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Teologia das Religiões.

Rumo a um inclusivismo bíblico.

Sílvio Murilo Melo de Azevedo


2

Sinopse

Esta pesquisa trata da complexa e difícil questão da teologia das religiões, com especial
atenção à salvação no mundo pós-moderno, o papel salvífico das religiões não Cristãs, e a
consequente relevância da mensagem cristã no mundo globalizado. Nosso quadro teórico é a
teologia sistemática e a hermenêutica teológica. Apesar de ser uma obra introdutória
(oferecendo uma visão panorâmica das principais teorias envolvidas na discussão), ela
também pretende oferecer soluções para os problemas propostos, seja por fazer delas uma
crítica baseada na Escritura, seja por desenvolver uma teoria bíblica para substituí-las, naquilo
que não estão concordes com o texto bíblico. Nossa conclusão é contra o pluralismo e o
inclusivismo. O pluralismo não é útil prática ou teologicamente falando. Com o objetivo de
tratar todas as religiões como parceiras no mundo globalizado, ela destrói suas
particularidades, esvazia seu discurso e experiência religiosa de um significado soteriológico
factual e com isto nega sua relevância. Contra o inclusivismo institucional, nós usamos
argumentos históricos tentando levar a Igreja de volta aos termos pré-constantinianos.
Buscando nos evangelhos e no NT elementos para a construção de uma teologia bíblica das
religiões, defendendo um tipo de inclusivismo, cujos esforços são para incluir pessoas não
outras instituições. O objetivo desta investigação é criar uma proposta teórica de teologia das
religiões biblicamente fundamentada, que mantenha intacta nossa obrigação de pregar, mas
também o respeito e a consideração pelo outro religioso, não considerando as culturas
inferiores ou sem valor, nem fazendo da pregação uma forma de calar as outras vozes.
3

Abstract

This research deals with the complex matter of Theology of Religions, with special emphasis
upon the salvation in post-modern world and the non Christian religions’ role in this, as well
the importance and relevance of Christian message in a pluralistic world. Our frameworks are
systematic theology and hermeneutic theology. Despite of being an introductory work
(offering a survey of more important theories and methodological concepts), it intend to offer
solution for many of the problems discussed, either for doing a biblical critic of the shown
theories or developing a biblical theory to replace those found not fitting. Our conclusion is
against pluralism and inclusivism in defense of biblical inclusivism. Pluralism is not useful,
practical or theologically speaking, for in order to treat all religions as equal partners in global
world, it dismiss all theirs idiosyncrasies, empts their addressing and experience of factual
meaning and denies their relevance. Against institutional inclusivism, we argue with historical
arguments trying to carry up the Church back into pre-constantinian terms, searching in the
gospels and NT elements for building a biblical theology or religions, defending a kind or
inclusivism which efforts to include people not institutions. The aim of this investigation is a
proposal of a theory for theology of religions biblically grounded, which keep our preaching
obligation, as well the respect and consideration for the religious other, not considering its
culture inferior or valueless, nor making preaching a form of intolerance against other
religious institutions.
4

Sumário

1. Introdução. A odisseia pós-moderna no oceano religioso..………………………………………………..7


1.a. Entre Cylla e Caribde...........................................................................................................8
1.a.1. A demanda empírica..........................................................................................10
1.a.1.a. Secularismo..........................................................................................11
1.a.1.b. Pós-modernidade................................................................................18
1.a.1.c. Globalização.........................................................................................25
1.a.1.d. Mundialização do Cristianismo............................................................28
1.a.1.e. O testemunho da história....................................................................33
1.a.2. A demanda escriturística....................................................................................35
1.a.2.a. Hermenêutica Teológica......................................................................37
1.a.2.a.1. Fenomenologia da religião....................................................38
1.a.2.a.2. Hermenêutica Pós-moderna.................................................42
1.a.2.a.3. Hermenêutica normativa......................................................45
1.b. Status questionis da Teologia das Religiões......................................................................46
1.b.1. Introdução..........................................................................................................46
1.b.2. Algumas taxonomias classificatórias..................................................................56

2. Capítulo II. Exclusivismo.......................................................................................................64


2.a. Introdução.........................................................................................................................64
2.b. Igreja Pré-constantiniana..................................................................................................66
2.b.1. Evangelhos: textos polêmicos............................................................................67
2.b.2. O contexto religioso neotestamentário.............................................................69
2.c. Exclusivismo Católico Romano..........................................................................................79
2.d. Exclusivismo Protestante..................................................................................................81
2.d.1. Karl Barth............................................................................................................83
2.d.2. Emil Brunner.......................................................................................................88
2.e. Exclusivismos de Organizações Ecumênicas, Evangélicos, Independentes e
Pentecostais.............................................................................................................................91
2.e.1. Organizações Ecumênicas..................................................................................91
2.e.2. Evangélicos…………………………………………………………………………………………………….97
2.e.2.a. Robert Sproul e Ronald Nash...............................................................99
2.e.2.b. Gabriel Frackre..................................................................................103
2.e.2.c. John R. W. Stott e J. E. Sanders..........................................................104
2.e.3. Independentes.................................................................................................108
2.e.3.a. Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias...........................109
2.e.3.b. Igreja Adventista do Sétimo Dia........................................................110
2.e.4. Pentecostais.....................................................................................................111
2.e.4.a. Veli-Matti Kärkkäinen........................................................................112
2.f. Conclusão.........................................................................................................................114

3. Capítulo III. Inclusivismo....................................................................................................115


3.a. Introdução.......................................................................................................................115
3.b. Inclusivismo Evangélico-Pentecostal..............................................................................118
3.b.1. Clark Pinnock....................................................................................................119
3.b.2. Amos Yong........................................................................................................124
5

3.c. Inclusivismo Católico Romano.........................................................................................130


3.c.1. Karl Rahner.......................................................................................................133
3.c.2. Jacques Dupuis.................................................................................................136
3.c.3. Edward Schillebeckx.........................................................................................140
3.d. Conclusão........................................................................................................................144

4. Capítulo IV. Pluralismo.......................................................................................................145


4.a.Introdução........................................................................................................................145
4.b. Pluralismo Particularista.................................................................................................146
4.b.1. Jüngen Moltmann............................................................................................149
4.c. Pluralismo Sintético…………………………………………………………………………………………………….154
4.c.1. John Hick………………………………………………………………………………………………………162
4.c.2. Paul Knitter…………………………………………………………………………………………………..170
4.c.3. Claude Geffré……………………………………………………………………………………………….175
4.c.4. Raimon Panikkar…………………………………………………………………………………………..179
4.c.5. Michel Amaladoss…………………………………………………………………………………………187
4.c.6. Hans Küng…………………………………………………………………………………………………….190
4.c.7. Stanley Samartha………………………………………………………………………………………….194
4.d. Conclusão…………………………………………………………………………………………………………………..196

5. Capítulo V. O “reino de Deus” e a Teologia das Religiões..................................................201


5.a. Introdução.......................................................................................................................201
5.b. Escatologia da época de Jesus........................................................................................204
5.b.1. Essênios............................................................................................................212
5.b.2. Profetas de sinais.............................................................................................214
5.b.3. Profetas da destruição.....................................................................................214
5.b.4. Fariseus............................................................................................................216
5.b.5. Zelotes..............................................................................................................222
5.c. A escatologia de Jesus.....................................................................................................224
5.c.1. O conceito de santificação de Jesus.................................................................226
5.c.2. A taumaturgia de Jesus.....................................................................................236
5.d. Jesus e os Gentios...........................................................................................................242
5.d.1. A mesa aberta e o banquete escatológico.......................................................246
5.d.2. A purificação do templo...................................................................................250
5.d.3. O julgamento ético-práxico..............................................................................252
5.d.4. Abba.................................................................................................................254
5.e. Os Gentios e o programa missiológico de Jesus na redação das Fontes.........................256
5.e.1. Marcos..............................................................................................................256
5.e.2. Mateus.............................................................................................................260
5.e.3. Lucas-Atos........................................................................................................265
5.e.4. João..................................................................................................................267
5.f. Outras convergências neotestamentárias.......................................................................273
5.f.1. Paulo.................................................................................................................273
5.g. Conclusão........................................................................................................................277

6. Capítulo VI. Conclusão Final...............................................................................................281

7. Referências.........................................................................................................................291
6

Abreviaturas

AR Approaching religion
Ag. Ap. Against Apion
Ant. Antiguidades Judaicas
ATh Acta theologica
BR Bible Review
BEThS Bulletin of the Evangelical Theological Society
BThT Biblical Theology Bulletin
CBR Currents Biblical Research
CR Cerpit Review
Ciberteologia Revista de Teologia e Cultura
Concilium International Journal of Theology
CTP Cadernos de Teologia Pública
EA Estudio Agustiniano
EAPR East Asian Pastoral Review
EF Educação e Filosofia
EMQ Evangelical Missions Quarterly
ER Ecumenical Review
Études
Guerra Guerra dos Judeus
Horizons
HTR Harvard Theological Review
HTS Hervormde Teologiese Studies
IR An International Review
IRM International Review of Mission
JES Journal of Ecumenical Studies
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
Jeevadhara
JHCS Journal of Hindu-Christian Studies
JTR Journal of Theological Reflection
L&S Letter & Spirit
LS Louvain Studies
Micromega
Missiology An International Review
NIB New Interpreters Bible
NRT Nouvelle Revue Théologique
Numen Revista de Estudos e Pesquisa da Religião
PI Promotio Iustitiae
Ribla Revista de interpretação bíblica latino-americana
RTL Revue Theologique de Louvain
RHPR Revue du Histoire et Philosophie Religieuse
RP Raisons Politiques
RS Religião e Sociedade
ReS Religious Studies
Spiritus
SM Studia Missionalia
ST Selecciones de Teología
ST Scripta Theologica.
Teocomunicação
ThT Theology Today
TC Teología y Cultura
TD Theology Digest
TJ Trinity Journal
TS Theological Studies
TTJ Torch Trinity Journal
TV Teología y Vida
VE Verbum et Ecclesia
Voices
WFI World Faiths Insights

As abreviaturas da Bíblia seguem as da versão Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida.


7

INTRODUÇÃO

1. A odisseia Pós-moderna no oceano religioso

1. a. Entre Cylla e Caribde

Como lembra Paul Ricoeur, o Cristianismo nasceu sob o signo da hermenêutica 1 .

Primeiramente, porque vem ao mundo como interpretação do Antigo Testamento à luz do

advento de Jesus Cristo e de sua pregação – sem esquecer que o próprio AT também vem à

existência como esforço de entender a ação de Deus em Israel; depois, porque esta mesma

interpretação canônica agora dirige um convite aos ouvintes de outros tempos que também

interpretem sua existência à luz do texto. Portanto, temos aí uma cadeia de interpelações

cíclicas em que Deus se manifesta aos homens, chamando-os a conhecê-lo e à sua salvação, e,

por outro lado, cada nova geração também interroga a Palavra em busca da compreensão. Isto

ocorre porque nem o texto que questiona os homens nem estes que são questionados são

entidades genéricas. A Palavra de Deus foi registrada e transmitida por homens santos de

certo lugar e tempo e não primariamente destinada a seus ouvintes atuais. Cada leitor que não

pertence a este círculo hermenêutico original é convidado a empreender novamente o vórtice

hermenêutico, infelizmente, descendente, num processo dialético, como entendido por Sto.

Agostinho: (crê para compreender e compreende para crer) crede ut intelligas et intellige ut

credas.

Em suma, cada novo tempo faz novas perguntas ao texto bíblico, para que, pelas

inesgotáveis riquezas da revelação divina, possam ser respondidas, e é esta traducibilidade, ou

seja, esta capacidade de falar a todos os homens, independendo de tempos e lugar (de suas

condições históricas, sociais, econômicas e geográficas), que possibilitou ao Cristianismo

tornar-se a religião de maior expansão mundial.


1
Paul Ricoeur. Le conflit des interprétations. Essais d’Hermeneutique (Paris, Éditions du Seuil, 1969), p. 372.
8

Entretanto, uma conclusão tão pronta e evidente esconde perigos. Por exemplo, em que

medida deve-se fazer depender a mensagem bíblica da capacidade ou incapacidade de seus

leitores de interpretá-la? A traducibilidade da Escritura não pode ser entendida em termos

meramente humanos. A incapacidade pode resultar da contumácia e rebeldia dos ouvintes

(por causa de sua condição caída e parcialmente destituída da imago Dei) e não da falta de

habilidade contextualizadora dos pregadores. Também pode ser agravada pela rigidez de

instituições seculares e religiosas e de contextos histórico-sociais desfavoráveis a certas

verdades. Ou seja, os questionamentos humanos à Palavra de Deus não devem ser

considerados todos legítimos. Cada nova questão imposta pelos tempos à Palavra deve ser

examinada pela hermenêutica teológica, para que os homens e as culturas também possam ser

postos em questão por ela.

Dentre as novas questões que os tempos nos trazem, queremos destacar em especial

uma referida ao âmago mesmo do Cristianismo, porque lida com sua identidade e seu legado

num contexto onde tais coisas têm sua importância limitada ao âmbito afetual: o mundo pós-

moderno. Nesta sociedade de relativismos tão onipresentes cabe perguntar: o Cristianismo

ainda possui uma mensagem sui generis a dar ao mundo, ou, pelo contrário, sua mensagem

religiosa é uma entre outras? Mantida a singularidade, impõe-se nova indagação: como pode o

evangelho relacionar-se com os ensinos das demais religiões sem ofendê-las e sem ofender

aqueles que, ainda acreditando-se cristãos, creem que o multiculturalismo e o pan-

ecumenismo são valores?

Com justa razão diz-se que o problema hermenêutico atual é um “impasse de área”2,

dado o número extraordinário de teorias antagônicas que se apresentam para resolver o

proposto problema. Alguns pensam que a mensagem cristã deve adotar um tom mais ameno e

conciliador, o que significa, por exemplo, considerar legítimos os esforços salvíficos das
2
Michel Barnes. Theology and the dialogue of religions (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), p. 13.
9

outras religiões. Outros creem que fazer isto implicaria tornar imperativo o descarte de todas

as passagens bíblicas que enfatizem a especificidade, a singularidade e exclusividade religiosa

do Cristianismo, o que não estão dispostos a fazer.

E aqui o impasse: não podemos fazer uma coisa ou outra, mas tampouco deixar de fazer

algo. Esta necessidade de contextualização da mensagem cristã nos empurra para uma práxis

que ainda hoje não conta com suficiente iluminação teórica, ainda que tão necessária.

Lidamos com duas demandas igualmente importantes que exigem de teólogos, missiólogos e

evangelistas uma solução salomônica, cujo objetivo é a preservação da vitalidade e da

validade do Cristianismo. Por vitalidade entende-se a capacidade de falar ao coração dos

homens de todas as eras; por validade, a habilidade de dizer a mesma coisa aos homens de

todas as eras, a saber, que todos pecaram e carecem da glória de Deus (Rm. 3: 23).

Esta não é uma situação inteiramente nova. Sempre que quando mudanças ideológicas

muito profundas são experimentadas nas sociedades humanas a hermenêutica teológica é

solicitada. O diferencial é que hoje o cumprimento da missão de pregar o evangelho ao

mundo globalizado está revestido de tantas dificuldades que a prudência nos recomenda o uso

da palavra crise. Pois para manter a relevância da mensagem cristã devemos atender a ambas

as exigências: a contextualização e a preservação, numa medida de conciliação que anda

longe do consenso.

A propósito, há os que preferem ver na questão acima um problema sem solução, que é

bem definido por meio de um oxímoro: ou negamos a essência das Fontes _discurso absoluto

sobre Deus e sobre a condição humana, e isto o evangelho nos proíbe categoricamente; ou

abrimos mão da proclamação da mensagem ao mundo, e isto o evangelho nos obriga

terminantemente. Dito de outra forma: (a) entregamos as Fontes pela rejeição de seu

exclusivismo essencial, na tentativa de tornar o evangelho relevante para o homem


10

contemporâneo, então, por este mesmo feito, fazemo-la irrelevante por relativizá-la; ou (b)

não as entregamos e com isto fazemo-la perder de igual modo a relevância por

incompatibilizá-la com o entendimento de seu ouvinte contemporâneo.

Nos relatos homéricos há uma passagem que já serviu de ilustração para muitos

discursos e que agora cai-nos como luva. Trata-se da difícil travessia de Ulisses, pelo estreito

de Messina, entre dois rochedos onde viviam duas criaturas monstruosas, cujos nomes eram,

Cylla e Caribde. O primeiro rochedo escondia um monstro cujo tragar produzia um

sorvedouro onde desapareciam navios juntamente com suas tripulações; o segundo, ocultava

uma criatura, de quem só se conheciam os longos braços arrebatadores dos marinheiros

atarefados em livrar a embarcação de Cylla.

Este episódio, citado mais de uma vez para ilustrar dilemas difíceis, quando algum tipo

de consequência funesta é inevitável (cabendo, portanto, fazer a opção menos danosa) serve

bem para representar a atual situação do Cristianismo, que, por um lado não pode deixar de

responder à situação na qual está seu ouvinte; por outro, tampouco pode entregar as Fontes.

Duas exigências, duas demandas, que impelem a fé cristã a se repensar e a se reposicionar

face ao mundo. (a) Uma exigência empírica: o mundo a que deve dirigir uma mensagem; e (b)

uma demanda teológica: a necessidade de conservar a validade de suas Fontes, que recém

completam três milênios e seis séculos de existência e nunca antes tão questionadas.

1.a.1. A demanda empírica

O que aqui se chama demanda empírica refere-se à necessidade de a mensagem cristã

adequar-se a seus ouvintes no transcurso das eras que atravessa e das que ainda atravessará até

que todos a tenham ouvido. Nenhum período da história tem sido mais pródigo de tantas

cosmovisões; nenhum, tão repleto de opções ideológicas. Nenhuma delas, entretanto, parece
11

merecer maior e mais urgente consideração do que o problema da relação do Cristianismo

com as outras religiões num ambiente globalizado.

Antes, porém, de seguir nesta direção, faz-se necessário um breve exame de demandas

de outros tempos, que, somadas a esta, formam a matriz cultural atual. Não caímos no estado

atual de paraquedas. O que somos hoje é a soma do que vimos sendo há duzentos anos. Do

ponto de vista histórico-ideológico nossa atual condição é complexa e merece consideração

cuidadosa. O entendimento dos fenômenos analisados ficaria muito prejudicado não fossem

considerados também fatores que, se hoje não estão mais na ordem do dia, permanecem

influenciando o comportamento social. Com efeito, as contradições de nosso tempo são

produto desta mescla de elementos que não se excluem, mas se completam e se unem para

tornar mais complexa a nossa missão de entender o que está acontecendo ao mundo ao qual

devemos uma mensagem.

1.a.1.a.Secularismo

A primeira demanda empírica de nosso tempo é o secularismo, processo de

obsolescência das instituições religiosas ora em curso no Ocidente. Seu fiat perde-se nos

alvores do século XIX, quando o Iluminismo já se entronizara como ideologia dominante no

Ocidente. Há uma expressão weberiana que pretende esclarecer em parte o que nos ocorreu:

“o desencantamento do mundo” (die Entzauberung der Welt), entendido como a

racionalização das relações sociais e a consequente separação da dominação estatal daquela

exercida pelas instituições religiosas. Esta racionalização, por sua vez, teria sido resultado de

uma racionalização da religião cristã provocada pelo aparecimento de um Protestantismo de

natureza logocêntrica, em que aspectos litúrgicos e cúlticos característicos do Catolicismo

Romano perdem importância e espaço. Segundo o entendimento de M. Weber os homens

neste ambiente racionalista e dessacralizado são levados a destituir o discurso religioso de sua
12

autoridade, substituindo-o pelo discurso de outras instituições societárias mais seculares: as

instituições políticas, produtivas, acadêmicas e midiáticas. Em outras palavras:

[Secularização é] um processo pelo qual o abrangente e transcendente sistema


religioso é reduzido nas sociedades funcionalmente diferenciadas a um subsistema
ao lado de outros subsistemas, perdendo neste processo sua prerrogativa de incluir
os outros subsistemas. Como resultado o significado social da religião é
grandemente diminuído3.

O processo não ocorreu da mesma forma e com a mesma intensidade em todos os

lugares da Europa. Na França foi motivado por um anticlericalismo herdeiro da Revolução

Francesa, como expressão do repúdio à aliança do alto clero Católico Romano com a nobreza

francesa, cujo consórcio produziu o empobrecimento da população. Na Alemanha é resultado

de uma longa linha de defensores da autonomização e individualização da religião que

começa por Martinho Lutero, passa por Kant e termina na crítica textual dos séculos XVIII e

XIX. Na Inglaterra foi produto de uma teologia da prosperidade de que nasceu a Revolução

Industrial e cujas origens radicam no Calvinismo4. Obviamente, trata-se de ênfases histórico-

sociais e não de exclusividades dos países acima relacionados.

Peter Berger aduz a partir da perspectiva da sociologia do conhecimento que o principal

problema da religião cristã é uma “perda de plausibilidade”, explicada da seguinte forma: a

principal função da religião é a “cosmificação” da realidade, ou seja, a organização do mundo

humano que inclui tanto o mundo natural como o social. É a constituição de um mundo de

significados que serve para legitimar a lei e a ordem societária e dar à sociedade e à vida dos

indivíduos um sentido que ultrapasse o mundo concreto e caótico. Ocorre que em nossos dias

o aspecto mais importante desta cosmificação não ocorre mais por meio do discurso religioso,

3
K. Dobbelaere apud Katarzyna Zielinska. “Concepts of religion in debates on secularization” (AR, volume 3,
no. 1, 2013) , p. 27.
4
Max Weber. A ética protestante e o “espírito” do Capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
13

mas através da linguagem científica5. Parece que a religião perdeu a capacidade de dar uma

visão unificadora da realidade. Os mitos científicos têm para o homem contemporâneo mais

plausibilidade porque parecem satisfatórios na realização desta tarefa.

Com efeito, a cosmificação religiosa é a modalidade mais antiga e eficaz 6 e tem

acompanhado a humanidade desde os seus primórdios. O Ocidente, porém, a partir do

Renascimento, o vem abandonando gradativamente. No início foi o monólogo religioso do

Teocentrismo medieval, depois adotou paralelamente motivos seculares que caracterizaram o

Antropocentrismo renascentista. A mudança paradigmática ocorre por uma divinização do

humano e por uma humanização do divino em todas as áreas da vida social: na política, na

filosofia, na literatura, nas ciências e nas artes. A decadência espiritual da Igreja Católica, a

opulência material das cidades e o consequente afrouxamento dos estames societários da

Idade Média, o desenvolvimento das ciências da natureza e a redescoberta dos clássicos

gregos, contam-se entre os principais fatores que levaram a alta sociedade desta época a uma

espécie de ateísmo prático.

P. Berger diferencia o secularismo deles do nosso dizendo que o secularismo

contemporâneo atingir todas as camadas populacionais do mundo Ocidental e não apenas a

parte mais educada da sociedade, como é o caso renascentista:

Provavelmente, pela primeira vez na história, as legitimações religiosas do mundo


perderam sua plausibilidade não apenas para uns poucos intelectuais e outros
indivíduos marginais, mas para amplas massas de sociedades inteiras. Isto ocasionou
uma crise aguda não apenas para a nomização das grandes instituições sociais, mas
também para a das biografias individuais. Em outras palavras, surgiu um problema
de ‘significado’ tanto para instituições como o Estado e a economia, quanto para as
rotinas ordinárias da vida cotidiana. O problema é claro, tem se colocado de modo
intenso para vários teóricos (filósofos, teólogos, psicólogos, etc.), mas há boas
razões para se crer que também tem sido bastante agudo para pessoas comuns que

5
P. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião (São Paulo: Edições Paulinas,
1985), p. 40. Cf. Lestor R. Kurtz. Gods in the global village. The world’s religion in sociological perspective
(Thousand Oaks, CA: Pine Forge Press, 1995).
6
Ibid..
14

não são dadas a especulações teóricas e apenas procuram resolver as crises de suas
7
próprias vidas.

Outro sociólogo do conhecimento, também de origem germânica, Niklas Luhmann

opina que não se trata apenas de a religião ter perdido sua capacidade “nomizante”8, haja vista

não ser mais a principal agência de construção ideológica da sociedade. Sua conclusão é ainda

mais pessimista. Na atual fase da história humana o sistema religioso entra em fase terminal,

havendo perdido sua autonomia em relação aos outros sistemas. O subsistema religioso tende

daqui em diante a ter seu espaço invadido pelos outros subsistemas (política, arte, ciência,

medicina, etc.), os quais lhe subtraem gradativamente as atribuições até que nada mais lhe

reste, senão uma vaga função interpretativa, que melancolicamente se reduz na distinção entre

o absoluto do relativo9, com quase nenhuma aplicação prática. Luhmann está correto, a visão

holística do mundo provida pela religião perdeu-se e foi substituída pela visão atomizada da

ciência. A religião já não consegue reunir em seu discurso toda esta realidade fragmentada do

mundo contemporâneo e, pior, é atacada de todos os lados.

Mas o Cristianismo não pode assistir sua expulsão da vida do Ocidente de braços

cruzados. Muitos teólogos procuraram dar uma resposta à nova situação cultural e social.

Com este mesmo propósito, desde a segunda metade do século XIX, a teologia Protestante

europeia, principalmente a alemã, já procurava alinhar-se ao projeto iluminista de Kant e

Hegel, dando nascimento ao que mais tarde ficaria conhecido como Teologia Liberal. O

resultado, infelizmente, não foi ter tornado a mensagem cristã mais aceitável na Alemanha

secularizada, antes expandiu o secularismo para dentro das igrejas protestantes. Mais tarde, na

virada do século XIX para o XX, o fracasso moral e espiritual desta geração de teólogos

tornou-se patente pelo fato de seus mais ilustres membros terem subscrito um vergonhoso
7
P. Berger. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião, p. 137.
8
Termo originário da sociologia de E. Durkheim cujo radical é nomos, lei, e quer dizer que a principal função da
sociedade é criar um sentido de ordem e de ética comportamental que biologicamente o ser humano não possui.
A tese de Berger seguindo a sociologia clássica é a de que a religião é a principal força nomizante da sociedade.
9
Roberto Cipriani. Manual de Sociologia da Religião (São Paulo: Paulus, 2007), p. 305.
15

manifesto de apoio ao belicismo imperialista alemão no alvorecer da Primeira Grande

Guerra10.

A partir deste fato ultrajante surge um grupo de teólogos decididos a retomar os

caminhos da teologia no lugar que os liberais haviam os haviam abandonado: o texto bíblico.

Os dialéticos (F. Gogarten, E. Thurneysen, R. Bultmann, K. Barth e E. Brunner), cada um a

seu modo, tentaram responder ao desafio de pregar a Palavra de Deus em um mundo

secularizado. A princípio, o que os moveu foi uma atitude profética, instilada pelo socialismo

religioso (Herman Kutter e Christoph Blumhardt). Além disso, houve o influxo da filosofia

existencialista de S. Kierkegaard e a liderança teológica de Karl Barth. Mais tarde, porém,

cada um adotou sua medida de conciliação com o Iluminismo e seu próprio caminho

teológico.

Uma parte da teologia Católica chamada progressista também tomou para si o mesmo

encargo. Adotando uma perspectiva menos radical, a intenção era a mesma. Aproximar a

pregação da Palavra de Deus dos homens do século XX. Promover a tradução de doutrinas

historicamente sustentadas pelo Catolicismo Romano para uma linguagem supostamente mais

contextualizada e compreensível ao homem contemporâneo e a seu modo de ver a realidade e

o mundo.

Entre os vários teólogos católicos que seguiram esta linha pode-se citar Edward

Schillebeeckx, teólogo belga de língua flamenga, para quem o ouvinte da Palavra

contemporâneo estaria sofrendo de “um déficit de experiência”11. Para ele a revelação tem

duas fontes empíricas, a experiência originária dos escritores dos textos bíblicos e a

experiência dos leitores modernos. Portanto, para se desvendar o sentido da Escritura deve-se

10
Rosino Gibelini. A Teologia do século XX (São Paulo: Loyola, 1998), p. 18.
11
E. Schillebeeckx. Jesús, la historia de un viviente (Madrid: Ediciones Cristianidad, 1981), p. 58.
16

fazer uma correlação entre estas duas experiências 12 . Se ela não for feita, como costuma

acontecer em nossos tempos, isto é indício de uma perda da dimensão hermenêutica do

Cristianismo:

A conversa sobre Deus e a salvação em Jesus, é expressa nos termos de uma


cosmovisão de outros tempos, não fazendo sentido e nem sendo portadora de
significado para os seres humanos, do ponto de vista intelectual ou prático13.

A seu ver, a teologia esquecera que tanto o AT como NT são interpretações: o primeiro,

da ação divina na história de Israel; o segundo, interpretação do AT à luz do evento

escatológico de Cristo14. Para Schillebeeckx, portanto, a mesma busca de compreensão que

nossos antepassados espirituais empreenderam deve acompanhar as leituras contemporâneas

do Novo Testamento, ou seja, devemos interpretar a Escritura à luz de nossa própria condição

de habitantes de um mundo secularizado.

K. Rahner, um dos arquitetos do concílio Vaticano II, denunciou a teologia católica de

seu tempo como portadora de uma doença teológica que ele chama de calcificação,

endurecimento doutrinal (Fixierung). No século XIX a Igreja Católica estava acuada por

ataques liberais (instilados pelas ideias de J. Locke) contra seus privilégios políticos. Esta

situação de defensiva promoveu a hegemonia de um movimento ultraconservador na Igreja

que ficou conhecido pela posteridade como “a era dos Pios”, responsável por várias ações

autoritárias: o Silabus errorum (lista de livros proibidos pela Igreja por conterem ideias

liberais), a declaração da infalibilidade do Magistério (ex cathedra), a proibição da

diversidade teológica e o retorno do Tomismo (Neotomismo) à ordem do dia na filosofia da

Igreja, etc.

12
E. Schillebeeckx. Jesus and the Christ (New York: Crossroads, 1981), p. 50.
13
E. Schillebeeckx apud Marguerite Abdul-Masih. Edward Schillebeeckx and Hans Frei. A conversation on
method and Christology (Toronto: Canadian Corporations for Studies in Religion, 2001), p. 59.
14
Rosino Gibelini. A teologia do século XX, p. 326.
17

Era uma reação natural a Igreja Romana erguer barreiras teológicas contra o mundo que

a agredia15 e procurasse proteger seu status quo das investidas de setores da sociedade que

desejavam diminuir ainda mais sua participação na vida civil, como viria a ocorrer com a

laicização do Estado. Mas, para Rahner, teria também aumentado o isolamento do

Catolicismo, fazendo-o perder sua capacidade hermenêutica. O medo do modernismo fizera-o

parar de pensar, limitando-o à repetição de velhas fórmulas confessionais e conciliares, como

se isto fosse sua raison d’etre. Deveria apenas tê-las tomado como ponto de partida para

novas reflexões, conforme os tempos fossem exigindo 16 . E não sua transformação em

dogmática morta, fiel à letra, mas desinteressada da realidade humana17.

Em relação à Schillebeeckx, o projeto hermenêutico de Rahner, kantianamente, dá um

passo atrás. Seu interesse teórico é a pré-condição do homem como ouvinte da Palavra, ou

seja, a investigação sobre o que produz nos humanos a disposição para a escuta da Palavra de

Deus. A preocupação de Rahner é o incondicionado divino e o a priori humano. Esta

perspectiva antropológica o põe a salvo de cooptações ideológicas que, por exemplo, são

riscos reais no projeto hermenêutico de E. Schillebeeckx. Rahner também percebe que os

instrumentos teóricos fornecidos pelos conceitos neotomistas de seus colegas não lhe dariam

condições de levar a cabo a tarefa e assim decide substituí-los por ferramentas conceituais

mais adequadas aos novos tempos: Kant, os existencialistas e Heidegger, para assim abordar a

compreensão por um nível mais profundo. Em suma, em hermenêutica “não se trata apenas de

saber a fé, mas de compreender a vida”18.

A oclusão semântica da mensagem cristã que vem aqui deplorada também foi

preocupação de Hans Küng. A solução proposta, entretanto, é a de um historiador do

15
Dermot Lane. The Experience of God: An Invitation to do Theology (New York: Paulist Press, 1981), p. 1.
16
Karl Rahner apud Érico J. Hammes. “Conceito e missão da teologia em Karl Rahner” (CTP, Ano 1 . Nº 5,
2004), p. 9.
17
Idem apud ibidem.
18
Rosino Gibelini. Op. cit., p. 226.
18

Cristianismo, e não a de uma hermenêutica que corre atrás de novidades seculares, ou de um

contínuo aggiornamento da mensagem cristã tão em voga em sua época. A nova

hermenêutica deveria se inspirar nas fontes primordiais, longe da influência e interferência

dos Concílios e do Magistério da Igreja, segundo ele, as raízes dos dogmatismos da

atualidade:

Não seria apropriado numa nova era, em vez de se estar simplesmente repetindo os
velhos dogmas helenísticos, concentrarmo-nos outra vez na mensagem do Novo
Testamento e interpretá-la de novo para os cristãos contemporâneos, tal como os
teólogos helenistas uma vez corretamente fizeram para seu tempo?19

Para Küng, a era de ouro da hermenêutica bíblica foi o segundo século de nossa era.

Tudo o que se situe antes e depois, será, respectivamente, semitismo ou helenismo, ambos

classificáveis como abordagens dogmáticas das Fontes, haja vista o enorme número de

heresias que estes dois tempos produziram. De fato, a verdadeira abertura para o outro, tendo

como projeto a inclusão religiosa do mundo não cristão, só ocorreria verdadeiramente com a

teologia dos Pais Apologetas (Justino, Irineu e Clemente). Com isto o autor de Ser Cristão já

dá os primeiros passos no terreno da Pós-modernidade apesar de inicialmente se situar entre

aqueles cuja preocupação era o discurso da ciência.

1.a.1.b. Pós-modernidade

Alguns anos depois de as preocupações dos teólogos com o secularismo começarem a

ocupar as páginas da literatura especializada um novo e inquietante desafio surge. Desta vez,

por um excesso de experiência não por falta. Ou seja, a nova dificuldade hermenêutica do

Cristianismo, ironicamente, ocorre num contexto de “revanche do sagrado” 20 , quando o

interesse pela espiritualidade retorna em toda sua pujança. É a assim chamada Pós-

modernidade.

19
Hans Küng. Christianity. The religious situation in our time (London: SCM Press, 1995), p. 95.
20
Leszek Kolakowski. “A revanche do sagrado na cultura profana” (RS, Maio (1), 1977), pp. 153-162.
19

É sempre difícil apontar fatores causais nas Ciências Humanas, mas pode-se dizer que a

Pós-modernidade é uma ambiência cultural produzida em grande parte pelos fracassos

ideológicos sucessivamente apresentados no século XX como solução para os problemas

humanos (Nazismo, Fascismo, Comunismo, Capitalismo). Reflete também o nascimento de

uma consciência holística que surgiu como reação ao excesso de fragmentação epistemológica

da ciência; o esgotamento do dogmatismo da Modernidade e de outros ‘ismos’ éticos e

estéticos derivativos; o fim do humanismo, cujo canto de cisne foi J. P. Sartre; o surgimento

de epistemologias fracas, mais ou menos ligadas às mudanças na forma de ver a matéria e a

energia (Eisenstein, Einstein, etc.).

Resumindo, é difícil arrolar tudo o que concorreu para o nascimento da Pós-

modernidade. Contudo, diante de tal massa de fatores, pode-se suspeitar que a Pós-

modernidade seja uma espécie de ressaca da modernidade, “uma forma extrema de

decomposição do modelo racionalista da modernidade”21. Como se os destroços de tudo o que

este modelo produziu repousassem agora numa imensa praia por onde passeiam os

contemporâneos. Os conceitos, as ideias, os valores, todos os produtos de uma era estão aí a

degradar-se ao sol já posto da razão calculadora, sob cujos raios gélidos já estarão

amadurecendo as sementes da nova barbárie, parafraseando a bela imagem filosófico-

profética de Horkheimer22.

Com efeito, do ponto de vista social, está em curso um processo de dissociação,

desencadeado pela degradação das instituições criadas quando os grandes Estados nacionais

foram inventados no século XVI. A Igreja teve suas funções reduzidas na nova composição

do Estado laico. As instituições políticas que aparentemente haviam herdado dela as

prerrogativas ideológicas sofreram em Maio de 1968 na França um golpe do qual ainda não se

21
Allain Touraine. Crítica da modernidade (Petrópolis : Vozes, 2002), p. 266.
22
Max Horkheimer. O Conceito de Iluminismo (São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983), p. 109.
20

recuperaram, em que própria democracia perdeu sua representatividade e os dogmatismos

ideológicos não interessam a mais ninguém. As instituições sociais antes garantes da razão

instrumental perderam também sua capacidade de lastrear o processo de nomização,

transferindo ao indivíduo, por inércia, este encargo:

A situação do pós-social é o produto de uma completa separação entre a


instrumentalidade e o sentido, a primeira é gerida por empresas, econômicas ou
políticas, em concorrência entre elas nos mercados; o segundo, tornou-se puramente
privado, subjetivo23.

Este estado de impermanência que envolve tudo o que se encontra distraidamente

atirado à nossa frente tem sua explicação filosófica no famoso conceito de Lyotard sobre “o

fim das metanarrativas”24. As narrativas legitimantes (a ciência, a Revolução Industrial, o

conhecimento acadêmico, o progresso, a moral burguesa, o Iluminismo, etc.) sobre as quais os

modernos pretendiam colocar os fundamentos da razão, fora da transitoriedade dos discursos

e ali reproduzir um raciocínio absolutamente isento, capaz de gerar verdades certas, seguras e

indubitáveis encontram seu final quando se percebe que a mera possibilidade de existirem é

uma ilusão.

Com a virada linguística promovida por Wittgenstein ao criticismo kantiano, chegou-se

à conclusão cética de que não há um fora da linguagem epistemologicamente falando (e se

houvesse ninguém poderia saber, já que ninguém pode pensar sem linguagem).

Consequentemente, é impossível qualquer tipo de dogmatismo. A certeza e a verdade só são

possíveis dentro de sistemas linguísticos fechados; o erro, idem. Derrida, seguindo o conceito

wittgensteiniano de jogos de linguagem, dirá “não há um fora-do-texto” (Il n’y a pas de hors-

23
Allain Touraine. Crítica da Modernidade, p. 198.
24
As metanarrativas, ou seja, as narrativas das narrativas, e são assim chamadas por terem a pretensão de se
colocarem fora de si mesmas, num plano racional superior, sobre uma plataforma veritativa universal e
transcendental, de onde supostamente poderiam julgar o transcurso da história humana. Cf. Jean-François
Lyotard. La condición postmoderna (Madrid : Ediciones Cátedra, 1987), p. 4.
21

texte), o que significa que “não há nada de real que não seja textuado, construído, simbolizado

e contextuado – interminavelmente”25.

Resumindo, o ser humano está reduzido a uma imanência miseravelmente limitadora de

sua capacidade de raciocinar e julgar. Aos homens, portanto, só restam razões menores para

tomar decisões éticas, religiosas e estéticas e mesmo justificar sua existência: razões pessoais,

afetuais. Sua condição de juiz do universo foi melancolicamente trocada pela de um

caminhante solitário rodeando como “um turista o jardim da história, que considera um

depósito de máscaras teatrais que podem ser usadas e abandonas conforme o seu prazer, o seu

gosto, e a sua utilidade” 26 . Apesar da falta de rigor de Lyotard ao falar do fim das

metanarrativas, pela utilização de um argumento auto-refutante27, a condição pós-moderna

pode ser definida como o naufrágio de um sujeito que sem referenciais já não consegue

manter-se à tona da história e da própria realidade.

Na verdade, a rigor, do ponto de vista epistemológico, não pode nem mesmo ser

considerado um sujeito. Roland Barthes, interpretado além de si mesmo, pode dizer que para

os pós-modernos o homem como sujeito deixa mesmo de existir, nada sendo exceto o que as

máscaras que usa digam que é. A inferência parte da conclusão literária de Barthes sobre a

morte do autor, presente em célebre passagem onde ele interpreta as observações de H. Balzac

sobre a condição feminina ínsitas em Ilusões Perdidas. Segundo sua leitura, elas são apenas

25
Joseph Margolis. Interpretation radical but not unruly . The new puzzle of the arts and history (Berkeley CA:
University of California Press, 1995), p. 172.
26
Rossano Pecoraro. Niilismo e (pós) modernidade: introdução ao“ pensamento fraco” de Gianni Vattimo (Rio
de Janeiro: Editora da Puc, 2005), p. 70.
27
Segundo J. Habermas, Lyotard, ele mesmo, oferece com este argumento uma metanarrativa que pode ser
chamada ironicamente de “a grande narrativa do fim das grandes narrativas”. Habermas chama nossa atenção
para o fato de que o desmascaramento dos críticos da Escola de Frankfurt ou a desconstrução levada a efeito
pelos pós-modernos só seria possível se eles possuíssem um padrão racional transcendental, ou seja, uma teoria
que revelasse as máscaras da ideologia (Richard Rorty. “Habermas, Lyotard e a Pós-modernidade” – Educação e
Filosofia, 4 (8), Jan – Jun – p. 76). Em suma, sendo toda e qualquer teoria imanente a determinado sistema nada
pode dizer sobre as outras a não ser no campo opiniático.
22

as manifestações mais acabadas do espírito de uma época 28 , não podendo mesmo serem

tributadas a Balzac como se ele fosse o autor de observações inteligentes sobre a alma

feminina.

Voltando à questão religiosa e concluindo, segundo os pós-modernos, o Cristianismo ou

as religiões não têm meios para julgar umas às outras, dado que é impossível sair dos sistemas

religiosos onde cada qual se diz, diz o mundo e diz Deus (não há ninguém capaz de abstrair-se

aos seus próprios jogos-de-linguagem). Desaparece a questão da verdade ante a

impossibilidade epistêmica de uma verdade universal. Há tantas verdades quanto crentes

nelas. Esvai-se a noção de erro, posto que erro só o é dentro de um dado sistema. Como

consequência assiste-se ao nascimento de um relativismo que não permite qualquer

possibilidade normativa, exceto os normativismos menores, decorrentes de razões subjetivas e

afetuais. O homem pós-moderno encontra-se, perdido dentro de um labirinto de imanência,

sem o fio de Ariadne e sem as asas de Ícaro; não sabendo quem é, e muito menos de onde

vem ou para onde vai.

Como já se pode suspeitar, “a revanche do sagrado” não nos trouxe de volta aos marcos

pré-modernos. A frustração com o não cumprimento das promessas das metanarrativas

modernas não tornou as igrejas europeias e norte-americanas mais habilitadas a cobrir o atual

hiato existencial humano. Afinal, o Cristianismo europeu foi partícipe do projeto fracassado

da Modernidade, adotando os princípios iluministas, abraçou um racionalismo insuficiente

para dar solução aos problemas humanos e que, pelo contrário, só tem causado novos e mais

inquietantes. Não é por este motivo que a maioria das pessoas no Ocidente sente uma

verdadeira ojeriza por posicionamentos religiosos estritos e exclusivistas, que buscam a

conformidade e desprezam as diferenças?

28
Roland Barthes. O rumor da língua (Brasília: Editora Brasiliense, 1988), p. 284.
23

Neste contexto, qualquer atitude religiosa, ética e ideológica mais incisiva será

considerada politicamente incorreta. A exclusiva pretensão veritativa hoje se tornou

inaceitável pelo ressábio às diversas e fracassadas experiências dogmáticas pretéritas. O

período moderno, com seus numerosos disputantes (racionalismo, empirismo, criticismo,

empirismo lógico, filosofia analítica), não conseguiu estabelecer com absoluta segurança uma

verdade, uma metodologia ou doutrina epistemológica exclusiva. De igual maneira, o fracasso

de definir ideologias político-econômicas para solucionar os problemas econômicos

(Fascismo, Nazismo, Comunismo, Capitalismo), lançaram o mundo em duas guerras totais.

Como consequência, ocorre hoje um ethos onde as religiões e as ideologias são apeadas de

sua metafísica e solicitadas a apresentarem-se apenas como práxis, pela qual passam a ser

julgadas:

É um clima no qual é natural pensar nas religiões como diferentes, mas igualmente
válidos caminhos para a salvação, igualmente válidas respostas ao Real. As
asserções religiosas apenas são verdadeiras no sentido estrito de serem
existencialmente significativas29.

O relativismo contemporâneo gera a falsa ideia de que diminui a rejeição ao

Cristianismo no mundo Ocidental. Se há esta sensação de aceitação, ela não é específica, mas

dirige-se a todos os tipos de espiritualidades. Permanece aquele déficit de plausibilidade do

Cristianismo constituído no contexto do secularismo. O discurso científico não foi suplantado

ou substituído por narrativas religiosas cristãs. O que ocorreu foi um enfraquecimento da

capacidade cosmificadora da ciência que faz com que os indivíduos busquem supri-la por

outros meios: através de epistemologias fracas, pensamento holístico, a espiritualidade. A

religiosidade, portanto, retorna pela porta dos fundos, pois as instituições societárias

permanecem estruturadas como na época da Modernidade, sem dar acesso ao espaço público

a estas modalidades de cosmificação. O Cristianismo, bem como as demais, continua exilado

29
Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions (Grand
Rapids, MI: Zondervan, 1992), p. 10.
24

do espaço publico na Europa e na América, permanece ocupando o lugar em que o

Secularismo o colocara, em nome do Estado laico: o espaço da vida privada 30 . Este é o

principal motivo por o ambiente sociocultural ainda não lhe ser favorável.

Para contrastar, basta observar como fora do Ocidente o discurso da ciência e suas

conquistas tecnológicas não tiveram e nem têm os mesmos efeitos devastadores sobre as

religiosidades locais. Os muçulmanos e as religiões orientais têm boa convivência com a

ciência e não se sentem ameaçados por ela, porque aí a religião ocupa um espaço fundamental

na vida societária, sua função nomizante permanece intacta. Ela cria uma estrutura de

plausibilidade sobre o qual se sustenta todo o conhecimento compartilhado, o que só ocorre

porque em seu caso a religião permanece ocupando o espaço público.

Sem entrar na consideração do mérito, uma percepção ateística ou secularizada do

mundo não tem mais base epistemológica do que a religiosa. Se ela domina o Ocidente hoje é

porque as pessoas vivem em um ambiente onde Deus, religião, fé, são assuntos-tabu, seja por

não serem consideradas informações relevantes, seja porque, simplesmente, delas as pessoas

não tomam conhecimento por não estarem disponíveis. É uma questão de práxis. Tornar algo

acessível, ou seja, introduzi-lo no espaço público, aumenta a possibilidade de tal coisa ser

usada, por que, geralmente, as ações humanas na maior parte das vezes estão baseadas na

imitação. Basta observar como a taxa de tabagismo cai nos países onde a propaganda do

cigarro é proibida. O mesmo ocorre com as ideias:

A maior parte do que ‘sabemos’ nós o tomamos por sabido baseados na autoridade
dos outros, e é somente se os outros continuarem a confirmar este ‘conhecimento’
que ele permanecerá plausível para nós. É tal social compartilhamento,
‘conhecimento’ socialmente tomado por óbvio, que nos permite mover-nos com
alguma de confiança através da vida diária31.

30
Johann B. Metz. Passion for God. The mystical-political dimension of Christianity, J. Matthew Ashley (trad.)
(Mahwah, NJ: Paulist Press, 1997).
31
Peter Berger. A rumor of angels. Modern society and the rediscovery of the supernatural (New York:
Doubleday & Company, 1970), p. 19.
25

1.a.1.c.Globalização

Outro fator que favorece o ambiente relativista atual é a Globalização, pois por meio

dela torna-se mais evidente a diversidade cultural e religiosa do planeta. As ondas migratórias

hodiernas, produzidas pelas condições macroeconômicas, têm colaborado para aproximar as

culturas e as religiões. Não por acaso, Os Estados Unidos, a nação mais rica do mundo, “tem

se tornado [também] a nação mais religiosamente diversificada do mundo” 32 . A Europa,

depois do boom econômico dos anos 90 também se tornou importante destino de levas de

imigrantes. A França recebe sem acolher os mulçumanos oriundos de sua antiga colônia. A

Inglaterra é anfitriã de hindus e a Alemanha, de turcos muçulmanos. As religiões vêm

invadindo o Ocidente levadas na bagagem não só de imigrantes, mas de estudantes, turistas e

homens de negócios, aventureiros, etc. Aquelas outras religiões que sabíamos existir em

algum lugar remoto do mundo, põe agora sua cara em nossa janela, dispensando

apresentações e discursos introdutórios. Além disso, na ‘aldeia global’ também é possível ter

acesso direto às religiões pela internet, conhecendo seus ritos, sua espiritualidade, seus

homens santos, etc.

Mulçumanos, Budistas, Hindus, Xintoístas, Confucionistas agora estão entre nós. As

palavras de Hans Küng resumem bem a atual situação: “pela primeira vez na história é

impossível para qualquer religião existir em esplêndido isolamento, ignorando as demais” 33.

As teorias interpretativas que até pouco tempo ajudavam o Ocidente a entender o legado

cristão no contexto religioso mundial perderam sua utilidade. In nuce já estavam equivocadas,

porque nasceram não com a intenção de compreender, mas de reduzir, de combater e dominar.

32
Diana Eck. A new religious America: How a Christian country has become the world most religiously diverse
nation (New York: Harpercollins, 2001), pp. 4-5.
33
Hans Küng. Ser Cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976), p. 89.
26

Hoje deixam de exercer qualquer atração sobre as pessoas, porque o que elas querem é

conhecer e compreender aqueles que não adoram como elas e são seus vizinhos.

Andrés T. Queiruga fala de duas grandes ampliações no mundo humano responsáveis

por estas inquietantes constatações: (a) uma ampliação do horizonte histórico e (b) uma

ampliação do horizonte geográfico, decorridas principalmente no século XX, que fizeram com

que um Cristianismo ensimesmado, ocupado apenas com suas diferenciações paroquianas,

perdesse sentido34.

(a) A ampliação histórica. O Ocidente descobriu que antes que nascessem os profetas

bíblicos já havia civilizações inteiras florescendo na Ásia, com cultura, tecnologia e religiões

avançadas, como é o caso da chinesa, da indochinesa e da indiana. Sobre isto há a conhecida a

tese do historiador Erik Voegelin, a qual fala a respeito do “alcance e significação da

extraordinária experiência espiritual que surgiu simultaneamente em vários focos da

civilização”35, num período que se estende do oitavo ao segundo século a. C.. Chamado por

K. Japers de “era axial”36 este período foi testemunha do nascimento das mais importantes

religiões mundiais. É deveras impressionante como todos estes movimentos religiosos e

filosóficos em que estão incluídos, os grandes profetas reformadores do Antigo Testamento,

Buda e os Pré-socráticos, apresentem uma “surpreendente homologia estrutural e temática em

suas mensagens, operando uma verdadeira revolução no universo simbólico das grandes

civilizações” 37 . Uma explosão criativa sobre o sagrado que muitos estudiosos atribuem à

ampliação das relações comerciais entre as nações e ao advento de uma situação de

prosperidade material inaudita.

34
Andrés T. Queiruga. O diálogo das religiões (São Paulo: Paulus, 1997), p. 13.
35
Henrique C. de Lima Vaz. Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura (São Paulo: Edições Loyola, 1997), p.
202.
36
Apud Karen Armstrong. Uma história de Deus. Quatro milênios em busca do Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), p. 43.
37
Henrique C. de Lima Vaz, Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura, p. 202.
27

(b) Ampliação geográfica. A contemporaneidade se caracteriza pelo espaço mais plural

e simultaneamente menor, onde as diferenças tendem a ser absorvidas por um processo que

envolve vários fatores. O transporte aéreo torna hoje possível que milhões se movimentem de

um extremo ao outro do globo em algumas horas, permitindo que nós ocidentais vejamos

rostos recém emersos de um contexto cultural bem diferente do nosso do modo como são,

sem retoques. As redes sociais tornam a realidade social conhecida sem a interferência

censora das instituições.

De outra parte, grandes megalópoles como Mubai, São Paulo – Rio (São Paulo, Rio de

Janeiro, Campinas e Santos), Bos-wash (Boston, New York, Filadélfia, Baltimore e

Washington), Tokkaido (Tokyo, Kawasaki, Yokohama), a megalópole do vale do rio Reno

(Amsterdã, Düsseldorf, Colônia, Bonn, Sttutgart) não só se constituem como conglomerados

de cidades, mas também como conglomerados dos subúrbios que existem entre elas; enfim,

lugares onde a distinção entre o rural e o urbano desaparece, o que os torna lugares mais

tolerantes em relação aos diferentes.

Há que se destacar também a natureza cosmopolita destes grandes conglomerados

urbanos. Los Angeles, talvez a cidade mais cosmopolita do mundo, conta entre seus 18

milhões de habitantes (Grande Los Angeles), asiáticos (chineses, japoneses, tailandeses,

filipinos, vietnamitas, armênios, iranianos), afro-americanos e latinos (mexicanos, porto-

riquenhos, salvadorenhos, brasileiros, colombianos, etc.), além das tradicionais populações

caucasianas originárias da velha Europa. Em LA estas populações se agregaram formando

redutos étnicos: os filipinos vivem num bairro chamado Filipotown; os tailandeses, em

Thaitown. O resultado prático disto é que não é preciso mais ir às Filipinas para conhecer o

modo de vida dos sul-asiáticos (inclusive sua religião).


28

Toda esta proximidade só poderia produzir o desmantelamento de diversos mitos

referentes às populações não cristãs. Hoje é inegável, por exemplo, o fato de estas tradições

serem portadoras de uma sabedoria milenar que rivaliza com a ciência Ocidental (a medicina,

por exemplo) e mesmo em se tratando de religião, seus ensinamentos contém muitas

‘verdades’. A propósito disto, a superioridade moral do Cristianismo, tão decantada por

teólogos e filósofos europeus e protestantes do século XIX – especialmente aqueles inscritos

sob a rubrica do Idealismo alemão (von Harnack, Troeltscht, Ritschil, Herrmann)38, perdeu

muito de sua persuasão depois que se descobriu que a assim chamada “regra de ouro” dos

evangelhos, considerada marca singular da ética cristã – “faze aos outros aquilo que queres

que te façam” – está presente em praticamente todas as grandes tradições religiosas

mundiais 39 . Enfim, há nas religiões uma sabedoria incompatível com o lugar acanhado

reservado a elas pelo Ocidente40.

1.a.1.d.Mundialização do Cristianismo

A atual situação do Ocidente inundado por tantos ritos e crenças não significa,

necessariamente um Cristianismo acuado. Embora em seu território de origem isto seja

verdadeiro por causa da expansão do Islã, do Secularismo e do Consumismo, a fé cristã cresce

em outros terrenos fora da Europa. Dois terços dos cristãos hoje vivem em países da Ásia,

África e América do Sul e é nestes países que o Cristianismo hoje enfrenta seus maiores

desafios missiológicos. É aí onde o encontro dos Cristãos com as religiões mundiais ocorre

mais inquietantemente.

38
Rosino Gibellini. A teologia do século XX , p. 19.
39
Mahabharata: Shanti parva CCLX21: “que nenhum homem cometa contra o outro, ato que não gostaria fosse
cometido contra si mesmo”. Analectus de Confúcio, livro 12:2: “não faças aos outros o que você não quer que
façam com você. Udanavarga budista, v. 18: “não machuque os outros com algo que dói em você”. Andrew
Wilson (org.). World Scripture. A comparative anthology of sacred texts (New York: International Religious
Foundation/Paragon House Publishers, 1991.
40
Raimon Panikkar. “The pluralism of truth” (WFI, no. 26, 1990), p. 7.
29

Apesar de o Cristianismo europeu enfrentar uma consistente decadência que já dura um

século, o que permite que alguns se refiram a ela como um processo de “descristianização” da

Europa, que ao final produzirá um “Pós-cristianismo” 41 , em outras partes do mundo os

cristãos experimentam uma expansão sem precedentes, que nem os mais otimistas

missiólogos do início do século XX imaginavam fosse ocorrer, tornando-se hoje o movimento

religioso mais dinâmico do mundo.

De fato, durante o século XX tornou-se a mais universal e extensiva religião da


história. Há hoje cristãos e igrejas cristãs organizadas em todos os lugares habitados
da terra. A Igreja é pela primeira vez na história, ecumênica no sentido literal da
palavra: seus limites são coextensíveis com a oikumene, todo o mundo habitado42.

O crescimento do Cristianismo na África é especialmente impressionante,

principalmente após o fim do colonialismo, com a independência da maioria das nações

africanas. No início do século XX havia apenas 8.7 milhões de cristãos no continente

africano, algo ao redor de 9 % de sua população. Os mulçumanos nos superavam na

proporsão de 4 por 1. Com o fim do período colonial o Cristianismo experimentou um rápido

crescimento que começou com 60 milhões no fim da década de 80, pulou para 330 milhões

em 1998 e em 2000 já atingia o patamar de 350 milhões43. Hoje, já há mais cristãos na África

do que adeptos do Animismo, sua religião original (existem por volta de 300 milhões de

animistas na África atualmente)44. E quando a Europa ameaça ser totalmente coberta pela

bandeira verde do crescente, quem enche as igrejas vazias europeias são cristãos étnicos

originários da África Central. “A grande Paris tem 250 igrejas étnicas protestantes, a maior

parte delas formada por negros africanos”45.

41
Phillip Jenkins. God’s continent: Christianity, Islam and Europe’s religious crisis (Oxford: Oxford University
Press, 2005).
42
David Barret, George Kurian and Todd Johnson. World Christian Encyclopedia: a comparative survey of
churches and religions in modern world (New York: Oxford University Press, 2001), p. 15.
43
Lamin Sanneh. Whose religion is Christianity? The gospel beyond the West (Grand Rapids, MI: Wm. B.
Eerdmans, 2003), pp. 14-15.
44
Chad Meister. Introducing Philosophy of religion (London/New York: Routledge, 2009), p. 6.
45
Phillip Jenkins. God’s continent: Christianity, Islam and Europe’s religious crisis, p. 94.
30

Na Ásia a mensagem cristã também se expande com grande velocidade. Há países quase

completamente cristianizados como é o caso das Filipinas. Entre os que estão sendo

evangelizados mais recentemente, está a China. Embora não haja dados confiáveis sobre a

China (leis locais proíbem o proselitismo), sabe-se que os cristãos já se contam aos milhões

neste país. Os dados oficiais do governo chinês somente levam em conta as congregações

regularmente estabelecidas, por isso os dados oficiais que tendem a subestimar a taxa de

crescimento do Cristianismo bem como o número total de seus adeptos, em 2006 havia 21

milhões de cristãos na China, sendo destes 16 milhões Protestantes e 5 milhões Católicos.

Fontes extraoficiais, entretanto, apontam para números bem mais realistas, algo por volta de

12 milhões de Católicos e 30 milhões de Protestantes46.

A Coreia do Sul é o caso missiologicamente mais interessante. Inicialmente um país

budista (até o século XIX), hoje se encontra bastante cristianizado, cerca de 25 % da

população professa a fé cristã47 (Católicos, Protestantes históricos e Pentecostais). Com pouco

mais de cem anos de história as igrejas coreanas tem atingido notável crescimento em número

e força. As megaigrejas coreanas redefiniram o significado da palavra mega para muito além

do que pensa o Ocidente ao relacioná-la com igrejas, com megacongregações variando em

tamanho entre 8 mil (Yodo Full Gospel Church) e 30 mil membros (Sung Rar Baptist

Church)48, e que, apesar do tamanho, são extremamente organizadas, dividas em ministérios e

com um fervor missionário que não arrefece. De 1995 para cá o Catolicismo os Pentecostais

crescem na Coreia enquanto os Protestantes históricos, a exemplo dos Presbiterianos, estão

estagnados49. De qualquer modo o dinamismo do Cristianismo coreano é inegável.

46
Lian Jiang. Visiting parents from China: their conversion experiences in America and contribution to
Christianity at home (tese de doutoramento, Faculty of Bright Divinity School, 2006), p. 50.
47
Mark Mullins. “The Empire strikes back. Korean Pentecostal mission to Japan”. In Karla Powe (ed.).
Charismatic Christianty as a global culture (Columbia SC: University of South Carolina Press, 1994), p. 88.
48
Ibid., pp. 89 e 90.
49
Han Soo Park. A study of missional structures for the Korean church for its postmodern context (An Harbor
MI: Umi dissertation publishing, 2008), p. 42.
31

Na Índia há igrejas cristãs vigorosas e antiquíssimas, cuja fundação ocorreu há milênios,

como é o caso da igreja Católica de rito siríaco. Outras chegaram ao final do século XIX com

as missões de Metodistas, Presbiterianos e Batistas; e outras já no decorrer do século XX

(Adventistas do Sétimo Dia e outros Independentes). Porém, apesar desta história milenar, O

Cristianismo na Índia é apenas a terceira maior força religiosa, contando aproximadamente 24

milhões de seguidores, o que significa 2.3 % da população total do país50, estando a grande

maioria da população ainda sob a lealdade do Hinduísmo. Ou seja, isto significa dizer que os

cristãos são minoria e que nem mesmo nas províncias mais expressivamente cristãos (Kerala)

seus membros não ultrapassam os 10 % da população 51 . E nem podemos dizer que

experimentem um crescimento vigoroso por que os números oscilam em volta desta taxa, para

mais ou para menos, há décadas.

Com tudo isto e à medida que avançam os esforços e os resultados missionários

cristãos, cresce a necessidade de se teorizar sobre os limites da aculturação de sua mensagem,

face aos perigos que se escondem por atrás de pressões por um crescimento mais rápido:

sincretismos, heresias, faccionismos, etc.. Esta teorização vem sendo chamada de teologia das

missões e pretende justamente lidar com três aspectos da evangelização que necessitam ser

equilibradamente abordados: (a) o texto bíblico, (b) a fé da comunidade e (c) o contexto

missionário52. Sendo minoria, os Cristãos são constantemente tentados a facilitar a conversão

de seus ouvintes, tendendo a descurar do texto bíblico, quando quer que haja grandes

dificuldades transculturais.

Quanto a isto, um dos ocorridos mais sérios do mundo das missões dá-se na Coreia do

Sul. Relatos dão conta de que igrejas pentecostais estão sofrendo influências litúrgicas e

50
Wikipedia, verbete: Christians in India (Government of India, Ministry of Home Affairs, Census
commissions, Census 2001).
51
Leonard Fernando e G. Gilpert Sauch. Christianity in India. Two Thousand years of faith (New Delhi:
Penguins Book India, 2004), xiii.
52
Charles R. van Engen. What is theology of missions (TC, ano 1, vol. 1, Ago, 2004), p. 45.
32

teológicas do animismo local, chegando a experimentar um processo de xamanização, com

pastores emulando o papel dos xamãs coreanos, especialmente no que diz respeito às curas

espirituais:

Na sociedade tradicional coreana os xamãs (mudang) servem de link entre o povo


comum e o mundo espiritual, habitado por inúmeros deuses, por ancestrais e
espíritos. Através de rituais e oferendas os xamãs podem controlar o mundo
espiritual, transformando espíritos malévolos em espíritos protetores; realizando
curas e exorcismos e produzindo benefícios concretos aos indivíduos53.

Andrew Walls escreve sobre a necessidade de teologizar todas as vezes que são

cruzadas novas fronteiras culturais, já que em o fazendo o Cristianismo se depara com

situações que lhe colocam novas questões intelectuais antes não consideradas 54 . Esta

necessidade se comprova pelos vários congressos missiológicos e teológicos convocados ao

redor do mundo a partir do segundo quartel do século XX, quando se intensificou a

penetração do evangelho no mundo não cristão55.

Alguns historiadores do Cristianismo, contudo, defendem a livre propagação

evangelística no mundo, ainda que com inovação doutrinal motivada por necessidades locais,

o que ocorrendo seria até um indício de maturidade espiritual:

Quando os teóricos das missões em décadas passadas falaram de três autonomias


como meta para igrejas mais novas, incluíram o autofinanciamento, o autogoverno e
a autopropagação. Eles não perceberam a autointerpretação ou a autoteologização
como igualmente uma necessidade. Eles esperavam que a teologia continuasse sendo
o que sempre foi, porque o significado do evangelho era perfeitamente entendido

53
Ibid., p. 92.
54
Andrew Walls. “The rise of global theologies”. In Jeffrey P. Greeman e Gene L. Green. Global Theology in
evangelical perspective. Exploring the contextual nature of Theology and mission (Downers Grove, IL:
Intervarsity Press, 2012), p. 20.
55
“International Congress on World Evangelization in Lausanne (1974); Willowbank Consultation on Gospel
and Culture (1978); International consultation on Simple Lifestyle (1980); Pattaya Consultation on World
Evangelization (1980); International Consultation on the Relationship between Evangelism and Social
Responsibility (1982); International Conferences for Itinerant Evangelists (1983, 1986); Lausanne II in Manila
(1989); Theological Commission’s Consultation on the Unique Christ in our Pluralist World, Manila (1992);
Mission Commission’s Iguassu Missiological Consultation; Forum for World Evangelization, Pattaya (2004).
(Lamin Sanneh. Whose religion is Christianity?, p. 25-26).
33

pelas Igrejas mães, e tudo o que as mais novas deviam fazer era continuar
proclamando a mesma mensagem56.

Não podemos esquecer que nem todas as demandas locais devem ser satisfeitas, pois

por trás delas, segundo as Escrituras, há uma humanidade caída, propendente ao mal e ao

pecado. Como já foi afirmado no início desta investigação, cabe à Teologia analisar a

legitimidade das demandas para que o evangelho não caia em armadilhas ideológicas, como já

ocorreu no passado quando uma parte expressiva de Cristãos no II século d. C. adotou o

Neoplatonismo como quadro ideológico por meio do qual a mensagem cristã passou a ser

compreendida. Infelizmente, aquela experiência transcultural acabou degenerando em

Gnosticismo.

Deve-se discernir entre o transitório e o eterno, o que significa entender que muitas

reivindicações culturais estão atreladas a conjunturas socioeconômicas que rapidamente

desaparecem se são subtraídas de seus fatores predisponentes. A teologia da prosperidade é

um exemplo bastante contundente do que pode acontecer à pregação do evangelho se as

necessidades das massas forem as únicas guias dos pregadores. O que inicialmente poderia ser

considerado um legítimo clamor popular por socorro divino diante de dificuldades

relacionadas à própria sobrevivência (saúde, endividamento, dificuldades econômicas) acabou

se degenerando em soberba espiritual, somada ao consumismo e ao materialismo, como hoje

se vê. Em suma, as relações dos homens entre si e em relação a Deus distorcidas pela

mediação da mercadoria e do capital (Karl Marx).

1.a.1.e. O testemunho da história

Ao longo da história, o Cristianismo, em especial a Igreja pós-constantiniana, tem sido

marcado por uma atitude opressora em relação às religiões e às suas diversas não autorizadas

56
Justo Gonzales. Mañana. Christian Theology from Hispanic perspective (Nashville, TS: Abingdon, 1990), p.
49.
34

mutações domésticas. Inúmeras vezes esta opressão se traduziu em violência e morte daqueles

que não praticavam a doutrina hegemônica e isto hoje depõe contra os Cristãos, fazendo com

que um sentimento de desconforto ante os fatos leve muitos líderes cristãos a considerarem o

pluralismo como uma forma de compensação pela violência do passado.

Não é metodologicamente adequada esta generalização; a história da Igreja cristã pré-

constantiniana é um pouco diferente. No primeiro e segundo séculos o Cristianismo formativo

vingou num caldeirão cultural greco-romano, merecidamente designada como primeira

globalização. Neste tempo as diversas correntes religiosas confluíram e conviveram dentro

das fronteiras do império romano, de forma mais ou menos pacífica. Os romanos controlavam

o crescimento das religiões, mas não o coibiam, senão excepcionalmente, visando à

manutenção da pax romana. O Cristianismo não era hegemônico em relação às demais

modalidades religiosas até que veio a se tornar a religião oficial do império a partir de

Constantino e seus herdeiros a partir dele, no quarto século. Foi daí para frente que começou

sua história de intolerância.

Mais tarde, no século VII d. C. os cristãos se defrontaram com o avanço do Islã no

Oriente próximo e na Europa, no período conhecido como o das Cruzadas, em que houve

muito derramamento de sangue, e, excepcionalmente, na Ibéria ocupada pelos muçulmanos,

um convívio pacífico entre as três religiões do livro (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo),

que coincidiu com o florescimento tecnológico e cultural sem precedentes. Com o poder

mudando para a mão dos cristãos na Ibéria, depois da expulsão dos mouros, começa um

processo de perseguição dos Judeus que só acaba com sua expulsão de Espanha e Portugal

durante o período que ficou conhecido como ‘santa’ inquisição.

Este espírito intolerante não foi, contudo, monopólio de Católicos. O século XVI

também testemunhou perseguições se alastrando em terras Protestantes, contra minorias


35

religiosas na Alemanha e Suíça (Anabatistas, Menonitas e Espiritualistas, seguidores de

Muntzen), lideradas ou pelo menos subvencionadas pelo silêncio dos reformadores e outras

autoridades religiosas importantes. Até que o espírito intolerante crescente desencadeou uma

hecatombe sangrenta que custou a vida de milhões de Católicos e Protestantes na Guerra dos

Trinta Anos.

Ainda no século XVI, nas Américas, uma das histórias mais infamantes reputada ao

Cristianismo. Com a perda de territórios para o Protestantismo na Europa, os Ibéricos

Católicos se voltaram para as Américas, vindo seu impulso missionário e civilizatório a se

defrontar com as civilizações pré-colombianas, que não conheciam e ainda assim

consideravam inferiores. Como resultado, o gigantesco morticínio que ceifou a vida de

milhões de seres humanos, pelo único fato de não serem cristãos e viverem de forma

diferente. Sabe-se que a difamação simbólica destes povos, foi não poucas vezes injustificada

e produzida com o único objetivo de legitimar sua vergonhosa exploração57.

Assim, com exceção das circunstâncias históricas excepcionais citadas, infelizmente,

sustentadas não por iniciativa de Cristãos, o convívio do Cristianismo com outras religiões

tendo sido violento, deixando genocídios e/ou etnocídios no rastro de sua passagem, provoca-

nos hoje com a pergunta: até que ponto o projeto ‘civilizatório’ desses cristãos é tributário das

Fontes do Cristianismo? Ou, dizendo de outra maneira, há algo de intrinsecamente intolerante

e violento na mensagem cristã, que nos obrigaria hoje a nos repensar como Cristãos?

1.a.2. A demanda escriturística

Estas perguntas nos remetem ao texto primordial do Cristianismo, não se esgotando a

tarefa hermenêutica em reconhecer a existência de um novo ambiente global multicultural e

plurirreligioso e sua suposta pré-condição para um novo balizamento nas relações inter-

57
Cf. Tzvetan Todorov. The conquest of America. The question of the other (New York: Harper Collins, 1999).
36

religiosas. Outra obrigação não menos importante da hermenêutica teológica é a conservação

do que nos foi confiado: as Fontes Cristãs (I Co 4: 1 e 2), apesar das pressões ideológicas em

contrário.

Esta não é a primeira vez que isto ocorre. A Igreja Pré-constantiniana viveu diante do

desafio do mundo greco-romano por pelo menos dois séculos e sobreviveu sem fazer

concessões doutrinárias, ainda que pressionada por ideologias tão poderosas quanto as

existentes hoje, como é o caso do Neoplatonismo. Embora neste tempo tenha havido muitos

desvios da ortodoxia, a maioria das igrejas cristãs guardou o depósito da fé, sem com isto,

necessariamente, ter voltado as costas para o mundo. O modo como as igrejas venceram este

tempo de crise foi a definição mais precisa do que era e do que não era canônico com respeito

às tradições cristãs existentes. É evidente que a decisão dos bispos fosse necessária para evitar

que as ideias de Valentino e Márcion tomassem o lugar de Jesus e dos apóstolos.

Em segundo lugar, embora se fale aqui de tradição (parênesis), conservar as fontes não

é tarefa museológica, destinada a uma idolatria da letra, uma grafolatria. Significa antes

rechaçar quaisquer tentativas de destruir a essência da Palavra de Deus, ou seja, aquilo que

seu próprio nome indica que ela é. Em nosso contexto, significa, diante do atual processo de

esvaziamento de seu significado salvífico, reafirmar sua relevância como agência especial de

Deus para a salvação de todos os homens. Significará isto etnocentrismo destrutivo, como os

pós-modernos concluem? Ou aspectos de uma ingenuidade epistemológica pré-iluminista,

como preferem os modernos?

Quanto à primeira pergunta, o fato de para os antropólogos e sociólogos ocidentais Pós-

modernos a pretensão da mensagem cristã ao absoluto ser intrinsecamente violenta contra as

outras culturas, deve-se responder com outra pergunta: não seria a mesma pretensão nos

outros igualmente violenta contra Cristãos? Ademais, estes teóricos parecem ter como
37

parâmetro de comparação o Cristianismo Pós-constantiniano, ou a Igreja europeia e norte-

americana das missões do século XIX, ambas levadas a reboque por um poderio político-

econômico extremamente persuasivo. No entanto, as igrejas cristãs hoje descem novamente às

catacumbas, sendo minoria no Extremo Oriente, proibida no Oriente Próximo e apenas

tolerada na Europa secularizada e pós-moderna. Uma Igreja que, longe de querer converter

todo o mundo à sua verdade, quer apenas liberdade para cumprir o mandado divino de pregar

o evangelho e acolher os que se sentirem tocados por sua mensagem.

Quanto à questão epistemológica colocada pelos modernos, antes de tudo, é preciso

considerar que a realidade não é um simples campo visual a ser conhecido e explorado com as

ferramentas de uma epistemologia realista; ela precisa ser interpretada e não meramente

conhecida. Os livros sagrados das religiões são os intérpretes por excelência desta realidade,

especialmente daquilo que nela há de mais profundo. Eles tratam do solo metafísico que a

sustenta, a saber, o mundo, a condição humana, o absoluto divino. Portanto, todas as religiões

se presumem portadoras de uma verdade inconteste e absoluta sobre estas coisas, posto que se

considerem divinas em sua origem.

Este quadro conceitual amplo, que mescla doutrinas religiosas e epistemológicas torna

impossível uma conciliação entre as religiões mundiais sem a devida consideração de seus

textos sagrados. Ou, como querem outros, que, com a finalidade de possibilitar o diálogo

inter-religioso, seja retirado o absoluto desta equação religiosa, pela relativização do discurso

das religiões. Não é possível o descarte das Escrituras. Toda a metafísica que se sustenta sobre

o solo escriturístico viraria poeira se esta operação se realizasse e a própria religião se tornaria

certa esvaescência sem qualquer relevância.

Ora, se se há de manter a Escritura, resta saber como seria possível conciliar estas duas

exigências antípodas: a demanda empírica e a demanda escriturística. A hermenêutica


38

teológica é o lugar onde estas duas demandas se encontram para serem examinadas em sua

relação dialética.

1.a.2.a. Hermenêutica teológica

A nosso ver o campo da hermenêutica teológica assenta-se sobre três fundamentos: (a) a

revelação divina, (b) a linguagem pela qual é expressa a experiência revelacional, e (c) a

contextualização desta linguagem de acordo com o tempo e a cultura de seus intérpretes:

crentes e teólogos. Quanto à revelação, ‘a nosso ver’ não é mera figura de retórica, porque

nada tem sido tão debatido quanto a questão: qual é o ponto de partida da revelação?

Dificilmente dois teóricos que pensarão da mesma maneira Há os que prefiram começar pela

experiência humana do divino, como o já citado E. Schillebeeckx, no que é acompanhado por

muitos outros58. Para Tillich a experiência é apenas o meio, mas não é a fonte da revelação59,

no que está certo. Contudo, em vez de dizer que a fonte é Deus, afirma que ela ocorre no

momento da irrupção do incondicionado no condicionado. Ou seja, Deus é transmudado de

Alguém que fala e se manifesta em um Ser que é a base da realidade e a fonte do sentimento

do divino, e a Escritura perde sua dimensão assertiva, passando a ser apenas uma coletânea de

símbolos a qual recorrem os homens quando suas perguntas filosóficas ficam sem resposta e

perde sua relevância porque pode se fazer teologia tomando como escopo unicamente a

cultura (método correlacional)60. É inegável que a Bíblia tenha uma dimensão simbólica que

em muitos casos a aproxima das religiões mundiais, mas reduzi-la a isto seria mutilá-la.

Como se pode perceber entre Schillebeeckx e Tillich não há contraposição. Eles apenas

representam dois grupos que adotam métodos diferentes para atingir o mesmo objetivo: a

58
Peter Hodgson. Winds of Spirit. A constructive Christian Theology (Louisville, KT: Westminster John Knox
Press, 1994), p. 13.
59
Paul Tillich. Systematic theology (Chicago: University of Chicago Press, 1953), vol. 1: 59-66; vol. 2: 14.
60
Paul Tillich. Systematic theology, vol. 1: 22-28.
39

continuidade entre a cultura e a teologia, por uma destranscendentalização do divino61. Os

representados por Tillich que adotam o princípio filosoficamente ligado à Fenomenologia,

que despreza o aspecto factual da Escritura em nome de uma essência religiosa compartilhada

por todas as religiões. Os seguidores de Schillebeeckx, que reforçam o princípio (c), tendo por

finalidade a superaração do exclusivismo da Bíblia (o maior obstáculo para o diálogo inter-

religioso), enfatizando sua condição hermenêutica, especialmente o NT, e desconsiderando

sua natureza de testemunha autoritativa do evento crístico.

1.a.2.a.1. A Fenomenologia da Religião

O princípio (a) que se reporta à experiência religiosa, naturalmente imbricada com o

texto, passa na fenomenologia a estar ligada primordialmente a análise da experiência

religiosa, cuja essência é identificada por um aporte filosófico não doutrinário, mas descritivo.

Neste tipo de análise a experiência religiosa tem como resultado uma espécie de síntese das

religiões, dado que em essência todas se parecem, apresentando os mesmos componentes

estruturais. O exemplo mais famoso deste tipo de abordagem é a obra de Rudolf Otto, O

sagrado, onde seu autor toma a Escritura como manual de exemplos das essências religiosas,

comparando-as com as experiências de outras religiões.

É inegável que em muitos aspectos as experiências religiosas se assemelhem. Até

porque os que as experimentam são todos seres humanos com estrutura biopsicossocial

parecida. Contudo, é preciso também levar em conta as profundas diferenças que as separam,

manifestas especialmente em: o modo de ver o sagrado, a salvação e a separação em relação

ao divino, o certo e o errado nas práticas sagradas e profanas, os agentes espirituais e sua

forma de atuar no mundo; enfim, a própria maneira de ver a realidade e a vida. A experiência

religiosa não se forma no vácuo intencional fenomenológico. Pelo contrário, o texto sagrado

61
L. Peacore. “Theology of experience” in William Dyrness and Veli-Matti Kärkkäinen. Global Dictionary. A
resource for the worldwide Church (Downers Grove, IL/ Nottingham, UK: InterVarsity Press, 2008), p. 307.
40

conforma as disposições do adorador num padrão religioso específico, desde que normatiza a

experiência do sagrado no âmbito de uma cultura religiosa presente no texto sagrado. Isto vale

também para as experiências fundantes, pois estas também foram normatizadas por uma

tradição oral.

Por exemplo, experiências religiosas como salvação, erro ou pecado, iluminação ou

revelação, arrependimento, verdade, etc., no Cristianismo são constituídas a partir dos textos

sagrados que as definem, sendo óbvios os limites de uma Fenomenologia da Religião neste

caso. A Fenomenologia só poderia descrever a experiência já constituída e só pode ser uma

análise ampla do significado de símbolos religiosos já existentes; não pode recuar rumo a uma

precondição antropológica anterior à sua tematização, uma intencionalidade religiosa pura,

anterior a qualquer tematização. Os símbolos religiosos são onde tudo começa, o que há de

mais fundamental linguagem humana. Para lá deles só há o silêncio, porque é com eles que

nasce o pensamento humano. Quando um objeto é separado de sua existência concreta, onde

se encontra mesclado com a massa informe de outros objetos, é que nasce a linguagem. O

símbolo religioso provoca este tipo de abstração:

Poder-se-ia dizer que não foi esta união (do carvalho com o ser humano) que deu
origem a estes ritos, mas, em certo sentido, sua separação. Porque o despertar do
intelecto ocorre com a separação do solo original, a base original da vida (A origem
da escolha). A forma do despertar do espírito é a veneração de objetos62.

Com os símbolos nasce o pensamento, com eles também nasce o ser que os interpreta.

De modo que a própria subjetividade humana de certo modo deles depende, como

intuitivamente já havia suspeitado no final da Idade Antiga Agostinho, ao entender a alma

humana como estrutura trinitária63. Em nosso século, graças à Psicologia Analítica de Jung,

percebeu-se o quanto a saúde da psique humana depende de estruturas simbólicas, presentes

62
Ludwig Wittgenstein. Remarks on Frazer's Golden Bough. In C. G. Luckhardt. Wittgenstein, Sources and
Perspectives (Ithaca NY, Cornell University Press, 1979), p. 73.
63
Sto. Agostinho . De Trinitate, (Roma, Cittá Nuova Editrice, 1987), IX, ii, 2; IX, x, 15.
41

nos arquétipos religiosos, que combinados com outros aspectos da vida psicológica formam

um todo chamado individualidade ou subjetividade 64 . Estes arquétipos em sua função

estruturante estão presentes em todas as religiosidades, onde exercem função parecida.

Contudo, identificar suas semelhanças não significa provar que não haja diferenças entre elas.

Reforçando esta ênfase sobre as distinções, da Sociologia da Religião vem-nos a

percepção da importância socializadora da religião, por meio de seus ritos e mitos, para a

definição do homem em suas mais diversas instâncias históricas e geográficas. Para Auguste

Comte, por exemplo, a religião é a principal agência socializadora65. Segundo Durkheim, são

três as funções sociais primordiais da religião: (a) a coesão social – a religião ajuda a manter a

solidariedade social pelo compartilhamento de rituais e crenças; (b) o controle social – a

religião baseada em normas e proibições, morais ou rituais, ajuda na manutenção da

conformidade e do controle comportamental dos indivíduos; (c) a provisão de sentido e

propósito – ela provê respostas a questões existenciais66. Em suma, os símbolos religiosos e

sua interpretação são os fundamentos deste complexo psicossocial que chamados de religião.

Conforme Peter Berger, eles compõem o dossel sagrado que protege a frágil estrutura social

da dissolução por anomia.

Apesar de todos os aportes das Ciências da Religião e sem menosprezar todas as luzes

que foram projetadas sobre os fenômenos religiosos por estas disciplinas, a conclusão

inelutável é de que a Fenomenologia, a Psicologia e a Sociologia das Religiões têm suas

limitações. Em nossa opinião nenhuma dessas disciplinas têm completo sucesso ao tentar

subtrair dos fenômenos que estudam os elementos doutrinários de que são compostas as

religiões. Nenhuma tipologização fenomenológica, nenhuma causa socioantropológica, pode

64
John Cothingham. The spiritual dimension. Religion, philosophy, and human value (Cambridge: Cambridge
University Press, 2005), p. 70.
65
Roberto Cipriani. Manual de sociologia da religião, p. 47.
66
Émille Durkheim. Formas elementares da vida religiosa (São Paulo: Martins Fontes, 2003).
42

explicar as peculiaridades espirituais das diversas religiões do mundo, exceto sendo

considerado o processo educativo a que se submetem os povos mediante os mitos e ritos de

suas próprias religiões67.

No caso específico do Cristianismo, as ideias de revelação, pecado e queda, de salvação

mediante unicamente Jesus, de Juízo, de restauração de todas as coisas, não podem ser

simplesmente alegorizadas ou metaforizadas. Sua acomodação a uma ideologia dominante –

como é o caso da Pós-modernidade –, em sua forma de ver o mundo põe em perigo o

Cristianismo como um todo. Não é como pensam os incautos aduladores da fenomenologia,

uma questão menor, ligada a questões doutrinárias que devem ser desprezadas em favor de

sua essência comum. Os Cristãos não podem, assim sem mais, deixar de levar em conta o

fundamento de sua fé, as Escrituras, quando buscam recontextualizar sua mensagem no

mundo atual. Exceto se quiserem vê-la destruída.

1.a.2.a.2. A Hermenêutica Pós-moderna

Outra forma de jeitosamente colocar o exclusivismo das Escrituras fora das

considerações para entender o mundo plurirreligioso é negar à Bíblia sua condição

autoritativa, de veículo da revelação divina. Em se tratando do NT, o cerne das disputas sobre

o diálogo inter-religioso, segundo esta concepção, tem prioridade apenas cronológica. Ela é a

testemunha do esforço interpretativo dos cristãos para entender o evento crístico, que tiveram

o mesmo objetivo que temos ao ler sua história: tentar identificar o sentido mais profundo da

67
“Aqui não é o lugar de definir as características típicas de todas as religiões. Mas pode ser útil ilustrar por
exemplos os princípios expostos. Eis aí algumas delas: os antigos egípcios foram fascinados pelo mistério da
morte; todos os restos de sua civilização testemunham sobre esta intensa preocupação com a vida absoluta que
surge depois da morte. Os gregos se confrontam com o problema da relação entre a forma e a vida criadora.
Amaram um estilo grave e belo na arte, no comportamento, na filosofia, a loucura sagrada que rompe com todas
as formas e que conduz o homem por trilhas estranhas. Os romanos apreciaram o valor do direito, no respeito
profundo pelos ‘numina’, eles seguiam prescrições determinadas para estar de acordo com as regras no culto, na
vida social e na conduta pessoal. A sabedoria dos antigos chineses era viver em harmonia com a ordem do
universo, o caminho, o grande Tao. O Judaísmo é caracterizado por um temor sagrado diante de Deus, sua
santidade, um sentimento que anima o culto e a vida corriqueira. O Islã tira seu nome de uma total obediência de
seus adeptos a Alá” (C. J. Bleeker. The Sacred bridge – Leiden: E. J. Brill, 1963, p. 34).
43

vida, morte e da mensagem de Jesus. Vários teólogos católicos (mais a frente tratados

pormenorizadamente) ligam-se a esta corrente, inclusive o autor da citação que se segue, Juan

Luis Segundo:

O Novo Testamento é um exemplo paradigmático disso, posto que seus escritos são
outras tantas interpretações que se apresentam como diferentes e fieis ao mesmo
tempo. E que, enquanto tais, lançam-se em assalto, por assim dizer, do espírito e do
sentido de Jesus de Nazaré, para tornar válida a transposição dos valores e o
significado daquela existência vivida em outro contexto e frente a outras questões68.

Ainda seguindo o fio das ideias de J. L. Segundo, os evangelhos não são uma história de

Jesus, são apenas interpretações desta história por dois precípuos motivos: (1) interpretação

do evento crístico à luz das profecias do Antigo Testamento e (2) interpretação no sentido de

tradução de uma mentalidade religiosa semítica para uma concepção helenística que

caracterizava a nova audiência da história de Jesus: os pagãos69.

Em suma, aquilo que julgávamos ser os relatos mais confiáveis tem a marca da

hermenêutica (o que não chega a ser um incômodo para quem não idolatra os fatos), são

interpretações da história de Jesus. Contudo, não podemos deixar de perguntar: onde está a

história de Jesus? A resposta pode não ser fácil, mas nunca será dispensável. É inegável que

os evangelhos não sejam biografias de Jesus, mas também não são teologias, na acepção

sistemática da palavra. Os evangelhos constroem uma teologia à medida que seletivamente,

omitem acontecimentos e ressaltam outros, mas também são relatos testemunhais. Se

tivéssemos apenas um evangelho poderíamos mais facilmente suspeitar de sua idoneidade,

mas como são vários e convergentes sua dimensão factual não pode ser anulada em favor de

um interesse hermenêutico facilitador do diálogo inter-religioso.

A ampliação hermenêutica pela inclusão dos concílios e o magistério que caracteriza a

teologia Católica, do ponto de vista protestante é questionável, mas ainda é mais o fato de esta

68
Juan Luis Segundo. La historia perdida y recuperada de Jesús de Nazaret. De los Sinópticos a Pablo
(Santander: Editorial Sal Terrae, 1991), pp. 371 e 372.
69
Ibid., p. 646.
44

ampliação estar ligada a uma deflação do texto bíblico, com sua metamorfose em meras

interpretações não normativas dos eventos neotestamentários, passíveis de serem substituídas

quando os tempos e os leitores forem outros. Digam o que quiserem os defensores deste

posicionamento, mas o nome disto é relativismo e isto destrói a capacidade normativa da

teologia. De acordo com estas teorias fica difícil responder por que os textos gnósticos não

fazem parte do NT hoje? Alguns estudiosos contemporâneos partidários da visão não

normativa do NT nos responderiam devolvendo-nos a pergunta: quem disse que não?70

Para Geffré a empresa hermenêutica baseia-se em um conceito de Palavra de Deus que

não coincide com o de Escritura Sagrada, pois passa a ser entendida como testemunha parcial

da revelação divina, remetendo a plenitude semântica do evangelho a uma ordem

escatológica71. Isto significa que o texto dos evangelhos pertence à ordem do transitório e do

superável e, portanto, requer uma constante atualização de sua mensagem, não tendo ainda

chegado o tempo da consumação. O próprio Jesus, proclamado Cristo pela comunidade cristã

primitiva, possui uma dimensão histórica e humana que não esgota todas as possibilidades

revelacionais do Logos eterno. Portanto, faz parte da experiência cristã do sagrado a busca de

um Cristo desconhecido, que se apresenta em todas as experiências religiosas de todos os

seres humanos72. O círculo hermenêutico de Geffré, portanto, amplia-se e inclui também a

experiência religiosa humana, que exige a interpretação das Escrituras também à luz do

religioso não cristão, à medida que este seja identificado com o humano na sua acepção mais

profunda: o humano como o que se descentra e busca a transcendência73.

De forma diferente o que todos dizem é que as dimensões histórica e textual dos relatos

bíblicos não são mais os referenciais hermenêuticos preferenciais. O sentido do texto não é

70
John D. Crossan. O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo (Rio de Janeiro: Imago, 1994); The
birth of Christianity (San Francisco/New York: Harper, 1998).
71
Claude Geffré. Le Christianisme au risque de l’interprétation (Paris: Cerf, 1988), p. 20.
72
Claude Geffré. De Babel à Pentecôte : Essais de théologie interreligieuse (Paris: Cerf, 2006), p. 32.
73
Claude Geffré. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da Teologia (Petrópolis: Vozes, 2004), p. 148.
45

mais fornecido pela relação do texto com seu contexto histórico, como na hermenêutica

romântica de Schleiermacher. A Escritura também não é mais mediada por textos

reconstituídos por métodos científicos, como pretendia o Historicismo. Segunda a Nova

Hermenêutica por influência dos mestres da suspeita (K. Marx, S. Freud e F. Nietzsche) o

intérprete deve aprender a ler o Texto Sagrado, como se este fosse um tabuleiro de pirulito

com um espelho perpassado do outro lado. Nada aí pode prendê-lo exceto o que veja em sua

própria experiência, pois a compreensão da essência do texto só é possível mediada pela

autointerpretação do intérprete e do mundo que o rodeia. Nos lugares onde o texto não é

diáfano, sua opacidade significa conteúdos ideológicos ligados ao transitório e ao limitado,

que devem ser superados para que o essencial não pereça.

A conclusão nos parece óbvia. Seguindo esta ‘nova’ hermenêutica, ao o leitor tentar se

livrar do conteúdo ideológico do texto bíblico é então que ele se torna presa fácil de uma

leitura ideológica da Palavra, pois de acordo com a própria epistemologia Pós-moderna que

lhe serve de base, não será capaz de uma metaleitura de si mesmo e de seu mundo, ele não

pode colocar-se num fora. De outra sorte, ficará paralisado diante do texto, não podendo

resistir às ideologias a que está sujeito, restando-lhe apenas a dissolução de sua própria

racionalidade, bem como de sua condição de intérprete. Assim, o único princípio

hermenêutico que permanece teologicamente válido é o Sola Scriptura dos reformadores. A

Bíblica se interpreta a si mesma e é ela mesma que aponta o princípio hermenêutico maior: a

revelação de Jesus Cristo. Quanto a serem fidedignas as Fontes pelas quais temos acesso a

esta revelação, isto é uma questão para outra investigação.

1.a.2.a. 3. Hermenêutica Normativa

Deste grupo fazem parte todos os que preferem conservar o depósito da fé (inclusive a

presente investigação), buscando nele as bases para o diálogo e para a convivência inter-
46

religiosa num novo ambiente globalizado. Assim, mantido o conteúdo normativo do NT,

especialmente os ensinos do Senhor Jesus, busca-se dar uma resposta às questões postas pelos

novos tempos. Nenhuma novidade em relação à plataforma hermenêutica reformada: sola

Scriptura, sola fides et sola gratia. Com a diferença de se enfrentar um problema novo e se

contar com ferramentas teóricas (históricas e textuais) com as quais não contavam os

reformadores. Obviamente, sempre mantendo estes instrumentos subordinados ao tripé

hermenêutico acima.

Não gostaríamos de nos delongar neste lugar para não repetir o que aqui seria dito

quando chegar o momento de detalhar o que neste lugar está sugerido, ou seja, no fechamento

deste trabalho. A seguir apresentamos as principais teorias e teóricos que disputam as

possíveis soluções para a questão levantada.

1. b. O status questionis da Teologia das Religiões

1.b.1. Introdução

O quadro é complexo e começou a se desenhar no começo da segunda metade do século

XX toma hoje proporções de uma tarefa hermenêutica maior, que não cabe mais na mera

contextualização da pregação cristã. Com efeito, a crescente presença e importância das

religiões não cristãs requer a criação de uma nova disciplina teológica, que doravante fica

designada como Teologia das Religiões, disciplina da subárea da Apologética, que nasce da

necessidade de justificação teológica do exclusivismo religioso cristão ante as pretensões

salvíficas das religiões. De acordo com Dupuis a Teologia das Religiões ganhou status

autônomo na enciclopédia teológica no início da década de setenta, com a publicação de uma

obra de V. Bonblik, Teologia delle Religioni74. Ela ganha este status por causa do alto grau de

74
Apud Michel Barns. Theology and the dialogue of religions, p. 7.
47

complexidade, patente na enorme gama de metodologias e teorias, propostas por teólogos e

filósofos da religião de todas as confissões.

Como consequência, fala-se hoje de Teologia das Religiões como há algumas décadas

falava-se de Religiões Comparadas, ou seja, como uma disciplina teológica e autônoma. Não

mais estudada no capítulo da doutrina da salvação, em que era especulada a condição salvífica

dos que nunca ouviram a pregação do evangelho, ou ocupada meramente com a justaposição

comparativa de doutrinas, credos religiosos e suas possíveis origens históricas e sociais, como

objetivava o estudo de Religiões Coparadas.

Mas, afinal, como é definida hoje esta nova disciplina por teólogos e filósofos da

religião? Algumas proposições são feitas, a seguinte é uma das mais esclarecedoras:

Teologia das religiões é uma disciplina de estudos teológicos que tenta avaliar
teologicamente o significado e o valor das outras religiões. [...] pensar
teologicamente sobre o que significa para os cristãos conviver com povos de outras
religiões e sobre o Cristianismo com as outras religiões75.

A repetição da palavra teologia e teológico é um indício que se trata de uma definição

problemática, porque precisamos primeiro esclarecer o que vem a ser teologia ou teológico;

nosso entendimento de teologia das religiões depende de nosso conceito de teologia. Teologia

de um ponto de vista epistemologicamente forte é uma ciência normativa que se baseia em

textos sagrados para definir o certo e o errado no campo religioso e axiológico e o verdadeiro

e o falso no campo ontológico. Teologia de uma perspectiva epistemologicamente fraca é um

estudo explicativo e classificatório das crenças religiosas e sua evolução histórica, por isso ela

é facilmente confundida com outra disciplina: História das Religiões. Se se adota a primeira

definição de Teologia pode-se usar dois nomes para a disciplina: Teologia da Religião e

75
Veli-Matti Kärkkläinen. An introduction to the theology of religious (Downers Grove IL: Intervarsity Press,
2003), p. 20.
48

Teologia das Religiões; se se adota a segunda definição a designação apropriada passa a ser

Teologias das Religiões.

(1) A Teologia da Religião geralmente trabalha no campo dedutivo e preocupa-se

primordialmente com a experiência religiosa cristã e a relação entre revelação e fé, fé e

religião e fé e salvação76. Procura conceituar e/ou tipologizar a experiência religiosa cristã e

geralmente é preocupação de teólogos sistemáticos77, aparecendo inclusive como capítulo de

suas teologias sistemáticas.

A religião também pode ter um tratamento fenomenológico, que retira a discussão do

campo normativo e o leva para o descritivo e epistemológico, em que se objetiva a descoberta

de essências, como por exemplo, qual seria a essência da experiência religiosa, o que é o caso

do Sagrado de Rudolf Otto78. Além disso, há ainda a abordagem da Psicologia da Religião79,

pela qual a religião é estudada como experiência singular humana, desta feita na área das

ciências empíricas, o que quer dizer analisar os aspectos psicofisiológicos apresentados pelo

corpo em face de uma experiência religiosa80.

(2) Teologia das religiões, por sua vez, volta-se para o mundo empírico, ainda que sem

abandonar o fundamento bíblico, desde que procura “estudar as várias tradições religiosas da

perspectiva da fé cristã e de suas afirmações fundamentais sobre Jesus Cristo” 81 . Como

pensamos ter antecipado ao falarmos das demandas empírica e textual, esta metodologia é

híbrida entre indutiva e dedutiva e é a única que labora com os três princípios hermenêuticos

apresentados: a experiência religiosa, o texto sagrado e a situação histórica do intérprete, pelo

que será nossa opção metodológica.


76
Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (São Paulo: Paulinas, 1999), p. 7.
77
Paul Tillich. Dinâmica da fé (São Leopoldo: Sinodal, 1970).
78
The Idea of the Holy (New York: Oxford University Press, 1958).
79
James Fowler. Estágios da fé: psicologia do desenvolvimento humano e a busca do sentido (São Leopoldo:
Sinodal, 1992).
80
Edênio Valle. Psicologia e experiência religiosa (São Paulo: Loyola, 1998).
81
Veli-Matti Kärkkläinen. An introduction to the theology of religious, p. 21.
49

(3) Teologias das Religiões, também conhecida como teologia pluralista das religiões,

pode ter um caráter meramente descritivo, se for o caso de nos atermos à classificação e

tipologização das crenças religiosas, o que nos faria compartilhar seu objeto com a História

das Religiões. Mas, pode ser também normativa, se sua proposta for o diálogo inter-religioso

e o fim da violência simbólica. Neste caso, porém, apesar de atuar no campo axiológico, não

deve ser considerada uma disciplina teológica, pois o critério de sua normatização não seria

bíblico, mas filosófico.

A primeira e a última opção metodológica serão descartadas nesta pesquisa. A primeira,

por desconsiderar o terceiro princípio, isto é, ignora a realidade empírica das outras religiões.

A última, por não levar em conta o segundo princípio, ou seja, não faz das Escrituras seu

ponto de partida e, eo ipso, torna-se uma proposta metarreligiosa, dado que a filosofia

abandona a coadjuvância lógica, com que aparece na primeira e segunda opção, para torna-se

o eixo teórico principal. Na verdade, na melhor das hipóteses, ela deveria ser classificada em

outro lugar da enciclopédia das Ciências da Religião: Filosofia da Religião; e, na pior das

hipóteses, deveria ser considerada uma abordagem negativa às religiões, característica

daqueles que delas são inimigos, dado que destrói a relevância do discurso religioso,

relativizando-o82.

Esta metodologia nega à religião sua essência: sua pretensão ao absoluto, considerada

um problema, por supostamente estar na origem dos conflitos religiosos mundiais. Na prática,

porém, ao o discurso das religiões ser relativizado, ao ser extraído deles sua essência – sua

pretensão à verdade, o que resulta desta operação nada ganha em termos de diálogo inter-

religioso, pois troca-se um exclusivismo pelo outro. O que os filósofos da religião subtraem

das religiões assumem eles mesmos, posto que a abolição de seu absoluto decorre de uma

absolutização de um ponto de vista metarreligioso. Portanto, permanece a subscrição dos


82
Mário F. Miranda. O Cristianismo em face das religiões (São Paulo: Loyola, 1998), p. 22.
50

filósofos da religião a um projeto iluminista 83 e kantiano, que é adversário das religiões,

apesar de seus protestos em contrário. A religião segundo a ‘simples razão’, ou, deveríamos

dizer, ‘segundo a absoluta razão’ é uma religião mutilada e derruída de seus valores mais

importantes.

De sorte que, dada a incongruência dos resultados deste tipo de metodologia com o que

pretendem os teóricos que a defendem – o diálogo inter-religioso, deveríamos chamá-los de

inclusivistas e até de exclusivistas, mas nunca de pluralistas. Inclusivistas porque intencionam

incluir todas as religiões em seu quadro conceitual reducionista. Exclusivistas, pelo fato de

julgarem todas as religiões por um único e exclusivo método: o racionalista, rejeitando

qualquer outro que não se lhe submeta84.

Os conceitos mais importantes produzidos por este tipo de empreendimento e inscritos

em sua linhagem como seus ascendentes foram “o sentimento da dependência absoluta” de F.

Schleiermacher85, “o sagrado” de Rudolf Otto e “a preocupação última” de Paul Tillich86. A

influência da primeira crítica de Kant é visível em todos estes pensadores, por se tratarem de

tentativas de definir a religião a partir de uma experiência reduzida a uma forma, esvaziada de

seu conteúdo. Ou seja, pela descoberta de um a priori, que possa ser apontado como uma

essência geral da religião, restrita a uma experiência abstrata e de natureza transcendental,

segundo a compreensão de Kant para esta palavra87.

83
Gavin D’Costa (edt.). The meeting of religions and trinity (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2000), pp. 1 e 2; Cf.
G. D’Costa. Christian uniqueness reconsidered. The myth of pluralistic theology of religions (Maryknoll, NY:
Orbis Books, 1990; Mark Heim. Salvations. Truth and differences in religion (Maryknoll, NY: Orbis books,
1995).
84
Mark Heim. Salvations. Truth and differences in religion (Maryknoll NY: Orbis books, 1995).
85
Sobre a religião: discursos aos seus menosprezadores eruditos (São Paulo: Novo Século/Fonte Editorial,
2000).
86
The new being (New York: Scribners, 1955); What’s religion? (New York/London: Harper & Row Publishers,
1973).
87
Aquilo que está fora da experiência, mas é sua condição de possibilidade.
51

Contudo, ao final deste processo analítico, qualquer fenômeno religioso específico vê-se

como um todo destituído de relevância, tornando-se apenas uma manifestação do sentimento

do sagrado, enquanto seus ensinos são mera decorrência de circunstâncias históricas,

geográficas, econômicas e sociais, de que vêm revestidas. O incondicionado é apofático; um

sentimento, uma espiritualidade; nosso acesso a ele dá-se apenas por meio de raciocínio

abstrativo, que vai eliminando as contingências até restarem apenas a essência88.

Seria esta abstração epistemologicamente possível? Já o dissemos quando falávamos do

método fenomenológico. Não. Primeiramente, porque o caso típico destes intérpretes de Kant

assim o revela. Seu conceito do sagrado é na verdade um resíduo do teísmo Ocidental, posto

que a principal qualidade adstrita ao divino neste contexto é a transcendência, o númeno fora

do campo experimental humano. Não se trata de uma noção absolutamente atemática,

originária, identificada pela fenomenologia, como seus defensores supõem. Ela resulta de uma

concepção teológica residualmente cristã. Nem a abstração kantiana, nem a fenomenologia de

Husserl, seriam capazes de ir além da experiência religiosa que já se encontra fecundada por

uma teologia cristã.

O pressuposto de todos os teólogos que se ligam à tradição kantiana é de que primeiro é

produzido no espírito humano uma religiosidade transcendental, ou seja, a condição de

possibilidade de todas as religiosidades, depois, em decorrência da experiência condicionada

pelos móbiles históricos, sociais, geográficos, econômicos, as religiosidades específicas. Ora,

esta ordem de coisas é algo extremamente improvável. Ela deixa fora de suas considerações a

principal conformadora do comportamento religioso, que são os textos sagrados. Esta teoria

só se tornaria plausível se se pudesse isolar uma experiência religiosa matricial89 que fosse “o

sentimento da dependência absoluta”, “o sagrado”, ou “a preocupação última”, mencionados

88
E. Kant. Crítica da razão pura (São Paulo: Nova Fronteira, 2000).
89
G. Lindberg. The nature of doctrine (Philadelphia: Fortress, 1984), p. 17.
52

ou qualquer outra coisa, dos textos sagrados que a conformam, entretanto, há evidências

gritantes do contrário atestando que há uma relação dialética entre estas duas coisas.

Portanto, o projeto de chegar à essência da religião tendo como ponto de partida

nenhuma religião esbarra numa impossibilidade metodológica e epistemológica. Quanto à

primeira, é impossível fazer uma síntese de todas as religiões por causa das diferenças

irredutíveis que as distancia, fazendo com que todos os pontos de contato entre as

experiências religiosas sejam superficiais 90 . Uma analítica deste tipo serve apenas para

distinguir o religioso do não religioso, não serve para lançar pontes entre um tipo de

experiência e outro.

Quanto à impossibilidade epistemológica, é impossível separar a prática religiosa de

suas doutrinas. Como já afirmado e reiterado, também se rejeita a opção (3) por um motivo

epistemológico. Não é possível fazer da Teologia das Religiões uma colcha de retalhos que

reúna elementos de todas as religiosidades, pois o ponto de partida deverá ser sempre alguma

religião 91 , porque, embora interpretando os mesmos fenômenos: a vida, a existência, o

sagrado, a relação com Deus, a salvação, as religiões sempre estão falando de coisas

diferentes. Para fazer sentido, a interpretação de cada aspecto desta realidade multifária, por

mais isolado que seja, tem que ter como referência um sistema como um todo 92 . Por

90
Um exemplo desta dificuldade é o conceito de amor: “a compaixão budista, o amor cristão – e se me for
permitido citar um fenômeno quaserreligioso – a fraternidade da França revolucionária, não são modificações
variadas de uma única consciência, emoção, atitude ou sentimento humano, mas são radicalmente (isto é, desde
as raízes) distintas formas de experimentar e ser orientado em relação a si mesmo, ao próximo e ao cosmo.”
(George Lindbeck apud Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religious –
London: SCM Press, 2010, p. 154).
91
O. Thomas. “Religious plurality and contemporary philosophy: a critical survey” (HTR, April, 1994), p. 198.
92
Baseio-me aqui na semântica de L. Wittgenstein: “Uma vez escrevi “a proposição está colocada em relação à
realidade como uma vara de medir...” Eu agora prefiro dizer um sistema de proposições está colocado em
relação à realidade como uma vara de medir. O que eu quero dizer é o seguinte. Se eu comparo a vara de medir
com um objeto espacial, eu comparo todas as linhas de graduação ao mesmo tempo... Se eu sei que o objeto se
estende até a linha 10, eu também sei imediatamente que ele não se estende até as linhas 11 e 12, e assim por
diante. As declarações descrevendo-me o comprimento de um objeto formam um sistema, um sistema de
proposições. Agora é este sistema de proposições que é comparado à realidade, não uma única proposição.”
(Friedrich Waismann e B. F. McGuiness (orgs.). Wittgenstein und die Wiener Kreis, Gespräche. (Schriften 3,
Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969), entrada de 25.12.1929.
53

conseguinte, o corpo doutrinário das religiões são sistemas fechados, estruturas sistêmicas, e

não meramente poemas e/ou definições éticas justapostas, como parecem pensar alguns

teólogos. Para W. C. Smith, por exemplo, o dado empírico da sabedoria religiosa não cristã é

motivo suficiente para o Cristianismo adotar algumas de suas doutrinas:

Daqui em diante qualquer séria declaração intelectual sobre a fé cristã deve incluir
necessariamente, se quiser atingir seu propósito entre os homens, algumas doutrinas
das outras religiões. Nós explicamos o fato da via láctea mediante a doutrina da
criação, mas como explicar a existência do Bhagavad Gita?93

94
Os que defendem a possibilidade e a legitimidade de uma “teologia global”

caleidoscópica formam um grupo numeroso. Além do já citado Wilfred C. Smith95, também

Leonard Swidler 96 , Ninian Smart 97 , Keith Ward 98 . Estes autores laboram mais no campo

filosófico do que no teológico. Seu quadro epistemológico é pós-moderno, que se caracteriza

pela perda da visão sistêmica da realidade religiosa. Ou seja, assumem implicitamente que o

papel nomizante da religião foi mesmo transferido para a ciência claramente, cabendo à

religião uma dimensão estético-ética. Tornando discutível mesmo se neste contexto ainda

faria sentido falar de fé como categoria religiosa essencial, já que a religião não significaria

mais a adoção de um sistema de pensamento como um todo, no interior do qual as pessoas

religiosas colocam-se e entendem a realidade que as rodeia.

Obviamente, o grau de comprometimento com certo discurso religioso pode variar de

época para época e de pessoa para pessoa, como é o caso de compararmos a religiosidade dos

povos tradicionais e a dos industriais e pós-industriais. Contudo, é mais do que certo que

jamais poderá se tratar de mero assentimento intelectual, ou da experiência estética de um

93
Wilfred C. Smith apud A. Race. Christians and religious pluralism, p. 2.
94
Anselm Kyong Suk Min. The solidarity of others in a divided world: a postmodern theology after
postmodernism (London: T & T Clark, 2004), p. 176.
95
Towards a World Theology: Faith and the Comparative History of Religion (Maryknoll, NY: Orbis, 1981).
96
Toward a Universal Theology of Religion (Maryknoll, NY: Orbis, 1987).
97
The world’s religions (Cambridge: the Press of Syndicate of University of Cambridge, 1998).
98
Religion and creation (Oxford: Oxford University Press, 2002); Religion and community (Oxford: Oxford
University Press, 2000); Religion and human nature (Oxford: Oxford University Press, 2002).
54

indivíduo. A religião é uma certeza que abarca toda a vida, e não apenas um aspecto dela. É

através dela que conhecemos o mundo e as coisas que nos cercam99. Infelizmente, isto não é

mais importante no contexto religioso pós-moderno, pois é fato que o aspecto estético da

religião está inflacionado, como ocorre também em outras subclasses da vida societária. M.

Maffesoli, por exemplo, chama nossa atenção para o vínculo que está sendo formado entre a

estética e a ética, por meio “da emoção compartilhada ou do sentimento coletivo” 100 no

homem pós-moderno. Sabe-se que o homem comum pós-moderno não está mais preocupado

com epistemologia, consequentemente fé para ele tem um significado muito mais superficial e

emocional do que para os modernos. Resta, no entanto, discutir se os processos sincréticos

adotados pelo mundo pós-moderno, com toda a sua natureza consumista e hedonista, poderia

ser colocada a serviço de alguém que pensa a religião de um ponto de vista normativo.

O Pós-modernismo não atua num vácuo societário. A lógica coletiva apresenta-se bem

complexa. As antigas instituições modernas continuam vigorando e ainda exercem influência

e controle social, embora de uma forma mais enfraquecida do que no passado101. Em suma, é

certo que hoje não existe mais o comprometimento do adepto com os assim chamados

grandes discursos institucionais de outrora. Neste novo ambiente pós-moderno é possível,

inclusive, o fenômeno da dupla denominacionalidade, comuns na América do Sul, e da dupla

religiosidade, cada vez mais normal em certos países orientais, como, por exemplo, a Índia102.

Mas, mesmo do ponto de vista normativo é coerente simplesmente adotar a perspectiva pós-

99
L. Wittgenstein. Da Certeza / Über Gewissheit G. E. M. Anscombe e G. H. von Wright (orgs.), Lisboa,
Edições 70, 1990.
100
Michel Maffesoli. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa (Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998.
101
Há ainda a questão da identidade religiosa, que faz com que indivíduos mantenham um grau de interação
entre si pela lealdade a um corpo de ritos e crenças comuns. Lealdade que pode variar quanto ao grau,
dependendo do tipo de comunidade onde é praticada (tradicional, carismática ou racional), mas que só existe à
medida que coexistente com ritos e crenças adotados por outros grupos, o que faz com que a afinidade interna
resulte em certa medida da diferença externa. Não há como negar que a hostilidade e a violência sejam formas
negativas de expressão de identidade, mas também é inquestionável que a diferenciação é um processo social
espontâneo e inevitável.
102
Michael Amaladoss. “Double Religious Belonging and Liminality: An Antropho-Theological Reflection”
(JTR, Jan., 2002).
55

moderna, ignorando as outras ideologias societárias, ainda presentes no mundo. De que

justificativa se valem estes teólogos para elegerem os parâmetros pós-modernos como

paradigmáticos para a teologia se nem sequer a realidade empírica lhes presta total apoio?

Contra o que chamávamos pluralismo ‘colcha de retalhos’ também argumenta P.

Ricoeur, que é filósofo e sem estar diretamente envolvido no debate, pois parece defender um

ponto de vista pluralista particularista, tem uma posição que por ora serve de contraponto:

Se no fundo de minha fé Deus é verdadeiramente outro, não somente em relação a


mim, mas outro em relação a todas as minhas representações, então posso confessar
que sua alteridade revelou-se e revela-se também em outro lugar, por intermédio de
outras escrituras. [...]
Não posso confessar isto se não estiver eu mesmo ancorado em algum lugar, se não
me puser a aprofundar e a escavar lá mesmo onde me encontro, esperando ouvir o
eco da sonda e do trabalho de sondagem que os meus irmãos longínquos estão
realizando em outros sítios, longe do meu, na superfície das culturas [...] [Porque]
Não é possível de modo algum voar acima das culturas e das religiões: não existe
um ponto de vista da estrela Sirius, porque não seria um ponto de vista: não se tem
acesso ao religioso a não ser por meio de uma religião específica103.

Evitando o relativismo que ainda se entremostra nas palavras de Ricouer, faz-se aqui um

adendo. Primeiro que, quanto ao problema kantiano das representações, nenhum cristão

minimante pensante pode hoje cogitar que nossos conceitos sobre Deus sejam informação

sobre sua essência. Desde Lutero, por sua vez, baseando-se em Paulo104, isto é assente. O

Deus revelatus é conhecido apenas no contexto da economia da salvação; o Deus absconditus

é Deus em sua essência, é incognoscível por uma incompatibilidade ontológica: finitum non

capax infinitus. Em segundo lugar, quanto a um ponto fixo, peremptoriamente negado nestes

tempos, pode-se dizer que sim, há um ponto fixo, uma estrela Sirius em todo este universo

religioso mundial: Jesus Cristo, que julga as religiões, e se constitui como critério exterior e

superior a elas.

103
Apud Carlos Cantone (org.). A reviravolta planetária de Deus (São Paulo: Paulinas, 1995), p. 54.
104
A palavra mistério (mysterion), assim como dela faz uso a teologia paulina, demonstra as limitações de nossa
compreensão do divino. Os diversos mistérios citados nas cartas de Paulo: “mistério de Deus” (I Co 4:1),
“mistério de Sua vontade” (Ef 1:9), “mistério do amor de Cristo por Sua Igreja (Ef 5:32), “mistério do
Evangelho” (Ef 6:19), “mistério de Cristo” (Cl 4:3), “mistério da fé” (II Tm 3:9), “mistério da piedade” (I Tm
3:16), etc.
56

Dizer isto, porém, não significa que como cristãos tornemo-nos juízes dos demais

adoradores, porque, não raro, estamos sob a condenação da mesma palavra profética de Jesus,

já que o que torna uma religião verdadeira não é só um correto discurso sobre Deus – a

ortodoxia –, mas também uma práxis correta em relação às criaturas de Deus, que somos

todos, cristãos e não cristãos – a ortopráxis. E nisto todos estamos a dever, não cabendo a

ninguém a prerrogativa de julgar, exceto ao Senhor. O vínculo institucional nada significa

diante da demanda profética que nos é dirigida. A sombra do juízo obscurece todas as práticas

e discursos. Portanto, a última palavra sobre as religiões necessita de uma “verificação

escatológica”105. Não significando esta expressão a referência a um evento futuro que venha

finalmente revelar quais religiões são aprovadas pelo juízo divino e quais não106. A própria

história terrena de Jesus já está constituída como verificação escatológica por meio do

conceito de “reino de Deus”, que mais a frente será retomado.

Concluindo, resta-nos citar Harold Netland, cuja definição do âmbito da Teologia das

religiões sumariza o quadro de interesses da disciplina nascente que é adotada pela

investigação transcorrente:

(1) a questão soteriológica do destino dos não evangelizados; (2) a explicação


teológica sobre o fenômeno da religiosidade humana; e (3) a questão missiológica
sobre em que medida podemos nos adaptar e construir o estabelecimento da Igreja
em vários contextos culturais a partir de aspectos de outras tradições religiosas107.

Com a ressalva que o segundo ponto (2) não será alvo de exame senão colateralmente,

dadas as dimensões limitadas deste trabalho. Em seu lugar será considerado o status salvífico

das religiões. Ou seja, coloca-se como pergunta inicial orientadora: como harmonizar a

peculiaridade do Cristianismo, seu privilégio salvífico e revelacional na pessoa de Jesus

105
Adolphe Gesché, “O cristianismo e as outras religiões”, in: Faustino TEIXEIRA (Org.), Diálogo de pássaros,
(São Paulo: Paulinas, 1993), p. 42.
106
E. Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus (São Paulo, Paulus, 1994), p. 211.
107
Harold Netland. Encountering religious pluralism. The challenge to Christian faith and mission (Downers
Grove: InterVarsity, 2001), p. 310.
57

Cristo, com o devido respeito às religiões e à sua sabedoria religiosa? Antes de seguirmos

nesta direção é necessário analisar o estado da questão atual. Em que pé se encontram as

discussões? Quem são os principais disputantes quanto à sistematização da área ora em

formação?

1.b.2. Algumas taxonomias classificatórias

Não há uma única forma de responder a pergunta pela nova configuração religiosa

mundial e quanto ao modo de o Cristianismo colocar-se neste quadro. Uma vasta gama de

teorias tem sido convocadas para classificar e sistematizar o modo como o Cristianismo pode

se relacionar com as outras religiões. Apresenta-se a seguir, algumas das mais importantes

abordagens tipológicas e seus respectivos proponentes.

Entre Católicos, conta entre as mais antigas a tipologia de J. P. Schneller108, que a meu

ver não é boa, pois não define com suficiente abrangência as possibilidades conceituais e os

sujeitos religiosos implicados: (a) o universo eclesiocêntrico - proposta exclusivista, alusivo

ao famoso lema católico romano: extra ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação);

(b) o universo cristocêntrico - proposição inclusivista que toma o logos (o Cristo pré-

existente) como eixo central do diálogo religioso: extra Christo nulla salus; (c) e o universo

teocêntrico – proposta pluralista que faz de Deus uma experiência universal e o centro do

diálogo religioso: extra Deo nulla salus. Como se pode perceber, os sujeitos definidos por

esta tipologia habitam preferencialmente o espaço teológico Católico Romano e em menor

medida o Protestante histórico, dado que sua ênfase é eclesiológica. Não seria adequada, por

exemplo, para a teologia Evangélica e para os Independentes, que são franca minoria.

108
Apud Jacques Dupuis, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso (São Paulo: Paulinas, 1999), p.
255.
58

No campo protestante o pioneiro nestas considerações foi H. Richard Niebuhr, que

construiu uma teologia da cultura a partir da cristologia. Num possível encontro de Cristo

com as culturas, apresenta-se a possibilidade de uma tipologia quadriforme: Cristo contra

a cultura, Cristo na cultura, Cristo além da cultura, Cristo e a cultura em paradoxo e Cristo

transformador da cultura 109 . O trabalho de Niebuhr apesar de inovador para sua época

ainda não toca os problemas colocados hodiernamente, porque evita tratar diretamente do

problema do pluralismo religioso, preferindo abordar o assunto de forma indireta, ou seja,

enfatizando o pluralismo cultural.

Vários trabalhos se inspiraram no trabalho pioneiro de Niebuhr. Entre os mais

representativos está o do teólogo pluralista Paul Knitter110, cuja tipologia se apresenta no

seguinte formato. (a) Substituição, segunda a qual o Cristianismo, como única religião

verdadeira, procura substituir as outras religiões. (b) Cumprimento: o Cristianismo

aperfeiçoa os rudimentos salvíficos das religiões. Este foi o posicionamento do concílio

Vaticano II, a teologia da preparação evangélica e de Karl Rahner com sua noção de

“cristão anônimo”. (c) Reciprocidade, pela qual as religiões são chamadas a um diálogo

paritário, baseado em uma tríplice plataforma comum: histórico-filosófica, místico-

religiosa e prático-ética, tendo como objetivo o aperfeiçoamento comum. (d) Aceitação e

é assim chamado porque reconhece muitas religiões verdadeiras, salvando os homens de

diferentes formas. Este modelo não deseja e nem espera a superação das diferenças

religiosas; elas não são um estorvo ao diálogo, mas sua causa, ou seja, o que provoca a

109
H. R. Niebuhr. Christ and Cultures (New York: Harper Sanfrancisco, 2001 – reedição comemorativa aos 50
anos de sua publicação).
110
P. Knitter. “La tipología de las religiones en el pensamiento católico” (Concilium, no. 203, 1986), pp. 123-
184).
59

necessidade do diálogo. Este último é o modelo mais adequado para o diálogo inter-

religioso segundo Knitter111.

Uma alternativa tipológica semelhante é a de H. Küng, baseada não mais na intenção

institucional do Cristianismo em relação às demais religiões, mas na questão da verdade

religiosa: (1) nenhuma religião é verdadeira, (2) somente uma religião é verdadeira, (3) todas

as religiões são verdadeiras, (4) uma religião é verdadeira, as outras são verdadeiras à medida

que participam desta verdade112. Para Küng, do ponto de vista salvífico, todas as religiões são

verdadeiras, mas a que carrega a vida e a obra de Jesus Cristo é a única eticamente

normativa113.

De todas as tipologias a de A. Race114, a meu ver, permanece como a mais interessante,

pela abrangência e pela simplicidade conceitual, e porque de certa forma faz jus a todos os

disputantes (Católicos, Protestantes, Evangélicos, Independentes e Pentecostais). Como foi

dito mais acima compreende três tipos: (a) O Exclusivismo, em que o dado material da

existência das outras religiões é desprezado em favor da importância salvífica do

Cristianismo; (b) o Inclusivismo, em que há uma tentativa de se manter tanto a importância

salvífica do Cristianismo como o amor de Deus pelo gênero humano (a vontade salvífica

universal de Deus também se manifesta nas religiões, ainda que de maneira secundária); e,

finalmente, (c) o Pluralismo, segundo o qual a importância salvífica do Cristianismo

111
Esta tipologia merece sérias ressalvas, contudo, ela de início está declarada Católica, o que esvazia nossa
intenção de fazê-las. O projeto imperialista, por exemplo, que está implícito em sua formulação, especialmente
do modelo da Substituição, só faz sentido na missiologia Católico Romana; o mesmo se aplica ao modelo do
Cumprimento, que tem por pano de fundo a doutrina da presença sacramental da Igreja Romana na vida de todos
os seres humanos. Estas ideias serão desdobradas mais adiante, quando ocorrer a discussão específica.
112
Hans Küng. “What is true religion? Toward an ecumenical criteriology” in Leonard Swidler (ed.) Toward a
universal theology of religion (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1987), pp. 231-250.
113
Mais a frente, no tópico sobre Hans Küng, isto será discutido com mais profundidade.
114
Christians and religious pluralism; patterns in the Christian theology of religions (New York: Orbis Books,
1986). Logo depois Gavin D’Costa publicou Theology and religious pluralism: the challenge of other religions
(London: SCM Press, 1986), seguindo a mesma terminologia.
60

desaparece diante da importância do amor de Deus, que, por um desígnio universal de

salvação, está destinado a todos e manifesta-se em todas as religiões.

A distribuição denominacional atual desses posicionamentos, quase invariavelmente

parece ser a seguinte: os teólogos exclusivistas geralmente são: Protestantes Históricos mais

tradicionais, Evangélicos, Pentecostais, Independentes (Adventistas do Sétimo Dia, Santos

dos Últimos Dias e Testemunhas de Jeová) e teólogos católicos que ainda resistem às

‘conquistas’ do Concílio Vaticano II; os inclusivistas são alguns evangélicos, mas

principalmente teólogos católicos; e os pluralistas, ex-religiosos Católicos, Protestantes

Liberais, em sua maioria professores de teologia em faculdades não confessionais.

Sob o risco de algumas omissões importantes, podemos tentar apontar os pensadores

mais representativos de cada grupo. Entre os exclusivistas estão: os Protestantes, Karl

Barth 115 , Emil Brunner 116 ; a maior parte dos Evangélicos: Clark Pinnock 117 , Gerald R.

McDermott118, Harold Netland119; e os pentecostais: Veli-Matti Kärkkäinen (obra já citada) e

Amos Yong 120 . Entre os inclusivistas, estão grandes expoentes da teologia Católica pós

Vaticano II: Karl Rahner121, Jacques Dupuis122, John A. DiNoia123 e Edward Schillebeeckx124.

115
Principalmente, Epistle to the Romans (New York, Oxford University Press, 1980), mas também em sua obra
magna: Church Dogmatics (Edinburgh, T & T Clark, 1961).
116
Natural Theology (London: Backwell, 1951).
117
A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions, op. cit.
118
God’s rivals. Why has God allowed different religions? Insights from the Bible and the early church
(Downers Grove: intervarsity Press, 2006); Can evangelicals learn from world’s religions? (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 2000.
119
Encountering religious pluralism. The challenge to Christian faith (Downers Grove, IL: Intervarsity Press,
2001); with Edward Rommen (eds.). Christianity and the religions. A biblical theology of world religions
(Pasadena: Evangelical Missiological Society, 1995).
120
Discerning of the Spirit (s). A Pentecostal-Charismatic contribution to Christian Theology of Religions
(Sheffield, UK: Sheffield Academic Press, 2000).
121
Curso fundamental da fé (São Paulo, Paulinas, 1989).
122
Teologia a caminho, fundamentação para o diálogo ecumênico (São Paulo, Paulus, 1999).
123
The diversity of religions: a Christian perspective (Washington, DC: The Catholic University of America
Press, 1992).
124
Jesús, la historia de un viviente (Madrid, Ediciones Cristianidad, 1981).
61

Figuram entre os pluralistas: primeiramente os teólogos católicos: Paul Knitter 125 , Hans

Küng126, Claude Geffré127, Roger Haight128, Galvin D’Costa129; teólogos asiáticos: católicos –

M. Amaladoss130, R. Panikkar131, e o protestante: S. Samartha132; os Protestantes, começando

pelo propositor desta classificação, Allan Race; depois com Jürgen Moltmann 133 , John

Hick134, H. Coward135, S. Mark Heim136, etc.

Obviamente, esta lista tem vários problemas. Além das inevitáveis omissões e da

parcialidade que caracteriza alguém que escreve da perspectiva Ocidental – sem levar em

conta a teologia das Igrejas cristãs orientais, por exemplo –, estamos conscientes do quanto é

perigoso fazer categorizações tão genéricas, que quase sempre são incapazes de definir de

forma exata e adequada a posição dos debatedores, muitos deles não podendo com justiça ser

incluídos numa ou outra categoria, dada a especificidade e a complexidade de cada teoria.

Gavin D’Costa tem várias ressalvas em relação à tipologia de A. Race. A primeira delas

exatamente diz respeito à complexidade do pensamento de alguns desses pensadores. É o caso

de K. Barth, K. Rahner e J. Hick, respectivamente classificados, segundo a tipologia de Race,

como exclusivista, inclusivista e pluralista. Contudo, D’Costa chama nossa atenção para o

fato de que todos são defensores de uma reconciliação universal (apocatástasis) final, tal

125
No Other Name? (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1985); One Earth Many Religions (Maryknoll, NY: Orbis
Books, 1995); Jesus and the other names. Christian mission and global responsability (Maryknoll, NY: Orbis
Books, 1996).
126
Ser cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976); Christianity. The religious situation of our times (London: SCM
Press, 1995).
127
De Babel à Pentecôte: Essais de théologie interreligieuse (Paris: Du Cerf, 2006).
128
Jesus, symbol of God (Maryknoll NY: Orbis Books, 1999).
129
Theology and religious pluralism: the challenge of other religions (Oxford: Basil Blackwell, 1986).
130
The Asian Jesus (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2006).
131
The unknown Christ of Hinduism: towards am ecumenical Christophany (London: Danton, 1964).
132
One Christ, many religions: towards a revised Christology (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1991.
133
The Church in the Power of the Holy Spirit (London: SCM Press, 1977); Experiências de reflexão teológica:
caminhos e formas da teologia cristã (São Leopoldo, RS: Unisinos, 2004).
134
The Myth of Christian Uniqueness: Toward a Pluralistic Theology of Religions (New York: Orbis Books,
1987).
135
Pluralism: challenges to world religions (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1985).
136
Salvations. Truth and differences in religions (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1995).
62

como Orígenes, o que embaralha bastante as posições antes cridas tão distintamente

marcadas137.

Harold Netland faz basicamente a mesma observação, ressaltado o fato de que o

problema não se deve à inaptidão da tipologia de Race, mas a que com o passar do tempo, os

debates tendem a se tornar cada vez mais sofisticados, devido a diferenças subsidiárias de

cada um dos disputantes, de modo que se torna bem difícil definir o locus de cada dentro

destes três tipos138. As religiões são organismos complexos. Não há como compará-las sem

um eixo referencial que sirva de parâmetro de comparação, que como vimos pode ser tão

diversificado como as próprias: a Igreja, a salvação, a verdade, a experiência do sagrado, etc.

Se o eixo referencial mudar possivelmente a posição de cada debatedor também mudará,

como ocorre no caso apresentado por D’Costa.

Contudo, seria impossível nos acercar de tal gama de proposições sem lançar mão de

alguma sorte de tipologia para nos orientar dentro do quadro geral dos debates e assim poder

organizar o campo do conhecimento. Por isso, adoto a taxonomia de Allan Race com

ressalvas, as quais irão sendo pormenorizadas à medida que os nomes forem sendo

apresentados. Minha principal contenção à tipologia de Race é a perspectiva eclesiológica

que, embora mais atenuada do que a de J. P. Schneller (dado que Race é Protestante e não

Católico), ainda permanece.

De fato, seria inadequado e até ridículo, por exemplo, falar de inclusivismo tendo como

referência o modo como um movimento religioso minoritário se relaciona com o mundo. No

horizonte missiológico e eclesiológico das minorias religiosas encontram-se apenas

indivíduos de outras religiões, jamais instituições religiosas que os abrigam. Além disso,

137
Gavin D’Costa. Christianity and world religion. Disputed questions in the Theology of religions (Malden
MA/Oxford: Wiley-Blackwell, 2009), p. 34.
138
Harold Netland. Encountering Religious Pluralism. The Challenge to Christian Faith and Mission (Downers
Grove III: InterVarsity, 1988), p. 47.
63

como já foi afirmado, há teorias tão complexas que não faz o menor sentido chamá-las de

exclusivistas, inclusivistas ou pluralistas. A própria abordagem bíblica do tema, por exemplo,

apresenta esta complexidade. A seguir passamos a apresentar, em que pesem as ressalvas, a

tipologia de Race, com seus principais representantes, seguindo uma ordem cronológica (da

mais antiga para as mais recentes). Deploramos não ser possível senão uma apresentação

sucinta das ideias dos debatedores devido aos limites deste trabalho, proposto como discussão

introdutória. No último capítulo será apresentado o princípio escatológico de Jesus, conforme

nossa leitura dos evangelhos.


64

CAPÍTULO II

Exclusivismo

2. a. Introdução

A visão exclusivista foi hegemônica durante a maior parte da existência do

Cristianismo, variando apenas quanto à ênfase ou ao grau. São dois mil anos de

exclusivismos, atenuados apenas nas últimas décadas do século XX. Contudo, o Exclusivismo

não é um bloco monolítico onde imperam pretensões salvíficas monopolistas: extra ecclesiam

nula salus. Não existe um exclusivismo, mas vários. A palavra implica de si uma carga

semiótica dúplice: quem exclui e quem é excluído. Com efeito, do latim originariamente,

exclaudere significa fechar, expelir. Encerrar algo para usufruto de alguns e por extensão

impedir o usufruto de outros. Temos aí, portanto, quatro possibilidades de ênfase. Quanto ao

aspecto afirmativo, (a’) ela significa a salvação por um único meio, (a’’) também o acesso

exclusivo de um determinado grupo à salvação; quanto ao aspecto negativo, pode significar

(b’) a exclusão dos outros meios salvíficos e (b’’) a exclusão de outros grupos. Obviamente,

afirmar (a’ e a’’) é por extensão afirmar (b’ e b’’), com uma pequena, mas importante

diferença: afirmar (a’) pode significar exceções em (b’’); mas, afirmar (b’ e b’’) não deixa

margem a exceções.

Algo semelhante Ronald Nash diz em seu livro, ainda que de modo mais simples. Entre

os exclusivistas existem dois grupos: o Exclusivismo-ponto, que enfatiza (b), e, por

conseguinte, não admite exceções; e o Exclusivismo-mas, que ressalta (a) e, mas deixa aberta

a possibilidade para exceções139. Podemos por isso chamá-los (a) Exclusivismo forte e (b)

Exclusivismo fraco. Destarte, podemos classificar o exclusivismo em dois grupos. (a) um

139
Ronald Nash. Is Jesus the only savior (Grand Rapids: Zondervan, 1994), prefácio.
65

Exclusivismo forte, também chamado restritivista, cuja ênfase recai sobre o instrumento

escolhido por Deus (a Igreja), e que soberbamente limita todos os meios da graça divina à sua

circunscrição e exige de todos os seres humanos a tomada de conhecimento sobre a graça de

Deus por meio de seu instrumento; (b) um Exclusivismo fraco, cuja ênfase é a escolha divina

pelo meio e os instrumentos declarados nas Escrituras, o que, entretanto, não impede de

reconhecer os limites do conhecimento humano sobre os meios da graça de Deus que

eventualmente podem ir além dos meios declarados.

Obviamente, seria muito simplista pensar que tudo se resume na polarização entre estes

dois extremos, e as respectivas concepções teológicas aderindo a eles como bananas em uma

penca. O melhor gráfico para representar a problemática relação entre estas teorias é uma rede

de pontos menores interligados e ligados aos pontos maiores (a’ e a’’) e (b’ e b’’), dos quais

se aproximam e se distanciam, conforme suas convicções. O Exclusivismo Fraco (a), por

exemplo, não deve ser confundido com o inclusivismo, a ser analisado no próximo capítulo,

porque nunca chega a afirmar como aquele que a salvação pode ocorrer sem que as pessoas

tomem conhecimento da graça de Deus na morte vicária de Jesus Cristo. Por outro lado,

paradoxalmente, o Exclusivismo Forte tem estranhamente uma maior aproximação com o

Inclusivismo Católico Romano, do que com sua própria versão fraca, por causa da ênfase

soteriológica baseada na Igreja, sendo ela a comunidade dos crentes e sinal da salvação

divina, respectivamente.

Conforme já se pode perceber, seria muito complicado organizar este capítulo

tematicamente, agrupando estas abordagens de acordo com esta divisão dupla. Ficaríamos

obrigados a ziguezaguear na linha do tempo para compor os exclusivismos fraco e forte, o que

com certeza prejudicaria a compreensão plena das abordagens, dado que se perderia seu

contexto histórico. Portanto, pela simplicidade é preferível uma organização segundo um

critério cronológico, iniciando pelas abordagens mais antigas e terminando nas mais recentes.
66

As sutilezas específicas de cada tipo de abordagem serão esclarecidas à medida que forem

sendo apresentadas.

2.b. Igreja Pré-constantiniana

Não se pode classificar a Igreja do Novo Testamento como exclusivista tout court.

Além de sua problemática ambiguidade entre as versões fraca e forte do Exclusivismo, o fato

de ela defender a capacidade salvífica exclusiva de Jesus Cristo, bem como o exclusivo

agenciamento divino da Igreja fundada por ele, também não significa várias coisas. Por

exemplo, não significa a subsunção das outras modalidades salvíficas sob o que seria um

suposto guarda-chuva sacramental da Igreja, que é um desenvolvimento teológico posterior; e

não quer dizer também um projeto expansionista da religião que caminhe pari passu com um

expansionismo imperialista ou colonialista; e tampouco é a capacidade ou o direito de

perseguir modalidades de Cristianismo consideradas estranhas à fé hegemônica sob sua

custódia. Todas estas atribuições pertencem à Igreja Pós-constantiniana, ou seja, àquela Igreja

transformada em religião oficial do Império Romano Oriental por um decreto imperial de

Constantino. Foi esta Igreja que se organizou em bispados, cujo modelo administrativo e a

jurisdição coincidiam com as regiões geográficas das províncias imperiais. Foi ela que

recebeu autoridade judicial e a repassou a seus bispos, foi também ela que promoveu uma

guerra religiosa contra Donatistas, Monofisitas, Maniqueus, Nestorianos, etc. 140 , e que de

certo modo preparou o terreno para a expansão do islamismo em território antes dominado

pelo Cristianismo.

O exclusivismo da Igreja Primitiva é um exclusivismo de um movimento minoritário

buscando converter indivíduos presentes naquela grande assembleia que a globalização

helenista vinha reunindo ao redor do mundo desde o III século a. C. Onde não havia religião

140
Roger Haight. Christian Community in history. Historical ecclesiology (New York: The continuum
international publishing group, 2004), p. 202.
67

oficial (pelo menos não no sentido aderido à palavra pela igreja Pós-constantiniana), naquela

época o Estado não interferia demasiadamente em questões religiosas (apenas o suficiente

para manter a ordem pública), onde, por conseguinte, todas as crenças e ideologias

disputavam um lugar no espaço público em igualdade de condições. Como veremos mais

adiante a rejeição da Igreja em relação às instituições pagãs de seu tempo era apenas parcial;

não implicava, por exemplo, a negação do valor ético e epistemológico da filosofia clássica,

haja vista concepções estoicas estarem presentes em Paulo e Platão, em João.

2.b.1. Evangelhos: Escritos polêmicos

O exclusivismo dos autores do NT apresenta-se em diversos graus, haja vista as

condições históricas peculiares de cada comunidade. Isto em vista, é inegável que em muitas

passagens os evangelhos se utilizem de uma linguagem violenta e até virulenta para referir-se

às religiões e ao contexto socioeconômico circundante. Seria um erro, entretanto, interpretar

estas passagens como teologia sistemática, como se fossem conceitos dissociados de sua

realidade histórica. Mesmo porque, por outro lado, as páginas do NT são até encomiásticas

com respeito a alguns personagens não cristãs da história de Jesus e dos Apóstolos. Por tudo

isto a definição da modalidade do Exclusivismo da Igreja Pré-constantiniana é bastante

problemática.

O NT é uma coleção de textos polêmicos, escritos para responder a problemas reais e

concretos das comunidades. Entre estes problemas estava o Paganismo, que muitas vezes

perseguia e caluniava a Igreja. Com efeito, um princípio hermenêutico importante para

entender como e por que os evangelhos foram redacionados é conhecer sua localização num

determinado locus social, uma questão que foi debatida pela Crítica Sociorredacional (Socio-
68

redation Criticism) 141. Este aspecto foi extremamente negligenciado tanto pela História da

Forma (Formegeschichte) como pela primeira geração da História da Redação

(Redaktiongeschichte), mas sem o que a questão do significado dos textos não se resolve. Do

ponto de vista da semântica pode-se dizer que nos evangelhos existem dois tipos de

referentes. O referente textual preocupado em contar a história de Jesus e o referente social,

que visa à experiência das comunidades e dos potenciais ouvintes dos evangelhos. Sua técnica

redacional consistia em fazer a comunidade se reconhecer nas histórias de Jesus, dos

discípulos e outros personagens dos evangelhos; fazer uma história incluir a outra; fazer com

que o passado de Jesus e o dos discípulos refletisse o presente das comunidades ou leitores

destinatários 142.

As comunidades receptoras das tradições de Jesus travavam uma luta encarniçada para

sobreviver num ambiente hostil à sua fé, com grau de oposição que crescia à medida que

também expandiam seus limites. A reconstrução da história de Jesus levada a efeito por cada

uma destas comunidades deveria ter em conta estas lutas. Para eles era essencial que Jesus se

lhes assemelhasse e fosse um modelo a ser contemplado e seguido, face às dificuldades que

enfrentavam.

Além disso, as comunidades receptoras e difusoras das tradições de Jesus também se

debatiam com profundas transformações internas. Isto significa que estes textos foram

redacionados em períodos de crise identitária, por causa de perseguições imperiais ou

judaicas, por estarem deixando de ser um ramo do Judaísmo143. Com efeito, Mateus e Lucas

141
Gerd Theissen in epílogo de R. Bultmann. Historia de la tradición sinóptica (Salamanca: Ediciones Sígueme,
2000). p. 422.
142
François Viljoen. “Mathew, the church and anti-Semitism” (VE, 28, 2, 2007), p. 699.
143
O antagonismo entre Cristãos e Judeus cresceu muito depois da destruição do templo na primeira Guerra
judaica (68-70 d. C.). O Judaísmo em formação daquela época não tendo mais um templo ao redor do qual
orbitar, foi gradativamente transferindo sua lealdade para o Rabinismo, movimento originário do Farisaísmo. (J.
A. Overman. O evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo. O mundo social da comunidade de Mateus – São
Paulo: Loyola, 1997), p. 45.
69

escreveram para comunidades em transição 144 . Assim também Marcos e João. Marcos

desejando mais independência em relação à comunidade fundada pelos discípulos em

Jerusalém e João enfrentando a oposição do Judaísmo da diáspora, provavelmente tendo

muitos membros de sua comunidade delatados ao poder imperial por Judeus ressentidos pela

expansão cristã145.

Aí a chave que nos abrirá a compreensão das ambiguidades do Novo Testamento quanto

ao mundo que o circundava, e por que a algumas fontes neotestamentárias era um ambiente

mais aceitável; a outras, mais antagônico.

2.b.2. O contexto religioso neotestamentário

Ingressando nesta consideração em flagrante oposição ao espírito polêmico do NT, não

podemos deixar de reconhecer que: (a) as religiões gentílicas greco-romanas encontravam-se

decadentes, bem longe daquela qualidade moral originária, quando ainda era uma religião

agrária. Os poetas haviam transformado as deidades gregas em péssimos exemplos para os

mortais, fazendo com que muitos se dispuseram a seguir-lhes o exemplo nos desregramentos

morais de toda espécie 146 . As novas religiões de mistério apenas davam azo a mais

licenciosidade, a exemplo dos mistérios dionisíacos e eleusinos. Outras, que podemos chamar

144
Eugene Laverdiere e William Thompson G. “New Testament communities in transition: a study of Matthew
and Luke” (TS, no. 37.4, 1976), pp. 570.
145
Para uma história social destas comunidades conferir: L. Schottroff y W. Stegemann: Jesús de Nazaret,
esperanza de los pobres (Salamanca: Sígueme, 1981). H. C. Kee, Community of the New Age. Studies in Mark's
Gospel (Lonon: SCM Press, 1977). Phillip Esler, Community and Gospels in Luke-Acts; The Social and Political
Motivations of Lucan Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1987). J. Andrew Overman. O
evangelho de Mateus e Judaísmo formativo, o mundo social da comunidade de Mateus; Igreja e comunidade em
crise, o evangelho segundo Mateus, São Paulo: Paulinas, 1999. Gerd Theissen. Colorido local y contexto
histórico en los evangelios. Una contribución a la historia de la tradición sinóptica (Salamanca: Ediciones
Sígueme, 1997).
146
“O próprio antropomorfismo que tornou os deuses tão próximos dos humanos, uma extensão mesma do
sistema de patronato e honra da sociedade, talvez tivesse um aspecto negativo ao revelar os deuses tão
mesquinhos, corruptos e imorais como os seres humanos. Os mitos que os romanos aprenderam com Homero e
com as tragédias expuseram os deuses olímpicos (particularmente) como guiados pelas mesmas paixões” (Luke
T. Johnson. Among the Gentiles. Greco-Roman religion and Christianity – New Haven\ London: Yale
University Press, 2009, p. 38).
70

com Tillich de quase-religiões 147 , tinham sido fundadas por filósofos, e inicialmente até

possuíam um impulso ético e moral bastante elevado, mas época neotestamentária já tinham

caído no mais puro hedonismo, como é exemplo dos Epicureus.

(b) O Cristianismo como religião minoritária, num esforço para constituir sua identidade

e conquistar seu lugar ao sol era pressionado tanto por Judeus como por Gentios. Por isso,

tinham a tendência de se apresentar em seu aspecto mais polêmico e agressivo, tal como

demonstra a maior parte dos escritos neotestamentários:

Os escritores do Novo Testamento se alinharam completamente ao Judaísmo, que já


tinha desenvolvido polêmicas contra a religião pagã e que era a contraparte do
agressivo antissemitismo dirigido contra os Judeus. Os profetas do antigo Israel
zombavam do politeísmo de seus vizinhos gentios, definindo sua adoração como
idolatria. E esta tradição teve continuidade no acerbo antagonismo dos Judeus contra
a adoração da população majoritária da diáspora helenística148.

Este espírito polêmico penetrara primeiro na Septuaginta (LXX, 250 a. C.), num

derrame de duras traduções do hebraico, que viriam a comprovar-se de enormes

consequências para as futuras relações entre Cristãos e não Cristãos. Salmo 96:5 diz: “os

deuses das nações são ídolos”; “os deuses das nações são demônios (daimonia)” (Sl. 95:5),

portanto, colocando todas as religiões gentílicas sob o signo do demoníaco149. Apesar de a

Septuaginta ter sido a base do NT, a redação cristã não adotou este espírito intolerante, muitas

vezes abertamente hostil contra a gentilidade, que antes refletia as dificuldades dos Judeus

para preservar sua fé no mundo helenístico durante o período selêucida. Todos incluíram os

Gentios no projeto do reino de Deus, variando apenas quanto ao grau de submissão às práticas

147
Conceito aplicado por P. Tillich às ideologias radicais de esquerda e de direita do século XX (Nazismo,
Fascismo, Comunismo) por conta de suas pretensões totalitárias que incluíam mesmo a dimensão religiosa da
vida societária. Cf. Paul Tillich. El futuro de las religiones (Buenos Aires: Ed. La Aurora, 1976).
148
Ibid., p. 2.
149
Outros textos do AT não são menos encomiásticos: “vaidade, obra ridícula” (Jr. 10: 15); “carentes de sopro
vital” (Jr 51: 17); “nada” (Is 44: 9); “vazio” (Jr 2: 5; 16: 19); “mentira” (Jr 10: 14; Am 2: 4); “demônios” (Dt 32:
17. Os deuterocanônicos e/ou apócrifos os acompanham de perto: “coisas mortas” (Sb 13: 10); “mentira” (Br 6:
50); “as feras valem mais do que eles” (Br 6:67); “causa e fim de todo mal” (Sb 14: 17).
71

judaico-cristãs, o que denota que este projeto deve ter estado presente desde o início da

pregação de Jesus.

Entretanto, o NT não tem um tratamento muito mais ameno com respeito aos Gentios,

especialmente Paulo. Para ele a conversão dos tessalonicenses significou o abandono dos

ídolos para servir o verdadeiro Deus vivente (I Ts 1: 9); os colossenses foram transferidos do

domínio da escuridão para a luz (Cl 1: 13). Também não faltam as referências

veterotestamentárias aos demônios: “as coisas que eles sacrificam é a demônios que

sacrificam” (I Co 10: 20). Outra referência constante em Paulo é a gentilidade entendida como

ignorância no sentido intelectivo: os Gentios tiveram seus olhos abertos para o verdadeiro

Deus (At 26: 18; I Ts 4: 5). Mas igualmente no sentido de erro (I Rm 1: 27). Ele diz aos

Cristãos da Galácia vindos do Paganismo: “em outro tempo, quando não conhecíeis a Deus,

servíeis aos que em realidade não são deuses. Mas agora que conheceis a Deus”. Atos 17: 30

fala do tempo pré-cristão como de “tempos de ignorância”, como no discurso do Areópago

culmina com a inscrição do altar “Deus desconhecido” (At 17: 23). Ef 4: 18 caracteriza aos

Gentios como “submergidos nas trevas, excluídos da vida de Deus pela ignorância que há

neles” 150.

Nas cartas gerais fala-se também dos tempos da ignorância. Em 1 Pe 1: 14 se exorta [ao

cristão] a comportar-se de maneira digna: “não vos amoldeis às paixões que tínheis antes, no

tempo de vossa ignorância”. Outra palavra usada, embora menos usualmente, é erro (kláne)

(II Pe 2: 18). Os cristãos vindos da gentilidade eram “como ovelhas errantes” (I Pe 2: 25; cf.

Hb 5: 22). “Contudo, talvez, os mencionados aqui como ignorantes e errantes não sejam os

Gentios enquanto tais, mas os pecadores em geral”151. O Apocalipse não é menos incisivo em

150
R. Bultmann. La teologia del Nuevo Testamento (Salamanca: Ediciones Sígueme, 1981), p. 114.
151
Idem, ibid.
72

seus reproches, nele os Judeus são chamados “sinagoga de Satanás” (Ap 2: 9) e os Gentios

são seguidores da Grande Meretriz (cap. 17).

O quadro não é simples. O Novo Testamento possui páginas enaltenecedoras à

gentilidade, especialmente aquelas referidas a representantes dignos e justos que chegaram

aceitar o convite do evangelho; por outro lado, há as referências vergonhosas, como as que

acabamos de citar. A gentilidade neotestamentária é tudo menos simples e decalcável. Havia

manifestações religiosas menos e mais distanciadas do Cristianismo. Além disto, tratava-se de

uma realidade dinâmica e em constante mutação, achando-se inundada por antigos e novos

credos, todos sofrendo transformações profundas por causa do intenso sincretismo que unia

tudo num caudal cultual comum, cuja convivência, tal como ocorre em nossos dias, era

administrada pelos próprios indivíduos152.

Vindos de todas as partes para disputar espaço e conviver no mundo globalizado greco-

romano, os deuses e as religiões contavam-se aos milhares. Os deuses agrários originários da

antiga sociedade romana (Lares); os deuses gregos de Homero e Hesíodo; os deuses das

religiões de mistéricas gregas (mistérios eleusinos, dionisíacos e órficos) 153 e os mistérios

importados do Egito e da Ásia Menor (Isis, Cibele, Atargatis154 e Adônis, respectivamente; os

deuses de religiões míticas de origem persa (Mitra)155 e siríaca (Júpiter Doliqueno)156, levados

152
Depois das conquistas de Alexandre (III século a. C.) o koiné mediterrâneo apresentava aos indivíduos os
novos desafios e oportunidades de uma salvação individualística, onde o sincretismo ocorria ao sabor do gosto e
inclinações de cada um (John Anton. “Theourgia – Demiourgia: a controversial issue in Hellenistic thought and
religion. in Richard T. Wallis (ed.). Neoplatonism and Gnosticism - Albany: State University of New York Press,
1992, p. 28).
153
“A partir do quarto século, a forma da religião grega que atraía a maioria das pessoas mais educadas não era a
religião dos deuses olímpicos, mas aqueles dos mistérios, que davam aos indivíduos uma relação mais pessoal
com a divindade” (Werner Jaeger. Early Christianity and Greek Paideia – Cambridge: Belknap Press of Harvard
University Press, 1961, p. 55).
154
Como deusa da reprodução seu símbolo mais importante é o falo. Segundo Apuleio no Asno de Ouro, seus
sacerdotes são homens emasculados e invertidos sexuais, praticantes da prostituição ritual. (Jaime Alvar. “Cultos
sírios”. In Jaime Alvar et al.Cristianismo primitivo y religiones mistéricas – Madrid: Cátedra, 1995, pp. 446 e
447.
155
“Ahura-Mazda ocupa a posição hegemônica do panteão [persa], enquanto Mitra aparece como comandante
militar, chefe dos exércitos da justiça, defensor da ordem contra o caos e da luz em confronto com as trevas”.
(Jaime Alvar. “El misterio de Mitra”. In Jaime Alvar et al.Cristianismo primitivo y religiones mistéricas, p. 508).
73

a Roma pelos legionários; os deuses imperadores da religião oficial do Estado; o Deus de

Israel do Judaísmo, disseminado pela diáspora judaica; as quase-religiões ateísticas e

filosóficas (terapeutas, pitagóricos, epicureus, estoicos, cínicos, etc.).

Algumas dessas religiões contavam com a boa vontade das autoridades, a exemplo,

obviamente, do culto ao imperador e das religiões tradicionais, tais como os antigos deuses

greco-romanos e o próprio Judaísmo, tolerado por sua antiguidade. Outras menos toleradas e

até restringidas por sua natureza perturbadora da ordem pública, tais como os Mistérios

Órficos e Dionisíacos, devido ao comportamento extático de seus adoradores, que muitas

vezes os levava a comportamentos pouco previsíveis; os Epicureus, por causa de seu notório

ateísmo; e os Cristãos por causa de sua misantropia (ódio ao gênero humano)157 e amixia

(autossegregação), que lhe dava aos olhos dos romanos um caráter antissocial e anticívico158.

Destaque seja dado entre as primeiras ao credo oficial, o culto ao imperador, que a

princípio sofreu resistência do senado, mas com o passar do tempo e por influência das

províncias orientais 159 , ganhou força, primeiro com Júlio César, depois de morto, e,

posteriormente, com Otávio Augusto, que, a exemplo dos reis orientais, tornou-se deus ainda

em vida. Augusto César tinha sido declarado filho de Apolo e assim todos os demais

imperadores Césares e Flavianos, por cujo poder, eram capazes de acalmar tempestades

156
Uma espécie de Baal, originário de uma cultura neohitita, que, depois de helenizado, adotou o nome de
Doliqueno, aludindo à origem de seu culto. Senhor dos trovões, do tempo e do ferro, tinha os atributos
necessários para se tornar um dos deuses da guerra dos romanos. (Jaime Alvar. “Deuses sírios”. In Jaime Alvar
et al.Cristianismo primitivo y religiones mistéricas, p. 448.
157
“Isto se compreende se recordarmos que todas as atividades [sociais] da época – o teatro, o exército, as letras,
os esportes, etc. – estavam tão ligadas ao culto pagão que os Cristãos viam-se obrigados a se ausentar delas.
Portanto, diante dos olhos de um pagão que amava sua cultura e sua sociedade, os cristãos pareciam ser
misantropos que odiavam toda a raça humana” (Justo Gonzalez. Uma história ilustrada do Cristianismo – vol. 1,
São Paulo: Sociedade religiosa edições Vida Nova , 1991, vol. 1), p. 55 e 56.
158
O culto ao imperador a que também se furtavam os cristãos era uma prática tão enraizada na civilidade
gentílica greco-romana que se pode dizer que os cristãos negando-se a prestar-lhe honra se assemelhariam aos
que hoje em dia desrespeitassem a bandeira nacional e o hino pátrio.
159
Luke T Johnson. Among the Gentiles, p. 37.
74

(Augusto César) e, segundo os dons concedidos por Asclepius – deus da Medicina, curar

doentes (Vespasiano),160.

Títulos tais como ‘Senhor’, ‘Salvador’, ‘Filho de deus’, eram normalmente usados pelos

suplicantes para interpelar os imperadores romanos em orações. O próprio termo evangelho

(euaggelion), ou ‘Boas novas’ era usado pelos arautos do imperador quando anunciavam seu

beneplácito aos cidadãos de uma determinada cidade: distribuição gratuita de cereal e convite

para participação em festividades cívicas, promovidas para comemorar novas conquistas

territoriais, etc.161.

Não se deve subestimar a força dessa religião civil. Ela era o cimento que unia os povos

subjugados em torno de Roma, a capital do mundo, ainda que entre estes povos e na própria

cidade ‘eterna’ fossem adorados numerosos deuses, como vimos demonstrando. As elites

locais dos povos dominados tinham grande interesse em patrocinar o culto ao imperador162.

Fazendo-o, atraíam a si o favor de suas legiões, para garantirem seus impostos, e ficarem

protegidos contra revoluções e insurreições locais e invasões de outros reis-clientes.

Mas não era só uma questão de pragmatismo político, o que fazia o culto ao imperador

crescer e ganhar popularidade.

A permeabilidade e a dispersividade intrínsecas do politeísmo fizeram do culto ao


imperador não apenas uma prática inteligível como também lógica. Se a divindade
se revelava por sua efetiva presença e poder, então aqueles que exercessem o
domínio imperial sobre toda a oikoumene eram verdadeiramente theoi phenomenoi
(deuses visíveis)163.

160
Amy-Jill Levine, Dale C. Allison Jr., John D. Crossan. The historical Jesus in context, Princeton: Princeton
University Press, 2006, p. 28.
161
Ibid., p. 29.
162
Havia em Atenas treze pequenos altares dedicados exclusivamente a Augusto. O imperador Cláudio, sob cujo
reinado Paulo chegou a Atenas, é descrito em uma das inscrições dedicadas a ele como “Senhor e Benfeitor”.
Também havia um culto completo a Antônia Augusta, designada como θεα Άvτovία, com sacerdotes e mais
tarde com sumos sacerdotes, já que Atenas era considerada o lugar de sua concepção (David Gill e Conrad
Gempf (eds.). The book of Acts in its first century setting – Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1994, p. 85).
163
Luke T. Johnson, Among Gentiles, p. 37.
75

Outro grande adversário do Cristianismo foi o Judaísmo. Não o Judaísmo formativo de

até a metade do primeiro século, mas o Judaísmo que evoluiu do Rabinismo farisaico,

ganhando força após a destruição do templo de Jerusalém. Além de ser a seita mais antiga e

ter sobrevivido às suas rivais mais ponderosas (os Saduceus que desapareceram com o

templo, os Essênios e Zelotes, trucidados por Tito e por Vespasiano), o Judaísmo que evoluiu

do Farisaísmo veio a contar com a simpatia romana por causa da antiguidade de suas

tradições. Os imperadores até Cláudio164 concederam-lhes por decreto o direito de cultuarem

seu Deus e praticarem suas tradições sem serem incomodados, ao templo de Jerusalém

garantiram o envio das ofertas e dízimos, sem que sobre a classe sacerdotal pesasse nenhum

imposto ou taxa. Assim que graças ao favor imperial as sinagogas judaicas eram ricas e

ponderosas, enquanto os cristãos faziam suas reuniões nos domicílios de adeptos e

simpatizantes165.

No segundo século as relações entre Cristãos e Judeus degringolaram de vez, à medida

que os Judeus compreenderam que o Cristianismo era muito mais do que uma seita dentro do

Judaísmo. Os primeiros confrontos ocorreram quando as missões de ambas as religiões se

chocaram no mundo greco-romano, como atesta o livro de Atos dos Apóstolos. Como se sabe

os movimentos migratórios produzidos pelo Helenismo e a facilitação da comunicação por ter

o mundo conhecido se tornado falante da língua grega, criou-se um ambiente favorável à

difusão de ideias religiosas. Os Judeus por sua dispersão no ecumene e por contar com certa

simpatia das autoridades foram dos que mais se favoreceram, tornando-se conhecidos por seu

164
Cláudio promulgou um edito em 51 d. C. que expulsava os Judeus de Roma. Atos 18: 2 menciona este fato
sem, no entanto, dar dele as razões. “Mas o historiador romano Suetônio nos oferece um dado intrigante, aos nos
dizer que os Judeus foram expulsos de Roma porque estavam causando distúrbios constantes ‘por causa de
Cresto’. A maioria dos historiadores concorda em que Cresto é o próprio Cristo, cujo nome teria sido mal
escrito.” (Justo Gonzalez. Uma história ilustrada do Cristianismo, vol. 1, 1991, p. 51). Ou seja, os Judeus foram
expulsos de Roma por causa das dissensões com os Cristãos sobre Jesus Cristo.
165
“Escavações em Sardes [Ásia Menor] têm demonstrado quão grande e elaborada era a sinagoga judaica na
cidade, provendo uma demonstração visual da disparidade em tamanho e prestígio entre o Judaísmo e o
Cristianismo nascente.” (Luke T. Johnson. Among Gentiles, p. 22).
76

forte proselitismo166, merecendo por isso observações ferinas de escritores clássicos latinos.

Horácio, poeta latino do I século a. C., declara: “se não queres vir voluntariamente faremos os

Judeus e te obrigaremos a vir”167. Por conta deste proselitismo surgiu a figura religiosa do

temente a Deus (pheboumenos ton theon), piedoso ou adorador de Deus (theosebes),

sebomenon proselyton (prosélitos) (At 13: 43). Ou seja, Judeus não étnicos, mas religiosos,

que observavam a lei de Moisés tal como um Judeu de nascimento, ou, pessoas que

observavam a lei sem nunca chegarem a se deixar circuncidar, ou ainda, pessoas

simpatizantes do Judaísmo.

A evidência para Gentios aderentes do Judaísmo, contudo, não pode se limitar a esta
terminologia. [...] Declarações de Philo e Sêneca falam sobre a expansão das leis
judaicas e Josefo argumenta que os Judeus de Antioquia incorporaram parcialmente
admiradores Gentios168.

Quando as missões cristãs começaram a penetrar nos lugares onde as missões judaicas

já atuavam, obviamente os Judeus não gostaram nada de ver concorrentes para atrapalhar seus

esforços de ganhar o mundo para sua fé. O livro de Atos apresenta a seus leitores um grande

número de Gentios justos que apesar de não abraçarem abertamente ao Judaísmo, mormente

por causa da incompatibilidade de sua ocupação no serviço público (onde teriam que prestar

culto ao imperador), ainda assim se mostravam dispostos a ouvir a pregação dos apóstolos e

evangelistas cristãos: o centurião Cornélio (At. 10: 1 – 5), o centurião cujo servo fora curado

(Lc. 7: 2 – 4), o pro cônsul Sergio Publius (At. 13: 7, 12), o carcereiro filipense (At. 16: 25-

34), o pro cônsul Gálio (18: 12 – 14) e Publius, principal da ilha de Malta (28:7-10).

166
“As massas desde muito têm mostrado entusiástico desejo de adotar nossas observâncias religiosas, e não há
uma cidade, grega ou bárbara, nem uma única nação, a qual nosso costume de nos abster do trabalho aos sábados
e onde jejuns e a festa das luzes e muitas de nossas proibições em questões de alimentação não sejam
observadas” (Ag. Ap. 2: 282).
167
Apud Daniel Rode “el Todopoderoso en la misión de bendecir a todas las etnias”. In Elias Brasil. Teologia e
metodologia da missão (Cachoeira: Ceplib, 2011), p. 430.
168
John J. Collins. Between Athens and Jerusalem. Jewish identity in the Hellenistic Diaspora (Grand Rapids:
Eerdmans Publishing, 2000), p. 266.
77

Ao longo do primeiro século a situação só pioraria, também por causa de seguidos

decretos imperiais que interditavam a prática da religião cristã169, agora não mais identificada

como uma seita do Judaísmo, mas como religião independente. Como se sabe o Estado

romano nunca moveu perseguições contra os cristãos nem promoveu investigações para

apurar quem praticava o Cristianismo clandestinamente. Apenas se limitava a deter e julgar

aqueles que eram acusados de serem seguidores de Cristo 170 . Ao que parece que alguns

Judeus devem ter delatado Cristãos e com isto desencadeado todo um processo inamistoso

que atravessou os séculos.

Com tudo isto, o Exclusivismo Forte do NT não pode ser superestimado. O Novo

Testamento possui várias passagens que apontam nesta direção. Os escritores do NT são

claros em declarar Jesus Cristo como único e suficiente salvador “não existe nenhum outro

nome pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4: 12); “só existe um mediador entre Deus e

os homens” (Tm 2: 5); “Eu sou o caminho a verdade e a vida e ninguém vem ao Pai senão por

mim” (Jo 14: 6). E sua Igreja como agência difusa de sua mensagem (Mt 28: 19). O

Exclusivismo Fraco do NT, contudo, transparece na convicção de que a vontade divina é pela

salvação de todos os povos da terra, inclusive daqueles que praticam religiões não cristãs (II

Pd 3: 9; I Tm 2: 4). A convicção de que todos são filhos do mesmo Deus, de que o mesmo

Espírito opera em todos (Jo 3: 8), e ainda que ignorem o que expressamente está declarado

nas Escrituras serão todos julgados pela mesma lei, pois todos têm-na impressa na consciência

(Rm 2: 15) e podem perceber o Criador pelas obras de suas mãos (Rm 1: 20).

Em suma, o NT é exclusivista, mas pode ser mais ou menos, de acordo com a ênfase

colocada em determinadas passagens. O Cristianismo, repetindo a história de suas fontes, tem


169
No tempo do imperador Trajano, por volta do ano 101 d. C., como dá conta a correspondência entre o
governador da Bitínia e o citado (Justo Gonzalez, Uma história ilustrada do Cristianismo, vol. 1, 1991, p. 62).
170
A recomendação de Trajano era de que não se devia mover investigações contra Cristãos, mas se alguém
fosse acusado desta prática e se negasse a prestar culto ao imperador deveria ser supliciado. Assim, por volta de
107 d. C. Inácio de Antioquia foi condenado à morte. Depois muitos outros cristãos o seguiram às feras (Ibid.,
pp.64 e 66).
78

sido como um pêndulo, ora oscilando em uma direção; ora, em outra. Num primeiro momento

a Igreja pré-constantiniana foi inclusivista em relação aos Judeus (até pelo menos próximo ao

tempo da ascensão do Rabinismo de Jabneh). Num segundo momento, inclusivista em relação

à filosofia grega (pelo menos os filósofos da era clássica: Sócrates, Platão e Aristóteles) 171, e,

ainda que não assertivamente, Paulo em relação aos filósofos da Stoa.

R. Panikkar muito argutamente identifica dois tipos de relação dos Cristãos com as

religiões: (a) a fase em que os cristãos se veem como testemunhas, como exemplarmente fica

patente no primeiro sermão de Pedro em Jerusalém: “Jesus ressuscitou, do que todos nós

somos testemunhas” (At 2: 32), àqueles que julgavam seus irmãos na mesma fé: os Judeus. E

uma segunda fase (b) em que há uma conversão de outra religião ao Cristianismo, que

Panikkar julga ter início na era constantiniana e Pós-constantiniana 172. De fato, embora o NT

fale de conversão (metanoia), o sentido da palavra está normalmente atrelado ao abandono de

uma vida pregressa cheia de pecado e sua substituição por uma vida nova, quando se é nova

criatura, sendo este o significado da alegoria do batismo como morte e ressurreição (6: 4). Em

Paulo a Igreja é um organismo, cujo crescimento é produzido pelos dons do Espírito. Apenas

Pedro e Mateus falam claramente de uma entrada numa comunidade de crentes (Mt 16: 19). A

ênfase institucional é, portanto, como corretamente identificada por Panikkar, a marca mais

importante da Igreja Pós-constantiniana e passa a ser o fundamento de um Exclusivismo

Forte, simbolicamente mais violento, de modo algum chancelado pela Escritura. Portanto, a

rigor, a primeira igreja que apresentou este tipo de abordagem foi a Católica Romana.

171
Deveras, cada um dos Pais encontrará um ponto de contato teológico com a filosofia pagã da época. Justino
mártir falava de sementes do verbo (sperma tou logous), presentes em todas as culturas; Irineu de Lyon defendia
uma teologia das alianças de Deus; e Clemente de Alexandria, a concepção de que no decorrer da história teria
havido várias revelações de Deus: a lei e os profetas aos Judeus, a filosofia aos Gregos e a sabedoria aos hindus,
que ele chamava gimnosofistas.
172
R. Panikkar, Dwelling Place for Wisdom (Delhi: Motilal Banarsidass, 1993), capítulo 4.
79

2.c. Exclusivismo Católico Romano

Dos seus primórdios o Catolicismo Romano progrediu rapidamente para um

Exclusivismo mais restrito. Ainda se discute o que o teria levado a esta guinada oclusiva tão

rápida desde o início do período pós-constantiniano (325 d. C.). Vários fatores podem ser

apontados: (a) o primeiro foi o fortalecimento institucional e a politização da esfera religiosa,

graças ao vácuo administrativo deixado pela mudança da capital de Roma para

Constantinopla 173 . Secundariamente sob esta mesma rubrica, houve também a adoção do

bispado monárquico como forma de governo eclesiástico e o constante enfrentamento de

dissidências internas e externas.

O segundo fator, agora de uma (b) perspectiva teológica, o pensamento de Agostinho

foi uma influência muito importante. Em Santo Agostinho há uma visão profundamente

pessimista da humanidade, para ele, em sua condição caída, massa danata, gerada pela

concupiscência humana (relação sexual)174. Toda a teologia da queda, do pecado original e da

incapacidade humana de evitar o pecado e promover a prática do Bem (non posse non peccare

ou impossibilitas non peccandi), conforme aparecem na controvérsia com Pelágio, faziam

pensar que fora da graça divina tudo já estivesse de antemão condenado175. Como corolário de

toda esta teologia lapsariana, há também a doutrina dos sacramentos e sua imprescindibilidade

para a salvação de todos os mortais, que fez com que a partir daí se desenvolvesse a prática do

batismo infantil e se criasse um lugar especial para os justos homens nascidos fora do espaço

sacramental da Igreja: o limbo, onde estariam Platão e Aristóteles.

Esta concepção atravessou os séculos na Igreja Católica e persuadiu até grandes mentes

como Tomás de Aquino a endossar firmemente e até contribuir para seu aprofundamento,
173
Helen C. Evans e William D. Wixom. The glory of Byzantium. Art and culture of the middle Bizantine era
(New York: The metropolitan museum of art, 1997), p. 21.
174
Sto. Agostinho apud K. Armstrong. Uma história de Deus, p. 166.
175
De Corretione et gratia. In Jean Chené e Jacques Pintard (eds.). Oeuvres de Saint Agustin. Bibliothéque
augustinien (Paris: Desclée de Brower, 1962), p. 344.
80

fazendo uso, por exemplo, do método exegético alegórico usado pela Patrística, especialmente

grega, para pontificar: “fora da Igreja não há salvação; ela é como a arca de Noé no tempo do

dilúvio”176.

Resumindo, ao fim da Idade Média, a Igreja Católica Romana via-se como exclusiva

mediadora da graça divina, a única porta pela qual poderia passar quem quisesse escapar da

danação eterna. Daí a conclusão categórica do discípulo de Sto. Agostinho, Fulgêncio de

Ruspe, no apagar das luzes da assim chamada Idade Escura, que acabou sendo adotada pelo

concílio de Florença (1442) como doutrina oficial da Igreja Romana:

O concílio crê firmemente, professa e anuncia que ninguém, que viva fora da Igreja,
não apenas pagãos, mas também os Judeus, os Hereges ou Cismáticos, poderá ter
parte na vida eterna; todos eles irão para o fogo eterno, preparado para o diabo e
seus anjos (Mt. 25: 41), se antes do fim da vida não aderirem a ela. [...] Mesmo que
um tivesse dado muitas esmolas e tivesse inclusive derramado o sangue para Cristo,
se na viveu em união com a Igreja Católica não poderá ser salvo177.

O concílio de Trento (1545-1563) tentou amenizar um pouco esta disposição extremada,

decretando que os Pagãos podiam se salvar in voto, ou seja, se desejassem o batismo, ou se

desejassem pertencer à Igreja, sendo suficiente um desejo implícito, desde que precedido por

um propósito da própria consciência e seguido de uma vida condizente com ela. Além desta,

foram formuladas outras teorias como revelação primitiva ou geral e a conversão no leito de

morte, aplicadas à salvação de pessoas honestas que tinham vivido fora da Igreja178.

Mais adiante, no Concílio Vaticano I, ainda no século XIX, surgem outras sutilezas para

amenizar a rigidez da decisão conciliar de Florença. O conceito de “ignorância invencível” é

um exemplo. Diz o papa Pio IX:

Naturalmente é necessário afirmar, de fé, que fora da Igreja Apostólica Romana


ninguém pode se salvar, que esta é a única arca de salvação, e que quem nela não

176
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to the theology of religions, p. 69.
177
Enchiridion symbolorum in C. Cantone. A reviravolta cósmica de Deus (São Paulo: Paulinas, 1996), p. 91.
178
J. Wong. “O Deus de Jesus Cristo em perspectiva pneumatológica”. In C. Cantone. A reviravolta planetária
de Deus), p. 415.
81

entrar, perecerá no dilúvio; porém, deve-se considerar igualmente certo que aqueles
que se encontram na ignorância da verdadeira religião, se esta ignorância for
invencível, não tem nenhuma culpa perante os olhos do Senhor179.

Mais tarde a encíclica Quanto conficiamur moerore (1863), do mesmo papa vem a

explicitar o alcance da “ignorância invencível”: ela diz respeito não só a cristãos não

católicos, como também aos adeptos de outras religiões180.

Pio XII, na encíclica Mystici corporis (1943), identificou a Igreja Romana com o corpo

místico de Cristo e com ela relacionou “todos os que por certo anseio e desejo inconsciente

sejam direcionados para o corpo do redentor” 181 . Dupuis presume que este “desejo

inconsciente” (inscio desiderio) “estaria implícito na vontade sincera de cumprir a vontade de

Deus em relação a si mesmo”182.

Concluímos observando que neste ponto já se está a um passo das disposições

conciliares do Vaticano II, porque o que separa este documento daquele é uma sutileza da

língua latina. O primeiro traz ordinantur (ordenado, orientado), palavra que indica o

direcionamento dos não cristãos ao Catolicismo mediante este desejo; o segundo (no Lumen

Gentium no. 15), ocorre o registro de coniuncti (unidos). Neste caso os Gentios são incluídos

na Igreja Católica Romana mediante a dilação da função sacramental da Igreja e não são

meramente orientados, como afirmava o primeiro documento.

2.d. Exclusivismo Protestante

Entre os Protestantes históricos (Luteranos, Reformados, Presbiterianos) o

Exclusivismo inicialmente significou o mesmo que para os Católicos, ou seja, sua modalidade

forte. Diferenciando-se deste apenas pela menor ênfase eclesial-sacramental e maior

179
Singularem quadam in J. Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 175.
180
Enchiridion symbolorum in J. Dupuis. Op. Cit., p. 175.
181
Ibid.
182
Ibid.
82

importância dada a soteriologia, que tem por base não uma aderência institucional, mas uma

resposta individual ao convite divino. Uma salvação unicamente pela graça de Jesus mediante

a fé foi fortemente defendida por todos os reformadores, e isto os impediu de ver a salvação

sendo obtida de outra maneira no seio das religiões não cristãs. À exceção de Zwinglio que,

em relação a alguns pagãos virtuosos, dissente dos outros reformadores, ou seja, em vez de

arrojá-los no inferno, coloca-os no Paraíso (Expositio Fidei, 1531), tal como fizeram os Pais

Apologetas183.

No tocante à relações inter-religiosas, os reformadores acompanharam seu tempo pós-

constantiniano e encontraram na eclesiologia veterotestamentária uma boa justificativa para

manter a abordagem exclusivista católica romana. Calvino, por exemplo, defendia uma visão

eclesiológica teocrática quanto ao governo da Igreja e quanto à filiação a ela, defendia uma

unidade entre as duas alianças (o Antigo e o Novo Testamento), defendendo inclusive

transmissão hereditária de filiação via batismo infantil, para ele uma espécie de circuncisão184.

Por conseguinte, nas relações com Judeus, Mulçumanos e movimentos religiosos

cristãos minoritários (Anabatistas), os reformadores respiravam ainda os ares intolerantes

medievais, tornando sua abordagem semelhante à Católica em termos de violência simbólica,

com capítulos inteiros manchados de sangue. O erro foi continuar pensando a partir de uma

perspectiva eclesiológica pós-constantiniana que só poderia levar à degeneração das relações

inter-religiosas, provocando guerras religiosas em vários pontos da Europa e culminando com

a guerra dos Trinta Anos (séc. XVII). O fervor sem entendimento de Lutero185 e Calvino foi

crucial para perseguição e morte de milhares de Judeus e Anabatistas, respectivamente.

183
Apud Phillip Schaff. Creeds of Christendom. With a history and critical notes (vol. 1, Grand Rapids: Baker,
1993), p. 360.
184
João Calvino. A instituição da religião cristã (vol. 2, São Paulo: Editora Unesp, 2008), capítulos 9-11.
185
Lucy Kaennel. L’antisémitisme de Luther (Généve: Labor et Fides, 1997).
83

Com o fim da guerra dos Trinta Anos e o início do processo de laicização do Estado,

implementado sob a presunção de que isto fosse a solução do problema da intolerância, teve

início também a influência das ideias iluministas sobre a teologia protestante. A superioridade

religiosa do Cristianismo transferiu-se do campo religioso para o da ética e da cultura, via

Kant e Hegel. Este posicionamento em suas formas mais violentas e sutilmente ocultadas, que

mesclam uma política religiosa opressora a um eurocentrismo exacerbado, hoje se encontra

superado. No campo teológico, contudo, há desenvolvimentos recentes que ainda fazem

perdurar entre nós esta noção, embora não mais sobre as antigas bases fundamentalistas ou

racionalistas, antes por meio de um refinamento teológico, da lavra de algumas dos maiores

teólogos do século XX.

2. d. 1. Karl Barth

Karl Barth, o teólogo reformado, que ficou famoso como o fundador de uma nova

escola teológica conhecida como Neo-ortodoxia e porque inicialmente liderou outros

dialéticos (R. Bultmann, F. Gogarten e E. Brunner) na revolta contra Teologia Liberal; não é

menos conhecido pela força de seus textos e pelo radicalismo de suas posições. Com efeito,

por causa deste radicalismo apriorístico186 que rejeita qualquer tipo de aproximação humana

ao divino, seja ela de origem mística ou racional, ele sequer tomou conhecimento dos debates

que tiveram lugar ainda em seus dias sobre o diálogo inter-religioso. Contudo, alguns dos

teólogos que tiveram participação importante nestas discussões tomaram-no como mentor

intelectual: Hendrik Kraemer e Visser't Hooft.

186
Peter Berger relata uma conversa deveras interessante entre Barth e o clérigo anglicano D. T. Niles, o
primeiro bispo da Igreja Unida do Sul da Índia. Eles discutiam a propósito da tese barthiana “Religion ist
Unglaub”. A certa altura da entrevista Niles pergunta a Barth: “com quantos hindus o senhor já conversou?”. A
resposta de Barth : “nenhum”. “Como o senhor sabe então que o Hinduísmo é incredulidade?” A resposta de
Barth revela o âmago de sua metodologia: “a priori”. (Peter Berger. The Heretical Imperative. Contemporary
possibilities of religion affirmation, London: Collins, 1980, p. 84).
84

As características teológicas que geralmente são apontadas como basilares para a

composição do ideário barthiano na verdade não servem para identificar o cerne de seu

pensamento. Nem seu alegado existencialismo de inspiração kierkegaardiana da primeira fase

nem a influência de Anselmo da virada da Dogmática Eclesial constituem o que realmente

levou Barth de volta às Escrituras. Em Barth, os princípios protestantes, sola gratia, sola fides

e sola Scriptura, têm um significado muito mais radical do que usualmente, porque seu ponto

de partida é um espírito profético que tem por moto os dois primeiros mandamentos do

decálogo: o primeiro que diz respeito a quem seja Deus e o segundo, que tipo de adoração

Lhe é devida187.

Obviamente, o contexto histórico onde Barth fez ouvir sua voz, a saber, o ambiente

moral e religiosamente decadente do Protestantismo europeu instilado pela Teologia Liberal

foi a moldura sem a qual a reação barthiana não poderia ser plenamente entendida. Ele foi o

único dos dialéticos que teve a coragem de reconhecer que a Palavra de Deus está acima de

seus ouvintes, e se, portanto, houver desacordo entre ela e eles, o juízo divino deve ser

proclamado sobre os homens não foram capazes de entendê-la, apesar de todas as pressões em

contrário. Ele não agiu como alguns de seus antigos colegas, entendendo hermenêutica como

a mera promoção da adequação do evangelho a seus ouvintes, ou seja, se os ouvintes não

entendem a culpa é dos pregadores.

Com efeito, o tema da descontinuidade entre o divino e o humano atravessa toda a

teologia barthiana. A infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem é um obstáculo que

nenhum ser humano pode transpor. É um fosso indevassável, que não admite nenhuma

passagem gradual do divino para o humano, nenhuma continuidade entre a graça e a

187
I. W. C. van Wik. “God and the gods: Faith and human-made idols in the theology of Karl Barth” (HTS, 63-4,
2007).
85

religião 188. O abismo só é superado pela iniciativa revelacional divina. Esta concepção da

separação radical de Deus leva-o a uma rejeição apriorística de qualquer religião que não

provenha da fé, e não seja resposta à divina graça. Neste parâmetro incluem-se todos os tipos

de idolatria e todos os tipos de justificação pelas obras (Werkgerechtigkeit), em geral, as duas

classes de erro em que incorrem as religiões não cristãs (e até as cristãs). Como não são

resposta de fé à Palavra de Deus, e só o Cristianismo sendo esta resposta (assim como

revelada em Jesus Cristo), todas as outras religiões que partem da palavra humana só poderão

merecer o ‘não’ divino189.

A partir desta perspectiva move-se a cruzada barthiana contra toda divindade que não é

bíblica e não é resultado de uma autorrevelação de um Deus que é totalmente outro (der ganz

Andere). Em sua obra inaugural, a Epístola aos Romanos, por exemplo, Barth reage contra o

deus da Teologia liberal e do Socialismo Cristão, movimentos dos quais fizera parte, e não

propriamente às religiões não cristãs. Um deus com elementos ideológicos, por menores que

sejam, será o retrato de uma época, será um ídolo, mas nunca o Deus bíblico, aquele que é

acessível apenas por seu próprio beneplácito. Em obras menores que surgem nos anos

imediatamente antecedentes à ascensão do Nazismo e à Guerra Fria, Barth volta-se contra o

deus implícito nas ideologias ocidentais, fossem capitalistas ou comunistas: o Estado, o

consumo, o indivíduo190.

A reação direta às religiões só surgirá na transição da fase dialética – marcada pela

negatividade – para a fase analógica, em que busca o ponto de contato entre Deus e o homem

e o encontra no princípio analogia fidei, sobre o qual será fundamentada sua obra

monumental, a Dogmática Eclesiástica. Nesta suma teológica vem à luz a forma mais

188
K. Barth. The epistle to the Romans (London/Oxford, Oxford University Press,1968), p. 248- 260.
189
K. Barth. Church Dogmatics, vol. II/1 (Edimburgh: T&T Clarck, 1961), p. 17.
190
K. Barth. Dádiva e Louvor (São Leopoldo: Sinodal, 1989).
86

extrema do Exclusivismo: “a revelação de Deus como abolição da religião”191; “a religião em

si mesma e como tal não é nunca e em nenhum lugar verdadeira. Este verdadeira quer dizer

ser conhecimento verdadeiro, adoração a Deus e reconciliação do homem com Deus”192. O

famoso moto barthiano “Religion ist unglaub” (religião é des-fé, incredulidade) significa que

as religiões estão fundamentadas no orgulho e na vaidade humana e não na fé (Glaub): “nós

começamos com a afirmação: a religião é descrença, a religião é uma preocupação – nós

podemos em realidade dizer que é a preocupação – de uma humanidade sem Deus 193”.

As religiões resultam de um processo religioso invertido, que começa com o ser humano

e tem como destino o transcendente, enquanto o verdadeiro processo começa com Deus e tem

como destino final o homem perdido em sua transgressão (Gn 3: 8 e 9). As religiões, por

estarem fora da graça reveladora de Deus, agem como os construtores da torre de Babel,

tentando solucionar os problemas humanos em desconsideração à Palavra de Deus: “as águas

não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne” (Gn 9; 15). Portanto, a religião é um

tipo de pecado.

Neste rol encontram-se todas as religiões mundiais, sem exceção. O Deus dos

muçulmanos, por exemplo, é um ídolo, por sua rejeição ao Filho de Deus194 (a cristologia

muçulmana não apresenta um Jesus completamente humano; foi uma aparência de Jesus o que

foi pendurado na cruz, não o próprio – Docetismo). O Islamismo é uma religião cultural,

extremamente dependente de valores atrelados ao modo de vida da sociedade islâmica195 ,

portanto, seus fundamentos são ideológicos, padecendo do mesmo defeito dos “ismos”

contemporâneos rejeitados por Barth.

191
K. Barth. Church Dogmatics, vol. I/2, p. 26.
192
K. Barth. Church Dogmatics, vol. I/2, p. 356.
193
K. Barth. Church Dogmatics, vol I/2, p. 280.
194
K. Barth. Church Dogmatics, vol. IV/ p. 432.
195
K. Barth. Church Dogmatics, vol. IV/2, p. 615.
87

As bases teológicas de Barth são diversas. Primeiramente, há a fundamentação

cristológica de sua teologia, que faz com que tudo o que o diz se inscreva seja metodológica e

ontologicamente em Jesus Cristo. Este seu cristomonismo, mais de uma vez criticado, fá-lo

rejeitar a Cristologia meramente normativa de Troeltsch e de Tillich e toda a teologia Católico

Romana, por conta das outras vias para a percepção da vontade de Deus. Para ele a teologia

deve partir sempre do “escândalo da particularidade”196 do evento crístico, do mesmo modo

como a teologia de Paulo se baseava no escândalo da cruz. Jesus Cristo é o único fundamento

pelo qual a divindade pode ser entendida pelo ser humano. É através da encarnação de Cristo,

por exemplo, que o homem é dotado da capacidade de entender a Deus e a si mesmo,

procedimento hermenêutico que ele chama de analogia da fé (analogia fidei). Na introdução

de sua Dogmática Eclesiástica ele radicaliza denunciando a analogia dos entes (analogia

entis) de Sto. Tomás é uma “invenção do anticristo”197, concluindo que o que emerge dela não

é o Deus adorando pelos cristãos, mas um falso deus aristotélico198.

Em suma, Barth interdita completamente a via quando se pensa na possibilidade de

poder ser obtido o conhecimento do divino por meio da razão e das religiões. Esta via está

completamente cerrada, pois seu objetivo é enaltecer a graça divina e humilhar os meios

humanos usados para se chegar a Deus. Há dois motivos fundamentais para a dureza das

afirmações de K. Barth contra as religiões. Primeiro, sua luta sem trégua contra a Teologia

Liberal, tendo como interlocutor, especialmente Schleiermacher e seu “sentimento de absoluta

dependência”, pelo qual foram equiparadas todas as religiões. O segundo motivo é corolário

do primeiro. O monólogo cristológico barthiano, que pode ser consistente com suas ideias,

não é bíblico.

196
K. Barth. Church Dogmatics, vol. II/1, p. 1.
197
K. Barth. Church Dogmatics, vol. I/1, p. x.
198
Ibid., vol. II/1, p. 84.
88

Passado o calor da discussão e atenuado o ardor profético contra os liberais, mais tarde,

atingindo Barth a plena maturidade, sua pena sofre uma inflexão importante sobre a questão.

No tomo 23 de sua Dogmática ele vem a admitir a possibilidade de um testemunho silencioso

sobre Deus na natureza e na história: “as luzes, palavras e verdades da criatura podem ser o

lugar onde brilha a eterna Palavra de Deus”199, ou seja, sub-repticiamente ele admite que as

religiões podem ser usadas pela revelação divina para manifestar faíscas de sua verdade.

Coerente com esta percepção ele já teria rejeitado o particularismo, por cujo entendimento

apenas poucos estejam votados à salvação enquanto a grande maioria da humanidade está

destinada à danação final. Não. Barth é o que se pode chamar de universalista esperançoso.

Ora, sendo a salvação resultante de uma escolha de Deus e não dos seres humanos, ele espera

que no final os efeitos salvíficos e expiatórios do Calvário sejam aplicados a todos pela divina

decisão. Pois se o desejo de Deus é que todos se salvem (I Tm 2:4), então cumpra-se a

vontade de Deus, porque o que Deus quer ele faz200.

2.d.2. Emil Brunner

Dentro desta linhagem protestante e dialética que defende o exclusivismo avulta a figura

de Emil Brunner, outro teólogo reformado suíço, cuja maior parte da docência deu-se na

Universidade de Zurich. Brunner é o mais importante defensor de um exclusivismo fraco,

sobre cujas bases boa parte dos teólogos protestantes e evangélicos contemporâneos continua

laborando.

Ele acompanha Barth na distinção entre “revelação” e “religião”, e por isso também

rejeita as abordagens fenomenológicas que produzam uma paridade entre o Cristianismo e as

religiões não cristãs, como é o caso já citado de Schleiermacher. O conceito de revelação é

um conceito religioso sui generis do Cristianismo. Por isso não se pode pensar na religião

199
Karl Barth. Church Dogmatics, XXIII, p. 171.
200
Karl Barth. Church Dogmatics, IV/3, pp. 477-478.
89

cristã como um gênero entre espécies religiosas (genus inter species). Jesus continua sendo a

verdade que as religiões buscam em vão, porque não se baseiam na revelação, sim em teorias

imanentistas201.

Entretanto, Brunner é defensor de uma modalidade mais atenuada de exclusivismo,

porque rejeita o cristomonismo de Barth, acreditando numa revelação natural geral, além da

especial, a qual fora atuante nos profetas, autores sacros e em Jesus Cristo. Nisto segue a

trilha aberta por João Calvino202, transformando, entretanto, sua ênfase negativa e judicativa

quanto ao conteúdo das religiões em algo positivo, veritativo e válido como conhecimento

para a salvação203. Brunner segue a tradição reformada de Zwinglio, que via toda a bondade, a

verdade, honestidade, coragem, porventura presente em Gentios, como sinais da eleição

divina204.

Voltando à discussão com Barth, a ruptura entre os dois começa em 1929, com a

publicação de seu artigo “a outra tarefa da teologia”, pelo qual procura encontrar no homem

“uma ponte de inserção” para o aporte da palavra de Deus205. Tal como Barth, ele crê na

diferença absoluta entre Deus e o ser humano e que esta distância não pode ser vencida senão

pela graça divina e por sua iniciativa. Contudo, contrariando Barth, para ele deve haver um

ponto de contato na natureza humana, sendo isto o que nos torna capazes de entender a

revelação e nos congraça a todos numa mesma família humana.

201
A. Race. Christians and religious pluralism, p. 18 e 19.
202
“Está fora de discussão que é inerente à mente humana, certamente por instinto natural, algum sentimento da
divindade” (João Calvino. A instituição da religião cristã – vol. 1, São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 43.
203
[…] a fim de que ninguém recorra ao pretexto da ignorância, Deus incutiu em todos uma certa compreensão
de sua deidade, da qual renovando com frequência a memória, instila de tempos em tempos novas gotas, para
que, quando todos, sem exceção, entenderem que há um Deus e são sua obra, sejam condenados, por seu próprio
testemunho, por não cultuarem e não consagrarem a própria vida à vontade d’Ele (Ibid., idem).
204
Apud Philip Schaff. Creeds of Christendom, vol. 1, p. 380.
205
Rosino Gibellini. A teologia do século XX, p. 24.
90

Pensando ter encontrado este ponto de contato (Anknüpfungspunkt) em sua obra

Natureza e Graça206, publicada em 1934, onde delineia sua teologia natural, Brunner faz uma

distinção entre a imago Dei material, perdida na queda, e a imago Dei formal, que permanece

inscrita na natureza humana e nos distingue das outras criaturas, já que por ela se torna

possível sejamos destinatários da revelação divina207. Seres humanos pecadores permanecem

capazes de reconhecer a Deus na natureza e nos eventos da história e estar conscientes de sua

culpa perante Deus208.

Em outro livro, revelação e razão, Brunner defende, baseado na ideia de revelação, uma

espécie de hierarquia entre as religiões. No primeiro plano estaria o Cristianismo, como

religião totalmente revelada e a única que pretende ser uma religião com uma revelação final

para a humanidade. Em segundo plano, as religiões semíticas, que ele entende como

parcialmente reveladas, porque nelas pode ser encontrado o que para Brunner é o ponto de

contato em relação à fé: o senso de culpa ante o pecado: “a consciência pesada, o senso de

culpa, é o ponto de contato para a fé. É o lugar n qual a mudança de direção deve começar.

O senso de culpa, como uma relação negativa com Deus, é o ponto de contato para a fé.”209

Para Brunner, embora o Judaísmo, Islamismo e Zoroastrismo possuam este elemento,

que podemos chamar de consciência do pecado, ainda mescladas em seu âmago com

elementos “autojustificadores” e “autossalvíficos”, não podendo se igualar ao Cristianismo210.

Ademais, nenhuma dessas religiões é completamente revelada. As duas últimas são sistemas

206
Emil Brunner. Natural Theology (London: Blackwell, 1951).
207
Joseph J. Smith. “Primal revelation and the natural knowledge of God: Brunner and Catholic theology”, TS
(no. 27, vol. 3, 1966), pp. 293 e 294.
208
Alister E. McGrath. Christian theology. An introduction (Oxford/Malden MA: Willey-Blackwell, 2011), p.
167.
209
Emil Brunner. Revelation and Reason (Philadelphia: Westminster Press, 1946), 214.
210
A. Race. Christians and religious pluralism, pp. 22 e 23.
91

de moralidade, porque não ensinam a justificação pela fé; a primeira, ainda espera a revelação

final, porque seus adeptos ainda aguardam o messias211.

Em último plano, estão as demais religiões mundiais, que, como portadoras da imago

Dei formal, têm ainda sob sua custódia verdades elementares, relacionadas especialmente a

aspectos éticos e morais. Portanto, ainda que não completamente destituídas de insights

religiosos verdadeiros, salvificamente estas religiões nada têm a oferecer. Brunner é tão

pessimista quanto a de K. Barth. Nenhum destes conhecimentos naturais sobre Deus,

favorecidos pela imago dei formal, pode ser convenientemente pensado como salvífico212,

visto que a revelação natural é incapaz de desdobrar o plano de Deus para salvar a

humanidade, por meio dos ensinos, da vida e da morte de Jesus Cristo, autor e consumador da

fé, sem a qual ninguém verá a Deus.

2.e. Exclusivismo de Organizações Ecumênicas, Evangélicos, Pentecostais e

Independentes.

2.e.1. Organizações Ecumênicas

Os encontros missiológicos do conselho Missionário Internacional (IMC)213, as reuniões

do Comitê Lausanne sobre Missão e Evangelização Mundial (LC) 214 as conferências do

Conselho Mundial das Igrejas(WCC)215, demonstram as fortes disputas no interior das igrejas

protestantes. A princípio produzidas pela presença perturbadora de uma ala liberal que tentou

em várias ocasiões no transcurso dos anos levar os conciliares a adotar o pluralismo, ou pelo

menos um inclusivismo, em relação às demais religiões. Mais recentemente, por meio de

teorias pluralistas mais refinadas e por influência do ambiente Pós-moderno prevalecente. O

211
Emil Brunner. Revelation and reason, pp. 258-273.
212
Emil Brunner. Revelation and reason, p. 79.
213
Daqui em diante IMC.
214
A partir deste ponto só LC.
215
A partir daqui WCC.
92

certo é que a duras penas os encontros (meetings) e conferências têm mantido a posição

exclusivista, sendo hoje, entretanto, incerto, o futuro do exclusivismo nestas organizações,

considerando as últimas decisões.

Desde o primeiro encontro do IMC em Edinburgh (1910) já havia preletores que

defendiam um ecumenismo mais amplo que levasse em conta o papel salvífico das religiões.

Muitas destas disposições vinham de uma leitura da própria Escritura e do contanto dos

missionários com não cristãos. A antiga ideia do cumprimento, extraída de certas passagens

de Lucas-Atos e das Cartas de Paulo, gerava um entendimento de que as outras religiões eram

preparação para o evangelho216. Outras concepções tinham inspiração iluminista via teóricos

das ciências da religião (M. Müller, R. Otto, E. Troeltsch), de sorte que nas religiões era

reconhecida a presença do impulso religioso, ainda que ao Cristianismo fosse atribuído seu

coroamento: “apesar do profundo abismo entre as duas [Cristianismo e religiões não cristãs]

há uma evolução ininterrupta entre elas” (T. E. Slater e J. N. Farquhar)217. Além destas havia

ainda outra fonte de inspiração de concepções pluralistas. A ideia de revelação progressiva

sustentada por estudiosos do AT atrelados à Alta Crítica. Ora, se a própria religiosidade do

Antigo Testamento experimentou uma evolução de concepções religiosas rudimentares,

tribais até o clímax ético e religioso dos profetas posteriores, por que não se daria o mesmo

com as religiões não cristãs.

Concluindo, o impacto destas ideias foi tão forte nesta ocasião que os organizadores do

evento tiveram necessidade de convocar uma comissão para redigir considerandos finais mais

concordes com a boa teologia:

Em nenhum lugar foi encontrado o mais leve fundamento para a ideia de que o
Cristianismo é apenas uma religião entre as demais, ou que todas as religiões são
simplesmente caminhos diferentes para buscar o mesmo Pai, e de que são, portanto,

216
Jan van Lin. Shaking the fundamentals. Religious plurality and ecumenical movement (Amsterdam: Rodopi
B. V., 2002), p. 19.
217
Jan van Lin. Shaking the fundamentals. Religious plurality and ecumenical movement, p. 20.
93

igualmente agradáveis à Sua vista. Uma enorme convicção anima a completa


evidência de que Jesus completa e substitui todas as religiões218.

Em Jerusalém (1928), as disputas sobre a questão começam nas reuniões preliminares

que antecederam ao concílio propriamente dito. Um grupo norte-americano de tendências

liberais, originários especialmente da Universidade de Harvard (que ainda não tinha sentido o

impacto das ideias de Karl Barth), assumiu o encargo de redigir estes documentos

preliminares. Kenneth Saunders, depois de vários anos de experiência com o Budismo, chama

a atenção de seus leitores para “o fato... de que por atrás de todas as religiões há a religião e a

consciência religiosa do homem” (destaque nosso). “Este reconhecimento”, ele argumenta,

“compele os missionários a entrar em parceria com os povos da Ásia numa grande busca

espiritual”219.

As declarações deste documento preliminar viriam a ser questionadas. Uma semana

antes do encontro em Jerusalém, numa rodada de discussões no Cairo, teólogos europeus

fizeram reparos no documento norte-americano. Liderados pelo famoso teólogo de missões

holandês, Hendrik Kraemer, o documento preliminar deu um passo atrás em busca do solo

mais seguro da completa e absoluta singularidade do Cristianismo: “o Cristianismo é uma

religião sui generis no sentido mais estrito da palavra”220, o que também não deixa de ser um

exagero, se não se fala a partir da teoria da descontinuidade barthiana, verdadeira inspiradora

de Kraemer e demais redatores.

No final, o documento conciliar sai no formato de conclusão conciliadora que tentava

manter a paz entre os antípodas, sem, contudo, esclarecer muito. Por um lado, afirma: “nós

somos mensageiros de Deus para proclamar a única redenção que não pode ter qualquer

218
Ibid., p. 25.
219
James L. Cox. “Jerusalem 1928. It’s message for today” (Missiology, 1981, 9, no. 139), p. 143.
220
James L. Cox. “Jerusalem 1928. It’s message for today”, p. 144.
94

paralelo nas religiões não Cristãs”221. Por outro lado, também reconhece o valor das religiões

não cristãs, inclusive valores religiosos, ainda que sem deixar de professar a superioridade do

Cristianismo:

A conferência de Jerusalém (1928) busca valores nas religiões e defende que mesmo
encontrando nelas muitos valores, é apenas no Cristianismo que todos estes valores
são achados articulados e em equilíbrio. A declaração final do concílio arrola tais
valores espirituais – “o sentido de majestade de Deus” no Islã, “a profunda simpatia
pelo sofrimento humano” do Budismo, “o desejo de contato com a realidade última”
do Hinduísmo, “a crença na ordem moral do universo” do Confucionismo, e “a
desinteressada procura da verdade e do bem estar humano” da civilização secular222.

Não satisfeito com os resultados do encontro em Jerusalém, W. E. Hocking, diretor de

uma das subcomissões da WCC, editou um documento (Re-thinking missions: report of the

Commission of Appraisal of the Laymen's Foreign Mission Enquiry) criticando o

exclusivismo de suas declarações finais, argumentando que a missão das igrejas cristãs nestes

novos tempos deveria se voltar para o mundo secularizado e não para os adeptos das outras

religiões: “em cada religião há uma inalienável intuição do verdadeiro Deus. Todos são

irmãos [e irmãs] uns dos outros na busca comum pela unidade última na mais perfeita verdade

última”223.

Em Tambaram (1938), Índia, mantém-se o conflito interno dentro da IMC quanto ao

status salvífico das religiões. O grupo mais conservador volta à carga novamente, sob a

liderança do mesmo Hendrik Kraemer. Seu livro, The Christian Message in a Non-Christian

World tornou-se o manual de estudo preparatório para a conferência 224 . No entanto,

Tambaram declarou igualmente: “é da essência da fé cristã que Deus nunca tem se deixado a

221
Ibid., p. 145.
222
Leslie Newbigin. The open secret. An introduction to the theology of missions, Grand Rapids, MI: Wm. B.
Eerdmans Publishing, 1995, p. 170.
223
Jan van Lin. Shaking the fundamentals. Religious plurality and ecumenical movement, p. 263.
224
Wesley Ariarajah, verbete “Interfaith dialogue” in Dictionary of the Ecumenical Movement (Geneva/Grand
Rapids, WCC/W. Eerdemans, 2010).
95

si mesmo sem testemunhas, o que se torna manifesto nos valores religiosos das outras

religiões”225.

Em Evanston (1954) as ideias iluministas começam a perder força, mas o problema não

desapareceu. O ambiente Pós-moderno ganha aderência no meio cristão porque apesar de o

resultado final da conferência ter sido o reconhecimento de que “tudo o que Deus tem feito

em e através de Cristo forma o centro de toda a história humana”, esta confiança é

“pressionada pelo fato de os Cristãos terem de viver num mundo religiosamente plural”226.

Problema que novamente recoloca-se em 1961, Nova Delhi.

Nesta nova rodada de discussões, teólogos cristãos indianos (Paul Devanandan, D. T.

Nilles, Sabapathy Kulendran) trouxeram novos argumentos buscando uma aproximação em

relação às religiões não cristãs. As razões agora decorriam de motivos civis e sociais. Visto a

Índia ter recém obtido sua independência do império britânico, estes teólogos reivindicavam

para si o direito de colaborar com as religiões não cristãs da Índia para a construção

nacional 227 . É neste contexto que aparece pela primeira vez o conceito de diálogo inter-

religioso, inserido num programa de melhoramento das condições de vida de seres humanos,

que viria a ser a marca do evangelho social que começava a despontar na Europa, mas

principalmente nas Américas do Sul e Central. Além disto, é o princípio do desconforto das

teologias terceiro-mundistas com o eurocentrismo destas organizações, o que as tornava bem

pouco sensíveis a necessidades locais que não fossem religiosas.

O comitê Lausanne sobre missão e evangelização mundial (LC) (1974), que reuniu

2.500 delegados de mais de 150 países, procurou reagir aos excessos da teologia liberal,

instalada sorrateiramente na WCC. Para os conciliares ainda existe a revelação geral presente

225
Jan van Lin. Shaking the fundamentals, p. 260.
226
Ibid., p. 265.
227
Wesley Ariarajah, verbete “Interfaith dialogue” in Dictionary of the Ecumenical Movement.
96

na natureza que comprova a existência de um Criador228. Porém, afirma, “sob a rubrica da

singularidade e universalidade de Cristo, [enfatiza seu] status único entre as figuras

religiosas”. A LC, assim, recoloca a nota enfática das relações inter-religiosas na

evangelização229.

Em Nairóbi (1975), o WCC reconhece o que já está patente. As questões atinentes à

teologia das religiões estavam causando uma profunda divisão entre as igrejas que

compunham o concílio, haja vista a cisma dos evangélicos em Frankfurt (1970) e o

documento do encontro missiológico de Lausanne (1974). Em Tambaram II (1988), a divisão

se aprofunda230.

No manifesto de Manila (1992) registrou-se: “somente Deus salva [...] toda salvação

decorre exclusivamente da pessoa e do trabalho expiatório de Jesus 231 ”. Mas, apesar de

afirmar que a multidiversidade religiosa mundial ser decorrência do pecado da humanidade,

reconhece ainda que as religiões têm o seu valor. Seguindo Brunner, o manifesto estatui:

“porque homens e mulheres são feitos à imagem de Deus, as religiões muitas vezes contêm

elementos de verdade e beleza”232.

Harare (1998) tornou-se um divisor de águas na WCC. Nesta conferência pessoas de

outras religiões puderam participar fazendo parte da assembleia, pois o programa do encontro

contemplava sessões onde ocorriam encontros inter-religiosos. A partir daí, dentro da WCC...

Cresceu a cooperação entre o Departamento de relações inter-religiosas e os


programas do concílio que lidam com educação, saúde, povos indígenas, relações
internacionais e juventude. Estudos têm sido feitos para lançar publicações sobre
oração inter-religiosa, casamentos inter-religiosos e sobre o significado espiritual de

228
Marianne Moyart. Fragile identities: towards a theology of interreligious hospitality, Henry Jansen (trad.),
Amsterdam: Rodopi, 2011, p. 20.
229
Veli-Matti Kärkkleinen. Trinity and religious pluralism (Aldershots UK/Burlington USA: Ashgate
Publishing, 2004), p. 98.
230
Jan van Lin. Shaking the fundamentals, p. 265.
231
Veli-Matti Kärkläinnen. “Evangelical theology and the religions”. In Timothy Larsen e Daniel J. Treier
(edts.). The Cambridge companion to evangelical theology, p. 201.
232
Marianne Moyart. Fragile identities: toward a theology of interreligious hospitality, p. 21.
97

Jerusalém. Há um estudo sobre a contribuição da África para a religiosidade mundial


em vias de ser publicado233.

A conclusão de Jan van Lin, diretor do setor de encontro inter-religioso da WCC na

Holanda, demonstra que a discussão em torno da teologia das religiões ganhou os contornos

de uma crise: “Nesta discussão pareceu/parece que dentro do movimento ecumênico houve/há

muitos e diferentes conceitos, que produziram/produzem demasiadas confusões e tem como

resultado a WCC estar sendo desafiada hoje por uma crise de identidade”234.

2.e.2. Evangélicos

Primeiramente, deve-se definir quem são os Evangélicos aqui mencionados.

Genericamente, no Ocidente, todos os que não são Católicos Romanos e também não são

Ortodoxos dizem-se Evangélicos. Ultimamente, porém, com o crescimento da influência da

Teologia Liberal entre as Igrejas Protestantes Históricas, convencionou-se chamar de

Evangélicos as Igrejas que se apegaram a “uma versão mais ortodoxa do Cristianismo em

oposição à ala liberal”235. Algumas delas aderiram ao Fundamentalismo; outras, não. Todas,

porém, declarando sua confiança nas Escrituras fazem delas sua regra de fé e prática.

Em relação aos Católicos e Protestantes, este grupo foi o mais tardio a por em

consideração o tema com a profundidade requerida. Isto só passou a ocorrer a partir da década

de 1980 236 , e ainda assim em seu aspecto pragmático, pois o que inquietava os teólogos

evangélicos era o destino dos não evangelizados237, haja vista o incremento da percepção do

233
Wesley Ariarajah, verbete “Interfaith dialogue” in Dictionary of the Ecumenical Movement.
234
Jan van Lin. Op. cit., p. 269.
235
Veli-Matti Kärkkläinen. Introduction to Theology of Religions, p. 144.
236
Na verdade a primeira obra da cepa evangélica a tratar da questão foi da autoria de sir James N. Anderson.
Christianity and comparative religions (Downers Grove, IL: Intervarsity, 1970).
237
D. A. Carson. The Gagging of God: Christianity confronts pluralism (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1996);
Ajith Fernando. The Christians attitude toward world religions (Wheaton III: Tydale House, 1987); Gabriel
Fackre, Ronald Nash, John Sanders. What about those who that have never heard? Three views on the destiny of
the unevangelized (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1995); John Piper. Let the nations be glad (Grand
Rapids, MI: Baker, 1993); Ramseh Richard. The population of Heaven: a biblical response to the inclusivista
position on who will be saved (Chicago: Moody Press, 1994); John Sanders. No others name: an investigation
98

mundo não cristão, potencializada pela globalização e os outros fatores apresentados no

primeiro capítulo. Os princípios básicos do Exclusivismo propostos por J. Stott o

demonstram:

a) Reconhecimento da autoridade da Escritura, b) a perdição do ser humano


separado de Cristo, c) salvação em Jesus Cristo somente, d) os Cristãos são
testemunhas “pela palavra e pelos atos” (sem negar a responsabilidade social cristã e
nem fazer disto nossa única e consumadora missão), e e) a necessidade de
evangelizar e salvar as almas238.

Historicamente, o ingresso dos evangélicos nas questões pertinentes à teologia das

religiões deu-se em 1970 com a redação de um documento que ficou conhecido como

‘Declaração de Frankfurt’, e que foi produzido como reação à teologia das religiões liberal do

WCC. O proeminente missiólogo, Peter Bayerhaus, foi o redator do documento que entre

outras coisas dizia: “a Bíblia é o mais apropriado quadro de referência e de critérios para as

relações do Cristianismo com outras religiões. A salvação pode ser obtida apenas pela cruz de

Cristo, por meio da participação na fé”239.

Contudo, diferentemente das organizações ecumênicas, não há neste grupo desacordos

tão sérios, estando o grupo fechado com o Exclusivismo. O que marca posições aqui é quanto

ao tipo a ser adotado, havendo adeptos das duas modalidades apresentadas na introdução. Há

teólogos adeptos de um Exclusivismo Forte, também chamado Restritivista 240 : Robert C.

Sproul 241 e Ronald Nash 242 , Gabriel Fackre 243 ; e teólogos que esposam um Exclusivismo

Fraco: John Sanders 244 , John Stott 245 . O grupo Forte é mais homogêneo, todos os seus

into the destiny of the unevangelized (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1992); Terrance Tiessen. Who can be
saved? Reassessing salvation in Christ and world religion (Downers Grove, IL: InterVarsity Press: 2004).
238
Apud Marianne Moyart. Fragile identities: towards a theology of interreligious hospitality , p. 16.
239
Velli-Matti Kärkkläinen. Trinity and religious pluralism, p. 97.
240
Gerald R. McDermott. Can evangelicals learn from world religions? p. 40.
241
Reason to believe (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1978).
242
Is Jesus the only savior (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994).
243
What about those who have never heard? (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1995).
244
Idem.
245
David Edwards e John Sttot. Evangelicals Essentials: a Liberal-Evangelical dialogue (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1988).
99

representantes alinhados com as ideias de Calvino, já o grupo Exclusivismo Fraco, reunido

em volta da figura de Wesley, é mais variegado. Procuramos agrupá-los seguindo o critério da

aproximação teológica que os liga e desde já nos desculpamos por não ser possível aqui

escrutinar de forma mais específica e aprofunda a posição de cada um, dada a exiguidade do

espaço disponível.

Além da distinção Exclusivismo-ponto e Exclusivismo-mas de Nash, apresentada no

início deste capítulo, há outra distinção, do ponto de vista filosófico mais robusta, feita por

John Sanders, que nos ajuda a entender de forma mais clara o campo da controvérsia. Os

debatedores se dividem ainda em dois grupos: (a) Exclusivistas Ontológicos e

Epistemológicos e os (b) Exclusivistas apenas Ontológicos. O Exclusivismo ontológico seria

a crença fundamental, tanto de um como de outro grupo, na inarredabilidade da salvação de

todos os seres humanos por meio da cruz de Cristo. O primeiro grupo crê na necessidade do

assentimento intelectual e espiritual do sacrifício expiatório de Jesus. Entre os pensadores que

se agregam em torno desta concepção estão: Robert C. Sproul e Ronald Nash. O grupo que se

lhe opõe, entretanto, não entende ser possível conhecer os meios da graça usados por Deus

para salvar os que não ouviram, ou seja, John Sanders e John Sttot.

2.e.2.a. Robert C. Sproul e Ronald Nash

Robert C. Sproul (1939-), teólogo e pregador norte-americano, autor profícuo, ministro

sênior de pregação e de ensino em Saint Andrews, Flórida, conhecido também por suas

locuções em rádio em tele-evangelismo, é um vibrante defensor das concepções teológicas de

Calvino e foi um dos primeiros a se manifestar sobre a condição ‘dos que não ouviram’.

Como presbiteriano convicto obviamente sua posição é calvinista e enfaticamente defensora


100

da soberania e justiça divinas, bem como do Exclusivismo246, pelos quais identifica a questão

sobre a salvação dos que não ouviram como inequivocamente já decidida. Não se trata de

perguntar por que Deus salvaria só uns poucos. Antes deveríamos indagar por que existe

qualquer tipo de salvação, desde que todos os seres humanos subsistem em rebelião contra

Deus?247. Se existe salvação ela se deve a que graciosamente Deus decidiu não permitir que

todos se perdessem.

Quanto aos homens terem ou não ouvido o convite do evangelho, não importa, desde

que tenham ouvido a voz da criação de Deus. Para Sproul, assim como para Calvino,

Romanos 1: 18 e 19 é motivo suficiente para a condenação eterna de qualquer um, ainda que

nunca tenha ouvido um pregador cristão. Esta passagem significa que todos tem tido acesso

suficientemente claro e simples conhecimento de Deus para saber o que deve e o que não

deve fazer248. Ou seja, quem se perde sabe o suficiente para não se considerar vítima de uma

ignorância de que não padece, embora não lhe seja dada graça suficiente para a salvação249.

Sproul não demonstra a menor preocupação com este quadro de crueldade no cerne do qual se

encontra o Deus que os cristãos adoram. O Deus que ele prega é um Deus irado com a

humanidade. Por isso pode-se dizer que os que se salvam não o são por não terem rejeitado a

Cristo, mas por Cristo não os ter rejeitado.

Porém, esta ira divina movida contra os rebeldes humanos parece não encontrar eco nas

Escrituras, consideradas em sua totalidade. Há diversos textos que apontam em outra direção.
246
“Sem um mediador, por certo de nada vale para a salvação o conhecimento de Deus depois da queda do
primeiro homem” (João Calvino. A instituição da religião cristã – vol. 2, São Paulo: Editora Unesp, 2008, p.
324).
247
Robert C. Sproul. Reason to believe, p. 43.
248
Ibid., p. 44.
249
Outros autores vão mais longe do que Sproul chegando a sistematizar o que o ser humano é capaz de saber
sobre Deus contando apenas com os recursos da revelação natural, presentes na criação divina, segundo
Romanos 1 e 2 ; 10: 18: “1) a crença num único bom e poderoso Deus; 2) a crença de que o homem deve a este
Deus perfeita obediência à sua lei; 3) a consciência de que não se encontra de acordo com padrão divino, e,
portanto, é culpado e está condenado; 4) o reconhecimento de que nada pode oferecer a Deus para compensá-lo
(ou fazer expiação) pelos seus pecados e culpa; 5) a crença de que Deus é piedoso e perdoará e aceitará aqueles
que se entregarem à sua misericórdia”. (Millard Erickson. “Hope for those who haven’t heard? Yes, but…” –
EMQ, 11, no. 2, April, 1975 –, p . 124-125.
101

Paulo escreve em sua Carta aos Romanos 5: 6: que Cristo morreu por nós sendo nós ainda

pecadores. Jesus nos ensinou a perdoar nossos inimigos e abençoar aos que nos amaldiçoam

(Mt 5: 44-45), por que não faria isto ele mesmo?

Ronald Nash (1936-2006) foi professor de Filosofia e Teologia em Western Kentucky

University, em Reformed Theological Seminary, e por fim em Southern Baptist Theological

Seminary, Louisville, Kentucky, até o dia de sua morte ocorrida por complicações decorrentes

de um AVC em 2006, depois de uma vida dedicada ao ministério e ao magistério, além de

inúmeras publicações sobre temas bíblicos e espirituais.

Assim como Sproul, o DNA teológico de Nash vem de uma tradição calvinista adotada

pela confissão que abraçou: Batistas do Sul. Como evangélico adota a Bíblia como palavra

final para qualquer controvérsia de ordem teológica, contudo, como fundamentalista adota um

exclusivismo literal: “não há outro salvador ou outra religião, nós cremos, que possa trazer os

seres humanos à graça redentora de Deus”250. A afirmação de Jesus em João 14: 6: “eu sou o

caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” é entendida por ele de

modo mais restrito possível (daí o título dado à esta modalidade de Exclusivismo:

restritivismo). A partir de um texto paulino: “se com tua boca confessares que Jesus é o

Senhor e se em teu coração creres que Deus o levantou dentre os mortos, serás salvo”,

também restringe a salvação à convicção de que uma fé explícita em Jesus Cristo. A

confissão, portanto, é conditio sine qua non da salvação251. Nos termos colocados por Sanders

a salvação em Jesus Cristo é uma exigência ontológica e epistemológica. Se alguém no

transcurso de sua vida (Hb 9: 27-28) não teve a oportunidade de confessar seus pecados e de

aceitar a Jesus como seu salvador pessoal, mesmo que nunca tenha ouvido falar do evangelho,

250
Gabriel Fackre, Ronald Nash, John Sanders. What about those who that have never heard? Three views on
the destiny of the unevangelized, p. 107; Cf. Ronald Nash. Is Jesus the Only Savior, p. 16.
251
Gabriel Fackre, Ronald Nash, John Sanders. What about those who that have never heard? p. 108.
102

e tenha vivido uma vida irreprochável do ponto de vista moral e de sua religiosidade, estará

perdido tanto quanto o pior dos apóstatas.

O problema de Nash, como também o de Sproul, é elidir os textos bíblicos que falam do

amor universal de Deus pelos seres humanos. Ainda mais quando este fato é potencializado

pelo dado estatístico inescapável de bilhões de pessoas que não ouviram nem ouvirão “a boa

nova da salvação”. Como calvinista ele não crê que a morte de Jesus tenha efeito vicário para

todos e, por conseguinte, será efetiva apenas àqueles que crerem (Jo 3: 16), estando os demais

condenados e sem justificativa para sua ignorância. Mas, Paulo pergunta a Nash “como crerão

naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10: 14).

Paulo não podia ter consciência da enormidade do problema que suas próprias palavras

propõem. O mundo ‘conhecido’ em que ele viveu resumia-se ao mare nostrum romano

(Mediterrâneo) e adjacências orientais. Portanto, somos forçados a pensar, por amor ao

decreto divino: “não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao

arrependimento” (I Pd 3: 9), que este crer não pode ser tão específico, assim como não foi o

crer dos patriarcas e outros santos não israelitas que se encontram na galeria da fé de Hebreus

11.

Do contrário fazemos de Deus um tirano cruel que admite salvar apenas alguns de uma

enormidade de criaturas que o ofenderam, sendo Sua graça suficiente para salvar a todos. O

monergismo calvinista só serve para ratificar a injustiça divina em salvar alguns por uma

vontade arbitrária, supostamente baseada no livro de Romanos, e enviar a estes que por Sua

Graça atenderam a seu chamado estender o convite a outros e, falhando estes, deixar que estes

outros que não ouviram se percam e tenham como destino eterno a danação.
103

2.e.2.b. Gabriel Fackre

Gabriel Fackre (1926-), clérigo da Igreja Unida de Cristo (United Church of Christ),

que resultou da fusão da Igreja Evangélica e Reformada (Evangelical and Reformed Church)

de Reinhold Niebuhr, com a Igreja Congregacional cristã (Congregational Christin Church).

É autor de uma extensa lista de obras teológicas e foi professor de teologia e cultura em

Andover Newton Theological School, e como professor visitante em diversas outras. Também

esteve envolvido com as reuniões ecumênicas da WCC, tendo sido o representante de sua

confissão em Amsterdã (1948) e Evanston (1954).

Sua posição teológica sobre a condição dos que não ouviram é um pouco reflexo de seu

envolvimento com o movimento ecumênico. Por que então não está relacionado como

pluralista? Por que Fackre é exclusivista e, além disso, é adepto de um exclusivismo que

requer tanto o princípio ontológico quanto o epistemológico. Ou seja, tendo Jesus efetuado

sua obra de expiação na cruz torna-se necessário ainda que aqueles que forem salvos o sejam

por uma fé explícita no Salvador. A posição de Fackre é conhecida como Evangelismo Post

Mortem, assim chamada pela convicção de que todos terão uma segunda chance por

intermédio de uma evangelização escatológica imediatamente antes da volta de Cristo252.

Para sustentar sua tese Fackre baseia-se em uma das passagens mais controversas das

Escrituras: “Ele também foi e pregou aos espíritos em prisão, que em outros tempos foram

desobedientes, quando Deus pacientemente esperava nos dias de Noé, enquanto a arca estava

sendo construída” (I Pd 3: 18-20). Secundariamente também utiliza I Pedro 4: 6: “Por esta

razão, o evangelho foi pregado mesmo aos que agora estão mortos, para que sendo julgados

de acordo com o corpo, possam viver de acordo com o espírito; e João 5: 25: “em verdade vos

252
Há uma linhagem de importantes teólogos cristãos do passado que advogaram esta doutrina: Melito, Hipólito,
Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio e Gregório Nazianzeno. Após Agostinho a doutrina caiu em
descrédito, vindo a ganhar adeptos novamente no séc. XIX. (John Sanders, No other name, 184-188).
104

digo, vem o tempo e já chegou quando até os mortos ouvirão a voz do Filho do Deus, e os que

o ouvirem viverão”.

No frigir dos ovos, na realidade o que Fackre possui para implementar sua interpretação

também chamada evangelização escatológica e divina perseverança é um único texto, os dois

outros falam de outra coisa: da ressurreição. Primeiramente, sem entrar no mérito exegético

de I Pedro 3: 18-20253, não é bom princípio hermenêutico basear doutrinas em um único texto

da Bíblia. Ainda mais em se tratando de algo da importância do destino eterno dos homens.

Em segundo lugar, ainda que fosse isto o que vem dito no texto, sua doutrina teria que

contradizer textos cristalinos que dizem exatamente o contrário: “foi dado aos homens morrer

uma única vez e depois disto o juízo” (Hb. 9: 27). Do jeito que vem posta, a proposição de

Fackre mais parece uma hypotesis ad hoc, que nasceu para salvar o Exclusivismo ontológico e

epistemológico de soçobrar no oceano de não Cristãos injustiçados pela omissão evangélica

dos Cristãos.

2.e.2.c. John R. W. Stott e John E. Sanders

John R. W. Stott (1921-2011), Clérigo anglicano, por muitos anos ministrando em

Londres em All Souls, Langham Place. Sempre combativo, foi um dos líderes do movimento

Lausanne Covenant (1974), que resultou na criação uma vertente mais ortodoxa do

movimento ecumênico. Autor profícuo, deixando mais de cinquenta obras com sua assinatura,

muitas delas traduzidas até para línguas orientais. Stott foi condecorado pela realeza inglesa e

recebeu inúmeros doutorados honoris causa, haja vista a solidez de sua obra teológica, apesar

de nunca ter atuado como professor de Teologia.

253
O texto em questão possui muitas coisas obscuras, além da própria estrutura da frase, repleta de subordinadas,
que tornam sua compreensão difícil: 1) quem são os espíritos em prisão? 2) o que Cristo pregou a eles? e 3)
quando Cristo lhes sermoneou? Nenhuma destas perguntas pode ser respondida sem a ajuda de argumentos
externos ao texto.
105

Stott nunca escreveu nenhuma obra tratando especificamente do tema de nosso, sem,

contudo, aqui e acolá deixar de dizer o que pensa. Na verdade não há muito a dizer por que a

ideia é exatamente esta, calar-se sobre o que não está explicitamente revelado nas Escrituras,

pela opção por um agnosticismo soteriológico. Admitida a vontade salvífica universal de

Deus, apresentada em vários lugares na Escritura, deduz-se que alguma maneira Deus irá

salvar estas pessoas, conquanto não saibamos como isto ocorrerá, já que a obra divina para a

salvação dos que não ouviram é um mistério:

Eu creio que a postura mais cristã é permanecer agnóstico sobre esta questão [...] o
fato é que Deus, ao lado dos avisos mais solenes quanto à nossa responsabilidade em
responder aos apelos do evangelho, não tem revelado como tratará com aqueles que
nunca os tenham ouvido.254

Parece ainda que Stott adota alguma sorte de princípio epistemológico. Ou seja, os que

serão salvos provindos das outras religiões deverão apresentar algum grau de conhecimento

do evangelho, mas “exatamente de quanto conhecimento e compreensão do evangelho as

pessoas necessitam antes de clamarem a Deus e serem salvas”255, ele continua, “isto nós não

sabemos”.

Não é uma convicção solitária, desde que a maioria dos pregadores das missões

estrangeiras do século XIX já adotava este posicionamento, sustentando a necessidade da

evangelização, sem, no entanto, extinguir a esperança daqueles que nunca chegariam a ouvir o

evangelho. Arthur Pierson, líder presbiteriano, por exemplo, diz:

Se há em algum lugar uma alma anelante por Deus, seguindo a luz da natureza e a
sua consciência, na confiança e na fé de que o Grande Desconhecido irá de alguma
maneira dar mais luz, e guiar a vida e a bem-aventurança, deixemos descansar tal
nos braços dos paternais cuidados256.

254
David Edwards e John Stott. Evangelicals essentials: A Liberal-Evangelical Dialogue (Downers Grove, IL,
III: InterVarsity Press, 1988), p. 327.
255
John Stott. The Contemporary Christians: Applying God’s Word to Today’s World (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1992), p. 319.
256
Apud Harold Netland. Encountering Religious Pluralism. The Challenge to Christian Faith and Mission
(Downers Grove, IL: InterVarsity, 2001), p. 51.
106

Além Stott e Pierson, há muitos outros nomes que se alinham a esta posição: Robert H.

Glover257, James S. Dennis258 e John E. Sanders.

John E. Sanders foi professor de Teologia em Huntington University e Oak Hills

Christian College e atualmente atua em Hendrix College. Tornou-se conhecido pela polêmica

em que se envolveu em Huntington University, instituição da qual foi exonerado, por

defender e promover uma modalidade extrema de Armínio-wesleianismo, que ficou

conhecido como Teísmo Aberto. É autor de numerosas obras teológicas, inclusive No other

name, que vem amiúde citada nesta investigação, a qual trata exatamente do assunto que

transcorre. Sua posição se destaca da de Stott por uma sutileza. Ele não preserva o resíduo

epistemológico que Stott fez questão de manter, embora permaneça mantendo o princípio

ontológico, que reconhece ser o único válido para a salvação de todos os homens: a morte de

Jesus Cristo na cruz.

Para entender a posição de Sanders é preciso começar por sua concepção de Teísmo

Aberto, segundo a qual Deus não tem conhecimento do futuro, pela razão de que a rigor o

futuro não existe, porque a liberdade que Deus concedeu aos seres humanos está realmente

aberta às suas decisões. Sanders contrapõe-se, ao determinismo teológico geralmente

defendido por teólogos de tradição calvinista sem com isto negar a doutrina da onisciência

divina 259 e nem a soberania divina (onipotência). Em suma, segundo o Teísmo aberto de

Sanders, Deus não exerce um controle absoluto sobre Sua criação; ao invés, opera com base

257
The Progress of World-wide Missions (New York: Dorna, 1924).
258
Foreign Missions After a Century (London: Oliphant Anderson & Ferrier, 1984).
259
De acordo com J. Sanders, há diversas passagens da Escritura Sagrada que sustenta uma visão aberta da
divina providência: “(1) a Bíblia retrata Deus respondendo às petições das pessoas (II Rs 20; Mc 2: 5, 6: 5-6; Tg
4: 2); (2) a Bíblia retrata Deus como sendo afetado pelas criaturas e algumas vezes sendo surpreendidos por eles
(Gn 6: 6; Ez 12: 1-3; Jr 3: 7); (3) A Bíblia retrata a Deus mudando de ideia à medida que ele se relaciona com
suas criaturas (Gn 22: 12; Ex 32; I Sm 2: 30; Jn 4: 2, Jz 10); (4) a Bíblia retrata Deus antecipando certos eventos
que na realidade não ocorrem (Ez 26: 1-16, 29: 17-20). (J. Sanders. The God Who Risks: A Theology of
Providence – Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1998), capítulos 3 e 4.
107

numa “soberania geral” que se preocupa apenas com as estruturas gerais de seu plano de

governo260.

Deve-se levar em conta este pano de fundo arminiano extremado, para entender a

teologia das religiões que lhe é consequente. Isto nos impediria de pensar acompanhando

Kärkkäinen que Sanders é inclusivista 261 . Os meios de graça apresentados pelo teólogo

pentecostal não são definidos, mas sugeridos. Suas afirmações sobre a salvação dos que nunca

ouviram o evangelho estaria calcada numa espécie de liberdade por Deus concedida aos

mortais, e não num plano divino que contemple um meio de graça específico para eles. Todos

os meios de graça citados por Kärkkläinen aparecem no livro de John Sanders em apenas um

parágrafo262, o que significa que na realidade não são o ponto crucial de sua teologia. O que é

fundamental para ele é o “princípio da fé”, que vem a ser, segundo sua própria definição, uma

convicção que reúne três elementos fundamentais: verdade, confiança e ação efetiva: “fé em

Deus contém alguma verdade, venha esta verdade da Bíblia ou do trabalho de Deus na

criação” 263 . Páginas antes Sanders já havia usado a alegoria do abrigo que o salvara

milagrosamente de uma tempestade. E aqui o ponto em que me baseio para classificar Sanders

um passo a frente de Stott por reduzir ainda mais a necessidade de conhecer a obra de

salvação de Deus. Sua conclusão foi de que não houve necessidade de saber quem construíra

260
John Sanders. The God Who Risks: A Theology of Providence, p. 197.
261
Kärkkäinen destaca cinco pontos que o fazem perceber Sanders como inclusivista: “(1) enquanto os Cristãos
são salvos pela sua fé em Jesus Cristo, outros podem ter acesso à salvação ao responder fielmente à luz que lhes
foi dado, mesmo não tendo sido alcançados pelo evangelho; (2) a revelação geral não apenas serve para preparar
o povo para receber o evangelho, mas também como meio salvífico; (3) o Espírito do Deus Triuno pode atingir
salvificamente aqueles que não receberam o evangelho; (4) a exclusividade e singularidade de Cristo como
manifestação de Deus (através da encarnação) não torna sem sentido outras manifestações do Logos; (5) a Igreja,
através do ensino bíblico e experiência missionária, tem achado evidências da obra redentora de Deus em
culturas não previamente expostas à pregação da mensagem cristã.” (Veli-Matti Kärkkäinen. Introduction to
Theology of Religions, 144-145).
262
John Sanders. No other name, p. 36.
263
Ibid, idem.
108

e a quem pertencia o abrigo, o que importou naquele momento foi sua efetividade salvífica. E

em seguida conclui fazendo uma crítica à noção intelectualista da fé que salva264.

Sanders termina citando C. S. Lewis quando pensa num processo salvífico mais amplo:

“eu penso que cada oração que é sinceramente feita mesmo a um falso deus é aceita pelo

verdadeiro Deus, e que Jesus Cristo salva muitos que não pensam que Ele os conhece”265.

Como exatamente isto ocorre? Qual a forma exata como Deus trabalha nas religiões?266 É

impossível saber, dado que o próprio Deus desconhece, segundo Sanders, como a liberdade

humana responderá às suas disposições salvíficas. De sorte que os princípios fornecidos por

Kärkkläinen são apenas possibilidades de uma salvação que só será conhecida de fato em

perspectiva escatológica. Em suma, para Sanders o agnosticismo epistemológico atinge o

próprio Deus.

2.e.3. Independentes

Obedecendo a um critério cronológico este grupo é tratado em seguida aos Evangélicos,

embora, suas convicções sejam mais restritivas do que as deles. O que os agrupa numa seção

à parte do mundo cristão é sua condição, como seu nome indica, de não ser descendência

direta ou indireta do movimento religioso que teve origem na Reforma do século XVI. Sua

origem é completamente norte-americana e engloba três igrejas que se originaram das

expectativas escatológicas que floresceram neste país na primeira metade do século XIX:

Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, as Testemunhas de Jeová e os Adventistas

do Sétimo Dia. Além de serem movimentos religiosos marcantemente norte-americanos sua

264
Ibid, p. 37.
265
John Sanders. No other name, p. 45.
266
“Há pessoas nas outras religiões que estão sendo guiadas pela secreta influência de Deus a se concentrar
naquelas partes de sua religião que está de acordo com o Cristianismo, as quais, assim, pertencem a Cristo sem
conhecê-lo” (Ibid., idem).
109

outra característica é aceitarem outros textos inspirados além da Bíblia, ainda que o grau de

inspiração dos ditos textos varie entre elas.

2.e.3.1. Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias

Os Santos dos Últimos Dias, como preferem ser chamados, são quase universalistas,

visto que, no final da história deste mundo, poucas pessoas irão experimentar a danação

eterna 267 . Mesmo os ladrões, mentirosos, assassinos e outros transgressores da lei divina,

mesmo aqueles que rejeitaram a pregação do evangelho, terão seu quinhão,. Mas, isto não nos

impede de classificá-los como exclusivistas, malgrado todas as peculiaridades de sua

soteriologia. Eles sustentam que todos são salvos pela graça de Deus em Jesus Cristo,

conhecendo-a ou não, aceitando-a ou não.

A solução teológica adotada para preservar a justiça divina foi a hierarquização da salvação, a

criação de vários graus de salvação, mais precisamente três reinos para onde irão no final de

tudo as almas dos homens: o celestial, o terrestrial e o telestial. Para o primeiro irão aqueles

que em vida cumpriram todas as prescrições divinas (éticas e cerimoniais), mas também

aqueles que não as cumpriram, porque post mortem, todos terão esta oportunidade. Na

teologia mórmon o evangelho é pregado às almas dos que já morreram, podem ser batizados

vicariamente quando seus familiares o são, podem se casar para a eternidade (se o viúvo ou a

viúva assim o desejar), etc. Para o segundo irão os não mórmons, ou seja, aqueles que não

confiaram na origem divina das revelações de J. Smith, aqueles que receberam o evangelho

post mortem e o rejeitaram, aqueles que se deixaram cegar pela iniquidade do mundo268. Para

o terceiro plano irão todos os que rejeitaram o evangelho, o testemunho de Jesus (as

revelações de Joseph Smith), o testemunho dos profetas e do concerto eterno; também os

267
Douglas Davies. The Mormon Culture of Salvation (Aldershot, England: Ashgate, 2000).
268
Joseph Smith. Doctrines and Covenants of the Church of Jesus Christ of Latter Days Saints (Whitefish, MO:
Kessinger Publishing, 2010), 76: 72-79.
110

mentirosos, adúlteros, assassino, a todos os que zombaram dos mandamentos de Deus. Seu

castigo será ressuscitarem apenas depois do milênio269.

Considerando que a salvação como o resto do Cristianismo a entende seria bênção de

viver na presença de Deus, portanto, o reino celestial dos Mórmons, o que diz a maior

autoridade da Igreja dos Santos dos Últimos Dias, Joseph Smith, sobre o destino dos não

Cristãos é que “todos os homens e mulheres que morreram sem o conhecimento do

evangelho, mas que o teriam recebido caso tivessem tido oportunidade, estes serão herdeiros

do reino celestial”. Também que “aqueles que morreram sem terem tomado conhecimento

dele, mas que se o tivessem conhecido o teriam abraçado de todo coração, serão herdeiros do

reino” 270 . Por que então não classificar os Mórmons como inclusivistas? Por que o

conhecimento do evangelho, como o texto indica, está implícito. Além disto, há ainda a

evangelização post mortem, de modo que a melhor conclusão sobre eles é a de que são

adeptos de um Exclusivismo fraco.

2.e.3. b. Adventistas do Sétimo Dia

Entre os independentes, a posição dos Adventistas do Sétimo Dia é a mais aberta ao

diálogo inter-religioso 271 . Basicamente, quanto ao status salvífico das religiões, sustentam

ideias muito próximas a de E. Brunner, acreditando na revelação geral da natureza, desde que

são criacionistas. Além disto, creem na hierarquia revelacional de Brunner e dirigem seus

esforços missionários à conversão de Judeus e Mulçumanos. Adotam atitude dialógica,

269
Ibid., 76: 81-86.
270
Ibid., 137: 7-8.
271
“Como membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, alegramo-nos por Deus amar e cuidar de sua criação –
todo ser humano de qualquer raça, cultura e crença. Nós reconhecemos que Deus tem se revelado de várias
maneiras, o que inclui certos valores e verdades encontradas nas grandes religiões do mundo. Respeitando as
crenças dos povos das outras religiões, nós como crentes em Jesus, queremos compartilhar importantes e únicas
verdades reveladas na Santa Bíblia. Queremos fazer isto numa linguagem e modo que sejam significativos e
compreensíveis aos povos, no contexto de suas próprias culturas.” Este texto foi composto pelo Comitê para
questões da missão global dos Adventistas do Sétimo Dia. (Stefan Höschele. Interchurch and interfaith
relations. Seventh-day Adventist statements and documents (Frankfurt am Main: Peter Lang, 2010).
111

porque historicamente (por serem uma minoria) vem defendendo a liberdade religiosa e uma

atitude ativa de seus membros em defesa de leis que a fomentem e garantam a liberdade de

culto e de pensamento. Liturgicamente também demonstram um espírito tolerante ao

admitirem pessoas de outras religiões e denominações em sua cerimônia eucarística, ficando a

decisão de participar ou não a cargo de cada um.

Apesar de suas disposições favoráveis com relação às religiões, não possuem uma

teologia plenamente desenvolvida sobre a condição salvífica daqueles que não ouviram, até

porque só agora têm seu interesse voltado para a teologia das religiões. Talvez, dentre os

teólogos apresentados, o que mais se lhes aproxima é J. Stott

2.e.4. Pentecostais

Os pentecostais são os exclusivistas menos estritos. Porém, não é possível ainda chamá-

los de inclusivistas, com exceção de Amos Yong que será avaliado no capítulo subsequente.

Eles mantêm a assim chamada teologia negativa quanto à religião natural e o consequente

Exclusivismo salvífico do Cristianismo. Ou seja, embora sustentem a ideia de que os não

evangelizados também estão sob a ação da graça de Deus, por meio do Espírito, as religiões

das quais participam não desempenham nenhum papel salvífico significativo. “Eles são salvos

a despeito de suas religiões e práticas” e não por causa delas272.

Ocorre que, embora aceitando a singularidade e exclusividade do evento crístico, do

ponto de vista institucional e litúrgico os Pentecostais são menos limitantes do que os

evangélicos, por causa da ênfase pneumatológica de sua teologia das religiões: “diversidade e

pluralismo são, portanto, intrínsecos à Igreja, onde Espírito é derramado. Pois, por outro lado,

272
Steve Studebaker. From Pentecost to the Triune God (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 2012), p. 210.
112

o envio do Espírito no dia de Pentecostes resultou num organismo vivo”, que não pode ser

controlado por instituições humanas273.

2.e.4.a. Veli-Matti Kärkkäinen

Professor fino-americano de Teologia Sistemática no Fuller Theological Seminary nos

Estados Unidos e em outras instituições, autor prolífico de várias obras teológicas

importantes. Numa dessas faz uma análise abrangente da teologia das religiões, aproximando-

se das proposições de C. Pinnock, distinguindo-se do teólogo canadense apenas quanto à

apreciação ligeiramente mais positiva das religiões em decorrência de uma eclesiologia com

ênfase pneumatológica. Com efeito, para ele, as religiões contêm elementos de verdade que

podem instruir os Cristãos. O Espírito atua também fora da Igreja e entre as religiões. Ele não

está subordinado a Cristo e isto abre possibilidade para serem encontradas boas coisas e

verdades nas religiões274. Contudo, as religiões de si não podem salvar275. A salvação nas

religiões ocorre apenas na encruzilhada onde elas e o Cristianismo se encontram. A salvação

só ocorre quando as coisas boas e as verdades das religiões tornam possível o ingresso do

Cristianismo na vida destas comunidades. Veli-Matti, portanto, defende uma espécie de

síntese religiosa entre o Cristianismo e as religiões, com prevalência do Cristianismo.

Ele está consciente de que não é uma tarefa fácil colocar o Cristianismo lado a lado com

outras religiões. O próprio autor o demonstra quando compara o Cristianismo e o Islamismo e

percebe que o conceito de trindade gera uma incompatibilidade insuperável, como ele próprio

reconhece276. Quanto às reais possibilidades de colocar o Cristianismo em diálogo com as

outras religiões, ele faz várias tentativas usando a Cristologia como base. Os problemas são

273
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh. Pentecostalism and the possibility of global theology, (Grand
Rapids, MI: Baker Academics, 2005), p. 173.
274
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to ecclesiology (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2002), p. 24.
275
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to theology of religions (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2003), p.
139.
276
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to theology o religions, p. 157.
113

inevitáveis. Veli-Matti começa seu arrazoado com argumentos pacíficos sobre a natureza

plural das cristologias neotestamentárias e de outras cristologias ao longo da história: “1.

Cristologia encarnacional da Igreja Primitiva e Catolicismo; 2. A teologia da cruz do

Protestantismo; 3. A Cristologia da ascensão e ressurreição da Igreja Oriental; 3. A

Cristologia do poder do Pentecostalismo e Movimentos Carismáticos”277.

Até este ponto podemos ir sem nenhum problema. Todos estes movimentos religiosos

partem da Escritura ou de partes delas, usadas para atender a necessidades hermenêuticas

peculiares de um tempo e lugar. Porém, quando o processo refere-se a “cristologias

contextuais”278, em que uma síntese entre as culturas religiosas é ensaiada então o resultado

dá em soneto mal ajambrado, pois os limites da ortodoxia são cruzados, deixando a Bíblia de

ser texto normativo.

Nas culturas africanas, por exemplo, onde vários conceitos religiosos favorecem o

encontro com o Cristianismo, gerando o que ele chama de cristologia “Cristo como ancestral”.

Contudo, há coisas na teologia cristã que são fundamentais, mas que não encontram paralelo

na cultura africana, com exceção de algumas etnias. É o caso do conceito de salvação e

pecado, com toda a carga metafísica que possui no Cristianismo. Ou seja, Cristo não poderia

ser chamado de Salvador, levando-se em conta apenas as tradições africanas279.

De igual maneira a Cristologia asiática “Cristo como salvador universal” teria grande

dificuldade de se adequar à teologia joanina do Logos e estaria mais a vontade entre

Apolinaristas e outros Docetistas, dado que nega a história e o valor da irrupção do divino na

história. Aqui, de novo, um problema com o conceito de salvação, que para as religiões

277
Veli-Matti Kärkkäinen. Christology. A global introduction. An ecumenical international and contextual
perspective (Grand Rapids, MI: Baker Publishing Group, 2007), p. 17.
278
Veli-Matti Kärkkäinen. Christ and reconciliation (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing, 2013), p.
71.
279
Veli-Matti Kärkkäinen. Christ and reconciliation, p. 73.
114

asiáticas não pode ocorrer na história, sendo o mundo material sede da escravidão da alma

humana. O encontro com o salvador tem que ocorrer fora do tempo. O Jesus de Nazaré,

portanto, nada tem a lhe oferecer.

2.f. Conclusão

Este capítulo foi organizado com base em alguns critérios. Estamos conscientes de que

se a escolha entre os critérios possíveis tivesse sido outra, teríamos um capítulo

completamente diferente. Outros nomes aqui apareceriam e outros estariam ausentes. Como o

leitor pôde perceber este é um campo cheio de sutilezas e nenhuma obra generalista do mundo

seria capaz de fazes justiça a todas elas. Ainda agora nos restam dúvidas de que alguns que

apareceram por último não estariam mais bem classificados no capítulo subsequente, ou se os

primeiros do capítulo vindouro não estariam mais coerentemente postos neste lugar. A região

de fronteira, seja teórica ou geograficamente, sempre será o território da ambiguidade.

Ademais, os próprios autores aqui listados poderão em alguns anos ter evoluído para mais ou

para menos exclusivismo. Claro que isto tudo deixa neste que vos escreve uma sensação de

frustração, provavelmente compartilhada pelos leitores, mas todas as obras introdutórias vêm

com este mesmo defeito: a falta de espaço.

No capítulo a seguir trataremos do inclusivismo seguindo a mesma metodologia, qual

seja, elegeremos um critério classificatório e o seguiremos até o fim, dada a impossibilidade

de outro tratamento para uma obra destas dimensões.


115

CAPÍTULO III

Inclusivismo

3.a. Introdução

O Inclusivismo tem uma larga história no Cristianismo. Alguns acham até que ela tenha

começado em seus primórdios, nos dias apostólicos, com Paulo e as teologias lucana e

marcana, onde se percebe certa visão continuista na passagem de uma cultura gentílica para

uma cristã, que até poderia ser classificado como um Inclusivismo brando280. Contudo, como

vimos expondo desde o capítulo anterior, nossa opção metodológica é não considerá-lo

Inclusivismo pela confusão que isto geraria.

O primeiro e mais importante princípio do Inclusivismo é a conjunção de dois outros

princípios: (a) a vontade salvífica universal de Deus e (b) a salvação somente por meio do

ministério de Jesus Cristo. Contudo, este hibridismo ainda não dá conta da singularidade do

Inclusivismo quando comparado com as outras abordagens, visto que o Exclusivismo sustenta

ambos. A distinção em relação ao Exclusivismo é que no Inclusivismo a salvação somente por

meio de Cristo não precisa ser algo de que os adeptos salvos das outras religiões tenham

consciência:

280
Na teologia lucana, por exemplo, Paulo falando aos Gentios em Listra, registra-se que “Deus não se deixou
ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem”, dando-lhes do céu chuva e estações frutíferas, enchendo-
lhes o coração de fartura e alegria (At. 14: 17). Em Atos 17, onde aparentemente o registro de Paulo pregando
aos atenienses dá uma clara apresentação da ideia de continuidade entre o paganismo dos gregos e a adoração do
Deus verdadeiro, na verdade é uma referência à religiosidade, ao impulso religioso, dos gregos e não à sua
religião280. Ademais o motivo da ignorância gentílica permanece subentendido, posto que Paulo se apresente
como revelador da identidade do Deus que eles adoravam sem conhecer. Ainda Paulo em Romanos, capítulo 2,
argumentando com base na revelação natural, diz que mesmo aqueles que nunca ouviram a pregação do
evangelho não serão considerados inocentes. Contudo, parece que para o apóstolo das gentes a revelação natural
não é suficiente para salvar, mas o é para perder aqueles que se desviarem dos propósitos divinos impressos
como digitais de Deus em Sua criação. Podemos mencionar ainda II Pedro 3: 9 e I Timóteo 2: 4, ambos textos
usados para sustentar a vontade salvífica universal de Deus. Porém, o que nestes textos está dito sobre o desejo
de Deus de salvar a todos nada alude sobre uma ação divina nas religiões nem quanto à eficácia salvífica delas
como meio, ainda que secundário, de salvação. Podemos concluir que estes textos geralmente usados para
sustentar o Inclusivismo neotestamentário só tem a dizer sobre as religiões o que é reticente e inespecífico, o que
só reforça a ideia da inexistência neles de uma teologia das religiões.
116

A visão em que, embora Jesus seja o único salvador do mundo, a pessoa não precisa
crer no evangelho para ser salvo. O Inclusivismo concorda com o Exclusivismo
quanto a Jesus ser o único salvador da humanidade: nenhum ser humano será jamais
salvo do pecado e do inferno por nenhum outro a não ser por Jesus. Mas
Exclusivismo e Inclusivismo dissentem quanto à necessidade de pessoas não salvas
precisarem confiar em Jesus para a salvação281.

Em outras palavras o Inclusivismo concorda com o Exclusivismo no campo ontológico:

só há salvação em Jesus Cristo. Mas, não concorda no campo epistemológico: não é

necessário que a pessoa que é salva creia nele, ou sequer tenha ouvido seu nome alguma vez

na vida282.

Pronto, temos aí a marca singular do Inclusivismo. Contudo, isto ainda não basta, pois

precisamos distinguir entre dois Inclusivismos: o Evangélico-pentecostal e o Católico.

Também já afirmado em outro lugar que o Inclusivismo Evangélico é de cunho soteriológico

e o Católico eclesiológico. Assim, na modalidade inclusivista Evangélico-pentecostal as não

Cristãos são salvos por Cristo, mas não tomam conhecimento disto. Esta salvação ocorre

sempre por meio de Cristo, mas o instrumento pode ser o Espírito, que segundo esta

concepção atua fora dos limites da Igreja, ou pode ser através da revelação natural, que,

segundo certos inclusivistas, tem função positiva: é suficiente para guiar as pessoas para

Deus. No caso Católico Romano, além de todas estas razões, os Gentios são salvos por Cristo

também indiretamente, por meio do papel sacramental da Igreja.

Porque não começamos a falar do Inclusivismo pela Igreja neotestamentária? Faltar-

nos-ia embasamento textual. O NT não é inclusivista porque os princípios acima citados não

se lhe aplicam. Não se apresenta no Novo Testamento nem a ideia do Espírito atuante fora da

circunscrição da Igreja, embora haja exemplos da atuação do Espírito fora dos limites

geográficos da Igreja. Em outras palavras, a atuação extra eclesial do Espírito Santo não

281
Robert A. Pearson’s introduction in Christopher W. Morgan (org.). Faith comes by hearing (Downers Grove,
IL: InterVarsity Press, 2008), p. 12.
282
Ibid., p. 13.
117

ocorre paralelamente ou à parte de Sua atuação na Igreja, mas sempre em relação à ela. Ele

prepara os que estão sem o conhecimento do evangelho para a recepção do evangelho. A ideia

do papel sacramental da Igreja é de igual modo estranha ao NT; é um desenvolvimento

teológico posterior agostianiano.

Tampouco é Inclusivista a abordagem dos Pais Apologetas, que geralmente são

colocados no primeiro capítulo do Inclusivismo. Em relação a Justino, Clemente e Irineu, vale

lembrar que, embora tenham sido os pioneiros da elaboração da ideia do coroamento, nenhum

deles jamais teve em mente incluir as religiões de seu tempo na plataforma religiosa da qual o

Cristianismo seria a manifestação mais acabada e perfeita:

Os pais nunca aceitaram o politeísmo, desde que era contrário aos ensinos do Antigo
Testamento. Em geral os pais eram extremamente céticos e hostis às Religiões de
Mistério, às mitologias pagãs e a muitos rituais pagãos. A Astrologia como meio de
adquirir um conhecimento secreto, tão prevalente entre as Religiões de Mistério e
outras, era constante alvo de suas críticas. Os pais também se opuseram a seitas
orientais, tais como Maniqueísmo, que encontrara portas abertas para o Ocidente nos
primeiros séculos d. C.283.

Pelos motivos já citados no capítulo anterior, ou seja, a notória imoralidade e

decadência do paganismo greco-romano. E ainda mais pela rivalidade com os pagãos e por

sua condição de minoria, o Cristianismo como igreja perseguida e caluniada não tinha como

entrar em convênio com a gentilidade de sua época. A ideia do coroamento, pelo menos em

relação à Justino, nasceu para refutar um argumento dos não Cristãos simpatizantes da

filosofia e da teosofia gnóstica daquela época quanto à falta de antiguidade do Cristianismo:

por que o Cristianismo demorou tanto a aparecer se o seu Deus é o Criador de todas as coisas?

Justino então contra-argumenta criando a doutrina no Logos spermatikos, pelo qual os

filósofos e profetas da Antiguidade teriam sido inspirados quando ultimavam suas obras. Seu

objetivo era ressaltar entre a filosofia e o Cristianismo284. Jamais passou pela sua mente a

283
Veli-Matti Kärkkäinen. An introduction to theology of religions, pp. 55 e 56.
284
Eric Osborn. “Justin Martyr and the Logos Spermatikos” (SM, vol. 42, 1993), p. 47.
118

doutrina de um Logos trans-temporal à parte de Jesus Cristo crido e afirmado pelos teólogos

asiáticos.

Por tudo isto, fica patente que o principal objetivo dos Pais Apologetas era demonstrar

que o Cristianismo era uma “filosofia”, ou seja, tinha respaldo intelectual, estava ligada

historicamente a outras manifestações religiosas e filosóficas, e que, portanto, não era uma

superstitio nova e excêntrica; ou ainda, uma amixia/misantropia, praticada por indivíduos

marginais à sociedade, o que de certa forma era verdade, dada a condição ilegal das práticas

religiosas cristãs. Em suma, sua intenção era vencer o preconceito contra o Cristianismo e

favorecer sua expansão entre os mais letrados de seu tempo. Nada tendo a ver com o projeto

de poder alternativo de uma religião que em outros tempos tinha sido hegemônica e

dominante, como é o caso do inclusivismo católico romano, tampouco tem relação com a

ideia de outras manifestações do Logos antes de Jesus Cristo, como infelizmente tem sido a

interpretação de alguns.

3.b. Inclusivismo Evangélico-pentecostal

Este Inclusivismo surge como resultado das inquietações evangélicas com os que nunca

ouviram o evangelho, que posteriormente evoluiriam de um Exclusivismo fraco, pela

postulação de argumentos bíblicos que enfatizam a vontade salvífica universal de Deus.

Colocamos esta designação dupla mais para deixar clara a origem dos autores do que para

demonstrar alguma peculiaridade teológica. Claro que os autores a seguir concordam entre si

e têm consciência disto, mas além da influencia mútua que exerce todo aquele que lê e é lido,

nada mais os une, sendo oriundos de suas respectivas denominações. O campo teórico comum

entre eles está resumido por Robert A. Pearson:

(1) A revelação de Deus sobre si mesmo na criação e na consciência não apenas


condena, mas também salva. De acordo com isto, pessoas podem ser salvas sem
nunca terem ouvido de Jesus, ao responder positivamente à revelação geral.
119

(2) Muitos inclusivistas levantam a questão da justiça de Deus: seria injusto se Deus
condenasse pessoas meramente porque nunca ouviram o evangelho de Cristo. Para
que Deus seja justo e misericordioso deve haver outros meios de vir a Ele.

(3) Muitos inclusivistas, não todos, têm argumentado que os adeptos das religiões
não cristãs mundiais podem ser salvos sem crer no evangelho. Não que estas
religiões por si mesmas ensinem o caminho da salvação, mas que Deus em Sua
graça aceita aqueles que sinceramente se arrependem e seguem-No nos limites de
sua religião.

(4) É comum aos inclusivistas retratar os crentes do Antigo Testamento como


exemplos de pessoas salvas sem a mensagem de Jesus. Inclusivistas também lhes
atribui a categoria de “santos pagãos”, figuras bíblicas tais como Melquideseque e
Cornélio, aos é declarado teriam sido salvos sem a revelação especial. Aqueles nos
dias atuais que nunca ouviram falar de Jesus e são informacionalmente a. C., Deus
os aceita, se eles, como os santos pagãos , voltam-se para Ele.

(5) Todos os inclusivistas alegam que nas Escrituras algumas pessoas são salvas não
especificamente pela fé em Jesus, mas com base em um princípio de fé mais
genérico. As pessoas não alcançadas de hoje, de maneira semelhante, podem ser
salvos sem o evangelho baseados no mesmo princípio285.

Um pouco destas ideias vão aparecer em cada um dos autores avaliados abaixo,

diferindo apenas quanto à ênfase e o modo como são elaboradas por cada um deles.

3.b.1. Clark Pinnock

Clark Pinnock, batista, canadense, professor emérito de teologia no McMaster Divinity

College, tem sido acusado de se aproximar demasiadamente do pluralismo por causa de suas

convicções mais abertas com respeito à teologia das religiões. Ele se entende, entretanto, num

ponto de equilíbrio, não sendo nem restritivista nem universalista, segundo suas próprias

palavras, os dois maiores perigos para o teólogo das religiões 286 . De um lado, há textos

bíblicos que demonstram o desejo universal de Deus de salvar muito mais do que grupelhos

autorreferidos como eleitos (II Pd 3: 9; I Tm 2: 4); de outro, há textos que expressamente

declaram a universalidade e a exclusividade salvífica de Jesus Cristo (I Tm 2: 5; Jo 3: 16)287.

285
In Christopher W. Morgan (org.). Faith comes by hearing (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2008), p.
15.
286
Clark Pinnock. A wideness in God’s mercy: the finality of Jesus Christ in a world of religions (Grand Rapids:
Zondervan, 1992), p. 12.
287
Clark Pinnock. A wideness in God’s mercy, p. 18-19.
120

O ponto de equilíbrio entre estes pontos extremos é o que Pinnock julga ser seu

posicionamento:

Um ponto fundamental nesta teologia das religiões é a convicção a obra redentora de


Deus em Jesus Cristo tem como intenção o benefício de todo o mundo. [...] A graça
de Deus não é mesquinha ou parcial. [...] Segundo o evangelho de Cristo, os
resultados da salvação serão grandes e generosos288.

Na construção de seus argumentos, Pinnock recupera a hermenêutica dos Pais

Apologetas, especialmente a de Irineu de Lion e a dos capadócios (Gregório e Basílio). De

Irineu ele acolhe a noção de concertos universais feitos por Deus com toda a humanidade,

antes do convênio firmado com Israel no Sinai. Contemporaneamente, esta não é uma

argumentação nova, no campo católico romano há a figura de Jean Danielou que sustentou

ideias parecidas, falando de “concertos cósmicos” de Deus, que tem tanta validade quanto os

concertos mosaico e neotestamentário, ou seja, são válidos por conta da teoria da preparação

do evangelho (praeparatio evangeli) e do cumprimento ou do aperfeiçoamento, segundo a

qual o concerto cósmico é a preparação para o concerto mosaico e é aperfeiçoado por ele, o

mosaico é a preparação do crístico e é aperfeiçoado por ele289. Yong levanta contenções a esta

concepção, sugerindo que os concertos citados foram quebrados imediatamente à sua

fundação290 e dá o exemplo do julgamento divino a Babel291. O concerto de Deus com Noé

pela promessa de não mais cobrir-se a terra com as águas do dilúvio (Gn 9: 8-17), tal como o

com Adão, pela promessa da vinda do descendente (Gn 3: 15), não foi meramente uma

288
Ibid. , p. 17.
289
Jean Danielou. Holy pagans of the Old Testament (London: Longmans/Green & Co., 1957).
290
Segundo as Escrituras, todos os concertos celebrados por Deus com os seres humanos foram rompidos pelos
próprios, o que é prova da inconstância humana e da fidelidade divina. O concerto com Adão foi quebrado pelo
assassinato de Abel; o convênio com Noé espezinhado pela torre de Babel; o concerto abraâmico desfeito pelas
mentiras do próprio no Egito, que ocasionou a morte de pessoas da casa de faraó; o pacto com os israelitas
desrespeitado pela idolatria, o concerto de Jesus com os apóstolos foi desconsiderado por sua falta de fé, ao
fugirem e ao se esconderem depois de sua morte. Deve-se, portanto, ter cautela com o excessivo otimismo
quanto às manifestações religiosas humanas.
291
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh. Pentecostalism and the possibility of global theology (Grand
Rapids: Baker Academics, 2005), p. 230.
121

promessa de “preservação física da humanidade”, mas também de salvação292. O concerto

com Abraão é ainda mais evidentemente salvífico com a promessa: “em ti serão benditas

todas as famílias da terra” (Gn 12: 3).

Dos capadócios ele extrai uma eclesiologia pneumatológica, que até hoje marca a Igreja

Oriental, enquanto na Igreja Ocidental impera uma eclesiologia cristológica, onde a ênfase

está sobre a hierarquia e não sobre os dons espirituais. A visão de Pinnock tem fundamento

trinitário. Ou seja, não se trata meramente de colocar os holofotes no Espírito Santo, mas de

iluminar o aspecto pneumatológico da Trindade para recuperar sua natureza comunitária,

perdida por uma ênfase indevida na assim chamada economia da salvação, onde há uma

relação de subordinação funcional (apenas no contexto da salvação humana) entre as três

pessoas da Trindade, em que o Pai envia o Filho, o Filho envia o Espírito; O Espírito conduz a

Cristo e Cristo, ao Pai. Por conta deste arranjo perdeu-se a noção da Trindade como

comunidade em amor293, substituída por um modelo hierárquico, que mais retrata o bispado

monárquico que o defendeu do que a vida trinitária divina:

Deus é um processo interpessoal, uma comunidade de Pessoas que amam uma a


outra e experimentam uma unanimidade. [...] As três pessoas de Deus, embora
distintas cada uma tendo processos de consciência próprios formam juntas uma vida
compartilhada que é o perfeito ideal294.

Abandonada a rigidez da economia da salvação, Pinnock abre espaço para uma noção

mais universalizada da obra do Espírito, a qual será o fundamento dos convênios universais de

Deus mencionados mais acima. Assim como ao Espírito coube uma ação preparatória na

criação, desde que antes que o mundo fosse criado o Espírito pairava sobre as águas (por

assim dizes apaziguando o caos para que a Palavra pudesse trazer a vida à luz), da mesma

292
Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy, p. 22.
293
Cf. Miroslav Volf. After our likeness: The Church as Image of the Trinity (Grand Rapids, MI, Wm. B.
Eerdmans, 1998).
294
Clark H. Pinnock. Flame of Love. A theology of the Holy Spirit (Downer Grove, IL: InterVarsity Press, 1996),
p. 41.
122

sorte, há uma obra do Espírito Santo antes da fundação da Igreja, da qual fazem parte dos

convênios citados, e que funcionam como praeparatio evangeli. O Espírito, portanto, realiza

uma obra salvífica tão importante e universal quanto o do Logos eterno:

Nós somos realmente autorizados a uma perspectiva mais universal quando o


Espírito pode ser visto como buscando o que o Logos também intenciona e onde se
pode crer e esperar que ninguém esteja além do alcance da graça. Um fundamento é
lançado para a universalidade se de fato o Espírito permeia o mundo e não há lugar
cerrado à sua influência295.

O lugar no quadro de discussão onde Pinnock se insere é complexo, porém, a meu ver

não abandona o espaço ortodoxo:

Minha proposta é exclusivista em afirmar decisivamente a redenção em Jesus Cristo,


embora isto não negue a possibilidade de salvação dos povos não cristãos.
Semelhantemente, ela pode ser chamada inclusivista por recusar limitar a graça de
Deus aos limites da Igreja, apesar de não chegar a afirmar que as outras religiões
sejam veículo de salvação por elas próprias. E pode ser chamada pluralista à medida
que reconhece o trabalho gracioso de Deus nas vidas humanas em todos os lugares
[...]. Não pode, porém ser chamada de pluralista no sentido de eliminar a
normatividade de Cristo ou cair no relativismo296.

Esta complexidade deve-se às próprias fontes cristãs, que, além daquela dimensão

polêmica aventada linhas acima, negativas às religiões, possuem textos que demonstram a

graciosa disposição divina de salvar os homens e as mulheres de todas as raças e credos do

mundo, ainda que os chamando para uma situação espiritual melhor:

De acordo com a Bíblia, também existem entre as nações religiões que estão do
outro lado do espectro [não estão sob a condenação de Deus]. Ela reconhece fé, não
cristã e nem judaica, que é, não obstante, nobre, edificante e sã. E a nós vêm nesta fé
primordial e na categoria de santos pagãos, crentes tais como Abel, Enoque, Noé, Jó,
Daniel, Melquisedeque, Ló, Abimeleque, Jetro, Raabe, Ruth, Naamã, Rainha de
Sabá, o centurião romano, Cornélio e outros. Eles foram crentes, homens e mulheres
que experimentaram um correto relacionamento com Deus e viveram vidas santas,
sob os termos mais amplos do concerto feito com Noé297.

Para Pinnock, porém, nem de longe significa uma licença bíblica para o pluralismo.

Todos os elogios da citação acima são dirigidos a pessoas, seres humanos, que, a despeito de

295
Clark H. Pinnock. Flame of Love, p. 63.
296
Clark H. Pinnock. A wideness in God’s mercy, p. 15.
297
Ibid., p. 92.
123

seu contexto sociorreligioso, conseguiram experimentar “um correto relacionamento com

Deus” e foram fieis na medida do seu conhecimento sobre as demandas divinas a seu respeito.

Não se pode transformar situações isoladas, tais como o discurso de Paulo no areópago de

Atenas ou a figura veterotestamentária de Melquisedeque, uma escusa para abraçar um

pluralismo indiscriminado. Segundo Pinnock:

A conclusão a ser levantada é que as religiões podem ser escuras, enganosas e


cruéis. Elas abrigam feiura, orgulho, erros, hipocrisia, escuridão, demônios,
contumácia, cegueira, fanatismo, fanatismo e decepção. A ideia de que as religiões
mundiais ordinariamente funcionam como caminhos de salvação é um absurdo
perigoso e um pensamento não isento298.

Portanto, a conclusão sobre os esforços teológicos de Pinnock é positiva. Ele realmente

logrou êxito na construção de um patamar mais elevado para a discussão no ambiente

evangélico. Esta também é a opinião de críticos mais equilibrados, tais como Veli-Matti

Kärkkläinen, para quem o teólogo canadense é o promotor de “uma forma moderada de

inclusivismo totalmente ancorada num Cristianismo ortodoxo”299, identificando em sua obra

uma base trinitária, pela qual sintetiza suas ideias:

A evangélica e independente teologia das religiões de Pinnock é baseada em


legítimos fundamentos trinitarianos: (1) um teísmo aberto, que desafiou a tradicional
visão de Deus como imutável e não inclinado a se envolver com os acontecimentos
do mundo; (2) uma cristologia que reputa Cristo como norma, mas não como
excludente de outros meios de conexão com Deus; e (3) uma pneumatologia como
infusão aberta, que retrata a obra do Espírito em termos cósmicos.

Como contenções pode-se dizer, porém, que Pinnock, apesar dos esforços para dar uma

base bíblica à sua posição, persiste em perorações e ilações injustificadas do ponto de vista

textual. No capítulo 3 de seu livro mais importante sobre o tema das religiões ele baseia sua

percepção simpática às religiões baseando-se no argumento pneumatológico da universal

infusão do Espírito. Como vimos, há textos no AT e no NT que dão lastro à ideia de que a

ação do Espírito não se restringe à Igreja, mas aí não está declarado que se estende às

298
Ibid., p. 92.
299
Veli-Matti Kärkkläinen. Trinity and religious pluralism, p. 103.
124

religiões. Ou seja, o fato de o Espírito atuar no coração de todos os homens em todos os

tempos, não quer dizer que aja em instituições religiosas não cristãs, qualquer que seja a

medida com que isto ocorra. Por outro lado, apenas aludindo ao que já foi dito na introdução,

a ação extra eclesial do Espírito dá apenas numa dimensão geográfica, pois todas as vezes que

esta ação é aventada nas Escrituras há conexão com a Igreja ou com o povo de Deus, não

existindo nenhum relato de pessoas impressionadas pelo Espírito que vivam ignorando a

tradição bíblica. Isto, obviamente não vale para os patriarcas pré-abraâmicos. Na conclusão

sobre as concepções pentecostais retomaremos esta questão.

3.b.2. Amos Yong

Até aqui é inegável que o referencial teológico pentecostal, tal como o evangélico, é

bíblico e exclusivista, marcado especialmente por dois aspectos fundamentais: (a) a já referida

teologia das religiões negativa, que não admite seja aderida às religiões uma dimensão

salvífica e (b) a ação do Espírito Santo sempre estando relacionada ao ministério do Filho300.

Mais recentemente, contudo, Veli-Matti Kärkkäinen e Amos Yong deram provas de ter

abandonado estes dois princípios fundamentais.

Tal como Pinnock, Yong não se mostra satisfeito com os resultados das teologias das

religiões que conhece e não se vê incluído em nenhum dos três grupos tipológicos de Race

(exclusivismo, inclusivismo e pluralismo). Não é partidário de um Exclusivismo forte, porque

não acha correto decidir a priori que as religiões sejam irrelevantes; não é inclusivista, porque

esta perspectiva sugere que as religiões sejam substituídas ou completadas pelo Cristianismo;

não é adepto de um Pluralismo sintético por causa da metanarrativa filosófica usada para

constituir a síntese da religiosidade humana301. Seu objetivo é constituir uma teologia das

300
Steve Studebaker. From Pentecost to the Triune God, p. 210.
301
Amos Yong. Pneumatology and the Christian-Buddhist dialogue. Does the Spirit blows through the middle
way (Leiden: Brill, 2012), p. 14.
125

religiões cristã que realmente leve a sério o discurso das religiões, que as analise como lugar

onde também atua o Espírito Santo, sendo o principal papel do teólogo das religiões discernir

onde está a presença e onde não está a ausência do Espírito, partindo do pressuposto de que a

presença e a atividade de Deus por meio Espírito atua na vida de todas as pessoas que

exercem fé302.

Para tanto, Yong começa seu edifício teológico contrariando a bem aceita subordinação

das operações do Espírito ao ministério de Jesus, acreditada no mundo evangélico. Seguindo

Pinnock, ele crê que o Espírito aja além dos limites da Igreja, porque há uma “relação em

autonomia” entre os dois ministérios303, ambos subordinados ao Pai. Corroborativamente a

Lossky, seus argumentos remontam às discussões conciliares e àquilo que ele chama de “a

ilegítima dogmática do filioque”, legitimada pelas conclusões conciliares de Constantinopla

IV (867 d. C.), concílio patrocinado pela Igreja Ocidental304.

O filioque, cuja tradução literal é ‘e do filho’, foi uma cláusula acrescentada ao credo

niceno pelas igrejas ocidentais desde o Toledo III (589 d. C.), com a intenção de estender a

subordinação do Espírito não somente ao Pai, mas também ao Filho. Longe de ser uma

‘questão bizantina’, a cláusula reflete a disputa pela hegemonia entre as Igrejas Latina e

Grega, sendo a independência do Espírito mantida pela Igreja Grega e sua dependência ao

Filho pela Igreja Latina. À Igreja Latina interessava a subordinação do Espírito ao Filho,

porque cria que sua instituição procedia do próprio Filho, posto ser seu bispado herdeiro do

bispado de Pedro, o apóstolo. Uma pneumatologia subordinada à cristologia sempre

interessou ao Ocidente, bem como uma economia da salvação rígida, por causa de sua ênfase

hierárquica, porém a subordinação do Espírito ao Pai e ao Filho torna o Espírito Santo uma
302
Amos Yong. Discerning the Spirit (s). A Pentecostal-Charismatic contribution to Christian Theology of
Religions (Sheffield UK: Sheffield Academic Press, 2000), p. 24.
303
Amos Yong. Discerning the Spirit (s). A Pentecostal-Charismatic contribution to Christian Theology of
Religions , p. 58.
304
Amos Yong. “The Turn to Pneumatology in Christian Theology of Religions: Conduit or Detour?” Journal of
Ecumenical Studies (Summer-Fall, 1998), p. 451.
126

figura menor da Trindade, submetida ao Filho e sem liberdade para atuar no mundo fora da

Igreja305.

Se não chega a afirmar o Spirituque, “para não multiplicar termos potencialmente

controversos que nada fazem para aumentar a solidariedade entre as confissões religiosas”,

Yong rejeita todo tipo de subordinação em nome de uma “mutualidade das economias da

Palavra e do Espírito para evitar tanto o fanatismo, o entusiasmo e o individualismo de uma

teologia dominada pelo Espírito, como também o dogmatismo, hierarquismo e o

institucionalismo de uma teologia dominada pela Palavra”306.

Restaurada teologicamente a liberdade do Espírito, A. Yong pode concluir que o

Espírito tem a liberdade de atuar diretamente relacionado ao Pai, como sua segunda mão

(além de Jesus, a primeira) 307 e contrabalançar a singularidade de Jesus com uma

universalidade que caracteriza o Espírito. Como é evidente, suas conclusões abrem espaço

para a admissão das religiões na esfera do mistério divino, sob os auspícios da ação livre do

Espírito, coordenada unicamente à vontade salvífica do Pai308. Isto nos leva, como a princípio

foi dito, à conclusão de que Yong defende uma espécie de Inclusivismo, à moda rahneriana,

ou algo para lá do limite entre o Exclusivismo e o Inclusivismo, tendo por base em vez de

uma antropologia teológica, uma teologia bíblica:

Eu sugeri em outro lugar que as religiões nem são acidentes da história nem
usurpações da divina providência, mas, de diversas maneiras, instrumentos do
trabalho do Espírito Santo a partir dos propósitos divinos no mundo e que se os não
evangelizados são salvos, são-no através do trabalho de Cristo pelo Espírito (mesmo
que por meio das crenças e práticas religiosas a eles disponíveis)309.

305
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh, p. 216.
306
Ibid., p. 226.
307
Amos Yong. Beyond the Impasse: Toward a Pneumatological Theology of Religions (Grand Rapids: Baker
Academic, 2003), p. 69.
308
Amos Yong. “A P(new)matological Paradigm for Christian Mission in a Religiously Plural World”. In
Missiology: An International Review, XXXIII no. 2 (April, 2005), p. 176.
309
Amos Yong. The Spirit poured out on all flesh, p. 236.
127

Há que se dar razão a Yong quanto ao filioque. Realmente não há porque deixar que a

compulsão pela sistematicidade nos leve tão longe a ponto de entendermos que a economia da

salvação, constituída por ilação (já que não existe nas Escrituras nenhuma afirmação

categórica sobre ela), limite as ações da Trindade. A economia da salvação não é um quadro

hierárquico entre as pessoas da Trindade. Se fosse não haveria uma Trindade, mas uma

Tridivindade; três Deuses, ligados numa relação de subordinação, o que é um absurdo

teológico para uma religião monoteísta. A relação existente é de interdependência, entre o Pai,

o Filho e o Espírito, para a salvação humana:

A natureza de Deus é uma comunhão entre Pessoas que se amam, a transbordante


vida compartilhada que cria e sustenta o universo. Antigos teólogos [os capadócios]
falaram da natureza divina como uma dança, o fluxo cíclico da tríplice vida, o ir e ir
entre as Pessoas graciosamente envolvendo a criação310.

O modelo hierárquico, ainda que funcional e não essencial (apenas no contexto

salvífico), deve ser abandonado em favor de um modelo comunitário, porque este é o mais se

coaduna com o texto bíblico. Com efeito, a ordem e o agente das ações divinas variam

enormemente no NT. Não se vai ao Pai senão pelo Filho (Jo. 14: 6), não se vem ao Filho

senão pelo Pai (Jo. 6: 44, 45 e 53); o Pai glorifica o Filho (Jo. 8: 50) e o Filho glorifica o Pai

(Jo. 7: 18); o Filho envia o Espírito e o Espírito guia o Filho (Lc 4: 1 // Jo 20: 22); o Espírito

batizou Jesus (Lc 3: 22), Jesus batizou os discípulos com o Espírito no Pentecostes (Mt 3: 11).

Jesus revela o Pai, mas pelo Espírito Jesus tem acesso ao Pai (Ef 2: 18). Na ressurreição de

Jesus as três pessoas estão presentes e atuantes para trazê-lo de volta à vida (At. 2: 24, 32 – o

Pai //Jo. 10: 17 – o Filho //Rm. 8:11 – o Espírito). A ordem das operações da Trindade

também não é rígida. Nem sempre vem primeiro o conhecimento da Palavra e depois o

batismo no Espírito Santo. No livro de Atos o Espírito é derramado antes do conhecimento do

evangelho e serve de sinal para legitimar sua pregação aos que o recebem (At 10: 44-47), etc.

310
Clark Pinnock. Flame of Love. A Theology of the Holy Spirit (Downers Grove: InterVarsity Press, 1996), p.
22.
128

Portanto, é uma ilusão teológica dizer categoricamente que a obra de um é isto, e a obra de

outro é aquilo.

Contudo, também não há respaldo bíblico para a clivagem entre as obras do Espírito e

do Filho, como defendido por Yong. A Palavra, o Espírito e o Pai trabalham em consonância.

Foi assim no início da criação, quando o Espírito pairava sobre as águas caóticas primordiais

e Deus criava o mundo pela Palavra ou Logos (Jesus) de seu poder. De igual maneira ocorreu

na fundação da Igreja, onde impera uma mutualidade, para usar uma palavra cara a Yong. A

liberdade do Espírito defendida através de diversos textos não significa que o Espírito trabalhe

dissociado do Filho, quer dizer que o Espírito não depende de elementos humanos para

efetuar sua obra. É a Igreja que é usada pelo Espírito e não o contrário. A igreja não atua sem

o Espírito, mas o Espírito pode prescindir da Igreja. A obra da Igreja pertence à história da

salvação; a obra do Espírito pertence à eternidade:

Se a igreja (com todas as suas tarefas e faculdades) se entende a si mesma no


Espírito e a partir de sua história, também entenderá sua particularidade como
momento da atividade do Espírito e não necessitará afirmar sua forma concreta e sua
missão especial com exigências de um destrutivo absoluto, Tampouco olhará com
desconfiança ou com inveja para a atividade salvífica do Espírito, que tem lugar no
exterior dela mesma; antes as aceita agradecida como um sinal de que o campo de
ação do Espírito é mais amplo do que a Igreja e que a vontade salvífica de Deus
ultrapassa seus limites311.

O Espírito pode, sim, atuar fora da Igreja, e aí a importância da nota enfática de Yong e

dos outros teólogos que valorizaram a pneumatologia, trazendo à luz a misteriosa ação do

Espírito. Mas é teologicamente incorreto transformar este ‘pode’ em um ‘deve’, esquecer que

‘fora dos limites da Igreja’, é apenas uma ação supletiva do Espírito; sua ação principal dá-se

nos limites da Igreja. A obra do Espírito pode se distanciar dos instrumentos humanos

comissionados quando estes falham, mas isto não é uma prescrição. Quando se diz que a obra

do Espírito pode ocorrer fora dos limites da Igreja, é ortodoxo pensar que Ele pode agir e falar

311
Jürgen Moltmann. La iglesia fuerza del Espíritu. Hacia una eclesiología mesiánica (Salamanca: Ediciones
Sígueme, 1978), 88.
129

de modo que as pessoas entendam (At 2: 5-11), num sentido que inclusive vai além da

questão linguística (Rm 8: 26). Pode contradizer e transformar elementos da expectativa

religiosa dos povos, como aconteceu na mudança nas expectativas messiânicas dos discípulos

(Jo 16: 13) depois do derramamento do Espírito, expectativas estas que a convivência deles

com Jesus não foi suficiente para mudar. Pode igualmente afastar ideias religiosas

incondizentes com as tradições bíblicas 312 . Contudo, admitir que o Espírito guie certas

culturas e certas religiões às verdades divinas é se aproximar perigosamente de uma doutrina

da inspiração de outras Escrituras, algo que, com efeito, Yong sugere: “os teólogos cristãos

devem também reconhecer a possibilidade de outras tradições canônicas serem de alguma

maneira também divinamente inspiradas” 313.

É melhor pensar, acompanhando a lição de Paulo na Carta aos Romanos, em seus três

primeiros capítulos, que atuação divina no coração dos não evangelizados dá-se mais de

forma negativa, quanto à orientação do que não fazer no tocante aos pecados da carne. Sobre

a natureza divina e a salvação, não há autorização escriturística para admitir outros textos

canônicos além das Escrituras. Segundo Paulo o Espírito trabalha preferencialmente no

âmbito da Igreja. É pela circuncisão do coração por meio do Espírito que cada pessoa se torna

um membro do povo de Deus (Rm. 2: 29; Gl. 3: 28). Um batismo comum no Espírito e uma

experiência compartilhada no mesmo Espírito é o que une o povo de Deus (I Co 12: 13; Ef. 4:

4). Deus derrama amor no coração dos crentes pelo Espírito (Rm 5: 5). Para Paulo, a vida

cristã é compreendida como vida no Espírito. O Espírito distribui dons (Rm 12: 6-8; I Co 12:

1-8; Ef 4: 10-13), o conhecimento sobre Deus só pode vir por meio de Seu Espírito (I Co. 2:

10), etc.

312
Steve Studebaker. From Pentecost to Triune God, p. 226.
313
Amos Yong. Discernig Spirit (s), p. 317 e 318.
130

Portanto, o resgate da importância da obra do Espírito para a salvação dos homens é

louvável e bem vinda, Yong merecer nosso aplauso por isto. Porém, a ideia de fazer o Espírito

trabalhar diretamente nas religiões como agente inspirador de outras Escrituras é doutrina

perigosa e heterodoxa, que fortalece as religiões não cristãs e enfraquece o Cristianismo aos

olhos de seus próprios adeptos.

3.c.Inclusivismo Católico Romano

O Inclusivismo Católico começa a ser teologicamente elaborado a partir de Vaticano II,

num concílio convocado por João XXIII e realizado nos anos de 1962 a 1965, quando o

Catolicismo saía da assim chamada era dos Pios, cujo símbolo maior foi o Sylabus errorum,

uma lista de obras proibidas pela Sé, considerada o ápice da síndrome megalomaníaca de uma

Igreja em guerra com o mundo. Ocorre também nesta época a condenação do pluralismo

teológico e o consequente estímulo ao renascimento do Tomismo (Neotomismo), a declaração

da infalibilidade papal, a condenação da doutrina liberal do Estado secular, o repúdio curial à

liberdade religiosa, e a censura aos regionalismos litúrgicos, que tiveram por consequência

uma crescente romanização do Catolicismo popular.

O concílio Vaticano II percorre um caminho inverso ao do Vaticano I, rumo a uma

abertura à diversidade teológica e à diversidade religiosa. O primeiro passo para esta abertura

generalizada foi a Igreja ter admitido um novo conceito de verdade, verdade relacional, que a

faz abandonar o modelo antigo de verdade proposicional. A participação de Marie Dominique

Chenú foi decisiva para esta reviravolta hermenêutica da Igreja Católica. Seu método

histórico recuperou a dimensão conjuntural da verdade divina, que faz com que o conceito de

revelação não seja mais prioritariamente um conjunto de verdades fáticas sobre Deus e o ser

humano, mas autocomunicação de Deus ao homem. A concepção de verdade antagônica a

erro assim perde espaço para uma ideia de verdade completa contraposta a verdades parciais.
131

Embora não tratem exclusivamente do problema das religiões não cristãs, como já

sugerido acima, todos os documentos conciliares falam algo do tema, entre estes,

especialmente, Lumen Gentium, Nostra Aetate e Ad Gentes. Neles estão desenvolvidos três

temas: (1) a salvação dos que estão fora da Igreja Católica; (2) Valores autênticos que podem

ser encontrados nos não Cristãos e em suas tradições religiosas; (3) a recepção destes valores

na Igreja Católica, ou seja, a atitude da Igreja em relação às suas tradições religiosas e seus

membros 314 . A diferença entre as disposições conciliares do Vaticano II e as dos outros

concílios e encíclicas, é que o problema da salvação nas religiões não é mais tratado num

âmbito meramente pessoal, mas num contexto institucional, isto é, trata do status salvífico das

instituições religiosas a que pertencem os indivíduos não cristãos.

Outra mudança significativa foi o banimento dos documentos conciliares de termos

ofensivos preconceituosos tais como paganus e gentilis. Os textos reconhecem aos não

cristãos “as riquezas espirituais dos povos”, “coisas verdadeiras e boas”, “bens preciosos,

religiosos e humanos”, “sementes do Verbo”, “elementos de verdade e graça, frutos de uma

secreta presença divina”. Porém, apesar de todas estas expressões reconhecerem nas religiões

um valor humano e religioso que lhes é peculiar, não se chega a conceder-lhes um status

salvífico próprio – as pessoas são salvas nas religiões, não mais apesar delas, e, no entanto,

ainda não através delas. Cristo é o salvador universal e o Espírito, o agente difusor desta

salvação. E com a conclusão de que “a religião verdadeira é necessariamente a Igreja

Católica, ainda que possam ser encontrados ‘elementos’ (vestigia) da vera religio também em

outras religiões”315.

Na prática o Vaticano II serviu apenas para que as interpretações mais tolerantes quanto

às religiões pudessem sair dos subterrâneos da Igreja Católica, dominada até então pela

314
J. Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 228 a 229.
315
F. Conesa. “Sobre la religión verdadera: aproximación al significado de la expresión” (ST, vol. XXX, Enero –
Abril, 1998), p. 47.
132

atitude de autodefesa do Vaticano I. A prova disto é que as declarações conciliares são

generalistas e, por isso, propositalmente consensuais, permitindo que suas ambiguidades

sigam gerando interpretações e servindo a lados diametralmente opostos na arena teológica.

Com a diferença de que ideias como as dos teólogos subsequentemente apresentados podem

ser expressas sem gerar perseguições hierárquicas silenciadoras, embora as constrangedoras

ainda permaneçam.

Dentro do Inclusivismo católico, ainda é possível distinguir três modalidades: (1) um

Inclusivismo rahneriano mais próximo ao Exclusivismo, já que entende toda experiência

humana como resultante indiretamente do mistério crístico em sua atuação universal, levando

à conclusão de que todo ser humano, sendo religioso ou não (e se religioso), sua religião

sendo qual for, é um cristão anônimo316. (2) A outra concepção é mais próxima do Pluralismo,

pois amplia o ministério de Jesus de modo a que se torne abrangente a respeito das outras

religiões. Esta é a posição de Jacques Dupuis e Edward Schillebeeckx. Vale ainda ressaltar,

que os membros de ambos os grupos também estão envolvidos com um projeto hermenêutico

voltado para o mundo secularizado, com pensadores que não serão tratados no resumo a

seguir. É o caso de Juan Luis Segundo, apesar de toda a sua importância e envergadura

teológica317.

316
“[o homem] já aceita a revelação [de Deus] quando quer que ele realmente aceite a si próprio inteiramente,
porque ela [a revelação] já fala nele. Antes de uma fé eclesiástica oficial tomar uma forma explícita, onde quer
que uma pessoa se comprometa e viva o dever de cada dia na quieta sinceridade da paciência, na devoção a seus
deveres materiais às demandas feitas a eles pelas pessoas sob seus cuidados... Portanto, não importa o que um
homem declare em sua conceitual, teorética, reflexão religiosa, qualquer um que não diga em seu coração, ‘não
existe Deus’(como o tolo do salmo), mas dá testemunho dele pela radical aceitação de seu ser, é um crente. Mas
se neste percurso ele crê de fato e de verdade no santo mistério de Deus, se ele não suprimir esta verdade, mas
dar a ela livre curso, então a graça desta verdade pela qual ele permite a si mesmo ser levado é sempre já a graça
do Pai em seu Filho. E qualquer um que se deixe guiar por esta graça pode ser chamado com muita justeza de
‘cristão anônimo’ ”(Karl Rahner. Theological Investigations Vol. 6, pp. 394-395).
317
La historia perdida e recuperada de Jesús de Nazaret. De los Sinópticos a Pablo (Santander: Editorial Sal
Terrae, 1991).
133

3.c.1. Karl Rahner

Karl Rahner nasceu em 1904 na Alemanha, estudou teologia durante os anos 30 em

várias instituições alemães, de sorte que quando o concílio ecumênico aconteceu já era um

teólogo renomado e reconhecido nos meios eclesiásticos. Ele foi um dos principais arquitetos

do concílio. Além disso, o próprio Inclusivismo como alternativa teológica de interpretação

das religiões tem nele o primeiro teórico a romper com a dicotomia religião natural ou as

religiões – religião sobrenatural ou o Cristianismo (J. Danielou e H. de Lubac), ou seja, uma

visão das religiões marcantemente missiológica.

Na formulação da tese rahneriana do “cristão anônimo” são usadas ferramentas teóricas

emprestadas de Kant e Joseph Maréchal e, em menor medida, de Heidegger318. Já se disse

com razão que em Rahner ocorre uma mudança metodológica importante, chamada por ele de

“giro antropológico”, que faz com que a teologia católica pós Vaticano II abandone o solo

cosmológico, característico do Tomismo e do Neotomismo, e se transporte para o solo

antropológico, que irá caracterizar o assim chamado Tomismo Transcendental rahneriano. A

investigação teológica não tem mais seu ponto de partida na revelação divina, mas no homem

que se abre para recebê-la319.

Foi Kant, via Joseph Maréchal, que possibilitou a Rahner este giro, graças a um a priori

cognitivo descoberto pelo filósofo de Königsberg. Interpretando Kant além de dele mesmo,

Maréchal descobre na estrutura cognitiva humana “uma abertura apriorística do pensamento

318
Rahner foi aluno de Heidegger na década de 30, portanto, ainda à época do primeiro Heidegger de O ser e o
tempo. Segundo indicações do próprio autor, a influencia de Heidegger foi mais metodológica, o rigor e a
hermenêutica heideggeriana, do que fornecer um arcabouço teórico para Rahner construir sua teologia. (Carlos
Schickendantz. “Una relación entre Martin Heidegger y Karl Rahner. Una recepción y diferenciación todavía por
escribir” – TV, XLIX, 2008, p. 378).
319
Eduardo S. Santos. “Considerações sobre a escatologia em Karl Rahner” (Teocomunicação, v. 35, no. 150,
Dez. 2005), pp. 776-777.
134

ao ser absoluto”320. Como mais tarde Rahner explicaria, além de uma atividade categorial da

consciência explícita objetiva, uma atividade implícita existencial, em que se apresentam

como constituintes fundamentais a vontade e a liberdade humanas, que nos remetem a algo

colocado além dos objetos conhecidos pela consciência explícita321. Em suma, na experiência

transcendental humana (aquela que é condição de possibilidade de qualquer experiência),

existe uma abertura para o mistério divino.

Baseado nesta “experiência atemática” do divino, experiência não cooptada por

tradições ou doutrinas, e cuja pré-condição é a graça divina, ele encontra a base comum de

todas as religiões do mundo. A estrutura cognitiva humana, que parece ter sido preparada para

a percepção subjetiva do transcendente, é testemunha da vontade salvífica universal de Deus,

pois ela se torna “condição de possibilidade de significativos e verdadeiros atos salvíficos de

Deus322”. Todos os seres humanos estão estruturalmente incluídos na graça de Deus, existindo,

entretanto, aqueles que sabem qual a natureza desta abertura ao transcendente e aqueles que

não sabem. Os primeiros são Cristãos explícitos; os segundos, Cristãos implícitos ou

anônimos. Do ponto de vista antropológico, não há nenhuma diferença importante entre eles.

A diferença dá-se no campo cognitivo: “o cristão sabe o que é e o não cristão não o sabe; é

um cristão anônimo.”323

Nós preferimos a terminologia segundo a qual o homem é chamado um ‘cristão


anônimo, que de um lado tem de fato aceito por sua liberdade esta graça auto-
ofertada da parte de Deus através da fé, esperança, e amor; enquanto por outro lado,
ele ainda não é um cristão no nível social (por meio do batismo e da filiação à
Igreja), ou no sentido de ter conscientemente objetivado o Cristianismo para si
mesmo em sua mente (pela fé cristã explícita resultando da audição à explícita
mensagem cristã). Devemos colocar como segue: o ‘cristão anônimo’, no sentido
que damos ao termo, é o pagão depois do início da missão cristã, que vive no estado
da graça de Cristo, pela fé, esperança e amor, embora ele não tenha o conhecimento

320
Carlos Schickendantz. “Una relación entre Martin Heidegger y Karl Rahner. Una recepción y diferenciación
todavía por escribir”, p. 376.
321
Karl Rahner. Curso Fundamental da Fé: introdução ao conceito de Cristianismo (São Paulo: Edições
Paulinas, 1989), pp. 33 e 34.
322
Karl Rahner apud Faustino Teixeira.”Karl Rahner e as religiões”. In Pedro R. R. Oliveira e Cláudio Paul.
Karl Rahner em perspectiva (São Paulo: Loyola, 2004), p. 249.
323
J. Morales. “La teología de las religiones” (ST, vol. XXX, Sept.-Dic., 1998), p. 765.
135

explícito do fato de que sua vida está orientada para a graça salvadora de Jesus
Cristo324.

Apesar de Rahner conceder valor salvífico às religiões, isto só é possível em sua

subordinação ao Cristianismo, porque embora não o saibam, sua salvação ocorre através da

ação redentora de Cristo. As religiões, portanto, não têm status salvífico próprio. Sua

sensibilidade religiosa precisa ser reinterpretada pelas categorias religiosas cristãs. Contudo,

elas salvam assim mesmo, bastando ao adorador não cristão ser fiel ao mistério divino ao qual

aportou pelos meios de que social e culturalmente dispunha. Com razão ecoa a crítica de

Henri de Lubac quanto à perda de relevância da mensagem cristã: “se um cristianismo

implícito é suficiente para a salvação de quem não conhece outro, por que colocar-se em

busca de um cristianismo explícito?”325

J. Dupuis, em defesa de Rahner, afirma que este conceito de “cristão anônimo” não só

nega às religiões um status salvífico próprio, como também vê em seus adeptos uma

deficiência existencial implícita, porque o conteúdo temático das religiões não é levado em

conta, e é valorizado apenas em sua abertura ao mistério divino, o adorador não cristão fica

restrito a um estágio preliminar místico que lhe fornece apenas a condição de possibilidade do

conhecimento de Deus, cuja realização ocorre em outro lugar: no contexto sacramental da

Igreja Católica Romana. O Cristianismo anônimo, deste modo, permaneceria como realidade

fragmentária, incompleta e radicalmente mutilada, que alimenta em si dinâmicas que o

impulsionam a aderir ao Cristianismo explícito326.

H. Küng faz duras críticas à teoria do cristianismo anônimo de Rahner. Para ele a teoria

rahneriana trata-se de um “truque metodológico”327, que considera a religião cristã como a

324
Karl Rahner, Theological Investigations, Vol. 14 (London: Darton, Longman & Todd, 1976), p 283.
325
Apud Faustino Teixeira. “Karl Rahner e as religiões”, p. 255.
326
K. Rahner apud J. Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 205.
327
H. Küng. Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico (São Paulo: Edições Paulinas,
1999), p. 270.
136

única verdadeira, enquanto as demais são apenas estágios inferiores de religiosidade que

precisam se completados pela presença sacramental da igreja católica no mundo. De sorte que

permanece válido o velho axioma extra ecclesiam nula salus:

[a teoria de Rahner .] apenas uma nova interpretação do antigo dogma. A Igreja não
se refere mais como em Florença: a Santa Igreja Romana, mais propriamente,
interpretada corretamente, refere-se a todos os homens de boa vontade, que, sem
exceção, fazem parte da Igreja de algum modo. Mas não se estão introduzindo aqui,
alegadamente pela porta dos fundos, na Santa Igreja Romana, todo o gênero humano
de boa vontade [...], que não resta fora nenhum elemento que disponha de boa
vontade, queira ou não? Fora da Igreja não há salvação. A fórmula está certa como
nunca, porque todos se encontram dentro, de antemão, como cristãos não formais,
mas anônimos, ou, como se deveria exprimir para salvar a lógica: católicos romanos
anônimos328.

3.c.2. Jacques Dupuis

O livro mais famoso de Dupuis Rumo a uma teologia do pluralismo religioso criou

tanta polêmica no meio Católico Romano que ele teve que se explicar quanto ao que escreveu

e quanto ao que não escreveu, por causa da suspeita de heterodoxia. Pressionado, teve que

escrever um adendo, uma glosa em forma de artigo329. Por alguns trechos de suas obras, a

cúria romana foi levada a pensar que suas conclusões estariam eivadas de possíveis rupturas

com a ortodoxia, apesar de metodologicamente sua investigação estar correta.

De fato, o que Dupuis propõe como método é um triângulo hermenêutico: “o texto ou o

dado da fé, o contexto histórico e o intérprete hodierno”330. Sobre o contexto histórico, J.

Dupuis assevera que a teologia das religiões “deve ser vista como um novo modo de fazer

teologia: um novo método em uma situação de pluralismo religioso”331 , ou seja, requer a

satisfação daquilo que chamamos no capítulo I de “demanda empírica”. Quanto ao intérprete

hodierno, cabe-lhe fazer um síntese entre estes dois elementos constitutivos. Este é, portanto,

328
H. Küng, Ser cristão (Rio de Janeiro: Imago, 1976), p. 79.
329
J. Dupuis. “The truth will make you free. The theology of religious pluralism revisited (Louvain Studies, vol.
24, Fall, 1999), pp. 211-263.
330
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso (São Paulo: Paulinas, 1999), p. 32.
331
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, p. 36.
137

o projeto teológico de Dupuis. Um inclusivismo sintético bem parecido à proposta de A.

Yong, com exceção de que no caso de Dupuis os elementos textuais necessários à síntese não

sairão apenas das Escrituras.

Com efeito, a respeito ao texto ou o dado da fé, ele opta pelo método “genético” ou

“histórico evolutivo”, o qual se baseia nas Escrituras, mas também nas disposições finais do

concílio Vaticano II, que atribui também à Tradição e ao Magistério a qualidade de texto

fonte do Cristianismo. Isto faz com que o teólogo sistemático, mesmo ao proceder um estudo

exegético da cristologia do NT, tenha que estender seus estudos à cristologia da tradição pós-

bíblica dos Padres e do Magistério 332 . A intenção deste método, segundo Dupuis, visa a

impedir que a pluralidade das cristologias neotestamentárias sejam reduzidas a uma

diversidade amorfa e sem unidade. A reflexão cristológica pós-neotestamentária é, portanto,

um prolongamento canônico que ocorre sob o signo do ministério do Espírito, em resposta a

uma necessidade hermenêutica. Mas, sempre como “processo orgânico de desenvolvimento”,

ou seja, de forma evolutiva, em uma “substancial unidade de conteúdos”333 .

Através desta concepção Dupuis é levado a pensar a cristologia do NT como

fundamentalmente diacrônica. Ou seja, ela vai atingindo patamares mais elevados à medida

que a reflexão teológica progride, até culminar no prólogo joanino334. Este é o motivo por que

a exegese de Dupuis se ocupa unicamente em explorar teologicamente o Logos joanino para

fundamentar sua teologia das religiões. Nisto ele segue a tradição dos Padres Apologetas, cuja

teologia do Logos se desenvolveu dialogando com a cultura (filosofia) grega. Portanto, a

conclusão de Dupuis é de que “é o Verbo de Deus que salva, e não propriamente o Verbo-

feito-carne, isto é, Jesus Cristo” 335.

332
Ibid., pp. 14 e 15.
333
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, p. 22.
334
Ibid., p. 101.
335
Ibid., p. 274.
138

Neste ponto Dupuis cita A. Pieris336 e se aproxima também de Panikkar e Samartha,

aparentemente sem chegar à pretensão de ver no Logos joânico como fundamento de outras

manifestações do Logos na história asiática religiosa Budha e Krishna (Panikkar, Amaladoss).

Se não chega a tanto como seus colegas asiáticos, pelo menos vê “no prólogo de João uma

presença universal do Logos antes da encarnação em Jesus Cristo” 337 , que não pode ser

exaurida na figura histórica de Jesus Cristo338. Dupuis logo se apressa em dizer que não há

distinção entre o Verbo-a-ser-encarnado e o Verbo-encarnado339, para então se encontrar na

desconfortável posição de negar a distinção já tendo-a feito. Ora, Dupuis prefere ser

contraditório a ser nestoriano, e se tornar assim condenável pelas declarações conciliares de

Caldedônia340.

A diacronia defendida por Dupuis está correta. De fato a cristologia vai no NT num

crescendo, das cristologias de baixo para as do alto. Mas a afirmação de que o Logos é o ápice

cristológico do evangelho de João requer melhor justificação textual, contudo, ao que parece,

Dupuis já está satisfeito com a autoridade dos Pais e do Magistério. Na opinião de Dupuis a

mudança de uma cristologia funcional para uma cristologia ontológica ocorre ainda nas

páginas do NT341.

Esta teoria não resiste a uma análise mais detida do NT. A cristologia joanina é dialética

e tensional. Em João não há nenhuma ontologização do Logos, pois o cerne do prólogo

joanino é o verso 14: “e o verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos sua glória,
336
A. Pieris, An Asian Theology of Liberation (New York: Orbis Books, 1988); Fire and Water: Basic Issues in
Asian Buddhism and Christianity (New York: Orbis Books, 1996).
337
J. Dupuis. Rumo a uma teologia do pluralismo religios.,p. 274.
338
Diz Dupuis, que embora reconhecendo a excepcionalidade do homem Jesus:“o Verbo divino permanece além
do que possa manifestar e revelar o ser humano Jesus. [...] ainda que uma vez recuperada sua glória, o Jesus
Cristo ressurgido não substitui o Pai; tampouco o seu ser humano glorificado exaure o Verbo, nunca totalmente
contido numa manifestação histórica, qualquer que seja”. (Idem, p.300 sg.).
339
Ibid., idem.
340
A posição nestoriana não aceita dizer que o Verbo de Deus nasceu de Maria ou que o Verbo de Deus morreu
na cruz. No fundo, a posição nestoriana introduz uma separação entre o homem Jesus e o Verbo de Deus. Mas, a
decisão conciliar de Calcedônia declara: “a natureza humana e a natureza divina se uniram numa pessoa, sem
confusão, sem mudança, sem divisão e sem separação”.
341
J. Dupuis. Introdução à cristologia (São Paulo: Loyola, 1999), p. 101e 102.
139

glória de Filho único junto ao Pai”. Não é por acaso que o verbo habitou entre nós mantendo

sua glória junto ao Pai. Ele está no tempo e fora do tempo simultaneamente. Ou seja, ele está

lá e cá no mesmo lapso temporal, paradoxalmente, sendo um único e o mesmo aqui ou ali. E

não, como ensinam estes teólogos, como entes diferentes, um maior: o Logos, e um menor: o

Jesus histórico, que participa de maneira parcial da natureza do Logos342.

Há um uso constante deste recurso estilístico em João. Nos lábios de Jesus, o verbo eimi

(ser) aparece no presente do indicativo mesmo quando a referência temporal esteja no

passado: “antes que Abraão existisse eu sou” (Jo 8: 57); ou, então, no futuro: “[e vos levarei

comigo,] para que onde estou estejais vós também” (Jo 14: 3). Nisto a teologia joanina é

coerente com o conceito de reino de Deus dos sinóticos, onde também aparece esta tensão

entre o já e o ainda não. Não havendo, portanto, nenhuma alteração importante entre as fontes,

exceto o fato de que a referência das primeiras é o reino de Deus e a da segunda é a pessoa de

Cristo. A funcionalidade está presente em ambas, a saber, demonstrar uma realidade espiritual

atuante no contrapelo da história, mas não fora dela.

Portanto, abstrair o Logos joanino da realidade temporal é uma operação infiel à

teologia joânica. Uma ontologização do Logos é algo estranho ao pensamento semítico do

qual compartilha João, não sendo seu objetivo outro além de demonstrar que a ação divina no

contexto humano realiza-se na pessoa de Jesus, tal como se realizou no passado na

maravilhosa libertação de Israel do jugo da servidão egípcio. Com a diferença de que no

342
A teoria platônica da participação não pode ser encontrada no evangelho de João, nem aí ou qualquer outro
lugar. Não se trata da realidade do Logos e sua sombra humana, Jesus Cristo, uma realidade passageira ou
temporária, cuja existência é derivativa e não essencial. Jesus Cristo é o Logos no tempo. Ele, o Logos, não está
no topos uranos tendo uma sombra projetada na terra, Jesus de Nazaré. Ele está no céu junto ao Pai e está na
terra, perto de seus discípulos. Ele é onipresente, embora sua divindade esteja oculta na humanidade. Crer na
doutrina da participação nos torna Docetistas, doutrina condenada já no primeiro século e que teve a condenação
ratificada no concílio de Nicéia.
140

contexto cristão esta ação não é mais pontual e isolada343. É uma presença constante na vida

da Igreja, seja pelo reino de Deus, seja por meio do Logos, ou, seja pelo Espírito Santo, o

Consolador.

O que se pode dizer como conclusão é que, lamentavelmente, a síntese pretendida por

Dupuis falhou. Ficou a dever ao texto, o dado da fé. Efetivamente, foram contemplados

apenas os outros dois aspectos de sua metodologia: a situação histórica e a interpretação

hodierna. Ele comete o erro que caracteriza os pluralistas como um todo: a subsunção à

pressão dos tempos, desprezando ou descurando do texto bíblico. Em seu caso ainda houve a

pressão eclesiástica que o impediu de sequer ser coerente com seu próprio pensamento, pois

ao final não se sabe realmente o que pensou Dupuis, haja vista a multidão de adendos e glosas

agregados a seus textos.

3.c.3. Edward Schillebeeckx

Teólogo católico romano, dominicano, nascido na Bélgica em 1914 e faleceu em 2009,

na Holanda. Estudou em Paris com diversos teólogos pré-conciliares, tais como Chenu, Yves

Congar, Henri de Lubac, De Petters, entre outros. Depois de ter sido docente em Louvain

terminou sua carreira no seminário de Nijmegen, na Holanda. Com K. Rahner e H. Küng,

Schillebeeckx teve o nome ligado ao concílio Vaticano II, onde atuou, assim como os demais,

como teólogo consultor, e foi influenciado por seus resultados344. Dedicou boa parte de suas

obras a dar continuidade às reflexões teológicas inauguradas pelo concílio que ajudou a

construir, sempre em diálogo com o mundo e com a teologia secularizada, por isso em muitas

situações durante sua vida atritou com a hierarquia romana345.

343
Ainda que se tenha consciência de que ela se repete todas as vezes que o povo eleito clama debaixo do jugo
da opressão, o primeiro ato de libertação de Deus permanece como arquétipo que explica os demais e do qual os
demais tiram seu sentido.
344
Erik Borgman. Edward Schillebeeckx. A theologian in his history (London: Continuum, 2003), p. 2.
345
Existem alguns exemplos: sua decisiva colaboração para a formação do Conselho Pastoral Holandês, cujos
membros eram eleitos e podiam ser leigos, e que foi vetado pela cúria romana, por não admitir ingerência leiga
141

Sua obra pode ser dividida em antes e depois de Vaticano II. Antes muito próximo de

uma teologia neotomista e conservadora (até o início da década de 60), depois, obviamente,

enfatizando muito mais a relação da Igreja e do Evangelho com o mundo346. Sua teologia

evoluiu buscando o diálogo com o mundo secularizado, o que fez adotando uma abordagem

metodológica que o pôs em rota de colisão com a Sé romana.

Schillebeeckx, de quem se afirma tenha adotado uma linha investigativa

“metadogmática”347, assume uma metodologia muito próxima a de H. Küng por perceber três

tipos de exegese no labor teológico: a exegese científica, a teologia e a dogmática. A primeira

ocupa-se apenas da manifestação da história da salvação naquele tempo concreto, ou seja, que

pode unicamente “constatar o que e de que maneira alguns homens concretos falaram de Deus

e de que maneira este falar está codeterminado por sua própria cultura”348. A segunda trata da

“ação salvífica de Deus em si mesma, por meio de sua manifestação no Cristianismo

primitivo” 349 . A terceira diz respeito a uma “atualização com respeito ao presente” 350 .

Concretamente, quando Schillebeeckx operacionaliza sua hermenêutica, na verdade se vê um

diálogo entre a primeira e a última exegese. Segundo Schillebeeckx, há uma necessidade de se

recuperar as cristologias sinóticas, as quais têm muito mais em comum com o homem

moderno do que as cristologias conciliares351, isto não significando haver deixado de defender

as declarações conciliares e magisteriais.

na administração eclesiástica; a publicação do Novo Catecismo Holandês, a qual não recebeu o imprimatur; a
publicação do livro Jesus: uma experiência em cristologia, considerado inadequado pela Congregação para
doutrina da fé, etc. Cf. Peter Hebblethwaite. The new inquisition? The case of Edward Schillebeeckx and Hans
Küng, New York: Harper Row, 1980.
346
Franco Brambilla. Edward Schillebeeckx (São Paulo: Loyola, 2006), p. 49.
347
Rosino Gibellini, A teologia do século XX, p. 334.
348
E. Schillebeeckx apud Andrés T. Queiruga. Repensar a cristologia, sondagens para um novo paradigma (São
Paulo: Paulinas, 1999), p. 77.
349
A. T. Queiruga. Repensar a teologia, sondagens para um novo paradigma, p. 77.
350
A. T. Queiruga. Repensar a teologia, sondagens para um novo paradigma, p. 77.
351
E. Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus (São Paulo: Paulus, 1994), pp. 46 a 58.
142

Resumindo, o que Schillebeeckx faz é criar uma metodologia baseada numa

hermenêutica quebrada, em que a relação entre a tradição e a modernidade é dialética no

espírito do teólogo 352 . Na prática, uma teologia bifronte que faz com que cada afirmação

especulativa tenha que ser compensada por outra, fiel reprodutora do pensamento da

Tradição, malgrado, em não poucas ocasiões, estejam sendo postas lado a lado ideias

contraditórias. Pode-se citar como exemplo o que segue:

É a primeira vez que manifesto minha reflexão sobre a Trindade tão abertamente.
Para mim, a Trindade é o modo de Deus ser pessoa. Admito todas as exigências do
dogma sem correr o risco de falar de três pessoas, de uma espécie de família, e, de
fato, de um triteísmo, que é bastante popular na fé cristã353.

A verdade é que o teólogo flamengo está às turras com o pensamento dogmático

católico que lhe antecede. Sua intenção ao sustentar afirmações contraditórias é manter as

aparências e safar-se de sanções curiais, tal como ocorrera a seu colega J. Dupuis. Com efeito,

Schillebeeckx não crê no Espírito Santo354. Também não crê que Jesus seja Deus355 e menos

que tenha ressuscitado 356 . Sua cristologia é de baixo e completamente secularizada, sua

teologia das religiões embasada numa eclesiologia ampliada e todo-abarcante, que na

realidade elide o elemento sacramental: “o mundo, agora definido de modo mais específico e

concreto, é ele mesmo mediador da presença de Deus”357.

352
A. T. Queiruga. Repensar a teologia, sondagens para um novo paradigma, p. 127.
353
Ibid., idem.
354
“Aceito plenamente o credo, porém na profissão de fé, não estão as três pessoas divinas. Creio em Deus
Onipotente, em Jesus Cristo, o amado do Pai, filho de Deus por excelência; creio no Espírito, que para mim é o
verdadeiro problema. Na Bíblia, O Espírito é um dom, não uma terceira pessoa, é o próprio modo de ser de Deus
[...]. Confesso a Trindade, mas estas especulações sobre as três pessoas não me dizem nada [...]. (Schillebeeckx
apud Queiruga. Repensar a cristologia, sondagens para um novo paradigma, p. 150).
355
Schillebeeckx considera ridícula a ideia “de um homem divino, isto é, um Deus terrestre disfarçado de
homem” (E. Schillebeeckx, Jesús, historia de un viviente, p. 27); em outro lugar diz que “em sua humanidade
Jesus é tão intimamente algo que vem do Pai que precisamente por isso é Filho de Deus (logo, não enquanto
Verbo)” (Ibid., p. 697).
356
Sobre a ressurreição Schillebeeckx se expressa de forma ambígua e pusilânime: “algo deve ter ocorrido de
modo a ter produzido a conversão dos discípulos” (Ibid., p. 400).
357
Daniel S. Thompson. The language of dissent: Edward Schillebeeckx and the crisis of authority in the
Catholic Church (Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2003), p. 89.
143

Extra mundum nula salus, expressão cunhada por Schillebeeckx, depois transformada

em lema do pluralismo, quer dizer então que “a presença criativa e salvífica de Deus é

mediada pelos seres humanos” em sua experiência de Deus. Ainda que se arriscando a

psicologizar esta experiência, para ele ela é a última palavra para sua validação, não havendo

nada fora dela que a recomende, exceto aquilo que possui de mais fundamental: o senso de

finitude criatural. Neste lastro ele procura fazer uma fenomenologia da experiência religiosa a

partir da manifestação de Jesus Cristo: Deus como Abba, a entrega total à vontade divina – a

páscoa. Estes são os elementos fundamentais para entender a religião, ou seja, por meio da

relação de Jesus com Deus. A experiência religiosa de Jesus, entretanto, não é normativa nem

serve para aferir a experiência religiosa das outras religiões. Não podemos ter uma visão total

da divindade por meio de Jesus:

Jesus não somente revela a Deus, mas também o oculta, visto que apareceu entre nós
como criatura humana e não em forma divina. Como homem é um ser contingente,
histórico, que de modo algum pode representar a plenitude de Deus [...], a não ser se
negarmos a realidade de sua autêntica humanidade.

Isto impede toda a pretensão exclusivista: quem não leva a sério o fato do existir
concreto e particular de Jesus, precisamente em sua qualidade de homem
condicionado geograficamente, e marcado culturalmente, e por isto mesmo limitado,
faz de Jesus uma emanação, ou um efeito divino necessário, com a consequência de
que todas as outras religiões desaparecessem no nada358.

O que nos impede então de classificar Schillebeeckx como pluralista, haja vista tantos

indícios em seus escritos de ser este seu direcionamento. Porque embora abra a possibilidade

da experiência de Deus ocorrer fora dos limites das igrejas cristãs e mesmo entre aqueles que

não professam nenhuma religião, ele nunca abandona o ponto as referências cristãs. E talvez

seu próprio projeto teológico não tenha contribuído para que isto ocorresse, a saber, falar ao

homem secularizado europeu e não aos adeptos das outras religiões.

358
E. Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus,, p. 254.
144

3.d. Conclusão

Deste grupo é mais difícil fazer uma síntese porque de todos é o que se mostra mais

variegado, sendo composto por evangélicos e católicos, e entre estes, por três abordagens, do

ponto de vista metodológico, completamente diferentes. Karl Rahner trabalha no campo da

teologia fundamental, seu propósito não é propriamente construir uma teologia das religiões,

mas fornecer possibilidades para seu nascimento a partir de uma atualização das bases

filosóficas necessárias à operação. Sua hermenêutica é mais sólida do que a dos demais, mas

ele avança pouco em relação ao que havia antes dele porque enfatiza o atemático, o apofático

e não o conteúdo das religiões. Como homem do Vaticano II, a palavra aggiornamento define

bem seu projeto. Jacques Dupuis leva em si as marcas da incoerência porque não foi capaz de

fazer chegar seu pensamento a uma conclusão fiel a suas ideias em função das pressões

eclesiais que sofreu. Edward Schillebeeckx também não conseguiu ser consistente, mas tem a

seu favor uma tentativa de construção de uma fenomenologia da experiência religiosa cristã.

Tal como Rahner, em termos de teologia das religiões, tratou de apenas lançar os alicerces.

Portanto, do ponto de vista do diálogo inter-religioso, todos ficaram a dever. Da perspectiva

de uma nova formulação do Catolicismo romano em ambiente plurirreligioso; K. Rahner, a

meu ver, fez a maior contribuição.


145

CAPÍTULO IV

Pluralismo

4.a. Introdução

O Pluralismo ou Pan-ecumenismo dos três grupos considerados é o mais complexo e

mais congestionado: o número de pensadores que são classificados como pluralistas é igual ao

das duas outras tipologias somadas. Apesar das muitas idiossincrasias quem marcam

singularmente cada um dos componentes deste grupo, eles podem ser subdivididos em duas

grandes vertentes: (a) os pluralistas sintéticos, que procuram fazer uma síntese religiosa da

contemporaneidade, adotando para isto geralmente, elementos do Cristianismo e da Filosofia

Ocidental. Fazendo uso de um neologismo, pode-se dizer que no que respeita oikumene

religiosa, ao contrário do que pretendem, o resultado de sua intervenção é um monólogo. (b)

Os pluralistas particularistas, que concordam com a necessidade do diálogo religioso, mas

sem síntese, cada um nos limites de sua respectiva tradição religiosa. Ou seja, o diálogo existe

e não é um empreendimento transrreligioso, mas inter-religioso. As religiões devem se

encontrar no espaço público externo ao espaço religioso de cada uma, para buscar pontos de

contato, cada um a partir de sua própria tradição e sem abrir mão de sua herança religiosa.

Todos estes pluralismos valorizam a vontade salvífica universal de Deus, em detrimento

da singularidade e exclusividade cristã como agenciadora humana desta salvação. O

Cristianismo neste contexto é apenas uma entre tantas manifestações da experiência com o

sagrado, perdendo seus privilégios. Os pluralistas sintéticos pensam que isto deve ocorrer por

que Deus não deixaria a maior parte da humanidade fora do espaço salvífico, pela única culpa,

se assim o pudermos chamar, de terem nascido num ambiente cultural não cristão. Os

particularistas, por sua vez, pensam que não se pode limitar a ação do Espírito Santo ao
146

âmbito cristão359, e tomam como base da liberdade do Espírito a clássica passagem de João

3:8360. Portanto, Sejam de uma ou de outra vertente, todos enfatizam o terceiro ponto da tríade

hermenêutica: o dado empírico do ambiente multirreligioso. Apesar da razoabilidade de que

seu discurso se reveste, o grande empecilho para o sucesso de suas disposições na persuasão

dos que não pensam como eles são as declarações exclusivistas da própria Escritura.

4.b. Pluralismo Particularista

A solução deste problema para os particularistas é relativamente complexa, pois

argumentam baseados numa espécie de agnosticismo inter-religioso. Para eles era natural que

este exclusivismo ocorresse na Igreja dos primeiros tempos, porque os cristãos daquela época

não viviam num mundo pós-moderno, embora tivessem experiência com o mundo

multirreligioso greco-romano, com os milhares de cultos coexistentes em seu tempo.

Contudo, o Cristianismo só pode enfrentar com sucesso as transformações e mudanças pelas

quais o mundo antigo passara com a queda de Roma por causa da estabilidade ideológica

conferida pelas Escrituras. A igreja podia se remeter a estes modelos éticos e metafísicos

externos e fixos, mantendo-se inalterada diante da marcha dos tempos e dos costumes. E é

exatamente esta qualidade que vem sendo deplorada pelos pluralistas particularistas, com a

sugestão de que adotemos valores imanentes.

A influência de pensadores pós-modernos, como por exemplo, L. Wittgenstein, gerou

um insuperável agnosticismo em relação ao ‘outro’ religioso. Os jogos de linguagem nos

quais está imersa a vida humana são epistemologicamente intransponíveis. Como aventado

alhures, eles são sistemas completos e fechados e semanticamente autorreferidos, daí não

haver possibilidade de uma abordagem externa que produza uma síntese compatibilizadora

359
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religions (London: SCM Press,
2010), p. 146.
360
“O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não saber de onde vem nem para onde vai; assim é todo o
que é nascido do Espírito.”
147

das diversas religiões. Eles são mutuamente incompreensíveis no sentido mais profundo da

palavra. A base do que dizem os utentes das linguagens religiosas são “formas de vida”, que

resultam de ‘experiências linguísticas’ diferentes. Uma experiência linguística para

Wittgenstein tem um sentido bem mais amplo e profundo do que mera troca de informação

por meio de signos linguísticos escritos ou orais, envolve o entorno dos utentes da linguagem,

de onde também lhe vem o significado. A comunicação existe porque há um complicado

contexto em que estão relacionadas ações sociais, linguísticas e extralinguísticas 361 . A

linguagem sem estas ações perde seu quadro referencial Em suma, assim como a linguagem,

as religiões são “jogos de linguagem” incompatíveis.

Seguindo Wittgenstein um pouco mais adiante, chega a ser difícil até mesmo fazer

comparações entre experiências religiosas aparentemente semelhantes, mas pertencentes a

religiões diferentes. Elas são “semelhanças de família”, isto é, tal como os membros de uma

mesma família são parecidos de forma desigual por meio de aspectos morfológicos similares e

não coincidentes para a maioria: um tipo de nariz, de boca, cor de cabelo, etc. Assim também

as religiões podem estar aparentadas somente se consideradas em aspectos isolados. No

quadro geral o que existe é uma diversidade irredutível362.

Considere-se um dos mais universais conceitos religiosos: salvação363. Salvação para os

cristãos significa a ressurreição da carne, novos céus e nova terra onde habita a justiça e uma

comunhão mais estreita com o Criador, ou seja, a beatitude. O caminho para ela é Jesus

Cristo, esperança da glória. Para um budista salvação é nirvana, libertação da roda da

samsara. É anatman (não eu), uma imersão na imensidão do cosmo, com consequente perda

de subjetividade e a extinção da dor e do desejo, origem de toda infelicidade humana; numa

361
L. Wittgenstein. Philosophical Investigations / Philosophische Untersuchungen (G. E. M. Anscombe & R.
Rhees (eds.), U. S. A., The Macmillan company, 1969), parágrafo: 205.
362
L. Wittgenstein. Philosophical Investigations / Philosophische Untersuchungen, parágrafo 67; Cf. Zettel, (G.
E. M. Anscombe e G. H. von Wright (ogs.), Lisboa, Edições 70, 2000), parágrafo 646.
363
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religions, pp. 187 e 188.
148

palavra, a serenidade. Para um hindu, salvação é moksha, que na tradição bahkti significa sair

da lei do karma, ficar fora do constante ciclo de nascimento e morte e o mergulho em

Brahman, do pós-morte a suprema deidade, ou seja, o repouso. “E isto pode ser obtido por

três caminhos (margas): (1) o caminho do conhecimento (jnanamarga), (2) o caminho da

devoção (bhaktimarga), (3) o caminho da ação (karmamarga)”364.

Em suma, nada pode ser mais diferente do que conceitos teológicos. Eles carregam uma

imensa carga semiótica de séculos de discussões e reflexões. Ou seja, não podemos deixar de

notar certo agnosticismo nesta posição, logo tratado de ser atenuado pelo benéfico da dúvida

proveniente do argumento escatológico. Só saberemos ou conheceremos a verdade em sua

plenitude no final dos tempos.

Quando introduzíamos este tópico pluralista um pouco desta modalidade mais

sofisticada de Pluralismo, que consegue evitar todas as contenções colocadas em relação aos

pluralistas sintéticos. Como veremos mais adiante o Pluralismo particularista merece outras.

Malgrado as grandes diferenças existentes entre os partidários deste grupo, podem ser

destacados alguns pontos em comum:

1. Cada fé é única. A alteridade é enfatizada em vez de a similaridade.


Consequentemente, os elementos comuns da experiência religiosa ou das doutrinas
são considerados superficiais.

2. Só é possível falar de experiência religiosa a partir de uma tradição específica;


não pode existir uma interpretação pluralista.

3. O Espírito Santo deve estar trabalhando em outras religiões, merecendo, portanto,


o respeito e a dignidade.

4. Não existe nenhum poder salvífico nas outras religiões, não obstante elas estão
incluídas nos planos de Deus para a humanidade, mas por maneiras que nós não
conhecemos.

5. Nós precisamos trabalhar [missiologia] a partir de uma posição baseada na pós-


modernidade e na cosmovisão pós-liberal.

364
Chad Meister. Philosophy of Religion (Abingdon,UK/ New York: Routledge, 2006), p. 25.
149

6. As doutrinas ortodoxas sobre Cristo e sobre a Trindade são os pontos básicos a


partir dos quais deverá ocorrer nossa abordagem das outras religiões.365

O Conselho Mundial das Igrejas (WCC – World Council of Churches), fundado em

1948, adota integralmente estes pontos. Não foi uma decisão fácil. Pelo contrário, uma

caminhada relutante e paulatina. Primeiro, os delegados aceitaram fazer um addendum na

declaração das políticas sobre outras religiões em 1971. Depois de uma década de difíceis

controvérsias o WCC aceitou incluir nos documentos conciliares, especificamente no

Guidelines on Dialogue, a declaração teológica: “nós sentimos poder assegurar aos nossos

parceiros de diálogo que nós não nos aproximamos como manipuladores, mas como

peregrinos companheiros”366.

O ceticismo particularista preserva praticamente todos os pontos doutrinários

fundamentais do Cristianismo, como pode ser percebido na lista apresentada, exceto um: a

obrigação de cumprir o mandado de evangelizar o mundo. Porque nesta modalidade

missiológica o ímpeto missionário se enfraquece e se seculariza, dado que o objetivo da

pregação não é mais um reino de Deus transcendente que invade a realidade humana desde

fora, a partir da realidade divina, e sim um reino de Deus imanente que cresce no meio de nós,

à medida que acudimos ao pobre e ao necessitado, libertamos o oprimido e preservamos o

planeta. Jüngen Moltmann é um exemplo de defensor deste tipo de missiologia.

4.b.1. Jürgen Moltmann367

Ao lado de W. Pannenberg, J. Moltmann é atualmente a figura mais representativa da

teologia Protestante depois do desaparecimento de seus grandes nomes (K. Barth, P. Tillich,

D. Bonhoeffer e O. Cullmann). “Marcado pela tradição barthiana, ele insiste em abandonar

365
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and the theology of religions, pp. 146-147.
366
Apud Stanley Samartha. “The Cross And the Rainbow – Christ in a Multireligious Culture” in John Hick and
Paul Knitter (eds.) The Myth of Christian Uniqueness, p. 70.
367
O tratamento dado às ideias de Moltmann neste lugar terá menos espaço do que julgaríamos adequado, isto
devido ao fato de muito de sua argumentação já ter sido usado na introdução aos pluralistas particularistas.
150

toda a ‘teologia natural’ e observar Deus apenas do ponto de vista da Heilsgeschichte”368

(História da salvação). Seguindo ainda as pegadas da teologia dialética de Barth e Brunner, o

modelo tipológico utilizado por Moltmann para classificar as religiões é dúplice: (a) a religião

bíblica se caracteriza por ser uma religião de promessa e (b) a Cananita e Greco-romana por

serem religiões de epifania. São dois tipos de religião opostos e inconciliáveis, não admitindo

nenhum tipo de síntese369.

Por outro lado, embora o ponto de partida da teologia das religiões de Moltmann

mantenha o assim chamado escândalo da particularidade, ele é igualmente incapaz de negar o

fato de que vivemos num mundo multirreligioso e que a relação entre as religiões não pode

mais ser a mesma de um século atrás. O mundo globalizado impõe a todos os habitantes do

planeta a condição de conviventes e não pode haver convivência sem diálogo370. Portanto, o

nome desta modalidade de pluralismo adotado por Moltmann é um pluralismo particularista

pelo motivo de manter no campo religioso a tensão entre estes dois polos antagônicos: a

particularidade e a pluralidade.

Se bem não possa propriamente ser chamado de um teólogo das religiões, posto que

seus interesses teológicos não se dirigem exatamente para este debate e só podemos conhecer

a opinião de Moltmann sobre o assunto de modo indireto e pontual. O autor de Teologia da

Esperança dedica infelizmente apenas capítulos de algumas de suas obras ao tema. Trata-se

do tópico Cristianismo e as religiões do capítulo “a Igreja e o reino de Deus” do livro A

igreja, força do Espírito, já citado, e do capítulo “a teologia no diálogo inter-religioso”, da

obra Experiências de reflexão teológica 371 . Além destes capítulos há ainda um artigo de

368
Per Lonning. Is Christ a Christian? On interreligious dialogue and intra-religious horizon (Götingen:
Vandenhoeck and Ruprecht, 2002), p. 132.
369
Jüngen Moltmann. Teologia da Esperança. Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã (São Paulo: Teológica/Loyola, 2005), p. 62.
370
Jüngen Moltmann. La iglesia fuerza del Espíritu ( Salamanca: Ediciones Sígueme, 1978), p. 186.
371
Jürgen Moltmann. Experiences in theology. Ways and forms of Christian Theology (Philadelphia: Fortress
Press, 1980).
151

Moltmann, cuja aparição ocorreu na coletânea já citada, editada por G. D’Costa, The myth of

Christian uniqueness reconsidered 372 : “É a teologia pluralista útil para o diálogo entre as

religiões mundiais?”, onde dirige suas críticas mais veemente ao relativismo decorrente das

noções dos pluralistas citados. Resumindo, apesar de exígua, sua contribuição é coerente e

decisiva, especialmente quando critica J. Hick e P. Knitter; a ela recorremos em vários pontos

de nossa própria avaliação.

Neste artigo Moltmann aponta-lhes três principais problemas: (a) a questão da verdade é

deslocada de sua centralidade, e isto não pode ocorrer se não o debate perde completamente a

relevância; (b) o diálogo inter-religioso não pode ser conduzido como se fosse um critério

metodológico: o diálogo inter-religioso é resultado e não ponto de partida; e (c) conforme se

observa na modalidade de Hick e Knitter, uma teologia das religiões pluralista pode ser tão

imperialista quanto uma teologia das religiões cristológica.

Quanto à questão da verdade, é bem óbvio que nada se ganha elidindo-a em favor de um

relativismo baseado na filosofia de Kant. Isto não é bom nem para Cristãos nem para não

Cristãos. Para Cristãos não é útil porque o diálogo que daí decorre será ao preço de sua

própria fé; para não Cristãos, o secularismo subjacente a estas ideias também os acaba

atingindo. Por isso, Moltmann conclui, “os representantes das outras religiões não querem

conversar com os modernos relativistas religiosos. Eles estão interessados em Cristãos e

Judeus convictos [...]”373. Porque o diálogo inter-religioso ocorre não pela relativização do

discurso dos debatedores, mas à medida que todos submetem seu próprio discurso à crítica do

outro e evitando a pressuposição de que sairão do diálogo assim como nele entraram, sem

terem aprendido nada uns com os outros374. Outrossim, o diálogo inter-religioso não é sobre

nenhum dos debatedores mas sobre um terceiro assunto: a paz entre os seres humanos e entre

372
“Is pluralistic theology useful for the dialogue of world religions?”
373
Jürgen Moltmann. Experiences in theology. Ways and forms of Christian Theology, p. 19.
374
Jürgen Moltamann. “Is pluralistic theology useful for the dialogue of world religions”, p. 153.
152

estes e o planeta, a luta para que não haja opressão do homem pelo homem e nem da natureza

pelo homem375.

De acordo com Moltmann, o papel salvífico das religiões decorre primeiro do fato de

todos os homens serem capazes de se voltar para o transcendente, de que é prova o grande

número de religiões existente no mundo. Por outro lado, a salvação nas religiões pode ser

pensada inclusivamente, que Jesus morreu por todos, reconciliando consigo o mundo inteiro.

Esta questão não fica muito clara em Moltmann nem vê necessidade em clarificá-la, estando

completamente dominado por razões pragmáticas, tendo em vista a preservação da vida e do

planeta (o que nos leva a pensar que seu conceito de salvação é imanente): “De fato, as

religiões, para serem aceitas no mundo, isto é, para se tornarem religiões mundiais, precisam

promover e garantir a segurança e o bem estar do ser humano, que depende da sobrevivência

da terra e de outras criaturas”376.

O diálogo inter-religioso não deve ser orientando, portanto, por um pensamento de

consumação fatalista, mas por um “enfoque e valorações fundadas na promessa peculiar feita

ao Cristianismo e orientados ao futuro universal da humanidade no reino de Deus”377, sob

cujo guarda-chuva todas as religiões devem ser incluídas378. Neste contexto o papel da missão

cristã muda completamente de objetivo. Já não é mais uma missão quantitativa, voltada para a

implantação e o crescimento de igrejas nos campos missionários. Este novo papel “consiste

em contagiar os homens, sejam de que religião forem, com o espírito da esperança, do amor e
379
da responsabilidade para com o mundo” . Tendo abandonado a concepção de verdade

absoluta o novo papel do Cristianismo é o de “catalisador” religioso do mundo:

375
Jüngen Moltmann. Experiences in theology, p. 20.
376
Jüngen Moltmann. Experiences in theology, p. 21.
377
Jüngen Moltmann. La iglesia fuerza del Espíritu, p. 185.
378
Jüngen Moltmann. The coming of God: Christian eschatology (Minneapolis: Augsburg Fortress Press, 1996),
p. 250-255.
379
Idem, La iglesia fuerza del Espíritu, p. 188.
153

A simples presença dos Cristãos em ambientes que possuem outras crenças


religiosas provoca estes efeitos, à medida que os Cristãos vivem, pensam e atuam de
modo diferente. Isto pode ser chamado de um contágio indireto de outras religiões
ocasionado por ideias, valores e princípios cristãos. Se for verdade que as religiões
hindus têm uma mentalidade ahistórica, a experiência da realidade como história que
lhes apresentam os cristãos transformará sua imagem de mundo380.

Isto explica o entusiasmo de Moltmann acerca da aproximação teológica em relação ao

Cristianismo que Masao Abe empreendeu a partir do Budismo. O budólogo japonês

demonstra que a ideia de kenosis presente no NT (Fp 2: 5-8) e estendida ao Criador por

Moltmann381 pode ser aproximada da de sunyata do Budismo Zen. Ou seja, a noção de amor

de Deus ao este criar o mundo, entendida como uma autolimitação em face da necessária

adoção de uma imanência em relação ao mundo pode ser aproximada de uma autonegação, de

uma absoluta negatividade presente na noção do divino nishida382. Esta concepção de Deus

também aparece no Judaísmo, especificamente na tradição rabínica, que a criação do mundo

tenha de alguma sorte limitado a Deus:

Mas, ainda que este mundo não agrade a Deus, ele não pode mais destruí-lo, por três
razões: porque depois de haver começado a criar o mundo sob o atributo da
severidade (expresso pelo nome Elohim em Gênesis 1), depois decidiu acrescentar o
atributo da misericórdia (expresso pelo nome Jhwh, em Gênesis 2), como afirma
Rashi sobre Gn. 1: 1; porque no pacto com Noé Ele prometeu não mandar outro
dilúvio (Gn. 9: 11); porque Ele é um Deus mãe, além de ser Deus pai, (Is 46: 3; 49:
383
15; 66: 13; Os. 11: 1 – 4) .

Este exemplo parece resumir o projeto eclesiológico de Moltmann para os novos tempos

que vivemos: que cada religião a partir de suas próprias tradições trabalhe para se aproximar

das demais, buscando fundamentos comuns. O espírito contemporâneo não é mais disjuntivo

como no passado, mas conjuntivo. Ele encontra razões para sustentá-lo até mesmo quando

estuda a Trindade, usando uma espécie de teomorfismo, que aprendera com K. Barth:
380
Jürgen Moltmann, La iglesia, fuerza del Espíritu, p. 195.
381
Jürgen Moltmann. God in creation. A new theology of creation and the Spirit of God (San Francisco: Harper
and Row Publishers, 1985).
382
Hisazaku Inagaki e Nelson Jennigs. Philosophical theology and East-West dialogue (Amsterdam: Editions
Rodopi B. V., 2000), p. 39.
383
Paolo de Benedetti. Quale Dio? Una domanda dalla storia (Brescia: Morcelliana, 2004), p. 10.
154

A unidade do Deus triuno não é mais vista num aspecto de divina homogeneidade
nem como divina identidade, mas como eterna perichoresis do Pai, do Filho e do
Espírito [...]. As ideias monárquicas, hierárquicas e patriarcais, usadas para legitimar
o conceito de Deus estão, portanto, tornando-se absoletas. Comunidade,
companheirismo, é a natureza e o propósito do Deus triuno384.

Moltmann conclui fazendo uma aplicação política, mas que pode ser estendida à

sociedade multicultural e multirreligiosa da atualidade:

Deus é uma comunidade de Pai, Filho e Espírito, cuja unidade é constituída pelo
mútuo habitar e recíproca interpreta. Assim, encontramos o reflexo mundano desta
divina sociedade, não numa autocracia de um governante solitário, mas na
comunidade democrática dos povos livres.

4.c. Pluralistas sintéticos

Os recursos hermenêuticos de que se valem os pluralistas sintéticos para invalidar o

Exclusivismo bíblico, como é de se esperar, são mais perigosos. Contam basicamente com

quatro argumentos: (A) o esvaziamento do conceito de verdade; (B) o esvaziamento de

conceitos peculiares à Escritura, tais como, pecado, revelação e salvação; (C) o esvaziamento

da relevância salvífica das instituições religiosas; (D) o esvaziamento da função salvífica do

Jesus histórico.

(A) A corrosão gradual e constante do conceito de ‘verdade’ no discurso teológico

cristão remonta ao século XIX. Contudo, o início deste processo recua a tempos mais

remotos. Começou quando o Protestantismo deu nascimento ao pensamento secular, por meio

de Lutero, por ter ele colocado sua consciência acima de suas obrigações políticas e sociais.

Não que esta ideia radical da liberdade cristã esteja errada, mas ela abalou os fundamentos da

Cristandade monolítica do Catolicismo Romano e abriu caminhos para outras contestações

mais perniciosas. Depois, este mesmo valor supremo da honestidade intelectual e moral do

homem e de suas ideias faz nascerem as universidades e os estudos acadêmicos seculares.

384
Jürgen Moltmann. History of triune God: contributions to Trinitarian theology (New York: Crossroad, 1992),
p. xii.
155

Em seguida, o ceticismo de Descartes (que era francês e católico, porém sempre mais a

vontade entre Protestantes, holandeses ou suecos), de Espinosa e de Kant, fomentou a ideia de

que o verdadeiro conhecimento sobre Deus só era possível quando obtidos por meios

exclusivamente racionais, o único tipo de conhecimento que possuía as garantias veritativas e

metodológicas. Daí a conclusão de que a modernidade é filha do Protestantismo europeu e um

desenvolvimento natural da ênfase secular de sua teologia (Teologia Liberal)385.

Foi esta mesma busca da ‘verdade’ que fez a assim chamada Alta Crítica aplicar os

métodos dos estudos literários à análise das Escrituras, destruindo a confiança nelas e

empurrando os fundamentos da Teologia para a Filosofia. O criticismo kantiano, o

historicismo hegeliano e o romantismo alemão, acolheram de bom grado a responsabilidade.

Assim, quando os mestres da suspeita (Marx. Nietzsche e Freud) vieram fazer filosofia com o

martelo, demostrando quão frágeis eram os resultados das filosofias burguesas, acabaram por

atingir também as fundações da teologia cristã a elas imbricadas. Todas as teologias

sistemáticas construídas sobre este falso fundamento se viram de repente sem sustentação, o

que justificou a reação de Karl Barth e dos outros dialéticos.

Atualmente, os continuadores da obra dos mestres da suspeita apoderaram-se da

Escritura com o intuito de questionar seu discurso, e não mais seu texto físico – como fora o

caso da Crítica Textual. O objetivo é revelar o autoritarismo de algumas vozes e o silêncio

inquietante de outras. Feministas, Ecofeministas, Pós-colonialistas, Negros, Teólogos Latino-

americanos, Pós-modernos, todos vieram buscam seu butim nas Escrituras, visando à

composição de uma nova hermenêutica, menos uniforme e mais sensível às diferenças.

As teologias confessionais de Protestantes e Evangélicos ao verem a Escritura analisada

pelos métodos da Crítica Textual e da Análise do Discurso ficam tomadas por um estado de

385
S. Mcfague. Metaphorical theology, models of God in religious language (Philadelphia: Fortress Press,
1982), p. 13.
156

estupefação. Seu erro, contudo, havia sido cometido nos anos do século XIX, quando pela

mão de W. Wrede, J. Wellhalser e outros críticos a Escritura fora atirada nos braços do

Idealismo alemão. A negação da veracidade do discurso propriamente religioso das Escrituras

(milagres, revelação e salvação) não deixou outra opção à teologia, senão procurar guarida na

filosofia que eles próprios haviam ajudado a constituir, consumando assim sua perdição.

Mas ainda não era o fundo do poço. Mesmo os teólogos mais conservadores – pelo

menos os não adeptos da inerrância – reconhecem que os escritores da Bíblia, além de

inspirados são humanos e que por isso, não raro, deixam-se influenciar pelos usos e costumes

de seu tempo, justificando práticas inaceitáveis do ponto de vista ético, tais como

patriarcalismo, sexismo, escravismo, colonialismo. As teologias críticas podiam vasculhar as

páginas das Escrituras e se multiplicar à medida que seus objetos também se multiplicavam.

Mas, em nada esta devassa fazia ainda perigar a fé cristã, por conta de dois princípios

hermenêuticos que a salvaguardavam: (a) a Escritura é resultado de uma revelação evolutiva,

que vai se aperfeiçoando até atingir sua plenitude na palavra de Jesus Cristo (Gl 1:8; Hb 1: 2);

(b) a inerrância bíblica não deve ser entendida em termos absolutos, pois ela diz respeito

apenas ao aspecto salvífico do texto.

Contudo, neste novo contexto teológico, que marca o nascimento da teologia das

religiões, não se pode mais contar com esta salvaguarda. Neste caso não são alguns elementos

da Escritura que são colocados em questão, mas ela em sua totalidade. Neste ambiente a

Bíblia deixa de ser um texto sagrado, revelado e definitivo, que pretende dar acesso ao

absoluto; e passa a ser, num degrau mais abaixo, apenas um escrito “espiritual”, contingente e

perspectivo. A revelação perde o conceito duro de manifestação de verdades proposicionais e

em seu lugar se lhes pespega uma ideia fluida e secularizada: “a revelação ocorre quando
157

humanos que estão abertos ao divino têm uma vívida consciência de Deus” 386 . Ou seja,

qualquer pessoa pode receber uma revelação divina, mas o que resulta dela perde toda a

relevância.

(B) Fala-se agora de “Espiritual” e “espiritualidade” como o mero indicativo de uma

experiência humana mais profunda, permeada por uma polissemia simbólica, de cuja riqueza

advém o aperfeiçoamento humano. A ideia de salvação, a que se destina a revelação no

sentido clássico, é reinterpretada e esvaziada de sua natureza fática:

É um significado de salvação que evita o caráter extrínseco de muitas soteriologias


cristãs. Salvação aqui não é uma realidade que pode simplesmente afetar
externamente. Em vez, é algo que toca a busca arquetípica do mais interno ser das
pessoas, que sacode, invade e renova completamente a subjetividade. Tal é o poder
do símbolo e do mito. Sem isto não há salvação387.

O texto bíblico é, portanto, na melhor das hipóteses, um repositório de símbolos e

experiências que pedagogicamente conduzem seus leitores a uma transformação interna, que

os leva a se tornarem seres humanos melhores e mais completos. Um novo conceito de

salvação nasce daí e pode ser resumido como “a totalidade e a plenitude de um processo de

libertação do ser humano, que envolve uma série de níveis”388. Afastando o conceito de uma

salvação sobrenatural sobrevinda ao homem de fora da história, porque agora “o mundo e a

história se constituem como base de toda a realidade salvífica divina”389. Tudo isto fica bem

sintetizado no mote cunhado por E. Schillebeeckx: “fora do mundo não há salvação”: “não se

pode fazer experiência de Deus somente na oração e na liturgia, pois essa experiência

‘imediata’ de Deus pressupõe a mediação do mundo humano”390.

Portanto, a Teologia das Religiões, especialmente a pluralista, de todas as teologias

críticas, é a mais potencialmente perigosa ao futuro do Cristianismo, pois destitui a relevância


386
John Hick apud Todd Miles. God of many understandings? (Nashville: B & H publishing group, 2010), p. 33.
387
Paul Knitter. “Jesus – Buddha – Krishna: still present” (JES, 12, 1975), p. 657.
388
F. Teixeira. “A teologia do pluralismo religioso em Claude Geffré” (Númen, v.1, no. 1), p. 53.
389
Ibid.
390
Rosino Gibellini. A teologia do século XX, p. 339.
158

de sua mensagem, apresentando seu livro sagrado como mera fonte de espiritualidade, assim

como o das demais religiões, não lhe cabendo, portanto, nenhum privilégio epistemológico ou

teológico.

Este esvaziamento do conteúdo específico do Cristianismo surge como uma mudança

estrutural, um novo paradigma ecumênico391, que nasce e cresce à sombra do diálogo inter-

religioso392, o que por si não é negativo, senão no modo como este diálogo pode decorrer. Por

exemplo, que, no afã de apagar um sentimento de culpa por um passado de violência

simbólica e cumplicidade com a injustiça social do mundo393, e na tentativa de conquistar as

graças de um mundo pluricultural no presente, o Cristianismo pratique o puro e simples

descarte ou a relativização de seus conceitos teológicos mais fundamentais, tais como

revelação, pecado, inspiração e salvação, transformando-os em metáforas piedosas. Mas, até

que ponto permanece cristão aquele que afirma, por exemplo, que Jesus Cristo encarnou

simbolicamente. Ou, que Deus interveio simbolicamente na história de Israel, quando estava

sob o jugo da servidão no Egito? Evidentemente, negar a fatuidade destes eventos é ingressar

numa fé que já não é cristã394.

391
H. Küng. Christianity. The religious situation of our time (London: SCM Press, 1995).
392
Depois da formação do Concílio Mundial de Igrejas (1948), órgão inter-denominacional criado para fomentar
o diálogo entre os Cristãos, e do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII para oficializar aquilo
que muitos teólogos católicos já estavam fazendo, o Ecumenismo transbordou do ambiente cristão rumo a todas
as formas de religiosidade da Terra, para abraçá-las como coirmãs. Na declaração conciliar Nostra aetate de 28
Outubro de 1965, pela primeira vez em sua história, a igreja católica reconheceu solenemente que as religiões
não cristãs produzem raios da verdade que iluminam todos os homens e exortam a seus fieis a dialogar e
colaborar com elas, “para reconhecimento, preservação, e para fazer progredir os valores espirituais, morais e
socioculturais de que são portadoras”. E para que isto não ficasse como letra morta, dois decênios depois, o papa
João Paulo II convidou os chefes das principais religiões do mundo para um encontro em Assis, na Itália. O lugar
escolhido tem um sentido simbólico. Sendo a cidade de nascimento de S. Francisco de Assis, significa que a
Igreja Católica abandona sua soberba espiritual e adota uma atitude mais humilde em relação às outras religiões.
393
David Bosch. Missão transformadora. Mudança de paradigma na teologia da missão (São Leopoldo:
Sinodal, 2002), p. 20.
394
“Muitos estudantes da História das religiões destacam três principais correntes nas quais tais
desenvolvimentos tomam lugar. Uma delas é a corrente semítica, que começa com a crença hebraica num Deus
tribal que liberta da opressão, e desenvolve uma tradição profética de julgamento da injustiça de libertação rumo
a uma verdadeiramente justa e compassiva sociedade. Nesta corrente, a ideia de Deus como uma autoridade
moral e transformadora da história torna-se a dominante imagem da Bíblia hebraica. O ideal da humanidade é
visto o estabelecimento de uma sociedade de justice e misericórdia, onde os indivíduos podem complementar
suas distintivas personalidades relacionando-se uns com outros. A corrente Indiana desenvolve um caminho
diferente, de rituais sacrificais a deuses e espíritos da natureza e daí a uma suprema realidade de sabedoria e
159

Do outro lado da arena, entretanto, esta não é a opinião, por exemplo, de R. Panikkar,

cuja análise prefere ver uma mudança paradigmática 395 , pela qual na contemporaneidade

abandona-se o paradigma doutrinário (o Cristianismo) – assim como o anterior paradigma

político já havia sido abandonado (a Cristandade), em favor de um paradigma espiritual, que

enfoca a espiritualidade cristã, e que ele chama de Cristiânia396 (posteriormente voltaremos a

esta questão, na discussão específica sobre Panikkar).

Nesta ambiência relativista, em que se confunde tolerância com um relativismo

indiscriminado, as doutrinas religiosas representam apenas manifestações espirituais desta

relação do ser humano com o sagrado, que são diversas à medida que revestidas de

circunstâncias históricas, geográficas, econômicas e sociais, também diferentes. Neste

contexto, a pretensão das religiões ao absoluto deve ser entendida mais como intenção do que

como realização. Pensar nelas como realização é cometer o pecado da idolatria.

A questão da verdade é de fundamental importância para que sejam marcadas as

posições. O Exclusivismo atesta que só há uma fé verdadeira, as outras sendo, portanto,

falsas; o Inclusivismo liga-se à ideia de coroamento, ou seja, todas as religiões têm verdades,

mas apenas uma delas é a verdade completa e final: o Cristianismo; o Pluralismo sintético

ensina que todas as religiões possuem verdades parciais e imperfeitas e que devem, por

bem-aventurança que se diversifica num universo finito, unidade que só pode ser imaginada pela mente se
retirados os sentidos. Nesta corrente a ideia de Brahmam como a mais íntima realidade das coisas, a ser
conhecida pela renúncia da ação e do desejo, torna-se a imagem dominante dos Upanishads. O universo está sob
a influência da lei do karma, e o objetivo dominante da religião é obter a libertação desta lei do karma, não
retornando a renascer neste mundo. A corrente oriental, na qual Budismo, Taoísmo e Confucionismo interagem,
desenvolveu-se de formas de animismo para a ideia de uma ordem cósmica, um caminho de equilíbrio e
harmonia, seguindo os quais atinge-se a estabilidade e a calma da mente, e paz e correta ordem social. Nesta
corrente há pouca ênfase no ser absoluto ou Deus. A ênfase é colocada em viver em meio a um fluxo sem fim de
seres, sem se fixar em nenhum deles, mas com cuidado e compaixão por todos os seres sofredores. O objetivo é
abandonar qualquer ideia de ego, de dualidade objeto-sujeito, e experimentar o vibrante fluxo do ser, além da
paixão e do apego.” (Keith Ward. God, faith and the new millennium. Christian belief in an age of science -
Oxford: One World Publications, 2002, pp. 153 e 154).
395
Sobre esta questão da mudança paradigmática vide Márcio Fabri dos Anjos (org.). Teologia e novos
paradigmas (São Paulo: Soter/Loyola, 1996).
396
“Cristiania, dimensione nascosta del Cristianesimo” (Micromega, 2, 2001), p. 274.
160

conseguinte, buscar o diálogo umas com as outras para se aperfeiçoarem, ampliando sua base

espiritual397:

“[o diálogo inter-religioso] é uma peregrinação comum rumo à verdade, cada um


dentro de sua respectiva tradição, compartilhando o caminho com o outro, quanto
àquilo que tem chegado a entender para responder a esta verdade”398 .

Com o conceito de verdade provisória, verdades relativas que surgem como resposta à

verdade absoluta divina, os pluralistas pretendem escapar à acusação de sucumbirem ao

raciocínio tertium non datur (o terceiro excluído), que é a base da conclusão de A. Race, por

exemplo: “se todas as religiões são igualmente verdadeiras, todas são igualmente falsas.” 399.

Para estes pluralistas de última geração, portanto, o que as religiões pretendem oferecer não é

um acesso exclusivo ao absoluto, mas apenas um caminho, um absoluto – relativo, em que o

objeto é absoluto, mas os meios para atingi-lo são relativos, pelo que, nunca pode ser

plenamente atingido. Usando uma linguagem jaspersiana, as religiões são apenas cifras do

absoluto400. Há uma farta fundamentação filosófica para a realização desta operação. Tanto no

Ocidente – como já vimos ser o caso de Kant, quanto no Oriente – especialmente as filosofias

hindus.

(C) O esvaziamento dos conceitos teológicos duros mencionados (salvação, pecado,

revelação) tem como corolário o esvaziamento das instituições que se pretendem suas

mediadoras. Assim, ao repúdio antigo e iluminista à religião, motivado pelas guerras

religiosas que varreram a Europa no século XVII, junta-se na contemporaneidade um outro,

que não é mais antirreligioso, mas plurirreligioso. Ou seja, o ambiente pós-moderno não

propõe mais a substituição da religião por ideologias políticas quase religiosas (Comunismo,

Nazismo), como no tempo da modernidade; pelo contrário, considera as religiões um Bem e

397
Galvin D’Costa. “The impossibility of a pluralist view of religions” (RS, June – 1996), pp. 223-226.
398
Nicholas Lossky (et.al.). Dictionary of the Ecumenical Movement (Geneva/Grand Rapids: WCC
Publications/William B. Eerdmans Publishing Company, 1991), p. 285.
399
A. Race. Christians and religious pluralism, p. 78.
400
Karl Jaspers. La fe filosófica ante la revelación (Madrid: Gredos, 1968).
161

as defende, muito embora lhe aborreça o denominacionalismo, no sentido institucional da

palavra. Em suma, a experiência do sagrado que irmana todos os seres humanos deve ser

preservada; as instituições que a abrigam são descartáveis. O caráter doutrinal e dogmático

das religiões e denominações passa a ser visto como manifestação de um sistema opressivo de

exercício do poder religioso, que usa os símbolos religiosos como instrumento de barganha,

para locupletar uma hagiocracia que os manipula; ou então, como mero reflexo de

particularidades culturais e etnocêntricas. O conceito de espiritualidade é o antídoto para todas

estas distorções:

Enquanto a religião envolve um sistema de crenças e práticas relacionadas a um


corpo institucional, a espiritualidade diz respeito a “qualidades do espírito humano”,
entre as quais a compaixão, cuidado, delicadeza, cortesia, tolerância e hospitalidade.
São qualidades que podem estar presentes na religião, mas também alhures. A
religião não é imprescindível para que as pessoas desenvolvam tais qualidades. Estas
podem brilhar, até mesmo em alto grau, fora das experiências religiosas401.

Ao definir desta forma espiritualidade, Faustino Teixeira chama para o diálogo inter-

religioso, na melhor tradição rahneriana e tillichiana, também o mundo secularizado

Ocidental, ou seja, aqueles que não creem, ampliando ao máximo o círculo dos sujeitos

envolvidos nesta conversa sobre o sagrado, à qual os cristãos são convidados a participar, mas

não a discursar, como no passado.

(D) Em geral todos os pluralistas sintéticos esvaziam a importância salvífica do Jesus

histórico; só variam quanto ao grau com que o fazem. Por que praticamente todas as

abordagens pluralistas têm algum tratamento cristológico, não surpreende o fato de a

cristologia neotestamentária ser de fato a cidadela da ortodoxia, contra ela são dirigidos os

argumentos mais fortes e é também nela que resistem as declarações cristológicas mais

explícitas quanto à excepcionalidade e exclusividade da expiação de Jesus Cristo. Apesar de

sua complexidade e de tantos disputantes, pode-se classificar as cristologias pluralistas

401
F. Teixeira. Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora), p. 176.
162

sintéticas em três grupos: (a) cristologia mitológica ou metafórica de J. Hick, (b) as

cristologias logocêntricas de P. Knitter, C. Geffré e dos teólogos asiáticos R. Panikkar, M.

Amaladoss (c) as cristologias basilocêntricas (têm como centro o reino de Deus) de H. Küng e

S. Samartha. Como é perceptível pelos nomes e pela ordem em que aparecem, fizemos uma

separação de Stanley Samartha do grupo de teólogos asiáticos, dentro do qual geralmente é

classificado. Justificamo-lo porque a cristologia de Samartha rejeita a o conceito do Logos

joânico e é constituída exclusivamente com base nos Sinóticos, o que, metodologicamente,

torna-o muito mais próximo de Küng do que dos outros teólogos asiáticos.

4.c.1. John Hick

John H. Hick é um dos pluralistas mais polêmicos e destacados. Inglês de nascimento,

eclesiástico ligado à igreja presbiteriana, Hick não é propriamente um teólogo, antes um

filósofo da religião 402 . Com passagem em pelo menos meia dúzia de universidades

importantes do velho e do novo mundo de fala inglesa, tem contribuições nas áreas de

teodiceia, epistemologia, filosofia da religião e diálogo inter-religioso. É escritor profícuo que

pôs sua assinatura em numerosas e importantes obras sobre o tema em discussão, o que o tem

colocado nas últimas décadas no pluralismo como figura de proa, prova disto foi a coedição

com P. Knitter de uma obra que reuniu artigos de alguns dos pluralistas mais destacados do

mundo, O mito da peculiaridade cristã403.

O percurso da reflexão de J. Hick começa com o problema cristológico. Para ele o

primeiro grande obstáculo para um diálogo inter-religioso é efetivamente a exclusividade e a

singularidade da mediação crística entre Deus e os homens. Como outros pluralistas, entende

ser necessário abandonar a doutrina do papel central de Jesus na salvação da humanidade:

402
Cf. C. Gillis. “Radical Christologies? An analysis of the Christologies of John Hick and Paul Knitter”. In T.
Merrigan e J. Haers (edt.). The myriad Christ (Leuven: Leuven University Press, 2000.
403
The myth of Christian uniqueness, op. cit..
163

Se Jesus foi literalmente o Deus encarnado, e se é somente através de sua morte que
os homens podem ser salvos, e se somente pela resposta a ele é que eles podem se
apropriar desta salvação, então o único caminho para a vida eterna é a fé cristã. O
que se segue deste fato é que a grande maioria da raça humana não tem sido salva.
Mas é crível que o Deus de amor e Pai de todos os homens, desse modo houvesse
decretado que somente os que tivessem nascido dentro de uma particular história
humana devessem ser salvos? Não é esta uma ideia excessivamente paroquial,
apresentar Deus, com efeito, como uma deidade tribal do Ocidente
predominantemente cristão?404

Foi em 1973 que Hick começou seu percurso rumo a um pluralismo amplo com sua

obra, Deus e o universo das religiões405, escrita em 1973. Nela pretende retirar de Jesus o

protagonismo salvífico e entregá-lo a Deus. A operação é chamada por ele de “revolução

copernicana” na teologia, isto é, a necessária renúncia ao dogma de que o Cristianismo é o

centro religioso do mundo406, e de que detém o monopólio da verdade salvadora e da vida

eterna. E ainda mais que isto, deve nos levar a abandonar até mesmo a perspectiva

‘inclusivista’, descartando também qualquer necessidade de uma participação do ministério

salvífico de Jesus para validação das religiões não cristãs. As religiões salvam por si mesmas

e não em virtude da atuação mística de Jesus nelas, como ensinam as declarações do Vaticano

II.

O “giro copernicano” a que se refere Hick foi tomado de empréstimo da astronomia. É

uma metáfora que antes já havia sido aplicada à guinada kantiana em tirar o interesse da

filosofia do objeto e trazê-lo para o sujeito. Por ela Hick compara sua missão na teologia em

transferir o eixo central de Jesus para Deus com a realização de Copérnico em demonstrar que

o centro do sistema solar não era a terra, mas o sol. “Temos que compreender”, diz Hick, “que

o universo religioso está centrado em Deus, não no Cristianismo ou em outra religião. É Ele o

404
J. Hick. “Jesus and the world religions”. In J. HICK. The myth of God incarnate (London: SCM Press, 1977),
p. 180.
405
J. Hick. God and the universe of religions (Oxford: One World, 1993).
406
Ibid, p. 131.
164

Sol, a fonte da qual vêm a luz e a vida, Ele, o que todas as religiões refletem, cada uma a sua

maneira”407.

Neste passo, deve-se abandonar a crença na singularidade de Cristo408 e toda a doutrina

cristológica neotestamentária que a sustenta. Os hinos cristológicos (Ef 1: 3-13 e Cl 1: 15-20)

não devem ser entendidos literalmente. Tampouco as declarações categóricas sobre a

exclusiva mediação de Jesus na relação divino-humana (1Tm 2:5-6; At 4:12; Jo 3,17; At 5:31,

10:44-48, 17:24-31). Tudo não passa de poemas e metáforas, transformadas em linguagem

literal pelos cristãos seguidores da filosofia dogmática grega (Platão e Aristóteles) e pelos

concílios, já que Jesus mesmo nunca teria ensinado estas coisas 409 . Além disto, no novo

contexto religioso é inaceitável a pretensão do Cristianismo a ser uma religião fundada pelo

próprio Deus encarnado (At 13:32-33; Rm 1:1-4; Hb 1:1-5; Jo 5:18, 8:18-19, 10:30, 20:30). A

encarnação também é uma metáfora, um mito piedoso 410 . É igualmente metafórica a

linguagem dos evangelhos quando falam de Jesus como “Filho de Deus”. Para Hick Jesus foi

apenas um profeta extraordinário, que chamou o povo judeu ao arrependimento e proclamou o

reino de Deus 411 . Em suma, ele segue os passos do decano do pluralismo, Allan Race,

tornando irrelevante a figura de Jesus: “A divindade de Jesus é mais uma qualidade em ele ter

aberto completamente o acesso a Deus, ao amor e à graça do Pai, do que [...] de sua natureza

pessoal”412.Obviamente, a ressurreição também não teria ocorrido, sendo apenas devaneios de

discípulos frustrados com sua morte.

Em suma, com Hick o processo de desconstrução das doutrinas fundamentais do

Cristianismo chega ao fim com saldo zero. A doutrina bíblica da morte vicária de Jesus, bem

407
J. Hick. God has many names, (Philadelphia, PN: The Westminster Press, 1982), pp. 70-71.
408
Idem. The metaphor of God incarnate (Louisville, KT: Westminster / John Knox Press, 1994).
409
J. Hick. Disputed questions in theology and philosophy of religions (New Haven, CT: Yale University Press,
1993), p. 98.
410
J. Hick. The non-absoluteness of Christianity, p. 31.
411
Idem. The metaphor of God Incarnate, p. 25.
412
A. Race. Christians and religious pluralism, p. 128.
165

como a justificação pela fé que nela se baseia, não existiu: “um perdão que deveria ser

efetivado pelo pleno pagamento de uma dívida moral, de fato não é perdão” (destaque

nosso) 413 . Não é preciso ler a expressa declaração de Hick sobre a superfluidade da

proclamação do evangelho para concluir que suas ideias o levariam a tal ponto414.

Mais tarde, numa obra escrita em 1990, Uma interpretação da religião 415 , Hick

responde a objeções quanto ao fato de seu pluralismo não ser suficientemente aberto, por

ainda estar preso ao conceito teísta de um Deus pessoal, incompreensível para o Budismo

Theravada e religiões animistas e xamânicas, por exemplo. Para resolver o problema ele

desenvolve o conceito de Real, a realidade última sinônimo de sagrado. As grandes religiões

do mundo têm formas diferentes de dar corpo a este real, daí a grande diversidade religiosa

existente, pois cada uma dará uma resposta diferente à mesma manifestação do chamado

sagrado. Em suma, “o real revela-se à humanidade e a humanidade responde-lhe por meio de

uma forma histórica e culturalmente condicionada”416.

Esta abordagem não é propriamente uma novidade. Outro neokantiano estudioso das

religiões, Ernst Troeltsch, o pai do relativismo histórico, já o havia proposto no século XIX.

Segundo esta concepção, o absoluto manifesta-se na história do mundo, contudo, todas estas

manifestações são históricas, isto é, estão condicionadas às estruturas socioculturais em que

aparecem, não podendo ser, por isso, universalizadas417.

A conclusão de Troeltsch e de Hick é que todas as religiões são verdadeiras, mas não

absolutamente verdadeiras; apenas sua intenção é verdadeira, ou seja, tentar traduzir este

413
J. Hick. Disputed questions in theology and philosophy of religions, p. 98.
414
J. Hick. “A philosophy of religious pluralism”. In R. J. Plantinga, (ed.), Christianity and the plurality,
(Malden, MS: Blackwell Publishers Inc., 1999), p. 339.
415
J. Hick. An interpretation of religion. Human responses to the Transcendental (London: Palgrave Macmillan,
2004).
416
Ibid., p. 240.
417
Ernst Troeltsch. Christian Thought: its history and application (London: University of London Press, 1923),
p. 22.
166

absoluto. Suas realizações, porém, sempre ficarão aquém daquilo a que se propõem. Mesmo

as religiões chamadas teístas não são exatamente coincidentes.

As várias respostas fenomenológicas dentro de diferentes tradições religiosas, teístas


e não-teístas, podem ser vistas como autênticas, mas como diferentes respostas ao
Real numênico. Portanto, de acordo com Hick, não podemos dizer que o Real an
sich (em si) tem as características apresentadas em suas manifestações, tal como (no
caso do Pai celestial) amor e justiça ou (no caso de Brahman) consciência e bem-
aventurança ou ditosidade418.

Há pelo menos três grandes problemas com a proposta de J. Hick. O primeiro deles é o

tratamento cristológico do NT. Sua cristologia é extremamente superficial e seletiva: adota

completamente uma cristologia de baixo e rejeita inteiramente a do alto. A de baixo é

originária de Jesus; a do alto promovida pela Igreja e seus concílios. Segundo ele, Jesus teria

preferido o “filho do homem” apocalíptico aos outros títulos cristológicos: Filho de Deus.

Messias e Senhor 419 . Jesus pode até ser chamado de messias, desde isto não implique

reconhecê-lo como divino ou sobre-humano, quando é justamente este o significado da

palavra nas páginas do Novo Testamento. Hick ignora Daniel e toda a literatura

intertestamentária apocalíptica, que faz com que mesmo o título de “filho do homem” esteja

longe de ter o prosaísmo pretendido por ele. Em suma, seu único fundamento é o velho

preconceito iluminista.

O problema é que Hick depende demais do raciocínio dedutivo, o que o leva a descurar

das fontes. Quando examina o conteúdo assertivo restringe-se a uma crítica das doutrinas

cristológicas dos documentos conciliares e da teologia greco-latina420. Hick parece olvidar

que a base destes documentos, e que toda esta cristologia posterior foi desenvolvida e não

criada pelos concílios. Surgiu como resposta ao espírito sistemático grego, ao este substituir o

ambiente semítico originário, mas sempre o fez tomando as fontes neotestamentárias como

418
Galvin D’Costa. The meeting of religion and the Trinity, p. 26.
419
J. Hick. Disputed questions in theology and philosophy of religions, p. 40, 46.
420
J. Hick. “o caráter não absoluto do Cristianismo” (Numen, Out – Dez, 1998), pp. 37 a 42.
167

ponto de partida. Este descaso pelas fontes faz com que os leitores de Hick tenham a

impressão de se depararem com um filósofo da religião, não com um teólogo cristão.

O segundo problema é a aproximação funcional ao problema do diálogo inter-religioso,

ao qual se subsumem todas as razões, contrárias ou não. Seria legítimo simplesmente

descartar várias passagens da Escritura com a justificativa de serem mitos piedosos, só para

não obstarem o diálogo inter-religioso em termos paritários? Este tipo de abordagem, no

entanto, sequer do ponto de vista pragmático é positivo, pois acaba produzindo um efeito

contrário ao pretendido, por propor a permanência de um resíduo religioso humanisticamente

aceitável, sem considerar com seriedade o que as religiões dizem sobre si mesmas. Ele

promove a redução das religiões a um formato específico – neste caso a filosofia crítica de

Kant, que as distorce, e que em fim de contas, torna-se tão violenta do ponto de vista

simbólico, como o exclusivismo por ele execrado.

O terceiro problema é a extrema dependência de Hick em relação à filosofia kantiana. O

‘Real - coisa em si’, sempre está além de todos os conceitos que possam ser criados para

representá-lo. Portanto, estando ao alcance do conhecimento humano apenas o ‘Real - coisa

como a podemos conhecer’, toda a pretensão ao absoluto das religiões deve desaparecer. Em

seu lugar restarão apenas tentativas de alcançar este absoluto, a que todas as religiões se

reportam. As diferenças entre as religiões, portanto, são supérfluas e sendo a causa da

desarmonia, devem ser abandonadas em favor de uma práxis do amor e da compaixão.

Quanto à questão da verdade, como consequência desta clivagem radical entre o Absoluto e o

mundo humano, predomina “o conceito de verdade mitológica, que não tem adequação com a
168

realidade, mas simplesmente desperta no sujeito uma disposição adequada para com o

enunciado”421.

Contudo, a mesma crítica dirigida a Kant quando deu por acabada sua primeira crítica

surge nas provocações de Mário de F. Miranda:

Se a realidade última é completamente inefável, como podemos saber que existe? E


como podem as tradições religiosas dizerem algo sobre ela? [tocando o âmago da
tese pluralista de Hick]. Como posso afirmar que todas as experiências religiosas são
igualmente autênticas?422

Ou seja, como posso saber se existe o incondicionado se não tenho acesso a ele? A

justificativa de que o incondicionado resulta de uma abstração do objeto em relação aos

elementos condicionantes da realidade não é um raciocínio válido no contexto das novas

teorias da Física relativista de Einstein: o espaço e o tempo não são absolutos como pensava

Kant, mas relativos. Neste novo contexto científico, o incondicionado kantiano hoje não passa

de uma hipótese mal fundada. Quando aplicamos estas críticas à religião, mais objeções. O

que poderia servir de apoio a Hick, a fenomenologia, mostra-se insuficiente para demonstrar a

gênese da religião num sentimento transcendental, que tornaria o que dizem apenas variações

sobre o mesmo: o incondicionado. Acreditamos já haver demonstrado nas páginas anteriores

que, quanto à religião, não existe uma estaca zero fenomenológica, porque todo o simbolismo

religioso existente é produto do que dizem os textos sagrados sobre eles. E no máximo pode-

se dizer que haja uma dialética entre os aspectos socioculturais condicionantes e eles. Em

suma, o próprio texto sagrado é um elemento condicionante da experiência religiosa.

De tal modo que Hick fica sem alternativa senão admitir que transferiu sua confiança

religiosa das Escrituras para uma hipótese infundada e já desgastada de Kant, sem nenhuma

outra garantia. Pois Deus, conforme sugeriu Feuerbach, bem pode ser a projeção do desejo

421
H. Hick apud W. H. Capps. Religious studies. The making of a discipline (Minneapolis: Fortress Press, 1995),
p. 272.
422
M. F. Miranda. O Cristianismo em face das religiões (São Paulo: Loyola, 1998), p. 21.
169

humano de um grande outro com seu rosto 423 . E isto não é suficiente para fundamentar

nenhuma religião, qualquer que seja.

Na filosofia kantiana os argumentos pro existência de Deus aparecem nas duas

primeiras críticas e em ambas são muito mais fracos do que o resto de sua argumentação. Na

Crítica da razão pura, Deus “é apenas a relação entre um ente em si totalmente desconhecido

a mim e a máxima unidade sistemática do universo, [...] esquema do princípio regulador do

maior uso empírico possível de minha razão” 424 , ou seja, é uma ideia que gera um

pressuposto: é natural à razão humana esta dilação. Na Crítica da razão prática, sua

existência é provável e até necessária do ponto de vista prático; do contrário, a ação moral não

passaria de um absurdo. Sem estes dois elementos: fé e felicidade, todo dever, por mais que

autoimposto, desumaniza o ser humano, tornando-o, em vez de autônomo, um autômato425.

Em suma, na primeira crítica Deus pode ser pensado, mas não pode ser conhecido; na

segunda, Deus é apenas “um postulado da razão”, ou seja, uma hipótese sem a qual a

existência moral dos homens careceria de fundamento. Numa e noutra obra, apenas um

elemento essencial para completar um sistema, uma hipótese de trabalho e não uma certeza

fundante.

O resultado de toda este arrazoado sustentado por Hick não é um diálogo inter-religioso

mais eficaz, mas a destruição da religião, pela prática de uma espécie de agnosticismo:

O pluralismo de Hick emascara a defesa do deus liberal da modernidade, neste caso


por meio de uma forma de agnosticismo ético. Se os agnósticos éticos sugerissem
que a melhor maneira para lidar com os conflitos religiosos, é cada um torna-se um
ético agnóstico, não só falhariam em lidar com a pluralidade, mas também falhariam
em tomar a pluralidade a sério, ao dissolvê-la em configurações mítico-
instrumentais426.

423
Ludwig Feuerbach. A essência do Cristianismo (Campinas, SP: Papirus. 1988).
424
Crítica da razão pura - do propósito último da dialética natural da razão pura (São Paulo: Nova Fronteira,
1999).
425
I. Kant. Os Progressos da Metafísica (Lisboa: Edições 70, 2000); Cf. também Kant. Crítica da razão prática
(São Paulo: Vitório Civita, 1982) - Dialética da razão prática na determinação do sumo bem, livro V.
426
Galvin D’Costa. The meeting of religions and the Trinity (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2000), p. 26.
170

Os últimos resultados de Hick são, portanto, os piores possíveis. Não atendem à

demanda empírica do diálogo inter-religioso, pois em nada são sensíveis à realidade

plurirreligiosa atual, e tampouco satisfazem à demanda textual, porque sua abordagem da

Bíblia se limitou à repetição de bordões teológicos, tais como, “é preciso abrir mão de Jesus

como deidade tribal do Cristianismo”, sem apresentar um princípio hermenêutico que o

justifique.

4.c.2. Paul Knitter

Outro nome importante no pluralismo é o de Paul Knitter, teólogo católico, que

começou sua carreira como aluno de Karl Rahner e posteriormente decidiu dar um passo além

do mestre defendendo uma modalidade de pluralismo. A teologia das religiões de Knitter

sofreu grandes modificações no decorrer de sua vida, pois tendo começado no estrito

exclusivismo católico, foi posteriormente persuadido pelo maestro intelectual do concílio

Vaticano II, Karl Rahner, a torna-se inclusivista. Depois, dando continuidade a seus estudos,

acabou adotando um pluralismo soteriocêntrico, que atualmente está baseado no conceito de

reino de Deus, que, por mesclar princípios da teologia da libertação e da ecoteologia, acabou

sendo denominado “ecoteólogo pluralista da libertação” 427.

Seus argumentos em prol do pluralismo vão se acumulando à medida que escreve seus

textos. É nos primeiros que ataca o inclusivismo cristológico. Como Hick, ele decidiu

atravessar o Rubicão, ou seja, defender uma ruptura com o cristocentrismo rahneriano,

propondo em seu lugar o soteriocentrismo, entendido como um passo além, inclusive do

próprio teocentrismo pluralista, já que são convocados para o diálogo também aqueles que

não compartilham de crenças teístas, o Budismo Theravada, por exemplo.

427
Ibid., p. 30.
171

À semelhança de J. Hick, a principal preocupação teórica de P. Knitter é o diálogo inter-

religioso e a ele devem submeter-se todas as doutrinas cristãs, inclusive a singularidade e

exclusividade de Jesus, sua mensagem e seu papel salvífico 428 . Porém, diferentemente de

Hick, esta priorização do diálogo em detrimento das declarações cristológicas exclusivistas

não se faz a partir de bases completamente empíricas, mas também textuais, embora sejam

sempre evitados textos que põe em risco a hermenêutica pluralista:

Para evitar o imperialismo político, cultural e religioso nas chamadas terras de


missão, Knitter indica qual deveria ser a função da teologia: da mesma forma que os
teólogos se referem às primeiras noções de Iahweh como uma “divindade tribal” —
posteriormente “purificada” pelos profetas judeus — a tarefa atual da teologia
consiste em passar, através da revisão cristológica, de uma “cristologia tribal” a uma
cristologia universal que permita aos cristãos ver a obra de Cristo em todo lugar sem
assumir que possuam o monopólio do que o Mistério lhes revelou de um modo
único429.

No contexto desta revisão cristológica, Jesus “não é a verdade total, definitiva e

insuperável de Deus, mas traz uma mensagem universal, decisiva e indispensável”430. Knitter

faz uma longa defesa em prol destes novos conceitos, compostos para fundar uma nova

confissão de fé relativamente a Jesus. Quanto à primeira afirmação ele argumenta de que

Jesus é totalmente Deus, mas Deus não é totalmente Jesus431. Ou seja, o Jesus histórico não

esgota a divindade nem o poderia. Deus se manifesta de outras formas em outras comunidades

humanas.

Os cristãos não podem simplesmente anunciar que Jesus é a plenitude da Palavra ou


da Divindade, e deixá-lo assim. Essas afirmações devem ser qualificadas para
reconhecer e afirmar tanto a universalidade como a incompreensibilidade do Divino.
Acho que semelhante “afirmação – com – qualificação” se expressa na distinção
utilizada comumente: cristãos podem e devem proclamar que Jesus é totus Deus–
totalmente divino, mas eles não podem afirmar que Jesus é totum Dei – a totalidade
do Divino432.

428
As declarações tradicionais cristãs sobre Jesus como final, completo e insuperável, é, para dizer o menos, uma
ameaça ao diálogo, e é contrário ao imperativo moral, que exige a cooperação entre as religiões. Qualquer coisa
que torne o diálogo problemático é ele mesmo um problema e deve ser descartado. P. Knitter citado por G.
D’Costa. The meeting of religion and the Trinity, p. 37.
429
Albert Moliner. “A cristologia relacional” (Ciberteologia, ano V, no. 24), p. 28.
430
P. Knitter. Jesus and the other names. Christian mission and global responsibility (Maryknoll, NY: Orbis
Books, 1996), p. 79.
431
P. Knitter. Jesus and the other names, p. 73s.
432
P. Knitter. Jesus and the other names., p. 72.
172

A base escriturística desta afirmação é a teologia do Logos que Knitter compartilha com

outros teólogos pluralistas, uns e outros não sendo muito fieis às fontes. Com efeito, o que

João 1: 1 diz é que Jesus pré-existe à sua manifestação carnal e que é Deus com o Pai, desde o

princípio. Contra isto pode-se argumentar que a presença de uma teologia da palavra,

responsável pela conexão do Logos joanino com a sabedoria (hokmah) do livro de Provérbios

ou com a palavra (memra) dos Targumim é bastante especulativa, não havendo elementos que

comprovem uma ligação da tradição joânica com a rabínica, originadora dessas ideias433. O

texto silencia também sobre a extrapolação do Logos em relação ao Jesus histórico, com

manifestação em outras figuras históricas e religiosas, e quem o afirma faz uma ilação sem

base textual, seja de João ou de qualquer outro lugar nas Escrituras. O que o quarto evangelho

afirma é que o verbo se fez carne e habitou entre nós e não que o espírito do Logos tivesse se

encarnado, no sentido espiritualista da palavra, no menino Jesus. Esta compreensão da

encarnação fere a boa hermenêutica por fazer uma transposição indevida da história sagrada

das margens do Jordão para as ribanceiras do Ganges, dando origem a um Neodocetismo.

Outro câmbio terminológico sugerido por Knitter é a substituição de “definitivo” por

“decisivo”. Para ele “definitivo” é uma afirmação idolátrica 434 , já que o humano jamais

poderá conter o divino, o que se supõe ocorresse caso Jesus fosse a revelação definitiva de

Deus. Esta objeção é comum à grande maioria dos pluralistas e se baseia na rejeição do

conceito encarnacional tradicional defendido pelos concílios, pelo qual se entende Jesus

Cristo como Deus e homem simultaneamente. Deve-se a argumentação a uma secularização

das Escrituras e a uma negação iluminista daquilo que não existe em nosso cotidiano. Em

suma, Jesus pode ter sido um homem excepcional, mas que ainda assim permaneceu sendo

um ser humano, não podendo, portanto, ser a revelação definitiva de Deus.

433
K. Armstrong, Uma história de Deus, p. 125.
434
Ibid., p. 74.
173

Portanto, levando em conta as fontes, a revelação definitiva de Jesus não é idolátrica por

três motivos: (a) Esta revelação não foi dada por um mero ser humano – Hb 1: 1-2: “Havendo

Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras , aos pais, pelos profetas, nestes

últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por

quem fez também o mundo”; (b) toda revelação divina é dada no contexto da economia da

salvação, por isso ela se destina apenas a indicar o caminho da salvação aos seres humanos,

não tendo a pretensão esgotar a riqueza infinita da divindade; (c) o próprio Jesus histórico, ao

qual Knitter parece se referir, está longe de ser uma figura idolátrica, porque ainda que no

mundo, seu reino não era deste mundo: era o reino de Deus.

E por último, quanto à sugestão de Knitter, de trocar “insuperável” por “indispensável”,

de novo a noção de ídolo é utilizada. Ele evoca a promessa do Espírito Santo (Parácletos)

como indício de que o canal revelacional ao mundo se mantém aberto435, mas Jesus restringiu

a plenitude do dom do Espírito à Igreja Cristã, embora não o tenha interditado a outros povos.

Em suma a promessa do Espírito é dada primariamente à Igreja e secundariamente às

religiões, de sorte que a inversão da ênfase é biblicamente indevida.

Para encerrar sua argumentação cristológica, ele toma de empréstimo as reflexões dos

teólogos da libertação com o objetivo de evitar a redução do reino de Deus à aparição de Jesus

na Palestina. O reino de Deus permanece como promessa latente orientando a caminhada da

Igreja rumo aos confins da terra, não para impor sua confissão, mas para compartilhá-la com

as outras crenças. Pois a relevância do evangelho não se perdeu nem sua normatividade,

apenas não é a única mensagem a ser proclamada nem a única normatividade a ser aplicada. A

boa nova dos evangelhos define Deus, mas não o confina436. Há outras definições de Deus que

435
P. Knitter. Jesus and the other names, p. 75.
436
P. Knitter. Jesus and the other names, p. 77.
174

são necessárias para que se mantenha a infinitude das riquezas da divindade e a melhor

imagem de Deus é a que leva todas estas definições em conta.

Em uma de suas últimas obras, Uma Terra, muitas religiões 437 , Knitter procura

responder àqueles que o chamavam de relativista, criando um princípio normativo. Nesta obra

ele reconstrói alguns conceitos básicos do Cristianismo, como por exemplo, salvação. Para ele

“soteria [...] deve definir amplamente o bem estar eco-humano”438. E religião neste quadro

pode variar, mas todas concordam com a necessidade de buscar o bem estar da comunidade

humana a saúde ecológica da terra439. Se houver alguma exceção a esta regra, deve-se negar a

legitimidade religiosa a esta exceção. Também será impossível um diálogo inter-religioso

entre uma religião que busque ser uma agência de salvação e uma outra que não o faça. Este

então passa a ser o critério definidor dos parceiros no diálogo e a pedra de toque que confere

autenticidade às religiões440. Este critério, porém, ao fim e ao cabo, transforma-o em teólogo

das religiões inclusivista, pois as religiões ditas proféticas serão favorecidas por ele e as

chamadas místicas ou devocionais serão desfavorecidas, o Hinduísmo seria uma delas441.

Resumindo nossas impressões sobre as ideias de P. Knitter podemos dizer que sua

evolução teológica na verdade parece-se mais com o tatear cego de alguém que busca

construir um caminho novo, mas encontra-se perdido por onde quer que ande. Propôs a si

mesmo uma missão titânica que é a de incluir todas as religiões – inclusive o Cristianismo –

num projeto humanístico universal, contudo, não tem um ponto de partida religioso bem

definido. No inicio de sua evolução, seu pluralismo adota uma teologia soteriocêntrica e

logocêntrica afeita ao conceito de avatar do Hinduísmo. No meio, advoga uma teologia das

religiões ecolibertadora que supostamente livraria o Cristianismo da pecha de religião do


437
P. Knitter. One earth, many religions (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1995).
438
P. Knitter. One earth, many religions, p. 58.
439
Ibid., p. 98.
440
James Frederiks. Faith among faiths. Christian Theology and non-Christianity religions (New Jersey: Paulist
Press, 1999), p. 132.
441
James Fredericks. Faith among faiths, p. 133.
175

opressor. No Ocidente até que isto tem pertinência, porém, se estamos no Oriente, Médio ou

Próximo, então as coisas se invertem, pois a religião cristã é a minoria oprimida. O conceito

de reino de Deus que ele utiliza em sua última fase é uma tentativa de aproximação em

relação às religiões proféticas. No entanto, ainda que se entenda estas ideias numa perspectiva

de complementaridade, seus argumentos carecem de sistematicidade e por isso parecem ser

usados ad hoc, estando aí apenas para sustentar uma argumentação pro diálogo inter-

religioso.

4.c.3. Claude Geffré

Claude Geffré nasceu em Niort (Deux-Sèvre) na França. Dominicano, em Saulchoir

completou seu noviciado e estudos teológicos preliminares, vindo a doutorar-se em Roma em

1957. Como professor, Geffré passou por inúmeras faculdades teológicas, chegando ao ápice

da carreira em 1990 na Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, da qual foi o diretor.

Porém, seus escritos e palestras fizeram-no sofrer algumas sanções eclesiásticas que o

impediram de receber distinções acadêmicas oferecidas por instituições católicas de ensino.

Por exemplo, um doutorado honoris causa oferecido pela Faculdade de Teologia de Kinshasa

e cuja cerimônia acabou não ocorrendo por um veto da congregação para a doutrina da fé,

provavelmente motivado pela publicação de seu último livro, De Babel à Pentecôte, o qual

em suas primeiras páginas já recomenda uma revisão da teologia católica tradicional:

Neste início do século XXI, a teologia deve-se confrontar com um novo desafio, este
do pluralismo religioso. E, além disso, não se trata apenas de agregar um novo
capítulo ao edifício solidamente construído da teologia clássica. Trata-se de realizar
uma reinterpretação da fé que entranha os lugares mais importantes no interior dos
capítulos fundamentais de uma dogmática cristã442.

442
C. Geffré. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse (Paris : Du Cerf, 2006), p. 28.
176

O ponto de partida de C. Geffré é semelhante ao de outros pluralistas, pois também


443
defende uma “mudança de paradigma teológico” . Ele defende a ampliação do círculo

hermenêutico para além do texto escriturístico e a inclusão nesse círculo a “existência humana

em todas as suas dimensões”444. Geffré, assim como J. Dupuis, quer manter-se nos limites de

uma hermenêutica triádica que caracteriza a teologia católica: o texto, a Igreja e o contexto

histórico do ouvinte da palavra, mas não em fidelidade à letra do texto, e sim à mensagem

cristã interpretada pelo espírito dos tempos:

A fé só é fiel ao seu próprio impulso e ao que lhe permite crer se levar a uma
interpretação criadora do Cristianismo. O risco de não transmitir mais que um
passado morto, por falta de audácia e de lucidez, não é menos grave do que o do
erro445.

Como é evidente, não era possível, mantida esta opção hermenêutica, evitar o confronto

com a cúria romana. Ora, a proposta de Geffré parece ser, de certa forma, reescrever as fontes,

defendendo, como ele diz, o aporte de “novas figuras históricas na forma de escrituras ou

práticas inéditas”446. O conceito de revelação de Geffré admite facilmente este processo de

novas escriturações por três motivos: primeiro, o mistério divino está entretecido na própria

estrutura do ser humano, daí a capacidade de todas as religiões revelarem algo sobre Deus.

Segundo, para ele, conforme uma orientação tillichiana, religião é uma experiência de

“descentramento de si em favor de uma realidade última”447, ou seja, qualquer pessoa que

experimente autenticamente este processo é capaz de falar de Deus. Terceiro, porque a

Palavra de Deus não se reduz a um livro, mas existe à medida que faz parte da história de uma

comunidade confessante448.

443
C. Geffré. “Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne” (RTL, 31,
2000), p. 9.
444
Idem. Un nouvel âge de la théologie (Cogitatio fidei 68, Paris: Cerf, 1972), p. 61.
445
C. Gefré. Le christianisme au risque de l'interprétation (Paris, Éd. du Cerf, 1983), p. 18.
446
C. Geffré. Le christianisme au risque de l'interprétation, pp. 70-72.
447
C. Geffré. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse, p. 19.
448
C. Geffré. De Babel à Pentecôte. Essais de théologie interreligieuse, p. 20.
177

Diferindo de outros pensadores que tendem a transformar o Cristianismo numa lealdade

a uma figura abstrata, o Logos, Geffré está consciente da importância do Jesus histórico para a

teologia cristã e de nossa dependência de sua manifestação na Palestina do primeiro século

para chegarmos ao conhecimento de Deus: “Só podemos conhecer o Deus de Jesus a partir da

particularidade da história de Jesus”449. Por outro lado, também não entende a encarnação

como poesia ou metáfora piedosa. O verbo é realmente o Deus encarnado. Contudo, o Jesus

histórico não esgota como “absoluto concreto” toda a riqueza da manifestação divina:

Depois da idade apostólica, a Igreja confessou Jesus como Filho de Deus. Mas uma
teologia prudente deve se guardar de identificar o elemento crístico contingente de
Jesus a seu elemento crístico divino. A manifestação do absoluto de Deus na
particularidade histórica de Jesus de Nazaré nos ajuda a compreender que a
unicidade de Cristo não é exclusiva em relação a outras manifestações de Deus na
história. Há uma identificação de Deus com Jesus, segundo a forte expressão da
epístola aos Colossenses (2: 6): “a plenitude da divindade habita nele
corporalmente”. Porém, esta identificação nos reenvia ela mesma ao mistério
inacessível de Deus que escapa a toda identificação. O Cristianismo não é, portanto,
não exclui as outras tradições religiosas que de outra forma identificam a realidade
última do universo450.

Geffré também adverte o leitor quanto ao perigo de o Jesus histórico tornar-se um ídolo,

por se pensar nele como limite e continente do divino451. Jesus é ícone, é sinal, é o horizonte

humano pelo qual se pode vislumbrar o divino, mas assim como o céu não cabe no horizonte,

o Logos não se esgota em Jesus. Nossa limitação não é só ontológica, mas também histórica,

dado que o contingencionamento ocorre tanto em Jesus como em nós, em face às

circunstâncias históricas e geográficas em que todos os humanos estão envolvidos. Ou seja, a

revelação de Deus em Jesus é completa e definitiva, mas sua compreensão plena nos remete

ao ministério do Espírito, que para Geffré é uma promessa para toda a humanidade e não só

para a Igreja452.

449
C. Geffré. “O sentido e o não sentido de uma teologia não-metafísica” (Concilium, no. 6, 1972), p. 790.
450
C. Geffré. “La théologie des religions ou le salut d’une humanité plurielle (RP 2001/4), p. 117.
451
Idem. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia (Petrópolis: Vozes, 2004), pp. 164-165.
452
C. Geffré. “La verdad del Cristianismo en la era del pluralismo religioso” (ST, v. 37, no. 146, 1998), p. 138.
178

A mediação da salvação, portanto, não se dá apenas por meio do Cristo no contexto

cristão. As outras religiões também são mediadoras à medida que seu ministério é derivado

deste mesmo Logos. Em suma, através das práticas religiosas das outras religiões Deus

também manifesta seu amor e sua vontade salvífica453. Qual é então o papel das Igrejas cristãs

no mundo, de que proclamação deve tornar-se porta-voz? Segundo a hermenêutica de Geffré

e de seu novo conceito de verdade relacional, o papel dos cristãos é compartilhar uma verdade

que transborda, que se articula a das outras religiões; e que, enfim, aprende mais sobre si

mesma à medida que se acerca daqueles que proclamam e vivem de uma forma diferente a

salvação divina454.

O conceito fundamental a serviço desta nova hermenêutica é o reino de Deus. Para

Geffré, assim como para outros pluralistas: “A igreja como realidade histórica, não tem o

monopólio dos signos do reino; Deus é maior que os signos históricos pelos quais ele

manifesta sua presença”455. O caráter universal da igreja não depende mais do caráter absoluto

do Cristianismo, depende do mistério divino, pelo ministério do Espírito, que faz com que o

reino de Deus se amplie no mundo. Cabe à Igreja colaborar com este processo.

Resumindo, é difícil decidir se Geffré é inclusivista ou exclusivista, em sua teologia há

elementos para ambas conclusões e talvez isto se deva à própria condição de eclesiástico que

deve lealdade a seus superiores hierárquicos e à doutrina da Igreja Católica. O que diz, por

exemplo, sobre Jesus é bem sintomático, pela falta de coerência: o Logos não se esgota no

Jesus histórico; este não perde sua importância e é apenas ícone, sinal da presença de Deus na

história; suas palavras e mensagem devem ser reescritas pelos leitores atuais. De tudo isto,

para mim o maior indício de que Geffré é pluralista é seu relativismo que faz com que a Igreja

453
C. Geffré. “La place des religions dans le plan du salut” (Spiritus, no. 138, 1995), p. 88.
454
Idem. “Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne”, p.32.
455
C. Geffré apud Giles Langevin e Raphaël Pirro. Le Christ et les cultures. Dans le monde et l’histoire
(Quebec: Les Éditions Belarmin, 1991), p. 23.
179

Cristã encontre as demais religiões num espírito de compartilhamento de verdades, cuja efeito

não é as religiões conhecerem o Deus pregado pelos cristãos, mas os cristãos conhecerem

melhor a si mesmos e a salvação divina também presente e agindo de forma diferente nas

outras religiões.

4.c.4. Raimon Panikkar

Raimon Panikkar foi um religioso católico romano, filho de mãe espanhola, católica, e

de pai indiano e hindu. Graduado em Filosofia, Química e Teologia e doutor nas três áreas

(1946, 1958 e 1961, respectivamente), foi também um profundo conhecedor da filosofia e

religião hindu e budista, o que o qualificou à tentativa de realizar uma grande síntese do

pensamento religioso contemporâneo, aproximando as três religiões mundiais: o Cristianismo,

o Hinduísmo e o Budismo. Seu projeto não é um expediente meramente teórico, mas algo que

tem relação com sua experiência inter-religiosa, obtida por nascimento e educação456. Atuou

na docência nas mais importantes instituições de ensino do mundo (Harvard, Universidade da

Califórnia), tendo se notabilizado na metafísica, hermenêutica, filosofia, diálogo inter-

religioso, ciências e educação457. Escritor profícuo e solicitado pelas mais renomadas editoras

do mundo, tem sua assinatura em mais de 40 obras, além de centenas de artigos, sendo a mais

456
“Tem havido um companheiro de viagens em minhas jornadas para as diferentes terras dos homens. Os filhos
de meu tempo e ambiente, / pensamento/souberam bem quem era o companheiro em minhas visões intelectuais e
espirituais de mais de meio século atrás. Ocorreu, porém, um momento crítico quando eu atingi meu lar ancestral
no ápice de minha vida: meus passos para a cidade da paz, para procurar e talvez encontrar meu companheiro
outra vez, eu prossegui sozinho, para o campo de batalha perpassado de guerras fratricidas. Chocado e
envenenado eu me recusei a permanecer lutando contra qualquer dos partidos... Eu permaneci um consciente
opositor, rejeitado por ambos... Arriscando minha vida ao oferecer meus serviços a todos sem aceitar suas
respectivas dialéticas, eu me encontrei de repente no mundo do tempo. E daí me veio a sacralidade de tudo,
mesmo do secular, raiando sobre mim. Assim, eu estou na confluência (sangam) de quatro rios: as tradições
Hindu, Cristão, Budista e Secular.” (Raimon Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 23)
457
Camilia G. MacPherson. A critical reading of the development of Raimon Panikkar’s thought on the Trinity
(Lanham, Ml: University Press of America, 1996), p. 2.
180

importante delas a já citada The unknown Christ of Hinduism. Towards an ecumenical

christophany, baseada em sua tese de doutoramento em Teologia458.

É sempre complicado abordar o pensamento de Panikkar. Além de ter trânsito por várias

áreas do conhecimento, ele não foi um pensador sistemático e nunca se preocupou em

sistematizar suas ideias. De acordo com a tipologia de Isaiah Berlin459, segundo a qual os

pensadores e escritores podem ser divididos em dois grupos: os ouriços-cacheiros e as

raposas, Panikkar é um pensador-raposa 460 . As raposas são pensadores que se sentem à

vontade com a multiplicidade da realidade e sempre encontram uma maneira de ajustá-la ao

quadro de suas ideias, pois seu gênio está na capacidade sintética que possuem de relacionar

as coisas; já os ouriços são os que desprezam a multivacidade, possuindo uma visão monista

do mundo, contudo, analisam com tanta profundidade esta única coisa, que logram

transformá-la num mundo de significados.

Panikkar com certeza é um pensador-raposa, compartilhando com Aristóteles,

Montaigne, Goethe e outros, uma das características mais fundamentais deste tipo de

pensador: a aversão à sistematicidade. Daí a dificuldade de empreender uma visão panorâmica

de suas ideias; as conexões são tantas que o analista perde o fio das ideias e não tem como

sintetizar o autor posto sob exame. A melhor forma de estudar este tipo de pensador é

escolher temas que pelo número de aparições indiquem sua importância no escopo total de

suas ideias. No caso de Panikkar, podemos empreender a tentativa de entendê-lo por uma

percepção que é comum a outros teólogos das religiões, a saber, a de que em nossos dias

458
Este texto tem duas edições bem distintas. A primeira, de 1964, estava alinhada à teologia conciliar de
Vaticano II, o Cristo do qual fala era desconhecido pelos hindus, mas era conhecido pelos cristãos, e estava
comprometido com um projeto de enculturação em que conceitos hindus foram reinterpretados ou traduzidos
para a plataforma conceitual cristã. A edição de 1981 é completamente diferente, o Cristo de que fala é uma
figura universal, de que o Jesus histórico é apenas uma representação entre outras. Em suma, “Panikkar insiste
[…] que Jesus é Cristo, mas que o Cristo não é apenas Jesus” (Rudolf von Sinner. Confiança e convivência:
reflexões éticas e ecumênicas – São Leopoldo RS: Sinodal, 2007, p. 125.
459
Isaiah Berlin. The hedgehog and the fox (Princeton: Princeton University Press, 2013), p. 2.
460
Berlin baseou-se num fragmento de Anquíloco para criar a tipologia: “a raposa tem muitos truques; o
cacheiro, apenas um único grande truque”
181

vivemos sob a égide de uma mudança paradigmática, segundo a qual nossa forma de pensar

mais profunda está sofrendo transformações irreversíveis.

A base desta ideia está fundada no conceito de Thomas Kuhn461, filósofo da ciência, que

demonstrou que a objetividade científica é um mito. A ciência não evolui por alguma

qualidade intrínseca, mas porque certas teorias se tornam insustentáveis em face à realidade

que as contraria reiteradamente, tornando necessária a quebra de paradigmas. Nos longos

períodos em que a ciência permanece estacionada por seu próprio dogmatismo as questões

institucionais pesam mais do que o suposto amor ao conhecimento e à verdade dos cientistas,

de modo que elementos sociológicos também são levados em conta no processo de validação

das descobertas científicas.

Esta, no entanto, não é a parte da tese de Kuhn que interessa aos teólogos citados,

definida por ele como “ciência normal”. O que lhes interessa são os momentos de crise em

que as anomalias não se encaixam no sistema corrente, obrigando à ciência a adoção de um

novo sistema462. Para alguns teólogos (H. Küng e J. Dupuis) as anomalias que impedem a

manutenção do paradigma religioso anterior são: (a) a decadência ou refluxo do Cristianismo,

causado pelo secularismo, e (b) eflorescência das outras religiões mundiais. Estes eventos

produziram furos naqueles sistemas teológicos pré Vaticano II e obrigaram a teologia a olhar

para o mundo como uma realidade multirreligiosa. Para Panikkar, assim como para P. Knitter,

além destes problemas, deve-se colocar uma nota enfática nos problemas ambientais e na

nova percepção holística planetária.

461
The structure of scientific revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1970).
462
Usando a metáfora da construção civil, paradigmas são as estruturas dos prédios que servem de suporte e ao
mesmo tempo de modelo no qual cada tijolo, janela, porta devem ser encaixados, definidos pelo mesmo modelo,
o lugar de cada um. Os paradigmas são estruturas construídas para receber objetos ainda desconhecidos, porque
a ciência não pode trabalhar com o caótico, por isso estes modelos são chamados de teorias. Momentos de crise
paradigmática ocorrem quando existem objetos, informações do mundo factual, que não se encaixam na
estrutura teórica previamente construída: anomalias. Quando isto ocorre é necessário a substituição do
paradigma, ou do modelo, em sua totalidade.
182

Como vimos páginas acima, Panikkar compreende a história da religião cristã por meio

de três paradigmas sucessivos: A cristandade, marcada pela unidade político e sociocultural

da Idade Média; o Cristianismo, caracterizado pela uniformidade doutrinal na Idade Moderna

e Contemporânea; e a Cristiânia, assinalada por uma solidariedade espiritual cósmica, que

caracteriza os tempos pós-modernos:

Com o nome de Cristiânia quero representar uma nova consciência crística. A


novidade é mais que tudo sociológica e consiste na passagem de uma consciência
mística interior, reservada a poucos à sua manifestação na vida de cada dia
(secularidade). [...] Trata-se de uma mudança eclesial na mesma autocompreensão
cristã, um salto na história do Ser mediante um novo grau de consciência no homem
e por isso uma mudança em sua própria natureza, cuja essência é a
autocompreensão. Cristiânia se constituiria na contribuição cristã a esta mudança
cósmica na aventura do universo, na qual todos nós estamos implicados463.

Esta contribuição do Cristianismo de que fala a citação pode ser, por exemplo, uma

visão trinitária da realidade religiosa, chamada cosmoteândrica, em sua dimensão ontológica:

“a totalidade da realidade poderia ser chamada usando uma linguagem cristã, Pai, Filho e

Espírito Santo”464. Na dimensão religiosa a estrutura ecumênico-trinitária estaria dividida nos

modos como Deus é adorado, que ele aprendeu com a tradição hindu, os quais consistem em

três tipos de espiritualidade, cada uma delas correspondendo a uma das pessoas da Trindade,

Pai, Filho e Espírito Santo, respectivamente: Jnana-mag, a espiritualidade do silêncio, da

consciência e da meditação; Bhakti-mag, a espiritualidade da devoção; e Karma-mag, a

espiritualidade das ações cúlticas ou rituais 465 . No contexto do diálogo inter-religioso,

segundo Panikkar existe a mesma estrutura trinitária, subjacente às diversas espiritualidades:

“o silêncio do Pai está expresso no Budismo; o Logos pode ser encontrado no Judaísmo,

Islamismo e Cristianismo; e a diversidade dos movimentos do Espírito está presente nas

múltiplas formas de Hinduísmo466”.

463
R. Panikkar. “Cristiania, dimensione nascosta del Cristianesimo”, p. 278.
464
R. Panikkar. “A christophany for our time” (TD, Spring, 1992), p. 37.
465
Apud Francis X. D’Sa. “How Trinitarian is Panikkar’s Trinity (CR, no. 3, supplement), p. 38.
466
Ilia Delio. Christ in evolution (New Delhi: Logos Press, 2010), p. 140.
183

Na formulação cosmoteândrica ou teantropocósmica467, a unidade da realidade é vista

pelo prisma cristológico, sendo Cristo o símbolo de uma unidade, dividida em três elementos

inseparáveis, mas distinguíveis: o cosmo, o homem e Deus, perceptíveis por três faculdades

humanas, respectivamente, sentido, mente e consciência 468 , que por sua vez também são

inseparáveis: a realidade em sua relação469.

A intenção de Panikkar é claramente uma síntese teológica que envolva as religiões

mundiais (Catolicismo, Hinduísmo e Budismo) e os irreligiosos secularizados. Alguns

teólogos têm se mostrado céticos em relação às liberdades hermenêuticas de Panikkar470. Por

faltar-lhe bases mais sólidas para a argumentação teológica além do misticismo, do método

alegórico da Patrística grega, aplicado de forma mais ampla do que ousaram seus criadores; e

pela utilização de conceitos cristãos para definir experiências religiosas que escassamente são-

lhe compatíveis.

Por exemplo, na relação entre o Pai e a conscientização ou Jnana-mag, seria mais

correto substituir a palavra Pai por Brahman471 e conscientização por Ioga472, pois o deus que

é perceptível por meio da meditação não é o Deus bíblico, que ouve, comunica-se e atua, mas

apenas a condição de possibilidade da realidade, ou ainda, o poder que tudo mantém, no qual

467
Haveria muito que esclarecer sobre este conceito de Panikkar e seu aparente monismo inspirado, na filosofia
hindu (advaita) que rejeita a tricotomia cartesiana homem, Deus e mundo. Vamos deixar este capítulo de lado. O
autor nos adverte, contudo, trata-se de uma intuição mística e não analítica. Ou seja, não é uma rubrica subscrita
ao capítulo da ontologia filosófica, desde que não está pensada em relação à epistemologia, mas à teologia e à
mística. Contudo, em outro lugar vem afirmado que são “três dimensões do real” (R. Panikkar. Entre Dieu et le
cosmes. Entretiens avec Gwendoline Jarczyk – Paris: Albin Michel, 1998, p. 135).
468
Muitos intérpretes têm apontado para a natureza excessivamente esquemática dessas ideias, em que, por
exemplo, o número três acaba servindo de pretexto para estas aproximações do Cristianismo e as outras
religiões, ou melhor dizendo, atitudes em relação ao Real, ou seja, baseado em dados materiais bem irrisórios. A
exemplo do artigo já citado de Francis X. D’SA. “How trinitarian is Panikkar’s Trinity”, p. 40.
469
R. Panikkar. The rhythm of being. The Glifford Lectures (New York: Orbis Books, 2010), p. 183.
470
Rudolf von Sinner. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecumênicas (São Leopoldo RS: Sinodal,
2007), p. 102.
471
“O mundo inteiro era visto como atividade divina brotando do misterioso Brahman, o significado oculto de
toda a existência. Os Upanishads estimulavam as pessoas a cultivar o senso de Brahman em todas as coisas. Era
um processo de revelação no sentido literal da palavra: um desvelar da base sagrada de todo ser, tudo o que
acontecia constituía numa manifestação do Brahman: o verdadeiro discernimento estava na percepção da
unidade existente por trás dos fenômenos”. (Karen Armstrong. Uma história de Deus, p. 46).
472
“As técnicas da yoga levam os adeptos a conscientização da existência de um mundo interior, que é Atman,
princípio eterno um com o Brahman”. (Karen Armstrong. Uma história de Deus, p. 47).
184

se pode ter uma experiência de imersão, mas não de comunhão. O Espírito presente no culto

ou Karma-mag, não é o que guia em toda a verdade, mas o que torna tudo verdade. O Cristo

da Bhakti-mag em Panikkar tem um perfil mais complexo, com certo fundamento na teologia

paulina473.

Com efeito, o papel de Cristo nesta realidade total, holisticamente entendida por

Panikkar é ser ele o catalisador e unificador destes elementos, constituindo a união mística

paulina de todas as coisas com Cristo: (a) do homem com os outros homens, (b) do homem

consigo mesmo e com Deus. (c) do homem com o planeta.

(a) Do homem com os outros homens, desde que a base das culturas é a religião, Cristo

significa a unidade no campo religioso. Cristo é o fundamento de todas as manifestações

(cristofanias) espirituais superiores da humanidade, chamadas por vários nomes: Rama,

Krishna, Ishwara, Perusha, provenientes de diversas culturas e momentos históricos, mas

fazendo parte do mesmo mistério indivisível, cada um deles uma dimensão desconhecida do

Cristo474. A base desse mistério é a teologia do Logos do prólogo joanino, porém, com uma

dimensão que vai muito além do Jesus histórico, que é apenas uma das manifestações crísticas

na história, apenas um símbolo do Cristo cósmico, por conta de todos os condicionantes

culturais, históricos e geográficos que lhe são pertinentes 475 . Com isto, a salvação do ser

humano por Cristo pode ser mediada por qualquer religião não possuindo o Cristianismo mais

nenhum privilégio sacramental:

O bom e bona fide hindu, tanto quanto o bom e bona fide cristão são salvos por
Cristo – mas não pelo Hinduísmo ou Cristianismo per se, mas através de seus
473
II Cr 5: 19; Gl 3: 28; Cl 3: 11.
474
R. Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 23-30.
475
A forma como a cristologia de Panikkar evoluiu diz muito sobre sua própria evolução no panecumenismo. Na
primeira edição de seu livro The unknown Christ of Hinduism (1964) ele escrevia: “o lugar onde Cristo é
plenamente revelado é Jesus Cristo”. O Cristianismo, portanto, “é o lugar onde Cristo é completamente revelado
e é a plenitude de todas as religiões”. Na mesma obra, na edição de 1981 ele mudou do vinho para água: “quando
eu chamo de Cristo o link entre o finito e o infinito, não estou pressupondo sua identificação com Jesus de
Nazaré” (p. 27). Ele abre mão do escândalo da particularidade paulino, com isto, em minha opinião, deixa de ser
cristão.
185

sacramentos e, em última instância, por meio do mistério ativo no interior das duas
religiões476.

Prosseguindo em sua argumentação Panikkar aproxima o conceito cristão do Logos do

conceito vedanta do Ishvara. Há alguns pontos de contato: o Ishvara é o revelador de

Brahman, o deus originador de todas as coisas. E este é a origem não originada de tudo, o

princípio criador e unificador de tudo o que existe e o que não existe. Mas, é um deus

impessoal, muito parecido com o primeiro motor imóvel de Aristóteles. Ato puro e por isso,

por não haver nele movimento, desde que nele não há o trânsito entre potência e ato, é um

deus inerte, incapaz de se ocupar de outra coisa a não ser de si mesmo. Brahman é o “abstrato

fundamento do ser, a mera pré-condição da existência”477. Ishvara é o rosto de Brahman, seu

aspecto pessoal, o criador, o revelador de Brahman, o que desce aos homens em forma de

avatar, o que é idêntico e ao mesmo tempo diverso em relação a Brahman478.

Se continuarmos as comparações as semelhanças pararão por aí. Por exemplo, (a)

Brahma e Yaweh/Elohim não coincidem. Brahman é um típico deus otiosus (deus ocioso),

conforme a tipologia de Mircea Eliade 479 ; o Deus judeu-cristão é completamente ativo e

pessoal, que intervém na história humana. (b) a missão de Ishvara e do Logos joânico também

divergem. A missão de Jesus é a salvação dos homens, por inaugurar a chegada do reino de

Deus e por sua morte vicária; a missão dos avatares é a salvação dos homens por ajudá-los a

encontrarem o caminho para fora do ciclo do karma. Sem falar em outras diferenças como as

definições de pecado, tempo, etc.

Panikkar reconhece a impossibilidade de uma completa equalização simbólica entre o

Ishvara e o Logos 480 . Não tem importância. Tudo o que ele pretende é retirar a ênfase

476
Idem. The unknown Christ of Hinduism, p. 85.
477
Raimon Panikkar. The unknown Christ of Hinduism., p. 106.
478
Raimon Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 122-124.
479
Origens (Lisboa: Edições 70, 1989), p. p.66.
480
R. Panikkar. The unknown Christ of Hinduism, p. 132.
186

religiosa cristã do Jesus histórico e transferi-la para o Logos. Pois se os cristãos quiserem que

a figura de Cristo se torne aceitável para os hindus devem deixar de lado o Jesus histórico e

permitir que o Logos a-histórico ou trans-histórico entre na boca de cena do diálogo inter-

religioso. Por outro lado, os cristãos devem passar a crer que por uma autocompreensão

crescente, o ser humano possa se aproximar de si mesmo e do divino:

Os cristãos creem que Deus tenha se tornado homem, mas têm medo de crer que o
homem possa ser chamado a se tornar Deus. Os hindus ao contrário têm dificuldade,
não tanto que o homem possa se tornar Deus, mas de crer que Deus possa ter se
tornado homem481.

(b) A unidade do homem consigo mesmo e com Deus. O processo de autocompreensão

aventado leva o homem a Deus e ocorre quando aquele faz “uma descoberta pessoal do

mistério da vida e da existência, num encontro pessoal com a realidade”482. A encarnação do

Logos é a maior prova da possibilidade humana para o divino: “Ele [Cristo] nos revela que

também nós podemos chegar a ser Deus, pois Cristo diviniza o homem”483. Primeiramente, a

presença de Deus no homem é ontológica, e vem atestada também no pensamento hindu. O

Brahman sendo o fundamento do ser, todo homem pode dizer: ahambrahmasni (eu sou

Brahman). Em segundo lugar, sobrenaturalmente, há uma deificação da criação inteira na

encarnação do Logos. O homem quando chega a esta compreensão entende sua comunhão

com os outros, com o mundo e com Deus.

(c) A unidade do homem com o cosmo. A missão de Cristo é cosmoteândrica, portanto,

implica uma visão mais abarcante da encarnação, pois ele também veio restaurar o mundo

físico484. E a restauração do cosmo e do homem em Cristo implica a responsabilidade humana

em relação ao destino do planeta485. Neste contexto deve ser pensada a degradação ambiental

481
R. Pannikar. “Nove sutra sul Cristo asiatico” (Micromega, 2, 2001), p. 289.
482
R. Panikkar. Salvation in Christ . Concreteness and universality. The supername (Santa Bárbara, CA:
University of California Press, 1972), p. 62.
483
Idem, La plenitud del hombre (Madrid: Siruela, 1999), p. 39.
484
Ibid, p. 220.
485
R. Panikkar. Ecosofia. Para una espiritualidad de la tierra (Madrid: San Pablo, 1994), p. 45.
187

e a exploração do homem pelo homem, ou seja, a questão ambiental é uma questão ética e a

questão ética é religiosa.

A hermenêutica inter-religiosa de R. Panikkar fecha assim seu círculo, convidando o

Cristianismo e as demais religiões ao diálogo. Segundo ele, somente deste modo será possível

a plena realização da evolução e do desenvolvimento humanos: “o verdadeiro Atman de (em)

cada um de nós é Brahman. A essência de Buda subjaz no fundo de cada ser. Todos estamos

chamados a compartilhar a natureza divina”486.

4.c.5. Michael Amaladoss

Jesuíta, nascido em 1936 em Tamil Nadu, Índia, doutorou-se em Teologia pelo Institute

Catholique de Paris. Atualmente é diretor do programa de Pós-graduação em Teologia no

Vidyajyoti College of Theology em Delhi, professor visitante na Universidade de Virginia nos

Estados Unidos e diretor do Institute for dialogue with cultures and religions, Chenai, além de

conferencista requisitado pelas mais importantes instituições educacionais e políticas do

mundo.

Como seus colegas apresentados mais acima, Amaladoss é um teólogo das religiões

pluralista, preocupado com a convivência pacífica das religiões na Índia, onde o Cristianismo

é minoritário e os conflitos religiosos são comuns. Esta preocupação permeia toda sua

trajetória como clérigo católico e como pensador cristão, desde meados da década de 70,

quando ele começou a ganhar projeção nos círculos cristãos de seu país. Naquela época,

porém, o que o desafiava era o problema da enculturação487, ou seja, a necessidade de adaptar

486
Idem. Sobre el diálogo intercultural (Salamanca: Editorial San Esteban, 1990), p. 96.
487
Em inglês o autor usa a palavra inculturation. Há um pequeno imbroglio linguístico envolvendo esta palavra.
Aparentemente trata-se de um neologismo, criado pelo autor para evitar o uso da palavra aculturação, por conta
do cunho negativo que possui, vinculado ao colonialismo e suas mazelas. Em português está consagrado o uso da
palavra aculturação para designar a adoção de uma nova cultura e enculturação para a socialização da criança na
cultura do lugar onde nasceu. Para evitar a carga semântica negativa, achamos por bem conservar a palavra
usada pelo autor na tradução, apesar de não existir na língua portuguesa. Inculturação neste caso tem o objetivo
188

o evangelho à cultura dos povos, para que não houvesse mera tradução das palavras do

evangelho, mas sim uma simbiose não alienante do novo com o antigo. O modelo de

Amaladoss naquela altura eram as igrejas paulinas, que não se satisfizeram com a mera

replicação do modo de vida judaico, mas adaptaram o evangelho às suas próprias práticas e

vivências greco-romanas488.

Ainda ligado à perspectiva inclusivista Amaladoss publicou sua obra mais famosa The

Asian Jesus, onde apresenta as várias imagens enculturadas de Jesus em seus dias na face da

terra, para justificar a tarefa que toma por encargo: o delineamento das faces asiáticas de

Jesus. A partir daí Amaladoss passa em revista vários conceitos que consistentemente tinham

sido aplicados a Jesus por outros pensadores hindus: Jesus como mestre da moral; Jesus como

avatara, encarnação de Vishnu; Jesus como satyagrahi, seguidor da verdade e da não-

violência (ahimsa); Jesus como advaitin, aquele que entendia a sua relação com Deus de um

modo não dual: “eu e o Pai somos um”; Jesus solidário com a humanidade sofredora; Jesus

como Bodhisattva, o iluminado que adia sua entrada no nirvana a fim de mostrar o caminho

da libertação a outros seres humanos489. Amaladoss por assim dizer dá por concluída esta

primeira fase de sua reflexão, com a execução de um projeto de aculturação asiática da figura

de Jesus.

Porém, as coisas não ficariam neste pé. O teólogo indiano percebe que a enculturação

não só possibilita um ganho para a cultura que recebeu o evangelho e o amalgamou ao seu

modo de viver, mas o próprio evangelho ganha ao ser enculturado porque se enriquece pela

manifestação de aspectos inéditos da verdade, provocados pela nova situação490. Nesta esteira,

de ressalvar, o fato de que não se trata de mera substituição de uma religião por outra e nem de sincretismo
indiscriminado.
488
M. Amaladoss. “Inculturation: theological perspectives” (Jeevadhara, 33, 1976), p. 300.
489
Cf. Jacques Dupuis. Jésus-Christ à la rencontre des religions (Paris: Desclée, 1989).
490
M. Amaladoss. “Théologie indienne” (Études, n. 3783, 1993), p. 342.
189

alguns anos depois, viria à lume a obra Além da enculturação. Podem muitos serem um491.

Nela Amaladoss romperia com dois princípios fundamentais presentes em suas obras

anteriores: (a) as definições a priori de enculturação, e (b) o controle do processo por um

erudito da religião cristã492, como se pode perceber na citação abaixo:

[...] O discernimento da autenticidade e das expressões culturais de Deus ou das


sementes do Verbo presentes nos outros povos, requer critérios. Deve-se evitar o
perigo de montar estes critérios a partir das atuais compreensões do evangelho.
Devem ser incentivadas as novas expressões da fé. Elas não podem contradizer o
que Jesus pregou e fez. Torna-se necessário voltar aos valores do reino de Deus
como: liberdade, fraternidade e justiça, o amor de Deus e dos outros, beatitudes e
dons do Espírito como alegria e paz, liberdade e comunidade, amor e sacrifício (Gl
5: 22 – 23) 493.

Esta confiança e este otimismo nas comunidades humanas de enculturar de forma

apropriada a mensagem divina devem-se à convicção de que a ação salvífica de Deus através

de seu Espírito aja também fora dos limites da Igreja. Ou seja, estas comunidades, não

importando a confissão religiosa que professem, estão sob a ação do Espírito de Deus e do

Verbo divino: “o verbo que se tornou humano em Jesus tem sido ativo de várias maneiras

através da história. As diferentes religiões deveriam ser vistas como expressões das diferentes

manifestações do verbo através do Espírito”494.

Não há, contudo, no pensamento cristológico de Amaladoss uma equalização de todas

estas manifestações do Verbo. A manifestação encarnada no Jesus histórico é especial. Tem

uma função especial em humildade, qual seja, estar a serviço do mistério e de suas

manifestações onde quer que surjam495, estar a serviço do reino de Deus, sem se importar em

discriminar os credos ou as práticas religiosas. O reino de Deus excede à Igreja e abarca o

mundo e suas religiões; o papel da Igreja é levá-lo à completude. “Assim, a Igreja se relaciona

491
Idem. Beyond inculturation. Can the Many be One (Delhi: ISPCK, 1998).
492
M. Amaladoss. Beyond inculturation. Can the Many be One, pp. xii a xiv.
493
Idem. “Inculturation and Internationality” (EAPR, 28, 1981), p. 248.
494
Idem. “O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso” (CTP, ano 2, no. 10, 2005), p. 17.
495
Ibid.
190

com outras religiões como colaboradores do projeto de realização do reino de Deus no

universo”496.

Obviamente, o conceito de missão não permanece o mesmo. Com efeito, a Igreja neste

novo contexto é chamada a colaborar com o reino de Deus e com a obra do Espírito, atuante

onde homens e mulheres estejam se abrindo para o mistério de Deus. A missão da Igreja cristã

é dialogar e colaborar, principalmente em três frentes: com a multidão dos pobres, com a

riqueza cultural e com as ativas religiões da Ásia497. Em última instância, portanto, promover

a harmonia e a paz entre os povos e não necessariamente a Igreja. Conceitos ligados à missão

também sofrerão alteração. Por exemplo, a conversão neste novo contexto torna-se algo

secundário na vida da Igreja Católica Asiática. Ou seja, são bem-vindos aqueles que se

julgarem chamados por Deus a abandonar sua religião originária e se unir à Igreja, mas o

contrário também é verdadeiro. Se alguém quiser abandonar a Igreja e se unir ao Hinduísmo,

por exemplo, poderá fazê-lo. Não se pode obstar a liberdade do Espírito de Deus498.

4.c.6. Hans Küng

Hans Küng é um teólogo católico atualmente proibido de ensinar teologia católica e

atuando apenas no magistério superior secular, já que na Europa, especialmente na Alemanha,

teologia é conhecimento científico e universitário. Sua defecção em relação à Igreja Católica

ocorreu aos poucos, mas a ruptura foi definitiva: o pensamento de Küng diverge em vários

pontos com o dogmatismo romano, primeiramente no campo metodológico, e depois no

cristológico.

De fato, Küng faz teologia quase como um protestante liberal faria, ou seja, sem

amarras dogmáticas. Em suas palavras: “a situação atual não exige a separação entre teologia

496
M. Amaladoss. “O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso” , p. 15.
497
M. Amaladoss. “Nuevas imágenes de misión” (PI, 94, 2007-1), p. 23.
498
M. Amaladoss. “Religions: an Indian Christian point of view of conversions” (JHCS, vol. 15, 2002), p. 4.
191

e as ciências da religião (como queria Barth). Mas tampouco sua identificação, com a

consequente redução da teologia às ciências da religião ou vice-versa, sim uma cooperação

crítica entre as duas.”499 Esta metodologia não é uma novidade, Küng só está retomando um

projeto de P. Tillich, que, infelizmente, ficou na intenção devido à morte do teólogo teuto-

americano500.

O método de Küng tem três momentos o texto, o contexto e as constantes do

Cristianismo ou a essência. O texto é fundamental. Ele é a matéria prima para a obtenção do

que é essencial no Cristianismo. Porém, concernente a esta questão Küng faz duras críticas ao

magistério da Igreja Católica, especialmente em referência às decisões conciliares de

Vaticano II, porque as declarações estabelecem a paridade e a indissolubilidade entre as

Escrituras, a Tradição e o Magistério. Para Küng a precedência é das Escrituras “critério

supremo e instância definitiva para a reforma da Igreja”. De modo que, segundo ele, a decisão

conciliar acaba produzindo um “círculo vicioso”, que impede a Igreja Católica a romper com

o pensamento dogmático, desde que estabelece como “Palavra de Deus” não só as Escrituras,

mas também a Tradição (logo também as definições papais)501.

Por este motivo Küng reconhece a necessidade da aplicação do método indutivo

também nos estudos cristológicos502, ou seja, pensar a cristologia a partir de baixo, a partir do

testemunho do NT sobre Jesus de Nazaré e daí subir à compreensão do trabalho de Deus

nele503.

Küng crê que o NT procede cristologicamente da mesma maneira. O que é central em

sua mensagem é a morte e ressurreição de Jesus, e não o “motivo encarnacional”. Também,

seguindo sua interpretação, em nenhum lugar do NT há qualquer menção sobre o tornar-se


499
H. Küng. Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico, p. 287.
500
Idem. Proyecto de una ética mundial (Madrid; Planeta-Agostini, 1994), p. 149.
501
H. Küng. Teologia a caminho, p. 70.
502
C. LaCugna. Theological methodology of Hans Küng (New York: Scholars Press, 1982), p. 28.
503
Ibid., p, 29.
192

homem ou de nascer de Deus 504 . Estes conceitos decorrem de um crescente processo de

helenização que conduziu a uma ontologização da cristologia funcional do NT. A fórmula

conciliar “verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus” é interpretada por Küng como

“o verdadeiro homem Jesus de Nazaré que é, pela fé, a verdadeira revelação do único e

verdadeiro Deus”505. A encarnação, portanto, não pressupõe um Logos pré-existente nem este

é uma realidade fática. É apenas uma definição mítica que significa Jesus representa a Deus.

Se por um lado Küng não aceita que se fale da singularidade do evento crístico, porque

os fundadores das outras religiões desempenham um papel semelhante ao de Jesus em suas

culturas, por outro lado, ele não abre mão da definitividade e normatividade da missão de

Jesus. Sua argumentação, contudo, não está ancorada na doutrina da encarnação, sim na

centralidade e peculiaridade do ministério de Jesus, no que completa e aperfeiçoa todos os

outros, vivenciados pelos fundadores das outras religiões. Küng chama Jesus de “o catalisador

crítico de toda religiosidade humana”506.

E isto ocorre porque o ministério de Jesus foi a realização plena e por isso também

crítica das qualidades religiosas de todos os fundadores das religiões universais não cristãs. A

sabedoria de Confúcio, que leva a uma ordenação moral do mundo (harmonia); a iluminação

do Budha, que leva a uma renúncia do mundo (meditação); o fervor profético de Maomé, que

leva à conquista religiosa do mundo (teocracia); e o ministério profético de Moisés, que leva

ao ensinamento moral do mundo (Torah)507. Todas estas características estiveram presentes

superlativamente e definitivamente no ministério de Jesus e por isso podem ser julgadas à luz

de suas palavras e atos.

504
C. LaCugna. Theological methodology of Hans Küng, p. 44.
505
H. Küng apud C. LaCugna. Theological methodology of Hans Küng, p. 44.
506
H. Küng. Proyecto de una ética mundial, p. 125.
507
Idem. Christianity. The religious situation of our time, p. 35.
193

Küng ataca a fossilização da teologia cristã reclamando dela uma adaptação aos novos

tempos:

Não seria adequado numa nova era, em vez de estar simplesmente repetindo os
velhos dogmas helenísticos, concentrarmo-nos outra vez na mensagem do Novo
Testamento e interpretá-la de novo para os cristãos contemporâneos, tal como os
teólogos helenistas uma vez, corretamente fizeram para seu tempo508.

Portanto, a meu ver, em dois pontos a teologia das religiões de Küng fica exposta à

crítica. (1) Primeiro, uma contenção metodológica, a saber, sua tese sobre os paradigmas, em

especial sobre a mudança paradigmática em curso na atualidade. A hermenêutica de Küng é

muito frouxa, discricionária mesmo, pois não há qualquer argumento aduzido que discipline

as atualizações hermenêuticas das quais fala. Ora, isto equivale a relativismo. Em tempos

greco-romanos devemos enfatizar o Logos, as cristologias do alto, como os Pais Apologetas;

em tempos pós-modernos, o Jesus histórico, as cristologias de baixo. Ou seja, a união crítica

entre a Teologia e as Ciências da Religião não se apresenta de uma forma coerente, porque

não há um critério claro de quando a crítica das ciências da religião devem calar as Escrituras

e quando não. Ou então o critério determinante para a mudança paradigmática é histórico e

significa meramente acompanhar as mudanças ideológicas do mundo. Sendo isto verdade

estamos fora dos trilhos faz tempo, desde que a igreja se recusou a endossar o Gnosticismo de

Márcion, Valentino e Nag Hamaddi.

(2) A segunda contenção é relativa aos resultados práticos do Pan-ecumenismo de

Küng. A normatividade e a definitividade do Cristianismo mantidas são contraproducentes em

relação ao que se propõem, pois no final sua conclusão é de que existe uma única religião

verdadeira: a cristã; as demais são “provisoriamente verdadeiras”, que respondem

basicamente a critérios gerais (tanto éticos como religiosos)”509. O problema é evidente. Sua

intenção de manter uma dialética entre a normatividade e definitividade de Cristo e uma


508
H. Küng. Christianity. The religious situation of our time, p. 195.
509
Idem. Proyecto para una ética mundial, p. 126.
194

autocrítica do Cristianismo não é suficiente para não atingir o diálogo inter-religioso. A

autocrítica cristã e a normatividade de Jesus não resulta numa simetria quanto às relações

inter-religiosas. A crítica das religiões atinge os paradigmas do Cristianismo e fá-lo, na versão

de Küng, abrir mão da doutrina da encarnação e do verbo pré-existente. Contudo, mantida a

normatividade da figura de Jesus, o próprio cerne das religiões não cristãs é atingido, desde

que a vida e morte de Cristo é uma crítica a seus fundadores. Assim, no diálogo inter-religioso

os não cristãos perdem mais do que os Cristãos. Contudo, todos perdem e o diálogo inter-

religioso não ganha.

4.c.7. Stanley Samartha

Stanley Samartha é indiano de Karkala, na província de Karnataka, sul da Índia. Aí

também completou sua formação básica até a universitária, estudando teologia sob a

orientação de P. D. Devanandan, o religioso pioneiro do diálogo inter-religioso na Índia. Filho

de pais cristãos, evangelizados pela Missão Evangélica da Basileia, ambos servindo esta

mesma instituição em Bangalore, seu pai como pastor, sua mãe como professora do ensino

fundamental. Mais tarde Samartha estudou com P. Tillich no Union Theological Seminary em

Nova York, quando completou o mestrado. E, posteriormente, em nova viagem aos Estados

Unidos, concluiu o doutorado em Hartford Theological Seminary.

A evolução do pensamento de Samartha não é difícil de acompanhar. Entre 1970 e 1991

ele já estava ocupado com o diálogo inter-religioso, contudo, a partir daí houve uma

modificação importante: ele passou de inclusivista dos primeiros anos – especialmente na

obra Hindus perante o Cristo universal510, para pluralista daí em diante, e é como tal que

escreve a obra que marca esta segunda fase de seu pensamento: One Christ, many religions,

onde abandona as declarações universalistas sobre Jesus “a fim de não incomodar aquelas

510
Hindus vor dem universalen Christus (Sttutgart: Evangelisches Verlag, 1970).
195

pessoas que buscam e também encontram seu caminho da salvação em outras religiões, sem

relação com Cristo”511.

A cristologia pluralista de Samartha está baseada nos Sinóticos e por isto todas as

declarações cristológicas das tradições paulina e joanina são rejeitadas, e, a fortiori, também

as declarações conciliares. Samartha acolhe os resultados do criticismo histórico da teologia

protestante europeia e a utiliza como base para esta rejeição. Para ele não há sinal da doutrina

da encarnação, da pré-existência, do segundo componente da trindade, nos relatos ligados ao

Jesus histórico, portanto, devem ser eliminados. Há aí apenas a referência a um homem,

imbuído de um espírito profético, separado pelo Espírito para uma missão especial em

Israel 512, que também não fez milagres, não ressuscitou de fato e não ascendeu aos céus.

Todos estes ornatos teológicos são produto da fé pós-pascal da Igreja, pois nos relatos

sinóticos se apresenta como teocêntrica513. Sua consciência de Deus e do reino é mais útil

para estabelecer novas relações com vizinhos de outras religiões514 do que as cristocêntricas

dos hinos cristológicos paulinos e do Logos joânico.

Tendo esvaziado a cristologia do NT de seu conteúdo exclusivista, Samartha volta-se

para uma teologia teocêntrica, baseada na doutrina do Espírito Santo, o qual não pode ser

restrito ao canal cristomonista. Não se pode limitar o Espírito a um determinado tempo, lugar

e povo 515 ; aqui Samartha faz uma referência negativa à crença cristã do Espírito agindo

exclusivamente na Igreja. O Espírito é livre para cumprir o mandato de Deus de agir e levar a

salvação a todos, inclusive naqueles que creem de uma forma diferente516.

511
Christine Lienemann-Perrin. Missão e diálogo inter-religioso (São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005), p. 122.
512
S. Samartha. One Christ, many religions: towards a revised Christology (Maryknoll NY: Orbis Books, 1991),
p. 120.
513
Idem. “The cross and the rainbow – Christ in a multireligious culture”. In John Hick and Paul Knitter. The
myth of Christian uniqueness, p. 86.
514
Idem. One Christ, many religions: towards a revised Christology, p. 77.
515
Ibid. p. 97.
516
S. Samartha. “The Holy Spirit and people de other faiths” (ER, 42, 1990), p. 255.
196

É o mesmo Espírito que pairou sobre as águas de toda a criação, que falou através
dos profetas no Antigo Testamento, que estava presente com Jesus nos momentos
críticos de sua vida e ministério, e que se manifestou sendo derramado nos Atos, é o
que também ativou Yajnavalkya, Buda, o profeta Maomé e (por que não?) Gandhi,
Karl Marx e Mao Tse Tung517.

Neste contexto a missão dos cristãos não deve ser um fato isolado, mas compartilhado

com as outras religiões. Nada tem a ver com a expansão estatística do Cristianismo no mundo,

mas com o combate à miséria, à exploração, à intolerância, à doença, e tudo que negue o

desígnio último de Deus, que é a salvação da humanidade. Todas as religiões que possuem

esta agenda são chamadas a compartilhar com os cristãos sua vocação. Devemos reconhecer

que a ação salvífica de Deus ocorre também fora dos limites da Igreja518.

4.d. Conclusão

Na Introdução já foram apresentados os elementos comuns com referência à Teologia

das religiões, agora passamos à Cristologia. Um aspecto fundamental que une os pluralistas é

a distinção entre o Logos e o Jesus histórico, em flagrante oposição à decisão conciliar de

Calcedônia, com exceção de S. Samartha, não por acaso o único dos teólogos asiáticos que

não é católico, e que, portanto, não se inscreve no rol de influenciados pela Patrística grega.

Ele rejeita a doutrina do Logos como um todo, adotando exclusivamente uma “cristologia de

baixo”, transferindo completamente as bases do diálogo inter-religioso para os conceitos de

Reino de Deus e para o Espírito Santo.

À propósito, este é um procedimento metodológico comum a todos os pluralistas:

afastar os indícios fontais que se tornem impeditivos para a hermenêutica pluralista que

praticam. Os outros farão o mesmo que Samartha, obnublando por sua vez a relevância do

Jesus histórico. O que importa neste tipo de abordagem é evitar as fontes quando elas não

517
Idem. Courage for dialogue: ecumenical issues in inter-religions relationships (Geneva: World Council of
Churches), p. 11.
518
S. Samartha. “The Quest for Salvation and the Dialogue between Religions” (IRM, October, 1968), p. 425.
197

estão de acordo com a percepção pluralista da realidade religiosa. Portanto, as fontes têm

papel secundário se comparadas com a exigência empírica plurirreligiosa.

Ainda atrelado à mutilação da Cristologia, pela qual “a cristologia de baixo” é negada,

ou então, separada da “cristologia do alto” (fazendo com que o Logos e o Jesus histórico já

não coincidam, como numa espécie de Neo-nestorianismo), há uma inflação da

Pneumatologia e da Eclesiologia. Negada a cláusula filioque, o Espírito não procede mais do

Filho, mas do Pai e age em todos aqueles que se abrem ao mistério divino e o conceito de

reino de Deus, que absorve o da Igreja, caracterizando uma mudança paradigmática profunda

no modo de os Cristãos se verem e verem os outros:

A teologia cristã sempre reconheceu que as pessoas pertencentes a outras religiões


poderiam ser salvas por Deus, se elas fossem sinceras à sua consciência. O novo é
que hoje nós cremos que Deus está estendendo a mão às pessoas, não apesar de sua
religião, mas em e através de suas religiões519.

A exclusividade religiosa de Jesus fica assim resolvida. No caso dos pluralistas radicais,

tudo fica reduzido a mero simbolismo, cuja relevância restringe-se à academia, não tendo a

menor importância para aqueles que não estão interessados em estudar fenômenos religiosos

de um ponto de vista não religioso, ou seja, sem levar a sério as fontes. No caso dos

pluralistas moderados, a exclusividade e peculiaridade de Jesus é mantida apenas se a

referência for o conceito de Logos ou de Cristo, e este passe a cooptar conceitos religiosos

similares das outras religiões.

Não se pode negar que a doutrina do Logos tem o mérito de tornar o Cristianismo

menos escandaloso à religiosidade hindu, contexto religioso onde todos os teólogos citados

trabalham ou trabalharam. Com efeito, no mundo religioso hindu há duas características

fundamentais, uma favorece a aceitação não só do Cristianismo, mas também de outras

religiosidades; a outra desfavorece a aceitação do Cristianismo, respectivamente: (a) uma

519
M. Amaladoss. “O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso”, p. 13.
198

longa história religiosa sincrética, que passou por várias etapas, reformas, e que possui

milhares de deuses em seu panteão; (b) uma tendência natural a abstrair o deus supremo

(Brahman) de toda e qualquer realidade palpável. Os Vedas já falavam deste mundo como

maya (véu), que em sua multiplicidade obsta a visão do Uno, sendo, portanto, um obstáculo à

compreensão do divino. Desta forma, causa perplexidade à compreensão hindu dizer que

Deus pode entrar na história e assim fazer parte desta multiplicidade ilusória do mundo.

A crux da questão é a incompatibilidade que surge quando se toma o secundário como

primário e vice-versa. O Logos da Escritura não é um conceito filosófico, porque é crido e

descrito como pano de fundo do Jesus histórico. Daí a conclusão de que a abordagem

logocêntrica não faz justiça à intenção da fonte. Por causa da referência religiosa e cultural

acima, tenta-se sacrificar a história terrena de Jesus no altar do diálogo inter-religioso. Dela

restando apenas uma aparência, pelo menos no âmbito sacral, porque perde a marca da ação

divina, ou, melhor dizendo, deixa de ser o lugar privilegiado da ação divina. Cristo como

categoria religiosa universal está presente na teologia hindu sob o nome de Avatara, que

representa Vishnu encarnado no mundo, para restaurar o equilíbrio planetário.

Obviamente, a última solução é melhor do que a primeira por manter as características

do discurso e das práticas religiosas. Contudo, cabe ainda perguntar se esta inflação do Logos

constitui-se realmente em teologia das religiões de uma perspectiva cristã. A capacidade de

acomodar novas ideias religiosas em seu seio é uma qualidade do Hinduísmo, não do

Cristianismo. Não seria mais verdadeiro dizer que a teologia do Logos, assim como entendida

pelos pluralistas moderados, tem apenas uma aparência cristã e deve ser entendida como um

capítulo importante na teologia das religiões da perspectiva hindu? Não teria ocorrido algo

parecido na história do Cristianismo quando o Gnosticismo, fundamentado no Neoplatonismo

e nas religiões de mistério se apresentaram ao mundo antigo com uma face cristã? Se não

vejamos, praticamente todas as características da cooptação gnóstica do Cristianismo fazem-


199

se presentes no projeto de Panikkar: (a) o uso de vocabulário cristão para designar conceitos

forâneos, (b) a defesa de um tipo de conhecimento esotérico, (c) tentativa de síntese entre as

religiões, (d) desvalorização do ministério do Jesus histórico, (d) desvalorização das fontes

neotestamentárias cristãs.

E, como última crítica cabível, o conceito de reino de Deus, que parece ser muito mais

uma critica velada às instituições religiosas cristãs e um elogio às organizações religiosas não

cristãs, onde, segundo estes teólogos, o Espírito atua e onde o mistério divino é adorado.

Infelizmente, há um otimismo injustificado ao se entregar um cheque em branco a todas as

instituições religiosas do mundo religioso não cristão, definindo-as como colaboradoras do

reino de Deus.

Em certo sentido estes teólogos estão sendo coerentes. Conceitos peculiares do

Cristianismo, tais como pecado e mal foram varridos para baixo de seu tapete hermenêutico,

de sorte que na realidade empírica que eles contemplam já não há nenhuma destas coisas,

senão uma humanidade irênica a ter sua paz perturbada por um grupo de cristãos contenciosos

insistindo em criticar as sociedades humanas e as religiões que lhe servem como plataforma

de sustentação.

Paul Knitter foi o único destes pensadores que foi incoerente, mas na verdade, também

o mais lúcido. Ele sugeriu critérios para a avaliação do religioso, reconhecendo a

perniciosidade do relativismo geral e irrestrito proposto pelos demais, fazendo isto destruiu

seu próprio pluralismo, mas recuperou um aspecto fundamental do Cristianismo: sua vocação

profética, e a percepção de que não está tudo bem no mundo religioso não cristão; e de que a

necessidade da humanidade não é tanto o Logos apofático, mas o Jesus histórico, o pregador e

o anunciador do juízo.
200

Outros estudiosos da teologia das religiões também tem percebido a necessidade da

recuperação das fontes cristãs em relação à necessidade hermenêutica atual. As fontes devem

ser consultadas seriamente quanto ao que nos aflige atualmente enquanto cristãos. Não podem

ser meramente usadas como pretexto para defesa deste ou daquele ponto de vista. Veli-Matti

Kärkkäinen empreendeu algo na direção do que estamos pensando ser necessário para uma

teologia das religiões Evangélica, Protestante ou não Católica. Sua última obra Christ and

reconciliation posssui, publicado no ano corrente (2013) numerosos insights que apresentam

vários pontos de contato com o que vem desenvolvido nas próximas páginas. Se não lhe posso

agradecer pela influência, dado que já venho escrevendo esta investigação há alguns anos,

posso pelo menos reconhecer seu endosso às ideias daqui para frente apresentadas.
201

CAPÍTULO V

O “reino de Deus” e a teologia das religiões

5.a. Introdução

Ao entrarmos neste novo capítulo devemos abandonar a metodologia teológico-

sistemática até aqui adotada e nos aventurarmos em terreno bíblico. Isto é necessário, pois

este é o único modo de considerar com seriedade o elemento escriturístico daquela tríade

metodológica prescrita no primeiro capítulo (a revelação, a linguagem e a contextualização).

Até aqui o elemento revelacional manifestou-se apenas genericamente, mormente de modo

negativo, ou seja, restringindo-se ao que a teologia das religiões não pode ser. A partir de

agora buscaremos desvendar seu aspecto positivo, demonstrando como as Escrituras podem

ser a base de uma teologia das religiões.

Não é de todo novo este projeto. Outros já realizaram trabalhos importantes usando a

metodologia proposta. Podemos citar todos os teólogos Católicos, Evangélicos e

Protestantes520 que tentaram basear suas ideias nas Escrituras. A meu ver, entretanto, estes

trabalhos não atingiram seu objetivo porque quanto ao tema as Escrituras não têm uma norma

clara e una; sua perspectiva varia muito, dependendo dos tempos a que pertencem seus

documentos, sendo mais ou menos tolerantes. Como já foi dito, “há uma tensão entre os

textos” 521 , que possibilita visões diametralmente opostas da situação plurirreligiosa. Por

exemplo, de um lado um C. Pinnock que com ajuda dos Pais da Igreja consegue encontrar nas

Escrituras nelas tantos “santos pagãos”; de outro, Robert C. Sproul e Ronald Nash conseguem

520
Dois teólogos dentre tantos de grande valor que gostaríamos de citar como inspiração de nossa investigação
foram Clark Pinnock (Wideness in God’s mercy) e, principalmente, Veli-Matti Kärkkäeinen (Introduction to
Theology of Religions, especialmente a parte 1, em que aparece o tópico “Jesus e os Gentios”). Bem como todos
os que perceberam no conceito de “reino de Deus” a chave para uma teologia das religiões cristã.
521
C. S. Cowles et al. Show them no mercy. Four views on God and canaanite genocide (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2003), p. 15.
202

ler que todos os que não aceitaram a Jesus como seu salvador pessoal estão perdidos. Nossa

conclusão parece inevitável: não é impossível construir uma obra sistemático-normativa deste

modo522, a saber, pela mera coleção de textos probatórios.

É preciso encontrar um eixo teológico firmemente estabelecido textualmente, com

comprovada relevância hermenêutica e a partir dele organizar toda esta diversidade textual e

definir a norma para estes novos tempos. Não é necessário imergir em profundas reflexões

para identificar este eixo. Nada é mais central na Escritura do que a palavra de Jesus (Hb. 1:1)

e nada é mais importante nos ensinos de Jesus do que “o reino de Deus”523, os estudiosos

dissentem apenas quanto ao que significa exatamente este reino de Deus. Stanley Samartha,

Claude Geffré e outros teólogos das religiões, já haviam chegado à mesma conclusão, mas

não pela perspectiva que pretendemos. Estar completamente comprometido com o que diz a

Bíblia, ainda que isto não nos agrade ou não vá tão longe como desejamos.

Em suma, há muitas vantagens nessa opção metodológica. O conceito de “reino de

Deus”: (a) é adequado: por ser menos difícil de lidar teologicamente (o que não quer dizer que

seja fácil); (b) é normativo, pois conta com uma prioridade revelacional presumida; (c) é

apodítico, vale para todos os tempos, desde os dias de Jesus até a consumação final, e para

todos os lugares, da Galileia até os confins da terra (At. 1: 8).

Como já foi dito desde o início, o princípio escatológico ou a mensagem do reino de

Deus de Jesus como eixo norteador de uma teologia das religiões bíblica não é entendido aqui

somente como um evento ainda no futuro, a saber, um Juízo sobre as religiões, a última

palavra de Deus sobre as religiosidades humanas ainda a ser proferida na consumação de


522
Não se pode olvidar que há uma ruptura teológica importante entre o AT e o NT. Saí de cena a doutrina da
eleição restrita a Israel (com todos os seus desdobramentos teológicos, por exemplo, a teocracia) e entra em cena
a eleição geral de todos os povos da terra e desdobramentos, por exemplo, a convivência dos Cristãos com as
outras religiões e sua submissão aos poderes constituídos (Rm. 13: 1-7).
523
James D. G. Dunn. Jesus remembered (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdemans, 2003), capítulo 12. Para um
survey sobre o tema cf. também George E. Ladd. A theology of the New Testament (Grand Rapids, MI: Wm. B.
Eerdemans, 1993).
203

todas as coisas. Esta concepção fica bem aquém do princípio original. A escatologia assim

pensada refere-se meramente a uma linearidade temporal e a uma expectativa futura de

solução do problema das religiões, que não tem força suficiente para mover o presente –

podem chamar isto de escapismo se preferirem: podemos nos relacionar paritariamente

porque não sabemos ainda qual a religião verdadeira; só no fim dos tempos saberemos.

Ocorre que para Jesus e todo o NT o eschatos está em curso desde que andou pelas estradas

poeirentas da Palestina, anunciando a chegada do reino de Deus:

É extremamente dubitável que a noção de tempo para Jesus fosse uma progressão
linear, que parte do presente em direção a uma consumação futura. No primeiro
século, o tempo era pensado como se movendo em termos de gerações, épocas e
eras; o fim de um era entendido como o começo de outro. O perigo de se usar
‘último’ e ‘final’, ou ‘fim’ em nosso próprio sentido pós-iluminista para descrever as
expectativas apocalípticas do primeiro século é ter delas uma visão bifurcada e
compartimentalizada que destrói sua vitalidade. No nosso moderno e conceitual
mundo, a linguagem apocalíptica comunica outra realidade, uma esperança
ahistórica, enquanto no primeiro século, ela continha uma crítica dinâmica aos
símbolos herdados, aos interesses, às instituições, e às redes de relações, que
ordenavam a era presente524. (BATSTONE, p. 389).

Portanto, os elementos que devem nos ajudar na composição de uma teologia das

religiões a partir de Jesus não se referem a um futuro distante e escatológico, que por

enquanto pouco tem a nos dizer sobre as relações inter-religiosas. Mas na escatologia

inaugurada já em seus dias, que nos apontam o eschatos normativo por antecipação. Ou seja,

por princípio escatológico entendemos que Jesus já nos tem demonstrado claramente como

deve ser nossa relação com as religiões, de forma muito mais positiva do que um

agnosticismo escatológico escapista, que nos impede de entrar em confronto com as

Escrituras e com o ambiente de tolerância religiosa circundante.

Falar de escatologia de Jesus em Sua época implica sérias dificuldades. Primeiro,

porque lidamos com formas de pensar estranhas ao logocentrismo que herdamos da cultura

grega. Depois, porque precisamos penetrar numa densa selva de argumentos e teorias de

524
David Batstone .“Jesus, apocalyptic and world transformation” ( ThT, 49, no. 3, 1993), p. 389.
204

estudos neotestamentários, tão ou mais complexa do que aquela que viemos atravessando até

o presente, e que, na verdade, mereceria um novo trabalho investigativo, tal sua

complexidade. Porém, nossa argumentação precisa chegar a um fim e não podemos nos furtar

às dificuldades que o implicam.

Depois de quase duzentas páginas525 de análises e sínteses de teorias em comparação

com as Escrituras, o saldo é positivo: o terreno está limpo, tendo sido eliminadas muitas ervas

que o Senhor não plantou, mas falta lançar a semente. Ou seja, fazer o que foi proposto no

primeiro capítulo: uma teoria baseada na pregação de Jesus Cristo para a autocompreensão

cristã no contexto plurirreligioso.

5.b. Escatologias da época de Jesus

Os evangelhos explicitamente nada têm a nos dizer sobre o que queremos saber. As

perguntas que procuram responder eram outras e por isso muita coisa ficou subentendida entre

eles e seus leitores, a exemplo, infelizmente, de nosso tema. Portanto, para saber o que Jesus

pensava sobre o “reino de Deus” na tentativa de uma conexão com uma presuntiva teologia

das religiões, precisamos examinar o que isto pode ter significado para Seu tempo e deduzir o

Seu modo de pensar através de um método comparativo-contrastante que (é bom que se

reconheça) não é pacífico entre os estudiosos do Novo Testamento526.

525
Para evitar que esta obra se estenda muito e também para que o fio argumentativo não perca sua fluidez por
conta de necessárias digressões e remissões técnicas, resolvemos colocar em nota de rodapé a maior parte dos
referenciais teóricos que norteiam esta pesquisa, bem como o que a honestidade intelectual solicitar em respeito
o contraditório. Não produzirá um excesso remissivo, a parca erudição do autor não chega a tanto, mas o leitor
notará que este capítulo ficará assimétrico comparado aos precedentes. Isto deve-se à mudança de metodologia.
526
Um dos problemas mais candentes da pesquisa neotestamentária atual é como Jesus teria se relacionado com
seu tempo. Há estudiosos que defendem uma pacífica continuidade entre Jesus e seus contemporâneos, ou pelo
menos a uma classe deles a que se presume ser o contexto sociorreligioso de Seu movimento. Alguns associam
Jesus a um suposto Cinismo Galileu, ao pensar nele como uma espécie de sábio andarilho: R. Funk, J. D.
Crossan, R. Funk, B. Mack, S. J. Petersen, etc.; outros fazem dele um dos próceres do Rabinismo do segundo
século: G. Vermes, por exemplo. A posição aceita e defendida pela maioria dos teólogos e historiadores do NT e
período neotestamentário é uma descontinuidade moderada: M. Borg, P. Fredrieksen, J. P. Meier, J. Neusner, E.
P. Sanders, G. Theissen e N. T. Wright e outros. Nossa opção teórica é pelos mais descontinuístas dentre os
descontinuístas, ou seja, J. Neusner. Jews and Christians. The myth of a common tradition (London: SCM Press,
205

Acompanhamos a maioria dos estudiosos na opção por uma descontinuidade moderada

não por covardia teórica, mas por convicção. Se a mensagem de Jesus coincidisse

completamente com o contexto circundante, como explicar que tenha sido preservada e tenha

chegado até nós? Se Jesus não fosse mais do que um dos numerosos carismáticos ou

taumaturgos, como tantos que perambulavam pelos caminhos da Palestina, como explicar

haver Ele deixado uma marca tão profunda em sua época e na posteridade? Se a mensagem de

Jesus fosse idêntica ou subserviente à Seu tempo, se nenhuma concepção teológica nova

tivesse surgido com Ele, como explicar sua mensagem ter atravessado ilesa à bulha de tantos

messianismos Dele coetâneos? Seus ensinos teriam chegado até nós? Onde estão os

ensinamentos dos outros taumaturgos e líderes messiânicos que viveram e pregaram naquele

mesma época?

No NT convivem diversas vertentes escatológicas Contudo, o que todas estas

perspectivas que atravessam três séculos (apocalípticas ou não 527 ) têm em comum é o

sectarismo528. A pergunta religiosa mais avidamente feita, dada a ambiguidade sociopolítica e

religiosa da Palestina do período helenista ao romano era: quem é o verdadeiro Israel? A

pergunta e a resposta têm uma pertinência muito ampla para a vida dos palestinos. Ela define

2001) e G. Theissen e Annette Merz. O Jesus histórico. Um manual (São Paulo: Loyola, 2004). As razões para
que assim tenhamos decidido ficarão claras no transcurso das páginas deste estudo.
527
“1Enoque 1 – 36 (terceiro século a. C.); 1Enoque 72 – 82 (terceiro século a. C.); 1Enoque 93 – 110 (200 a.
C.); 1Enoque 85 – 90 (170 a. C.); O livro dos Jubileus (150 a. C.); Rolos de Qumram (segundo século a. C. ou
um tempo mais recuado); Os oráculos sibilinos, livro III (150 a. C.); Os testamentos dos doze patriarcas (a
última parte do segundo século a. C.); Os salmos de Salomão (48 a. C.); 1Enoque 37 – 47 (fim do primeiro
século a. C.); Assunção de Moisés (6 – 30 d. C.); Martírio de Isaías (antes do ano 70 d. C.); Apocalipse de
Abraão (primeiro século d. C.); Apocalipse de Moisés (pouco antes de 76 d. C.); 2Enoque (primeiro século d.
C.); Os oráculos sibilinos IV (80 d. C.); 2Esdras 3 – 14 (90 d. C.); 2Baruque (depois de 90 d. C.); 2Baruque
(segundo século d. C.)”. (John Collins. Daniel with an introduction to Apocalyptic literature (Grand Rapids Mi:
B. Eerdman, 1984), p. 4).
528
“No período pós-macabeu, na terra de Israel, nós encontramos um tema comum regularmente recorrente –
uma afirmação inflexível de serem os únicos legítimos herdeiros da herança de Israel, e fortes, hostis e com
frequência criticismo ofensivo aos outros Judaísmos” (James D. G. Dunn. Jesus remembered (Grand Rapids:
Eerdemans, 2003), p. 281. O sectarismo judaico vai da metade do segundo século a. C. até a destruição do
templo em 70 d. C. (Anthony J. Saldarini. Pharisees, Scribs and Saducees, Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans,
2001), p. 210-211.
206

sua identidade política e religiosa529. Com efeito, a condição de povo de Deus, definida pela

teologia do concerto (malgrado a restauração do serviço do santuário e do sinédrio), ainda

estava sob ameaça. A comparação com o tempo dos Macabeus e Asmoneus era inevitável e a

conclusão, incômoda: no período romano a hierocracia tinha poderes limitados no tempo dos

Macabeus havia teocracia. A existência de Israel sob a sombra de Roma e as condições

sociopolíticas e religiosas derivativas favoreciam o divisionismo e o sectarismo, pois a relação

conflituosa entre Israel e a dominação gentílica criava outros conflitos: (a) dos Judeus com os

Gentios que conviviam com eles e (b) a dos Judeus entre si, por causa da disputa sobre como

resolver o primeiro conflito530.

A diversidade de soluções teológicas para o problema era grande, gerando muita

heterogeneidade religiosa. Além da pergunta ‘quem é o povo de Deus e o verdadeiro Israel?’

Havia outras não menos pertinentes, ‘como Israel pode ser o povo de Deus em face da

presença de Gentios e da prática de costumes gentílicos em seu território?’ ‘Que grau de

convivência com a gentilidade pode ser admitida por aqueles que têm a pretensão de ser o

povo de Deus?’As diversas seitas judaicas vão se organizar respondendo a estas perguntas e

vão definir os limites entre si pelo modo como são respondidas. O divisionismo e o

sectarismo nasceram por que “elas apresentavam respostas concorrentes para o mesmo

conjunto de questões”531.

A primeira desta série de desdobramentos teológicos a serviço destas questões é a

teologia do remanescente, compartilhada por praticamente todos os grupos e seitas judaicas:

A doutrina do remanescente consiste na ideia de que muitos, talvez a maior parte de


Israel, tinha abandonado o concerto de tal modo que se colocaram fora da salvação e

529
“O sistema judaico deriva de e põe em foco uma entidade social, um grupo de Judeus que (na mente deles
pelo menos) não um Israel, mas o Israel” (Jacob Neusner, Jews and Christians. Mith of common tradition, p. 11).
530
Marcus Bog. Conflict, Holiness and Politics in the teachings of Jesus (New York/London: Continuum
International Publishing Group, 1998), 43.
531
Albert Baugarten. The flourishing of Jewish sects in the maccabean era: an interpretation (Leiden/Köln:
Brill, 1997), p. 57.
207

em perigo de Juízo. Tais doutrinas teriam sido cultivadas no Judaísmo porque Israel
não era uma comunidade unificada naquele tempo. Estava severamente dividida e
como resultado havia muitos conflitos intrarreligiosos, surgiram divisões entre o
Israel étnico e o religioso, onde cada parte reclamava para si o título de
remanescente532.

E. P. Sanders, porém, observa que no período intertestamentário não ocorria mais

aquela ênfase do AT sobre o “peneiramento” ou “joeiramento” de Israel, conforme ocorrem

nos Profetas Posteriores (Is. 10: 22, 16: 11; Am. 3:12, 5:16; Ez. 6: 8; So. 3: 13; Zc. 9: 7); o
533
julgamento e a punição tinham como referência os indivíduos transgressores que

receberiam a retribuição das mãos do próprio Messias no Juízo e não mais a nação como um

todo. O que mais concorria nos textos apócrifos e pseudoepígrafos era o tema da restauração

de Israel. Uma vez que esta pretensão a remanescente era universal e porque todos os

movimentos religiosos da época viam-se como tal, tornou-se cada vez mais comum os textos

apocalípticos e sapienciais intertestamentários falarem do Messias como aquele que viria

castigar a petulância dos Gentios e dar o veredito final sobre quem era o verdadeiro Israel e

assim criar condições para a restauração de sua glória antiga, impedida pela infidelidade dos

maus Judeus. As expectativas escatológicas, portanto, desenhavam-se neste contexto

desenvolvendo algumas características comuns, apesar do sectarismo:

(a) a incompatibilidade entre o mundo porvir e o atual. O advento do Messias

significava a consumação de todas as coisas, a ressurreição dos mortos e a recriação do

mundo primordial. Podendo ocorrer em um ou dois tempos, dependendo da opção religiosa.

(a) Havia aqueles que esperavam a subversão de todas as coisas, o Juízo Final e a recriação de

Deus, imediatamente à aparição do messias, ou então logo após seu curto ministério; (b) havia

outros que aguardavam antes destas coisas (eventos cataclísmicos) um governo messiânico

com a expulsão e derrota militar dos Gentios. A primeira é uma escatologia apocalíptica,

532
Joel B. Green, Scott Mckigh e Howard Marshall. Dictionary of Jesus and the Gospels (Downers Grove:
InterVarsity Press, 1992), p. 361.
533
Judaism. Practice and Belief (London: SCM Press, 1992), p. 113.
208

cosmológica; a segunda, uma escatologia clássica, farisaica e gradualista. Usando a

terminologia cristã com que estamos acostumados, pode-se dizer que a primeira é

amilenialista e a segunda, milenialista534.

(b) O Messias é aquele que apenas vem executar um juízo, que de certo modo já tem

acontecido antes de sua manifestação535, dado que justos e injustos já estariam separados e

discriminados a este tempo pelo respeito ou desrespeito aos mandamentos divinos. De certa

forma a condição de salvo e perdido são patenteáveis pela adesão ou não a certos costumes e

crenças religiosas (Essênios, Saduceus, Fariseus, Zelotes, Samaritanos, etc.).

Além de não ser sectarista, outro importante contraste entre Jesus e Seus

contemporâneos é a “escatologia realizada”536. Os ditos e feitos de Jesus não só apontam para

o futuro, enquanto momento da manifestação da salvação divina. Eles o antecipam, fazendo

com o que o hoje invada o tempo escatológico, por meio de Suas ações ou sinais 537 ,

prenúncios da restauração e consumação finais. Todas as Suas ações simbólicas têm esta

característica, inclusive os milagres:

A peculiaridade dos milagres do Jesus histórico repousa sobre o fato de que as curas
e os exorcismos que têm lugar no tempo presente estão de acordo com um
significado escatológico. Como um fazedor de milagres apocalíptico e carismático
Jesus é único na história religiosa. Ele combina dois mundos conceituais, que nunca
antes haviam sido combinados, a apocalíptica expectativa de salvação universal no
futuro e a episódica realização da salvação no presente, através dos milagres538.

534
“Depois de um longo período de tempo, talvez mil, este período de paz e felicidade sem paralelo chegaria a
um clímax: todos os elementos corrompidos seriam destruídos por um fogo purificador” (Tom Holmén. Jesus
and Jewish covenant – Leiden/Boston/Köln: Brill, 2011, p. 101.
535
Entendido em seu sentido original grego: krisis, separação.
536
Conceito criado ou popularizado por C. H. Dodd no livro Parables of Kingdom (New York: Scribner’s,
1936). “Em termos simples quer dizer, que a carreira de Jesus como Messias servo, do Jordão ao Calvário, é o
reino de Deus”. Também que “o reino de Deus é presente e futuro, a um tempo” (Clayton Sullivan. Rethinking
realized eschatology – Macon GA: Mercer University Press, 1988, páginas 6 e 11, respectivamente).
537
Os Sinóticos têm duas formas de denominar os milagres de Jesus: “atos poderosos” (dynameis) e “sinais e
maravilhas” (semeia kai terata). João prefere “sinais” (semeia) (Joel B. Green, Scot McKnight e Howard
Marshall. Dictionary of Jesus and Gospels – Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1992, p. 755).
538
Gerd Theissen e Annette Merz. The historical Jesus. A comprehensive guide, p. 309.
209

Jesus tem em comum com este tempo a ideia da restauração de Israel539. Contudo, não

se pode falar de ideia de restauração neste tempo de modo consensual. Havia tal a profusão de

modelos escatológicos que a natureza e missão do Messias dificilmente coincidiam:

(a) Os Essênios acreditavam em três figuras messiânicas: o Messias rei, o Messias

profeta como Moisés (Dt. 18: 15) e o Messias sacerdote (4Q252 1: 5; 1QS, 9: 9b-11)540, cada

uma delas com um papel nos eventos escatológicos. (b) Outros grupos apocalípticos preferiam

basear-se no livro de Daniel, especialmente capítulo 9, texto fundamental para diversos

apocalipsismos apócrifos: Apocalipse de Abraão, Oráculos Sibilinos, 2Esdras e 1 e 2Baruch,

que apresentam o messias como Filho do Homem (bar anasha), convergindo a respeito da

ênfase teológica sobre sua função de juiz. (c) Outros, ainda, optavam pela figura messiânica

davídica, o rei restaurador do fim dos tempos, que viria destruir os ímpios, governar com

equidade e poder para restaurar a harmonia original da criação, tal como é descrito em alguns

trechos de Isaías, Zacarias (interpretados literalmente) e em alguns apócrifos: Salmos de

Salomão, Enoque Etíope, Similitudes de Enoque, etc. (d) A figura escatológica do

messianismo popular está representada por Elias, o messias milagreiro do livro de Malaquias,

detentor da qualidade de reformador da religião de Israel; (e) e o messias mestre

deuteronomista, o profeta que viria no fim dos tempos para ensinar a Torah aos verdadeiros

israelitas. (Dt. 18: 15, 18 e 19)541, esperado pelos Essênios e pelos Samaritanos.

E para levar a complexidade religiosa destes tempos a um paroxismo, não era possível

definir de forma precisa as fronteiras conceituais destes tipos escatológicos. As expectativas

539
E. P. Sanders. Jesus and Judaism (Minneapolis: Fortress Press, 1985), pp. 335-338; George B. Caird. Jesus
and the Jewish nation (London: Athlone Press, 1965); B. F. Meyer. The aims of Jesus (London: SCM Press,
1979).
540
Apud Paul E. Hughes. “Moses’ birth story: a biblical matrix for prophetic messianism”. In Craig E. Evans
and Peter W. Flint (edts.). Eschatology, messianism and Dead Sea Scrolls, p. 12.
541
Há ainda outros exemplos menos importantes de tipologia profético-escatológica apresentados por Josefo e
pelos Evangelhos. Josefo fala de um profeta que assumiu o modelo de Josué, conhecido como Egípcio que
pretendeu abrir o Jordão para o povo passar à outra margem, levando-os de volta para o deserto (Ant. 20: 97). O
evangelho fala de que em resposta à pergunta de Jesus sobre quem dizia o povo ser o Filho do Homem, alguns
pensavam que fosse Jeremias (Mt. 16: 14).
210

escatológicas dos vários movimentos religiosos da época não tinham limites institucionais

muito claros, havendo grande dinamismo e mobilidade religiosa, que gerava um

comportamento social paradoxal. De um lado, o sincretismo; de outro, uma tendência

generalizada à desviância, à transumância, ao sectarismo e a outras formas de contestação

social e religiosa (por exemplo, os vários tipos de purificação cúltica praticados).

Nos dias de Jesus o sincretismo e o sectarismo eram as duas faces da mesma moeda, por

um mecanismo social bem simples. De um lado, o sincretismo, com uma enxurrada de seitas e

orientações religiosas convivendo no mesmo espaço simbólico (a Tanakh e as tradições

apócrifas e pseudepígrafas, as tradições populares); de outro, o sectarismo que leva as seitas

judaicas a procurar criar sua própria identidade, por meio da escolha de certas porções dos

mesmos textos, ou textos de diferentes tradições; para instituir o sentimento de diferença e,

simultaneamente, o de pertença; necessárias para que os grupos se formem e os indivíduos

encontrem sua identidade sociorreligiosa. Em suma, quanto mais parecidas as orientações

religiosas que competiam, mais elas procuravam enfatizar suas diferenças, e isto as levava ao

sectarismo542.

Assim, em certa medida, E. P. Sanders está correto em chamar este Judaísmo

Formativo543 de antes da revolta de 68 a. C. de “Judaísmo comum”544, em que estes conceitos

escatológicos conviviam mais ou menos amalgamados e tendo por âncoras teológicas que os

ligavam uns aos outros, o Templo, o monoteísmo e o concerto545. Resta agora saber como

Jesus se coloca em relação a esta religiosidade complexa praticada em Israel e como fez Suas

542
“Realmente, quando visto à luz de sua semelhança fundamental, a mútua hostilidade destes grupos torna-se
mais explanável: porque os grupos eram tão parecidos, e ofereciam mais ou menos a mesma coisa para um
relativamente restrito grupo de pessoas, o ódio mútuo deles faz mais sentido.” (Albert Baumgarten. The
flourishing of Jewish sects in the maccabean era: an interpretation, p. 56.
543
Terminologia usada por Andrew J. Overman, para definir este caudal de crenças e teologias que cobre um
período que vai do ano 165 a. C. até o 100 d. C. (O evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo. O mundo
social da comunidade de Mateus – São Paulo: Loyola, 1997, p. 20).
544
Judaism. Practice and Belief (London: SCM Press, 1992), pp. 182-188.
545
Frederick J. Murphy. “Second Temple Judaism” in Jacob Neusner (edt.). The Blackwell companion to
Judaism (Oxford: Blackwell Publishing, 2003), p. 77.
211

escolhas doutrinas neste milieu extremamente sedimentado. As perguntas que nos inquietam

não podem ser respondidas de outra forma, pois os evangelhos são bastante parcimoniosos em

contextualizar os ditos e feitos de Jesus. Primeiro, porque foram escritos num tempo posterior

ao da narrativa; depois, porque não era seu interesse falar do que nos impele, pois seus

problemas eram outros.

Não podermos evitar a este respeito, movermo-nos em campo hipotético: se Jesus

rejeitou a escatologia sectária e exclusivista de seu tempo, que punha todos estes

messianismos em guerra entre si e com a gentilidade546, é provável que tenha adotado uma

teologia inclusivista. Mas, de que tipo? Colocaremos doravante, sucintamente, sob exame

todos os ismos, ideológicos e religiosos do tempo de Jesus para, a partir daí, aduzirmos

algumas conclusões sobre os elementos jesuínos que provavelmente se constituiriam como

base de Sua teologia das religiões.

De início devemos reconhecer que é impossível saber como se desenhou exatamente o

contexto escatológico daqueles idos. O que está documentado representa bem pouco

comparado à efervescência religiosa daqueles dias 547 . Os documentos disponíveis apenas

contemplam a vida religiosa das seitas institucionalizadas, ficando fora os movimentos

religiosos e religiosidades menores, que constituíam a opção da grande massa populacional548.

546
Dizíamos mais acima que, em certa medida E. P. Sanders está correto em pensar num “Judaísmo comum” ao
tempo de Jesus. A hostilidade entre as seitas judaicas parece ter sido mais forte no último século antes da era
cristã, quando o Helenismo do período selêucida obrigou os Judeus piedosos a solucionarem o problema da
interferência gentílica em sua religião, com a criação das três formas básicas de religiosidade, que
embrionariamente geraram os Essênios, Saduceus e Fariseus; e deve ter recrudescido nos anos mais próximos à
revolta, com a ascensão dos radicais e a hegemonia do Farisaísmo. A ausência de instituições normativas neste
meio tempo pode sim ter favorecido a competição simbólica e o surgimento do sectarismo, responsável pela
efervescência religiosa dos dias de Jesus. A administração romana, historicamente tolerante para com a
diversidade religiosa, deve tê-la incentivado com sua omissão, a cujas polêmicas suas autoridades referiam-se
desdenhosamente como “questões referentes às suas leis [dos Judeus]” (At. 23: 29, 25: 19 e 26: 3).
547
Sendo ainda mais restritos neste tocante, não incluiremos os documentos Gnósticos e Protognósticos de Nag
Hamadi e tampouco o material de Philo de Alexandria, bem como outras fontes helenísticas. Apesar de que
certamente tinham leitores e divulgadores no tempo de Jesus, preferimos seguir a orientação de Flávio Josefo
sobre a natureza judaica da religiosidade palestinense (malgrado os protestos dos scholars do Jesus Seminar).
548
A religião institucionalizada na Palestina não contava com mais do que 10 a 25 mil adeptos, considerando-se
que toda a população do país deveria rondar os 500 ou 600 mil habitantes, provavelmente mais de 95 por cento
212

Porém, também não se deve pensar que as fontes não sejam historicamente representativas.

Temos em favor de sua relevância que estes grupos institucionalizados que nos deixaram seus

testemunhos, contando ou não com a aderência popular direta, eram os mais influentes e os

formadores da opinião religiosa da maioria.

5.b.1. Essênios549

Entre os Essênios o sectarismo era tão exacerbado que o conceito de separação do

mundo se transformou numa ontologia aparentada ao Mazdeísmo, ou seja, o mundo acabou

sendo entendido também dualisticamente, dividido em dois segmentos: Luz e Trevas, os

Filhos de uma e os Filhos da outra (1QS 3: 13- 4: 26) 550. Em seus documentos estão de um

lado, “os filhos de Belial”, “os homens do lote de Belial”, “os traidores”, “os ímpios” (1QS 2:

4-10, CD 1: 11-21, 1QpHab 5: 3-8) e, do outro, “a plantação santa”, “a plantação da Justiça”,

“a aliança da graça”, “a aliança de Deus”, “o resto”, “a edificação nova e perfeita de Deus”, “a

casa da suprema santidade de Arão”, “a casa da Justiça de Israel” (1QS 8: 4-9ss.). Eles se

apropriaram das designações da linguagem da aliança originalmente dirigida a Israel e as

aplicaram restritivamente a si mesmos (1QS 5: 22, 8: 4; CD: 2: 26; 1QSa 1: 6; 1; 1QpNah 3:

2-3). E indo além, até criaram uma liturgia com bênçãos a serem pronunciadas sobre os

membros da comunidade e com maldições sobre os estranhos, “sobre aqueles que não se

submetem sinceramente à Torah da yahad [comunidade], revelada aos filhos de Zadoque”

(1QS 5: 8-9).

dessa população não era afiliada a nenhum dessas religiões (Morton Smith. “Studies in the cult of Yahweh”, p.
100. In Shaye J. D. Cohen (edt.). New Testament early Christianity and magic).
549
Não é possível falar dos Essênios sem acabar enredado pela polêmica. Com efeito, tanto tempo depois da
descoberta dos rolos de Qumran os estudiosos ainda discutem sobre praticamente tudo (onde moravam, qual era
sua ocupação, qual sua religião?). Não faz parte de nosso escopo entrar nestas discussões, que, ademais, dizem
respeito a especialistas. Para avaliar estas discussões consultar Lena Cansdale. Qumran and Essenes: a re-
evaluation of the evidence (Tübigen: Mohr, 1997).
550
Apud George W. E. Nickelsburg. “Polarized self-identification in Qumran texts”, p. 24. In Florentino García
Martínez e Mladen Popovic. Defining identities: We, You, and the Others in the Dead Sea Scrolls: proceedings
of the Fifth Meeting of the 1OQS in Groningen. A partir daqui todos os textos do corpus qumrânico terão sido
extraídos desta obra.
213

No Documento de Damasco os termos usados para criar a polarização são outros, mas

não menos ofensivos e discriminatórios: os que andam nos caminhos de Deus e os que erram

em descaminhos (CD 2: 14 – 4: 12). Nos Pesharim, que contêm os comentários bíblicos

canônicos (pela perspectiva da comunidade), há várias outras polarizações que coloca em

contraste o seu intérprete e o intérprete dos outros: “o mestre da justiça” (1QpHab 8: 1-3; 7:

1-15), o intérprete inspirado da Torah e dos profetas, de um lado, e “homem de mentiras”

(1QpHab 2: 1-2; 5:11); o sacerdote que fala por Deus e “o sacerdote ímpio” (1QpHab 2: 1-3;

5: 10-12).

Resumindo, para os Essênios deveria haver uma segregação total e completa entre estes

dois mundos, a ponto de certas facções essênias a viverem isoladas da sociedade circundante,

como foi o caso do ramo qumraniano, cujos membros, por causa de sua pretensa pureza ritual,

acreditavam estar em comunhão com os próprios anjos de Deus551. Nos segmentos menos

ascéticos, cujos membros se permitiam viver nas cidades com as pessoas comuns, era exigido

o cumprimento de certas regras: que os perfeitos fossem celibatários (Guerra, 2: 120), que o

sexo, quando permitido, o fosse apenas para procriação (Ant.18: 21), que se cortassem os

laços familiares ou que esses fossem mantidos sob o estrito controle dos líderes (Guerra, 2,

134)552. Esta discriminação tão minuciosa e radical do que era santo e do que era profano dava

aos ‘perfeitos’ a sensação de já haverem invadido o tempo escatológico, mas tudo acabou com

a campanha romana de 68 d. C.

551
John J. Collins. “The expectation of the end in the Dead Sea Scrolls”, p. 90. In Craig A. Evans e Peter w.
Flint. Eschatology, messianism in Dead Sea Scrolls.
552
Sobre o ascetismo dos Essênios há o testemunho de outros autores clássicos, tais como Plínio, o Velho e Filo
de Alexandria (Roger Steven Evans. Sex and salvation. Virginity as a soteriological paradigm in ancient
Christianity – Lanham ML: University Press of America, 2003), p. 21.
214

5.b.2. Profetas de Sinais

A literatura extrabíblica é copiosa em exemplos deste tipo de Messianismo chamado por

E. Stegemann e W. Stegemann de "profetas de sinais"553. F. Josefo menciona vários deles,

alguns aludidos também pela Bíblia (At. 5: 36). Este é o caso de Teudas, o comandante de

uma revolta na Judeia anos após o suplício de Jesus (46 d. C.), o qual tendo assumido o

modelo profético de Josué, pretendeu dividir com sua palavra o rio Jordão, aparentemente,

para fazer com o povo o caminho inverso, rumo ao deserto, onde lhes manifestaria sinais da

libertação (Ant. 20: 97ss.). Outro profeta que encarnou este mesmo modelo profético ficou

conhecido como o Egípcio (Ant. 21: 38). Em ocasião de grande morticínio pretendeu à sua

ordem fazer ruírem os muros de Jerusalém, tal como ocorrera com os muros de Jericó

(Guerra 2: 262ss e Ant. 30: 169ss.), coisa que não acontecendo, facilitou o trabalho de Félix

em desbaratar a multidão amotinada e fazer capitular os revoltosos. Em todas estas

manifestações populares de profetismo apocalíptico percebe-se o extremo antagonismo destes

e seguidores em relação à sociedade, que segundo estes porta-vozes do juízo divino já havia

sido rejeitada por Deus.

5.b.3. Profetas da destruição

Outro tipo de messianismo apocalíptico corrente nos dias de Jesus eram os “profetas da

destruição”554, para os quais nada mais importava senão anunciar o fim iminente. Em contexto

extracanônico temos alguns exemplos deste tipo de messianismo apocalíptico. Pela pena de

Flávio Josefo, por exemplo, é mencionado um tal Jesus Ben Ananias (Guerra 6: 300ss.), o

qual vindo à Jerusalém quatro anos antes da revolta começar (68 d. C.), passou a anunciar a

553
Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann. História social do Protocristianismo (São Leopoldo RS/São
Paulo: Sinodal e Paulus, 2004), p. 194.
554
Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann. História social do Protocristianismo, p. 198.
215

destruição do Templo, da cidade e do povo; sem fazer caso de mais nada555. Ele prosseguiu

fazendo suas lamentações até que no cerco a Jerusalém em (70 d. C.) foi asseteado e morreu.

No evangelho de Mateus ocorre uma alusão a este tipo de profeta, quando os discípulos dão

relatório sobre quem o povo pensava ser Jesus, uma das respostas foi Jeremias (Mt. 16: 14), o

que provavelmente remetia a este modelo profético, dada a natureza da missão profética de

Jeremias e sua própria personalidade.

João Batista é outro exemplo deste tipo de messianismo apocalíptico. Mas, em seu caso,

a rigor, seria mais bem denominado profeta pré-messiânico, dado que ele não se via como

messias, mas apenas como um Seu arauto; aquele que o precederia, que aplainaria o caminho

de Sua passagem, preparando o povo para Sua vinda, fazendo um chamado ao Juízo, que

vinha como fogo calcinador dos réprobos (Mt. 3: 11-12; Mc. 1: 7-8; Lc. 3: 15-17)556. Porém,

ele não ignorava completamente que vivia ainda no tempo da história e não no eschatos

messiânico (Mt. 3: 1-10; Mc. 1: 2-6; Lc. 3: 1-9). Além disso, o Batista não era um

apocalíptico puro, mas um profeta em transição para carismático que estava preocupado em

criar uma comunidade, visto que ele ensinava uma ética (Lc. 3: 11-14), uma oração (Lc. 11:

1) e um rito (o batismo para arrependimento) (Mt. 3: 6; Mc. 1: 4; Lc. 3: 7).

555
Ibid., pp. 103 e 104.
556
Comparar com Malaquias 4: 1: “Pois eis que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos, e todos os
que cometem perversidade serão como restolho; o dia que vem os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte
que não lhes deixará nem raiz e nem ramo”.
216

5.b.4. Fariseus557

O messianismo farisaico, assim como outros aspectos de sua vida religiosa, não é algo

fácil de apreender pelas fontes disponíveis. Os evangelhos, obviamente, não falam disto

diretamente. Sua escatologia, contudo, é dedutível por sua condição de elite558, que embora

tenha perdido a maior parte do poder político no período Asmoneu (Ant. capítulo 13), ainda

tinha esperança de retornar à antiga condição hegemônica, pelas mãos do próprio Messias,

como se pode perceber pelas invectivas dos Salmos de Salomão559, documento redigido em

ambiente Protofarisaico do primeiro século a. C.

Seu messianismo conjuga elementos davídicos, daniélicos, deuteronomistas e

proféticos560, embora não se saiba em que medida ou se tudo isto estava mesclado num único

bloco ou adotado por diferentes subgrupos no interior do mesmo Farisaísmo561.

557
Intensos debates polêmica sobre os Fariseus dividem hoje os especialistas. Como pode ser entendida sua
identidade religiosa, de acordo com os textos apocalípticos do período intertestamentário ou de acordo com a
literatura rabínica pós 70? Neste contexto a polêmica sobre as fontes entre Sanders e seu “Judaísmo comum” a
partir de Paulo (Judaism. Practice and Belief, obra já citada) e o Rabinismo pós – 70 d. C. de Neusner (The
rabinic traditions about the Pharisees before 70 C. E. – Leiden: Brill, 1971) pode funcionar como balizas
extremas em busca de um ponto de equilíbrio. Ou seja, nem o “common Judaism” sugerido pelos textos paulinos
nem o extremo purismo rabínico, mas um contexto onde todas estas vertentes permaneçam coexistentes,
disputando o mesmo espaço simbólico, sem, contudo, lograr hegemonia. Ademais, nenhuma das duas opções
parece muito adequada como fonte pelo distanciamento do período em estudo: o primeiro, geograficamente, o
segundo, cronologicamente. Não achamos necessário para o desenvolvimento dos argumentos aqui propostos
adentrar nesta discussão. Nosso objetivo não é definir com exatidão a vida religiosa dos Fariseus ao tempo de
Jesus, apenas estabelecer padrões básicos para os contrapor à proposta messiânica de Jesus.
558
Eles estavam profundamente imiscuídos com as estruturas de poder da época, às autoridades do Templo (Mc
8: 31, 11:27, 14: 43-53, 15: 1), às autoridades políticas (Herodianos) (Mc 3:6, 12:13) e tinham assento em
algumas das cadeiras do Sinédrio (autoridade máxima para questões religiosas na Palestina judaica) (Jo. 3: 1).
Ademais, alguns deles, tal como as autoridades sacerdotais, compunham uma aristocracia agrária que dominava
a Galileia. (J. D. Crossan. The birth of Christianity – San Francisco/New York: Harper, 1998, p. 106).
559
O documento fala do Messias “quebrando os poderes de governantes injustos” (xvii, 25, 27 e 31), expulsando
da herança de Deus “os orgulhosos pecadores” que obtiveram “ilícita possessão” (xii, 26, 27, 41, 51; cf. 6-8). O
texto dos Salmos de Salomão usados é o que aparece em Montague R. James e Herbert E. Ryle. Psalms of
Pharisees commoly called the Psalms of Solomon (Cambridge: Cambridge University Press, 1891).
560
Outros textos reputados como farisaicos dão conta da complexidade deste quadro, que têm como ponto em
comum as esperanças dos Fariseus oprimidos da dinastia asmoneia: Enoque Etíope, As similitudes de Enoque,
partes do Testamento dos doze patriarcas, Salmos de Salomão e A assunção de Moisés (E. C. Dewick. Primitive
Christian Eschatology – Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 81).
561
Quanto a esta questão, dentro do Farisaísmo, só se tem notícia de sua subdivisão entre hilelitas e shamaítas.
Os primeiros seguidores de Hillel, que defendia uma interpretação mais criativa da lei; os segundos adeptos de
Shammai, que tinha uma interpretação mais estrita. A partir da revolta de Bar Kochba (132-135 d. C.), os de
Hillel prevaleceram. (Stephen M. Wylen. The Jews in the time of Jesus. An introduction – Mahwah, NJ: Paulist
Press, 1996, p. 137).
217

(A) Por parte dos elementos davídicos. O Messias fariseu era um rei, um governante,

um “enviado divino para introduzir uma nova era, expulsar a necessidade, a doença e a morte,

vencer Satã. [...], que apareceria como filho de Davi para reunir as tribos dispersas e erigir um

novo reino”562. Ele iria fazer de Jerusalém sua capital e restaurar a glória da adoração do

templo (PsS xvi: 33-35). Os Gentios se lhe submeteriam e lhe pagariam tributo e até seriam

convertidos à fé judaica (PsS xvii: 31, 32 e 34). Flávio Josefo fala de alguns indivíduos que

reivindicaram para si a dignidade messiânica pautando-se nestas expectativas: Judas, Simão e

Atronges (Guerra 2: 55; Ant. 17: 269). Desses, Atronges foi o que mais se aproximou do

ideário davídico. Ele reunia qualidades carismáticas e havia sido pastor de ovelhas como

Davi, apresentando-se como rei e ocupando-se apenas dos negócios mais dignos (Guerra 2:

61). Contudo, pela falta de um programa efetivamente messiânico, a melhor designação que

merece é a “bandido social, assim como os demais”563.

A escatologia farisaica, de acordo com esta concepção messiânica, é continuista564. Com

a vinda do Messias não há a consumação final, apenas a derrota dos inimigos do povo de

Deus e o começo do governo de Deus na Terra. Enfim, um restaurador do trono davídico,

conforme as profecias dos profetas literários, o fundador de um reino Judeu universal. Mas,

não sem primeiro vingar-se das nações que consumiam sua herdade, destruindo idólatras e

seus ídolos, “para só então reunir os hebreus dispersos da diáspora, ajuntando-os dos quatro

562
Eduard Lohse. Contexto e ambiente do Novo Testamento (São Paulo: Paulinas, 2000), pp. 50 e 74.
563
Ekkehard Stegemann e Wolfgang Stegemann, Op. Cit., p. 207.
564
Parece que o grupo de João Batista, pelo menos depois de sua morte compartilhava com os Fariseus estas
ideias. A evidência textual da aliança entre os discípulos de João Batista é os Fariseus é o dito do vinho novo em
odres velhos, triplamente atestado (Mt. 9: 14-17, Mc. 2: 18-22, Lc. 5: 33-39). O dito foi uma crítica de Jesus à
adoção do continuísmo farisaico por parte dos discípulos de João. O vinho novo é a mensagem do reino de Deus
e os odres velhos são as instituições e doutrinas farisaicas, que recusavam o apocalipsismo radical de Jesus. Mais
adiante, no tópico sobre a taumaturgia de Jesus, tornaremos a esta questão.
218

cantos da terra”565. O Messias fariseu é um governador para o tempo do fim e sua vinda

estava condicionada ao arrependimento, à purificação e à santificação do povo566.

(B) Outro aspecto importante da escatologia farisaica é o Mestre deuteronomista (Dt.

18: 15, 18 e 19), mencionado alhures, cujo poder provém da santidade e da pureza (PsS xviii,

33, 36 e 46). Ele é um estudioso da Torah, em tudo leal e fiel a ela; o conceito de justiça do

livro é farisaico. É cumprida em ações de justiça (PsS ix: 7, 9; xvii: 21; xiii: 9), e

especialmente atos decorrentes de regras que evitem a violação das leis cerimoniais (PsS iii:

8-10, 20). Tudo aquilo que negligencia tais regras são a própria contradição da justiça (PsS i:

2, 3, 8; viii: 7, 13, 14). Os constantes confrontos de Jesus como os Fariseus, retratados

principalmente em Mateus sobre a observância de halaquismos são testemunha daquilo que os

Fariseus julgavam ser a maior qualidade deles e o maior defeito de Jesus: Sua reverência e

devoção pela Torah e a falta destas coisas em relação a Jesus567.

O conceito de santidade dos Fariseus é levítica e está fundamentada naquela pergunta

compartilhada pelas outras seitas: quem é o povo de Deus e como pode Deus habitar no meio

dele? Podemos chamá-la de santidade restritiva e cerimonial 568 , segundo a qual há uma

intensa preocupação com a pureza e a impureza rituais e outras questões cúlticas. A pureza,

considerada uma dimensão importante da santidade, era requerida dos adoradores do

565
Eduard Lohse. Contexto e ambiente do Novo Testamento, p. 74.
566
Segundo Sofonias 3: 9, até os Gentios iriam participar desta santificação escatológica, desde que se
submetessem ao governo do Messias, especialmente adotando os rituais de pureza cúltica, caso contrário seriam
exterminados.
567
Havia uma divergência entre Jesus e Seus discípulos e os Fariseus quanto à validade canônica da Torah oral,
que era possessão dos últimos e segundo os quais remontava ao próprio Moisés (Stephen M. Wylen. The Jews in
the time of Jesus, p. 58). Jesus nunca aceitou esta Torah oral porque sua fonte era sectária e induzia a mais
sectarismo, já que pretendia definir o comportamento ideal do povo de Deus e separá-lo do povo comum.
568
Os escritos de J. Milgrom tem trazido boas ideias para esclarecer a questão. Em uma delas ele identifica
quatro estados pelos quais deve ser entendida a santidade levítica . Pace Fredriksen estes quatro estados se
opõem quiasticamente dois a dois. Os dois primeiros são puro (tahor / kátharos), impuro (tameh / akathartos); os
outros, santo (qodesh / hagios) e profano (chol / bíbelos). Segundo a teologia levítica, estes estados podem se
combinar de diversas formas. (J. Milgrom. “Leviticus 1-16. A new translation and commentary” (Anchor Bible,
vol. 3, New York: Doubleday, 1991, p. 231). Excetuando-se, é claro, a impossibilidade de alguém ou alguma
coisa ser pura e impura, santa e profana, simultaneamente, pode-se ser profano e puro, santo e puro, mas nunca
santo e impuro (J. Milgrom apud Christian Grappe , “Jesus et l’impureté”, RHPR, vol. 84, 84 (2004), p. 397).
219

verdadeiro Deus, os quais os Fariseus pensavam serem eles mesmos 569. E a impureza era

impeditiva à presença de Deus, conforme ocorre na Torah, para eles, a parte mais importante

da Tanakh570.

Os Fariseus são descendentes espirituais dos judaítas devotos do exílio, fundadores dos

princípios básicos depois adotados pelo Rabinismo do II século d. C. Com a destruição do

templo e o fim do sistema cúltico: “os sacerdotes foram substituídos pelos sábios; o templo de

Jerusalém, pela sinagoga e pelo lar; o sistema cúltico – sacrifícios pacíficos e pelo pecado,

pelos ritos e pela leitura da Torah” 571. De volta do exílio à Palestina ocupada e dominada pela

cultura helenística selêucida, inundada por idólatras e por costumes que eram abominação à

Torah, muitas pessoas pias sentiram sua fé ameaçada e procuraram protegê-la praticando

regras de pureza no cotidiano, como se ao se alimentar em sua casa estivessem como

sacerdotes dentro do templo, consumindo o alimento sagrado572. Cada fariseu se considerava

um sacerdote em sua casa e, portanto, os códigos de pureza cerimonial eram observados à

risca. Todas as regras de pureza que antes diziam respeito apenas aos sacerdotes, em seu

tempo passaram a ter aplicação universal.

569
J. Jeremias. Jerusalém en tiempos de Jesús, pp. 324-326.
570
Tanakh, como era conhecida a Bíblia Hebraica nos dias de Jesus, é um acróstico com as iniciais de três
grupos de livros em que está dividida: Ta de Torah - Pentateuco, na de Nevi’im – Profetas (anteriores e
posteriores) e kh de Khetuvim - Escritos. Esta organização dos livros não era meramente cronológica, mas
também hierárquica em ordem decrescente: Moisés vinha em primeiro lugar, em seguida os Profetas e por último
os Escritos (Daniel, Salmos, Provérbios, Jó e Eclesiastes) (Michel L. Brown. What do Jewish people think about
Jesus? And other questions Christians ask about Jewish Beliefs, Practices and History – Grand Rapids, MI:
Baker Publishing Group, 2007, pp. 34-36). Outro indício desta hierarquização é o fato de todo o corpus
escriturístico ser também chamado de Torah, denotando que a sacralidade dos demais textos do AT dimana dos
cinco primeiros livros de Moisés. “Todas as seções da Escritura são chamadas de Torah num esforço de manter a
unidade da revelação divina. Contudo, é claro que os cinco livros de Moisés têm, desde a antiguidade, sido
entendidos como os mais sagrados (e, portanto, não é por acaso que tratam das leis referentes ao concerto de
Deus com o povo de Israel). As passagens dos Profetas e Escritos são sempre interpretadas de modo a se
harmonizarem com o Pentateuco.” (M. Signer. “How the Bible was been interpreted in Jewish traditions” – NIB,
vol. 1, Nashville, TS: Abingdon, 1994 – p. 65). A hermenêutica de Jesus não é convergente. Para Ele a ordem é
invertida: Os Profetas vêm em primeiro lugar, os Escritos vêm em seguida e por último a Torah. Jesus
compartilha com os Profetas posteriores a condenação dos excessos ritualísticos de Israel, bem como a denúncia
ao fato de serem usados como pretexto para que a justiça, a misericórdia, a lei moral, pudessem ser colocadas de
lado.
571
Alan Unterman. Historical dictionary of the Jews (Plymouth, UK: Scarecrow Press, 2011), pp. xxx e xxxi.
572
Jacob Neusner. “The pharisaic agenda: laws attributed in the Mishnah and the Tosefta to pre – 70 Pharisses”
in Jacob Neusner e Bruce D. Chilton (edts.). In quest of the historical Pharisees (Waco, TX: Baylor University
Press, 2007), p. 315; Cf. David J. Rudolph. A Jew to the Jews (Tübingen: Mohr Siebeck, 2011), p. 118.
220

A presença de Deus repudia o impuro, pois a pureza ritual, de acordo com estes códigos,

é um símbolo da pureza moral e ética; puro (tahor) também significa completo. Portanto,

segundo esta teologia, onde há impureza não pode haver santidade (voltaremos a esse tema

mais adiante). A impureza implica um risco, um perigo, em face da presença de um Deus

santo, Um risco, portanto, coletivo se pensarmos que, segundo a teologia farisaica, o foco

cúltico da religião é transferido do templo de Deus para o povo de Deus.

(C) Há um segmento da escatologia farisaica em que há também a presença de um

Messias daniélico, cujas principais fontes inspiradoras são os apócrifos Enoque Etíope e

Similitudes de Enoque, escritos no primeiro século a. C., onde o Messias é retratado como

“um ser divino ou semidivino, preexistindo com Deus antes de todos os mundos, tomando seu

assento no trono de Deus e fazendo o papel de Juiz divino” 573 . Esta concepção é

compartilhada com outros apocalípticos574.

(D) A importância da figura escatológica de Elias e seu papel de reformador ocupa

importante espaço neste quadro. Com efeito, na composição do ideário farisaico do Messias

também deve ter tido grande importância o episódio veterotestamentário de Elias sobre o

Carmelo, quando o profeta extermina os profetas de Baal e reforma a religião de Israel,

quando, por meio de raios que descem do céu em resposta à oração e consomem o holocausto

depositado no altar, demonstra que Javé era Deus, (II Rs. 18). Portanto, para os Fariseus,

qualquer pretendente ao messiado deve possuir a capacidade de mover as potestades dos céus,

conforme a profecia de Joel 3: 3. Eis porque eles constantemente pressionavam Jesus a que

fizesse um sinal nos céus (Mt. 16: 1-4; Mc. 8: 11-13; Lc. 11:16) e a isto condicionassem a

573
E. C. Dewick. Primitive Christian eschatology (Cambridge: Cambridge University Press, 2011), p. 88.
574
O capítulo X do Testamento de Moisés, composto em ambiente antifarisaico demonstra que a ideia era bem
difundida: "então se manifestará seu reino sobre toda a criação, então o diabo terá seu fim e a tristeza se afastará
com ele. Então será investido o enviado, que no mais alto se acha estabelecido (...). Pois se levantará o Celeste
de seu trono real e sairá de Sua santa morada, inflamado de cólera em favor de seus filhos, [...] Pois o Altíssimo
Deus Eterno se levantará sozinho, aparecerá para se vingar das nações e destruir todos os seus ídolos. Então, tu,
Israel, serás feliz." (10. 1-2a; 3. 7-8a). In A. Diez Macho. Apócrifos del Antíguo Testamento (Madrid:
Cristianidad, 1987).
221

aceitação de Sua dignidade messiânica. E talvez pelo mesmo motivo Jesus não tenha querido

fazer descer fogo dos céus diante dos Fariseus575. Dominar os fenômenos da natureza não

seria problema para quem havia andado sobre as águas e acalmado os ventos no mar da

Galileia. A razão de sua negativa é simples. Não lhes daria motivo para o confundirem com

um messias exclusivista, intolerante e violento.

A perspectiva messiânica dos Fariseus envolvia um Messias com uma única missão, a

restauração de Israel, na acepção mais plena da palavra:

Genericamente falando os contornos básicos da escatologia da restauração judaica


incluía o reestabelecimento das doze tribos, o advento de uma figura messiânica (ou
figuras) para derrotar os inimigos de Israel e reinar com justiça num novo templo
purificado, o estabelecimento da pura adoração e de povos justos, o retorno de
Yahweh a Sião, abundante prosperidade e a renovação do concerto com a
subjugação ou a admissão dos Gentios576.

Apesar de a escatologia farisaica ser muito próxima da de Jesus, apenas alguns destes

desdobramentos teológicos são compartilhados com Ele; a maioria, descartada. Jesus aceita a

ideia geral da restauração, mas sem o ingrediente étnico 577 . Mas, o aspecto político do

ministério messiânico é completamente rejeitado: não haveria reestabelecimento das doze

tribos nem restauração do poder político de Israel, o templo não tem papel escatológico

importante na visão do reino de Deus de Jesus e tampouco há a equivalência entre pureza

ritual e santidade. Por fim, a ambiguidade das fontes intertestamentárias atinente aos

Gentios578 é desfeita com a admissão plena e irrestrita da gentilidade na comunhão de mesa,

575
Certa ocasião, atravessando o território de Samaria, uma de suas cidades se negou a dar pousada a Jesus.
Tiago e João então lhe perguntaram se queria que mandassem descer fogo dos céus para consumir os
Samaritanos (Lc. 9: 51-56). Jesus os repreendeu severamente: não sabiam a que Espírito pertenciam. Jesus não
era este tipo de messias. Não viera para destruir os réprobos (maus Judeus e Gentios) nem para reformar o povo
com o tipo de reforma que os Fariseus esperavam (ou seja, com a eliminação dos ímpios e observadores
negligentes das obrigações haláquicas).
576
Michel F. Bird. Jesus and the origins of the Gentiles mission (London: T&T Clark, 1988), p. 27.
577
A ideia de restauração da escatologia farisaica inspira-se na Sabedoria de Ben Sirac entendendo-a como
futura reunião das doze tribos (Sir. 48: 10).
578
“Não se deve esquecer o fato de a expectativa da destruição dos Gentios frequentemente aparecer em
justaposição com a esperança de sua eventual ou parcial salvação. Em 1Enoque, Oráculos Sibelinos, 4Esdras,
2Barucque, Testamento dos Doze Patriarcas e Mishnah, há paradoxalmente tanto a destruição como a salvação
dos Gentios.” (Michel F. Bird. Jesus and the origins of the Gentiles mission, p. 28).
222

símbolo de sua participação no Israel escatológico, como veremos mais próximo do final

desta investigação.

5.b.5. Zelotes

Houve uma ala do Farisaísmo que desfez a ambiguidade dos Apócrifos e

Pseudoepígrafos quanto aos Gentios optando por sua danação. Trata-se da ala radical dos

Zelotes579 que tomaram o modelo messiânico de Fineias – Elias como paradigma580. Segundo

sua concepção o trabalho prévio de purificação e santificação do povo para a recepção do

Messias estaria sob seu encargo, e isto significava para eles ter a obrigação religiosa de

proteger a Torah e expulsar os idólatras romanos e os maus Judeus do território judaico o

quanto antes581.

O termo nacionalismo ou nacionalista é inadequado para definir a ideologia zelote582.

Sua disposição de lutar pela liberdade, conforme testemunho de Josefo, não temendo a própria

morte e nem a dos seus (Ant. 18, I, vi.), não era um amor exacerbado por Israel, mas uma

579
Flávio Josefo não os associa diretamente aos Fariseus, dando-lhes uma origem independente como uma das
quatro filosofias (hairesis) mais importantes dos Judeus (Ant. XVIII, i, 1-5; Cf. Guerra, II, viii). Segundo o
relato de Josefo os Zelotes surgem já nos anos próximos à revolta, o que entra confronto com o relato dos
evangelhos. Provavelmente, a organização e o programa religioso zelote só ganhou notoriedade neste tempo.
Contudo, já havia um Zelotismo difuso nos dias de Jesus, o que Josefo não quis reconhecer porque não lhe
interessava como Fariseu associar seu nome ao dos revoltosos.
580
Fineias era um tradicional modelo dos Zelotes. Assim “aparece no quarto livro de Macabeus”. Em Números
25: 7-11 ele aparece tomando a iniciativa de trucidar os israelitas que erraram na idolatria de Baal-Peor
atravessando um homem e sua mulher com uma lança. “Em certos círculos judaicos durante este período Fineias
é identificado e igualado a Elias.” (Samuel F. G. Brandon. Jesus and the Zealots – Machester: University of
Manchester, 1967, p. 45), muito provavelmente pelo perfil religioso de ambos coincidir quanto ao espírito
reformador e impiedoso com os que erram (comparar com a matança dos profetas de Baal e Asera por Elias – II
Rs. 18). O Zelotismo acabou se tornando um elemento típico da piedade dos Judeus do primeiro século d. C. e
conforme os tempos corriam e se aproximavam da primeira revolta dos Judeus, mais sua influência aumentava.
581
“Os membros de um destes partidos colocavam tal ênfase sobre os preceitos que eles nunca tocavam uma
moeda baseados no fato de que não podiam sequer carregar, olhar para ou fazer uma imagem [as moedas em
geral traziam a esfinge de um imperador romano]. Eles entram na cidade evitando passar por um portão que
contenha estátuas (andriates), pois eles creem ser errado passar sob estátuas [...]. se eles ouvem alguém
incircunciso discutindo sobre sua lei e seu Deus, eles esperam-no para pegá-lo sozinho e ameaçá-lo de morte
caso não queira se circuncidar [...]. Por esta razão eles têm ganho o nome de Zelotes; alguns os chamam Sicários.
Os adeptos de um destes grupos chegam ao ponto de não nomear outro Senhor, senão seu Deus, mesmo se
torturados até a morte.” Hippolytos. Refutatio omnium haeresium in Samuel F. G. Brandon. Jesus and Zealots,
pp. 45 e 46.
582
Doron Mendels. The rise and fall of Jewish nationalism. Jewish and Christian ethnicity in ancient Palestine
(New York: Doubleday, 1992), p. 320.
223

devoção fanática a Deus, inspirada nas páginas mais sangrentas das Escrituras. O Zelotismo

pretendia, retornar a um tipo de teocracia, tal como praticada no período mosaico e

macabaico. Não é, portanto, errôneo qualificá-los, como vimos fazendo, como uma ala radical

dentro do Farisaísmo, mais tarde independente de seu ramo principal em virtude da guerra.

Movidos por seu fervor religioso, eles imaginaram-se capazes de atingir a libertação final de

todos os poderes (especialmente dos Romanos), tal como fizeram os Macabeus, seus

antepassados espirituais em relação aos Selêucidas.

Nos evangelhos há indícios de um Zelotismo diluído e ainda não plenamente

desenvolvido entre os discípulos de Jesus. Primeiro, pela presença de um certo Simão,

chamado Zelote, entre os apóstolos (Mt.10: 1-4, Mc. 3: 13-19; Lc. 6: 12-16). Um zelote ou

ex-zelote entre eles indica duas coisas: ou que era muito comum encontrar zelotes e

simpatizantes entre a população, ou que o ideário zelote encontrava respaldo também entre os

outros discípulos, como se pode verificar na perícope das duas espadas (Lc. 22: 35-38) e na

reação violenta e homicida de Pedro quando da prisão de Jesus (Mc. 14: 43-50, Mt. 26: 46-57,

Lc. 22: 47-53, Jo. 18: 2-11).

Em Paulo, quando ainda Saulo de Tarso, há também sinais de Zelotismo. Ele diz de si

mesmo ter sido educado “na lei dos antepassados, sendo zeloso para com Deus” (zelotes tou

Theou) (At. 22: 3-4). E em outro lugar: “eu persegui a Igreja de Deus [...], sendo

excessivamente zeloso por minhas tradições ancestrais” (zelotes ton patrikon mou

paradoseon) (Gl. 1: 13, 14 e 23). E ainda: “quanto ao zelo (zelos) perseguidor da Igreja de

Deus” (Fl. 3: 5). Nestas passagens, Paulo não tem o menor pudor de autodenominar-se

zelotes, àquele tempo sem a conotação política que depois adquiriria (cerca de vinte e cinco a

trinta anos depois de sua conversão)583, mas o sentido religioso é bastante claro pelo zelo

devastador com que perseguia a seita dos cristãos. Para ele “o Cristo kerigmático era um rival
583
James D. G. Dunn. Beginning from Jesusalem (vol. 2, Grand Rapids. MI: Wm. B. Eerdemans, 2009), p. 342.
224

da Torah”584 e os Cristãos eram maus praticantes do Judaísmo, donde sua decisão de extirpar

a seita dos Nazarenos.

Seu zelo estava completamente afinado com a piedade farisaico-zelote que pode ser

definida como uma firme disposição para usar de todos os meios, inclusive a violência para

dissuadir aqueles que se contradissessem a Torah, opusessem-se a ela ou a subvertessem,

fossem Judeus, Gentios, ou ímpios em geral. Em outras palavras, violenta intolerância

religiosa, que leva os que assim pensavam a uma devoção tão intransigente que estavam

dispostos a tudo: matar, morrer, sofrer, torturar. O Zelotismo ou Farisaísmo radical de Paulo

era uma devoção intransigente à Torah, que o levava a estar disposto a matar, a sofrer e a

morrer por ela.

5.c. A escatologia de Jesus

Jesus, apesar de também apocalíptico585, não adotava nenhum destes tipos messiânicos.

Principalmente, porque Ele não anunciava uma mensagem sectária e disjuntiva, mas

584
Terence L. Donaldson. Paul and the Gentiles. Remapping the apostle’s convictional world (Minneapolis,
MN: Fortress Press, 2006), p. 284.
585
A condição de Jesus como profeta apocalíptico continua muito contenciosa na literatura especializada. Há
razões para incluí-lo em seu rol e há razões para tirá-lo daí. J. Charlesworth, por exemplo, aponta seis motivos
para sua exclusão desta ilustre lista (Jesus and Dead Sea Scrolls – New York: Doubleday, 1992, pp. 52 2 53): (a)
Jesus não escreveu nada, e os escritores e redatores apocalípticos intertestamentários eram eruditos; escribas
notórios e leitores ávidos; reconhecidos pelo excesso remissivo de seus textos, frequentemente beirando a
extravagância. (b) Jesus não valorizava a sabedoria apocalíptica, nunca esteve ocupado com um conhecimento
enciclopédico, menos ainda com um científico, nem jamais afirmou que os “sábios herdariam a nova terra” (Dn.
12:3) (embora Daniel se referisse às letras sagradas). (c) Em vez de debater assuntos judaicos, como por
exemplo, a condição de Judeu sob o domínio romano, estava mais preocupado em anunciar a iminência do reino
de Deus e as consequências universais deste evento; (d) Não era vingativo; não anunciava a ira de Deus para a
destruição dos réprobos e pagãos opressores, mas a graça salvadora para todos. (e) Nunca se ocupou em
descrever o paraíso e as realidades extraterrenas; pelo contrário, desestimulou quem disso se ocupava (Mt. 23-
30). (f) Nunca enfatizou a transcendência e o distanciamento de um Deus santo e justo e a intermediação por
seres viventes (Ezequiel) ou por anjos (Daniel); ao contrário, ensinou seus discípulos a chamarem Deus de Abba
(a oração do Pai nosso) e o retratou magistralmente como um Pai a espera de seu filho perdido, para acolhê-lo
em seus braços (a parábola do filho pródigo – Lc. 15: 11-32). Fiz alguns desenvolvimentos nesta lista,
acrescentando mais três motivos, de alguma sorte antecipados nas letras (a) e (b): (g) Ele não procurou conectar
seus ensinos com o de outros no passado, nem fundamentou sua autoridade nas Escrituras, o que não quer dizer
que não tenha feito muitas e abundantes remissões a ela. (h) Jesus não era dado a sonhos e visões. E finalmente,
(i) nunca construiu esquemas cronológicos, nem dividiu a história do mundo em eras ou idades, como fizeram
Daniel e seus discípulos da Apocalíptica intertestamentária. Por outro lado, há sinais de Apocalipsismo em Jesus,
desde que ensina (a) a iminência do reino de Deus, bem como a pronta subversão do mundo (Mc. 1: 15, Mt. 12:
28, Lc. 9: 27 e 11: 20); (b) alguns temas de sua pregação são escatológicos ou apocalípticos: a Geena, os
225

“integrativa e universalista”586. Primeiramente, porque não ressaltava as diferenças entre os

Judaísmos da época. Pôs entre parênteses as normas haláquicas e em destaque as normas

morais, compartilhadas por todos 587 . O halaquismo desta época estava à serviço de certa

expectativa escatológica que punha em relevo o julgamento dos povos e a retribuição final. As

noções escatológicas de Jesus não eram compatíveis com estas ideias.

Para Jesus não havia razão para um antagonismo prévio ao Juízo (os eleitos de um lado,

os réprobos de outro) e/ou uma separação de Seu grupo daqueles que tinham outra opção

religiosa588. O reino de Deus não vem para preparar o mundo para o julgamento final, para

por de uma parte os santos e de outra os réprobos. A separação ocorre apenas no último dia.

Assim ensinam a parábola do joio (Mt. 13: 24-30), da rede (Mt. 13: 47-50), a das dez virgens

(Mt. 25: 1-12), o dito “um será tomado e o outro deixado” (Mt. 25: 40-41). As bases do Juízo

são morais e éticas (um cumprimento mais profundo da lei moral) e não cúlticas ou

doutrinárias, como evidencia o trecho conhecido pelos estudiosos como Apocalipse de

Mateus (Mt. 25: 31-46).

Ao contrário dos outros messianismos, não há em Sua mensagem um apelo para sair do

mundo, mas um Ide, numa busca mais decisiva pelos excluídos. Por isto, o ainda-não de Jesus

cataclismos cósmicos, o julgamento final, a recompensa, a punição, a ressurreição (Mc. 13: 1-37, Mt. Capítulos
24 e 25, Lc. 21: 5 – 36); (c) nas obras de Jesus e nas cenas ligadas à sua vida há um constante trânsito de seres
celestiais e demoníacos (Mt. 4: 1-11, Mc. 1: 12-13, Lc. 4: 1-13, Jo. 1: 51); (d) usa constantemente o título
apocalíptico-messiânico “Filho do homem”; (e) faz alusões ao profeta Daniel (Mt. 24:15), que é o pai de toda a
literatura apocalíptica, o texto-fonte de todos os apocalípticos, do Apocalipsismo intertestamentário até o
Apocalipse de João. C. H. Dodd em Parables of Kingdom já havia fechado a questão. Jesus é apocalíptico, pois
usa uma linguagem apocalíptica, embora não em termos suprarreais como os apocalípticos clássicos. A
linguagem apocalíptica caracteriza-se pelo “uso de símbolos para representar realidades que a mente humana não
pode diretamente apreender” (apud George E. Ladd. Kingdom of God – New York: Harper and Row, 2002, p.
19). O modo de ver o mundo apocalíptico “é ver uma ordem transcendente além do espaço e tempo”. Jesus usou
uma linguagem deste tipo, embora usando motivos da vida prosaica, o que só intensificam esta referência ao
transcendente, e a realização do futuro no presente, apesar deste presente ser o pobre e bucólico mundo dos
camponeses da Palestina de seu tempo.
586
Gerd Theissen e Annette Merz. O Jesus histórico. Um manual, p. 167.
587
Idem, ibid.
588
Não se pode olvidar que há certas passagens onde aparecem conflitos (Mt. 10: 34-37; Lc. 12: 53), mas eles
são de uma natureza diferente daqueles das outras religiosidades coetâneas a Jesus e seus discípulos. Eles
refletem uma situação de perseguição religiosa e de rejeição que Jesus experimentou e os seus viriam a sofrer, e
não era uma prescrição para a entrada no reino.
226

é o da comunhão e não o da segregação. A mensagem de Jesus prega vem como ruptura,

porque também é apocalíptica e não política, mas trata-se de uma ruptura com as instituições

politicorreligiosas de sua época, mas não com as pessoas que delas faziam parte.

Uma parte importante da teologia sectária da época era o conceito de santidade, pela

qual podiam ser identificados os santos e réprobos deste juízo prévio à manifestação do

Messias. Jesus desconstrói o conceito, dando-lhe outro significado.

5.c.1. O conceito de santificação de Jesus

O tema da santificação tão caro a Paulo e a João não tem o mesmo peso na mensagem

de Jesus. Isto é bem insólito em se tratando de literatura apocalíptica, pois este é um tema

escatológico clássico, marcante na Tanakh e expresso pela antítese santo e profano (Zc 14:

20-21; Is 4:3; Ez 36 e 37). Contudo, Jesus evita o tema; a redação dos evangelhos evita até a

palavra (exceto João)589. A questão é algo ambígua, porque de um lado, a ética do reino é

mais rigorosa do que a dos Fariseus, conforme está claramente declarado no sermão mais

importante de Jesus: o sermão da montanha/planície: “porque vos digo, se a vossa justiça não

exceder a dos Escribas e Fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mt. 5: 20).

Por outro lado, Jesus parece atacar o tema da santificação em Suas frequentes diatribes contra

os Fariseus. Ou seja, ou temos dois tipos diferentes de santidade, uma aprovada e outra

rejeitada por Jesus, ou temos uma colossal contradição?

Realmente, são dois conceitos diferentes de santidade: uma prevalente naqueles dias e

outra de Jesus. Com efeito, para Fariseus, Saduceus, Escribas, Zelotes e Essênios, santidade e

pureza rituais aparecem invariavelmente como equivalentes 590 . A pureza haláquica era a

santidade necessária para que Deus pudesse habitar no meio de Seu povo e, portanto, estava

589
A palavra santo e seus correlatos jamais aparece nos lábios de Jesus nos evangelhos, exceto em João 17:17
(“santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”) e em discurso privado.
590
Marcus Borg, Conflict, Holiness and Politics in the teachings of Jesus, p. 8.
227

relacionada com a teologia do concerto e com a teologia do templo, como irmãos siameses

presos pelo tronco. O conceito era a coluna cervical do Judaísmo dos tempos de Jesus:

“unidade de culto, pureza cúltica, adoração exclusiva de Yahweh, unidade de Israel, eleição e

concerto, posse da terra, etc., tem se combinado numa ordem israelita fechada para o povo e

para a vida.”591

Em várias circunstâncias de Seu ministério, Jesus se coloca numa posição de confronto

com estas ideias. De início deixou-se batizar por João Batista, aderindo exemplarmente a uma

prática pública de purificação espiritual (perdão de pecados) concorrente com a do templo,

mas que tinha similares em outros segmentos religiosos contemporâneos (Fariseus e

Essênios).

Também não era estrito observador das normas haláquicas, quando estas diziam respeito

à impureza que se propagava de pessoa a pessoa e colocava as normas morais (decálogo) em

uma posição superior. Os exemplos são tantos que seria impossível ser exaustivo no espaço de

que dispomos. Ele não evitava tocar em mortos (ressurreição da filha de Jairo – Mc 5: 22, Lc.

8: 41), em caixões (ressurreição do filho da viúva de Naim – Lc 7: 11), andar em cemitérios (a

cura do endemoninhado em Marcos 5); comer com pecadores (pessoas impuras ritual e

moralmente) (Mt. 9: 11; Mc. 2: 16; Lc. 7: 34, 15: 2), cobradores de impostos (pessoas impuras

por se relacionarem com romanos e pagãos) (Mt. 9:10, Mc. 2: 15), prostitutas (Mt. 21: 31);

deixar-se tocar por mulheres adúlteras (Lc. 7: 36-50), samaritanas (Jo. 4: 9), hemorrágicas

(Lc. 8: 43); curar tocando os órgãos doentes dos enfermos que o procuravam (Lc. 22; 51),

tocar em pessoas possessas por espíritos imundos, ainda que libertas (pouco tempo depois)

(Mc. 9: 25-27); falar com leprosos, desrespeitando o distanciamento exigido (Mc. 1: 40, 14:

3). Também não respeitava as normas haláquicas da guarda do Sábado, pois curava neste dia.

591
Gehard F. Hasel. Old Testament theology: basic issues in current debates (Grand Rapids, MI: Eerdemans
Publishing, 1991), p. 157.
228

Em geral, confrontava as normas haláquicas, colocando acima delas as normas do decálogo, a

exemplo da parábola do bom samaritano, em que o sacerdote e levita se desviam do

moribundo por causa da proscrição levítica de tocar em mortos (Lv. 21: 1), e são

implicitamente criticados por isso.

Outra evidência de que Jesus pensasse numa superação das teologias do templo (e do

concerto) são os vários ditos sobre sua destruição. Os evangelhos associam a morte de Jesus

ao fim da dispensação do templo (Mt. 27: 51; Mc. 15: 38; Lc. 23: 45). João vai além,

atribuindo ao corpo de Jesus a condição de novo templo, como sugere o famoso dito: “destruí

este templo e em três dias o reerguerei (mas ele falava do templo de seu corpo)” (Jo. 2: 21). A

quádrupla atestação deste dito diz muito sobre sua importância no quadro geral das ideias

religiosas de Jesus e seu movimento (mas nada diz sobre sua autenticidade; rejeitamos esta

metodologia). A superação do templo ocorre não somente pelo fim do sistema sacrifical, que

com Sua morte perde completamente o sentido; mas também porque com a irrupção do reino

de Deus e a posterior infusão do Espírito sobre a Igreja, todo o sistema regulador da

aproximação humana em relação a Deus deixa de ser necessário. Portanto, o templo neste

novo contexto é supérfluo. Mas, então por que Jesus não falou abertamente do fim da

dispensação do templo, e, pelo contrário, dá a entender em algumas passagens que o templo

conservava sua validade.

Com efeito, era frequentemente visto ensinando no templo (Mc. 14: 49; Lc. 19: 47, 21:

37); como seus contemporâneos Judeus, cria que o templo era a habitação divina (Mt. 23: 21),

e, por isso, um lugar santo (Mt. 24: 15). Pagou o imposto do Templo (Mt. 17: 24), aprovou as

ofertas (Mt. 5: 23) e os dízimos (Mt. 23: 23; Lc. 11: 42). Manda leprosos por ele curados se

mostrarem aos sacerdotes ((Mt. 8: 2-4; Mc. 1: 43-44 e Lc. 5: 2-14, 17: 11-19), para que

fossem declarados puros, conforme determinava a lei de Moisés. Acorria periodicamente a


229

Jerusalém no tempo das festas (segundo a tradição joanina)592 e por isso também devia seguir

as regras de pureza ritual, exigidas de todos seus participantes (Nm. 9: 6). Segundo Lucas, aos

doze anos de idade, Jesus chamou o templo de ‘a casa de meu Pai’ (Lc. 2: 49).

O que podemos dizer sobre esta atitude inconsistente de Jesus? Várias respostas são

possíveis. Uma delas é a simples elisão das passagens em que Jesus aparentemente endossa o

sistema cúltico do templo. Os que adotam esta operação afirmam que Jesus teria rejeitado o

templo por motivos sociopolíticos593. Para estes autores Jesus confrontou o sistema cúltico

que geria a doença e a cura, o pecado e a culpa, colocando no lugar seu próprio sistema

paralelo e concorrente, por uma motivação revolucionária – ainda que não armada, o que não

quer dizer destituída de inspiração religiosa594. O que defendemos é o contrário. Jesus criou

um sistema paralelo e concorrente de perdão / purificação por motivação religiosa e teológica,

o que não quer dizer destituída de consequências sociopolíticas595, como Sua própria morte o

indica. Isto explicaria Sua relutância em rejeitar definitivamente o sistema cúltico do templo,

por ser potencialmente uma ação subversiva, que daria à sua audiência um sinal trocado: seu

reino não era deste mundo e um ataque ao templo significaria o oposto, porque o templo era

uma das instâncias de poder na Judeia, através do Sinédrio, supletiva à outra instância que era

o prefeito de Jerusalém. Uma parcela da população judaica vivia na ilusão de que era

592
Segundo o evangelho de João, Jesus teria feito cinco viagens a Jerusalém, com o objetivo específico de
participar das festas sabáticas: duas vezes para a Páscoa (pessach) (Jo. 2: 15 e 11: 55), uma vez para participar da
festa das tendas (sukkot) (Jo. 7: 10), uma vez para uma festa não especificada (Jo. 5: 1), e uma vez para o festival
de (re)dedicação do templo, que fora criado no período macabaico (Jo. 10: 22).
593
Marcus Borg. Conflict, holiness and politics in the teachings of Jesus (obra já citada); John Dominic Crossan.
Jesus, a revolutionary biography (New York: Harper Collins Publishers, 1995); Obery M. Hendricks. The
politics of Jesus. Rediscovering the true revolutionary nature of Jesus’ teachings and how they have been
corrupted (New York: Doubleday, 2006); Richard Horsley. Bandits, prophets & messiahs (Harrisburg PA:
Trinity Press International, 1999); N. T. Wright. The New Testament and the people of God (Minneapolis:
Fortress Press, 1992).
594
Marcus Borg. Jesus in contemporary scholarship, p. 32.
595
Num artigo publicado em 1986, Bruce Malina (“Religions in the world of Paul” – BThB, no. 16, p. 92),
aplicando as ideias sociológicas de K. Polanyi aos estudos neotestamentários, faz uma importante observação
que muito contribuiu para uma melhor compreensão do mundo do Novo Testamento. A antiga sociedade
mediterrânea estava “impregnada de religião”, o que significa dizer que todas as dimensões da vida social
estavam dominadas pela religiosidade: a economia, a política, a família. Era, portanto, impossível que a rejeição
de Jesus à religiosidade de seu tempo não produzisse reflexos nestas outras áreas da vida daquela sociedade.
230

governada por uma teocracia (o povo comum, Fariseus e Saduceus), outra parte era consciente

da aliança do Templo com Roma e a repudiava (Essênios, Zelotes). Jesus tinha uma linha

tênue sobre a qual caminhar; pisar fora deste espaço exíguo seria de alguma forma tomar

partido e, mesmo sem o querer, conseguir o apoio e a adesão política da parte grata596. Isto

explica o fato de Ele ter deixado suas ações mais decisivas contra o tempo para o final de Seu

ministério.

Houve um superdimencionamento do aspecto ritualístico da religião no período

intertestamentário, quando Israel convivia com Gentios no exílio babilônico e tinha que se

adaptar à sua incômoda presença e de seus costumes. Neste contexto a lista levítica de coisas

impuras de si já imensa (praticamente o livro todo é dedicado ao tema): cadáveres de homens

e de animais, fluidos corporais do homem e da mulher, órgãos doentes, objetos contaminados

pelo toque dos doentes, misturas de alimentos, misturas de tecidos, foi acrescida pelas 630 leis

da Hallakah 597 , que pretendiam “contextualizar os preceitos gerais da Torah à vida dos

exilados”598.

As contaminações aí referidas têm uma natureza extremamente dinâmica; elas se

propagam, passam de pessoa para pessoa, porque qualquer coisa ou pessoa que entre em

contato com elas também se torna imunda (Lv. 15).

O conceito de pureza e impureza de Jesus rompe com toda a teologia levítico-haláquica

pelas seguintes razões:

596
Observar como em Sua última semana, na qual a assim chamada purificação do templo ocorre, uma ala mais
exaltada dos discípulos parece assumir a liderança nas ações do grupo: o ataque de Simão a mão armada contra o
servo do sumo sacerdote (Jo. 18: 10), o dito das duas espadas aparece neste contexto (Lc. 22: 38), a fuga e o
medo dos discípulos após a prisão de Jesus são indício da dimensão do problema (Jo. 20: 19).
597
Obra escrita durante o exílio, cujo título significa em aramaico “Caminho” (subentendido, “para Deus”). O
título da obra por si só já dimensiona a importância do aspecto ritualístico da religião judaica neste tempo.
598
Christian Grappe. Initiation au monde du Nouveau Testament (Genève : Labor et Fides, 2010), p. 76.
231

(1) Como já foi dito, primeiro o conceito de pureza perde sua importância religiosa. O

crente pode adorar a seu Deus e comungar com os outros sem se importar com as questões

rituais. O Binômio pureza/santidade é quebrado. Com a irrupção do reino de Deus em Jesus, a

presença de Deus passa a ser imediata e a santidade passa a ser entendida como relacionada

ao respeito e cumprimento da lei moral e da devoção.

(2) Segundo, em Jesus o conceito de pureza ganha uma força e um dinamismo que na

teologia do templo não possuía. De acordo com a explanação de K. Berger:

Pelo conceito de ‘pureza/santidade ativa’ eu entendo uma pureza/santidade que não


é colocada em perigo e nem ameaçada, que não é uma qualidade passiva, algo que
deva somente ser preservado, algo que todos os dias deva ser defendido e é
suscetível de se estragar. A pureza/santidade ativa, pelo contrário, é uma pureza que
se propaga a partir daquele que é seu portador, que é contaminante, que pode tornar
o impuro puro, que se propaga e que é expansivo e, portanto, também missionário e
universalista. Ela é algo dinâmico e vitorioso que por contato desfaz toda impureza e
não pode ser ameaçada por ela599.

Resta pouco a dizer depois desta citação. Pode-se acrescentar que esta nova relação

entre pureza e impureza só pode ser entendida à luz da irrupção do reino de Deus no

ministério de Jesus: uma força restauradora irresistível. Assim, como o caos não pode resistir

à palavra de Deus, da mesma maneira o mundo dominado pelas forças destrutivas do mal não

pode resistir ao toque de Jesus: “se, porém, expulso demônios pelo dedo de Deus, é chegado o

reino de Deus sobre vós”. (Lc. 11: 28). É como se o ministério de Jesus tirasse o Bem e a

Justiça da defensiva e lhes infundisse uma força expansiva e vitoriosa.

Marcus Borg em seu livro Conflito, santidade e os ensinos de Jesus 600 defende

acertadamente a ruptura de Jesus com o conceito de santidade da teologia do templo.

Contudo, o que ele define como o conceito de santidade de Jesus não é fiel às fontes. Ele diz

que Jesus substitui “o paradigma” da santidade pelo da misericórdia, o que tornaria Sua

599
Apud Christian GRAPPE, “Jesus et l’impureté ”, RHPR, vol. 84, 84 (2004), pp. 394.
600
Que vem sendo citado como Conflict, holiness and the teaching of Jesus.
232

religiosidade e dos discípulos inclusiva em relação aos Gentios 601. Ora, páginas acima do

texto que transcorre mencionamos o fato de a ética do reino ser mais radical do que a dos

Fariseus, como atesta o Sermão do monte. Contra Borg é preciso dizer que não é possível

simplesmente elidir Mateus 5: 48 (“Portanto, sede vós perfeitos, como é perfeito vosso Pai

que está nos céus”), em favor de Lucas 6: 36 (“Sede, pois, misericordiosos, como também

vosso Pai é misericordioso”). As ênfases redacionais dos evangelistas não podem ser

transformadas em “paradigmas”, assim, tout court, e ainda menos dizer que uma delas é a de

Jesus.

O conceito de santidade de Jesus é moral, baseado no decálogo (sem casuísmo), em vez

de restritivo e cúltico, como na teologia do templo. Além disso, é uma santidade privada.

Todos os sinais exteriores de santidade que serviriam a este propósito (inclusive a noção de

pureza), ou seja, definir quem é e quem não é santo (e segregar com base nisto), são

repudiados em favor de sinais interiores no plano devocional e ético e ambos anônimos, como

ensinam o sermão do monte 602 e a parábola do Bom Samaritano (Lc. 10: 30-37).

Consequentemente, não é sectarista nem serve para definir um povo eleito, separado de um

grupo maior de pessoas.

O conceito de santidade de Jesus, portanto, não dá lugar à preocupação de se estar

sopesando a santidade alheia. A falta de santidade de quem está próximo não tem efeito

contagiante. Não é o impuro e o profano que se propagam e se expandem ameaçando o puro e

o santo, mas o contrário. Esta é a lição da parábola que apresenta a Igreja como o sal que

purifica e tempera o que toca (Mt. 5: 13). Portanto, tudo o que deveria ocupar a atenção dos

discípulos de Jesus era sua própria santidade, cuja fonte era devocional e ética e não a

601
Marcus Borg. Conflict, holiness and the teachig of Jesus, pp. 16-17.
602
“Quando orares entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai que vê
em secreto, te recompensará” (Mt. 6: 6); “quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti [...]Tu,
porém, ao dares esmola, ignore tua mão esquerda o que faz tua mão direita; para que tua esmola fique em
secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mt. 6: 2,3,4).
233

santidade do outro. Sua ênfase é a devoção à Deus produzindo uma vida condizente com esta

comunhão e não uma vida condizente com esta comunhão produzindo (a aparência de) uma

devoção à Deus.

É por este motivo que em muitas outras passagens Jesus recomenda tudo o que era feito

pelos Fariseus, porém, repudia o modo e o motivo de seus atos pios. Deve-se guardar os

mandamentos, mas não meramente evitando os atos pecaminosos, guardando acima de tudo o

coração do pecado (Mt. 5: 21-32)603. Deve-se jejuar, mas não com face contrafeita. Deve-se

orar, mas não publicamente (Mt. 6: 16-18). Deve-se esmolar, mas não ao som de trombetas;

porém discretamente (Mt. 6: 2-4). Deve-se interceder, mas não meramente pelos amigos e

parentes; mas também pelos inimigos, pelos que nos perseguem (Mt. 6: 44). Deve-se ajudar

aos necessitados, ainda que não tenham como devolver os favores, como no caso da parábola

da ceia (porque os convidados eram paupérrimos) e o do bom samaritano (porque aquele que

estivera estirado no caminho estava desacordado e não poderia sequer reconhecer seu

benfeitor). Portanto, para Jesus a santidade era algo privado, restrita ao plano devocional e

moral, não havendo nada no mundo social que pudesse ou devesse denunciá-la. Seu palco é o

coração humano e, portanto, Deus é seu único espectador.

Por conta disto, Jesus fala de Publicanos e meretrizes de modo bastante ofensivo à

sensibilidade farisaica. Quando o Publicano e o Fariseu oram no templo Ele repudia a

santidade autojustificante do primeiro e acolhe a pecaminosidade contrita do segundo (Lc. 18:

10-14). Quando diz que os Publicanos e as meretrizes precedem os Fariseus no reino (Mt.

21:31), isto ocorre pelo mesmo motivo da rejeição da oração do Fariseu, sua pretensão à uma

justiça que eles não possuíam. Estes textos são de autoridade inquestionável, porque se

603
Jesus rejeita o casuísmo escribo-farisaico. Segundo Jesus, é impossível estruturar casuisticamente o
cumprimento da lei, e por este meio determinar quem é seu transgressor e quem não é, porque as piores
transgressões contra lei são perpetradas no coração, onde estão a salvo da percepção humana (Eduard Lohse, Op.
Cit., p. 103).
234

coadunam perfeitamente com a comensalidade aberta, praticada e recomendada por Jesus:

Vendo os Fariseus que Ele comia com publicanos, disseram: Por que come com pecadores?

(Mc 2: 16). Ao que Jesus respondeu: “não necessitam de médico os sãos, mas sim os

enfermos, eu não vim chamar justos, mas pecadores, ao arrependimento.” (v. 17).

Assim, rejeitadas as noções de santidade e pureza como critério de separação entre maus

e bons, resta impossível qualquer tipo de sectarismo. No sermão apocalíptico de Mateus, a

separação dos bodes das ovelhas, entre salvos e réprobos é feita por ocasião do advento e não

pré-advento (Mt. 25:32). Nenhuma pista é deixada quanto a quem são uns e outros604. Pois

Ele diz em outro lugar: “estarão dois no campo, um será tomado e o outro deixado; estarão

duas no moinho, uma será tomada e a outra deixada”. (Mt. 28: 40-41; LS 17: 34-36). Na

parábola do joio semeado em campo de trigo. Jesus diz que ambos crescem juntos até o dia da

ceifa final, quando Senhor da seara há de guardar o trigo em seu celeiro e lançar o joio no

forno para ser queimado (Mt. 13: 24-30).

Em Lc 14: 15-24 o convite escatológico para as bodas, depois de haver sido rejeitado

pelos puros e justos (as pessoas religiosa e socialmente mais bem posicionadas), foi levado

aos descartes sociais, aos paralíticos, inválidos, discriminados, o justo retrato dessas

populações depauperadas, menosprezadas pelos Saduceus, desprezadas pelos Fariseus e

abominadas pelos Essênios (Am ha aretz):

Ainda que Jesus seja hóspede da casa de Levi, considera sua comunidade de mesa
com publicanos à luz de sua própria atividade de mensageiro escatológico de Deus
que anuncia a proximidade da chegada do reino de Deus e comunica aos Publicanos

604
Porém, isto não é tudo. Jesus não só fecha todas as portas possíveis ao sectarismo, como também as confunde.
Os pobres, tidos como os menos qualificados para o reino, porque não tinham como cumprir estritamente as
tradições haláquicas dos Fariseus, passam a ser seus verdadeiros herdeiros. Com eles, os injustiçados, os
perseguidos, conforme os macarismos de Mt. 5: 1-12 e Lc 6: 20-23. Os servos serão os maiorais no reino e quem
não se tornar como uma criança não poderá ter assento entre os redimidos. As crianças, que nas sociedades
greco-romanas eram consideradas o estrato mais baixo da sociedade, serão as primeiras no Reino de Deus (Mt.
19:14). Não é por acaso que no Juízo escatológico, os salvos são representados como ovelhas e os réprobos,
como bodes (Mt. 25: 33 e 34), já que os chifres na linguagem apocalíptica desde sempre tem sido símbolo de
poder político e econômico.
235

(ou seja, aos pecadores) o convite divino para formarem uma grande comunidade de
mesa escatológico com Deus (Mt 22:1-14; Lc 14: 16-24)605.

A ruptura do reino com o ethos circundante, inclusive com a rejeição deste conceito de

santidade excludente, dá-se justamente por que os critérios sociorreligiosos com que o ‘hoje’

(com todos os seus comprometimentos socioeconômicos) define os homens, são rejeitados e

substituídos pela práxis do reino, que os abole vê apenas uma comunidade governada pelo

Bem em sua pureza sem nome. O nome de quem faz e de quem recebe o benefício desaparece

ficando apenas a relação Benefício-Necessidade, conforme o ensino da parábola do Bom

Samaritano, cujo protagonista providencialmente ficou no anonimato. O Deus que é amor

neste contexto passa a ser Tudo em Todos, como dirá mais tarde Paulo (I Co 15: 20).

O nome disto não é comunismo, comunitarismo nem revolução não violenta, mas uma

santidade que é o motor da transformação dos seres humanos. Não se trata de atos privados

reconhecidos como santos por Deus e pelos homens, mas o que pessoas completa e

integralmente comprometidas com o reino de Deus e sua justiça fazem umas pelas outras.

Quando se compara a redação de Lucas e Mateus isto fica ainda mais evidente, porque

Mateus registra no sermão do monte: “sede perfeitos como perfeito é vosso Pai que está nos

céus” (5: 48)606; e Lucas, no sermão da planície: “sede misericordiosos, como misericordioso

é vosso Pai que está nos céus.”. Havendo, portanto, uma sinonímia entre perfeição (santidade)

e misericórdia. Isto significa que, no reino de Deus, o que move a sociedade dos homens de

boa vontade não é a busca de reconhecimento social, em função do qual o conceito de

santidade sectário subsiste, mas o Bem de todos, ao qual está referido o conceito de santidade

como misericórdia.

605
E. Schllebeeckx. Jesús, história de um viviente, p. 192.
606
A referência veterotestamentária de Mateus nesta passagem é Levítico 20: 7: “Portanto, santificai-vos, e sede
santos, pois eu sou o Senhor vosso Deus.” A redação mateana evita a palavra hagios tão cara ao sectarismo
judaico e utiliza em seu lugar teleios, que evita confusões com o conceito de santidade judaico e ao mesmo
tempo indica a radicalidade da santidade do reino de Deus.
236

5.c.2. A taumaturgia de Jesus

A taumaturgia era um fenômeno generalizado no ambiente palestinense. Sua fonte

teológica mais importante talvez fosse a profecia de Malaquias 4: 5-6 sobre a vinda de Elias,

antes do “dia do Senhor”. Sendo o ministério profético de Elias desta natureza, era, portanto,

esperado que seu retorno viesse acompanhado de muitos milagres. O profetismo de Elias,

desta maneira, teria tido de princípio um papel fundamental no modo de pensar dos

contemporâneos de Jesus e, por conseguinte, no modo como entenderam e interpretaram suas

ações607. Não é casual que muitos o tenham tomado por Elias redivivo ou por João Batista

(que em fim de contas dá no mesmo) (Mt. 16:13-23, Mc. 8:27-33 e Lc. 9: 18-22).

Para uma importante parcela da população da Palestina neotestamentária (especialmente

aquela sob influência farisaica), os oráculos sobre a vinda de Elias e a chegada do dia do

Senhor (com o fim do milênio para alguns) e a promessa da efusão do Espírito nos últimos

dias (Joel 2: 28-32), produziam uma forte expectativa escatológica. A reaparição de Elias era

o sinal de que todos estes acontecimentos em seguida ocorreriam. A figura de Elias era,

portanto, escatológica e messiânica, e, por isso, não era difícil confundi-lo com o próprio

Messias608. O que determinava esta contaminação da figura de Elias pela messiânica e vice-

versa era a crença geral de que os milagres estavam relacionados com o cumprimento

escatológico da restauração e cura de Israel, conforme as profecias de Isaías e Jeremias, a que

retornaremos mais adiante.


607
Com efeito, havia muitos pontos de contato entre Jesus e Elias, embora também algumas diferenças. O
ministério de Elias fundamentalmente tinha uma característica dúplice. Ele foi um profeta de ação: (a) como
taumaturgo, realizou vários milagres, curas e até uma ressurreição; (b) como reformador, tentou restaurar a fé
javista no reino setentrional, expurgando-a do Paganismo cananeu que a ameaçava; (c) como líder político,
denunciou e reprovou governantes ímpios, tais como Acabe. Os evangelhos apresentam estas qualidades
atribuindo-as, tacitamente, a primeira a Jesus; as demais a João Batista. Por isso, apresentaremos neste tópico o
papel de Jesus como taumaturgo, e no outro, sob a rubrica de Profetismo tipo Elias-Eliseu, tentaremos
demonstrar porque Jesus não fez um chamado nacional à reforma religiosa e nem fez qualquer tentativa de
repreender aqueles que estavam exercendo o poder de forma ilícita ou ilegítima, como fizeram Elias e o Batista.
608
No Evangelho de João, os Fariseus interrogam o Batista sobre sua dignidade profética, inquirindo-o
fortemente se era Elias ou o Cristo (1: 19-28). O modo como os termos Elias, Messias e o Profeta aparecem se
alternando, tanto na tradição sinótica como na joânica, atestam que não havia uma fronteira muito clara entre
estas coisas.
237

Respondendo aos discípulos de João Batista (nesta ocasião prisioneiro nas masmorras

de Herodes Antipas) sobre se ele era o que havia de vir ou se deviam esperar outro, Jesus

apontou seus milagres como o maior sinal de que o reino de Deus de fato já havia irrompido

neste mundo por seu intermédio (Mt. 11: 1-6; Lc. 7: 18-23). Ele descreve seu ministério como

cumprimento da profecia de Isaías 35: 5-6, e com isso indica a restauração de Israel como

cumprimento escatológico par excelence de tudo o que os profetas haviam dito antes sobre o

Reino de Deus. Notar a omissão que Jesus faz do resto da citação de Isaías: “para apregoar o

ano aceitável do Senhor e o dia da vingança de nosso Deus” (61: 2). O que, segundo a

exegese do Batista, deveria também compor o quadro dos feitos messiânicos, desde que para

o Batista a vinda do messias seria acompanhada do juízo, do ajuste de contas final (Mt. 3: 7-

10; Mc. 1: 4; Lc. 3: 7-9).

Conforme já está sugerido no transcrito do discurso de João Batista, havia um grupo

religioso que não cria no Juízo como imediatamente ocorrente à vinda do messias. Alguns

Fariseus são reprovados pelo Batista em todos os evangelhos justamente por este motivo:

“raça de víboras; quem vos ensinou a fugir da ira vindoura”. Ou seja, parafraseando: ‘o que

vocês fazem aqui Fariseus? Vocês não creem que chegou o tempo da escatológica ira divina.’

Desta forma, embora os milagres de Jesus causassem grande impacto e fossem considerados

por muitos como sinais de que Deus se aproximava da história humana (Lc. 4: 18-19), não

havia consenso quanto ao que eles realmente significavam. Para muitos, os feitos de Jesus

pareciam levar a um cumprimento apenas parcial das profecias, daí a confusão instaurada na

recepção de seu ministério, alguns aceitando-o e outros rejeitando-o.

Numa coisa, porém, os opositores de Jesus concordavam com Ele, percebendo

claramente o significado de Seu ministério talmatúrgico. As curas de Jesus contrariam a

teologia do templo de três importantes maneiras:


238

(a) Jesus rejeita a teologia que relaciona doença e pecado, implícita na teologia do

Templo609. A doença e a morte entendidas como consequências do pecado do próprio sofredor

faziam com que a dor física e o empobrecimento se transformassem em estigmas que

marcavam seus possuidores como grandes pecadores, afligidos de Deus610. Por conta desta

teologia, as ameaças deuteronomistas que prometiam enfermidades e pragas como retribuição

à infidelidade de Israel 611 , nos tempos neotestamentários passaram a ser entendidas como

dirigidas a indivíduos, aos Judeus infiéis, e não mais a Israel como um todo. Neste contexto,

os males sociais eram agravados, multiplicados e intensificados, transformando-se num ciclo

vicioso, que lançava os doentes num espiral descendente de empobrecimento e aviltamento. A

alta carga tributária a que estavam submetidos 612 deixava os camponeses mal nutridos e

predispostos a doenças, que por uma coincidência infeliz, eram praticamente as mesmas da

609
“O pecado não somente põe em perigo, mas também polui, o ritual deve, portanto, realizar não somente a
expiação, mas também a purificação. Isto demonstra por outro lado, que a impureza não apenas polui, mas
também coloca em perigo; o rito de purificação, portanto, não só realiza a purificação, mas também a expiação.”
(Jay Sklar. Sin and impurity: atoned or purified? Yes. In Baruch J. Schwartz et al. Perspective on purity and
purification in the Bible, p. 18.
610
Na tradição joânica está clara a imbricação destas ideias no imaginário popular, quando os próprios discípulos
perguntam de Jesus ao ver a um cego de nascença: “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse
cego? Ao que Ele lhes respondeu: nem ele pecou nem seus pais, mas foi assim para que se manifestassem nele as
obras de Deus”. (Jo. 9: 2 e 3).
611
“O Senhor te castigará com doenças; tuberculose, febre e inflamação”; “o Senhor te ferirá com úlceras do
Egito, com tumores, com sarna e com prurido”; “o Senhor te ferirá com loucura, com cegueira e com
perturbação de espírito” (respectivamente, Dt. 28: 21, 22, 27 e 28).
612
Nos tempos de Jesus havia uma incidência e uma reincidência tributária sufocante sobre os moradores da
Palestina, sendo diversas as demandas fiscais que os Judeus tinham que satisfazer. (1) Os primeiros e mais
gulosos gafanhotos eram os Romanos: (1.a) tributos sobre a posse da terra, arrecadados tendo por base dados
fornecidos pelos contínuos sensos, promovidos pelas autoridades romanas; (1.b.) tributos sobre a produção
agrícola: 25 % de tudo o que era produzido no campo era recolhido aos cofres imperiais (Daniel Godoy. “Roma,
Palestina e Galileia no século I”, Ribla, Petrópolis, 2004, p. 54); (1.c) tributos individuais, cobrados às famílias
anualmente: 1 denário por cabeça, dos meninos a partir dos 14 anos, das meninas a partir dos 12 (Stegemann &
Stegemann, Op. Cit. p. 142); (1.d) tributos indiretos, cobrados pelo uso de estradas e rotas comerciais (Daniel
Godoy, “Roma, Palestina e Galileia no século I”, p. 54). Além disto, havia ainda a possibilidade de saques e
pilhagens feitos pelos legionários por causa do atraso na prestação fiscal (John S. Hanson e Richard Horsley.
Bandits, prophets & messiahs – Harrisburg, PA: Trinity Press International, 1999, p. 69). (2) Impostos
herodianos: 12 a 50 % do que era produzido ia para o erário herodiano (Stegemann & Stegemann, Op. Cit., p.
142). (3) Impostos do templo: 900 talentos anuais eram recolhidos de uma população entre 1 e 3 milhões de
habitantes (Idem, p. 145), oriundos, do primeiro dízimo (10 % de toda a produção familiar), e do segundo
dízimo, ou seja, dinheiro reservado para ser gasto em Jerusalém, por ocasião das santas convocações (Paula
Fredriksen .“Did Jesus oppose the purity laws?” – BR, June, 1995, p. 23) . Conclusão. Os camponeses dos
tempos de Jesus viviam no limite da insolvência, sofrendo para se manter para aquém do tênue limiar que separa
a pobreza da miséria. Um ano mais seco, uma praga na lavoura, bandidos sociais pelas imediações ou legionários
romanos, poderia facilmente empurrar o pequeno proprietário de terra para o outro lado desta linha e fazer dele
um novo alistado no exército de diaristas, que trabalhavam pelo pão do dia, ou então, o que era pior, um
mendigo, sob um dos pósticos de Jerusalém, dependendo da misericórdia alheia.
239

lista deuteronomista. E para o problema da doença produzida pelo pecado, só havia um

remédio: o dispendioso serviço sacrifical do Templo 613 . Em suma, para quem não tinha

recursos não havia esperança, nem neste mundo nem no outro. A situação permanente de

impureza os mantinha fora do alcance das funções expiatórias do templo, dado que não

podiam para lá concorrer por incapacidade cúltica (impureza)614.

(b) A taumaturgia de Jesus promovia não era só a cura física, mas também a espiritual

(perdão dos pecados) (Mt. 9: 6, Mc. 2: 10, Lc. 5: 24), e assim destituía o sistema cúltico do

templo de sua principal função. Jesus trazendo a si a prerrogativa de curar e perdoar pecados,

gera furiosos protestos de Escribas e Fariseus (teológica e politicamente ligados ao Templo e

a seu serviço), inclusive a acusação de blasfêmia: porque só Deus podia perdoar pecados

(traduza-se aqui Deus por serviço sacrifical do Templo) (Mc. 2: 7, Lc. 5: 21). O mesmo

ocorre na história da mulher pecadora que unge os pés de Jesus, que aparece em Lucas

Especial (Lc. 7: 36-50). Ele diz depois que a vida desviante da pecadora começou a ser

cochichada entre os presentes: “perdoados te são os pecados” (Lc. 7: 48), para consternação e

espanto dos Fariseus presentes615.

613
John D. Crossan. O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo (Rio de Janeiro: Imago, 1994), p.
354.
614
Paula Fredriksen nega qualquer possibilidade de equivalência entre pobreza e a condição espiritual: “na
tradição judaica pureza não corresponde a uma classe social. O mais pobre camponês que tenha completado o
ritual de purificação é puro, enquanto o mais aristocrático sacerdote, tendo recém enterrado um de seus
progenitores, não é. O fariseu mais exigente, o mais elevando sumo-sacerdote, não é nem mais nem menos
tameh [impuro] depois do intercurso marital com sua esposa do que o mais imundo pescador da Galileia” (Op.
Cit., p. 23). É no mínimo ingênuo pensar desta forma. Obviamente, a pobreza extrema deve ser estigmatizada
por aqueles que querem justificar seus privilégios. Isto é um dado social universal. Ademais, não é tão simples
assim: ‘realiza-se o ritual de purificação, logo já se é puro’. J. Jeremias já faz alguns defendia a tese de que certas
profissões eram estigmatizadas na Palestina, justamente porque os trabalhadores diaristas não tinham como fazer
o resguardo de sua purificação: tratadores de animais, pescadores, comerciantes, garis, etc. (Joachim Jeremias.
Jerusalén en tiempos de Jesús – Madrid: Ediciones Cristianidad, 1980, p. 315-323). O trabalhador pobre da
Palestina nos dias de Jesus, no dia que não trabalhasse, fosse por que fosse o motivo, não tinha o que comer.
615
Mais uma vez Fredriksen, rejeita o peso textual contra si e tenta dissociar impureza ritual de pecado e,
consequentemente, de pureza à santidade: “o remédio para a impureza não é o perdão, mas a purificação” (Op.
Cit., p. 22). Só podemos interpretar esta negativa reiterada diante de tantas evidências como preconceito
intelectual, devido a que, neste tempo, os scholars do Jesus Seminar pareciam dominar o cenário dos estudos
neotestamentários com sua teoria sociopolítica de um Jesus revolucionário.
240

(c) Jesus também desautoriza outra importante função do templo: declarar o puro e o

impuro. Segundo a teologia do templo, a pureza/santidade era algo a ser preservado,

protegido, contra muitas ameaças. É compreensível que uma ideia tão desarrazoada tenha

surgido na religião de Israel no período veterotestamentário. Não podemos esquecer que o

templo-tabernáculo foi criado para habitação divina (Ex. 25: 8) e que a principal qualidade do

Deus de Israel naquela época era a santidade (Ex. 15:11, 15: 13), atestada por meio de muitas

epifanias terrificantes (raios, trovões, terremotos, mortandades, etc.). Ora, habitar Deus no

meio do povo implicava uma natural preocupação com a pureza ritual, que neste caso tem o

sentido último de reverência. Mas, a pureza ritual não significava, ela mesma, santidade.

Apenas existia em seu respeito. Contudo, com o passar do tempo, na história da religião de

Israel, houve uma conflação entre as duas coisas e a pureza ritual passou a se confundir com a

pureza moral e ética (santidade) e com o cumprimento dos preceitos morais616.

No campo da escatologia, a taumaturgia de Jesus era um sinal de que as obras de

Satanás começavam a ser desfeitas, pois Jesus é retratado nos evangelhos como um

restaurador da ordem harmoniosa primordial, tal como na criação do mundo, recém saída das

mãos de Deus. Há um dito de Jesus no qual, expressamente, dá conta desta dimensão

restauradora. Trata-se da cura da mulher corcunda. Ao se defender das acusações dos Fariseus

por realizar a cura no Sábado, Jesus diz: “por que motivo não se devia tirar deste cativeiro, em

dia de Sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?” (Lc.

13:16).

616
Os profetas já tinham em seu tempo se defrontado com o mesmo problema: “misericórdia quero, não
sacrifício” (Os. 6:6), “não posso suportar iniquidade associada a ajuntamento solene” (Is. 1: 13), “obedecer é
melhor do que o sacrificar” (I Sm. 15: 22).
241

O título messiânico “Filho de Davi” 617 , frequente nos livros de Mateus e Marcos,

também aponta nesta direção. Conquanto aparente, este título nada tem a ver com o messias

guerreiro e dominador das nações, conforme o ensino de outras teologias messiânicas; está

antes ligado ao Messias escatológico restaurador. De fato, sempre que Jesus é assim chamado

nos evangelhos está curando alguém, ou então sendo solicitado como taumaturgo: a cura de

dois cegos (Mt. 9: 27), a cura do endemoninhado cego e mudo (12: 22 e 23), a cura da mulher

cananita (siro-fenícia) (Mt. 15:22), a cura do cego de Jericó (Mt. 20: 30; Mc. 10: 47; Lc. 18:

38). A teologia do filho de Davi restaurador está bem assentada no AT, especialmente nos

livros de Isaías (61: 1) e Jeremias (30: 17)618.

Ainda coerente com esta noção de messias restaurador, os evangelhos apresentam os


619
milagres de Jesus, também pelo modo como são operados , como cumprimento

escatológico. Ele cura um cego com o lodo feito de terra e de sua própria saliva (Jo. 9: 6),

617
Há exegetas que fazem verdadeiros malabarismos textuais para justificar a conexão entre as curas de Jesus e o
título de Filho de Davi, sem entender sua verdadeira origem. K. Paffenroth – “Jesus, anointed and healing Son
of David in the gospel of Matthew”, Biblica, 80 (1999), pp. 547-554 – por exemplo, relaciona-os baseando-se
em II Samuel 5: 8, onde se lê: “Davi, naquele dia, mandou dizer: todo o que está disposto a ferir os Jebuseus
suba pelo canal subterrâneo e fira os cegos e os coxos a quem a alma de Davi aborrece (por isso se diz nem cego
e nem coxo entrar. na casa)”. O autor se perde em sua argumentação, dizendo que “Jesus é Filho de Davi, por
que ao contrário de Davi [...]”.
618
“Então se abrirão os olhos dos cegos; e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como
cervos; e a língua dos mudos cantará; [...]”. (Is. 35: 5). “Porque te restaurarei a saúde e curarei as tuas chagas, diz
o Senhor”. (Jr. 30: 17) “E eis que trarei saúde e cura e os sararei; e lhes revelarei abundância de paz e segurança”
(Jr. 33: 6).
619
O modus operandi dos milagres de Jesus tem se tornado nos últimos anos um problema para os estudiosos
mais conservadores. Há algumas obras na literatura extracanônica que sugerem um parentesco da taumaturgia de
Jesus com as ações terapêuticas de curandeiros gentios. A biografia de Apolônio de Tiana, de autoria de
Philostratus, apresenta este filósofo taumaturgo e andarilho, supostamente contemporâneo de Jesus, fazendo uma
obra muito parecida à dele. Suetônio, em sua Vida dos césares, relata que quando Vespasiano chegou a
Alexandria, um cego pediu-lhe que untasse seus olhos com saliva para que fosse curado. Os adeptos de que uma
taumaturgia pagã tenha sido adotada por Jesus aplaudem e apresentam estas passagens como indícios favoráveis
às suas ideias (J. D. Crossan. O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo, p. 262). Contudo,
devemos indagar: quando foram escritas estas estórias tão parecidas às de Jesus? Ambas, no segundo século,
quando os evangelhos já estavam concluídos e eram provavelmente conhecidos destes autores. Basta compará-
las com os relatos de um autor contemporâneo a Jesus e testemunha ocular dos fatos descritos, que também trata
de assunto similar, como é o caso de F. Josefo, para quem seu benfeitor e ilustre citado por Suetônio, não realiza
nenhum milagre, mas testemunha de um milagre realizado em sua presença, por certo Eleazar, notório exorcista
judeu. Na descrição de Josefo o taumaturgo faz acompanhar todo o processo de expulsão do demônio por
encantamentos supostamente criados por Salomão (Ant. 8: 46). Nossa atenção é atraída para o fato de não haver
similaridade com os exorcismos realizados por Jesus e o descrito por Josefo, embora Josefo tivesse todas as
razoes para fazê-lo (para ele em Vespasiano cumpriam-se as profecias messiânicas – Guerra 3: 361; 6: 312-313).
A conclusão mais sensata, portanto, será de que os dois autores do segundo século, embora biografem
personagens do século I, foram influenciados pela história de Jesus.
242

numa alusão à criação do homem em Gênesis (2: 7-8), onde Adão é feito do pó da terra. A

mesma linha segue o evangelho de Marcos, onde Ele cura frequentemente com saliva (o

surdo-gago decapolitano: 7: 31-37 e o cego de Betsaida: 8: 22-26). Sua palavra tem poder, tal

como teve a de Deus, ao chamar o mundo e o que nele há à existência. Ele apaziguou a

tempestade (Mt. 8: 24; Mc. 4: 35-41; Lc. 8: 22-25); curou o servo do centurião com uma

palavra (Mt. 8: 5-13; Lc. 7: 1-10); chamou os mortos de volta à vida (a ressurreição da filha

de Jairo em Mt. 9:23-25, Mc. 5: 35-43, Lc. 8: 49-56; a ressurreição de Lázaro em Jo. 11: 1-

46).

Em suma, temos até agora um quadro geral de ações simbólicas (o que não quer dizer

destituídas de conteúdo factual) que antecipam como escatologia inaugurada o que ainda está

no porvir, pois...

A natureza do reino é antecipada e manifesta em suas curas, as quais eram sinais (na
terminologia do evangelho de João) da completude e paz escatológicas: os
exorcismos, que assinalavam a superação do mal; a interpretação revisionista da lei
[cerimonial] como manifestação do paternal amor de Deus acima das tradições; e a
declaração do perdão dos pecadores é uma indicação da inclusão dos Gentios nas
promessas de salvação do concerto [são como uma] antecipação do futuro
companheirismo escatológico que também incluiria as nações. 620

5.d. Jesus e os Gentios

Durante toda a Sua vida e ministério Jesus viveu como judeu entre Judeus. Nos

evangelhos ele é sempre retratado em ambiente judaico: adorando e ensinado no Templo;

congregando-se nas sinagogas aos sábados; recitando os Salmos, citando os Profetas e

disputando com Fariseus, Escribas e Saduceus acerca de sua interpretação; cumprindo os

deveres religiosos de um Judeu: pagando impostos ao Templo (e elogiando aqueles que

também o faziam), observando obrigações litúrgicas e recomendando-as a outros, em viagens

e missões, sempre em territórios povoados por Judeus (com raras exceções). Em suma, poucas

620
Veli-Matti Kärkkäinen. Christ and reconciliation, p. 98.
243

vezes, é apresentado conversando com Gentios ou visitando cidades helenísticas ou regiões

francamente pagãs621.

E no ápice desta perplexidade está a palavra expressa de Jesus de que: “não fora

enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. (Mt. 10:6 e 15: 24). Geza Vermes

qualifica esta incômoda passagem como manifestação de um “chauvinismo Galileu”,

característico do Galileu Jesus622. Já sabemos que não é bom princípio hermenêutico basear

doutrinas ou conceitos religiosos mais genéricos em textos solitários. O problema é que a

mesma ideia aparece de novo em Paulo: “Digo, pois que Cristo foi constituído ministro da

circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais”

(Rm. 15: 8). J. Jeremias em uma obra já antiga, mas ainda atual, destaca que Jesus realmente

decidiu não colocar os Gentios em Sua agenda missiológica, limitando Suas atividades a

Israel e até proibindo os discípulos de laborarem com os Gentios (Mt. 10: 5-6)623.

Jesus rejeita o sectarismo, mas isto não o impede de anunciar uma mensagem

restauracionista624. Ou seja, a noção de que no final dos tempos Israel seria restaurado, e sua

glória seria maior do que aquela que possuíra em quaisquer de seus períodos históricos. Para

621
Michel Bird acrescenta alguns outros motivos para causar perplexidade a relação de Jesus com o tema: Jesus
especificamente limitou Seu ministério a Israel (Mt. 10: 5-6, 15: 24), jamais chamou discípulos dos territórios
Gentios e até dissuadiu ao endemoninhado que, depois de curado, dispôs-se a segui-lo (Mc. 5: 19-20), os
primeiros líderes da Igreja eram todos Judeus, “o movimento de Jesus não se originou na diáspora, mas no
coração da Palestina”, os primeiros Cristãos tiveram visões desencontradas sobre a inclusão de Gentios em suas
igrejas. (Jesus and the origins of Gentiles mission, p. 1).
622
Ele baseia-se numa passagem do evangelho de Mateus em que se lê: “não deis aos cães o que é santo nem
atireis vossas pérolas aos porcos.” (7: 6), à qual relaciona o relato do encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia
(Marcos 7: 24-30), para concluir que a mulher siro-fenícia é chamada de cão por Jesus (v. 27) por motivo étnico,
e por isso Jesus é um etnófobo dos mais estritos. Vermes tem poucos elementos para sua ilação. Do ponto de
vista exegético, os versículos em questão nada têm a ver um com o outro. Até porque, nem se sabe qual é o
contexto do dito que aparece em Mateus 7: 6, citado pelo historiador húngaro. Ademais, Vermes com certeza
teria dificuldades para contextualizar este suposto chauvinismo de Jesus em sua soteriologia inclusivista
apresentada até aqui. Há entre estas coisas uma contradição tão flagrante que ele terá que admitir que o grande
número de ditos e feitos inclusivistas atribuídos a Jesus devem ser invenção dos redatores, ao passo que este e
alguns outros poucos ditos “chauvinistas” seriam os únicos realmente tributáveis a Ele. Isto significa propor que,
para a composição do Jesus histórico, devemos atirar fora o NT e estudar apenas a literatura rabínica, que
começa a ser escrita só a partir do segundo século de nossa era; não por acaso, a especialidade do scholar citado
(Gèza Vermes. Jesus e mundo do Judaísmo – São Paulo: Loyola, 1996, p. 19).
623
Jesus’ promise to the nations (London: SCM Press, 1958), pp. 11-39.
624
Michel Bird. Jesus and origins of the Gentile mission (London: T&T Clark, 1988), p. 45.
244

Ele a restauração de Israel começava com Seu ministério. Como vimos, a própria taumaturgia

de Jesus era um sinal desta restauração. Outras ações simbólicas o evidenciavam: a criação do

o embrião da comunidade escatológica com a designação de doze discípulos, chamando-os de

“pequeno rebanho” (Lc. 12:32) 625 e de “os escolhidos” 626 (Mc. 13: 20; Mt. 24: 22),

constituindo-os como comunidade a partir de um novo pacto firmado às vésperas da Paixão

(Mt. 26: 26-30, Mc. 14: 22-26, Lc. 22: 14-20 e I Co. 11: 23-25)627.

Quando criou Sua comunidade Jesus não tinha em mente um remanescente628, o resto

santo da concepção salvífica exclusiva e elitista dos movimentos religiosos judaicos de Seu

tempo. A concepção de remanescente das seitas judaicas estava voltada para o passado629, e

tinha como objetivo a constituição de uma solidariedade identitária entre a comunidade e seus

adeptos e o Israel do concerto da história sagrada. O remanescente de Jesus visava ao futuro, à

progressão irresistível do reino de Deus rumo ao preenchimento de toda a terra. Para Jesus, o

remanescente, rigorosamente falando, eram apenas aqueles que sobreviveriam à grande

tribulação final (Mc. 13: 24-27, Mt 24: 29-31, Lc. 21: 25-28).

Jesus não pensa neste Novo Israel como um resto ou um minguado grupo de santos que

restou de uma maioria apóstata, que se recolhe à sua fidelidade e espera livramento divino630.

O Novo Israel de Jesus produz uma reversão na história da redenção: o reino de Deus sai da
625
Rebanho é uma metáfora importante do AT para representar o povo de Deus. Ela aparece em Isaías 40: 11;
Jeremias 13: 17; 31: 10, e outros. Mas, a utilização da expressão pequeno rebanho nos leva a pensar que Jesus
não estaria enfatizando o amor e o cuidado do Deus de Israel, antes a condição escatológica do povo de Deus
como remanescente, conforme a profecia de Amós 3: 12, onde se fala de um pastor tirando da boca do leão os
restos de um cordeiro. Ou seja, uma teologia do remanescente, construída durante e após o exílio.
626
A referência aos escolhidos aparece especialmente em Isaías 45:4 "por amor de meu servo Jacó e Israel, meu
escolhido".
627
As bases desta nova aliança já estavam preditas nos profetas, como é o caso de Jeremias 31: 31-34. São duas:
(a) a espiritualização da lei, ou seja, a lei não mais em tábuas de pedra, mas na mente e no coração; (b) o perdão
e a expiação completa dos pecados, dos quais Deus não toma mais conhecimento.
628
“Os doze implicam restauração e não teologia do remanescente” (James Dunn, Op. Cit., p. 510).
629
Joel B. Green, Scot McKight, Howard Marshall. Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 362.
630
Existe um trecho do evangelho de Mateus que parece contradizer este conceito de restauracionismo inclusivo.
Trata-se de Mt. 19: 28-29, que menciona os dozes apóstolos sentando-se em doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel. O que quer que isto signifique, ou seja, qual a natureza deste julgamento escatológico (mais
provavelmente uma remissão ao Juízo vindicativo), esta ocorrência não tem como referência a escatologia
inaugurada de Jesus, mas como diz o próprio texto, a escatologia consumada, o tempo da “regeneração” ou
restauração final.
245

defensiva e vai para a ofensiva. Em vez de decrescer ele cresce. É como a semente (Mc. 4: 26-

29); como um grão de mostarda, que originalmente é a menor das sementes, mas torna-se a

maior das hortaliças (Mc. 4: 31, Mt. 13: 31, Lc. 13: 19); é como o fermento que faz a massa

crescer misteriosamente (Mt. 13: 33 e Lc. 13: 21). não substitui o antigo, mas o amplia e o

envolve.

Esta nova comunidade não vem à existência para se constituir como guarda ou depósito

dos oráculos divinos e para se resguardar contra a impiedade generalizada. Jesus abole este

conceito de santidade e cria uma comunidade para ser o arauto do convite de Deus a uma festa

em que os convidados são o grande Israel escatológico que abrange tanto Judeus quanto

Gentios 631 . Ou seja, os que chamados não o são para serem o povo de Deus, mas para

proclamarem as boas novas de uma salvação universal 632 para todos os que a ouvirem e

atenderem, sejam quem forem: os ricos (o chamado do jovem rico – Mt. 19: 16-22, Mc. 10:

17-22, Lc. 18: 18-23), os pobres, os cegos, os aleijados e os coxos (Lc. 14: 15-24)633.

As parábolas do sal da terra, da candeia, do grão de mostarda e da massa levedada

ensinam quatro grandes lições de como Sua comunidade deveria se relacionar com o mundo,

não sendo perceptível em nenhuma delas algum tipo de isolamento ou sectarismo. Sua

comunidade deveria ser sal para purificar, luz para guiar, árvore para abrigar e fermento para

fazer crescer o reino de Deus. Seu papel não é definido em antagonismo aos de fora, mas por

631
Diversos textos messiânicos dos profetas explicitamente faltam deste Grande Israel que inclui os Gentios. Em
Isaías: 11: 10, 42: 1 e 6, 49: 6 e 22, 60: 3, 5, 11, 16; em Zacarias 14: 16 em Malaquias 1: 11. Além disso, há
passagens no AT que refletem a expectativa de que os Gentios finalmente iriam reconhecem Yahweh como Deus
(Dn. 3: 28, 4: 1-37, 6: 26-28; Sl. 66: 1-20, 22: 27-28, 46: 10, 47: 8, 96: 7-10, 98: 2, 117: 1-2; Ez. 39: 7). Gerd
Theissen e Annette Merz opinam quanto ao universalismo jesuíno não se tratasse de um programa missiológico a
concretizar-se por etapas: primeiro os Judeus excluídos e depois os Gentios, mas do restauracionismo clássico,
segundo o qual, Israel exerceria uma atração sobre todos os povos, pela inauguração de uma peregrinação
universal a Jerusalém (O Jesus histórico, p. 167). Como adepto da metodologia das pesquisas do Jesus histórico,
Theissen e Merz acham que o programa missiológico explicitado no final dos Sinóticos não é material originário
de Jesus, mas acréscimo redacional.
632
O verbo chamar (kaleo no grego koiné) designa a missão do servo que transmite o convite para uma festa.
Jesus é o arauto da parábola, encarregado por Deus de criar uma comunidade inclusiva.
633
A referência veterotestamentária deste texto é Jeremias 31: 7-10. Especialmente o verso 8: “Eis que os trarei
da terra do norte e os congregarei das extremidades da terra, e, entre eles, também os cegos e os aleijados, as
mulheres grávidas e as de parto; em grande congregação voltarão para aqui”.
246

uma ação transformadora sobre eles. Mesmo as noções negativas, como por exemplo, o

conceito da boa e da má semente (Mt. 13: 24-30), muito comum na literatura

intertestamentária634, transforma-se e adapta-se à sua própria teologia do reino que repudia

qualquer tipo de Juízo pré-advento635.

Outras parábolas escato-eclesiológicas também ensinam que o novo Israel é formado

por uma comunidade israelita inclusiva: os bons Judeus, os maus (da perspectiva cúltica e

moral), e os Gentios636, não se tratando, portanto, de uma comunidade étnica, como a maioria

dos contemporâneos pensava (Sir. 48: 10). Jesus ter sido enviado apenas às ovelhas perdidas

da casa de Israel significa apenas parte de seu programa missiológico637, que de acordo com

sua escatologia realizada, já pode ser percebida em Seu próprio ministério, como antecipação

da unidade final e da grandeza do reino de Deus, envolvendo todos os que atenderem o

chamamento para o grande banquete.

5.d.1. A mesa aberta e o banquete escatológico

A mesa aberta ou o companheirismo de mesa como noção central na pregação de Jesus

foi pioneiramente defendida por Norman Perrin 638 . A ideia depois acabou adotada pela

maioria dos scholars do Novo Testamento 639 . Obviamente, variando quanto ao seu exato

634
1Enoque 80: 2; Jubileu 7; 29, 16: 26, 22: 13, 270, 31: 20; 4Esdras 4: 28-32; Apocalipse de Baruque 42: 4-5;
CD 2: 11-12.
635
“[...] Queres que vamos e arranquemos o joio? Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio, não arranqueis
também com ele o trigo. Deixai crescer juntos até a colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai
primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado, mas ao trigo, recolhei-o ao meu celeiro.” (Mt. 13: 29-30).
636
“O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede que lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie [...].”
(Mt. 13: 47-50).
637
T. W. Manson defendeu que ao Jesus direcionar Sua pregação primeiro para Israel com isto não quis significa
só para os Judeus, no que está correto. Quanto a dizer que Jesus alimentava a esperança que a transformação de
seu próprio povo iria produzir uma reação em cadeia e acabar transformando o mundo inteiro, é uma conclusão
pífia diante do que se lê nas páginas dos evangelhos. (Only to the house of Israel – Philadelphia, Fortress Press,
1964, pp. 23-24). Não se trata de uma “esperança”, mas de um programa missiológico, inteiramente condizente
com o resto de Sua mensagem sobre o reino de Deus.
638
Rediscovering the Teaching of Jesus (New York: Harpers and Row, 1967), pp. 46, 104-108.
639
James Breech. The silence of Jesus: the authentic voice of the historical man (Philadelphia: Fortress, 1985);
Richard Horsley. Jesus and the spiral of violence. Popular Jewish resistance in Roman Palestine (New York:
Harper & Row, 1987); Marcus Borg. Conflict, holiness and politics in the teaching of Jesus (Studies in Bible and
247

significado. Não gostaríamos de ingressar nesta discussão, mas de antemão marcar nossa

posição entre os mais conservadores, que veem nela um significado eminentemente

religioso640, deixando com isto, a um lado, os primeiros que enfatizam mais o aspecto político

e econômico641.

Como já defendeu Perrin, o fato de Jesus ter oferecido o companheirismo de mesa aos

descartes sociais da Palestina de sua época: as prostitutas, os pecadores, os coletores de

impostos, indivíduos impuros (aqueles que não observavam as normas haláquicas), não se

constitui como algo um elemento marginal de seu programa messiânico. Era tão importante e

tomava tanto tempo a ponto de ter sido chamado de “glutão e amigo dos pecadores” (Mt. 11:

16-19).

Perrin só não explicou satisfatoriamente por que era tão importante. O que ele diz é que

a base teológica deste ensino é o banquete messiânico (Mt. 8: 11; Lc. 13: 28-29)642 também

presente nas expectativas escatológicas e messiânicas do primeiro século, por sua vez,

inspiradas em Isaías 25: 6 - 9643 e Zacarias 8:7–8, 20–23644, onde os Gentios comparecem

como convidados de última hora, convertidos pelas maravilhas operadas por Deus nos últimos

Early Christianity 5, New York and Toronto: Edwin Miller, 1984); J. D. Crossan. The historical Jesus. The life
of a Mediterranean Jewish peasant (San Francisco: Harper, 1991).
640
Gunter Bornkamm. Jesus of Nazareth (New York: Harper & Row, 1960); Joachim Jeremias. The parables of
Jesus (London: SCM, 1963); New Testament Theology: the proclamation of Jesus (New York: Charles
Scribner’s, 1971); Géza Vermes. Jesus, the Jew: a historian reading of the Gospels (London: Willian Collins,
1973); Martin Hengel. The charismatic leader and his followers (New York: Crossroad, 1981).
641
A mesa aberta segundo a interpretação de J. D. Crossan não tem qualquer enfoque religioso, num chamado ao
arrependimento, por exemplo, mas na restauração do reino de Israel com base num “igualitarismo radical” que
Jesus pretendia estabelecer entre seus seguidores (O Jesus histórico - A vida de um camponês mediterrâneo, p.
66-74).
642
Norman Perrin. Rediscovering the Teaching of Jesus, pp. 102 – 118.
643
“Neste monte o Senhor dos Exércitos fará para todos os povos uma festa de coisas gordurosas, um festa de
vinho, de coisas gordurosas cheias de, uma festa com vinhos velhos, pratos gordurosos com tutanos e vinhos
velhos bem clarificados. Destruirá neste monte a coberta que envolve todos os povos e o véu que está posto
sobre todas as nações. Tragará a morte para sempre, e, assim, enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os
rostos, e tirará de toda a terra o opróbrio de seu povo, porque o Senhor falou. [...].”
644
“E assim diz o Senhor dos Exércitos: Eis que salvarei o meu povo, tirando-o da terra do Oriente e da terra do
Ocidente; e eu os trarei, e habitarão em Jerusalém; eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus, em verdade e
em justiça. [...].”
248

tempos. Jesus provavelmente fala destes Gentios em Mateus 8: 11–12645 e Lucas 13: 28-29646.

A dificuldade na interpretação destes textos é o fato de aí ser mencionada a expulsão dos

descendentes de Abraão segundo a carne, o que, se levarmos em conta o dito de Jesus de que

Ele “não fora enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt. 10: 6 e 15: 24),

parecerá uma contradição.

A perspectiva étnica, tão importante para os restauracionismos coetâneos, que

acreditavam no retorno literal das dez tribos setentrionais perdidas, para assim ser restaurada a

glória original de Israel (Jr. 30: 2, 31: 1; Ez. 37: 19-28)), para Jesus não desempenha qualquer

papel em sua escatologia. Para Jesus, Israel não seria restaurado senão num plano espiritual.

As tribos perdidas de Israel não seriam reunidas a Judá, Benjamim e Levi, vindas de um

remoto Oriente. Elas já viviam nas cercanias das que não se perderam. Eram as populações

mestiças da Galileia, os maus praticantes do Judaísmo na Judeia, os Gentios que andavam no

meio dos Judeus. “As ovelhas perdidas da casa de Israel” são os excluídos da santa

congregação, aqueles que por algum motivo ritual, moral ou ético não eram admitidos nas

santas convocações e não podiam comparecer no espaço sagrado do Templo de Jerusalém.

A menção, portanto, da perdição dos filhos de Abraão, não se dá por sua falta de

qualificação espiritual, pelo menos não da perspectiva humana. Eles são rejeitados porque não

atenderam ao chamado do rei ao banquete escatológico. A mesa aberta, portanto, é uma ação

simbólica que representa o âmago do próprio projeto messiânico de Jesus. É a representação

do Israel escatológico que abrange Judeus praticantes, Judeus não praticantes e Gentios647. B.

645
“Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no
reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de
dentes.”
646
“Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes no reino de Deus, Abraão, Isaque e Jacó e todos os
profetas; mas vós, lançados fora. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à
mesa no reino de Deus.”
647
Ressalte-se que a comensalidade aberta de Jesus não o é meramente do ponto de vista haláquico. Pois seus
convidados não são apenas o povo da terra que não respeita todas as leis rituais, dietéticas e sabáticas. Mas
todos, “maus e bons, e a sala do banquete ficou repleta de convidados”. (Mt. 22: 10). E Jesus mesmo o
249

Pitre fecha a questão ao lembrar que a passagem que serve de base para o dito de Jesus é

Isaías 25: 6 – 9648, onde o profeta descreve o banquete escatológico como “para todos os

povos” e, além disto, também o mencionam Isaías 43: 5 – 9649 e Zacarias 8: 7 – 8; 20 – 23.

Nesta matéria, o Apocalipse de João é corroborativo. Neste livro o encontro

escatológico é formado por dois grupos de pessoas: os Judeus e a grande multidão, formada

por todos os povos. E ainda pode se aderir como nota explicativa à pergunta: que tipo de

Judeus? O fato de o vidente de Patmos não se referir por ‘israelita’ aos meramente nascidos

dentro desta classificação étnica, pois as doze tribos de Israel listadas por João não há nem

Rubenitas nem Danitas. Os primeiros, herdeiros do patriarca que subiu ao leito de seu pai,

coabitando com concubina de seu pai Jacó; e os segundos, notórios idólatras. Trata-se,

portanto, de um Israel espiritual, que por isso está de conformidade com o ensino de Jesus.

Vale lembrar que na versão mateana da parábola das bodas a sala do banquete

escatológico é pré-advento, o Juízo ocorre depois quando o rei vem ver os convivas (Mt. 22:

11). É neste momento que um dos convidados achado sem veste nupcial é expulso da festa,

por soberba espiritual, porque rejeitara a túnica especialmente fornecida pelo rei para seus

convidados. A lição parece muito clara. Não há nenhum tipo de exclusão aqui. Todos são

potencialmente salvos, depende de cada um tanto quanto do rei que faz o convite. E ao que

parece, a única coisa capaz de tornar alguém inabilitado para a ceia escatológica é a soberba

espiritual, a pretensão de ser melhor do que os demais.

demonstrou admitindo em sua mesa pessoas com sérios problemas morais: Maria Madalena, Judas Iscariotes,
Simão, o Fariseu, Zaqueu, etc.
648
Brent PITRE. “Jesus, the Messianic Banquet, and the Kingdom of God” (Letter & Spirit, 5, 2009), p. 142.
649
“Não temais, pois, porque sou contigo; trarei a tua descendência desde o Oriente e os ajuntarei desde o
Ocidente. [...]. Trazei meus filhos de longe e minhas filhas, das extremidades da terra. Trazei o povo que ainda
que tendo olhos é cego e surdo, ainda que tendo ouvidos. Todas as nações congreguem-se e povos, reúnam-se
[...]”.
250

5.d.2. A purificação do templo

O relato da purificação do templo encontra-se em todas as fontes do NT, do que se pode

concluir sobre sua importância. O problema é que cada uma delas tem uma cronologia

diferente: Os Sinóticos situam o evento na última semana do Senhor antes de sua morte; João,

logo no início de Seu ministério. Além disto, cada um enfatiza um aspecto deste evento, tendo

como ponto de partida certo significado teológico que lhe é peculiar. Em primeiro lugar trata-

se de uma purificação ou de uma destruição simbólica do templo? Em segundo lugar,

obviamente dependendo da primeira conclusão, qual é seu tema primordial? Os Gentios? O

próprio templo? O corpo ressurreto de Jesus? Uma nova realidade que podemos chamar

escatológica? Em suma, cada um dos evangelhos traz uma interpretação diferente, e embora

todas sejam válidas, pensamos que seu denominador comum seja o sentido escatológico.

J. D. Crossan e Marcus Borg interpretam a purificação do templo como uma destruição

simbólica do templo a partir do texto de Marcos, que elegem como o mais antigo e confiável.

Segundo sua interpretação o que Marcos diz sobre a purificação do templo deve ser

interpretado à luz da maldição da figueira estéril, a qual aponta para a destruição do templo,

ocorrida 30 ou 40 anos depois. A intenção de Marcos era demonstrar que a aliança das

autoridades do templo com os romanos era condenada por Jesus, e que, portanto, Jesus era um

revolucionário, um socialista radical (não no sentido marxista, é claro), para quem os códigos

de pureza do sistema do templo eram moralmente e socialmente anátemas650.

Por mais que os scholars acima tenham uma reputação de erudição inquestionável e

sejam capazes de agregar uma quantidade imensa de informações históricas em seus textos,

não podemos deixar de reconhecer que sua conclusão é teologicamente pobre e não faz justiça

às fontes.

650
John Domic Crossan e Marcus Borg. The last week. A day-by-day account of Jesus’ final week in Jerusalem
(San Francisco: Harper San Francisco, 2006), capítulo II.
251

Nos Sinóticos a referência escriturística é e Isaías 56:7: “minha casa será chamada de

casa de oração para todos os povos”651. Mas, enquanto Marcos reproduz na íntegra o texto de

Isaías, Lucas e Mateus omitem a última parte do verso: “para todos os povos” (Mt. 21: 13, Lc.

19: 46). Estão certos os scholars do Jesus’ Seminar, em pensar que Marcos foi consultado

pelas outras redações. Esta hipótese se reforça de vez que a redação de João sobre o

acontecimento (Jo 2: 13-22): “não façais da casa de meu Pai casa de negócio”, parece

relacionada a outra tradição da purificação, que, ancorada em Zacarias 14: 20-21652, enfatiza o

anúncio do fim da necessidade de mediação litúrgica por meio do templo, versão muito mais

afinada com o propósito teológico geral da redação joanina de espiritualizar toda a liturgia do

templo concentrando-a no corpo de Jesus, o único templo que resta na nova dispensação653.

A redação de Marcos não defende que Jesus tenha pretendido uma destruição do

Templo. Isto não se coaduna com o quadro geral da pregação de Jesus, como vimos

demonstrando até agora. Jesus não defendeu uma destruição do templo, mas sua purificação

escatológica, e uma mudança de sua natureza. Primeiramente não é casual que os Sinóticos

tenham preferido Isaías 56: 7 a Jeremias 7: 11, embora não compartilhassem os mesmos

propósitos redacionais que Marcos. A designação “Casa de Oração” é fundamental para

todos, dado que no tempo de suas redações o templo já havia sido destruído. Para Marcos,

escrito antes de 70 d. C., a referência aponta para seu universalismo (a ser analisado mais

651
Apesar de Jeremias 7: 11: “será esta casa que se chama pelo meu nome um covil de salteadores aos vossos
olhos?”
652
“Naquele dia será gravado nas campainhas dos cavalos: Santo ao SENHOR; e as panelas da casa do
SENHOR serão como as bacias do altar; sim, todas as panelas em Jerusalém e Judá serão santas ao SENHOR
dos Exércitos; todos os que oferecem sacrifícios virão, lançarão mão delas e nelas cozerão a carne do sacrifício.
Naquele dia já não haverá mercador na Casa do SENHOR dos Exércitos.” (destaque nosso).
653
Isto é uma constante na redação joanina: Jesus é o pão que desceu do céu (Jo. 6: 35), Jesus é a água da qual se
bebe e não se torna a ter sede (Jo. 7: 37), Jesus é a luz da vida (Jo. 8: 12), segundo a cronologia de Jesus os
discípulos não comeram a páscoa na noite anterior à morte de Jesus, mas a páscoa coincidiu com o dia em que
foi pendurado no madeiro (Jo. 19: 14). Ou seja, todos os elementos litúrgicos do templo estão personificados em
Cristo. Ora, é bem coerente com o propósito geral do evangelho de João que a purificação do templo ocorresse
no início do ministério de Jesus. O templo tinha que ser abolido para que o verdadeiro templo pudesse ser
vislumbrado: a própria pessoa de Cristo.
252

adiante)654. Porque o reino de Deus tinha chegado não fazia sentido que o pátio dos gentios

(onde se realizava o comércio do templo e eram vendidas pombas e ovelhas, cambistas

trocavam as moedas correntes pelo dinheiro do templo, etc.) permanecesse assim profanado,

pois chegara o tempo de o mundo inteiro se irmanar na adoração do Deus que Jesus

proclamava. Em Marcos a condenação do serviço do templo é taxativo, pois ali aparece a

referência à proibição imposta por Jesus àqueles que ainda insistiam em conduzir utensílios

através do templo. Isto significava que Jesus não só purificou o templo, como também

destituiu todo o serviço cúltico655, implantando em seu lugar uma casa de oração para todos os

povos.

5.d.3. O julgamento ético-práxico

O conceito de religião, tanto no sentido institucional como doutrinário, é estranho às

Escrituras. Não podemos esquecer que foi a leitura grega do Antigo e Novo Testamento, a

partir de sua perspectiva sistemática e doutrinal, que criou no Cristianismo a mudança

paradigmática que nos impacta até hoje: o logocentrismo, ou seja, a exagerada preocupação

com o discurso e a falta de ênfase com a práxis religiosa. No Antigo Testamento, por

exemplo, não existe nenhuma palavra que de longe evoque a carga semântica que carrega o

étimo ocidental ‘fé’, geralmente ligada à verdade religiosa, ou ‘religião’, no sentido de

sistema de doutrinas, proposições.

A congênere mais próxima é yare ‘temor’, mas como noção abstrata geralmetne
significa susto ou temor. Quando usado como designação aproximada para fé
regularmente é seguida pelo objeto divino relacionado, a saber, ‘o temor de
Yahweh’, ou o temor de algum outro deus/outros deuses. O hebraico bíblico também
carece de uma palavra para religião. Ao invés, a devoção religiosa é concretizada
com uma expressão específica, tal como histahawa lipne ‘prostrar-se diante de uma
deidade’, hithalek/ hallak lipne ‘andar diante de uma deidade’, hallak `aharê ‘andar

654
Andrea Spatafora. From the “temple of God” to God of the temple (Roma: Gregorian University Press),
1997), p. 89.
655
Andrea Spatafora. From “the temple of God” to God as the temple, p. 89.
253

após, seguir uma deidade, abad ‘servir uma deidade’, pelah servir, adorar,
reverenciar, ministrar a uma deidade656.

Obviamente no período neotestamentário este estado de coisas se alterou bastante. A

condição de pluriculturalismo e a consequente heterogeneidade religiosa nos dias de Jesus e

dos apóstolos naturalmente reforça o aspecto doutrinal das religiosidades daquele tempo. As

discussões sobre filigranas teológicas exerciam grande fascínio sobre a imaginação dos

homens, contudo, a pregação de Jesus segue o rumo oposto, o da simplificação e mesmo

prosaificação da religiosidade: oração, confiança em Deus, perdão, compartilhamento, fé, etc.

As mensagens de Jesus são dominadas por temas práticos e nem por isso menos importantes.

Seu pensamento está voltado para o futuro, a concretização das esperanças escatológicas, e

não para a interpretação casuística deste ou daquele preceito.

Ademais, no contexto da escatologia teleológica não haverá alternativas

denominacionais; apenas dois grupos, o dos salvos e o dos perdidos. A parábola do joio e do

trigo, em que ambos crescem juntos até o dia do Juízo (Mt. 13: 24-30), a parábola dos peixes

bons e maus separados somente ao tempo do ajuste de contas final (Mt. 13: 47-50), a parábola

dos lavradores maus que têm sua retribuição apenas com a chegada do dono da vinha (Mc. 12:

1-12, Mt. 21: 33-4, Lc. 20: 9-19), a parábola das dez virgens (Mt. 25: 1-13) e a parábola dos

talentos (Mt. 25: 14-30), em ambas o leitor é capaz de distinguir entre os bons e os maus. A

redação de Lucas, porém, enfatiza a absoluta impossibilidade de se saber qualquer coisa sobre

a identidade de uns e de outros: “estarão dois numa cama, um será tomado e o outro deixado”,

“estarão dois no campo, um será tomado e o outro deixado” (Lc. 17: 34-36). Por tudo isto,

pode-se concluir que o Juízo divino é inescrutável e que não há nenhuma forma de antecipá-

lo, senão pelo critério acima e segundo o escrutínio divino, que é o único capaz de por sob

exame o coração humano.

656
Daniel Block. “The other religions in Old Testament Theology”. In David W Baker (edt.). Biblical faith and
other religions. An evangelical assessment (Grand Rapids: Kregel Publications, 2004), p. 44.
254

5.d. 4. Abba 657

De fato, como vocativo de Deus o termo Pai é fundamental nos ensinos de Jesus.

Certamente isto está atrelado, primeiramente à sua consciência messiânica e em segundo lugar

às suas ideias restauracionistas 658 . Não há, no entanto, (como poderia nos interessar na

investigação que transcorre) em seus ensinos indícios suficientemente claros sobre a

paternidade divina ser entendida como universal. As passagens bíblicas que existem parecem

indicar o contrário: esta relação ser restrita a Israel e expressamente excludente quanto aos

Gentios659 (Mt. 15: 21-28 e Mc. 7: 24-30)660. Por outro lado, conforme já apresentamos o

conceito de Israel para Jesus é suficientemente abrangente a ponto de envolver àquelas

657
O aparato crítico relacionado a esta questão abrange um longo período de discussões que remontam ao
Dicionário teológico do Novo Testamento (editado em língua inglesa como Teological Dictionary of the New
Testament – Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1985) de Gerhard Kittel e seus nove volumes publicados
entre 1933-73 na Alemanha, passando pelas obras de J. Jeremias (The central message of the New Testament –
New York, Charles Scribners’ Sons, 1965; The prayers of Jesus – Naperville, IL: Alec R. Allenson, 1967; New
Testament Theology – New York: Charles Scribners’ Sons, 1971), de Geza Vermes (Jesus e o mundo do
Judaísmo – São Paulo: Loyola, 1996), do grupo de teólogos do Jesus Seminar, neste caso Mary Rose D’ângelo.
“Abba and Father: imperial theology in contexts of Jesus and the Gospels” in Amy-Jill Levine, Dale C. Allison
Jr., John Dominic Crossan. The historical Jesus in context (Princeton: Princeton University Press, 2006), além de
muitos outros que tornariam nossa lista impraticável numa obra destas proporções. Entretanto, a este respeito, a
divergência teórica pode ser dividida em três grupos: (a) os dois primeiros que acentuam a descontinuidade entre
Jesus e seu tempo, concluindo por um uso jesuíno exclusivo do termo; (b) o segundo, que acentua a
continuidade, aproximando Jesus do Judaísmo de Seu tempo; (c) os terceiros, que enfatizam a continuidade,
contextualizando Jesus na cultura Greco-romana da época. Vejo esta discussão como supérflua, visto que provar
que havia outras fontes em que Abba era uma expressão usual só indica que Jesus não era um extraterrestre ou
uma aparição fantasmagórica à moda docética. O que importa é o uso teológico do termo, o que no caso de Jesus
é plenamente demonstrável, ou seja, Abba tem um papel fundamental nos ensinos de Jesus e nas demais
remissões (literatura Greco-romana e rabínica) esta conclusão está atrelada a elementos circunstanciais.
658
Em Mateus aparece como autoconsciência de Jesus 19 vezes e referente aos discípulos 20 vezes; em Marcos é
mais raro: uma vez referida à autoconsciência e três vezes, aos discípulos; em Lucas são sete vezes relacionadas
aos discípulos e sete, à autoconsciência de Jesus; no texto joânico é o vocativo predileto de Jesus, nada menos do
que 81 vezes, com relação aos discípulos, só três vezes.
659
Scot McKight. A new vision for Israel. The teachings of Jesus in a national context (Grand Rapids, MI: Wm.
B. Eerdmans, 1999), p. 64.
660
Embora a redação mateana queira marcar de forma acentuada separação Israel – Gentios, fazendo com que
Jesus pronuncie uma palavra altamente ofensiva aos ouvidos dos ocidentais contemporâneos a mulher
estrangeira (cananita) que lhe pedia um milagre: “porque não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos” (15: 26); não sem antes afirmar peremptoriamente: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da
casa de Israel” (15: 24). A versão marcana suaviza a clivagem. Primeiramente construindo certa cumplicidade
entre Jesus e a siro-fenícia, já que em Mateus Jesus só está passando pelas terras gentílicas (Mt. 15: 21-23), ao
passo que em Marcos entra em uma casa (Mc. 7: 24). Em seguida a própria resposta de Jesus em Marcos tem um
teor mais suave ligado ao tempo e não à essência: “deixa primeiro que se fartem os filhos, porque não é bom
tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos” (Mc. 7: 27). Não há uma diferença muito expressiva entre as
duas redações, mas a de Mateus é mais etnofóbica, de certo mais voltada para um público judaico-cristão e a de
Marcos para um estrato siro-palestinense.
255

populações infames más praticantes do Judaísmo, da perspectiva moral e cúltica, o que nos

conduz de volta ao restauracionismo mais abrangente de seus ensinos.

O capítulo 15 do evangelho de Lucas, por exemplo, é mais do que três parábolas sobre

coisas perdidas, retrata, na verdade, a alegria de Deus pelo que estava perdido e foi

encontrado e por outro aspecto também retrata a missão de Jesus. As parábolas ensinam entre

outras coisas: (a) o amor de Deus, (b) o valor do que estava perdido e (c) e o fato de que,

infelizmente, nem todos se alegravam com os perdidos recuperados. A última lição ocorre

especificamente na parábola do filho pródigo, que na verdade devia se chamar a parábola dos

dois filhos, o mais velho e o mais moço661. O mais velho representa os Judeus praticantes; o

mais moço, os publicanos, as meretrizes, e todos aqueles maus cumpridores da lei,

desprezados pelos Fariseus. A parábola retrata o desgosto dos adeptos do sectarismo pelo fato

de estes maus Judeus serem chamados a herdar a salvação, como eles, na mesma condição de

filhos, da mesma maneira como na parábola o filho mais velho e justo enche-se de ira contra o

Pai por este ter recebido com festa aquele que havia dissipado seus bens em orgias. Segundo

seu conceito de justiça, o filho mais novo deveria ser tratado como empregado, como inferior,

por paga de seus maus atos (Lc. 15: 29-30). Mas, o Pai não aceitou os argumentos de seu filho

mais velho e quis tratar os dois com a mesma medida de amor662.

Por tudo isto, Abba pode sim ser interpretada como paternidade universal de Deus, à

medida que Israel, ou a salvação das “ovelhas perdidas da casa de Israel” são a primeira etapa

661
Na redação mateana, a mesma parábola ocorre numa versão mais resumida. Também são dois filhos, um se
declara obediente (os Judeus praticantes), mas age de modo contrário ao mandato do Pai; ao passo que o outro
que se diz rebelde (os maus Judeus), vai e cumpre o mandato do Pai (Mt. 21: 29-31). A ordem era que todos
fossem responsivos ao amor do Pai. Porém, enquanto os Fariseus e outros sectários faziam de sua religiosidade
seu próprio Deus e os demais viviam como se não houvesse Deus, quando Jesus estende Seu apelo a Israel,
surpreendentemente, são os últimos que atendem (Mt. 22: 1-14).
662
Outra parábola que ensina esta mesma lição é a dos trabalhadores da vinha (Mt. 20: 1-16), em que os
trabalhadores que laboraram o dia inteiro ganham o mesmo salário dos que chegaram por último e trabalharam
apenas uma hora, e se revoltam por isso. Trata-se de mais um exemplo de como Jesus condena e denuncia o
comportamento sectário dos Judeus. O salário é a salvação e ela é igual para todos, não diz respeito a tempo de
serviço, eleição, mas à graça divina.
256

do projeto divino de abraçar o mundo inteiro, a se cumprir com a finalização da obra da

pregação iniciada por Jesus.

5.e. Os Gentios e o programa missiológico de Jesus na redação das Fontes

5.e.1. Marcos663

Por tudo o que foi afirmado nas páginas precedentes, cremos ser o evangelho de Marcos

o mais fiel ao expor o programa de Jesus, aquele que melhor captou seu projeto missiológico.

A estrutura literária do evangelho de Marcos, pelo menos em suas linhas mestras, é simples,

de fácil percepção. Há duas concentrações ao redor das quais orbitam todo o texto, uma

temporal e outra geográfica. (a) A temporal faz com que um terço do livro se concentre na

última semana da vida de Jesus, a partir da entrada triunfal em Jerusalém, evidenciando a

importância do Calvário no plano da obra, faltando inclusive os versículos finais do capítulo

16 (a partir do verso 9) sobre a ressurreição, ausente nos mais antigos manuscritos, os unciais

663
A maioria dos estudiosos concorda com a assim chamada hipótese das duas fontes, segundo a qual a redação
dos evangelhos de Mateus e Lucas foi feita tendo por base o texto marcano e Q. A prioridade marcana e a
existência de Q são deduzidos indiretamente. Conforme a argumentação de J. D. Crossan, de serem os versos 8,
9 e 10 de Mateus, capítulo 3 idênticos aos versos 8 e 9 de Lucas 3, e se desconhecerem mutuamente, não sendo
ainda a perícope encontrável em Marcos, depreende-se que Lucas e Mateus devem haver dependido de outra
fonte, ou seja, Q (J. D. Crossan. The birth of Christianity – San Francisco/New York: Harper, 1998, p. 105).
Estes são os principais argumentos para a prioridade marcana: (a) Argumento a partir da omissão. É mais fácil
admitir que certos materiais (relatos sobre a infância e o Sermão da Montanha) tenham sido acrescentados por
Lucas e Mateus ao texto de Marcos do que supor que tenham sido suprimidos pelo último ao material destes (b)
Argumento a partir da extensão. É mais fácil pensar que Mateus e Lucas tenham usado seu próprio material para
expandir Marcos do que imaginar que este tenha resumido aqueles. (c) Argumento a partir da dicção. É mais
fácil pensar que Mateus e Lucas tenham refinando os coloquialismos de Marcos do que pensar que Marcos tenha
tentado tornar Mateus e Lucas menos literários. (d) Argumento a partir da gramática. É mais provável que
Mateus e Lucas tenham tentado melhorar a gramática de Marcos do que imaginar que Marcos tenha procurado
deliberadamente piorar o grego deles (e) Argumento a partir das expressões aramaicas. É mais provável que
Mateus e Lucas tenham removido os aramaísmos do texto de Marcos por causa de sua audiência gentílica do que
do que pensar que Marcos os tenha acrescentado aos textos de Mateus e Lucas. (f) Argumento a partir da
redundância. É mais fácil ver Mateus e Lucas eliminando as redundâncias de Marcos do que Marcos criando
redundâncias nos textos de Mateus e Lucas. (g) Argumento a partir do embaraço. É mais fácil ver Lucas e
Mateus tentando amenizar as passagens difíceis de Marcos (“Deus meu, por que me desamparaste?”) do que
pensar em Marcos inserindo-as ao texto dos citados. (h) Argumento a partir da ordem. É mais fácil entender as
específicas divergências de Mateus e Lucas quanto à ordem a partir de Marcos do que vice-versa. (i) Argumento
a partir da concordância literária. Isto explica como Mateus e Lucas parecem ocasionalmente ser referir a um
material omitido de Marcos. (k) Argumento a partir da redação. É mais fácil pensar em Mateus acrescentando
suas ênfases redacionais do que em Marcos removendo-as (l) Argumento a partir da teologia. É mais provável
que o uso mais frequente do pronome de tratamento Senhor tenha se desenvolvido posteriormente a Marcos, que
o faz apenas uma vez. (Robert H. Stein. The Synoptic Problem. An Introduction – Grand Rapids, MI: Baker,
1987, pp. 48-86).
257

do século IV (o Sinaítico e o Vaticano)664. (b) A geográfica, é a Galileia, nela passam-se os

eventos descritos do capítulo 1: 16 até o 7: 13, ou seja, praticamente metade do texto. Esta

região era o centro irradiador do ministério de Jesus, uma Galileia estendida que abarca

cidades gentílicas: Decápolis e Tiro e Sidon, onde, segundo o evangelista, Jesus também

atuou665.

A importância dos Gentios é tal no texto de Marcos que os estudiosos creem que

segundo sua teologia a missão aos Gentios começara mesmo com Jesus666, sendo alguns de

seus indícios a cura do endemoninhado de Gadara ou Gerasa, tendo Jesus lhe dado como

missão, não o seguimento, mas a sua permanência ali, falando do que o Senhor havia feito por

ele (Mc. 5: 19). Além disso, Jesus fez outras curas em terras gentílicas, especialmente no

território de Tiro: a cura da mulher siro-fenícia, a cura do surdo e gago. A importância disto

fica demonstrada na assim chamada segunda multiplicação dos pães (Mc. 8: 1-10), desta vez

em território gentílico, que ocorre logo em seguida a cura do gago. O significado deste duplo

marcano é enfatizar que a mesa escatológica, representada pelo ato simbólico de Jesus ao

multiplicar os pães e peixes, não era só para os Judeus, mas também para os Gentios667.

Em suma, a presença ativa de Jesus nos territórios gentílicos ao nordeste e noroeste da

Galileia representa para a comunidade marcana que não só os Judeus, mas todas as

comunidades mistas são convidadas a compor o reino de Deus. Constitui-se como

Um passo além na expansão da igreja por todo o mundo. Os discípulos fieis a seu
mestre terão que sair dos estreitos limites do Cristianismo judaizante e lançar-se à
pregação e atuação em meio a outros povos, sem pensar se estes são ou já não são
estritamente Judeus668.

664
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. Teología de los evangelios de Jesús (Salamanca: Ediciones Sígueme,
1977), p. 63.
665
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. Teología de los evangelios de Jesús, p. 62-64 .
666
Gerd Theissen. “Les quatre phases de la naissance du Nouveau Testament” (RHPR, vol. 87, 2007), p. 25.
667
David Sim. “Matthew, Paul and the origin and nature of the gentile mission: the great commission of
Matthew 28: 16-20 as anti-pauline tradition” (HTS, no. 64, I, 2008), p. 383.
668
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. Op. Cit., p. 63.
258

Esta descrição inclusiva do ministério de Jesus somada ao papel pífio que discípulos e

familiares de Jesus desempenham neste evangelho indica um propósito teológico em Marcos,

que é sua linha mestra. Com efeito, “a presença marcante Gentios em suas páginas”669, fica

evidente quando Marcos os coloca lada a lado com os discípulos e a comparação é

nitidamente desfavorável aos segundos.

Existe a polêmica do evangelho de Marcos contra os primeiros discípulos, o grupo


dos doze e a família de Jesus. ‘Dos doze” o primeiro entre pares é sem dúvida a
figura de Pedro. Da família de Jesus, é a mãe, Maria, a figura mais proeminente no
evangelho de Marcos, ainda que se saiba que o irmão Tiago chegou a ser
considerado líder principal na primeira comunidade cristã em Jerusalém. Todos
estes, os primeiros discípulos e os familiares de Jesus, vão para o lixeiro no
evangelho de Marcos. Afinal, eles, para o evangelista, para nada servem quando se
670
pensa em modelo de discipulado cristão. Em Marcos são todos um fracasso .

T. J. Weeden vê mesmo uma escala decrescente no entendimento dos discípulos sobre a

obra de Jesus, apesar de ser esperado que pelo convívio deles com Jesus viessem a aprender

algo com o passar do tempo: primeiro eles são falhos em perceber a real grandeza de seu

mestre (Mc 1:16 – 8: 26); depois foi-lhes revelado pelo Espírito quem era Jesus (a confissão

de Pedro), faltando-lhes, entretanto, a compreensão sobre a natureza de seu messianismo (Mc.

8:27 – 14: 9); e, por fim, houve a rejeição quando declarou claramente sobre que sorte de

morte deveria morrer, sendo ele o messias (Mc. 14: 10-72) ) 671 . Além do péssimo

discernimento espiritual, os discípulos são retratados também como medrosos, covardes,

dorminhocos e glutões. Até que a preocupação com a própria vida culmine com o

abandonarem seu mestre em seus momentos finais.

Surpreendentemente, enquanto os discípulos fogem envergonhados da prisão, crucifixão

e morte de Jesus, o centurião romano, encarregado de executá-lo, exclama cheio de fé:

669
William R. Telford. “Mark’s portrait of Jesus”. In Delbert Burkett. The son of man debate (Cambridge:
Cambridge University Press, 1999), pp. 18-19.
670
Leif E. Vaage. “El evangelio de Marcos: una interpretación ideológica particular dentro de los cristianos
originarios de Siria-Palestina” – Ribla (no. 29, Quito, 1998), p. 23.
671
Cf. T J. Weeden. “La herejia que exigió al evangelio de Marcos”. In Rafael Monasterio e Antonio R.
Carmona, p. 112.
259

“verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (Mc. 15:39). Por fim, no encerramento do

evangelho, as mulheres que visitavam o túmulo de Jesus no domingo da ressurreição, Maria,

mãe de Jesus, Maria Madalena e as outras, percebendo que ele não estava mais lá e recebendo

em seguida a ordem do anjo de comunicar aos discípulos e a Pedro que Jesus havia

ressuscitado e os precedia na Galileia, nada disso fizeram, ficando caladas, “porque temiam”

(Mc. 16: 8). Para muitos estudiosos, é assim, desta forma estranha e em suspense que termina

a redação do evangelho de Marcos.

É evidente que estas duas coisas têm relação, como conclui Francisco de la Calle. Havia

entre a comunidade marcana e a igreja de Jerusalém uma divergência quanto à missiologia e

eclesiologia a ser adotada pelos cristãos. Enquanto os primeiros se mostram inclusivos e

crentes que sua missão evangelística era dirigida ao mundo, os segundos ainda se entendiam

como seita judaica672 e à sua missão como igreja, restrita a anunciar Jesus aos Judeus, como

atesta também Paulo em seus escritos (Rm. 11: 13; Gl 11: 16).

Portanto, o aparente exclusivismo de Jesus tendo Ele declarado que “não fora enviado

senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt. 10: 6 e 15: 24), na verdade não é

exclusivismo de modo nenhum, mas a inauguração do reino do projeto de expansão inclusivo

que começa com as parcelas populacionais israelitas religiosamente excluídas e termina com a

inclusão de todos no reino. A agenda do reino de Deus segundo Jesus é gradual. Não há duas

agendas uma de Jesus entre os Judeus e outra dos discípulos mandados aos confins da terra

depois de Sua morte e ressurreição673. O projeto do reino de Deus é um único e o mesmo de

Jesus até nossos dias. Não esquecer que o Israel escatológico para Jesus envolve todos os

filhos de Deus.

672
Javier Pikasa e Francisco de la Calle. La teología de los evangelios de Jesús, p. 62.
673
Esta agenda do reino de Deus em dois tempos é mais perceptível no evangelho de Mateus, pois aí aparece
Jesus fortemente recomendando aos discípulos, ao enviá-los em missão, que não fossem aos Gentios nem aos
Samaritanos (Mt. 10: 5); por outro lado, depois da morte e ressurreição de Jesus, é neste evangelho que ocorre a
assim chamada grande comissão: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt. 28: 19).
260

Também não pode ser chamado de projeto inclusivista, na acepção forte da palavra,

conforme visto no capítulo 3. Primeiro, porque o projeto de Jesus não parte de uma

denominação ou agremiação X; Seu ponto de partida é o reino de Deus. Segundo, porque os

que são chamados não são integrados aos primeiros ocupantes dos assentos no banquete. É

dito que muitos filhos de Abraão seriam atirados fora, o que denota a ausência de privilégios.

O dito “um será tomado e o outro deixado” também aponta para a natureza misteriosa da

salvação escatológica, que neste caso não tem qualquer indicativo exterior, tal como a adesão

a uma ou outra agremiação religiosa.

5.e.2. Mateus

O que foi dito mais acima sobre a condição mutante das comunidades destinatárias dos

evangelhos aplica-se perfeitamente a Mateus. Inicialmente uma comunidade Judeu-Cristã

síria ou palestinense que, por causa da ascensão do Judeu-Farisaísmo do grupo de Jabneh e a

sua consequente expulsão da comunidade Judaica, começou a ver-se como um movimento

religioso destacado daquele novo Judaísmo nascente e opressor:

Mateus comunicou este autoentendimento de sua comunidade retratando a Jesus


como um Messias Judeu, como um professor [rabi] investido de autoridade e em
tensão com os escribas e fariseus. Enfrentando confusão, tensão, conflito e a
influência de falsos profetas dentro da comunidade.674.

O modo como estas tensões identitárias se desenrolaram e como os cristãos mateanos se

viam em meio a estas mudanças já foi objeto de estudo de muitos eruditos 675 . Não será

oportuno discutir amplamente esta questão neste lugar. Resta-nos apenas destacar que a

ambiguidade quanto aos Gentios na redação mateana são reflexos de problemas com sua

674
Eugen Laverdiere e William Thompson. “New Testament communities in transition: a study of Matthew and
Luke”, pp. 570-571.
675
Anders Runesson. “Rethinking early Jewish-Christian relation: matthean community history as farisaic
intragroup conflict” (JBL, vol. 127:1, Spring – 2008); Anthony Saldarini. Mathew’s Christian – Jewish
community, Chicago: University of Chicago Press, 1994; David Sim e Boris Repschinski. Mathew and his
Christian contemporary (London: T & T Clark, 2008); G. N. Stanton. A Gospel for a New People: Studies in
Matthew (Edinburgh: T & T Clark, 1992).
261

própria autoimagem religiosa. A relação encarniçada e agressiva do Judaísmo rabínico com a

comunidade mateana produziu uma reação que os fez buscar no AT e nas tradições de Jesus

seu espaço simbólico ameaçado. Por este motivo a redação de Mateus irá enfatizar um aspecto

do ministério de Jesus, em face das ameaças e calúnias que sofriam. Para a redação mateana

Jesus é o profeta semelhante a Moisés que havia de vir depois dele (Dt. 18: 15, 18 e 19): “ele

lhes falará tudo o que Eu lhe ordenar” (v. 18). Portanto, Jesus não é mero aperfeiçoador da

Torah, mas corretor e suplantador. Moisés permitiu o divórcio, Jesus o proíbe676. Esta ideia já

estava presente no evangelho de Lucas, o qual também apresenta a aparição de Jesus como

novidade radical (Mt. 11: 13 e Lc. 16: 16). Mateus apenas ressalta esta tradição de Jesus e a

torna um de seus principais leitmotiven.

Esta abundância de imagens mosaicas reflete a nova situação sócio-religiosa da

comunidade mateana depois do fortalecimento do rabinismo farisaico. Elas destinam-se a

legitimar o movimento cristão diante da organização e reestruturação do Judaísmo, levada a

cabo pelos líderes religiosos Judeus, os quais decidiram, pela padronização de seus serviços

litúrgicos, pelo estabelecimento do cânon do AT, pela instituição do rabinato como intérprete

autorizado da lei, limitar o acesso de Cristãos às suas congregações. Em Jabneh, no ano 90 d.

C., finalmente o último capítulo do confronto, a criação da fórmula litúrgica do Birkath ha

Minim (maldição dos hereges)677, a ser recitada pela congregação no serviço litúrgico, que

676
Mais de uma vez já foi dito que em Mateus Jesus é o novo Moisés e que há muitos paralelos nas duas
biografias. O nascimento do segundo Moisés, assim como o do primeiro, foi marcado pela morte de inocentes,
bebês de dois anos para baixo, assassinados por Herodes, o segundo faraó (Ex 1: 115 e Mt 2: 10). Como Moisés,
Jesus também funda uma nova comunidade religiosa, dando a ela novas regras e ordenanças (Mt capítulos 5, 6 e
7), também no sopé de uma montanha. Ademais, há uma preocupação da redação de Mt em colecionar logia que
tratem de temas caros ao Judaísmo, como por exemplo, questões haláquicas e cúlticas. Jesus também alimentou
o povo no deserto, tal como fizera Moisés (Mt 14: 13-21; 15: 29-39). E como Moisés também, Jesus é
transfigurado no monte (Mt 17: 1-13). Como se pode perceber, a relação é vasta (Cf. Wayne S. Baxter. “Mosaic
imagery in the gospel of Mathew”, TJ, 20:1, Spring – 1999, pp. 69-83). Deve-se ressaltar que esta relação de
Jesus com Moisés não é uma invenção da redação de Mateus. Ela está presente também nos outros evangelhos, e
que, se considerarmos a prioridade marcana, fica ainda mais evidente que se trata apenas de ênfase.
677
“Para os apóstatas que não haja esperança//O domínio da arrogância se elimine rapidamente em nossos
dias//E deixe os nazarenos e os minim perecerem em um momento// Deixe-os ser apagados do livro da vida// E
que não sejam inscritos com os justos.” (Andrew Overman. O evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo, o
mundo social da comunidade de Mateus, p. 59).
262

representava na prática a expulsão final de Cristãos mateanos da congregação de Israel678. As

diatribes e a oposição acerba, recebidas e retribuídas por Jesus em relação aos Fariseus na

redação mateana, refletem este doloroso divórcio e a necessidade de agora competir no

mesmo espaço simbólico. Por exemplo, quem realmente observava a Torah a comunidade

mateana ou a judaico-rabínica? Segundo a orientação dos anciãos e rabis fariseus ou segundo

a orientação de Jesus?679. Daí decorre a necessidade de apresentar Jesus como novo Moisés e

apresentação tão amiúde das batalhas teológicas entre Jesus e os Escribas e Fariseus nesse

evangelho.

Além disso, a comunidade de Mateus começava a ter sucesso com a evangelização dos

Gentios e isto gerava a necessidade de justificar o empreendimento missionário entre eles. Tal

como Marcos a redação mateana acolhe as logia de Jesus sobre a pregação aos Gentios, mas a

demarcação separatória entre a missão de Jesus e a dos discípulos, antes de sua ascensão é

muito mais excludente do que a dos outros evangelistas. Sua condição de fronteira de

comunidade judaico-cristã atirava os mateanos em situações contraditórias.

Hoje parece claro que o evangelho de Mateus foi escrito para uma comunidade
Judeu-cristã, que se abre aos Gentios. Mais ainda, uma das finalidades principais da
obra é legitimar esta abertura diante de uma comunidade, ainda não apta a entendê-
la. Diferentemente de outras correntes Judeu-cristãs que permaneceram cerradas em
si mesmas, a comunidade de Mt se encaminha rumo à confluência com a grande
Igreja680.

O resultado desta conjugação de Judeus-cristãos mateanos, ainda muito ligados às

tradições judaicas, com a nova realidade da catequização gentílica gerou um estado de

confusão identitária que transparece aqui e ali em sua redação, revelando uma ambiguidade

eclesiológica, às vezes até contradições, fazendo o texto oscilar entre inclusivista e

678
Eugene Lavardiere e William Thompson. “New Testament communities in transition”, p. 573.
679
François Viljoen. “Jesus teaching on the Torah in the sermon on the mount” (Nt, 40.1, 2006).
680
Rafael Monasterio. “Historia de la investigación sobre el evangelio de Mateo”, p. 164. In Rafael Monasterio e
Antonio Carmona.
263

exclusivista em relação aos Gentios, à medida que esses são retratados, ora positivamente, ora

negativamente.

Por conta da rivalidade com os Judeus-rabínicos quanto a quem era o verdadeiro Israel,

disputando com eles a condição de herdeiro do Judaísmo formativo, a comunidade mateana

não poderia eliminar séculos de avaliação negativa da gentilidade de um momento para outro,

presente desde o retorno dos judaítas do exílio babilônico. Muitos dos estereótipos

antigentílicos que povoavam a religiosidade popular judaica ainda aparecem no evangelho nas

entrelinhas. A redação mateana ressalta ditos negativos de Jesus sobre os Gentios e é o único

evangelista a fazê-lo. Os Gentios são contraexemplos de piedade no sermão do monte:

“quando orardes não façais como os gentios, usando de vãs de repetições [...] (Mt. 6: 7);

Gentios são contraexemplos da ética do reino: “e se saudardes somente vossos irmãos, que

fazeis de mais? Não agem os Gentios do mesmo modo?”(Mt. 5: 47); o termo ‘Gentio’ é usado

como sinônimo de publicano, cuja preocupação maior existencial eram as riquezas (Mt. 6: 32)
681
; Gentio é sinônimo daqueles que não seguem a fé da comunidade mateana (Mt. 18: 17) e

que, por não serem Judeus-Fariseus, são Gentios.

Por outro lado, agora respondendo à demanda da comunidade mateana pela recepção de

novos conversos oriundos do mundo gentílico, a redação mateana acolhe outros logia de Jesus

que retratam os Gentios sob uma luz muito mais positiva. Eles são frequentemente retratados

manifestando fé em Jesus, ou pelo menos aprovando Suas palavras e obras: mulheres gentias

entraram na genealogia de Jesus (Mt. 1); os magos do Oriente que vieram venerar o menino

Jesus (Mt. 2: 1-12); o centurião, dá um testemunho de fé na crucifixão (Mt. 27:54); a mulher

681
No sermão do monte, onde é definida a ética do reino, Gentio e Fariseu são os extremos usados para definir
por oposição o cristão mateano que se coloca ao centro. Portanto, cuja fé e prática não é nem hipócrita como a
dos Fariseus nem leviana e mundana como a dos Gentios. Aqui a manifestação mais cabal e perspícua daquela
necessidade de definição identitária da comunidade mateana, aventada mais acima. Podemos afirmar, no entanto,
ser o sermão do monte um acréscimo redacional da comunidade mateana? De forma alguma. Basta compará-lo
com o sermão da planície, seu paralelo em Lucas, onde a mesma mensagem aparece, na sua essência,
praticamente sem alterações, menos os nomes Fariseu e Gentio, donde se conclui que a tríade onomástica
Fariseu – Cristão mateano – Gentio (tão amiúde citada) é o acréscimo redacional.
264

de Pilatos chama Jesus de “justo” e aconselha o marido a não se envolver no complô contra

Ele (Mt 27: 19); o centurião amigo da sinagoga crê na autoridade de Jesus sobre as doenças

(Mt. 8: 5-17).

No tempo escatológico ainda fica mais clara a apreciação dos Gentios pela redação de

Mateus: os Ninivitas se levantarão no Juízo para condenar aquela geração a quem Jesus

pregou (Mt. 12: 41); e o mesmo quanto à rainha do Sul (de Sabá) (Mt. 12: 42); quanto às

nações, no banquete escatológico – “muitos virão do Ocidente e do Oriente e sentarão à mesa

com Abraão, Isaque e Jacó” (Mt. 8: 11). E, como clímax do evangelho, há a grande comissão:

“ide e fazei discípulos de todas as nações” (Mt. 28: 19-20).

O único texto que destoa deste quadro de Mateus é o capítulo 15 verso 16, em que Jesus

se encontra com a mulher sírio-fenícia, chamada por Mateus de cananita, uma recordação

veterotestamentária do evangelista, talvez com o objetivo de enfatizar sua condição nefasta. A

resposta de Jesus ao pedido da mulher é aos nossos olhos um tanto quanto grosseira. Primeiro

diz que não tinha sido “enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (15: 24); depois

afirmando não ser conveniente “tomar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos”. Mas, ao

fim acaba cedendo a seus clamores, concedendo à mulher o que lhe pedia.

Aqui a redação de Mateus possivelmente preserva um resíduo do Judaísmo pós-exílico

que ainda resistia na comunidade mateana. Contudo, o episódio também ocorre nas outras

redações e é fundamental para entender o programa missiológico de Jesus restrito aos Judeus

(incluindo os não praticantes), exceto pela utilização do gentílico mais antigo, ou seja,

“cananita”. Aos discípulos Jesus fez a mesma recomendação que não fossem aos Gentios nem

entrassem nas cidades dos Samaritanos, mas limitassem sua pregação à casa de Israel. (Mt.

10: 5). A comunidade mateana entendia sua missão e a dos discípulos pregar às nações e a de

Jesus reunir as ovelhas perdidas da casa de Israel ao aprisco de Seu Pai. Como vimos, isto
265

também ocorre em Marcos, embora só Mateus radicalize a dicotomia ovelhas perdidas de

Israel e as nações, porque Lucas e Marcos, ao contrário de Mateus, mencionam pessoas de

outras etnias, inclusive de Tiro e Sidom, presentes nos sermões (da planície) e curas de Jesus

(Mc. 3: 8).

5.e.3. Lucas-Atos

Um dos grandes leitmotiven da redação lucana é apresentar Jesus como o iniciador de

um movimento religioso que começa na periferia do mundo e atinge seu centro. Com efeito,

diferente de Mateus Lucas vê o programa missiológico de Jesus como unidade e continuidade

evita toda a sugestão de que a missão universal não tenha se iniciado com Jesus. No relato

sobre o envio dos setenta a pregar não há nenhuma proibição de estender a missão aos

Gentios (Lc. 10: 1). Embora seja menos enfático do que Marcos quanto à missão aos Gentios

haver começado nos dias de Jesus, Lucas inclui tírios e sidônios entre os ouvintes do sermão

da planície (Lc. 6: 17). H. Conzelman vê nestes indícios textuais a demonstração que, tal

como ocorre em Marcos, a missão aos Gentios começou simbolicamente no ministério de

Jesus na Galileia, do mesmo modo como a missão de Jesus começou simbolicamente na

dispensação de Israel.

A redação lucana é tão convicta do programa missiológico de Jesus que a própria

estrutura literária de seu texto o reflete, tendo redigido sua obra em dois tomos. Um, o

evangelho propriamente dito, contendo o ministério de Jesus; dois, o livro de Atos, contendo a

predição (At. 1: 8) e a realização do programa missiológico de Jesus, com a chegada da

pregação a Roma, por intermédio do ministério de Paulo (At. 28). Além disso, Seu projeto

restauracionista está devidamente demarcado pela ênfase da redação lucana na relação de

Jesus com “as ovelhas perdidas da casa de Israel”: “publicanos e pecadores” (Lc. 7: 34//Mt.

21: 31), meretrizes (Lc. 7//Mt. 21: 32), pessoas que por causa de certas doenças se tornavam
266

culticamente impuras (Lc. 8: 43), pessoas de quem foram expulsos demônios (Lc. 8: 26-39).

Do material especial de Lucas destaca-se o capítulo 15 onde ocorrem várias parábolas sobre

os perdidos e onde Jesus é retratado como aquele que busca e salva os perdidos (Lc. 19: 10).

Estes são tribos perdidas de Israel, que no banquete escatológico se sentarão à mesa com

Abraão enquanto os filhos do reino serão lançados fora (Lc. 13-29//Mt. 8: 11).

Ademais, há ainda as muitas afirmações que ressaltam as concepções inclusivistas

lucanas, amiúde citadas pelos teólogos das religiões: “e, contudo, Deus não se deixou sem

testemunho, beneficiando-vos lá do céu, dando-vos chuva e tempos frutíferos.” (At. 14: 17).

Também no célebre discurso de Paulo no areópago (At. 17: 16-34), que pode ser considerado

um resumo programático do Inclusivismo bíblico, é afirmado, entre outras coisas, a unidade

do gênero humano (v. 26) 682 , a inecessidade de um local de culto para Deus (v. 24), a

religiosidade universal da humanidade que, na verdade, muitas vezes adora ao que não

conhece (v. 23), sendo necessária a autorrevelação divina.

O modo como Lucas-Atos retrata os Gentios individualmente também é indício de seu

projeto inclusivo. Há um grande número de “Gentios justos”: o centurião Cornélio (At. 10: 1-

5 – comparar com o centurião do evangelho Lc. 7: 2-4), o procônsul Sergius Publius (At. 13:

7, 12), o carcereiro filipense (At. 16: 25-34), o procônsul Gallio (At. 18: 12-14), e Publius,

autoridade da ilha de Malta (At. 28: 7-10). Ressalve-se que são chamados justos não por sua

dedicação à religião pagã, mas por sua abertura à recepção do evangelho.

H. Conzelmann descreve o evangelho de Lucas como tripartite história da salvação: (a)

período de Israel, (b) período de Cristo, e (c) o período da Igreja 683 . Contudo, não há

necessidade de se pensar de modo excludente com Conzelmann a teologia lucana, em que a

682
Trata-se de uma ênfase redacional lucana. Notar que a genealogia de Jesus no evangelho de Lucas remonta a
Adão e não a Davi, como na versão mateana.
683
Hans Conzelmann. The theology of St. Luke (New York: Harper and Row. 1961), pp. 9-17.
267

escatologia seja substituída pela história da salvação, como o próprio título de sua obra em

alemão sugere die mitte der zeit (o meio do tempo). A própria missão aos Gentios só ocorre

porque é cumprimento profético referido ao tempo da restauração escatológica de Israel e,

portanto, não se trata propriamente de um meio do tempo, mas do fim dos tempos, no formato

de escatologia inaugurada. Há vários indícios textuais que o comprovam na teologia narrativa

lucana. Pedro, em seu discurso no pórtico, fala de um tempo de retorno de Jesus dos céus para

inaugurar a era da restauração universal (apokatástasis), que Deus havia anunciado por meio

de seus profetas (At. 3: 21). No assim chamado concílio de Jerusalém, Tiago discursa em

favor da boa recepção dos resultados das missões aos Gentios e contra os argumentos dos que

gostariam que os Gentios se tornassem Judeus primeiro antes de se tornarem Cristãos (Lc. 15:

16-17). O argumento de Tiago para que “não se perturbassem aqueles que dentre os Gentios

se convertem a Deus” (At. 15: 19), não os submetendo ao jugo de questões haláquicas (At. 15:

20), é a profecia de Amós sobre a reedificação do “tabernáculo caído de Davi” (Am. 9: 11),

“para que os demais homens busquem ao Senhor e também todos os Gentios” (At. 15: 17)684.

Discute-se o que seria este tabernáculo de Davi, mas ao que parece a ideia do texto é apenas

restauracionista e universalista e o tabernáculo de Davi é apenas uma metáfora. Em suma,

Lucas usa as profecias do AT para “demonstrar que a missão aos Gentios é, desde o início,

parte integral da vontade de Deus”685 para a salvação dos homens.

5.e.4. João

O evangelho de João, por suas características textuais, tem sido considerado um dos

lugares menos prováveis para serem encontrados textos favoráveis ao diálogo inter-religioso

ou para uma missiologia inclusiva. Por seu exclusivismo salvífico e pela animosidade acerba

que transparece nas palavras dirigidas de parte a parte, de Judeus a Jesus e vice-versa, João

684
“Todas as nações que são chamadas pelo meu nome, diz o Senhor, que faz estas coisas” (Am. 9: 12).
685
S. G. Wilson. The Gentiles and the Gentile mission in Luke-Acts (Cambridge: Cambridge University Press,
1973), p. 95.
268

tem servido de pedra de escândalo para muitos de seus leitores. Seu ponto crítico é o capítulo

8, em que Jesus chama “os Judeus” de “filhos do diabo” (v. 44) e os Judeus devolvem dizendo

de Jesus que “tem demônio” (v. 48). De sorte que já foi sugerido que todo o capítulo 8 do

evangelho de João fosse excluído do texto canônico de João ou que se fizessem reparos nestes

étimos-chave que aparecem entre aspas686. Contudo, por cômodo que seja, não podemos agir

desta forma; seria reeditar a heresia marcionita, também ela metodologicamente afeita à

simples remoção das Escrituras do que não se encaixa em determinado quadro de ideias.

Outra solução oferecida para o escândalo joanino é atribuir as acerbas discussões

religiosas a um possível pano de fundo comunitário, em que um conflito entre os Cristãos

joaninos em Éfeso e os Judeus da Ásia Menor ocorreria687. É inegável que o evangelho sendo

escrito em primeira mão para sustentar a fé dos Cristãos da época fosse resposta às suas

perguntas e angústias. Nosso problema é que uma suposta comunidade joanina até agora tem

sido uma apenas uma hipótese de trabalho, cuja existência tem pouca sustentação textual,

tanto do ponto de vista redacional como teológico.

Do ponto de vista redacional, uma das características de João é sua independência em

relação às fontes sinóticas, quase nenhuma referência às tradições sinóticas dos ditos de Jesus,

que, pelos acréscimos e omissões, poderiam fornecer indícios sobre a identidade de seus

leitores 688 . A melhor pista para o contexto do quarto evangelho ainda é a designação

686
T. Pippin apud R. Bieringer, D. Pollefeyt e F. Vandecasteele-Vanneuville. AntiJudaim and the Fourth Gospel
(Louisvilee, KT: Westminster John Knox Press, 2001), p. 4.
687
J. Louis Martyn é o teólogo que primeiro propôs a tese segundo a qual o evangelho de João está construído
como edifício de dois pavimentos. O primeiro e mais evidente onde se conta a história de Jesus, e o segundo, e
mais profundo, com o relato dos transes e dificuldades enfrentados pela comunidade onde foi redacionado (J. L.
Martyn. History and theology of fourth gospel (1968) (reimpresso em 2003 – Louisville, KT: Westminster John
Knox Press). Posteriormente Raymond Brown popularizou ainda mais esta hipótese e quase a transformou num
dogma religioso) (The community of the beloved disciple. The life, loves, and hates of an individual church in
New Testament, Mahwah, NJ: Paulist Press, 1979).
688
Há pouca coisa pacífica a este respeito, uma delas é de que João teve acesso a uma fonte dos sinais de Jesus,
onde estariam registrados seus milagres (Francis J. Moloney. The Gospel of John – Collegeville, MN: The
Liturgical Press, 1998, p. 86) e uma fonte da paixão (Robert Kysar. “The source analysis of the Fourth Gospel. A
growing consensus?”. In Howard M. Teeple et al. The composition of John’s Gospel – Leiden: Brill, 1999, p.
269

anacronística de “os Judeus” (hoi Ioudaioi) 689 , aposta aos líderes religiosos que faziam

oposição a Jesus690. Alguns teólogos têm tentado atenuar os estragos destas disputas joaninas

enfatizando que os evangelhos não são histórias de comunidades, mas a história de Jesus e,

portanto, “os Judeus” que aí aparecem são apenas oponentes ocasionais de Jesus

contextualmente sem peso teológico691. O problema desta tese é que o número de menções

aos Judeus (hoi Ioudaioi) excede em muito ao que se pudesse esperar de adversários de

ocasião. De 180 ocorrências do termo no NT, nada menos que 70 delas ocorrem no evangelho

de João 692 . Como já foi dito alhures, uma das técnicas redacionais dos evangelistas para

fortalecer a fé de seus leitores era ligá-los à história de Jesus, selecionando histórias da

tradição de Jesus em que Ele e os discípulos passem pelas mesmas experiências e dificuldades

dos leitores693. Por exemplo, a confissão de Pedro: “Tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6:

68), a admoestação de Jesus aos discípulos: “Eles vos expulsarão das sinagogas” e vos

matarão (Jo. 16: 2), parecem ser experiências comuns de Jesus e dos Cristãos leitores do

evangelho.

Não sabemos se havia uma comunidade joanina específica sobre a qual o texto se

baseie, cujos membros teriam sido expulsos da sinagoga após a inclusão das 18 bênçãos na

132) . Alguns logia de Jesus são citados livremente por João, ou por questão estilística ou por João ter tido
acesso a uma tradição oral, ainda não se sabe ao certo (Ibid., p. 129).
689
É considerada anacronística porque os adeptos do Judaísmo formativo só começaram a ser chamados desta
forma perto do final do primeiro século, quando a hegemonia do Judaísmo rabínico destronou as designações
anteriores: Fariseus, Saduceus, Zelotes, Essênios.
690
Está em curso uma discussão sobre a identidade destes Judeus no texto joanino. Um grande número de teorias
tem sido oferecidas para revelá-la: basicamente há dois sentidos: (a) Judeus é um gentílico não uma designação
religiosa, sendo mais bem traduzido por Judaítas, ou seja, indivíduos nascidos na Judeia (F. W. Danker, S.
Mason, J. H. Elliot, P. F. Esler, etc); (b) por outro lado, há os que sustentam que Judeus é designação religiosa
dos outsiders, enquanto Israel é designação dos insiders (K. G. Kuhn). Cf. David M. Miller. “The meaning of
Ioudaios and its relationship to other group label in ancient Judaism” (CBR, 9, 1, 2010), pp. 98-126.
691
Cornelis Bennema. “Religious violence in the gospel of John: a response to the Hindutva culture in modern
India”. In F. F. Fox (ed.). Violence and peace: creating a culture of peace in the contemporary context of
violence (Bangalore: ATC/CMS, 2010), p. 136.
692
Kasuo Matsunaga. “Christian self-identification and the Twelfth Benediction”. In Harold W. Attridge e Gohei
Hata (eds.). Eusebius, Christianity and Judaism (Detroit, MI: Wayne State University Press, 1992), p. 361.
693
Conferir mais algumas ideias sobre a questão no início do capítulo II.
270

liturgia sinagogal 694 ou se a perseguição religiosa aos Cristãos era uma situação universal

promovida pelo Estado romano, que foi facilitada por uma maior clivagem entre Cristianismo

e Judaísmo. Parece mais plausível a segunda alternativa. É discutível que o alcance das

decisões de Jabneh chegasse à Ásia Menor onde provavelmente viviam os leitores do

evangelho. O principal debate que divide Cristãos e Judeus é cristológico, mas num nível que

dificilmente poderia ocorrer em ambiente palestinense. No evangelho de João não está em

questão se Jesus é o Messias ou não, mas se Ele é o ‘Eu Sou’ ou não; em João Jesus não é

meramente o novo Moisés, mas aquele de quem todos os emblemas cúlticos da Torah falam:

o pão (Jo. 6: 50-58), o cordeiro (Jo. 1: 29), a luz (Jo. 8: 12), a ressurreição e a vida (Jo. 11:

25), refletindo, portanto, um estágio muito mais avançado de discussão cristológica. Ademais,

o universalismo da teologia do evangelho tem um apelo mais geral do que local. Em João 15:

18 a 16 Jesus adverte seus discípulos quanto à inimizade e o ódio do mundo e não dos Judeus.

Em Seu discurso de despedida Jesus não menciona “os Judeus” (Jo. capítulos 13-17).

O papel desta disputa com o Judaísmo pode ter sido importante, mas ela dificilmente

terá relação com as decisões do Rabinismo palestinense. O melhor contexto para a

perseguição dos leitores do evangelho foram as movidas pelo Estado romano. Muitos cristãos

devem ter retornado para as sinagogas como criptocristãos quando o ambiente se tornava mais

inamistoso, pois não parece possível que tivessem se convertido do Judaísmo há pouco tempo,

haja vista o nível de sua cristologia. As sinagogas seriam um bom refúgio por ser o Judaísmo

religio licita e não estar proscrita como o Cristianismo. Como a perseguição aos Cristãos não

era sistemática, mas episódica no tempo e no espaço695 e ocorria à medida que estes eram

694
A tese segundo a qual os efeitos da rabinização do Judaísmo depois da destruição do templo em 70 d.C. teria
atingido também uma suposta comunidade joanina já foi sustentada à exaustão. E como sempre, há o argumento
de que dificilmente os efeitos da bênção dos hereges (birkat ha minim) tivesse chegado ao ambiente não
palestinense, no qual se dá a redação do evangelho. (Jonathan Bernier. Aposynagogos and the historical Jesus in
John – Leiden: Brill, 2013).
695
William J. Duiker e Jackson J. Spielvogel. World History (Boston, MA: Wadsworth, 2013), p. 144.
271

denunciados696 e levados aos magistrados, onde eram convidados, por argumentos e também

por meio de tortura, a fazer um juramento de lealdade aos deuses romanos e ao Imperador,

seu divino filho, através de uma libação e a queima de incenso diante de sua imagem 697.

Obviamente muitos Cristãos foram martirizados e esta situação se estendeu por longos anos

deixando marcas profundas na vida da Igreja. Não se tratava de mera expulsão das sinagogas.

Dependendo do contexto e da disposição das autoridades, a expulsão significava

aprisionamento e uma sentença de morte. Por este motivo a morte está tão presente no

evangelho, o verbo matar aparece nada menos do que dez vezes, onde as autoridades judaicas

deliberam constantemente matar Jesus e até Lázaro. O medo é outra constante: os discípulos

se escondiam depois da crucifixão “com medo dos Judeus” (Jo. 20: 19); autoridades criam,

mas não confessavam “para não serem expulsos da sinagoga” (Jo. 12: 42). Há também um

clima de denuncismo: “os sacerdotes e os fariseus tinham dado ordem para, se alguém

soubesse onde ele estava, denunciá-lo, a fim de o prenderem.” (Jo. 11: 57).

No Apocalipse, cuja autoria também é atribuída a João, nos primeiros três capítulos

aparecem duas terríveis diatribes contra os Judeus, chamados aí de “sinagoga de Satanás” por

duas vezes (Ap. 2: 9; 3: 9). O genitivo “de Satanás”, não é leviandade nem injúria decorrente

de rivalidade religiosa, pois Satanás significa acusador, justamente o problema porque

passavam os Cristãos naquela época. Corroborativamente, as duas alusões estão associadas a

tribulações e na carta a Esmirna fala-se de claramente de prisão e a promessa de Jesus é: “Sê

fiel até a morte e dar-te-ei a cora da vida” (Ap. 2: 10), referindo-se ao martírio.

696
Desde os decretos de Nero o Cristianismo estava banido, sendo proibida sua prática pelo Estado. Os
imperadores que vieram depois não ab-rogaram o decreto neroniano, contudo, por serem muitos os Cristãos, o
Estado romano não fazia buscas para localizá-los e prendê-los. Os magistrados apenas aceitavam as denúncias
feitas e tentavam fazê-los abandonar a prática que mais incomodava: sua resistência em adorar o imperador;
aqueles que resistiam eram condenados à morte (James W. Ermatinger. Daily life of Christians in ancient Rome
– Westport, CT: Greenwood Press, 2007 – p. 71).
697
Bruce Chilton. Abraham’s curse. The roots of violence in Judaism, Christianity and Islam (New York:
Doubleday, 2008), p. 100.
272

Ora, dada toda esta conjuntura de perseguição e conluio das autoridades judaicas e o

Estado romano para o aprisionamento e morte dos Cristãos (Jo. 18: 31), não é de admirar que

“filhos do diabo”, “sinagoga de satanás” frequentem os textos joaninos, assim como não causa

espanto a exclamação do salmista: “feliz aquele que pegar em teus filhos [de Babilônia] e der

com eles nas pedras” (Sl. 137: 9). Não se trata de justificar a violência religiosa ou étnica, mas

de entender que nestas passagens a sombra do humano se manifesta no meio do brilho da

revelação divina e não deve ser considerada como Escritura normativa, mas servir como

advertência para evitarmos uma abordagem docética das Escrituras. Quanto aos aspectos

exclusivistas do texto joânico, por exemplo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém

vem ao Pai senão por Mim” (Jo. 14: 6), não há aí nada de diferente em relação a outros textos

semelhantes, p. ex.: “porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os

homens, pelo qual devamos ser salvos” (At. 4: 12). Portanto, é matéria bíblica e parte

essencial do Cristianismo, como já apresentado até agora.

Por outro lado, quanto ao projeto missiológico de Jesus, em João restam apenas

indícios, os quais, porém, são suficientes para demonstrar que nestas passagens o evangelista

dependeu de uma antiga tradição sinótica diretamente. O restauracionismo de Jesus, por

exemplo, está presente em várias passagens. Primeiro, a pregação de Jesus é dirigida também

às “ovelhas perdidas da casa de Israel”, embora haja discordância entre a tradição joanina e a

sinótica sobre quem eram estas ovelhas (a tradição mateana exclui os samaritanos). Ele

restringe Seu ministério inicialmente a elas, não aceitando, por exemplo, catequizar os gregos

que o buscavam na semana que precede à crucifixão (Jo. 12: 20). Por outro lado, Jesus

evangeliza a samaritana (Jo. 4: 1-17); cura o cego de nascença, que é desprezado pelos

fariseus por ser pecador, a saber, mal cumpridor das obrigações haláquicas de todo Judeu (Jo.

9: 34); a mulher adúltera, colhida em flagrante, a quem Ele perdoa e não permite que seja

apedrejada (Jo. 8: 1-11). E segundo, Seu programa missiológico se estende aos Gentios que
273

quer recolher em Seu aprisco: “ainda tenho outras ovelhas, não desse aprisco; convém-me

conduzi-las [...]; então, haverá um rebanho e um pastor” (Jo. 10: 16). No comentário

redacional sobre a profecia de Caifás sobre a morte de Jesus em prol da nação: “e não

somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus que andam

dispersos” (Jo. 11: 52).

Sobre o inclusivismo a pneumatologia joanina deveria ser um capítulo à parte, tantas

são as referências textuais; limitar-nos-emos a um curto resumo. A obra do Espírito é

universal: Ele convence o mundo inteiro do pecado, da justiça e do Juízo (Jo. 16: 8); é

misteriosa: é como o vento que sopra onde quer e não se sabe nem de onde vem e nem para

onde vai (Jo. 3: 8); é vinculadora: não se adora a Deus nem aqui [Samaria] nem em Jerusalém,

mas em Espírito e em Verdade (Jo. 4: 23); é reveladora: “e quando vier o Espírito de Verdade,

Ele vos guiará em toda a verdade” (Jo. 16: 13). Em suma, O Espírito faz a obra de Jesus,

reunindo a si Suas ovelhas dispersas pelo mundo.

5.f. Outras convergências neotestamentárias

5.f.1. Paulo

Nesta altura de nosso texto nos voltamos para uma das fontes mais antigas e

desconsideradas para a reconstituição da mensagem de Jesus. Com efeito, em geral Paulo, é

considerado um deturpador da pregação original de Jesus, bem como o verdadeiro fundador

do Cristianismo, já que Jesus apenas teria criado um movimento religioso apocalíptico

Judaico, sem nenhuma pretensão a universalidade (o que pelas páginas precedentes

imaginamos já ter deixado demonstrado ser uma indução assaz equívoca). Apesar de não citar

as logia de Jesus muito amiúde (provavelmente não teve acesso ao texto dos evangelhos),

Paulo em muitos aspectos mostra-se mais próximo da mensagem de Jesus do que os próprios

evangelhos (trechos onde a ênfase redacional é mais forte). Por ele nos chegaram em primeira
274

mão ditos e feitos que os especialistas reconhecem pertencer ao ‘Jesus histórico’698. Quanto

ao tema que nos interessa, Paulo na Epístola aos Romanos 15: 8 diz o que os evangelhos

também afirmam, “que Cristo foi constituído ministro da circuncisão”, assim como Pedro

depois Dele (Gl. 2: 7), enquanto a ele, Paulo, foi confiado o ministério da incircuncisão (Rm.

1: 5, 11: 13, 15: 16; Gl. 2: 7-10; Ef. 3: 5-8), desde os primórdios de seu ministério, conforme a

visão de Paulo em Jerusalém: “Mas Ele me disse: Vai porque eu te enviarei para longe, aos

Gentios.” (At. 22: 21).

E aqui nos confrontamos com uma interpretação equívoca de Paulo, segundo a qual ele

teria sido um Judeu renegado que recomendava o abandono das ordenanças mosaicas aos

Judeus., ensinando a não obrigatoriedade da circuncisão e de outras obrigações haláquicas e

dietéticas, fatos ligados à própria fundação do Cristianismo como afirmam alguns estudiosos

de renome699. Esta ênfase sobre uma supostamente aguda descontinuidade entre Jesus e Paulo

tem dois pontos de partida inadequados: (a) primeiro, não leva em conta o fato de que tudo o

que Paulo pregava já estava antecipado nos ensinos de Jesus, e segundo, como corolário, (b)

supervaloriza a ruptura de Paulo com suas próprias tradições700. Ele que se dizia Judeu de

Judeu, benjamita, fariseu, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível (Fl. 3: 6), e diz ter

aberto mão da justiça havia na lei para tornar a reavê-la pela fé (Fl. 3; 9). E isto não

significava atirar sua herança judaica na lixeira, apenas uma adaptação de seus conceitos ao

programa do reino de Deus, assim como pregado por Jesus.

698
James Dunn, em sua obra monumental, apresenta um quadro comparativo entre Paulo e os Sinóticos,
demonstrando a primariedade da tradição de Jesus a que Paulo teve acesso: Rm. 1: 16 Mc. 8: 38/Lc. 9: 26; Rm.
2: 1/14: 10 Lc. 6: 37/Mt. 7: 1-2; Rm. 8: 15-17/Gl. 4: 4-6 “Abba”; Rm. 12: 14 Lc. 6: 27-28/Mt. 5: 44; Rm. 12:
17/1 Ts. 5:15 Mt. 5: 39/Lc. 6: 29; Rm. 12: 18 Mc. 9: 50; Rm. 13: 7 Mc. 12: 17; Rm. 13: 9 Mc. 12: 31; Rm. 14:
13 Mc. 9: 42; Rm. 14: 14 Mc. 7: 15; Rm. 14: 17 – “reino de Deus”; 1 Cr. 2: 7 Mt. 13: 35; 1 Cr. 13: 2 Mt. 17: 20;
1 Ts. 5: 2, 4/ Mt. 24: 43/Luke 12: 39; 1 Ts. 5: 13/ Mc. 9: 50 (Jesus remembered, p. 182).
699
Jacob Neusner e Bruce D. Chilton (edts.) Judaism and the New Testament. Practices and Beliefs (New York:
Routledge, 1995), p. 22.
700
Muitos já enfatizaram o contexto helenístico do mundo Greco-romano para explicar a guinada paulina
(Wayne Meeks. Los primeros cristianos urbanos – Salamanca: Sígueme, 1987). Isto é desnecessário. Basta
considerar a própria guinada de Jesus rumo a uma compreensão mais espiritual e menos literal da lei.
275

R. Bultmann701, E. Jüngel702 e outros estudiosos do NT são concordes em dizer que o

conceito de “reino de Deus” tem ecos na doutrina da justificação paulina703. Para Bultmann a

afinidade dá-se pela radicalidade com que ambas compelem os seres humanos a uma decisão

sem reservas quanto ao reino de Deus (Mt. 13: 45-46)704. Para Jüngel, o pano de fundo da

doutrina da justificação de Paulo está nas parábolas de Jesus e, além disso, ambas tratam de

temas eminentemente escatológicos705. Todos fazem asseverações acertadas. Basta comparar

o que Epístola aos Romanos diz sobre a soberania divina e a igual condição de Judeus e

Gentios sob a graça de Deus (malgrado as obras meritórias de Justiça dos primeiros), com a

parábola dos trabalhadores da undécima hora (Mt. 20: 1-16) e com a parábola das bodas (Mt.

22: 1-14). E aqui a raiz da impopularidade da pregação de ambos junto aos Judeus, que suas

obras de justiça eram como restolho diante de Deus, face à radicalidade do compromisso que

esta graça solicita do pecador.

Há que se reconhecer que o “reino de Deus” (basileia tou theou) não é dominante na

teologia paulina, dado que ele prefere outros termos, tais como “evangelho” e “igreja”706 e seu

foco teológico recai principalmente sobre a morte e ressurreição de Jesus707. Isto é facilmente

contornável, basta considerar duas coisas: (a) que à audiência de Paulo os dois últimos termos

seriam bem mais inteligíveis do que o hebraísmo da primeira (e, além disso, substituir a

expressão “reino de Deus” evitaria mal entendidos políticos que produzissem entraves

701
Jesus and the word (London: Nicholson & Watson, 1935); Jesus and Paul in existence and faith (London:
Hodder & Stoughton, 1961).
702
Paulus und Jesus (Tübingen : J.C. B. Mohr & Paul Siebeck, 1907).
703
Sobre o conceito de fé em Paulo e sua conexão com os ensinos de Jesus cf. Maureen W. Yeung. Faith in
Jesus and Paul (Tübingen: Mohr Siebeck, 2002).
704
John M. G. Barclay. “Offensive and uncanny: Jesus and Paul on caustic grace of God”. In Todd O. Still (edt.).
Jesus and Paul re connected. Fresh pathways into an old debate (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdemans
Publishing Co., 2007), p. 16.
705
Georg Strecker. Theology of the New Testament (Berlin: Walter de Gruyter/Westminster John Knox Press,
2000), p. 97.
706
Alan Cole. Galatians. The Tyndale New Testament commentaries (Leicester, UK/Grand Rapids, MI:
InterVarsity Press/Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 1989), p. 217.
707
Seyoon Kim. Paul and the new perspectives. Second thoughts on the origin of Paul’s gospel (Grand Rapids,
MI: Wm. B. Eerdemans Publishing Co., 2002), p. 270.
276

políticos à pregação, por conta de conotações subversivas atribuídas à mensagem) 708 , (b)

Paulo usa o termo nove vezes enquanto no resto do Novo Testamento aparece apenas nos

Sinóticos e raramente em outros lugares709. Contudo, nas poucas oportunidades que Paulo usa

“reino de Deus” ele o faz tão magistralmente que resume o programa de Jesus, tal e qual vem

sendo apresentado até aqui.

Em Romanos 14: 22 ele diz que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça

paz e alegria no Espírito”. Ou seja, rejeita as questões haláquicas quanto à pureza cúltica,

como também rejeita Jesus710. E em I Coríntios 4: 20: “porque o reino de Deus consiste não

em palavra, mas em poder”, que ressalta o tipo de santidade que remonta aos ensinos de Jesus.

Em outras partes, embora não use a terminologia específica de Jesus, resume seu programa

missiológico, como ninguém mais no NT.

Em Romanos, capítulo 11, Paulo escreve sobre o futuro de Israel de uma maneira bem

desusada no NT (fora dos Sinóticos), entrelaçando seu destino ao dos Gentios. Como vimos

mais acima esta era maneira como Jesus via o reino de Deus, o Grande Israel. Em Romanos

11: 16-24, Paulo usa a símile agrícola da oliveira brava (Gentios) enxertada na oliveira

domesticada (Judeus), em sua subordinação à graça divina, para representar a expansão do

reino de Deus. Não é uma operação simples, como se subentende pelas recomendações de

Paulo a uns e outros contra a soberba espiritual de uns contra outros711.

708
Seyoon Kim. Paul and the new perspectives, p. 277.
709
As passagens em que aparece “reino de Deus” em Paulo são: Rm. 14: 17; I Co. 4: 20, 6: 9 e 10, 15: 50; Gl. 5:
21; Ef. 5: 5; Cl. 4: 11; II Ts. 1: 5, 4: 1. Todas as remissões aparecem em contexto escatológico, à exceção de
Gálatas. O evangelho de João menciona o reino de Deus uma única vez: 3: 3-5. O livro de Atos não é valido em
termos comparativos porque é o segundo tomo de uma única obra (Lucas-Atos). Fora daí nas cartas gerais só em
Hebreus (1:8) e no Apocalipse (1: 9, 12: 10 e 17: 17).
710
R. Bultmann refere-se à não obrigatoriedade da circuncisão entre as igrejas paulinas como sinal da ruptura de
Paulo com o Judaísmo (Teologia del Nuevo Testamento – Salamanca, Ediciones Sígueme, 1981, p. 157).
Lembrar que a decisão de Paulo e Barnabé de não colocar este encargo sobre os Gentios está em perfeita
consonância com a nova noção da lei ensinada por Jesus, que prefere seu aspecto moral ao cúltico.
711
Em Jesus, tampouco, o reino de Deus é pacífico basta analisar a assim conhecida como “parábola do filho
pródigo”, que na verdade devia-se chamar “parábola dos dois filhos”. Tantas orações e estudo da Torah, dízimos
da ervas que nascem espontaneamente no fundo do quintal (Mt. 23: 23), códigos de pureza cúltica tão extensivas
quanto às praticadas no templo. Nada disto recomenda ninguém à salvação. É só pela graça de Deus.
277

Não resta dúvida que Paulo é restauracionista como Jesus. Várias passagens do Antigo

Testamento básicas para um restauracionismo amplo e inclusivo, como ensinado por Jesus

Cristo, são citadas por Ele (Rm. 15: 9-12)712. Os principais motivos porque concluir por um

restauracionismo amplo em Paulo são: (a) emprega a palavra Abba no sentido utilizado por

Jesus, com sentido de dupla paternidade de Deus, uma em relação a Jesus, e a outra com

respeito a nós seres humanos (Rm. 8:15, Gl. 4: 6) 713. A ideia de adoção está sempre presente

e aparece algumas vezes em suas cartas em conexão com a palavra aramaica Abba714. Para

isto apontam também vários trechos de suas cartas em que chama os Gentios de herdeiros

“conforme a promessa” (Gl. 3: 29)715 e coerdeiros junto com os Hebreus das promessas de

Deus (Ef. 3: 6). (b) Adota o conceito de santidade comunitário de Jesus: santos são todos

aqueles que compõem a comunidade do reino de Deus (Rm. 1: 7, I Co. 1: 2), seja Judeu,

grego, escravo ou livre (Cl. 3: 11).

5.g. Conclusão

Não resta dúvida de que Jesus fosse um misto de profeta apocalíptico e carismático.

Como profeta apocalíptico anunciando a ruptura entre o porvir e o agora, a rejeição da

religiosidade de sua época, a prioridade das normas éticas sobre as haláquicas, a destruição

final de tudo num iminente fim escatológico. Como profeta carismático, criou uma nova

comunidade, com uma ética (sermão do monte/planície), com vários círculos de adeptos (os

setenta, os doze, os três mais chegados: Pedro, Tiago e João), correspondendo simbolicamente

712
V. 9: “Por isso, eu te glorificarei entre os Gentios e cantarei louvores ao teu nome” (Sl. 18: 50). V. 10:
“alegrai-vos, ó Gentios, com o seu povo” (Dt. 32: 43). V. 11: “louvai ao Senhor, vós todos os Gentios” (Sl. 117:
1). V. 12: “haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar os Gentios; Nele os Gentios esperarão”
(Is. 52: 15).
713
Nota de rodapé da página 253.
714
“As referências paulinas [ao Abba] as implicações filiais do termo e indicam que num estágio bem primordial
[das tradições cristãs] a filiação a Deus era entendida como um dom específico concedido aos seguidores de
Jesus.” (Edward P. Meadors. Jesus, the messianic Herald of salvation – Tübingen: J.C. B. Mohr (Paul Siebeck),
1995, p. 183).
715
A promessa à qual Paulo se refere é a que aparece em Gn. 12: 3: “[...] em ti serão benditas todas as famílias
da Terra”. Mas, principalmente, em Gn. 28: 14: “[...] e no teu Descendente serão benditas todas as famílias da
Terra”.
278

à nova comunidade escatológica, o Novo Israel, que deveria sobreviver à destruição final (Mt.

19: 28).

As duas perspectivas, a apocalíptica e a carismática, convivem tensionadas no

ministério de Jesus, de sorte que, uma compreensão equívoca surge quando se opta por uma

delas em detrimento da outra. A taumaturgia de Jesus contesta a escatologia apocalíptica,

porque realiza a restauração antes da consumação. Contudo, não podemos dizer que o reino

de Deus é ‘agora’, dado que a consumação ainda não ocorreu. Mas, também não se pode dizer

que o reino de Deus ‘ainda não é’, porque a taumaturgia de Jesus indica sua chegada e a

rejeição das estruturas sociopolíticas e econômico religiosas da época.

Portanto, Apocalipsismo não é sinônimo de escapismo, muito menos de indiferença

quanto ao que existe na presente era. Pode, pelo contrário, significar, como na pregação de

Jesus, o fim e o começo. O fim da velha dispensação e o começo de uma nova, nada

impedindo que enquanto se apregoa o fim de uma trabalhe-se sob os auspícios do início da

outra, evidentemente, a partir das novas estruturas do reino de Deus.

O Apocalipsismo de Jesus, longe de ser sectário, é inclusivista, haja vista ter sido mais

radical do que o de seus contemporâneos. Jesus não pregava a mera rejeição da dimensão

religiosa da sociedade vigente, como faziam os Fariseus. Tampouco, rejeitava sua dimensão

politicorreligiosa, como faziam os Zelotes. Nem ainda, propunha um resto santo como gérmen

de um projeto de restauração da justiça de Deus na terra, como os Essênios. O que Jesus

ensinava era a necessidade de uma total subversão das estruturas da sociedade de sua época, a

ser efetuada por Deus no plano escatológico. A reinvenção da sociedade humana, segundo

critérios e meios divinos. Porque o Reino de Deus irrompe de dentro para fora; é inaugurado

no coração humano (Lc. 17: 21) é daí que chega à sociedade humana. Nenhuma reforma
279

social, nenhuma doutrina política, poderá consumar a aurora deste reino, porque está-lhe

vedado o acesso à raiz de todas as mazelas humanas: o coração dos homens.

Seguramente, o Inclusivismo de Jesus tem como fonte de inspiração a profecia de Joel

sobre o derramamento do Espírito sobre toda a carne (2: 28-29). Na nova era predita pelos

profetas, a qual o Movimento de Jesus já tinha por iniciada, todos seriam revestidos com o

Espírito e de tal forma que a relação com Deus já não seria mais mediada por ministrantes,

livros, serafins e nem por ninguém: “não ensinará cada um a seu próximo, nem cada um a seu

irmão, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos me conhecerão” (Jr. 31: 31-34). Não havia

aí lugar para nenhuma segregação ou hierarquização, pois o reino de Deus já havia produzido

aquela unidade predita também em Malaquias, como resultado da pregação de Elias: a

conversão do coração dos pais aos filhos e vice-versa (4: 6).

Os evangelhos não deixam de recomendar a vigilância e anunciar a inexorável

destruição dos maus, ao mesmo tempo que nos convidam para o banquete da restauração do

Grande Israel, onde qualquer um pode sentar-se à mesa hoje, embora a instalação do reino

ainda esteja no futuro (dado que o Juízo ainda não chegou). Aí temos a representação mais

perfeita daquela tensão mencionada entre o agora e o ainda-não do reino, que na mentalidade

semítica soa bem natural, porque seu pensamento não é analítico como o grego e o nosso, mas

intuitivo e experiencial. As duas experiências estão disponíveis hoje. Uma delas nos

recomenda alegria e a aceitação da salvação de Deus que irrompe no meio dos homens por

meio de Jesus, a outra nos recomenda cuidado com a soberba espiritual, porque o Juízo está às

portas e será instalado quando o Filho do Homem vier na glória de Seu Pai e de Seus santos

anjos.

O Juízo ainda não chegou, portanto, o reino de Deus ainda não se instalou

completamente, mas aquilo que vem depois, ou seja, a comunidade irênica e harmoniosa da
280

nova criação de Deus, já pode ser percebida, como penhor das coisas que Deus ainda fará, que

se realiza na fundação da Igreja e pela dotação do Espírito 716. E como a separação entre bons

e maus só pode ser conhecida escatologicamente, é dever de todo aquele que espera a

manifestação plena do reino aceitar que a manifestação prévia seja sinal da futura unidade da

humanidade com Deus, à medida que potencialmente todos podem fazer parte deste reino.

716
Esta teologia da comunidade escatológica reaparece com mais detalhes em Lucas-Atos, em que a fundação
da Igreja dá-se pela ação do Espírito sobre os que ficaram em Jerusalém, e é retratada de modo semelhante à
criação do mundo no Gênesis: o Espírito paira sobre a Igreja, do mesmo modo como pairou sobre a face das
águas, quando nada ainda havia sido criado, quanto tudo ainda era caótico. A lição do livro de Atos é clara: a
expansão do reino de Deus iniciada por Jesus na periferia do mundo conhecido, na periferia do Império, chega
finalmente ao centro do mundo, Roma. A comunidade escatológica encontrara sua consumação.
281

CAPÍTULO VI

Conclusão Final

O mundo cristão mudou radicalmente neste século que ficou para trás. Deixou de ser

branco e euro-americano e se globalizou. Além da evidente heterogeneidade decorrente disto

– hoje, os Cristãos adoram a Deus em mais de dois diferentes grupos linguísticos 717 , há

divergências mais profundas entre duas grandes categorias de Cristianismo: (a) um

Cristianismo Ocidental, em franca decadência, que tenta se tornar relevante em um ambiente

secular e pós-moderno; e (b) um Cristianismo globalizado que sente as dores do crescimento

em alguns lugares, e em outros luta para não sucumbir às pressões dos que estão incomodados

com sua sobrevivência.

Os teólogos do Ocidente, segundo seu costume, tentam guiar seus pupilos não

ocidentais a uma teologia mais ‘aberta’, condizente com o que veem na Europa e Estados

Unidos. Os teólogos do terceiro mundo e países emergentes encontram-se numa encruzilhada:

ou acompanham seus mentores do hemisfério norte na adoção de um pensamento pós-

moderno relativista, supostamente pró agenda inter-religiosa, ou reforçam sua herança cristã,

que, de um ponto de vista sociológico, talvez condiga mais com sua condição de minoria em

seus próprios países (sem entrar no mérito). O que eles mesmos constatam é que os teólogos

defensores do relativismo religioso, a pretexto de favorecerem o diálogo inter-religioso, na

realidade prestam-lhes um desserviço, reforçando o discurso dos que consideram-se inimigos

do evangelho e sob os quais vivem submetidos. Estes teólogos Ocidentais, sempre muito

operosos na proteção das culturas e religiões minoritárias e ameaçadas pela expansão do

Cristianismo, esquecem-se de que é o próprio que agora se encontra sob ameaça na janela

717
Lamin Sanneh apud Harold Netland. Globalization and Theology today. in OTT, Craig e Harold NETLAND.
Globalizing Theology: Belief and practice in an Era of World Christianity (Grand Rapids, MI: Baker Publishing
Group), 2006, p. 15.
282

10/40, por exemplo, onde o fundamentalismo islâmico incomoda-se até mesmo com seu

crescimento tímido, impondo-lhe novas proibições e limitações à profissão da fé.

Além disso, a ideologia de países hindus e budistas adotam alegremente as disposições

pluralistas (sintéticos) por assim já o fazerem há séculos, sem terem tido necessidade de suas

teorias. De sorte que, os cristãos nestes países além de estarem pressionados pelas maiorias

religiosas não cristãs agora também são vítimas do “fogo amigo” do Pan-ecumenismo

sintético, cujos ensinos e palestras relativizam o Cristianismo, destituem-no de sua relevância

religiosa e ainda se veem como benfeitores da humanidade, por colaborarem com a paz

mundial. Na realidade não colaboram nem com os Cristãos subjugados dos países islâmicos e

tampouco satisfazem aqueles com quem presuntivamente pretendem abrir diálogo, porque os

lideres das religiões não Cristãs não querem ouvir que os ensinos de suas religiões são

metáforas piedosas, sem fundo veritativo 718 . Em suma de um lado e outro os Cristãos

minoritários nestes países são prejudicados e as religiosidades como um todo.

Considerando o terceiro bloco do Cristianismo aquele que diz repeito às Américas e a

África, onde não existe o secularismo, mas tampouco perseguição religiosa, as razoes contra o

relativismo não são menos contundentes. Aí também não são mais favoráveis à

contextualização do evangelho, porque o ecumenismo pós-moderno chega a um ambiente

cultural onde a fé já se encontra enfraquecida pela prevalecente ideologia secular, construída

no decorrer do século XX pela urbanização. Em quaisquer das grandes cidades do planeta,

igrejas cada vez mais fragmentadas, ideológica e institucionalmente, dão nascimento ao novo

fenômeno sociorreligioso: a dupla filiação religiosa – especialmente nas grandes cidades da

América do Sul719.

718
Ho Jin Jun. “Evangelical challenges to religious pluralism in Asian context” (TTJ, no. 2, 2007), p. 29.
719
Franz Damen. “Panorama das religiões no mundo e na América Latina”, in Pelos muitos caminhos de Deus
(Goiás: Editora Rede, 2003), pp. 45 e 46.
283

O nome disto é sincretismo religioso ainda que, por enquanto, só no âmbito dos

indivíduos720. A religiosidade pós-moderna o favorece e o alimenta, pois é construída sobre os

alicerces do consumismo; a religião é mais um produto oferecido às massas e os indivíduos

escolhem itens da religiosidade como um consumidor que customiza os produtos que irá

consumir. Eles escolhem os itens de cada religião para compor sua própria religiosidade, sem

respeitar limites institucionais. Por andar em busca da realidade total, holística, a

espiritualidade pós-moderna tende a mesclar tudo indiscriminadamente, o que Pierre Sanchis


721
chama de “bricolagem” , porque os elementos religiosos não são tão somente

sincreticamente reunidos, mas também ‘reciclados’, de modo que já não permanecem os

mesmos. A extrema liberdade com que esta mistura é feita reflete também a ideia de que

todos os credos descrevem a mesma realidade divina, só que tomada de outro ângulo. O

divino é a realidade multifária irredutível e ao mesmo tempo um uno não fracionável. Este

paradoxo só é compreensível quando encarado à luz da polaridade espiritualidade –

instituição, ou seja, é multifário diante das tentativas de reduzir o divino a um só tipo de

discurso, e é uno à medida que relativiza os vários ‘ismos’ autoexcludentes.

O que o Cristianismo ganha ao sucumbir a estas pressões relativistas e ideológicas a

que se querem subscrever os teólogos pós-modernos? Ideologias vêm e vão, mas o evangelho

é eterno (Ap. 14:6). Outras crises já se apresentaram, por causa de outras exigências

hermenêuticas tão ou mais prementes do que as nossas: o Gnosticismo nos dois primeiros

séculos, o Iluminismo, da segunda metade do sec. XIX até a primeira metade do séc. XX. E

agora serão estas novas ideologias eternas, verdades últimas a que se devem encurvar as

Escrituras? E, entretanto, é inegável que a nossa crise é mais insidiosa e sorrateira. Ela mina

as fundações como água inocente, sem alarde. Para ser combatida serão necessárias decisões

720
Pierre Sanchis. “Religião, religiões… Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro.”. In
Pierre Sanchis (org.). Fieis & cidadãos: percursos de sincretismos no Brasil (Rio de Janeiro: Eduerj, 2001).
721
Pierre Sanchis. “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?”. In Eduardo Hoornart. História da
Igreja na América Latina e no Caribe (Petrópolis, RJ: Vozes, 1995), p. 88.
284

mais firmes, o que não significa dar as costas para o mundo: adaptação, contextualização, mas

não negociar os princípios: (1) Jesus é o único Salvador, (2) a Igreja deve esta mensagem ao

mundo.

A solução mediana do pluralismo particularista de J. Moltmann, contrariando a ideia de

que no meio termo está o equilíbrio, também não nos serve. Suas teses têm uma fragilidade

axial que atinge o segundo princípio: nele não é possível nenhum impulso missiológico. Não

há razão para pregar, porque no fundo adota como lastro filosófico a tese wittgensteiniana da

imanência do sujeito e da consequente impossibilidade de compor uma grande narrativa de

relevância universal. Aqueles que nasceram numa cultura budista ou hindu não podem

entender o mundo da perspectiva cristã assim a cooperação entre as religiões ocorrerá sem

que nenhum dos participantes possa abandonar sua particularidade. Buscar cada qual, em sua

própria religião, pontos de contato com a religião dos outros, parece mais um

empreendimento acadêmico do que uma visão realmente missiológica da mensagem cristã.

Quanto à modalidade inclusivista já não há mais nada a agregar além do que foi dito.

Ela é apenas exclusivismo disfarçado, valendo-se de uma roupagem teológica ou filosófica

para manter no campo simbólico o prestígio e a hegemonia de certas instituições religiosas.

Ao mesmo tempo inscrevendo-se no programa hermenêutico atual para dar-lhe um rosto mais

humano, apesar de seu passado violento. Como já tivemos oportunidade de defender, o

inclusivismo como visão missiológica genérica só é possível para instituições religiosas

hegemônicas ou a isto pretendentes, em nada dizendo respeito às minorias religiosas

evangélicas.

Quanto ao exclusivismo, dependendo de como seja apresentado (se enfatiza a

mensagem cristã ou o veículo – a Igreja), é bíblico e inarredável, embora, em nossos dias,

também hermeneuticamente problemático. A sua modalidade eclesiástica tem senões e poréns


285

também reconhecidos no inclusivismo, o problema do poder eclesiástico e sua tendência a

manipular o comportamento religioso dos que a ele não aderirem de boa mente. Hoje em dia,

contudo, esta espécie de exclusivismo referido ao Cristianismo tem cada vez menos condições

de ser praticado, tendo em vista o laicismo no Ocidente e o aumento do poder econômico das

religiões não Cristãs nos países onde são praticadas. Os argumentos pós-colonialistas hoje

talvez sejam aplicáveis apenas à África. Em outras regiões do globo, tais como a janela 10/40

e no Extremo Oriente (especialmente China), as forças econômicas se inverteram e torna-se

necessário outro tipo de discurso.

O mundo globalizado onde a mensagem cristã deve ser proclamada é um contexto

pluricultural e multirreligioso, se temos renunciado à hegemonia o diálogo inter-religioso se

impõe à agenda Cristã como prioridade. A pergunta é como ele poderá ocorrer diante de tudo

o que foi discutido até aqui? O estudo das religiões como mera estratégia missiológica com o

objetivo de erguer pedras de espera para a evangelização dos não Cristãos não pode mais

satisfazer esta agenda, como conclui Jason Barker (embora assim alguns persistam em

pensar):

O diálogo inter-religioso não é evangelismo, nem deve ser prelúdio do evangelismo


em dois estágios: Os Cristãos devem praticar o diálogo com os não – Cristãos (1)
para entender a situação dos não – Cristãos e como o evangelho para responder às
suas necessidades; (2) responder questões suscitadas pelas pessoas para envolvê-las
num encontro pessoal com os reclamos de Deus722.

“A pergunta não é mais se devemos entrar em diálogo, mas que tipo de diálogo

devemos entreter” 723 . No primeiro capítulo desta pesquisa já foi discutida a posição dos

teóricos que defendem como um dos objetivos do diálogo entre as religiões o

desenvolvimento de uma espécie de esperanto religioso. Leonard Swidler foi um de seus mais

722
Apud Douglas Cowan. Bearing false witness? An introduction to the Christian countercult (Westport, CT:
Praeger Publishers, 2003), p. 108.
723
David J. Hesselgrave. “Interreligious dialogue – biblical and contemporary perspectives”. In David J.
Hesselgrave. Theology and mission (Grand Rapids, MI: Baker, 1979), p. 235.
286

ardorosos defensores desde o início da década de 80, com a publicação de vários artigos onde

propunha uma espécie de decálogo para o diálogo entre as religiões724. Fiel à sua posição

relativista e filosófica, o primeiro preceito de seu “dialogue decalogue” é: o diálogo inter-

religioso deve significar que seus participantes devem antes de tudo buscar “uma mudança e

um crescimento na compreensão da realidade” 725.

É inegável que não se pode pensar em diálogo entre as religiões como mera conversa

entre posições religiosas diferentes. Deve haver um objetivo comum, deve haver um projeto

(segundo preceito) 726. Contudo, conforme vimos apresentando, um esperanto religioso é um

equívoco epistemológico e teológico que em nada contribui para o fortalecimento das

religiões, exceto a religião universal iluminista. Mas, o diálogo é uma necessidade empírica

decorrente da multiculturalidade e plurirreligiosidade das sociedades humanas no mundo

globalizado.

Como Martin Forward esclarece, o significado etimológico da palavra diálogo não é a

mera conversa a dois, como se o radical dia se referissem aos dois participantes do bate-papo.

Dia não é di (dois), antes quer dizer através, enfatizando um meio e um objetivo. “Diálogo

significa cosmovisões sendo arguidas até chegarem a conclusões potencialmente

transformadoras”727, tal como ocorrem nos diálogos platônicos. O esclarecimento etimológico

é bem-vindo, mas a conclusão parece-me ainda vaga em termos práticos, rejeitada a

possibilidade de inter-influência doutrinal entre as partes envolvidas no diálogo.

724
Leonard Swidler. “the dialogue decalogue: ground rules for interreligious dialogue” (Horizons, vol. 10,
1983) , p. 350.
725
Os outros mandamentos são: (2) um projeto bilateral levado a cabo dentro de duas comunidades religiosas,
(3) completa honestidade e sinceridade por parte de cada participante, (4) cada participante assume a completa
honestidade e sinceridade por parte do outro, (5) cada participante deve definir-se a si mesmo, (6) cada
participante deve vir ao diálogo sem preconceitos e conceitos superficiais sobre o outro, (7) o diálogo só pode
ocorrer entre iguais (par cum pari), (8) o diálogo só pode acontecer num ambiente de mútua confiança, (9) cada
participante deve ser autocrítico em relação à sua tradição religiosa e (10) cada participante deve eventualmente
tentar experimentar a religião do parceiro no diálogo.
726
Ibid, p. 351.
727
Apud Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and theology of religions (London: SCM Press,
2010), p. 63.
287

Hans Küng, por sua vez, tem uma proposição mais realista do que Swidler, por

reconhecer que os entendimentos inter-religiosos devem se destinar aos esforços para o

desenvolvimento de uma ética global. Como tivemos oportunidade de examinar, para Küng o

papel dos ensinos de Jesus no contexto multirreligioso é normativo, daí as diretivas ou as

bases do diálogo entre as religiões serem pautadas em seus Ensinos, resumidos em quatro

grandes prescrições: “(1) não violência e respeito pela vida, (2) solidariedade e justa ordem

econômica, (3) tolerância e uma vida de veracidade e (4) direitos iguais e parceria entre

homens e mulheres”728.

O reparo de Küng é bem-vindo, mas seu projeto ainda suscita contenções quanto à

viabilidade. Primeiramente, porque a ambição do projeto permanece propondo marcos além

do que é possível. A diversidade da religiosidade humana é de tal sorte que uma ética global

parece um projeto utópico; nenhum dos princípios poderia incluir todas. O primeiro preceito é

pacífico, mas ainda excluiria as religiões animistas (por causa de práticas sacrificais de não

humanos). O segundo preceito parece pressupor um capitalismo com melhor distribuição de

renda como a ordem econômica justa, o que não também não seria tão pacífico por causa do

coletivismo dos povos arcaicos e outras formas organização econômica que não endossam “as

conquistas” do Iluminismo. A organização social por vezes tem profundas implicações

religiosas como é o caso das castas no Hinduísmo729, em que a posição social (varna) está

ligada ao dharma730. A terceira prescrição é a menos contenciosa: a tolerância e a veracidade

são valores religiosos universais. O quarto e último preceito entra em choque com as

sociedades patriarcalistas tradicionais do Oriente Próximo e do Extremo Oriente.

728
Hans Küng e Karl-Josef Kuschel (eds.). A global ethic. The declaration of the Parliament of the World’s
religions (New York: The Continuum International Publishing Group Inc., 2006), pp. 24-33. Cf. Hans Küng.
Proyecto de una ética mundial (Madrid: Planeta – Agostini, 1994).
729
Paul Hedges. Controversies in interreligious dialogue and theology of religions, p. 259.
730
É a lei espiritual que deve governar as ações dos que estão sob a lei cósmica do karma, que, por sua vez,
determina o destino de todos os seres. Ser obediente ao dharma é aceitar as condições sociais, a casta onde
nasceu, e torná-la sua missão para retornar em outra encarnação numa posição mais elevada e prosseguir
evoluindo até o fim do ciclo.
288

Há que se reconhecer que o projeto de Küng tem como ponto de partida os ensinos de

Jesus, mas a pergunta cabível é: por que os ensinos de Jesus com viés secularizado são mais

adequados ao diálogo inter-religioso do que Sua escatologia? Não seria este projeto mais

adequado apenas politicamente e não necessariamente religiosamente adequado? A suspeita

que se levanta e se avoluma à medida que as páginas do projeto de Küng e Kuschel são

viradas é que se trata de uma extensão das éticas iluministas já conhecidas, que vêm com o

mesmo defeito: “não podem gerar uma transformação moral e social” 731; e, ademais, sequer

podem convencer a todos no campo filosófico.

David J. Hesselgrave, num artigo não tão recente, faz algumas sugestões que

permanecem atuais, de como os Cristãos podem ingressar num processo cooperativo com as

religiões sem abrir mão de seus valores: (1) antes de entrar em diálogo com as religiões não

Cristãs é preciso saber que tipo de diálogo quer se constituir, com quais objetivos; (2) o

diálogo inter-religioso pode dizer respeito à liberdade de adoração e de profissão de fé, que no

caso de Cristãos significa também testemunhar com o objetivo de ganhar outros para a fé; (3)

o diálogo inter-religioso pode estar referido a cooperação para a limitação e proibição de

ações desumanizadoras na sociedade: guerras, drogas, aborto, tráfico humano, trabalho

escravo, etc., bem como ações que produzam impactos ambientais negativos: testes nucleares,

desmatamento, tráfico de animais, fome, etc.; (4) diálogo para derrubar as barreiras do

preconceito e promover uma compreensão mais profunda e uma melhor apreciação das

práticas religiosas732.

Certamente, a mais urgente das necessidades para o diálogo inter-religioso é a que está

relacionada com a razão (4). No passado e mesmo hoje, depois de tantos debates entorno do

tema, a ênfase dos estudos comparativos entre o Cristianismo e as outras religiões mundiais

731
Bas de Graay Fortman e Berma Kleein Goldewijk. Dios y las cosas. La economía global desde una
perspectiva de civilización (Santander: Sal Terrae, 1999), p. 130.
732
David J. Hesselgrave. “Interreligious dialogue – biblical and contemporary perspectives”, pp. 227-240.
289

era “a singularidade do Cristianismo e não a base comum das religiões”733. O desinteresse

neste tipo de estudo parece fundar-se numa pressuposição básica extremamente maniqueísta:

Deus no lado Cristão e o Diabo no outro lado; embora não haja na Escritura nada que o

recomende. Pelo contrário, como vimos, a Escritura fala de um plano divino para salvar a

todos, desde os concertos de Adão, Noé e Abraão até o programa missiológico inclusivo de

Jesus, que só terminará nos confins da terra (At. 1: 8).

No evangelho de João Jesus ora por ovelhas que não são do aprisco sob Seus cuidados

diretos (Jo. 10:16) e no início do mesmo livro já havia dito que Deus não dá Seu Espírito por

medida (Jo. 3: 34); em Atos o Espírito é derramado sobre Gentios (At. 10: 47), que com

certeza foi evento interpretado pelos apóstolos escatologicamente à luz de Joel 2: 28: “e

acontecerá, depois, que derramarei de meu Espírito sobre toda a carne” .

Sabemos, entretanto, que por mais inclusivos que pareçam estes textos, nada neles nos

autoriza a conclusão de uma apokatástasis (salvação universal) religiosa ou secular declarada

no final da história deste mundo a todos, ou mesmo um empreendimento teológico em busca

dos sinais do Espírito nas doutrinas e práticas das religiões mundiais. Este tipo de escrutínio

não nos pertence nem isto foi requerido de qualquer Cristão. O trabalho da pregação não

coloca sobre os Cristãos o dever de interferir ou julgar as instituições não Cristãs, mas de

alcançar seus adeptos, dentre quantos estejam dispostos a ouvir o evangelho (no mundo

globalizado a Igreja Pós-constantiniana faleceu sem deixar saudades).

Por outro lado, o ministério do Espírito não pode se restringir à Igreja, pois a própria

obra da pregação estaria impossibilitada fosse isto verdade. Como escreve Paulo, sem o

trabalho do Espírito ninguém poderia chegar à conclusão de que Jesus é o Senhor (I Co. 12:3)

e, portanto, salvar-se. Devemos, por conseguinte, abandonar o maniqueísmo que nos faz ver

733
William A. Dyrness. Learning about theology from the third world (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), p.
156.
290

os ouvintes do evangelho provindos das religiões mundiais como se no momento em que dão

ouvidos à Palavra de Deus pela primeira vez seja o marco zero de sua espiritualidade. Como

se antes de se depararem com a mensagem da cruz não tivessem sido guiados em sua

caminhada espiritual ao Cristo, do qual pelo mesmo Espírito somos também impelidos a

pregar.

Esta é a grande novidade que estes novos ventos trazem ao mundo Cristão,

especialmente evangélico: uma modéstia religiosa. O Espírito atua na Igreja porque é o

objetivo de Deus salvar a todos, não sendo seu objetivo o engrandecimento da Igreja e de seus

líderes. A Igreja é apenas instrumento, agência, não a razão de ser da missão. A soberba

espiritual antes tão facilmente desenvolvida nos meios Cristãos, por causa dos retratos

caricaturizados das outras religiões e por causa dos muitos retoques no seu próprio, deve

agora ceder lugar à humildade, de ser uma entre outras no mundo multirreligioso. E, pela

certeza de que “Deus amou o mundo” (não um pequeno número de crentes) “de tal maneira

que deu Seu Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida

eterna” (Jo. 3: 16), poder dar à sua mensagem o enfoque hermenêutico correto.

Portanto, a crise imposta pelo desenvolvimento da Pós-modernidade neste início de

século XXI pode também significar um kairós, uma grande oportunidade de pregação, para

completar obra iniciada por Jesus e levar a cumprimento Sua palavra: “até os confins da

terra”, porque sem os controles políticos ou religiosos das instituições religiosas Pós-

constantinianas, que criam obstáculos à pregação, cada um pode ser chamado a dar uma

resposta livre aos apelos do evangelho e os disputantes da verdade religiosa podem esforçar-

se por ganhar seus ouvintes sem tentarem se destruir mutuamente.


291

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