunda alternativa. É discutível que o alcance das
evangelho. O principal debate que divide Cristãos e Judeus é cristológico, mas num nível que
questão se Jesus é o Messias ou não, mas se Ele é o ‘Eu Sou’ ou não; em João Jesus não é
meramente o novo Moisés, mas aquele de quem todos os emblemas cúlticos da Torah falam:
o pão (Jo. 6: 50-58), o cordeiro (Jo. 1: 29), a luz (Jo. 8: 12), a ressurreição e a vida (Jo. 11:
25), refletindo, portanto, um estágio muito mais avançado de discussão cristológica. Ademais,
o universalismo da teologia do evangelho tem um apelo mais geral do que local. Em João 15:
18 a 16 Jesus adverte seus discípulos quanto à inimizade e o ódio do mundo e não dos Judeus.
Em Seu discurso de despedida Jesus não menciona “os Judeus” (Jo. capítulos 13-17).
O papel desta disputa com o Judaísmo pode ter sido importante, mas ela dificilmente
perseguição dos leitores do evangelho foram as movidas pelo Estado romano. Muitos cristãos
devem ter retornado para as sinagogas como criptocristãos quando o ambiente se tornava mais
inamistoso, pois não parece possível que tivessem se convertido do Judaísmo há pouco tempo,
haja vista o nível de sua cristologia. As sinagogas seriam um bom refúgio por ser o Judaísmo
religio licita e não estar proscrita como o Cristianismo. Como a perseguição aos Cristãos não
era sistemática, mas episódica no tempo e no espaço695 e ocorria à medida que estes eram
694
A tese segundo a qual os efeitos da rabinização do Judaísmo depois da destruição do templo em 70 d.C. teria
atingido também uma suposta comunidade joanina já foi sustentada à exaustão. E como sempre, há o argumento
de que dificilmente os efeitos da bênção dos hereges (birkat ha minim) tivesse chegado ao ambiente não
palestinense, no qual se dá a redação do evangelho. (Jonathan Bernier. Aposynagogos and the historical Jesus in
John – Leiden: Brill, 2013).
695
William J. Duiker e Jackson J. Spielvogel. World History (Boston, MA: Wadsworth, 2013), p. 144.
271
denunciados696 e levados aos magistrados, onde eram convidados, por argumentos e também
por meio de tortura, a fazer um juramento de lealdade aos deuses romanos e ao Imperador,
seu divino filho, através de uma libação e a queima de incenso diante de sua imagem 697.
Obviamente muitos Cristãos foram martirizados e esta situação se estendeu por longos anos
deixando marcas profundas na vida da Igreja. Não se tratava de mera expulsão das sinagogas.
aprisionamento e uma sentença de morte. Por este motivo a morte está tão presente no
evangelho, o verbo matar aparece nada menos do que dez vezes, onde as autoridades judaicas
deliberam constantemente matar Jesus e até Lázaro. O medo é outra constante: os discípulos
se escondiam depois da crucifixão “com medo dos Judeus” (Jo. 20: 19); autoridades criam,
mas não confessavam “para não serem expulsos da sinagoga” (Jo. 12: 42). Há também um
clima de denuncismo: “os sacerdotes e os fariseus tinham dado ordem para, se alguém
soubesse onde ele estava, denunciá-lo, a fim de o prenderem.” (Jo. 11: 57).
No Apocalipse, cuja autoria também é atribuída a João, nos primeiros três capítulos
aparecem duas terríveis diatribes contra os Judeus, chamados aí de “sinagoga de Satanás” por
duas vezes (Ap. 2: 9; 3: 9). O genitivo “de Satanás”, não é leviandade nem injúria decorrente
fiel até a morte e dar-te-ei a cora da vida” (Ap. 2: 10), referindo-se ao martírio.
696
Desde os decretos de Nero o Cristianismo estava banido, sendo proibida sua prática pelo Estado. Os
imperadores que vieram depois não ab-rogaram o decreto neroniano, contudo, por serem muitos os Cristãos, o
Estado romano não fazia buscas para localizá-los e prendê-los. Os magistrados apenas aceitavam as denúncias
feitas e tentavam fazê-los abandonar a prática que mais incomodava: sua resistência em adorar o imperador;
aqueles que resistiam eram condenados à morte (James W. Ermatinger. Daily life of Christians in ancient Rome
– Westport, CT: Greenwood Press, 2007 – p. 71).
697
Bruce Chilton. Abraham’s curse. The roots of violence in Judaism, Christianity and Islam (New York:
Doubleday, 2008), p. 100.
272
Ora, dada toda esta conjuntura de perseguição e conluio das autoridades judaicas e o
Estado romano para o aprisionamento e morte dos Cristãos (Jo. 18: 31), não é de admirar que
“filhos do diabo”, “sinagoga de satanás” frequentem os textos joaninos, assim como não causa
espanto a exclamação do salmista: “feliz aquele que pegar em teus filhos [de Babilônia] e der
com eles nas pedras” (Sl. 137: 9). Não se trata de justificar a violência religiosa ou étnica, mas
revelação divina e não deve ser considerada como Escritura normativa, mas servir como
advertência para evitarmos uma abordagem docética das Escrituras. Quanto aos aspectos
exclusivistas do texto joânico, por exemplo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém
vem ao Pai senão por Mim” (Jo. 14: 6), não há aí nada de diferente em relação a outros textos
semelhantes, p. ex.: “porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os
homens, pelo qual devamos ser salvos” (At. 4: 12). Portanto, é matéria bíblica e parte
Por outro lado, quanto ao projeto missiológico de Jesus, em João restam apenas
indícios, os quais, porém, são suficientes para demonstrar que nestas passagens o evangelista
exemplo, está presente em várias passagens. Primeiro, a pregação de Jesus é dirigida também
às “ovelhas perdidas da casa de Israel”, embora haja discordância entre a tradição joanina e a
sinótica sobre quem eram estas ovelhas (a tradição mateana exclui os samaritanos). Ele
restringe Seu ministério inicialmente a elas, não aceitando, por exemplo, catequizar os gregos
que o buscavam na semana que precede à crucifixão (Jo. 12: 20). Por outro lado, Jesus
evangeliza a samaritana (Jo. 4: 1-17); cura o cego de nascença, que é desprezado pelos
fariseus por ser pecador, a saber, mal cumpridor das obrigações haláquicas de todo Judeu (Jo.
9: 34); a mulher adúltera, colhida em flagrante, a quem Ele perdoa e não permite que seja
apedrejada (Jo. 8: 1-11). E segundo, Seu programa missiológico se estende aos Gentios que
273
quer recolher em Seu aprisco: “ainda tenho outras ovelhas, não desse aprisco; convém-me
conduzi-las [...]; então, haverá um rebanho e um pastor” (Jo. 10: 16). No comentário
redacional sobre a profecia de Caifás sobre a morte de Jesus em prol da nação: “e não
somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus que andam
universal: Ele convence o mundo inteiro do pecado, da justiça e do Juízo (Jo. 16: 8); é
misteriosa: é como o vento que sopra onde quer e não se sabe nem de onde vem e nem para
onde vai (Jo. 3: 8); é vinculadora: não se adora a Deus nem aqui [Samaria] nem em Jerusalém,
mas em Espírito e em Verdade (Jo. 4: 23); é reveladora: “e quando vier o Espírito de Verdade,
Ele vos guiará em toda a verdade” (Jo. 16: 13). Em suma, O Espírito faz a obra de Jesus,
5.f.1. Paulo
Nesta altura de nosso texto nos voltamos para uma das fontes mais antigas e
imaginamos já ter deixado demonstrado ser uma indução assaz equívoca). Apesar de não citar
as logia de Jesus muito amiúde (provavelmente não teve acesso ao texto dos evangelhos),
Paulo em muitos aspectos mostra-se mais próximo da mensagem de Jesus do que os próprios
evangelhos (trechos onde a ênfase redacional é mais forte). Por ele nos chegaram em primeira
274
mão ditos e feitos que os especialistas reconhecem pertencer ao ‘Jesus histórico’698. Quanto
ao tema que nos interessa, Paulo na Epístola aos Romanos 15: 8 diz o que os evangelhos
também afirmam, “que Cristo foi constituído ministro da circuncisão”, assim como Pedro
depois Dele (Gl. 2: 7), enquanto a ele, Paulo, foi confiado o ministério da incircuncisão (Rm.
1: 5, 11: 13, 15: 16; Gl. 2: 7-10; Ef. 3: 5-8), desde os primórdios de seu ministério, conforme a
visão de Paulo em Jerusalém: “Mas Ele me disse: Vai porque eu te enviarei para longe, aos
E aqui nos confrontamos com uma interpretação equívoca de Paulo, segundo a qual ele
teria sido um Judeu renegado que recomendava o abandono das ordenanças mosaicas aos
dietéticas, fatos ligados à própria fundação do Cristianismo como afirmam alguns estudiosos
de renome699. Esta ênfase sobre uma supostamente aguda descontinuidade entre Jesus e Paulo
tem dois pontos de partida inadequados: (a) primeiro, não leva em conta o fato de que tudo o
que Paulo pregava já estava antecipado nos ensinos de Jesus, e segundo, como corolário, (b)
supervaloriza a ruptura de Paulo com suas próprias tradições700. Ele que se dizia Judeu de
Judeu, benjamita, fariseu, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível (Fl. 3: 6), e diz ter
aberto mão da justiça havia na lei para tornar a reavê-la pela fé (Fl. 3; 9). E isto não
significava atirar sua herança judaica na lixeira, apenas uma adaptação de seus conceitos ao
698
James Dunn, em sua obra monumental, apresenta um quadro comparativo entre Paulo e os Sinóticos,
demonstrando a primariedade da tradição de Jesus a que Paulo teve acesso: Rm. 1: 16 Mc. 8: 38/Lc. 9: 26; Rm.
2: 1/14: 10 Lc. 6: 37/Mt. 7: 1-2; Rm. 8: 15-17/Gl. 4: 4-6 “Abba”; Rm. 12: 14 Lc. 6: 27-28/Mt. 5: 44; Rm. 12:
17/1 Ts. 5:15 Mt. 5: 39/Lc. 6: 29; Rm. 12: 18 Mc. 9: 50; Rm. 13: 7 Mc. 12: 17; Rm. 13: 9 Mc. 12: 31; Rm. 14:
13 Mc. 9: 42; Rm. 14: 14 Mc. 7: 15; Rm. 14: 17 – “reino de Deus”; 1 Cr. 2: 7 Mt. 13: 35; 1 Cr. 13: 2 Mt. 17: 20;
1 Ts. 5: 2, 4/ Mt. 24: 43/Luke 12: 39; 1 Ts. 5: 13/ Mc. 9: 50 (Jesus remembered, p. 182).
699
Jacob Neusner e Bruce D. Chilton (edts.) Judaism and the New Testament. Practices and Beliefs (New York:
Routledge, 1995), p. 22.
700
Muitos já enfatizaram o contexto helenístico do mundo Greco-romano para explicar a guinada paulina
(Wayne Meeks. Los primeros cristianos urbanos – Salamanca: Sígueme, 1987). Isto é desnecessário. Basta
considerar a própria guinada de Jesus rumo a uma compreensão mais espiritual e menos literal da lei.
275
conceito de “reino de Deus” tem ecos na doutrina da justificação paulina703. Para Bultmann a
afinidade dá-se pela radicalidade com que ambas compelem os seres humanos a uma decisão
sem reservas quanto ao reino de Deus (Mt. 13: 45-46)704. Para Jüngel, o pano de fundo da
doutrina da justificação de Paulo está nas parábolas de Jesus e, além disso, ambas tratam de
o que Epístola aos Romanos diz sobre a soberania divina e a igual condição de Judeus e
Gentios sob a graça de Deus (malgrado as obras meritórias de Justiça dos primeiros), com a
parábola dos trabalhadores da undécima hora (Mt. 20: 1-16) e com a parábola das bodas (Mt.
22: 1-14). E aqui a raiz da impopularidade da pregação de ambos junto aos Judeus, que suas
obras de justiça eram como restolho diante de Deus, face à radicalidade do compromisso que
Há que se reconhecer que o “reino de Deus” (basileia tou theou) não é dominante na
teologia paulina, dado que ele prefere outros termos, tais como “evangelho” e “igreja”706 e seu
foco teológico recai principalmente sobre a morte e ressurreição de Jesus707. Isto é facilmente
contornável, basta considerar duas coisas: (a) que à audiência de Paulo os dois últimos termos
seriam bem mais inteligíveis do que o hebraísmo da primeira (e, além disso, substituir a
expressão “reino de Deus” evitaria mal entendidos políticos que produzissem entraves
701
Jesus and the word (London: Nicholson & Watson, 1935); Jesus and Paul in existence and faith (London:
Hodder & Stoughton, 1961).
702
Paulus und Jesus (Tübingen : J.C. B. Mohr & Paul Siebeck, 1907).
703
Sobre o conceito de fé em Paulo e sua conexão com os ensinos de Jesus cf. Maureen W. Yeung. Faith in
Jesus and Paul (Tübingen: Mohr Siebeck, 2002).
704
John M. G. Barclay. “Offensive and uncanny: Jesus and Paul on caustic grace of God”. In Todd O. Still (edt.).
Jesus and Paul re connected. Fresh pathways into an old debate (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdemans
Publishing Co., 2007), p. 16.
705
Georg Strecker. Theology of the New Testament (Berlin: Walter de Gruyter/Westminster John Knox Press,
2000), p. 97.
706
Alan Cole. Galatians. The Tyndale New Testament commentaries (Leicester, UK/Grand Rapids, MI:
InterVarsity Press/Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 1989), p. 217.
707
Seyoon Kim. Paul and the new perspectives. Second thoughts on the origin of Paul’s gospel (Grand Rapids,
MI: Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2002), p. 270.
276
políticos à pregação, por conta de conotações subversivas atribuídas à mensagem) 708 , (b)
Paulo usa o termo nove vezes enquanto no resto do Novo Testamento aparece apenas nos
Sinóticos e raramente em outros lugares709. Contudo, nas poucas oportunidades que Paulo usa
“reino de Deus” ele o faz tão magistralmente que resume o programa de Jesus, tal e qual vem
Em Romanos 14: 22 ele diz que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça
paz e alegria no Espírito”. Ou seja, rejeita as questões haláquicas quanto à pureza cúltica,
como também rejeita Jesus710. E em I Coríntios 4: 20: “porque o reino de Deus consiste não
em palavra, mas em poder”, que ressalta o tipo de santidade que remonta aos ensinos de Jesus.
Em outras partes, embora não use a terminologia específica de Jesus, resume seu programa
Em Romanos, capítulo 11, Paulo escreve sobre o futuro de Israel de uma maneira bem
desusada no NT (fora dos Sinóticos), entrelaçando seu destino ao dos Gentios. Como vimos
mais acima esta era maneira como Jesus via o reino de Deus, o Grande Israel. Em Romanos
11: 16-24, Paulo usa a símile agrícola da oliveira brava (Gentios) enxertada na oliveira
reino de Deus. Não é uma operação simples, como se subentende pelas recomendações de
708
Seyoon Kim. Paul and the new perspectives, p. 277.
709
As passagens em que aparece “reino de Deus” em Paulo são: Rm. 14: 17; I Co. 4: 20, 6: 9 e 10, 15: 50; Gl. 5:
21; Ef. 5: 5; Cl. 4: 11; II Ts. 1: 5, 4: 1. Todas as remissões aparecem em contexto escatológico, à exceção de
Gálatas. O evangelho de João menciona o reino de Deus uma única vez: 3: 3-5. O livro de Atos não é valido em
termos comparativos porque é o segundo tomo de uma única obra (Lucas-Atos). Fora daí nas cartas gerais só em
Hebreus (1:8) e no Apocalipse (1: 9, 12: 10 e 17: 17).
710
R. Bultmann refere-se à não obrigatoriedade da circuncisão entre as igrejas paulinas como sinal da ruptura de
Paulo com o Judaísmo (Teologia del Nuevo Testamento – Salamanca, Ediciones Sígueme, 1981, p. 157).
Lembrar que a decisão de Paulo e Barnabé de não colocar este encargo sobre os Gentios está em perfeita
consonância com a nova noção da lei ensinada por Jesus, que prefere seu aspecto moral ao cúltico.
711
Em Jesus, tampouco, o reino de Deus é pacífico basta analisar a assim conhecida como “parábola do filho
pródigo”, que na verdade devia-se chamar “parábola dos dois filhos”. Tantas orações e estudo da Torah, dízimos
da ervas que nascem espontaneamente no fundo do quintal (Mt. 23: 23), códigos de pureza cúltica tão extensivas
quanto às praticadas no templo. Nada disto recomenda ninguém à salvação. É só pela graça de Deus.
277
Não resta dúvida que Paulo é restauracionista como Jesus. Várias passagens do Antigo
Testamento básicas para um restauracionismo amplo e inclusivo, como ensinado por Jesus
Cristo, são citadas por Ele (Rm. 15: 9-12)712. Os principais motivos porque concluir por um
restauracionismo amplo em Paulo são: (a) emprega a palavra Abba no sentido utilizado por
Jesus, com sentido de dupla paternidade de Deus, uma em relação a Jesus, e a outra com
respeito a nós seres humanos (Rm. 8:15, Gl. 4: 6) 713. A ideia de adoção está sempre presente
e aparece algumas vezes em suas cartas em conexão com a palavra aramaica Abba714. Para
isto apontam também vários trechos de suas cartas em que chama os Gentios de herdeiros
“conforme a promessa” (Gl. 3: 29)715 e coerdeiros junto com os Hebreus das promessas de
Deus (Ef. 3: 6). (b) Adota o conceito de santidade comunitário de Jesus: santos são todos
aqueles que compõem a comunidade do reino de Deus (Rm. 1: 7, I Co. 1: 2), seja Judeu,
5.g. Conclusão
Não resta dúvida de que Jesus fosse um misto de profeta apocalíptico e carismático.
religiosidade de sua época, a prioridade das normas éticas sobre as haláquicas, a destruição
final de tudo num iminente fim escatológico. Como profeta carismático, criou uma nova
comunidade, com uma ética (sermão do monte/planície), com vários círculos de adeptos (os
setenta, os doze, os três mais chegados: Pedro, Tiago e João), correspondendo simbolicamente
712
V. 9: “Por isso, eu te glorificarei entre os Gentios e cantarei louvores ao teu nome” (Sl. 18: 50). V. 10:
“alegrai-vos, ó Gentios, com o seu povo” (Dt. 32: 43). V. 11: “louvai ao Senhor, vós todos os Gentios” (Sl. 117:
1). V. 12: “haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar os Gentios; Nele os Gentios esperarão”
(Is. 52: 15).
713
Nota de rodapé da página 253.
714
“As referências paulinas [ao Abba] as implicações filiais do termo e indicam que num estágio bem primordial
[das tradições cristãs] a filiação a Deus era entendida como um dom específico concedido aos seguidores de
Jesus.” (Edward P. Meadors. Jesus, the messianic Herald of salvation – Tübingen: J.C. B. Mohr (Paul Siebeck),
1995, p. 183).
715
A promessa à qual Paulo se refere é a que aparece em Gn. 12: 3: “[...] em ti serão benditas todas as famílias
da Terra”. Mas, principalmente, em Gn. 28: 14: “[...] e no teu Descendente serão benditas todas as famílias da
Terra”.
278
à nova comunidade escatológica, o Novo Israel, que deveria sobreviver à destruição final (Mt.
19: 28).
ministério de Jesus, de sorte que, uma compreensão equívoca surge quando se opta por uma
porque realiza a restauração antes da consumação. Contudo, não podemos dizer que o reino
de Deus é ‘agora’, dado que a consumação ainda não ocorreu. Mas, também não se pode dizer
que o reino de Deus ‘ainda não é’, porque a taumaturgia de Jesus indica sua chegada e a
quanto ao que existe na presente era. Pode, pelo contrário, significar, como na pregação de
Jesus, o fim e o começo. O fim da velha dispensação e o começo de uma nova, nada
impedindo que enquanto se apregoa o fim de uma trabalhe-se sob os auspícios do início da
O Apocalipsismo de Jesus, longe de ser sectário, é inclusivista, haja vista ter sido mais
radical do que o de seus contemporâneos. Jesus não pregava a mera rejeição da dimensão
religiosa da sociedade vigente, como faziam os Fariseus. Tampouco, rejeitava sua dimensão
politicorreligiosa, como faziam os Zelotes. Nem ainda, propunha um resto santo como gérmen
ensinava era a necessidade de uma total subversão das estruturas da sociedade de sua época, a
ser efetuada por Deus no plano escatológico. A reinvenção da sociedade humana, segundo
critérios e meios divinos. Porque o Reino de Deus irrompe de dentro para fora; é inaugurado
no coração humano (Lc. 17: 21) é daí que chega à sociedade humana. Nenhuma reforma
279
social, nenhuma doutrina política, poderá consumar a aurora deste reino, porque está-lhe
sobre o derramamento do Espírito sobre toda a carne (2: 28-29). Na nova era predita pelos
profetas, a qual o Movimento de Jesus já tinha por iniciada, todos seriam revestidos com o
Espírito e de tal forma que a relação com Deus já não seria mais mediada por ministrantes,
livros, serafins e nem por ninguém: “não ensinará cada um a seu próximo, nem cada um a seu
irmão, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos me conhecerão” (Jr. 31: 31-34). Não havia
aí lugar para nenhuma segregação ou hierarquização, pois o reino de Deus já havia produzido
destruição dos maus, ao mesmo tempo que nos convidam para o banquete da restauração do
Grande Israel, onde qualquer um pode sentar-se à mesa hoje, embora a instalação do reino
ainda esteja no futuro (dado que o Juízo ainda não chegou). Aí temos a representação mais
perfeita daquela tensão mencionada entre o agora e o ainda-não do reino, que na mentalidade
semítica soa bem natural, porque seu pensamento não é analítico como o grego e o nosso, mas
intuitivo e experiencial. As duas experiências estão disponíveis hoje. Uma delas nos
recomenda alegria e a aceitação da salvação de Deus que irrompe no meio dos homens por
meio de Jesus, a outra nos recomenda cuidado com a soberba espiritual, porque o Juízo está às
portas e será instalado quando o Filho do Homem vier na glória de Seu Pai e de Seus santos
anjos.
O Juízo ainda não chegou, portanto, o reino de Deus ainda não se instalou
completamente, mas aquilo que vem depois, ou seja, a comunidade irênica e harmoniosa da
280
nova criação de Deus, já pode ser percebida, como penhor das coisas que Deus ainda fará, que
se realiza na fundação da Igreja e pela dotação do Espírito 716. E como a separação entre bons
e maus só pode ser conhecida escatologicamente, é dever de todo aquele que espera a
manifestação plena do reino aceitar que a manifestação prévia seja sinal da futura unidade da
humanidade com Deus, à medida que potencialmente todos podem fazer parte deste reino.
716
Esta teologia da comunidade escatológica reaparece com mais detalhes em Lucas-Atos, em que a fundação
da Igreja dá-se pela ação do Espírito sobre os que ficaram em Jerusalém, e é retratada de modo semelhante à
criação do mundo no Gênesis: o Espírito paira sobre a Igreja, do mesmo modo como pairou sobre a face das
águas, quando nada ainda havia sido criado, quanto tudo ainda era caótico. A lição do livro de Atos é clara: a
expansão do reino de Deus iniciada por Jesus na periferia do mundo conhecido, na periferia do Império, chega
finalmente ao centro do mundo, Roma. A comunidade escatológica encontrara sua consumação.
281
CAPÍTULO VI
Conclusão Final
O mundo cristão mudou radicalmente neste século que ficou para trás. Deixou de ser
– hoje, os Cristãos adoram a Deus em mais de dois diferentes grupos linguísticos 717 , há
em alguns lugares, e em outros luta para não sucumbir às pressões dos que estão incomodados
Os teólogos do Ocidente, segundo seu costume, tentam guiar seus pupilos não
ocidentais a uma teologia mais ‘aberta’, condizente com o que veem na Europa e Estados
moderno relativista, supostamente pró agenda inter-religiosa, ou reforçam sua herança cristã,
que, de um ponto de vista sociológico, talvez condiga mais com sua condição de minoria em
seus próprios países (sem entrar no mérito). O que eles mesmos constatam é que os teólogos
do evangelho e sob os quais vivem submetidos. Estes teólogos Ocidentais, sempre muito
Cristianismo, esquecem-se de que é o próprio que agora se encontra sob ameaça na janela
717
Lamin Sanneh apud Harold Netland. Globalization and Theology today. in OTT, Craig e Harold NETLAND.
Globalizing Theology: Belief and practice in an Era of World Christianity (Grand Rapids, MI: Baker Publishing
Group), 2006, p. 15.
282
10/40, por exemplo, onde o fundamentalismo islâmico incomoda-se até mesmo com seu
pluralistas (sintéticos) por assim já o fazerem há séculos, sem terem tido necessidade de suas
teorias. De sorte que, os cristãos nestes países além de estarem pressionados pelas maiorias
religiosas não cristãs agora também são vítimas do “fogo amigo” do Pan-ecumenismo
religiosa e ainda se veem como benfeitores da humanidade, por colaborarem com a paz
mundial. Na realidade não colaboram nem com os Cristãos subjugados dos países islâmicos e
tampouco satisfazem aqueles com quem presuntivamente pretendem abrir diálogo, porque os
lideres das religiões não Cristãs não querem ouvir que os ensinos de suas religiões são
metáforas piedosas, sem fundo veritativo 718 . Em suma de um lado e outro os Cristãos
África, onde não existe o secularismo, mas tampouco perseguição religiosa, as razoes contra o
relativismo não são menos contundentes. Aí também não são mais favoráveis à
igrejas cada vez mais fragmentadas, ideológica e institucionalmente, dão nascimento ao novo
América do Sul719.
718
Ho Jin Jun. “Evangelical challenges to religious pluralism in Asian context” (TTJ, no. 2, 2007), p. 29.
719
Franz Damen. “Panorama das religiões no mundo e na América Latina”, in Pelos muitos caminhos de Deus
(Goiás: Editora Rede, 2003), pp. 45 e 46.
283
O nome disto é sincretismo religioso ainda que, por enquanto, só no âmbito dos
escolhem itens da religiosidade como um consumidor que customiza os produtos que irá
consumir. Eles escolhem os itens de cada religião para compor sua própria religiosidade, sem
mesmos. A extrema liberdade com que esta mistura é feita reflete também a ideia de que
todos os credos descrevem a mesma realidade divina, só que tomada de outro ângulo. O
divino é a realidade multifária irredutível e ao mesmo tempo um uno não fracionável. Este
que se querem subscrever os teólogos pós-modernos? Ideologias vêm e vão, mas o evangelho
é eterno (Ap. 14:6). Outras crises já se apresentaram, por causa de outras exigências
hermenêuticas tão ou mais prementes do que as nossas: o Gnosticismo nos dois primeiros
séculos, o Iluminismo, da segunda metade do sec. XIX até a primeira metade do séc. XX. E
agora serão estas novas ideologias eternas, verdades últimas a que se devem encurvar as
Escrituras? E, entretanto, é inegável que a nossa crise é mais insidiosa e sorrateira. Ela mina
as fundações como água inocente, sem alarde. Para ser combatida serão necessárias decisões
720
Pierre Sanchis. “Religião, religiões… Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro.”. In
Pierre Sanchis (org.). Fieis & cidadãos: percursos de sincretismos no Brasil (Rio de Janeiro: Eduerj, 2001).
721
Pierre Sanchis. “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?”. In Eduardo Hoornart. História da
Igreja na América Latina e no Caribe (Petrópolis, RJ: Vozes, 1995), p. 88.
284
mais firmes, o que não significa dar as costas para o mundo: adaptação, contextualização, mas
não negociar os princípios: (1) Jesus é o único Salvador, (2) a Igreja deve esta mensagem ao
mundo.
que no meio termo está o equilíbrio, também não nos serve. Suas teses têm uma fragilidade
axial que atinge o segundo princípio: nele não é possível nenhum impulso missiológico. Não
há razão para pregar, porque no fundo adota como lastro filosófico a tese wittgensteiniana da
relevância universal. Aqueles que nasceram numa cultura budista ou hindu não podem
entender o mundo da perspectiva cristã assim a cooperação entre as religiões ocorrerá sem
que nenhum dos participantes possa abandonar sua particularidade. Buscar cada qual, em sua
própria religião, pontos de contato com a religião dos outros, parece mais um
Quanto à modalidade inclusivista já não há mais nada a agregar além do que foi dito.
Ao mesmo tempo inscrevendo-se no programa hermenêutico atual para dar-lhe um rosto mais
evangélicas.
manipular o comportamento religioso dos que a ele não aderirem de boa mente. Hoje em dia,
contudo, esta espécie de exclusivismo referido ao Cristianismo tem cada vez menos condições
de ser praticado, tendo em vista o laicismo no Ocidente e o aumento do poder econômico das
religiões não Cristãs nos países onde são praticadas. Os argumentos pós-colonialistas hoje
talvez sejam aplicáveis apenas à África. Em outras regiões do globo, tais como a janela 10/40
impõe à agenda Cristã como prioridade. A pergunta é como ele poderá ocorrer diante de tudo
o que foi discutido até aqui? O estudo das religiões como mera estratégia missiológica com o
objetivo de erguer pedras de espera para a evangelização dos não Cristãos não pode mais
satisfazer esta agenda, como conclui Jason Barker (embora assim alguns persistam em
pensar):
“A pergunta não é mais se devemos entrar em diálogo, mas que tipo de diálogo
devemos entreter” 723 . No primeiro capítulo desta pesquisa já foi discutida a posição dos
desenvolvimento de uma espécie de esperanto religioso. Leonard Swidler foi um de seus mais
722
Apud Douglas Cowan. Bearing false witness? An introduction to the Christian countercult (Westport, CT:
Praeger Publishers, 2003), p. 108.
723
David J. Hesselgrave. “Interreligious dialogue – biblical and contemporary perspectives”. In David J.
Hesselgrave. Theology and mission (Grand Rapids, MI: Baker, 1979), p. 235.
286
ardorosos defensores desde o início da década de 80, com a publicação de vários artigos onde
propunha uma espécie de decálogo para o diálogo entre as religiões724. Fiel à sua posição
religioso deve significar que seus participantes devem antes de tudo buscar “uma mudança e
É inegável que não se pode pensar em diálogo entre as religiões como mera conversa
entre posições religiosas diferentes. Deve haver um objetivo comum, deve haver um projeto
religiões, exceto a religião universal iluminista. Mas, o diálogo é uma necessidade empírica
globalizado.
mera conversa a dois, como se o radical dia se referissem aos dois participantes do bate-papo.
Dia não é di (dois), antes quer dizer através, enfatizando um meio e um objetivo. “Diálogo
724
Leonard Swidler. “the dialogue decalogue: ground rules for interreligious dialogue” (Horizons, vol. 10,
1983) , p. 350.
725
Os outros mandamentos são: (2) um projeto bilateral levado a cabo dentro de duas comunidades religiosas,
(3) completa honestidade e sinceridade por parte de cada participante, (4) cada participante assume a completa
honestidade e sinceridade por parte do outro, (5) cada participante deve definir-se a si mesmo, (6) cada
participante deve vir ao diálogo sem preconceitos e conceitos superficiais sobre o outro, (7) o diálogo só pode
ocorrer entre iguais (par cum pari), (8) o diálogo só pode acontecer num ambiente de mútua confiança, (9) cada
participante deve ser autocrítico em relação à sua tradição religiosa e (10) cada participante deve eventualmente
tentar experimentar a religião do parceiro no diálogo.
726
Ibid, p. 351.
727
Apud Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and theology of religions (London: SCM Press,
2010), p. 63.
287
Hans Küng, por sua vez, tem uma proposição mais realista do que Swidler, por
desenvolvimento de uma ética global. Como tivemos oportunidade de examinar, para Küng o
bases do diálogo entre as religiões serem pautadas em seus Ensinos, resumidos em quatro
grandes prescrições: “(1) não violência e respeito pela vida, (2) solidariedade e justa ordem
econômica, (3) tolerância e uma vida de veracidade e (4) direitos iguais e parceria entre
homens e mulheres”728.
O reparo de Küng é bem-vindo, mas seu projeto ainda suscita contenções quanto à
do que é possível. A diversidade da religiosidade humana é de tal sorte que uma ética global
parece um projeto utópico; nenhum dos princípios poderia incluir todas. O primeiro preceito é
pacífico, mas ainda excluiria as religiões animistas (por causa de práticas sacrificais de não
renda como a ordem econômica justa, o que não também não seria tão pacífico por causa do
coletivismo dos povos arcaicos e outras formas organização econômica que não endossam “as
religiosas como é o caso das castas no Hinduísmo729, em que a posição social (varna) está
são valores religiosos universais. O quarto e último preceito entra em choque com as
728
Hans Küng e Karl-Josef Kuschel (eds.). A global ethic. The declaration of the Parliament of the World’s
religions (New York: The Continuum International Publishing Group Inc., 2006), pp. 24-33. Cf. Hans Küng.
Proyecto de una ética mundial (Madrid: Planeta – Agostini, 1994).
729
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and theology of religions, p. 259.
730
É a lei espiritual que deve governar as ações dos que estão sob a lei cósmica do karma, que, por sua vez,
determina o destino de todos os seres. Ser obediente ao dharma é aceitar as condições sociais, a casta onde
nasceu, e torná-la sua missão para retornar em outra encarnação numa posição mais elevada e prosseguir
evoluindo até o fim do ciclo.
288
Há que se reconhecer que o projeto de Küng tem como ponto de partida os ensinos de
Jesus, mas a pergunta cabível é: por que os ensinos de Jesus com viés secularizado são mais
adequados ao diálogo inter-religioso do que Sua escatologia? Não seria este projeto mais
que se levanta e se avoluma à medida que as páginas do projeto de Küng e Kuschel são
viradas é que se trata de uma extensão das éticas iluministas já conhecidas, que vêm com o
mesmo defeito: “não podem gerar uma transformação moral e social” 731; e, ademais, sequer
David J. Hesselgrave, num artigo não tão recente, faz algumas sugestões que
permanecem atuais, de como os Cristãos podem ingressar num processo cooperativo com as
religiões sem abrir mão de seus valores: (1) antes de entrar em diálogo com as religiões não
Cristãs é preciso saber que tipo de diálogo quer se constituir, com quais objetivos; (2) o
diálogo inter-religioso pode dizer respeito à liberdade de adoração e de profissão de fé, que no
caso de Cristãos significa também testemunhar com o objetivo de ganhar outros para a fé; (3)
escravo, etc., bem como ações que produzam impactos ambientais negativos: testes nucleares,
desmatamento, tráfico de animais, fome, etc.; (4) diálogo para derrubar as barreiras do
preconceito e promover uma compreensão mais profunda e uma melhor apreciação das
práticas religiosas732.
Certamente, a mais urgente das necessidades para o diálogo inter-religioso é a que está
relacionada com a razão (4). No passado e mesmo hoje, depois de tantos debates entorno do
tema, a ênfase dos estudos comparativos entre o Cristianismo e as outras religiões mundiais
731
Bas de Graay Fortman e Berma Kleein Goldewijk. Dios y las cosas. La economía global desde una
perspectiva de civilización (Santander: Sal Terrae, 1999), p. 130.
732
David J. Hesselgrave. “Interreligious dialogue – biblical and contemporary perspectives”, pp. 227-240.
289
neste tipo de estudo parece fundar-se numa pressuposição básica extremamente maniqueísta:
Deus no lado Cristão e o Diabo no outro lado; embora não haja na Escritura nada que o
recomende. Pelo contrário, como vimos, a Escritura fala de um plano divino para salvar a
todos, desde os concertos de Adão, Noé e Abraão até o programa missiológico inclusivo de
No evangelho de João Jesus ora por ovelhas que não são do aprisco sob Seus cuidados
diretos (Jo. 10:16) e no início do mesmo livro já havia dito que Deus não dá Seu Espírito por
medida (Jo. 3: 34); em Atos o Espírito é derramado sobre Gentios (At. 10: 47), que com
certeza foi evento interpretado pelos apóstolos escatologicamente à luz de Joel 2: 28: “e
Sabemos, entretanto, que por mais inclusivos que pareçam estes textos, nada neles nos
dos sinais do Espírito nas doutrinas e práticas das religiões mundiais. Este tipo de escrutínio
não nos pertence nem isto foi requerido de qualquer Cristão. O trabalho da pregação não
coloca sobre os Cristãos o dever de interferir ou julgar as instituições não Cristãs, mas de
alcançar seus adeptos, dentre quantos estejam dispostos a ouvir o evangelho (no mundo
Por outro lado, o ministério do Espírito não pode se restringir à Igreja, pois a própria
obra da pregação estaria impossibilitada fosse isto verdade. Como escreve Paulo, sem o
trabalho do Espírito ninguém poderia chegar à conclusão de que Jesus é o Senhor (I Co. 12:3)
e, portanto, salvar-se. Devemos, por conseguinte, abandonar o maniqueísmo que nos faz ver
733
William A. Dyrness. Learning about theology from the third world (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), p.
156.
290
os ouvintes do evangelho provindos das religiões mundiais como se no momento em que dão
ouvidos à Palavra de Deus pela primeira vez seja o marco zero de sua espiritualidade. Como
se antes de se depararem com a mensagem da cruz não tivessem sido guiados em sua
caminhada espiritual ao Cristo, do qual pelo mesmo Espírito somos também impelidos a
pregar.
Esta é a grande novidade que estes novos ventos trazem ao mundo Cristão,
objetivo de Deus salvar a todos, não sendo seu objetivo o engrandecimento da Igreja e de seus
líderes. A Igreja é apenas instrumento, agência, não a razão de ser da missão. A soberba
espiritual antes tão facilmente desenvolvida nos meios Cristãos, por causa dos retratos
caricaturizados das outras religiões e por causa dos muitos retoques no seu próprio, deve
agora ceder lugar à humildade, de ser uma entre outras no mundo multirreligioso. E, pela
certeza de que “Deus amou o mundo” (não um pequeno número de crentes) “de tal maneira
que deu Seu Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna” (Jo. 3: 16), poder dar à sua mensagem o enfoque hermenêutico correto.
século XXI pode também significar um kairós, uma grande oportunidade de pregação, para
completar obra iniciada por Jesus e levar a cumprimento Sua palavra: “até os confins da
terra”, porque sem os controles políticos ou religiosos das instituições religiosas Pós-
constantinianas, que criam obstáculos à pregação, cada um pode ser chamado a dar uma
resposta livre aos apelos do evangelho e os disputantes da verdade religiosa podem esforçar-
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