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bauNs.\é:>:-:,,,.sp IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO
HISTÓRIA ECONÔMICA
,.
DO PERIODO COLONIAL
ASSOCIACÃO
BRASILEIRA DE
PESQUISADORES
EM H ISTO RIA
ECONÔMICA
©Copyright, 1996, by Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica
H 58n História Econômica do Período Colonial/ Tamás Szmrecsányi (organizador). -2. ed.
revista. - São Paulo: Hucitec/Associação Brasileira de Pesquisadores em História
Econômica/Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial, 2002.
Direitos reservados à
Co-edição:
Apresentação vii
li
"Ciclo" do ouro e u rbanização
Caio C. Boschi
Nem Tudo o que Reluz Vem do Ouro . . . 57
Ronaldo Marcos dos Santos
Mercantilização, Decadência e Dominância 67
João Antônio de Paula
O Processo de Urbanização nas Américas no Século XVIII 77
Ili
Pecuária e culturas de su bsistência
Manuel Correia de Andrade
A Pecuária e a Produção de Alimentos no Período Colonial 99
Sumário 1 v
Maria Yedda Leite Unhares
A Pecuária e a Produção de Alimentos na Colônia 109
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Pecuária, Agricultura de Alimentos e Recursos Naturais
no Brasil-Colônia 123
IV
Ofícios, manufatu ras e comércio interno
José Roberto do Amaral Lapa
O Interior da Estrutura 1 63
Maria Helena Ochi Flexor
Ofícios, Manufaturas e Comércio 1 73
Leila Mezan Algranti
Os Ofícios Urbanos e os Escravos ao Ganho no Rio
de Janeiro Colonial (1 808-1822) 195
V
Comércio colon ial e exclusivo metropolitano
José Jobson de Andrade Arruda
Exploração Colonial e Capital Mercantil 217
Francisco José Calazans Falcon
Comércio Colonial e Exclusivo Metropolitano: Questões
Recentes 225
Pedro Puntoni
Os Holandeses no Comércio Colonial e a Conquista
do Brasil, 1540-1 635 239
Eddy Stols
Os Países Baixos Meridionais no Século XVII:
um Contramodelo do Milagre Holandês na Expansão
Marítima e Colonial 269
vi Sumário
APRESENTAÇÃO
Apresentação vii
nas que surgem e se desenvolvem em função do mesmo. Tudo isso
sem deixar de lado a questão essencial da natureza e da dinâmica
das relações entre metrópoles e colônias.
Várias contribuições aqui apresentadas chegam a ser originais,
por estarem diretamente baseadas em pesquisas documentais pró
prias e específicas. Outras fazem uma rigorosa avaliação crítica da
literatura já disponível, apresentando, sempre que necessário, as
devidas proposições ou interpretações alternativas.
Os três ensaios do primeiro bloco temático, intitulado "Escra
vismo e Grandes Lavouras, tratam da instituição e das atividades
econômicas mais importantes do período colonial. Russel Menard
& Stuart Schwartz avaliam as relações de produção escravistas em
âmbito internacional, comparando a experiência brasileira nesse
campo com a de outras regiões do Novo Mundo, principalmente o
México e o sul dos atuais Estados Unidos. Por sua vez, os trabalhos
de Vera Lúcia Amaral Ferlini e de Guillermo Palacios examinam a
difícil convivência de grandes e pequenos proprietários de escra
vos e de terras no Nordeste, focalizando, respectivamente, a pro
dução açucareira omnipresente no Litoral, e o surgimento e expan
s ão para o Interior da cultura algodoeira. Ambos têm o mérito de
chamar a atenção para a crescente presença de uma categoria so
cial bastante numerosa, mas muitas vezes esquecida pela historio
grafia tradicional - a dos agricultores livres e pobres, os futuros
moradores, cuja força de trabalho iria substituir a dos escravos a par
tir de meados do século XIX.
No segundo bloco, sob o título de "Ciclo do Ouro e Urbaniza
ção", aparecem outros três ensaios que analisam a gênese e o de
senvolvimento de um tipo de economia colonial diverso do retra
tado no bloco anterior, o qual se estruturou em torno da mineração
de ouro e de pedras preciosas. Trata-se de uma economia que con
some e compra alimentos e outros bens produzidos fora dela, e que
dá origem a uma série de atividades colaterais, tanto no campo
como nas próprias cidades mineiras. Essas novas atividades no meio
urbano e as trocas de mercadorias ensejadas pela mineração são
estudadas, respectivamente, por Caio Boschi e Ronaldo Marcos dos
Santos. Por sua vez, o ensaio de João Antônio de Paula compara o
processo de urbanização de Minas Gerais com o que houve, na
mesma época, nas colônias inglesas da América do Norte.
O terceiro bloco, igualmente integrado por três ensaios, permite
aprofundar a análise das atividades subsidiárias à economia de
Apresentação ix
de José Jobson de Andrade Arruda e de Francisco José Calazans
Falcón. As contribuições de Pedro Puntoni e de Eddy Stols têm um
caráter mais marcadamente empírico, e dizem respeito à participa
ção, inclusive bélica, de holandeses e flarnentos no referido comér
cio.
Por motivos técnicos, tivemos que deixar de incluir neste volu
me a comunicação de nossos colegas mexicanos, Jorge Silva Riquer
& Maria José Garrido Aspiró, "La ciudad de Valladolid y su entor
no agropecuario: algunas formas de abasto al mercado urbano, 1 793-
1800". Não queremos, entretanto, deixar de registrá-la e de agra
decer a participação no Congresso de 1993 do primeiro desses
Autores. Os mesmos agradecimentos, obviamente, são também
devidos a todos os autores dos trabalhos aqui publicados, e ainda
a nosso colega e amigo Fernando Antonio Novais, que muito con
tribuiu à organização e realização daquele evento, mas que, devi
do a seus múltiplos afazeres, ficou infelizmente impossibilitado
de participar da edição deste volume.
Agradecimentos são também devidos às entidades que apoia
ram e patrocinaram a realização daquele evento, notadarnente: o
Centro de Memória da UNICAMP; os Institutos de Estudos Brasi
leiros e de Estudos Avançados da USP; a Faculdade de Economia e
Administração da mesma Universidade, assim corno suas Coor
denações de Cooperação Internacional (CCINT} e de Comunica
ção Social (CCS); o Instituto Herbert Levy, do jornal Gazeta Mercan
til; o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES); a Comissão de História Econômica do CLACSO (Conse
jo Latinoarnericano de Ciencias Sociales) de Buenos Aires; a Fon
dazione ASSI (Associazione di Storia sull'Irnpresa) de Milão; a
Fundação Banco do Brasil; e a Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP}, que também contribuiu financeira
mente para a edição deste livro. A todas elas, bem corno às inú
meras pessoas dos mais diversos níveis hierárquicos que nos aju
daram a promovê-lo com sucesso, dando origem a esta Associação
Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, aqui vai o nos
so muito obrigado.
x 1 Tamás Szmrecsányi
1
ESC RAVISMO E GRANDES LAVO U RAS
Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz
Dep.tº de História, Un iversity of Minnesota
O caso do Brasil
A experiência mexicana
Conclusão sumária
Bibliografia citada
PO B RES DO AÇ Ú CAR:
ESTRUTU RA P RO D UTIVA E RE LAÇÕ ES
D E PO D E R N O N O RD ESTE C O LO N IAL
"O ter muita fazenda cria commumente nos homens ricos & po
derosos desprezo da gente mais pobre . . . Quem chegou a ter título de
senhor, parece que em todos quer dependência de servos . "
A n ton il
17 Cf. Documentos para a História do Açúcar. Livro de Contas. Op. cit. e Vera
Lucia Amaral Ferlini. O engenho Sergipe do Conde (1 622-1 653). Contar,
Constatar e Questionar. São Paulo: FFLCH/USP. 1980. Dissertação de
mestrado, p. 108-28.
1 8 Ibidem.
19 Cf. Adriaen Van der Dussen. Relatório sobre as Capitanias Conquistadas
(1 639). Trad. de José Antonio Gonsalves de Mello. Rio de Janeiro: Ins
tituto do Açúcar e do Álcool. 1947, p. 31-79.
2° Cf. J. A. Gonsalves de Mello. "A finta para o Casamento da Rainha
da Grã-Bretanha e Paz da Holanda (1664-1666). Revista do Instituto
Arqueológico de Pernambuco. Recife, 1981, citado por Evaldo Cabral de
Mello. O Rubro Veio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986, p. 429.
2 1 Idem, p. 430.
26 Veja-se Vera Lucia Amaral Ferlini. Terra, Trabalho e Poder. Op. cit., p. 47
e 213; Francisco Carlos Teixeira da Silva. A Morfologia da Escassez: Cri
ses de Subsistência e Política Econômica no Brasil Colônia. Niterói: UFF.
Tese de doutoramento, 1990, p. 367.
27 Francisco Carlos Teixeira da Silva. "Pobres, Marginais e Desviantes".
Op. cit.
28 Terra, Trabalho e Poder, p. 211-5.
29 Francisco Carlos Teixeira da Silva. "Pob res, Marginais e Desviantes".
Op. cit.
36 1 Guillermo Palacios
priamente dita, o centro se firma, salvo contadas exceções, em tor
no da relação senhor-escravo. Esta é também a perspectiva evidente
na documentação. A natureza "dominante" do engenho e o seu re
ferente imediato, a "subordinação" - entre outros - da agricul
tura de subsistência, se convertem em características estruturais,
alheias à passagem do tempo e ao transcorrer da história.
Este trabalho busca questionar algumas dessas afirmações e pro
por explicações alternativas, ou complementares, à luz da docu
mentação referente à história agrária do Nordeste Oriental. Nele
está formulado, implicitamente, um conjunto de hipóteses relacio
nadas com a natureza da economia regional e as peculiaridades
dos seus canais de articulação com o mercado mundial, e, mais
especulativamente, com a constituição da questão agrária na região.
A proposição central é a seguinte: antes do final do século XVIII,
agricultura camponesa e agricultura escravista alternam-se na ocu
pação dos espaços mais produtivos da região, em função de uma
série de combinações especificamente regionais de fatores externos
e internos, mas com claro predomínio de determinantes originadas
no núcleo do mercado mundial. Ambas - agricultura camponesa
e agricultura escravista - estão igualmente conformadas pelas
mesmas forças centrífugas. Ao amparo de uma crise sem paralelo
na oferta de força de trabalho escrava para a região, os cultivadores
pobres livres crescem e se expandem até ocupar, nas últimas déca
das do século XVIII, articulados por impulsos provenientes de
Manchester e Liverpool, a linha de frente da produção agrícola
nordestina e o mais forte canal de articulação do Brasil com o mer
cado mundial: o algodão.
A expansão camponesa no Nordeste Oriental deve portanto ser
considerada como um capítulo, não apenas da crise dos engenhos,
mas da história da revolução industrial. E é nesse sentido que ela
chega ao fim: freada e revertida pela corrente reacionária das con
tra-reformas que procuram deter o avanço da revolução francesa e
dos seus efeitos sob o mundo colonial, combatendo as reformas
econômicas praticadas pelos impérios ibéricos desde meados do
século. Nesse contexto, a partir de 1 785, o Estado colonial inicia um
intermitente processo de repressão às atividades econômicas das
comunidades de cultivadores pobres, de fato à sua autonomia, vo
luntária ou coincidentemente reforçado por severas campanhas de
recrutamento militar especificamente dirigidas contra os seus dis
tritos, e coroado em 1 799 com o confisco real das florestas tropicais
38 1 Guillermo Palacios
cária agricultura de alimentos já é significativo. Seus membros são
identificados como os "habitantes das freguesias da mata", "a gen
te mais indigente de Pemámbuco"2•
A desativação de incontáveis estabelecimentos escravistas ao lon
go das primeiras décadas do século XVIII, vitimados por execu
ções judiciais, confiscos ou simplesmente incapacitados de produ
zir pela perda dos escravos, criou espaços de penetração à agricul
tura camponesa. A partir da década de 1 720 aproximadamente, é
possível fazer um paralelo entre os registros do êxodo de escravos
e da diminuição a níveis ínfimos da produção açucareira e do au
mento da produção de alimentos e de tabaco. A total ausência de
informações sobre a conversão de engenhos e canaviais em planta
ções de tabaco ou de mandioca sugere fortemente a presença de
outras forças produtoras, que só podem ser, historicamente falan
do, cultivadores pobres e livres3• Assim, a crise do escravismo coin
cide com um processo de campesinização do Nordeste Oriental. Na
metade do século existem testemunhos de presença significativa
de comunidades de pobres livres cultivadores de tabaco, mandio
ca e outros alimentos, em áreas relativamente centrais do Nordeste
Oriental, supostamente dominadas por plantations, como Goiana,
Cabo, Serinhaem e, um pouco mais distante, a comarca das Alagoas.
Simultaneamente, é possível identificar enormes espaços de terras
devolutas em áreas de grande fertilidade e próximas dos mercados
exportadores, passíveis de ocupação e exploração por parte de uma
crescente população de pobres livres4•
40 1 Guillermo Palacios
tidades de tabaco clandestino que deixam os portos de Alagoas,
Pernambuco e Paraíba, com direção à Á frica, sem controle nem se
leção6. Conforme nos aproximamos da metade do século, a vee
mente retórica das queixas convence finalmente a Coroa de que o
assunto é sério: a produção e comercialização do fumo por cente
nas, talvez milhares de pequenos cultivadores familiares ao longo
do litoral nordestino desorganiza o mercado do tabaco na Costa
d' Á frica - pois, contrariando a norma, comercializa variedades
de primeira qualidade - e coloca em risco o próprio tráfico de es
cravos que, como se sabe, tinha no tabaco um importante referente
monetário7•
Assim, o campesinato do Nordeste Oriental nasce para o regis
tro histórico como um grupo social ilegítimo nas suas próprias ori
gens. Essa natureza duplamente marginal - pois junta a condi
ção social e espacialmente periférica desses segmentos a práticas
ilegais no contexto dos códigos oficiais da época - cristaliza-se
nos esquemas do capital que dinamiza essa produção. Esta é uma
questão central para fixar os caminhos do desenvolvimento desse
tipo de agricultura, não apenas nos aspectos técnicos ou na orga
nização social que a acompanha, mas também em outras esferas
- cultura e ideologia, para usar termos totalizantes - que com
põem, a partir desse momento, o que os antropólogos gostam de
chamar de "lógica" camponesa. De fato, embora a documentação
não contenha afirmações explícitas que permitam penetrar no in
terior dessas formas produtivas, é possível inferir dela o papel cru
cial desempenhado pelos comissários volantes na articulação da
agricultura dos cultivadores pobres livres com os mercados exter-
42 1 Guillermo Palacios
ração não implica no desaparecimento desse segmento, e sim ape
nas numa nova situação de disponibilidade da economia camponesa
- entendida como o conj únto dos recursos e esquemas produtivos
acumulados ao longo da experiência anterior - para o mercado.
Essa articulação a mecanismos mercantis ligados ao comércio in
ternacional durante a primeira metade do século XVIII prepara e
capacita a agricultura dos pobres livres como um sistema produtivo
passível de ser incorporado a outros empreendimentos da econo
mia colonial. Essa nova situação, de fato uma alternativa sistêmica,
vai ser constatada - com o devido espanto - pelo primeiro Capi
tão-Geral da fase pombalina, Luis Diogo Lôbo da Silva.
10
Luiz Diogo Lôbo da Silva a Sebastião José de Carvalho e Mello. Recife,
9.5. 1759, in "Correspondência dos Governadores de Pernambuco",
44 1 Guillermo Palacios
vos, desenhados para absorver a força de trabalho camponesa, já
capacitada para funcionar na economia colonial formal. Lôbo da
Silva está propondo, em 1 159, que o planejamento da incorporação
do Nordeste Oriental ao crescente mercado de algodão - que esta
va na base de um profundo processo de inovação tecnológica en
tão perceptivelmente em andamento - se fundamente no desenho
de formas de organização produtiva alheias e distantes do escravis
mo, e baseadas em sistemas de controle social do trabalho que per
mitam incorporar a mão-de-obra livre dos cultivadores pobres ao
mercado de trabalho. Em outras palavras, está propondo a substi
tuição da escravidão pelo trabalho livre, está mostrando que so
mente assim o algodão regional será competitivo nos mercados
mundiais, e está indicando, por último, que as condições objetivas
para essa passagem, fundamentalmente o crescimento demográfi
co, a mercantilização relativa dos sistemas produtivos dos cultiva
dores pobres, e a difusão do plantio, já o permitem.
46 1 Guillermo Palacios
adquirir, como derradeira tábua de salvação, nas últimas décadas
da sua existência. Uma modernidade que, diga-se de passagem,
estava paradoxalmente ancorada na incorporação dos sistemas pro
dutivos dos cultivadores livres e pobres a uma economia regional
caracterizada, embora cada vez menos nessas décadas, pelos gran
des estabelecimentos escravistas.
De fato, os programas de apoio ao plantio de algodão por parte
de cultivadores pobres livres - e pequenos produtores escravistas
- foram acompanhados de instrumentos que procuravam implan
tar sistemas de racionalização da agricultura camponesa. Assim,
propuseram-se metodologias de controle e verificação das exten
sões plantadas, com levantamentos minuciosos do número de
cultivadores envolvidos, cálculos de produtividade, registros de
consumo doméstico e produção mercantil, modelos de ajuste entre
disponibilidade de força de trabalho, produção de alimentos e pro
dução de algodão, além, é claro, de disposições tomando o plantio
obrigatório para todos os que trabalhassem terras apropriadas. Al
mejavam-se três objetivos principais: expandir a cultura, controlar
a relação entre oferta e demanda, para "se regularem os prezes
delle", e manter sob vigilância a produção de subsistência para
impedir problemas no abastecimento alimentar16•
Ao lado dessas inovações no gerenciamento da produção cam
ponesa, criaram-se, dentro dos próprios esquemas monopólicos da
CGCPP, mecanismos de comercialização que, salvo engano, pela
primeira vez levavam em consideração a escala de produção dos
cultivadores pobres livres, sistemas capacitados "para receber as
miudas e differentes parcelas que os pobres lavradores recolhão
das suas plantações, e recebendo-as semelhantemente dos outros,
que não tiverem comodidade e meios para fazerem a remessa à
direcção da companhia"17• Era, de fato, a tentativa para colocar em
funcionamento um novo modelo de produção na agricultura do
Nordeste Oriental. Em 1778, escassamente um ano e meio após o
deslanche das campanhas de fomento, extensas áreas do litoral das
Alagoas estavam já tomadas pelo algodão. Por volta de 1780, os
distritos de cultivadores pobres livres situados no vértice da zona
16
"Providencias que ficão para a Camara". Penedo, 15. 12. 1776, em ACU,
V.15, fls. 89-91.
17
Ouvidor das Alagoas a Governador de Pernambuco, doe. cit.
18
Cf. "ldéa da População da Capitania de Pernambuco [ . . . ], ABN, v. XL
(1918).
19 D. Thomas Jozé de Melo à Rainha. Recife, 21 .9. 1 797, in CC 3 (1784-
1798), fl. 123. É no minimo interessante observar como o imaginário
do poder concebe a crise singularmente provocada pelos pequenos
produtores de algodão, quando sabemos que um outro fator, de peso
pelo menos comparável, também estava presente: a ativação do mer
cado internacional do açúcar no final da década de 1 780, como resulta
do da desorganização causada pela revolução francesa, e a conseqüente
conversão das plantations do Nordeste Oriental em pescadas compra
doras de alimentos.
48 1 Guillermo Palacios
alguns aspectos gerais da agricultura camponesa do Nordeste
Oriental no final do século XVIII. Isto porque a crise alimentar for
çou o Estado a procurar conhecer, minimamente, as fontes desse
abastecimento, no intuito de institucionalizar e normatizar um sis
tema que tinha prescindido, até aqueles momentos de subversão dos
papéis tradicionais dos atores da economia regional, da interven
ção do Estado. Se as medidas de racionalização da agricultura cam
ponesa experimentadas em tomo dos plantios do algodão permi
tem ter uma idéia aproximada de uma série de extemalidades dos
sistemas produtivos e dos esquemas de comercialização dos cul
tivadores pobres livres, as contra-medidas destinadas a restaurar o
equilíbrio perdido nos oferecem um outro ângulo de percepção.
Permitem observar lampejos de organização comunitária, de iden
tidade coletiva, de estratégias de sobrevivência e reprodução, e
mapear, embora precariamente, a sua localização espacial. Aliás,
esse processo de mapeamento das fontes de produção de alimen
tos do Nordeste Oriental serviu também para que o Estado, amplian
do o seu saber, localizasse grandes bolsões de população livre, e
pudesse então organizar campanhas de recrutamento contra eles20.
As medidas de repressão ao cultivo começaram em 1785 / 86, com
ordens às Câmaras Municipais mandando suspender os pequenos
plantios de algodão, prender os produtores que resistissem e quei
mar e erradicar os algodoais daqueles que persistissem na emprei
tada21 . O fracasso de repetidas remessas de instruções levou o go
verno da Capitania a enveredar pelo último caminho que restava
no exíguo arsenal dos dispositivos de autoridade do Estado, a
ameaça de militarização do conflito. Isto deu ao problema da crise
alimentar a sua verdadeira dimensão, evidenciou a sua natureza
de situação-limite, e colocou-o no nível de uma emergência de con
seqüências políticas que afetavam a segurança da sociedade for
mal e a própria autoridade do Estado. Esta redefinição da crise
advinha de que a insistência dos cultivadores pobres e lavradores
escravistas em comercializar exclusivamente algodão estava na ba-
50 1 Guillermo Palacios
Ao que parece, as medidas de represália aos plantios de algodão
tiveram efeitos desiguais, dependendo, entre outras coisas, das re
lações de poder estabelecidas entre as oligarquias locais e o gover
no central da Capitania e, sobretudo, das conjunturas do mercado
mundial. Mas, abundam na documentação relatos sobre o êxodo
de famílias e povoados inteiros, fugindo das proibições e das pe
nalidades, e transferindo seus pequenos algodoais para áreas mais
distantes do Interior. Outros produtores resistiram nas áreas do li
toral, momentaneamente reestimulados a partir de 1 795 pelo cres
cimento da demanda inglesa, até que o cultivo de melhores varie
dades no Agreste, e sobretudo no Sertão, retirou-lhes os mercados,
já nas primeiras décadas do novo século. Mais difícil foi convencê
los a retomar à sua antiga situação de simples cultivadores estamen
tais de subsistência, e forçá-los a plantar mandioca sem atentar pa
ra as condições do mercado. Sobretudo porque esses segmentos ti
nham desenvolvido ao longo do seu processo de constituição e cres
cimento canais de resposta a estímulos mercantis que faziam com
que repetidamente, assim que os preços da mandioca chegavam a
determinados níveis, reduzissem os espaços do algodão e voltas
sem ao fornecimento de alimentos25• Semelhantemente, tinham
construído mecanismos de autonomia e de solidariedade coletiva
que impediam a subordinação aos interesses das plantations como
resultado de um mero desenho de relações de poder ou de uma
demanda de legitimidade que não estivesse respaldada pela força.
Esta condição de autonomia foi claramente explicitada num pe
queno porém significativo incidente, que contrapôs plantadores
de mandioca e algodão a senhores-de-engenho, ocorrido na rica
freguesia açucareira do Cabo em junho de 1 784. O conflito decor
reu da negativa dos cultivadores livres de desmancharem as suas
roças de algodão para satisfazer necessidades de abastecimento ali
mentar dos engenhos. O argumento era que o grupo, dedicado como
25 Por exemplo, nos anos de 1788 e 1789, até setembro, a mandioca teve
preços remunerativos no mercado do Recife e o produto não faltou.
Descontando a especulação de atravessadores, a documentação oficial
confirma que as boas cotações convenciam os pequenos agricultores a
plantar e vender. Cf., entre outros, "D.Thomas José de Melo a Ouvidor
da Paraíba". Recife, 23.9. 1 788, em OG 3, fl. 148; "idem a Ouvidor das
Alagoas". Recife, 23.9.1788, em ibid, fl . 149; "idem a Ouvidor Geral".
Recife, mesma data, loc. cit.
"por não ser compatível com a boa razam que os referidos lavra
dores sejão constrangidos a vender ou desmanchar as suas ros
cas q. talvez conservem para suprir as suas necessidades, pª re
mediarem aquelas pessoas q. ou por preguiço ou desmazelo não
quizerão plantar"26•
À guisa de conclusão
26
"Governador a Comane. da Frega. do Cabo". Recife, 11 .06.1784, "Car
ta 155" em Cartas, fls. 53-54. Existem vários outros casos de resistência
comunitária, mas o espaço concedido á esta comunicação não permite
incluí-los.
52 1 Guillermo Palacios
produtores pobres do alcance do Estado, mas também dos merca
dos dos principais mercados consumidores27• Outro, de orientação
contraditória, resultou num processo massivo de conversão de
cultivadores independentes em moradores das propriedades escra
vistas da região. Uns preservaram por mais algumas décadas a sua
autonomia, mas perderam os mercados, entrando num longo pe
ríodo de pauperizacão; outros mantiveram a proximidade dos cen
tros consumidores, mas perderam a liberdade. Ambos processos
são centrais para entender os caminhos da consolidação do Estado
nacional na região, e as peculiaridades da transição ao trabalho li
vre no Nordeste Oriental ao longo da segunda metade ao século
XIX.
58 1 Caio C. Boschi
desses aglomerados e nem que fosse condição ou garantia de so
brevivência para eles. No geral, o ouro não se caracterizava como
atividade da cidade. Houve núcleos urbanos nas Minas Gerais
setecentistas que mantiveram continuamente a produção extrativa
nas suas franjas ou periferias, como foi o caso do arraial do Tejuco,
onde se constata diminuta a interferência das minerações na urba
nização locaP.
Em outros termos, poder-se-ia afirmar que nem sempre a ativi
dade extrativa se mostrou suficientemente expressiva para promo
ver o desenvolvimento dos mencionados primitivos aglomerados
urbanos. Nesses, no momento primeiro, as funções social, religiosa
e comercial procuraram dar-lhes suporte e vitalidade. Repare-se,
porém, que a iniciativa pela formação desses núcleos não é do Es
tado, como ocorre em outras paragens. De toda maneira, tais cen
tros não estiveram isentos da ação do poder estatal sobre si. Inse
rindo-se em contexto colonial, eles encetam a presença do Estado
em seu interior.
Fique claro, portanto, que o embrião da condição citadina já se
constituíra quando a Metrópole tomou a iniciativa de imiscuir-se
nesse processo de urbanização. Confrontem-se as datas: se os pri
meiros achados auríferos ocorrem nos fins do seiscentos e com eles
emergem os primeiros esboços de núcleos urbanos, é preciso ultra
passar a primeira década do setecentos para verificar-se, de forma
resoluta e determinada, a presença do Estado na região. Foi por de
sígnio político e no âmbito da pacificação da Guerra dos Emboabas
que, no começo da segunda década do Dezoito, exatamente em
1 711, verificou-se a instituição das primeiras vilas na zona minera
dora, a partir de arraiais preexistentes e de uma sociedade que de
lineava estruturar-se com maior nitidez.
Eis aí um fato significativo: as vilas e, por extensão, o aparelho
de Estado, instalam-se onde havia vida comunitária solidariamen
te esboçada. Com a nova realidade, ganham impulso outras fun
ções urbanas, dentre as quais optamos por considerar predominan
temente a função comercial. Desde logo, esta se toma mais segura,
estável e protegida, além de expandir-se e de ser mais demandada,
posto que, passando a se constituir em sedes administrativas, as
60 1 Caio C. Boschi
projeção na Colônia se deveu mais as potencialidades e a explora
ção de atividades agropastoril e comercial.
À época de suas respectivas instalações e acompanhando-se a
evolução dos assentos e das atas das câmaras municipais, era fla
grante a diversificação nos setores produtivos e o crescente núme
ro de negociantes e homens de comércio que se instalam nas vilas
recém-eretas. Assim é, e para recorrer novamente à capital Vila Rica
como referência emblemática, que o cronista do Triunfo Eucarístico
não titubeia em afirmar que ali habitavam "homens de maior co
mércio, cujo tráfego e importância excede, sem comparação, o maior
dos maiores homens de Portugal"6•
Homens que cuidaram de conferir traço característico à paisa
gem arquitetônica dos núcleos urbanos mineiros coloniais - em
especial os da zona mineradora - com a construção de edificações
assobradadas, nas quais os pavimentos térreos abrigavam as lojas
ou vendas, destinando-se o piso superior à moradia dos proprietá
rios-comerciantes.
Homens que cuidavam de responder adequadamente à grande
capacidade de consumo das populações citadinas, e que sempre
abasteciam regularmente suas lojas com mercadorias e estoques
diversificados. Para tanto, periodicamente se entendiam com os
agentes dos atacadistas portugueses estabelecidos nos portos lito
râneos, com destaque para os do Rio de Janeiro. Logo evidencia
ram-se as potencialidades recíprocas, tomando florescentes e mo
vimentadas essas relações comerciais, criando laços de dependên
cia entre si e, ainda que de forma indireta, interligando os comer
ciantes mineiros ao mercado metropolitano. Já no início dos anos
vinte, essa realidade está retratada em testemunhos como o de Luís
Álvares Prieto, sobrinho e correspondente do abastado negociante
lisboeta Francisco Pinheiro na praça do Rio de Janeiro, taxativo e
eloqüente ao reclamar: "Estamos nos meses que se não vende coi
sa alguma por estarem os mineiros todos nas minas até o mês de
março, que costumam vir e só então é que se vende alguma coisa"7•
62 1 Caio C. Boschi
- ou melhor, aos oficiais mecânicos, em geral. Assim procedendo,
estamos configurando um universo essencialmente masculino e,
por vezes, tratando de profissionais que, sendo personagens urba
nos, não se fixam permanentemente em uma delas, deslocando-se
continuamente e, portanto caracterizando suas atuações pela cir
cularidade, pela itinerância e pela dispersão. Cumpre recordar a
inexistência de arruamentos, isto é, de "zonas ou centros funcio
nais" na Minas Colonial. Aliás, ocupar-se de oficiais mecânicos e
de vendeiras é tocar em dois dos segmentos mais numerosos e em
dois elementos centrais para o entendimento da vitalidade socio
econômica dos núcleos urbanos, nesse caso considerando-se não
apenas os que compuseram a geografia da Capitania do Ouro.
E o universo da mulher? Por contraponto, deve-se indicar as
atividades econômicas citadinas que eram prevalentemente femi
ninas. Em outra direção e sem pretender ensaiar uma análise da
divisão sexual do trabalho nos referidos núcleos urbanos, antes in
sistindo na ampla divisão social do trabalho ali constatável, cum
priria salientar a presença praticamente exclusiva da mulher na in
cipiente indústria têxtil, a qual, ainda no Setecentos, desponta co
mo opção para a sobrevivência econômica de Minas Gerais, cons
tituindo-se no "maior e mais importante setor da protoindustria
lização mineira"8• Já Antonil e os testemunhos recolhidos no Códice
Costa Matoso distinguiam a presença feminina no pequeno co
mércio urbano da região mineradora, no início do século XVIII -
64 1 Caio C. Boschi
Daí, então, poder-se contraditar a historiografia que atribui à
decadência da mineração uma verdadeira "diáspora populacional",
a qual, por sua vez, faz flo rescer a atividade agropastoril como so
lução e como característica explicativa da economia da região mi
neira entre os fins do setecentos e o começo do dezenove. Se agora
Minas era auto-suficiente e até exportadora de sua produção agro
pastoril, artesanal e manufatureira, esse quadro não deve ser visto
como novidade. Ao longo do século, há concomitância dessas ati
vidades produtivas com a exploração aurífera e diamantífera. A
saliência dessa, no entanto, não pode e não deve obscurecer a im
portância das demais. No chamado ciclo do ouro, esse mineral não
foi tudo. Em tendência de longa duração, nas Minas Gerais
setecentistas nem tudo o que reluzia era ouro . . .
"A maioria do povo não queria atar suas próprias mãos; não
lhe agradava a proposta de transferir o poder dos vários Esta
dos ao governo federal. Os aldeãos e a gente comum temiam o
novo ins trumento: afirmavam que havia sido preparada pelos
aristocratas e homens endinheirados, e repudiavam o princípio
do governo fundado na propriedade" (Parrington, vol. 1, p. 412).
Bibliografia
O sentido da colonização
10
.
Abreu, Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Rio de Ja
neiro: Briguiet. 1930.
12
Girão, Raimundo. História Econômica do Ceará. Fortaleza: Instituto do
Ceará. 1947.
13 Tollenare, L. F. Notas Dominicais. Salvador: Progresso. 1958.
A P E C UÁRIA E A P RO D U ÇÃO
D E ALI M E N TOS NA C O LÔ N IA
" Eles nom lavram nem criam, nem ha quy nem vaca, nem cabra,
nem ovelha, nem galinha, nem outra nhuma alimarea, que costuma
da seja aho viver dos homeens. "
1 de maio de 1 500
Pero Vaz de Caminha
Desfazendo os mitos
10
Idem, p. 31.
11
Boserup, Ester. The Conditions of Agricultura[ Growth - The Economics
ofAgrarian Change under Population Pressu re. Chicago: Aldine Publishing
Company. 1965. Trad. brasileira. Evolução Agrária e Pressão Demográfica.
São Paulo: Hucitec-Polis. 1987 (trad. Oriowaldo Queda e João Carlos
Duarte).
12
Veja-se, sobretudo, Amaral, Luis. História Geral da Agricultura Brasilei
ra. 2.º tomo. São Paulo: Brasiliana /Nacional. Vol. 160-A, cap. V. 1940.
15 Santos Filho, Lycurgo. Uma Comunidade rural do Brasil Antigo. São Pau
lo: Companhia Editora Nacional. 1956. Nunes, Odilon. Os Primeiros
Currais. Geografia e História do Piauí Seiscentista. Companhia Editora do
Piauí. 1957. Freitas, Antônio Gomes de. Inhamuns (Terra e Homens). For
taleza: Editora Henriqueta Galeno. 1972. Correa, Leopoldo. Achegas à
História do Oeste de Minas, Formiga e Municípios Vizinhos. Belo Horizon
te: Gráfica Belo Horizonte. 1955.
P E C UÁRIA, AG RICULTU RA
D E ALI M E NTOS E REC U RSOS NATU RAIS
N O B RAS I L-CO LÔ N IA
12
Ver Barros, Francisco Borges de. Op. cit., p. 198 e ss.
17 Santos Filho, Lycurgo. Uma Comunidade Rural do Brasil Antigo. São Paulo:
Companhia Editora Nacional. 1956, p. 370. -
8
1 Porto, C. E. Op. cit., p. 64.
27
Ver Leis e Ordens Régias, Arquivo Público do Estado da Bahia.
28
Union Géographique Intemationale. XVIII Congres Internacional de
Géographie. Bahia-Rio de Janeiro. 1956, p. 197.
29
Carta dos Oficiais da Câmara da Vila de Boipedo . . . Bahia, 1 . 1 . 1 705.
Carta do Vice-Rey para Nicolau da Fonseca Tourinho sobre o gado que
se cria no termo da Vila de Boipeda, Bahia, 30.1.1705. ln: Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional, v. XXl .
QUADRO 1
Composição da população do Piauí por etnia e cor - 1697-1 723
1 69 7 % 1 772 %
Tipo Valor %
49 Sampaio, Thedoro. Op. cit., p. 233. Para uma análise das relações entre
recursos naturais e a empresa econômica ver Godelier, M. L'Idéel et le
Matériel. Paris: Fayard . 1984.
% N.º
0.1-0.9 2
1-2 29
2.1-3 29
3.1-4 15
4.1-5 2
5.1-6 1
S.Ref. 28
Fon te:
Tombo das Terras e Prédios que pertencem a Casa do Senhor da Ponte .. 20 de janeiro de
.
51 Cf. Mott, Luís. Op. cit., p. 91; e, para a feira de Nazareth das Farinhas,
nosso trabalho já citado.
QuADR0 6
Bezerros nascidos na Fazenda do Brejo Seco, Bahia
Anos Bezerros
1 792 12
1 793 22 Ano de seca
1 794 29
1795 150
1 796 207
1 797 253
1 798 195
1 799 325
1800 233
1801 316
1 802 220
1803 291
1804 358
1805 198
1806 52
1807 72 Ano de seca
1809 84
1810 96
1811 68
O I NT E R I O R DA ESTRUTU RA
O interior da estrutura 1 1 63
da a falta de consistência de um mercado interno de âmbito colo
nial, cuja população escrava, como se sabe, tinha o seu poder aqui
sitivo achatado ou inexistente, enquanto a população livre e pobre,
que representa em todas as regiões um percentual muito alto do
total de habitantes que se calcula a colônia tinha, parece ter sido
pouco expressiva como mercado consumidor.
Em outra oportunidade tratamos do tema, retomado em 1991,
sem que entretanto conseguíssemos avançar o desejável1, sobretu
do diante das obras que fundamentaram nossas hipóteses, de au
tores como Ciro Flamarion Cardoso, Maria Yedda Unhares, Akir
Lenharo, Roberto Borges Martins, Jacob Gorender e Antonio Bar
ros de Castro, em livros que relacionamos na bibliografia final. O
que agora pretendemos, ao voltar ao tema, é abordá-lo diante de
algumas questões que nos escaparam naquelas oportunidades.
A primeira é um cotejo com o que ocorreu com o mercado inter
no e o cmnércio colonial nas economias da América Hispânica, es
tudadas por vários autores como Carlos Sempat Assadourian, E.
Arcila Farias, Heraclio Bonilla, Silvia Palomeque e outros, preocu
pados em conhecer como ocorriam as relações econômicas vicinais
e interregionais. A sua composição em termos de produtos, o al
cance do capital mobilizado, a apropriação do excedente gerado e
as implicações sociais e políticas dos grupos e camadas envolvidos
no seu trato têm sido assuntos estudados em profundidade por di
versos autores. Embora guarde diferenças substantivas em relação
ao Brasil, a economia colonial nos países de origem hispânica desta
parte do continente apresentava aproximações e impulsos de de
senvolvimento interno, que nos levam a acreditar na pertinência
de sua comparação ao nosso desenvolvimento colonial.
A regionalização espacial que definia a nossa economia colonial
e assegurava o seu secular desempenho com certo grau de autono
mia em relação à grande lavoura de exportação, tem pontos em
comum com as economias regionais das colônias espanholas, em
bora estas, naturalmente, acabassem por cumprir um papel diver
so, desde que o processo de descolonização acabou por fragmentar
o império colonial hispânico, do que resultaria a formação de uns
tantos países independentes.
O interior da estrutura 1 1 65
tregue à mineração com setores outros de áreas absorvidas na
pecuária de corte e de transporte, na produção têxtil, mesmo que
em escala doméstica e é claro na subsistência de pequenos produ
tores. E o que nos mostram essas performances, se não certo grau de
autonomia e desenvolvimento interno e de integração regional, que
se constrói contínua e significativamente sob o ponto de vista eco
nômico e social, não deixando de ter certo alcance e atuação polí
ticas.
É claro que esse comércio interno se faz com conexões ao comér
cio europeu e intercolonial, este desenvolvido em dimensões que
abrangem praticamente todo o universo colonial, em termos ecumê
nicos, pois se faz entre a América Portuguesa, América Hispânica,
África e Oriente. Ambos - comércio europeu e intercolonial -
contam também com estudos incluídos na bibliografia final.
Como o nosso tema - o comércio interno - é um tema como
dissem0s relativamente novo no conhecimento histórico brasileiro,
residindo muitas vezes o seu estudo muito mais em insinuações e
hipóteses, deduz-se que ainda reclama pesquisas exaustivas, uma
vez que as suas articulações atingem, como é natural, a produção e
o consumo, os transportes e as comunicações, o Estado e a iniciati
va privada, a importação e as exportações.
Dessa maneira, para um programa de estudos de sua inserção
na economia colonial, acreditamos que sua viabilização está ainda
muito centrada em pesquisas que de certa maneira e num momen
to preliminar deverão ser feitas em termos regionais. Entre outras
questões a serem abordadas, gostaríamos de apontar algumas de
maneira explícita, mas apenas mencionando-as sobretudo tendo
em vista que muitos participantes deste Congresso são mestrandos
e doutorandos em busca de temas para suas dissertações e teses . . .
Assim, a atuação dos grupos mercantis que s e formam e têm
ativa atuação interregional: o capital capital que levantam, os in
vestimentos que fazem, o seu grau de organização e composição
com o Estado e outros setores; o crédito, a formalização e contabili
dade dos negócios, as relações com as autoridades coloniais e me
tropolitanas e os órgãos fazendários e fiscalizadores que aquelas
representam; as relações com produtores e consumidores, o alcan
ce do seu domínio comercial, o transporte marítimo (de cabotagem),
fluvial e terrestre, seus fretes, origem e destino das mercadorias
transportadas, a operacionalidade do -fisco e o sistema tributário,
seu destino e redistribuição.
O interior da estrutura 1 1 67
tar visualizar o que ocorreu com a sede da Corte, a cidade do Rio
de Janeiro, no primeiro quartel do século XIX. Com a transmigração
da Corte formou-se aí um mercado consumidor, cujo poder aquisi
tivo justificava a montagem de um sistema de abastecimento que
cobria consideráveis distâncias desde os seus fornecedores que se
distribuíam por Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, de onde des
ciam gado em pé, porcos, galinhas, carneiros, toucinho, queijos, ce
reais, tecidos grosseiros de algodão, incluindo ainda São Paulo e
Santa Catarina, que mandavam milho, feijão, arroz, trigo, cebola e
farinha de mandioca.
Esse elenco de produtos completava-se com hortaliças, peixes,
cuja rede de pequenos produtores também estava articulada com
o sistema de transporte, representado sobretudo pelas tropas de
muares que serviam a maior parte do território. Mas, esse é um
exemplo sobre o qual na verdade as pesquisas têm se concentrado
e despertado até polêmicas.
Vejamos outras áreas da Colônia, onde nem sempre o mercado
se urbanizou, permanecendo de certa maneira disperso, mas nem
por isso era desprezível pela sua demanda, antes justificando uma
empresa que se revelou excepcional no esforço do seu abastecimen
to, cruzando - pelos rios e por terra - largas porções do território
com incrível variedade de cargas, capaz de satisfazer as necessida
des primárias e secundárias de numerosos contingentes popula
cionais com diferentes perfis de consumo. Referimo-nos às áreas
de mineração - Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso - todas so
frendo um fluxo demográfico que se estendeu por quase um sécu
lo, caracterizado pelo volume e heterogeneidade das categorias so
ciais que o compunham, bem como ainda pelo rígido controle fis
cal que se abatia sobre o comércio que ali era praticado, visando
dificultar o contrabando.
No seu atendimento mobilizaram-se centenas de pequenos pro
dutores, roceiros, sitiantes, criadores de gado, artesãos e oficiais
mecânicos, que ativaram um comércio permanente, de largo alcan
ce econômico, social e até político. Mas houve ainda outros pólos
de consumo, no litoral e no interior da Colônia, que atraíram para
o seu abastecimento o concurso da economia de subsistência.
Este foi o caso de Salvador (Bahia), para onde se dirigiam pro
dutores e transportadores levando milho, feijão, farinha, açúcar, car
ne-seca, peixes salgados e secos, vindos do rio São Francisco e de
capitanias como o Ceará, Pernambuco, Porto Seguro, Sergipe d'El
O interior da estrutura 1 69
Acrescente-se que os centros mineradores da Colônia atraíam
ainda produtos das colônias espanholas e das colônias portugue·
sas da África e da Ásia, no que se incluíam produtos agrícolas, dro
gas e manufaturas.
Do exposto verifica-se que no que podia ser reconhecido como
mercado interno na Colônia havia suficiente regularidade de con
tatos entre compradores e vendedores para afetar as condições de
compra e venda da população que dependia desse sistema. Esse
mercado era disperso e se efetivava quer através dos estabeleci
mentos localizados nas praças urbanas, quer diretamente nas por
teiras das propriedades rurais, nos bairros rurais, povoados, vilas e
às vezes até em consumidores isolados, visitados periódica e regu
larmente pelos que negociavam de maneira itinerante. Atendendo
a esse mercado estruturou-se o comércio interno, trocando valores
e / ou produtos em busca de lucro e com isso nutrindo os meios de
transporte e comunicação e o intercâmbio cultural das comunida
des por ele atingidas.
I ndicações bibliográficas
12 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 298-9, 304-5; v. 2, p. 11, 18, 27, 145,
271, 438; V. 3, p. 159, 161; V. 5, p. 20, 57.
13 Departamento de Arquivo do Estado de São Paulo. Documentos Inte
ressantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo: Secretaria de
Cultura, Esportes e Turismo, v. 76, p. 83-4. Nas próximas notas serão
denominados Documentos Interessantes.
14 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 316, 330.
15 Documentos Interessantes, v. 19, p. 402. .
16 Atas da Câmara de São Paulo, v. 4, p. 440.
17 Idem, v. 5, p . 324. Deve-se lembrar que o cargo municipal não era re
munerado.
s
1 Leme, Pedro Taques de A. P. Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genea-
lógica. 5.ª ed. São Paulo: ltatiaia /Edusp. 1960, 3 v.
19 Flexor, M. H. O. O Trabalho Livre .. , p. 17-22.
.
27 Idem, p. 37-40.
28 Rabelo, Elizabeth O. Os oficiais mecânicos e artesanais em São Paulo
na segunda metade do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n.
55, V. 112, p. 586. 1977.
29 Buarque de Holanda, Sérgio (pref.). ln: Queiroz, Suely R. Reis de. Es
cravidão Negra em São Paulo, um Estudo das Tensões Provocadas pelo Escra
visno no Século XIX. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/José
Olympio. 1977, p. xiii. Documentos Brasileiros, 176.
30 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 118-9.
36 Idem, v. 3, p. 162.
37 Flexor, M. H. Op. cit., p. 25-9.
38 Idem. Trabalho Livre . , v. 2, p. 232.
. .
43 Idem, p. 41-55.
44 Alves, Marieta. Mestres Ourives de Ouro e Prata. Bahia: Imprensa Ofi-
68 Idem., v. 4, p. 313.
6 9 Idem., v. 1, p. 215.
82 Idem, p. 340.
83 Docu mentos Interessantes , v. 45, p. 133-75.
. . .
86
Le Goff, J. Pour un autre Moyen Age; temps, travail et culture en Occident:
18 essais. Paris: Gallimard, e. 1977, p. 104.
2 Veja-se: Richard Wade. Slavery in the Cities. 1 820-1 860. Londres. 1977;
Mary Karasch. Slave Life in Rio de Janeiro. 1 808-1 850. Wisconsin. 1972;
Leila M. Algranti. O Feitor Ausente - estudo sobre a escravidão urbana no
Rio de Janeiro. Petrópolis. 1988; Luís Carlos Soares. Urban Slavery in
Nineteenth Century. Tese de doutoramento apresentada ao University
College, Londres. 1988; Marilene Rosa Nogueira da Silva. A Nova Face
da Escravidão. São Paulo. 1988; Maria Cristina Cortez Wissembach. "Ar
ranjos da sobrevivência escrava na cidade de São Paulo no séc. XIX".
Revista de História (119):107-8. 1988.
3 Cf. Richard Wade. Op. cit., p. IX; Leila Algranti. Op. cit., p. 46-58.
4 Cf. R. Wade. Op. cit., p. 242-5; Claudia · Goldin. Urban Slavery in the
11
Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 85-95.
12
Debret é o grande mestre desse tipo de representação e amplamente
citado. Mas, outros artistas também imortalizaram em suas pranchas
cenas do cotidiano dos escravos nas ruas transportando imensos far
dos ou vendendo seus produtos. Cf. J. B. Debret Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil (1 834). Tomo I, trad. São Paulo. 1954; Henry Cham
berlain. Views and Customs of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro.
Londres. 1822; J. M. Rugendas. Viagem Pitoresca através do Brasil (1 835).
Trad. Rio de Janeiro. 1940.
17 João José Reis. Rebelião Escrava no Brasil - a História do Levante dos Malés.
São Paulo. 1986.
1 8 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 121-56; Luiza Rios Ricci Volpato. Cativos do
Sertão - Vida Cotidiana e Escravidão em Cuiabá em 1 850-1 888. São Paulo,
1993, p. 190-228.
19 M. da Silva. Op. cit., p. 117-8 e 158 (livro). Jacob Gorender. A Escravidão
Reabilitada. São Paulo. 1990, p. 91-5. Soares. Os escravos ao ganho no
Rio de Janeiro. Op. cit., p. 130-1 .
20
Leila M. Algranti. O Feitor Ausente - estudo sobre a escravidão u rbana no
Rio de Janeiro. 1808-1822. Tese de mestrádo apresentada ao Departa
mento de História da USP. São Paulo, 1983.
21
David Brion Davies. The Problem of Slavery in Western Culture. Nova
York. 1969, p. 29. Fernando Novais. "Estrutura e dinâmica do Antigo
Sistema Colonial, séculos XVII e XVIII". Cadernos CEBRAP, n.º 17. São
Paulo. 1974, p. 65, nota 10 e 105. Jacob Gorender. O Escravismo Colonial.
Passim.
22
Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 49.
O s ofícios urbanos e o s escravos a o ganho n o Rio d e Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 205
guma regime assalariado; para o senhor, o dinheiro transformava
se em renda advinda dos juros do capital investido na compra do
escravo. Renda ou variante de salário, cada uma delas eram inter
pretações que só davam conta de um dos lados da questão e não
abarcavam o conjunto das relações de produção, sobretudo, as re
lações entre o escravo e o "comprador" de sua força de trabalho.
Este me parece hoje o ponto nevrálgico da análise. Não percebia
com clareza a complexidade das relações engendradas pelo traba
lho ao ganho e deixei em aberto os dois caminhos a seguir, pois me
pareciam insuficientes para uma análise total, que era o que eu
buscava29•
Os trabalhos subseqüentes, levando em conta a discussão que
empreendi sobre "trabalho ao ganho e salário" e / ou a análise de
Ciro Flamarion Cardoso sobre as "brechas" nos sistemas escravistas,
optaram pela forma de salário (brecha assalariada) procurando es
clarecer ô. relação entre o escravo e aquele que comprava sua força
de trabalho30• No mais, concordamos que a relação entre o escravo
de ganho e seu senhor, no momento da apropriação do dinheiro
adquirido, emergia como essencialmente escravista. Era o direito
de posse do senhor sendo exercido, mesmo que o escravo manti
vesse algo para si.
Luis Carlos Soares, entretanto, observou que havia relações dis
tintas entre os diversos negros de ganho e seus senhores: " . . . suge
rimos, diz ele, que as formas de escravidão de ganho que permi
tiam uma remuneração salarial aos cativos sejam vistas como uma
'brecha assalariada' na economia escravista urbana" . Para o Autor,
esses escravos estavam envolvidos numa relação de trabalho com
um duplo aspecto. Se na relação com seus senhores eles eram es
cravos, com os seus empregadores eram autênticos assalariados.
Mas, a situação dos vendedores ambulantes, pescadores, quitan
deiros de loja, segundo o Autor, era diferente, pois vendiam muitas
vezes mercadorias que tinham sido fornecidas pelos seus senhores,
logo não seria salário. Ou seja, quando o escravo trabalhava por
conta própria, em qualquer serviço, o dinheiro que ele recebia em
Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 207
séculos da dominação escravista, e os efeitos que imprimia nas
mentalidades dos indivíduos, nos costumes e posturas entre as
pessoas. Ambos os contratantes tinham percepção de que apesar
da transação monetária, pouco ou nada mudava entre eles e na
posição que ocupavam na sociedade. Talvez esse seja o aspecto mais
importante da questão.
Jacob Gorender, no início da década de 1990, revisitando a his
toriografia da escravidão com o objetivo de analisar o novo perfil
que ela assumiu nos últimos anos - "uma escravidão reabilita
da", segundo o Autor - abordou a questão do ganho dos escravos
e criticou as visões que o analisaram em termos de salário (brecha
assalariada) ou perceberam relações não-escravistas. Para o Autor,
o escravo-camponês, escravo assalariado, escravo indiferenciado
do operário do regime capitalista, fazem parte desse novo perfil do
escravo brasileiro, redesenhado pela historiografia. Gorender faz
um balanço das várias interpretações sobre o trabalho ao ganho e
conclui: que o negro de ganho era escravo e só escravo. "Como
todo escravo definia-se não pela atividade exercida, porém pela
condição de propriedade semovente, de mercadoria humana"32•
Não vê relação não-escravista entre o escravo e aquele que se utili
za de seus serviços, ou uma forma precursora do capitalismo. Mas,
também não aponta nem aborda as contradições que o ganho cau
sava ao sistema. Considera que as atividades poderiam até ser as
mesmas de um trabalhador livre. Penso que o trabalho ao ganho
introduz aspectos importantes à análise da escravidão no Brasil e
que a discussão é válida, pois aponta para os desdobramentos do
sistema escravista, para as experiências dos escravos e colabora
com novos elementos para se pensar a decadência da escravidão
no país.
Quanto ao valor recebido pelo escravo - ponto central da dis
cussão - não é salário, embora pareça, pois não podia usufruí-lo
na sua totalidade, nem dispor dele como bem lhe aprouvesse. Não
há relação não-escravista, posto que de um lado temos um homem
livre e de outro um escravo33• Os desdobramentos que fiz sobre
pertence. Para que esse possuidor possa vendê-la como uma mercado
ria é necessário que disponha dela, isto é, que seja livre proprietário de
sua capacidade de trabalho, de sua pessoa." O escravo, como sabe
mos, não preenche esses requisitos. K. Marx. El Capital. Trad. 2.ª ed.
México. 1973. Tomo 1, livro 1, seção 2.ª, cap. IV, p. 21. Apud Algranti,
p. 67.
3-1 Marilene Nogueira da Silva. Op. cit., p. 134-5.
35 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 69.
36 Cf. J. Gorender. Op. cit., p. 92.
37 Marilene Nogueira da Silva. Op. cit., p. 167.
Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 209
que o auge do sistema de ganho ocorreu na década de 1860, de
caindo paulatinamente nos anos setenta e sensivelmente nos anos
seguintes38•
Muitos escravos foram vendidos para zonas prósperas de agri
cultura. Logo, não parece haver vinculação entre escravos de ga
nho e transição para o trabalho livre, até porque somente com mui
ta dificuldade os negros de ganho conseguiam comprar sua liber
dade. A escravidão como um todo extinguia-se lentamente a partir
de contradições internas e não especialmente devido à prática do
ganho. No período estudado, contudo, ela mantinha ainda sua for
ça. Além disso, o trabalho livre sempre conviveu com o trabalho
escravo no campo e na cidade desde o período colonial até o Impé
rio. Houve, sim, formas múltiplas de escravidão, e o ganho é uma
delas, e específica do mundo urbano; uma acomodação para en
frentar as características da vida nas cidades.
Ligada essencialmente a essa questão, coloca-se o problema do
controle dos escravos no mundo urbano, pois, além dos que saíam
ao ganho, a maior parte dos cativos circulava intensamente pelas
ruas da cidade e seus arredores. Como comentei anteriormente, uma
série de posturas municipais regulava a vida dos escravos urbanos
na primeira metade do XIX: proibição de porte de armas e toque de
recolher eram algumas delas. Conforme aumentava a população
negra na cidade, crescia a suspeição em relação aos negros - es
cravos ou livres, o medo da sociedade a possíveis revoltas e conse
qüentemente a repressão (mais prisões e aumento das penas às in
frações) . Por outro lado, também aumentavam os crimes dos escra
vos e outras pequenas infrações em resposta a essas posturas. To
das essas questões foram objeto de estudo e documentadas no Fei
tor Ausente39•
Mas, há duas críticas que têm sido feitas à minha análise a res
peito do controle exercido pelo Estado sobre a população negra
do Rio de Janeiro de D. João, que gostaria de comentar. Uma das
críticas refere-se ao próprio título da tese "O Feitor Ausente" e à
idéia de que nas cidades não há, como no campo, a figura do feitor
mediando as relações entre senhores e escravos: seguindo os pas
sos do escravo, aplicando o castigo, controlando o trabalho. A
40 A crítica é feita por Luis Carlos Soares e endossada por Sidney Chaloub
e Jacob Gorender. Cf. Soares. Urban Slavery. . . Op. cit., p. 276-8. Sidney
Chaloub. Visões da Liberdade - uma História das Últimas Décadas da Es
cravidão na Corte. São Paulo. 1990, p. 271, nota 58. J. Gorender. Op. cit.,
p. 94-5.
41 Veja-se S. Chaloub. Op. cit., p. 271 .
42 "Cenas da cidade negra" é o título de um capítulo do livro de S. Cha
loub.
43 Veja-se L. Algranti. Op. cit., p. 145-6, 169-70, 181 . Na segunda metade
do XIX, com o aumento da população negra, essas questões ficam ain
da mais evidentes.
44 Josué Montello. Os Tambores de São Luís. 4.ª ed. Rio de Janeiro. 1981, p.
133.
4s Cf. ANRJ. Cod. 323 e 404.
Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 213
relação senhor-escravo e agia muitas vezes contra os interesses dos
senhores, mas também em outras situações assumia as funções do
feitor.
Sem dúvida, não se trata do Estado pós-1850, nem de um Estado
Nacional independente. As ações se passam no Rio de Janeiro, sede
da Corte portuguesa, quando o Brasil ainda vivia sob o jugo colo
nial e a cidade esparramava-se além de limites jamais sonhados.
As medidas de controle sobre os negros foram surgindo a partir
das necessidades e a instituição da escravidão ia moldando-se às
necessidades também da cidade. Era o trabalho ao ganho, o alu
guel, os escravos usufruindo de mobilidade e liberdades às quais
não estavam acostumados (trabalhando para comer, morando so
zinhos) e todos juntos aprendendo a conviver sem a figura do fei
tor e de seu chicote51• São vários, portanto, os ajustes que a escra
vidão vivenciou na cidade e não apenas, ou principalmente a fei
torização do Estado como foi dito.
Sem dúvida, o controle social era fundamental, e quanto à eficá
cia da "feitorização", ficará a cargo da historiografia dar conta do
porquê da ausência de rebeliões escravas numa cidade que atingi
ra tão grande proporção de negros - escravos e livres.
1 Thomas, Paul Robert. "The Sugar Colonies of the Old Empire: Profit
or Loss for Great Britain?". Economic History Review XXI (1). 1968, p.
30-45.
C O M É RC I O C O LO N IAL
E EXC LUS IVO M ETRO PO LITANO:
Q U ESTÕ ES RECE NTES
a.1) Braudel
1. º) ao analisar de que maneira "a circulação coloca frente a
frente as diversas economias nacionais" o Autor faz o Mercan
tilismo entrar em cena através da "Balança do Comércio" mas
apenas para concluir, para desespero dos estudiosos mais recen
tes do assunto, que "a balança comercial é o sonho de todos os
governos mercantilistas que identificam riqueza nacional e re
servas monetárias".
2.º) ao observar, ironicamente, que a idéia de que "o comércio
a longa distância representou, sem dúvida, o primeiro papel na
gênese do capitalismo mercantil" vem sendo hostilizada pelos
historiadores atuais, "preocupados em demonstrar a suprema-
a.2) Wallerstein
Neste, com efeito, o subtítulo de seu II volume não deve nos
iludir, pois, embora sua referência historiográfica mais recente
seja Coleman, o que, em si, seria ótimo, ele a utiliza às avessas,
de ponta-cabeça, como paródia, ao afirmar que " . . . as teorias
(mercantilistas) eram incoerentes por que apologias, porém os
países que se encontram em certas circunstâncias tendem a ado
tar uma política que chamamos de mercantilista"; logo, o que de
fato deve interessar são "as práticas reais dos Estados da época,
independentemente de sua justificação ideológica". Ora, segun
do Wallerstein, tais práticas não constituem característica de uma
certa época em particular mas, sim, têm sido utilizadas por al
guns Estados em quase "todos os momentos da história da eco
nomia-mundo capitalista, mesmo que hajam variado as suas
justificativas ideológicas". Em resumo, para este autor, o Mer
cantilismo, além de fenômeno que transcende as épocas, resu
me-se a duas coisas: uma política estatal de nacionalismo eco
nômico e uma ênfase acentuada na circulação de mercadorias
- o movimento dos metais preciosos e a criação de balanças
comerciais positivas.
23 0 1 Francisco J. C. Falcon
econômicas mercantilistas, historicamente anteriores, a marca da
"pré-cientificidade".
Nas origens destes dois tipos de juízos preconceituosos e ahis
tóricos sobre as idéias mercantilistas, encontramos os pressupostos
de uma "ciência econômica" que, apesar da crítica de Marx, reve
ladora de seu caráter eminentemente histórico, burguês, ignora
suas próprias determinações histórico-sociais, e assim se esquece
do fato de que também a ela se poderiam aplicar aquelas mesmas
restrições e desqualificações que geralmente endereçou aos pré
smithianos. Trata-se, portanto, ainda e sempre, da velha e rígida
distinção entre "ciência" e "ideologia", não importa se baseada em
pressupostos positivistas ou marxistas. "Ideológico", neste caso, é
apenas o pensamento mercantilista . . .
Mais importante talvez, pelas conseqüências reais que tem gera
do, vem a ser o fato de que as avaliações e críticas das idéias mer
cantilistas têm sido produzidas a partir de conceitos, categorias e
postulados teórico-metodológicos formulados no interior de ou
tros campos teóricos; a partir destes, buscaram-se os equívocos e
erros dos mercantilistas, ou, então, exaltaram-se os autores e idéias
pré-smithianas em que se identificou o valor de verdadeiros "pre
cursores" da ciência econômica.
Por outro lado, são muito mais raros os estudos que tentam in
terpretar as idéias mercantilistas na sua própria época, isto é, apre
ender-lhes os sentidos em função de seus próprios condicionantes
históricos, formas de pensamento dominantes etc. Aliás, mesmo
em algumas destas tentativas, como é o caso da Escola Histórica
Alemã, as interpretações compreensivas raras vezes escaparam a
preocupações e interesses de viés "presentista". Daí, as leituras di
ferentes mas não de todo isentas de certos equívocos e simplifica
ções mais ou menos anacrônicas.
J. Schumpeter, por exemplo, um dos leitores mais atentos e com
preensivos dos autores pré-smithianos, empenhado, até, em fazer
a distinção entre textos "panfletários" e textos realmente portado
res de reflexões sérias ou "analíticas", mesmo Schumpeter, repeti
mos, fundamenta sua análise nos pressupostas de cientificidade
(econômica) típicas da economia neoclássica quando trata de defi
nir o valor "analítico" das concepções econômicas mercantilistas6•
23 2 1 Francisco J. C. Falcon
vos os trabalhos que contribuem para produzir um "excedente de
riqueza" em termos de valores de uso - isto é, de "utilidade so
cial" (= satisfação de necessidades); esses trabalhos "aumentam a
riqueza da nação" ao aumentarem os valores de uso à sua disposi
ção, quer diretamente - através da produção propriamente dita
-, quer indiretamente - através do comércio com o exterior, sen
do sempre fundamental a maior ou menor utilidade desses mes
mos valores para o acrescentamento (crescimento) da riqueza na
cional. 2.º) são produtivos os trabalhos que produzem um exceden
te de riqueza em termos de valor ( = a qualquer expressão quantita
tiva de riqueza), ou de lucro (na concepção de Adam Smith).
Da diferença entre estes dois conceitos em presença resultaram
conseqüências distintas, do ponto de vista histórico para o ulterior
destino da diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo,
e também para os distintos conceitos de "trabalho produtivo".
Perrotta assinala que a abordagem centrada na produção de va
lores de uso nasceu e se consolidou com Petty e predominou até
mais ou menos 1 770; já a abordagem baseada na produção de valor
apenas se afirmou com Quesnay e expandiu-se até 1776 - o ano
de Smith e de Condillac7• A primeira perspectiva desaparece da
história do pensamento econômico já no final do século XVIII, en
quanto a segunda, apropriada por Smith e depois retomada por
Marx, acabou desacreditada entre os não-marxistas, e substituída
pelo postulado de que todos os trabalhos presentes no mercado
são produtivos.
Desta forma, foi perdida a perspectiva de que a abordagem ba
seada no valor de uso constituira um elemento essencial do pensa
mento mercantilista, e o quanto lhes parecia fundamental estabe
lecer distinções entre trabalho produtivo e improdutivo, bem como
hierarquizar os diversos trabalhos produtivos entre si. Tanto é ver
dadeiro tal "esquecimento" que Schumpeter chegou a considerar
como "estranha" a "digressão" de Adam Smith sobre esse tema,
ignorando assim o quanto o próprio Smith era devedor de muitas
das concepções mercantilistas8• Por sua vez, Marx, depois acompa
nhado por Heyking, estendeu para todo o pensamento mercantilista
o conceito de trabalho produtivo baseado em valores de uso, mas o
2 34 1 Francisco J- C. Falcon
mento é a ampliação da produção interna, sendo esta indispen
sável, até, para obter e conservar no país a riqueza vinda de fora"'J.
9 Idem, p. 44.
10
Idem, p. 59.
11
Idem, p. 73.
12
Idem, p. 98.
23 6 1 Francisco J. C. Falcon
Trata-se, assim, de diferentes tipos de "janelas", ou postos de
observação, dos quais se pode projetar diversos olhares sobre pai
sagens teóricas mais ou menos familiares. Muito provavelmente,
tais olhares descobrirão novidades, provocarão novas perguntas,
"estranharão" antigos cenários e paisagens outrora muito "conhe
cidos". Daí talvez resultem, quem sabe, mudanças quanto ao nosso
modo de equacionar historicamente as relações entre o exclusivo e
o comércio colonial.
Por ora, entretanto, temos que restringir bastante tais ambições
um tanto heterodoxas. Devemos restringi-las a alguns poucos tópi
cos e apresentá-las ainda como simples indagações oriundas de lei
turas e da observação do panorama historiográfico brasileiro nes
tes anos mais próximos.
23 8 1 Francisco J. C. Falcon
Pedro Pu ntoni
De p .tº de H i stória, FFLCH-USP
naturais das províncias dos Países Baixos, então parte do Império es
panhol. O Estado holandês, isto é, a República que federava as Provín
cias rebeldes, surge no final do século como o resultado do que se cos-
8 Cf. Frei Vicente do Salvador, História do Brasil: 1500-1 627 [1627]. São
Paulo /Belo Horizonte. 1982, p. 252. Segundo a nota de Rodolfo Garcia,
foi somente Capistano de Abreu que conseguiu elucidar o episódio, cf.
20
George Masselman. "Dutch Colonial Policy in the Seventeenth Centu
ry". /ournal ofEcon0 1JlÍC History, XXI, 4; 456-7, dez. 1961 . Veja-se, também,
E. F. Heckscher. La Epoca Mercantilista. México. 1983, p. 338-9. Para uma
história da Compagnie van Verre e destas pré-companhias, veja-se Charles
De Lannoy. "Expansion coloniale de la Néederlande (XVIIe et :XVIIIe
siecles)", in: C. De Lannoy e H. Vander Linden. Histoire de l'expansion
coloniale des peuples européens. Bruxelas/Paris. 1911, p. 28-47.
21
George Masselman. Op. cit., p. 457.
22 "Remostration submitted to the States óf Holland by the directors of
the East-India Company within in Amsterdam". Apud idem, p. 459.
28
Ibidem.
29
Até mesmo o cotidiano do europeu dos Seiscentos participava destes
conflitos. Como sabemos hoje, os acontecimentos na guerra do Brasil,
no nordeste da Colônia, eram detalhadamente acompanhados na Ho
landa e na Espanha através dos panfletos (panfleten); ou, mesmo, eram
objeto de apostas, que foram levadas a registro público. Como nos
mostrou J. A. Gonsalves de Mello, várias foram as apostas feitas na
Holanda relativas aos acontecimentos no Brasil. No dia 5 de janeiro de
1635, por exemplo, Pieter Meulemans e Matheus de Vick Jonge, co
merciantes, "apostaram mil libras flamengas como 'o forte chamado
Nazaré, como os portos e fortificações que dele dependem, situado no
cabo de Santo Agostinho no Brasil' não estaria no poder das armas da
WIC antes do dia 19 de março (Meulemans) ou estaria no próprio dia
19 ou antes (De Vick)". Sabemos, hoje, que o vencedor foi Meulemans.
O que, no entanto, este episódio ilustra muito bem era o incrível inte
resse que as guerras coloniais instigavam nos homens comuns de Ho
landa, ou, no caso, nestes comerciantes provavelmente interessados
nos sucessos desta grande empresa mercantil. Cf. Gente da Nação, Reci
fe, 1 990, p. 21 7. Estas apostas eram muito comuns, isto porque apos
tava-se de tudo nos Países Baixos, até mesmo qual seria a identidade
do novo Papa (em 1555 e em 1559). "The Antwerp brokers", escreveu
Parker, "took bets on everything: on the safe retum of ships, on the
outbreak of war (or peace) between states, on the death dates of the
great". Geoffrey Parker. Op. cit., p. 27-8.
30 Charles Ralph Boxer. The Dutch in Brazil, 1 624-1 654. Oxford. 1959, p. 1 .
31 Cf. Charles De Lannoy. Op. cit., p. 52-4; e Hermann Watjen. Op. cit., p.
72-3.
32 Cf. J. H. Rodrigues. "Usselincx e a formação da Companhia das Índias
Ocidentais", Brasil Açucareiro, p. 36-9, set: de 1 944.
2 54 1 Pedro Puntoni
1 62146• Dos 45 artigos de seu Regulamento recebido na ocasião, os
mais importantes eram: a exclusividade por 24 anos do comércio
com as costas da Á frica, abaixo do Trópico de Câncer, com as terras
e ilhas da América e, no Oceano Pacífico, da costa ocidental da
América à extremidade oriental da Nova Guiné. A Companhia po
dia construir fortes, possuir exércitos e negociar com outras nações
e soberanos estrangeiros; as tropas seriam fornecidas pelos Esta
dos Gerais, sendo o soldo de responsabilidade dos cofres da Com
panhia47.
Os Estados Gerais subsidiaram-na fortemente. Durante cinco
anos pagariam, todo ano, a quantia de 200 mil florins à Compa
nhia, participando dos seus lucros. Se envolvida em conflitos mili
tares, a Companhia contaria com a sua ajuda. O capital inicial, acu
mulado até 31 de agosto de 1 623, foi de 7.108.161 florins, obtidos
através da contribuição dos Estados e da compra de ações por par
ticulares. Por estar muito mais inspirada nos objetivos bélicos que
na criação dos núcleos coloniais e no incremento do comércio, a
Companhia não empolgou de imediato; as subscrições das ações
tiveram curso lento48• Os lotes de ações, de toda maneira, estavam
divididos entre cinco câmaras regionais, nas seguintes proporções:
Amsterdam, 4/9; Zelândia, 2/9; Rotterdam, 1 /9; Hoom e Frísia,
1 /9; a cidade e o campo de Groningen, 1 /9. Um corpo de 19 direto
res formava a administração central (chamada de Heeren XIX -
46 Cf. Charles De Lannoy. Op. cit., p. 73-83; e Charles Ralph Boxer. Op.
cit., p. 4-7.
47 Cf. "Privilégio concedido pela Altas Potencias os Senhores dos Es
tados Gerais à WIC em data de 3 de junho de 1621 ", in: Johannes De
Laet. História ou Anais dos feitos da Companhia Privilegiada das Índias Oci
dentais (1644). Rio de Janeiro, trad. port. Anais da Biblioteca Nacional, 30;
8-2 1 .
48 Cf. Hermann Watjen. Op. cit., p.80-3.
49 Cf. "Privilégio concedido pela Altas Potencias os Senhores dos Estados
Gerais à WIC em data de 3 de junho de 1621 ", in: Johannes De Laet.
Op. cit., p. 8-21; Petrus Marinus Netscher. Os Holandeses no Brasil. São
Paulo, trad. port. 1942, p. 51-2; e Charles Ralph Boxer. Op. cit., p. 8-9.
50 Cf. Charles Ralph Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola 1 602-
1 686. São Paulo, trad. port. 1 973, p. 57.
51 Cf. Cornelis Ch. Goslinga. The Dutch in the Caribbean and on the Wild
Coast. Gainesville. 1971, p. 39.
A conquista do B rasil
60
Idem, p. 19-20.
61
Para uma discussão dos argumentos que justificavam o ataque à Bahia,
veja-se Charles Ralph Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola
1 602-1 686. São Paulo, trad. port. 1 973, p. 57-60.
62
Boxer mostra que o Governador D. Diogo de Mendonça procurou se
preparar para o ataque dos holandeses que sabia destinado a "algum
ponto do Brasil". Os lavradores do Recôncavo, no entanto, viam com
indiferença ou mesmo oposição estes esforços. Daí Vieira ter relatado
que a surpresa havia sido grande. Cf. ibidem, p. 61-2.
63 "Ao Geral da Companhia de Jesus, 30/09/1626", nas cartas do Pe.
Antônio Vieira editadas por J. L. de Azevedo, Cartas do Padre Antônio
Vieira. Coimbra, 1925-26, vol. 1, p. 10-4.
64 Stuart Schwartz procurou mostrar recentemente que a Jornada dos
Vassalos "marked a turning point in the history of the Iberian Atlantic,
a last enactment of the old ties between the nobility and the Crown,
and a theater in which the roles of a unifying state, a mercantile bour
geoisie of suspect ortodoxy, and an increasingly disenchanted Por
tuguese nobility were played out". "The Voyage of the Vassals: royal
power, noble obligations, and merchant capital before the portuguese
restoration of independence, 1624-1640". American Historical Review, p.
737, june 1 991 . São muitas as descrições e histórias destes sucessos.
Várias delas contemporâneas como a de Johannes Gregorius Alden
burgk, Relação da Conquista e Perda da cidade de Salvador pelos holandeses
em 1 624 e 1 625. São Paulo, trad. port. 19�1, a carta de Vieira, já citada
acima, e, a mais famosa, de Bartolomeu Guerreiro, ]ornada dos Vassalos
26 2 1 Pedro Puntoni
rada. Mas esta expedição não repetiria a importância e a nobreza
daquela dos Vassalos69• Os navios de Oquendo encontraram-se
com os do holandês Paters, em 12 de setembro de 1631, nas águas
da Bahia, onde se deu uma grande batalha. O comandante espa
nhol disse, um pouco antes da batalha, que as naus do inimigo eram
"pouca roupa", mas, apesar de o almirante holandês Paters mor
rer, "envolto no estandarte da Holanda", como quer a crônica da
época, os espanhóis tiveram grande derrota, não podendo mais do
que deixar alguns reforços para os pernambucanos que resistiam.
"Parece que tudo concorria para a perda total de Pernambuco",
lamentava-se o donatário Duarte de Albuquerque70•
Com o fracasso da armada espanhola de Oquendo em 1631, a
resistência à invasão limitou-se a uma estratégia de "guerra lenta" .
Essa estratégia, perseguida pela Coroa ibérica, buscava a manu
tenção do impasse inicial, dos anos 1 630 a 1 632; quer dizer, procu
rava deixar aos holandeses o controle das praças-fortes, mas man
ter o da zona produtora de açúcar, à espera de uma intervenção da
Armada naval, quando isso fosse realizáveF1• Então, acentuava-se
a campanha de guerrilhas, a chamada "guerra brasílica" . Também
chamada de "guerra volante" ou "guerra de emboscadas", era na
verdade uma maneira de combate e uma estratégia militar que usa
va dos novos elementos típicos da situação da Colônia72•
A "guerra lenta", uma vez impossibilitado o apoio esperado pelo
mar, não poderia manter o domínio do Interior por muito tempo.
la Guerra dei Brasil, por discurso de nueve aiíos, empeçando desde el MDCXXX
(1654), de Duarte de Albuquerque Coelho. Recife. 1944, p. 94-8.
71 Evaldo Cabral de Mello. Olinda Restaurada. Rio de Janeiro. 1975, p. 24.
75 Idem, p. 66.
76 Como escreveu o conselheiro político Walbeek: "Meu parecer dado a
Vossas Graças em minha carta de 20 de maio de 1631, o qual sinto cada
vez mais confirmado até agora e no qual continuo a persistir, é que a
conquista desta região consiste na conquista e anexação do cabo de
Santo Agostinho, do Recife, da ilha de Itamaracá e da cidadela em Pa
raíba, pela realização do que toda a costa poderá ser fechada ao comércio com
Portugal" (os grifos são meus), "Relatório do Conselheiro político Jan
de Walbeek, apresentado aos diretores da WIC a 2 de julho de 1633,
lido pelos Estados Gerais a 11 de julho de 1633". Documentos Holande
ses. Rio de Janeiro, trad. port. 1945, v. 1, p. 125.
2 72 1 Eddy Stols
de oportunidades variadas. A nobreza, que teve a responsabilida
de pesada no desencadeamento da crise de 1566, reajustou-se den
tro do novo Estado e pôde recuperar suas posições anteriores, à
diferença do que ocorreu nas províncias setentrionais. Ao mesmo
tempo, teve que abrir suas fileiras a burguesias enobrecidas, mas
dentro de regras de jogo fixadas e respeitadas sob controle dos Reis
de armas vigilantes. Data provavelmente deste período o início da
participação bastante ativa da nobreza belga na vida econômica.
Por outro lado, a carreira militar atraía outros elementos desta clas
se, que estabeleceriam uma tradição de serviço, quase mercenário,
à Coroa Espanhola, que perduraria até depois do fim do domínio
espanhol, durante o século XVIII, com nobres militares desempe
nhando as funções de vice-rei ou de governador dentro do Impé
rio, ou com engenheiros militares construindo fortificações milita
res em toda parte.
Se a Igreja desfrutou de um poder jamais igualado, foi também
porque ela se integrou com a sociedade através de um leque de
carreiras e posições eclesiásticas melhor definidas e acessíveis. Es
ta clericalização da sociedade tinha, apesar de tudo, também sua
racionalidade e importância econômica. Basta lembrar aqui a fun
ção específica dos béguinages dentro da política patrimonial de mui
tas farm1ias, já que nesses recolhimentos as mulheres não renuncia
vam definitivamente à posse individual de bens, e se evitava assim
a acumulação estéril das propriedades de mão morta. Pelo grande
número de meninas e mulheres pobres, alguns béguinages se pare
ciam mais com os obrajes de México ou do Peru que com conventos
tradicionais. O serviço litúrgico e a vida religiosa constituíram-se
numa atividade econômica de primeira importância. Basta referir
a construção de inúmeras igrejas e conventos, que foi a geradora de
trabalho e de novas fortunas. Só os jesuítas levantaram uma dúzia
de novas igrejas de grande esplendor, como São Carolo Borromeu
em Antuérpia, e fundaram até 1626 nada menos que 34 colégios.
Fenômeno igual dificilmente se registrará nas cidades das Provín
cias Unidas, onde apenas prosperou a construção civil. Agora, esta
última também se manifestou nas Províncias Meriodionais e trans
formou cidades de aspecto medieval em cidades modernas. A his
tória econômica deste período precisaria avaliar melhor o peso des
tes setores: construção e gastos religiosos.
O comando político e o controle religioso impostos de acima só
encontraram receptividade porque foram acompanhados de uma
2 74 1 Eddy Stols
nha. Seria talvez mais um sinal de auto-suficiência desta agricul
tura do que de conservadorismo. Finalmente, lembramos que nes
te período se aperfeiçou é generalizou a combinação exemplar da
agricultura com a criação do gado de estábulo, para obter os fertili
zantes doravante insubstituíveis.
O setor agrícola, ou melhor, os pequenos camponeses souberam
também melhorar sua renda com a atividade artesanal durante o
inverno: tecer linho ou lã, fundir ferro e bater pregos. Sua força de
trabalho era tanto mais apreciada que muitos tecelões a tempo ple
no tinham se mudado ou fugido para as províncias setentrionais,
para a Inglaterra ou mesmo para a Alemanha. Assim mesmo, o co
lapso da produção têxtil foi de curta duração, e mesmo os centros
tradicionais mais atingidos como Hondschoote, produtor das fa
mosas anascotas, voltaram a trabalhar. Em Bruges, a produção têx
til conheceu uma nova expansão. É provável que uma boa parte
dos panos holandeses de exportação vinham na verdade do sul.
Por outro lado, as Províncias Meridionais reagiram e se especializa
ram em setores de boa procura como a fabricação de telas de linho
(brabantes, gantes e outras), da seda, sobretudo em Antuérpia, de
tecidos de fios mesclados como as bouratas, e de rendas. Esta últi
ma atividade beneficiou sobretudo as mulheres - religiosas, be
guinas, órfãs, empregadas e patroas - e promoveu uma melhor
integração das mulheres na economia doméstica e monetária, um
aspecto que foi ainda insuficientemente avaliado.
A atividade artesanal compensou outrossim suas perdas com
uma maior diversificação. Além do setor de construção já assina
lado, há de contar-se com outro setor em alta, o equipamento da
soldadesca em roupa, armas e outros instrumentos. Merece maior
destaque todo o trabalho com o couro, para a sapataria, as bolsas e
até o revestimento de cadeiras e paredes. Surgiu também aqui uma
'civilização do couro', se bem que algo diferente daquela dos ser
tões brasileiros ou mexicanos. Os couros passariam doravante a ser
importados em quantidades bem superiores àquelas do século XVI.
Basta ver a evolução da zapatilha leve para a bota de cano alto dos
mosqueteiros, ou dos galões da época. Qualquer salão de burguês,
ou de autoridades municipais ou religiosas tinha suas cadeiras de
couro e os muros revestidos com os couros dourados de Malines,
versão flamenga dos cordovãos ou guadamecis espanhóis.
Outro setor em expansão foi o das armas, em parte concentrado
em Liege, mas também com fábricas de importância em Malines.
2 76 1 Eddy Stols
novos, espanhóis e até italianos. Chegaram depois os ingleses per
seguidos ou em dificuldades políticas na sua terra.
Ao mesmo tempo, os mercadores estrangeiros foram cada vez
mais sendo substituídos por elementos nativos, de Antuérpia ou
de cidades como Lille, Gand e Bruges. Muitas vezes, estes merca
dores realizavam casamentos mistos como, por exemplo, com fa
rm1ias espanholas de Bruges, ou italianas de Antuérpia. Por outro
lado, é preciso assinalar que as referidas cidades se beneficiavam
de certa maneira da decadência de Antuérpia. Houve um reequilí
brío na estrutura comercial, e certamente Bruges pôde conservar
senão melhorar sua participação no comércio com o mundo ibero
americano, depois de haver sido quase eliminada pela expansão
de Antuérpia no início do século XVI. Outro indício desta redis
tribuição da função centralizada de Antuérpia foi a fundação, en
tre 1618 e 1633, de nada menos do que quinze Montes de Piedade
(Casas de Penhores), que, de acordo com o modelo italiano, conce
diam, a juros reduzidos, um crédito limitado sobre jóias e outros
haveres e representavam de certa maneira uma forma mais socia
lizada dos Bancos surgidos no Norte da Europa. Sobretudo os pe
quenos comerciantes e artesãos se beneficiaram destas novas ins
tituições.
Este comércio com o mundo ibérico e ibero-americano fixar-se
ia agora como a espinha dorsal da economia dos Países Baixos Me
ridionais. Já era importante antes da queda de Antuérpia, e talvez
mais do que muitos historiadores aceitam. Os comerciantes fla
mengos estavam presentes em Lisboa, Sevilha, Cadiz, Madri, Valla
dolid, Porto antes de 1566. Já estavam na Madeira, nos Açores, nas
Ilhas Canarias e também em Santo Domingo, no México, no Peru e
no Brasil. Ocuparam-se além do tradicional comércio de têxteis e
de miudezas como cofres, tesouras, campainhas, também do equi
pamento e do armamento das frotas americanas. Assim, alguns co
merciantes implantaram-se nas Atarazanas de Sevilha. De artesãos
lombardeiros e mineradores passaram a grandes comerciantes, ex
ploradores de minas como em Potosi, de engenhos e plantações
nas Canarias, na Madeira e nas costas do Brasil, não só com os Es
quetes ou Schetz em São Vicente mas com outras famílias como os
Lins, Holanda, Campos, Mere e outros no Nordeste.
Com as dificuldades religiosas e políticas dos anos 1566-85, a
sua atuação no mundo ibérico e ibero-americano cresceu mais ain
da. A fuga para o Norte correspondia também uma emigração para
Bibliografia