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ESTADO, GOVERNO E ADMINISTRAÇÃO 5

Estado, Govêrno e Administração


B e n e d ic t o S il v a •

ÔDAS as ciências circulam através de con­ Estado é um conceito fundamental da ciência


T ceitos próprios, isto é, a comunicação cientí­ política. Se tentarmos decompô-lo miudamente,
fica entre o autor e o leitor, entre o professor e o veremos que êle inclui tôda a vida social. Quando
aluno, realiza-se por meio de têrmos adequados, ouvimos, lemos, pronunciamos ou escrevemos a pa­
constituídos em sistemas de linguagem. lavra estado, para designar uma sociedade política,
O emprego de conceitos convencionados, em interpretamos ou fazemos uso de um símbolo que
lugar de descrições ou enumerações de conjuntos sintetiza numerosos atributos. A descrição analí­
de fatos ou elementos, racionaliza o comércio cien­ tica do Estado seria, pois, longuíssima e pratica­
tífico e simplifica a elaboração da ciência. O em- mente intratável.
Prêgo, por exemplo, do rótulo água mineral subs­ Porque a teoria política seja a ciência do Estado,
titui uma descrição analítica, geralmente complexa, cuja origem, natureza e forma investiga e discute,
dos respectivos elementos constituintes. Estado é o seu conceito mais importante. E, como
Ao passarmos em revista as vicissitudes das ciên­ todos os conceitos das ciências sociais, não tem um
cias sociais, incluímos, entre os fatores responsá­ sentido pacífico, incontroverso, susceptível de con­
veis, a carência de uma terminologia sistemática duzir a mesma noção para tôdas as pessoas.
(1) . Ao passo que, no trato das ciências exatas, A instituição social que hoje chamamos Estado
os têrmos conduzem os mesmos significados e des­ surgiu e desenvolveu-se antes de ser inventada a
pertam as mesmas representações nos diferentes arte da escrita; era conhecida por “nomes diversos
indivíduos, no das ciências sociais os vocábulos no passado e a êsses nomes não se deve atribuir
veiculam e transmitem noções e sentidos diferentes correspondência exata com o moderno” (3) . A sua
entendidos ao sabor do arbítrio de cada mter- origem e os principais estágios de sua evolução per­
pretador. dem-se no nevoeiro da prehistória. Trata-se, ao
E’ isso precisamente que ocorre com a chamada que parece, de uma das instituições historicamente
Ciência Política. “Diferente das ciências naturais, mais remotas de quantas o homem haja criado. O
s ciência política tem como característica a falta têrmo Estado, porém, apareceu muito mais recente­
de uma nomenclatura precisa e geralmente aceita. mente do que seria de se supor (4 ).
Vocábulos como “estado”, “govêrno”, “política”, “ad­ Segundo K r a n e m b u r g , cientista político e pro-
ministração”, “nação”, “nacionalidade”, “liberdade”, pessor da Universidade de Leiden (Holanda), a
democracia’’, “oligarquia”, “povo”, e muitos outros, palavra Estado foi usada pela primeira vez nas
são empregados em acepções diferentes e condu­ informações dadas pelos embaixadores das Repú­
zem diferentes significados para diferentes pessoas. blicas Italianas do século XV, para designar, origi-
Freqüentemente êsses vocábulos têm um sentido
técnico ou'científico e um sentido popular, distin­ (3 ) O rlando M . C arvalho , Resumos de Teoria G e­
ral do Estado, Belo H orizonte, 1941, v o l. I, p á g . 16.
tos entre si, embora empregados sem discrimina­ (4 ) “D ernière rem arque en fin . É ta t, italien Stato, es-
ção” (2 ) . pagnol Estado, allem and Staat, anglais State : si incom-
p lète soit-elle, cette revue de vocables su ffit à vous mon-
tre r q u ’il s’ag it là d ’u n m o t' frçonné p a r les m odernes à
( * ) N otas de um a aula dada, em 1943, a um grupo leur usage — d ’un m o t q u ’à des dates relativ em en t ré-
centes, ils se sont transm is de pays à p ay s. U n m ot voya-
aluncs do P ro f. A lfredo N asser.
geur, véhiculant une notion qui s’em p ru n te — une d e ces
( ! ) B enedicto S ilva , As Ciências do Espírito e as notions qui, ne restan t pas la pro p riété d ’un p e tit groupe
Ciências da Natureza, “R evista do Serviço P úblico” , feve­ d ’homm es retranchés dans leu r particularism e, se rendent
reiro, 1944 comm unes à un nom bre plus ou m oins grand de nations
(2) Jam es G a rn e r, Political Service and G overnm ent, solidaires” . — L U C IE N F e b v r e , D e 1'État historique a
N ew York, 1935, pág. 2. VÊtat vivant, in “Encyclopédie F rançaise” .
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nàriamente, a totalidade das funções permanentes Dentre as várias teorias engendradas e hipóteses
de determinado governo. Já então, o têrmo tinha formuladas sôbre a origem do Estado, apenas três
mais de um sentido. No seu significado secundário, ou quatro lograram notoriedade e longa aceitação
nomeava’a personalidade dos encarregados das fun­ na literatura respectiva. Citemos : a teoria do di­
ções governamentais, isto é, nomeava os governan­ reito divino, segundo a qual o Estado é um ato da
tes com os seus seguidores e agregados. À fôrça de vontade de Deus, diretamente revelada aos gover­
designar, ora a totalidade das funções permanen­ nantes; a teoria do contrato social, que vê no
tes do govêrno, ora as autoridades que as exerciam Estado uma criação deliberada dos homens, medi­
(Stato dei M ediei), ora as duas coisas ao mesmo ante consentimento coletivo; a teoria natural —
tempo, o têrmo Estado passou por fim a designar talvez a mais antiga de tôdas, pois remonta a
também o território do govêrno (Stato di Firenze), A r i s t ó t e l e s — a qual sustenta que o homem,
a unidade territorial, o país ou, em linguagem mo­ animal político por predestinação, não tem exis­
derna, a área administrativa sôbre a qual os go­ tência fora do Estado e, assim, é a própria natu­
vernantes exerciam as respectivas jurisdições (5). reza do homem que dá origem àquele; a teoria da
Segundo G a r n e r , a palavra Estado (Stato) foi fôrça, que deriva a origem do Estado da sujeição
introduzida na moderna literatura da ciência po­ do fraco pelo forte, mediante o emprêgo da vio­
lítica por M a c c h i a v e l l i , que, no seu famoso livro lência .
II Principe (1523), observou introdutòriamente “Somente em tempos recentes, com a expansão
que “todos os poderes que têm tido e têm autori­ do conhecimento histórico, o aperfeiçoamento da
dade sôbre os homens são Estados e são ou Re­ crítica e a aceitação dos princípios da evolução, se
públicas ou Monarquias” ( 6 ) . “Tutti li Stati, tutti conseguiu uma teoria satisfatória sôbre a origem
è dominii che hanno avuto et hanno império sopra do Estado. Ainda assim, o nosso conhecimento
li uomini, sono stati e sono o republiche o prin- sôbre os primeiros períodos é incompleto e, em
cipati” — eis, na íntegra, tal como aparece no muitos aspectos, bastante discutível. Em t,êrmos
original, o primeiro período de II Principe. A defi­ gerais, pode dizer-se, contudo, que a teoria mo­
nição de M a c c h ia v e l l i faz de Estado gênero e de derna da evolução condena, por igual, tanto a su­
República e Monarquia espécies. Etimològicamen- posição de que o Estado seja uma criação divina,
te, república (res publica) quer dizer, coisa pública, como a de que seja o resultado da conquista, ou
govêrno do povo; e monarquia, govêrno de um, do acôrdo entre os homens. À luz desta teoria,
govêrno do rei. Data dêsse período o uso conven- considerá-se o Estado como o produto de um de­
cinal do termo genérico Estado. “No curso dos senvolvimento gradual, como a conseqüência na­
séculos XVI e XVII apareceram as palavras State, tural das necessidades dos homens, que exigem e
État e Staat, respectivamente na literatura inglêsa, requerem uma sociedade ordenada” ( 10) .
francesa e alemã” (7) . A teoria histórica ou evolucionária procura con­
Seja como fôr, “o con,ceito de Estado, como ciliar os diferentes fatores que atuaram na forma­
entendemos hoje, só começa a precisar-se com ção e desenvolvimento institucional do Estado.
M a c c h i a v e l l i no Principe” ( 8 ) . E’ satisfatória na medida em que consegue essa
A origem do Estado constitui um dos grandes conciliação. .
enigmas da ciência política. “Antropólogos e so­ Mas se explica, por um lado, a evolução do Es­
ciólogos mais de uma vez têm aventurado conjec­ tado, deixa, por outro, o mistério de sua origem
turas sôbre êsse ponto; historiadores têm tentado envolto na mesma profunda obscuridade. Parece
remontar seu material ao passado remoto; pensa­ que a teoria da fôrça ainda é a mais verossímil
dores políticos têm apresentado várias hipóteses; de quantas foram até agora aventadas sôbre a
mas todos êsses esforços não resistem ao teste da origem do Estado. Há numerosas opiniões, nota-
verdade científica” (9 ). damente de pensadores germânicos, em- apoio dessa
teoria. -
(5 ) Teoria Política, trad. esp., M éxico, 1941, pág. 75. “O Estado, distinto da organização tribal, começa
(6 ) J am es GArner , op. c it., pág. 2 . com a conquista de uma raça por outra” — diz
(7 ) J am es G arner , op. c it., loc.cit.
(8 ) O rlando M . C arvalho , op. c it., pág. 15.
(9 ) H arvey W alkf .r , Public Administration, New (10) R aym ond G e t t e l l , História de las Ideas P olíti­
York 1937, págs. 20-1. cas,trad . esp ., Barcelona, 1937, vol, I, págs. 38-9.
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N i e t z s c h e . Sim, “a violência é o agente que cria o engenhosa mas carente de espírito científico. Para
Estado”, confirma O p p e n h e i m e r . “O Estado é o H a n s K e l s e n , “o Estado é uma ordem da con­
resultado da conquista, o estabelecimento dos vito­ duta humana” . Para O r t e g a y G a s s e t , “el Es­
riosos, como casta dominante, sôbre os vencidos” tado es ante todo prpductor de seguridad” . Já
■— intervém R a t z e n h o f e r . “O Estado é o produto L é o n D u g u i t vê no Estado “uma cooperação dos
da fôrça e subsiste pela fôrça” — conclui Gum- serviços públicos, organizados e controlados pelos
PL o w i c z . “O aforismo de V o l t a i r e — o primeiro governantes” . * *
rei foi um guerreiro afortunado — é uma forma O têrmo Estado, na linguagem política, jorna­
concisa e cheia de sabor para expressar a mesma lística e administrativa da atualidade, é freqüen­
idéia” ( 11) . temente empregado como sinônimo de nação, so­
Ainda recentemente, o historiador, e filósofo ciedade, país, govêrno, potência. Não raro, é em­
americano W i l l D u r a n t , no tomo I da sua His­ pregado também para expressar a idéia da ação
toria da Civilização, indica a seguinte origem do coletiva da sociedade ,em contraposição à ação
Estado : “Um rebanho de louros animais de presa, individual, como quando falamos da fiscalização
uma raça de conquistadores e senhores que' com da indústria pelo Estado, da educação ministrada
toda a sua organização guerreira e todo o seu pelo Estado, etc. “A família, constituída pelo ca­
Poder crava as suas terríveis unhas sôbre uma samento indissolúvel, está sob a proteção especial
População tremendamente superior em número do Estado” (1 3 ). “A intervenção do Estado no
mas sem forma — tal é a origem do Estado”. domínio esconômico só se legitima para suprir as
Por ser a mais importante, a mais presente de deficiências da iniciativa in divid ual...” (1 4 ).
todas as instituições sociais, o Estado tem sido Êstes dois textos constitucionais ilustram o emprêgo
definido de cem maneiras diversas, partindo os da palavra Estado para designar a ação coletiva
definidores de princípios e pontos de vista dis­ da sociedade.
tintos. Entre o Estado confundido com a comuni­ Nos países de estrutura federal, como os Estados
dade politicamente organizada e o Estado consi­ Unidos, Canadá, Brasil e Austrália, a palavra Es­
derado como peça do mecanismo governamental tado é empregada indiferentemente para indicar o
de uma comunidade, mas claramente distinta da todo, isto é, a federação, e cada uma das partes,
mesma, entre êsses dois extremos estão situados, ou sejam os componentes federados. “O Brasil é
conforme observa C o l e (12), numerosos pontos um Estado Federal, constituído pela união indis­
de vista, a que correspondem outras tantas defini- solúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Ter­
Çoes. Não nos será difícil entremostrar a riqueza ritórios”, diz o art. 3.° da Constituição Federal de
e variedade das opiniões sôbre o Estado, emitidas 1937.
em diferentes épocas por pensadores, filósofos, Como se vê, o conceito de Estado enleia-se num
sociólogos, jurisconsultos, políticos e cientistas so­ emaranhado de idéias contraditórias, que o tomam
ciais . um dos mais perplexionantes das ciências políticas.
O Estado é uma união de famílias e de comu­ Abandonemos, pois, qualquer veleidade de ten­
nas, bastante a si mesma, não apenas para viver, tar transmitir o conceito de Estado por meio de
mas para viver bem e feliz. O fim do Estado é a definições. Vejamos quais são os seus elementos
Prosperidade d;a vida”, segundo A r i s t ó t e l e s . constituintes. De acôrdo com os mais modernos
Estado, eis como se denomina o mais frio de e autorizados cientistas políticos, como G a r n e k ,
todos os monstros!” — exclama N i e t z s c h e . Para G e t t e l l , M a c I v e r , W i l l o u g h b y e muitos outros,-
^ a s t ia t , “o Estado é uma grande ficção, através
cinco atributos concorrem para integrar o Estado,
da qual cada um se esforça por viver à custa de a saber : 1. território; 2 . população; 3 . govêrno;
todos os outros” . Para H e g e l , “ o Estado é a 4. soberania; 5. permanência.
1déia divina tal como existe sôbre a terra” . Para
Mais explicitamente : o Estado pressupõe, em
I

S p e n g l e r , “ o Estado é a história em repouso e a


história é o Estado em movimento”, definição primeiro lugar, uma base física, isto é, um território
claramente definido; pressupõe, ao mesmo tempo,
( 11) K ra n e m b u rg , o p . cit ■, p á g . 19.
tr ’/ 2 '> ■D •H . C o le , Guia de la Política Moderna, (13 ) Constituição Federal de 1937, a rt. 124.
■ chilena, Santiago, 1937, pág. 460. (14) Constituição Federal de 1937, a rt. 135.
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uma população politicamente organizada; pressu­


põe um conjunto de órgãos de expressão e realiza­
ção dos’ desígnios coletivos, ou seja, um govêrno Já vimos que a instrumentalidade política, o
constituído sob êste ou aquêle princípio; pressupõe conjunto de órgãos de expressão e realização da
ainda que êste govêrno, ao deliberar sôbre as ques­ vontade coletiva no Estado recebe o nome de
tões de economia doméstica, o faça üvre e sobe­ govêrno. E aqui também deparamos um conceito
ranamente, a cavaleiro de qualquer interferência difícil da ciência política, instável como o primeiro
coativa externa e que disponha da faculdade de e igualmente formulado de diferentes maneiras.
tratar, de igual para igual, com outros govemofe, “O govêrno é a soberania nacional em atividade
entretendo, assim, relações exteriores; pressupõe, pelos seus órgãos” — definiu belamente Rui B a r ­
finalmente, existência contínua e perfeita, isto é, b o s a . “O govêrno é a reação universal necessária

permanência no tempo e estabilidade no espaço. — espontânea a princípio e regularizada por fim


E’ fato que os atributos do Estado estão sujeitos — do conjunto sôbre as partes”, segundo a famosa
a modificações, exceto, talvez, a soberania, que é definição de A u g u s t o C o m t e .
abstrata. A população, sua composição, o território “Os três ramos do poder público, o legislativo,
e a forma de govêrno são susceptíveis de mudança. o executivo e o judiciário; os ministérios, as co­
O conceito de Estado não é, por conseguinte, um missões, os serviços, as juntas; os dirigentes e os
conceito fixo; é um conceito volante, que se modi­ empregados — tudo isso junto forma o govêrno.
fica freqüentemente. Seja como fôr, porém, é um O govêrno é mais específico do que o Estado e
conceito fundamental da ciência política, indispen­ compreende mais definidamente aquéles que são
sável ao seu trato e desenvolvimento. considerados, ou antes, que constituem a autori­
“Reconhecendo tais limitações e restrições, po­ dade pública” (1 8 ).
“O Govêrno consiste no quadro fundamental de
demos definir o Estado, toscamente, como uma or­ leis, na organização e no procedimento por meio
ganização política permanente, suprema dentro de dos quais se dá efeito ads desejos da população e
determinado território e independente de fiscali­ daqueles que agem em nome dela. Também há
zação legal externa” (1 5 ). um sentido mais genérico em que o têrmo govêrno
“Como conceito da Ciência Política e do Direito pode ser usado. Assim, tanto se pode falar do
Pblico, o Estado é uma comunidade mais ou menos govêrno das bibliotecas, como do govêrno das es­
numerosa de pessoas, independente ou quase inde­ colas ou de outras associações. Quando empre­
pendente de controle externo, ocupando perma­ gado neste sentido, o vocábulo govêrno significa
nentemente uma porção definida de território e a organização e a administração de uma empre­
possuindo um govêrno organizado, ao qual a gran­ sa” (19) .
de massa de habitantes presta obediência habi­ Todo grupo humano, constituído para realizar
tual” (1 6 ). um objetivo comum aos seus componentes, assu­
me automàticamente a forma de organização.
Finalmente, podemos dizer com G e r t r u d e A n n Com efeito, a primeira organização surgiu precisa­
J a c o b s e n e M i r i a n L i p m a n n que “um Estado é
mente no momento em que se realizou a primeira
uma parte da sociedade, legalmente independente associação de esforços entre dois seres humanos,
de controle externo e que ocupe, em caráter per­ para a consecução de um fim comum a ambos —
manente, um território definido, dentro do <7uai fôsse catar alimentos, fôsse capturar animais pe­
mantenha govêrno adequado” (1 7 ). rigosos .
E ’ intuitivo que, dentre os cinco mencionados Dessa primitiva e -remotíssima fusão de esfor­
atributos do Estado, aquêle que oferece mais in- ços ao govêrno hodierno, que é a mais complexa
terêsse ao estudante de administração pública,é o organização até agora criada, o desenvolvimento
da capacidade dos homens, para se associarem ein
govêrno. ' busca de objetivos comuns, praticamente se con­
funde com o progresso da humanidade. A com­
(1 5 ) H a in e s & HAINES, Principies and Problems of plexidade e a envergadura da organização go-
Government, New York, 1934, p ág . 49.
(1 6 ) J a m e s G a r n e r , o p . c it., p ág . 52. (18) H aines & H aines , o p . cit., loc. cit.
(1 7 ) An Outline of Political Science, New York, 1937, (19) M a r s h a ll E . DlMOCK, Modern Politica and
p ág . 23. Adm inistration , New York, 1937, pág. 19.
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vernamental contemporânea nada mais represen­ o govêrno exerce duas espécies de atos, poderes
tam do que uma expansão, em escala vertiginosa, ou funções : a política, que é a formulação da von­
da rudimentaríssima associação de esforços dos tade do Estado, e a administração, que é a exe­
homens bestiais das cavernas. cução dessa vontade.
O que hoje chamamos govêrno é, conceituai e Com efeito, quando intimamente analisado, todo
pràticamente, uma organização como outra qual­ e qualquer ato de uma autoridade ou agente go­
quer, sujeita às mesmas leis de divisão e integra­ vernamental, seja êle o próprio chefe do Estado,
ção do trabalho que condicionam as demais em- ou um senador, ou um juiz, ou um oficial de jus­
prêsas humanas. Embora subordinada a essas leis tiça, ou um amanuense, ou um marinheiro, há de
fundamentais, a organização governamental é sus­ ser necessàriamente um ato político ou um ato
ceptível de assumir várias formas em vários graus administrativo. É político quando, como no caso
de densidade, qualquer que seja a sua estrutura. do deputado que discute a lei, do especialista que
esclarece determinadas condições técnicas de es­
A observação ordinária basta para convencei pecificação necessária no corpo de uma lei ou re­
de que, quanto mais cresce a organização gover­ gulamento, do magistrado que interpreta a lei ou
namental em densidade, tanto mais patente se a declara inconstitucional, contribui para a. fixa­
torna a unidade irredutível da instituição que de­ ção da vontade do Estado. É administrativo,
nominamos govêrno. Daí o descrédito em que caiu quando, como no caso do juiz que aplica a lei a
a clássica doutrina tripartida, que secciona o go­ uma situação concreta, do funcionário público que
vêrno em três poderes distintos. Dai, também, a emite um parecer em um processo de pagamento,
fortuna da nova concepção, hoje aceita por tantos de um coletor que lança os contribuintes e arre­
pensadores. políticos, de que o govêrno é, em es­ cada os impostos, faz parte da execução da von­
sência, uma entidade orgânica e não um conjunto tade do Estado.
de organismos justapostos, um todo indivisível e Nem é outra, aliás, a lição do Professor M a r s ­
não um grupo de poderes ou funções independen­ h a l l D i m o c k , já citado. D iz êle : “Há dois pro­
tes -— em suma, uma unidade e não uma trindade, cessos fundamentais de govêrno: a formulação da
°u pluralidade. política e elaboração do programa e a sua exe­
De acôrdo com êsse ponto de vista, os orgãos c cução. Govêrno é política e administração. Como
serviços (ministérios, departamentos, secretaria? veremos em seguida, está longe de haver uma li­
de Estado, divisões, etc.) que integram determi­ nha divisória entre essas duas funções. Uma das
nado govêrno, por numerosos e funcionalmente di­ tarefas importantes do cientista político é exata­
ferenciados que sejam, nada mais representam do mente mostrar como a política e a administração
que partes de uma só e única organização. se acham interrrelacionadas e interdependen-
A organização governamental, isto é, o govêrno, tes” ( 20) .
• * ,• ,

vem a ser, pois, um conjunto de órgãos, o instru­ No Estado democrático moderno, pelo menos
mento político-administrativo, a emprêsa, enfim, teoricamente, a lei é uma “objetivação da vontade
Por intermédio da qual a coletividade politica­ coletiva” . Mas, nem por se transformar em lei, a
mente organizada formula, adota, executa e con­ vontade coletiva tem o dom de se realizar por si
trola a sua vontade em relação aos interêsses ge­ mesma. É indispensável algo que lhe dê conteú­
rais . É por meio do govêrno que o agregado hu­ do prático. Promover a aplicação da lei, isto é,
mano enfrenta e resolve, ou tenta resolver, os pro torná-la efetiva — eis aí o fim específico da admi­
klemas que, por sua complexidade, envergadura e nistração .
custo transcendem a capacidade de realização e as A êsse propósito, podemos recorrer, mais uma
Posses dos indivíduos e das pessoas jurídicas de vez, à opinião do Professor D i m o c k , que se expri­
direito privado. me da seguinte maneira : “Depois que o público
O govêrno tem por fim formular e fixar a von­ instrui os seus representantes e êstes transformam
tade coletiva em diplomas legislativos, em leis, c as políticas em leis, surge em seguida o problema
dinamizá-los depois em operações administrativas. de realizar o programa e de executar a lei. Tôda
Como instrumentalidade, por meio da qual o lei cria, assim, um problema de administração...”
c°rpo político, constituído em autoridade superior,
formula a sua vontade e executa os seus desígnios, (2 0 ) Op'.- cit., loc. cit.
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“A administração pública é, pois, a organização Além dessas definições, postas em circulação


governamental, o pessoal e os procedimentos en­ por cientistas políticos e tratadistas que têm auto­
volvidos na execução das leis. A administração ridade para opinar sôbre a matéria, a palavra
pública é o Estado em ação, é o govêrno em ativi­ administração, na linguagem corrente, como na
dade. Os serviços administrativos transformam linguagem técnica, figura com várias outras acep­
planos em realizações” (21) . ções . • -
Como nosso intuito, no presente trabalho, é Em sentido formal, por exemplo, indica o con­
reunir material disperso — doutrinário e factual junto de poderes e obrigações concernentes à exe­
— sôbre os conceitos de Estado, Govêrno e Admi­ cução dos desígnios coletivos (políticas). Exem­
nistração, vejamos em seguida em que consiste a plos : “A administração pública é o conjunto de
-última. serviços públicos que tem por objetivo atender às
* necessidades e aos interêsses coletivos” (2 7 ). “Na
linguagem formal, dá-se o nome de Administração
“Administração pública é a execução detalhada ao conjunto de entidades e órgãos que integram a
e sistemática da lei pública. Tôda e cada aplica­ estrutura do Estado” (2 8 ). “A reorganização do
ção da lei geral é um ato de administração. O lan­ Serviço de Alimentação da Previdência Social
çamento e a coleta de impostos, por exemplo, o ( S .A .P .S .) foi trabalho de invulgar importân­
enforcamento de um criminoso, o transporte de cia, pelo seu valor e pelo vulto de suas reper­
malas postais e a distribuição de correspondência, cussões, quer no âmbito da Administração Públi­
o equipamento do exército e da marinha, o recru­ ca, quer também no seio das classes trabalhado­
tamento militar, etc., são todos obviamente atos ras” (2 9 ).
de administração” (22). Em sentido estrutural, a palavra administração
“Em ciência política, o têrmo administração po­ nomeia, igualmente, o conjunto de serviços públi­
de ser empregado em dois sentidos; No sentido cos existentes em cada nível de govêrno. Exem­
mais lato, o têrmo denota o trabalho envolvido na plos : “Assim, fala-se na administração nacional,
conduta dos negócios públicos, irrespectivamente na estadual e na local como significando o con­
dêste ou daquele particular ramo de govêrno. As­ junto dos serviços que, em cada uma dessas juris­
sim, tanto é próprio falar-se na administração do dições, se destinam a executar as diretrizes expos­
ramo legislativo, na administração da justiça, ou tas pelas autoridades competentes” (3 0 ). “Tratar
dos negócios judiciários, na administração do po­ do processo administrativo em têrmos'de adminis­
der executivo, como na administração dos negó­ tração municipal, administração estadual ou admi­
cios do ramo administrativo, ou na conduta dos nistração nacional é subentender uma distinção
negócios de govêrno em geral. Em seu sentido que realmente não existe” (3 1 ). “Êste sistema
mais restrito, o têrmo refere-se exclusivamente às não nos convinha, porque a França tem um regime
operações do ramo administrativo” (2 3 ). centralizado e o Brasil, já no tempo do Império,
“Administração pública. . . é a gerência de ho­ era um ensaio de federação, pois, ao lado da admi­
mens e materiais na realização dos propósitos do nistração geral e inteiramente independente desta,
Estado” (2 4 ). existia a provincial” (3 2 ).
“Administração pública é a ciência e a arte de Em sentido funcional, a palavra administração
gerir aplicada aos negócios públicos” (2 5 ). designa o exercício dos poderes criados e o cum-
“O trabalho que o govêrno executa para dar
efetividade à lei, é chamado .administração públi­ (2 7 ) ALCIDES C r u z , Direito Administrativo Brasilei­
ca” (2 6 ). ro, Rio, 1914, 2.a edição, p ég . 19.
(2 8 ) M acchi M onteverde , Sintesis de la Adminis-
(2 1 ) Op. c it., págs. 29-30. tración Publica, M ontevideo, 1936, p ág . 25.
(2 2 ) W oodrow W ilson , citado por W h ite , Introdu- (2 9 ) Relatório do D .A .S .P . para 1941, Im prensa N a­
ction to the Study oí Public Administration, New York,
1939, pág. 4. cional, 1942, p á g . 4 1 .
(2 3 ) W . F . WlLLOUGHBY, Principies oí Public Adm i­ (3 0 ) GUSTAVO L e SSA, A Administração Federal nos
nistration, W ashington, D . C ., 1927, p ág . 1. Estados Unidos, São Paulo, 1942, p ág . 272. •
( 24 ) L e o n a rd D . W h ite , op. cit., pág. 6. (3 1 ) L eonard D . W h ite , o p . cit., p ág . 7.
(25) L eonard D . W h ite , Public Administration, in
“Encyclopaedia of th e Social Sciences” . (3 2 ) S ousa B andeira , Preleções de Ciência da A dm i­
(26) H arvey W alker , op. c it., pág. 61. nistração e Direito Administrativo, Rio, 1913, pág. 8.
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ESTADO, GOVÊRNO E ADMINISTRAÇÃO 11

primento das obrigações distribuídas por lei aos indagar se determinado pretendente a um cargo
órgãos públicos. Exemplos : “A administração pú­ administrativo reunia, ao pistolão político, o título
blica é essencialmente o processo de efetivar a de conhecer bem pelo menos rudimentos da Ciên­
vontade pública, tal como expressa na lei” (3 3 ). cia da Administração,' certamente que se exporia
*'À medida que suas funções de servir aumentam, à chacota e ao ridículo” (4 1 ). “É desnecessário
o govêrno se torna mais e mais uma questão de observar que a ciência fundamental dos grandes
administração e menos e menos um objeto de ma­ chefes — a Administração, não tem absolutamen­
nipulação política” (3 4 ). te nada de comum com as matemáticas superio­
O têrmo administração é também usado para res” (4 2 ). “Estão os tratadistas da ciência da
significar o- funcionalismo público ou o pessoal administração acordes em que “as atividades de
administrativo. Exemplos “Nas condições com­ administração geral” devem ser conferidas a ór­
plexas da atualidade, a Administração Pública gãos exclusiva e especialmente constituídos para
perdeu um pouco seu caráter de “aparelho”, “má­ êste fim. . . ” (43) .
quina” ou “instrumento”, para afirmar-se pelo con­ Em qualquer das acepções enumeradas e ilus­
teúdo humano de que se constitui” (3 5 ). “Uma tradas, Administração---- conjunto de órgãos e po­
8dministração fraca logo se perde na opinião pú­ deres, gestão, gerência, serviço, pessoal adminis­
blica; sem nenhuma fôrça moral, suas ordens se­ trativo, ciência — relaciona-se estreitamenté com
rão desrespeitadas; as leis não serão cumpri­ a execução de coisas, diz respeito à realização ou
das” (36) . “O legislador é a inteligência que for­ cumprimento de objetivos definidos .
mula a regra, ao passo que a administração é a Entendida como ciência social, Administração
fôrça mecânica que a executa” (3 7 ). vem a ser o sistema de conhecimentos pelo qual
Em sentido especial, o vocábulo administração os homens, quando trabalham juntos em busca de
nomeia uma ciência social, ramo da ciência polí­ um propósito comum, podem compreender as re­
tica . Exemplos : “Ciência da Administração é a lações, prever os resultados de seu trabalho e in­
exposição metódica dos princípios e das teorias re­ fluir nêles (44) .
lativas à ação social, positiva e direta, do Esta­ É no sentido de ciência que a palavra adminis­
do” (38) . “Tal é a competência assinalada a uma tração figura na expressão Fundamentos de Admi­
disciplina de criação recente, e que ainda não tem nistração Pública, título de um dos cursos do
limites fixos e claros — a Ciência da Administra­ D .A .S .P .
ção, cuja índole é manifestamente social” (3 9 ). Ao cabo desta longa revista de opiniões e do­
A Administração pública é aquela parte da Ciên- cumentos sôbre o Estado, o Govêrno e a Admi­
c,a da Administração que diz respeito ao Govêr- nistração, podemos concluir que :
n° e, por isso, concentra seu interêsse primordial
no ramo executivo, onde o trabalho do Govêrno é “O Estado é um modo de organizar a vida co­
realizado. . . A administração pública é, pois, uma letiva de uma dada sociedade” (45);
divisão da Ciência Política e uma das ciências so­ “O Govêrno é um instrumento do povo para
ciais” (4 0 ). “A autoridade que se aventurasse a conduta de certas atividades públicas”;
“A Administração é o processo de executar a
(33) H arvey W alker , op. c it., loc. cit. vontade coletiva, quando expressa em lei” .
(34) M arshall E . D im ock , op. cit., pág. 257.
(35) Relatório do D .A .S .P . pata 1941, Im prensa N a­ (4 1 ) L uiz S im ões L o pes , A Receita Pública — Sepa-
cional, 1942, pág. 4. ra ta do “R elatório da Comissão de O rçam ento” p ara 1942,
(3 6 )O liveira S antos , Direito Administrativo e Ciéncij Im prensa Nacional, 1942, apresentação.
da Administração, Rio, 1919, pág. 304. (4 2 ) H enri F ayol , Administración Industrial y Ge­
(37) R ib a s , Direito Administrativo, R io , pág. 66. neral, tr a d . argentina, Buenos Aires, 1940, p á g . 132.
(38) F erraris , citado por V iveiros de C astro , Trata- (43) B eatriz M. de S ouza W ahrlich , Administração
de Ciência da Administração e Direito Administrativo, Geral no Govêrno Brasileiro, in “R ev ista do Serviço P ú b li­
*°> 2.a edição, 1912, pág. 93. co” , janeiro de 1943, pág. 125.
(39) A lcides C ruz , op ., cit., pág. 25. (4 4 ) L uther G ulick , o p . cit., loc. cit.
(4 °) L uther G ulick , Papers on the Science ol Admi- (4 5 ) H . -Laski , E l Estado en la teoria y en la practi-
nistration, New Y ork, 1937, p ág . 191. ca, tra d . espanhola, p ág . 2 1 .

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