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João Pereira Coutinho (/colunas/joaopereiracoutinho/)

Uma conspiração de estúpidos


Se trocarmos políticos corruptos por idiotas, teremos razões para festejar?

27.ago.2019 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2019/08/27/)

Contra a estupidez, até os deuses lutam em vão. Assim falava Schiller. E


assim falo eu, que dedico há anos uma atenção obsessiva ao assunto.
Há gente que gosta de olhar para pássaros. Eu gosto de olhar para
estúpidos, motivo por que me dediquei ao comentário político em solo
luso. 

Atenção. Não falo da estupidez pontual, acidental, pessoal. Não atiro a


primeira pedra: os meus atos de estupidez, que são vários e continuarão
a ser vários, fazem parte da minha imperfeição.

Eu falo da estupidez consistente, estrutural, constitucional. Falo de uma


estupidez que não é possível apagar, corrigir, civilizar. E que jamais pode
ser confundida com a mera ignorância. A ignorância tem cura. A
estupidez, não.

Mas o que é a estupidez? (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2018/11/maldade-


ou-estupidez.shtml) De onde vem? Como podemos neutralizá-la, se é que

podemos? 
A resposta foi dada, de forma inultrapassável, por Carlo M. Cipolla em
“The Basic Laws of Human Stupidity”. Conhecia o ensaio (de nome), mas
ainda não o tinha lido. Foi preciso viajar para a Itália e encontrar o
tesouro numa livraria de Milão. Quase chorei de alegria. 

Cipolla, um dos mais importantes historiadores econômicos do pós-


Segunda Guerra, escreveu o ensaio em 1976 com o mesmo rigor
científico com que tratou da política monetária de Florença no século
14.  (https://www1.folha.uol.com.br/folha/turismo/noticias/ult338u2813.shtml)

A primeira lei parece razoavelmente consensual: todos subestimamos o


número de estúpidos em circulação. É um fato. O pasmo que sentimos
quando nos encontramos com um representante da espécie é prova
desse otimismo absurdo, que só diminui com a idade (experiência
pessoal). 

Angelo Abu/Folhapress

Por outro lado, uma concepção igualitária dos seres humanos tende a


atribuir à educação, à sociedade e à cultura a última palavra em matéria
de estupidez. 

É um erro. A estupidez é determinada pela natureza, como a cor dos


olhos ou a ondulação do cabelo. É isso que explica a existência de um
número mais ou menos constante de estúpidos em todas as classes
sociais, em todas as profissões, em todos os países. 

Para ficarmos apenas na universidade, um microcosmos que eu conheço


bem, o número de alunos estúpidos não difere do número de professores
estúpidos. O fato de os primeiros não terem diploma e os segundos
terem uma parede coberta de honrarias não altera a estupidez essencial. 

Mas é na terceira lei da estupidez que Cipolla se supera. Para ele, os seres
humanos se distribuem em quatro categorias fundamentais: os inaptos,
os bandidos, os inteligentes e os estúpidos. 

O inapto, quando age, beneficia os outros e prejudica a si próprio. O


bandido, pelo contrário, prejudica os outros para se beneficiar
pessoalmente. O inteligente, quando age, consegue beneficiar todos (por
isso é inteligente). 

O que distingue o estúpido é a capacidade que ele tem para provocar


dano a terceiros sem retirar daí nenhuma vantagem própria. Pelo
contrário: ele pode incorrer em danos também. 

No fundo, é a irracionalidade do estúpido que o torna a criatura mais


perigosa do mundo (lei final). Talvez por deformação iluminista, as
pessoas comuns acreditam que a racionalidade foi universalmente
distribuída. E que ninguém, em juízo perfeito, irá atuar contra os seus
próprios interesses. 

Nesse sentido, aceitamos (e lamentamos) o destino dos inaptos;


admiramos os inteligentes; e até entendemos a cabeça de um bandido. 

Mas os estúpidos nos desarmam. Na linguagem da economia, eles têm


uma vantagem competitiva sobre os restantes porque operam num
plano onde as leis da lógica não têm vez. 

O ensaio de Cipolla tem a rara qualidade de iluminar o mundo. Não


apenas o mundo cotidiano que habitamos (“afinal, o meu primo é só
estúpido, não é bandido”) mas o mundo político em particular. 
Aplicando os tipos ideais de Cipolla à política, eu diria que políticos
inteligentes são raros; e que políticos inaptos, daqueles que beneficiam
os outros pelo sacrifício dos seus interesses, são mais raros ainda. 

A maioria se distribui entre a bandidagem e a estupidez, e eu não sei qual


delas será pior. Quando nos livramos de políticos corruptos e
importamos políticos estúpidos, teremos razões para festejar? 

Só num ponto discordo de Cipolla: ele acredita que, à medida que as


sociedades se desenvolvem, o número de pessoas inteligentes será capaz
de manter os estúpidos no seu lugar. 

Pobre Cipolla. Ele esqueceu a primeira lei do seu tratado: nunca


subestimar o número de estúpidos, nem mesmo nas sociedades mais
desenvolvidas. 

Se ele ainda estivesse vivo (morreu no ano 2000), era só olhar ao redor.

João Pereira Coutinho


Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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