Há anos o Instituto de Documentação vem trabalhando no preparo de um
dicionário de ciências sociais, em colaboração com a Unesco, que já havia pa- trocinado obras do mesmo gênero em inglês, depois em espanhol. Hoje pode- mos informar que o trabalho do INDOC já se acha em fase final, devendo os originais entrar em composição gráfica em meados deste ano. O Dicionário de ciências sociais FGV/Unesco terá cerca de 1.600 verbetes, escritos por mais de 450 especialistas, dos quais cerca de 60 são brasileiros, e será a primeira obra do gênero a ser publicada para o mundo de língua por- tuguesa. Para que os leitores tenham uma idéia do que será esse dicionário, publica- mos nesta edição o verbete Burocracia, de Manuel Pérez Olea (espanhol) com nota complementar de Armando M. da Cunha e Anna Maria Campos, assim como outros verbetes similares nas próximas edições deste periódico.
Burocracia (Burocracia) sendo, burocracia é antes de tudo "influên-
cia excessiva dos empregados públicos nos A. A palavra burocracia tem uma longa his- negócios de Estado" (Diccionario de la len- tória, na qual se registra uma curiosa evo- gua espanola de la Real Academia Espanola) lução. Sua origem é o vocábulo francês e, ainda, "a interferência abusiva dos fun- bureau, tecido grosso de lã com que an- cionários em assuntos estranhos à competên- tigamente se forravam mesas. Por translação cia estatal" (Encyclopaedia Britannica). O passou-se a chamar de bureau sucessivamen- Grande dicionário Larousse de 1867 já de- te a mesa, o lugar em que se juntavam mesas finia: "Burocrata: personagem influente nos para trabalhos geralmente de administração escritórios, especialmente nos de um minis- (pública ou empresarial), as repartições pú- tério. E somente empregado em sentido pe- blicas e o tipo de funções e trabalhos que jorativo", e: "Burocracia: influência excessiva nelas se realizavam. Empregava-se também dos empregados públicos na administração o termo para qualificar os empregados que (compare-se com a definição do Diccionario serviam nesses lugares (garçons de bureau). de la lengua espanola de la Real Academía Entre os derivados figura burocracia para o Espanola). conjunto das funções de tramitação e exe- cução das decisões políticas e ainda o ele- D. O aparecimento da burocracia data do mento humano encarregado de executar tais nascimento do Estado centralizador moder- funções. no, mas só adquire força com a expansão do intervencionismo estatal e a subseqüente in- B. Objetivamente, a burocracia é constituÍ- gerência dos poderes públicos em todas as da pela totalidade dos órgãos estatais encar- esferas da atividade humana. A primeira ma- regados da execução da atividade pública, es- pecialmente a administrativa, com pessoas nifestação do fenômeno burocrático ocorreu treinadas, selecionadas e profissionalmente sob os Habsburgos no século XVIII, assu· vinculadas a essa função. Subjetivamente, bu- mindo a burocracia germânica, especialmente rocracia é esse conjunto de empregados pú- a prussina, o papel de arquétipo do estamen- blicos. to funcionarial detentor dos poderes de atua- ção do Estado. A ideologia abstencionista do C. O termo burocracia é geralmente empre- Estado liberal veio retardar o desenvolvimen- gado com sentido pejorativo tanto em sua to da burocracia, mas apesar disso foi justa- conotação objetiva como na subjetiva. Na mente nessa época que se registraram os ata- maioria dos dicionários em uso, a própria ques mais contundentes contra o seu papel, definição do termo já é negativa, sem reco- que era considerado, por consenso, arbitrá- nhecer-se uma alternativa positiva. Assim rio e excessivo.
R. Adm. públ., Rio de Janeiro, 16(1): 143-145, jan./mar. 1982
Cabe notar que esses ataques nunca pene- mento objetivo e científico do fenômeno bu- tram o âmago da organização administrativa. rocracia. Max Weber foi o primeiro a tratar e partem ou de movimentos políticos dissol- com rigor intelectual a definição e as carac- ventes (Proudhon) ou de escritores políticos terísticas da burocracia. Weber apontou como poderosamente individualistas (Balzac: "Na caracteres determinantes de toda burocracia França se redige um milhão de relatórios o registro escrito das atividades de cada por ano; por isso impera a burocracia"; La- órgão necessárias à consecução dos fins, a martine: "O pensamento e a ação política distribuição estável e estrita da autoridade estão sendo abandonados ao capricho de uma entre os agentes encarregados da execução. burocracia tirânica"). e a profissionalização desses agentes. Na formulação do tipo ideal weberiano de L. /1 hifJCfUCi_! como jator político. A su- burocracia, E. Chinoy inclui as seguintes ca- posta facilidade com que a burocracia - teo- racterísticas: 1) cargos ou empregos bem de- ricamente puro instrumento executivo finldos; 2) ordem hierárquica com linhas de tende a se apoderar das fontes do poder, su- üutoridade e responsabilidade bem delimita- plantando de fato, embora quase nunca de das; 3) seleção de pessoal à base de qualifi- direito, a atividade política. tem sido alvo cações técnicas ou profissionais; 4) normas de críticas. Como já se pode perceber nas e regulamentos para os atos oficiais; 5) segu- definições e opiniões anteriormente citadas, rança no cargo e possibilidade de carreira o advento do intervencionismo estatal, so- \Chinoy. E. La sociedad. México, FCE, 1966. bretudo nos campos das liberdades indivi- p. 200). duais e da economia privada. reforçou a Os traços apontados indicam ao mesmo sensação de poder em mãos da burocracia. tempo os momentos de racionalidade, impes- primeiro como delegação do Executivo para soalidade nas relações, divisão do trabalho. levar a cabo o crescente número de funções mecanização ou rotinização, etc. dele exigidas, depois como império dos téc- As idélas de Max Weber tiveram conside- nicos, exercido até mesmo cortra a vontade rável influência sobre os estudiosos norte- dos políticos. americanos de teoria de governo e ciência da Simultaneamente se apontaI a a irrespon- administração. Entre os primeiros destaca-se sabilidade dos burocratas, por cujas decisões C. J. Friedrich, que em seu COl1stitutional se responsabilizavam os políticos que as ado- goverl1lllel1t alld democracy (Boston, Ginn. tavam, e também os direitos que podiam ser 1950) define burocracia através de seis ca- gravemente afetados por esse crescimento ili- racterísticas essenciais: diferenciação funcio- mitado e incontrolável do escalão executivo nal, . profissionalização, organização e disci- da atividade política. Nos países de regime plina hierárquica, métodos objetivos, precisão democrático, especialmente. essa tomada ir- e continuidade, e discricionalidade. responsável do poder pelos técnicos burocra- A. H. Appleby considera a burocracia um tas foi vista como gravíssimo ataque às bases equivalente inexorável do "fenômeno da in- políticas. teração sistemática entre várias pessoas liga- A sistematização pseudocientífica dessa das em termos comuns e complexos" (Bu- evolução da burocracia atingiu o seu clímax, reaucracy and the future. In: The anllals 01 com extraordinário aparato, no período entre lhe Americal1 Academy 01 Polítical and So- as duas guerras mundiais. Não é de estranhar cial Sciellce, Mar. 1954. p. 136. Esse volume que tenha sido a Inglaterra. com sua tradição traz trabalhos da maior importância sobre o liberal e democrática, o país que mais sen- tema. Ver especialmente os de A. Brecht, tiu a crise de suas instituições ante a tecni- O. G. Stahl, M. E. Dimock, H. A. Simon e ficação da ação estatal e a diferenciação ad- E. Lane). Por sua vez, Herbert A. Simon ministrativa perante a qual capitulam o elei- acha que burocracia e organização em grande torado e os parlamentos. [Os paladinos da escala são praticamente sinônimos. campanha antiburocrática na Inglaterra fo- Atualmente o sentido vulgar de burocracia ram G. Hewart Hewart e C. K. A1\en, com já não é aceito por nenhum tratadista res- suas respectivas obras de títulos bastante ex- ponsável de ciência política nem de adminis- pressivos, The new despotismo our wonder- tração. W. A. Robson (Burocracia y demo- land 01 bureaucracy (New Y ork, Cosmopo- cracia. San José, Nacional, 1962) é muito litan, 1929) e Bureaucracy triumphant (Lon- explícito a esse respeito: "O homem comum, don, Oxford Univ. Press, 1931). A obra que o jornalista e a maioria dos políticos insistem representa o ponto mais alto dessa tendência em confundir burocracia com as enfermida- é sem dúvida a famosa The mallagerial revo- des de que padece de vez em quando. Que lution (New York, John Day. 1941), de Ja- ela às vezes adoece, é indubitável; mas seria mes Burnham, embora escrita num momento um erro identificar a burocracia com os seus em que a corrente contrária adquiria pleno fracassos e condená-la de antemão por causa vigor.] deles. Aconteça o que acontecer, a burocra- cia há de existir. ~ uma atitude sábia aceitá- r. \r.:~ a a\'a~anche de críticas, na maioria la como elemento necessário do mundo mo- de fundo demagógico, impunha-se um trata- derno, e esforçar-se por melhorá-la. Temos
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de e5tar conscientes de todos os perigos que "'eslrutura pós-burocrática das sociedades co- cercam o indivíduo e a comunidade quando munistas", como a URSS, onde não existe a burocracia adoece." nenhuma pretensão, como no modelo webe- Essa mesma idéia de uma contribuição po- riano. de separar a burocracia da adesão sitiva e essencial da burocracia à organização política. Antes, pelo contrário. política e à estruturação social atual foi ex- Por último, cabe notar a carência de es- pressa de maneira parecida mas partindo-se tudos científicos sociais sobre a burocracia de ou:ro ponto de vista: "A burocracia tem na área de língua espanhola. Talvez uma sido não apenas um instrumento eficaz que das poucas exceções seja a coletânea de deu ao Estado uma organização funcional estudos do espanhol Carlos Moya intitulada adequada; tem sido também, e sobretudo, o Burocracia y sociedad industrial (Cuadernos elemento que mais tem contribuído para a para el diálogo. Madrid, Edicusa, 1972), em formação do caráter objetivo das instâncias que se combinam precisamente a análise de poder e autoridade do Estado" (Fueyo. weberiana como ponto de partida para o es- I. F. La morfologia dei poder político y la tudo empírico da administração espanhola e burocracia). Em suma, de elemento tirânico uma perspectiva crítica afim à das correntes que põe em perigo as liberdades individuais sociológicas contemporâneas mencionadas an- e " atividade do político, a burocracia pas- teriormente. sou a ser considerada como o instrumento de execução mais eficaz para o Estado e Manuel Pérez Olea mc:lOS oneroso para o particular, entre todos os instrumentos imagináveis pela teoria. .'lfota: Em língua portuguesa podem ser ci- Merton relacionou uma série de inconve- tados. entre outros, os seguintes trabalhos nientes da burocracia: por exemplo, o fari- sobre burocracia: Cavalcanti, Themistocles B. saísmo ou ritualismo - i.e., a idolatria dos et alii. Burocracia e Estado moderno. In: meios em detrimento dos fins; a rotinização; Revista de Ciência Política, Rio de Janeiro. o ,uperconformismo; a ineficácia da organi- FGV, 20(1):59-84, jan./mar. 1977; Lodi, João za.;ão burocrática em conseqüência do dis- Bosco. A anti-administração vai substituir a tanciamento; a aplicação de medidas novas, burocracia? In: Exame, São Paulo, (92):99- et.:. (Merton, R. K. Teoria y estructura so- 106, jun. 1975; Oliveira, Gercina Alves de. cia!~s. México, FCE, 1964. capo 6.) !\. burocracia weberiana e a administração federal brasileira. In: Revista de Administra- A recente pletora de estudos científico· ção Pública, Rio de Janeiro, FGV, 4(2):47- sociais sobre burocracia não deve, no en- 74, jul./dez. 1970; Fracasso, Edi Madalena. tanto. levar à conclusão fácil de que a crítica O Executivo municipal: um estudo prelimi- ou o conceito pejorativos de burocracia te- nar da burocracia municipal. In: Revista de nham desaparecido. Pelo contrário, pode-se Administração Pública, Rio de Janeiro, FGV. afirmar que a crítica ganhou maior agudeza. 4(1):33-78, jan./jun. 1970; Daland, Robert T. como no caso da conhecida obra de C. N. Burocracia no Brasil: atitudes de executivos Parkinson, Parkinson's law and other studies civis de alto nível em relação à mudança. in administration (Boston, Houghton Miff\in, In: Revista de Administração Pública, Rio 1957). de Janeiro, FGV, 7(4):5-34, out./dez. 1973; t preciso levar em conta também que, Bavu, Immanud Kilima. A burocracia em numa posição não muito distante do "pessi- mudança: uma visão di agnóstica. In: Revista mismo burguês" de Max Weber, a sociologia de Administração Pública, Rio de Janeiro. crítica de Marcuse da chamada escola de FGV, 8(3):5-24, jul./set. 1974; Bayer, Gus- Frankfurt e até o próprio C. W. Mills supõem tavo F. Burocracia e política no Brasil: notas lima crítica do processo de crescente buro- exploratórias. In: Revista de Administração cratização da sociedade industrial tanto ca- Pública, Rio de Janeiro, FGV, 9(1):68-89 pitalista como socialista. Esse tipo de crítica jan./mar. 1975; Tragtenberg, Maurício. Buro- refletiu-se na ideologia do movimento de cracia e ideologia. São Paulo, Ática, 1977. maio de 1968 em Paris e está na base da O acesso às obras de Max Weber e outros ideologia de todos os movimentos atuais de teóricos da burocracia, em língua portugue- contracultura e de choques de gerações. sa. foi facilitado com a publicação de uma 1: bom não esquecer o aparecimento de coletânea organizada por Edmundo Campos, sistemas sócio-políticos muito distanciados do Sociologia da burocracia (Rio de Janeiro. tipo ideal de burocracia weberiana surgidos Zahar. 1976). empiricamente nos Estados ocidentais à épo- ca do autor. De um lado estão os países do Armando M. da Cunha Terceiro Mundo recentemente libertados, Anna Maria Campos para os quais a racionalização administrativa tem sentido muito diferente do que tinha Ver também: ADMINISTRAÇÃO para os velhos países europeus; de outro RACIONALIZAÇÃO lado, o fenômeno que Bendix chamou de (Economia)
Elites políticas e legislação social na Primeira República (1891-1926): a questão social, o federalismo e o legislar sobre o trabalho na Primeira República brasileira