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PSICOLOGIA MORAL

Flavio Williges (Departamento de Filosofia, UFSM)

Este ensaio foi publicado como capítulo do Manual de Ética: Questões


de Ética Teórica e Aplicada, Organizado por João Carlos Brum Torres.
Petropólis: Vozes, 2013. p.20-45

1 INTRODUCÃO
Em nosso dia-a-dia preocupamo-nos em agir bem, deixamos de fazer muitas coisas por serem
erradas ou moralmente proibidas e, ao mesmo tempo, estimulamos crianças e aconselhamos
adultos a fazerem o que nos parece certo ou moralmente correto. Muitas vezes, por considerar que
agimos mal (ao, por exemplo, magoar alguém que amamos), sentimos culpa ou arrependimento e
condenamos, freqüentemente com aspereza, aqueles que fizeram algo errado conosco ou com
nossos amigos e familiares. Isso mostra que boa parte de nossas ações seguem padrões morais. Os
padrões morais têm força normativa, ou seja, atuam como normas guiando ou governando nossas
ações. Quando normas morais governam com sucesso nossas ações, elas o fazem por deixarem
traços psicológicos permanentes nos agentes morais (pessoas) cujas vidas elas governam. Isso quer
dizer que deve haver padrões psicológicos específicos atuando nas pessoas que internalizam e
seguem padrões morais. Assim, se queremos entender o comportamento moral humano como um
fenômeno normativo, ou seja, que nos obriga a agir de certo modo, devemos conhecer melhor os
estados e capacidades psicológicas que fazem com que normas morais governem a vida das
pessoas. Devemos investigar, portanto, os fatores psicológicos envolvidos no comportamento
moral. A psicologia moral nada mais é do que a parte da ética que estuda os fatores ou
determinantes psicológicos do comportamento moral. O filósofo americano Jay Wallace apresenta a
psicologia moral assim:
A psicologia moral explora uma variedade de fenômenos psicológicos através da
perspectiva unificadora do interesse pela normatividade. Ela estuda as condições
psicológicas responsáveis pela possibilidade de normas de ação coercivas; as formas
segundo as quais normas morais e outros tipos de normas podem ser internalizadas e
governar a vidas dos agentes, bem como uma série de condições e formações psicológicas
que tem implicações para a avaliação normativa de agentes e de suas vidas. (Wallace, 2007,
p. 87)
A identificação das capacidades e condições psicológicas que atuam sobre nós fazendo com
que a moralidade tenha força normativa sobre nossas vidas é complexa. Há muitos fatores
envolvidos. Para as finalidades desse capítulo, podemos indicar preliminarmente (e na forma de
problemas) alguns itens fundamentais do conjunto de aspectos psicológicos envolvidos na
moralidade.
1) O problema da motivação moral.
O que nos motiva a agir moralmente? Será que estados psicológicos como pensamentos e
crenças sobre o que é certo fazer são capazes de nos conduzir a fazer coisas certas ou precisamos de
algo mais forte como o desejo? O problema de determinar o que nos motiva a agir moralmente é um
problema vinculado ao entendimento da função que estados psicológicos (como crenças e desejos)
e outros tipos de itens psicológicos desempenham como forças motivadoras da ação moral.
2) O problema da função das emoções no comportamento moral. Muitas pessoas sentem
vergonha e culpa quando fazem algo errado. As pessoas que observam uma injustiça sendo
cometida (como zombar de uma pessoa pobre e desprotegida) sentem indignação. Qual o papel das
emoções no comportamento moral? Elas são responsáveis pela condenação ou aprovação de ações
ou pessoas? Elas são indicadores da internalização satisfatória de normas morais aceitas?
3) O problema da relação entre moralidade e felicidade humana. Seres humanos são agentes;
eles fazem coisas no mundo (como comprar casas, passear, cuidar das crianças, iniciar um curso na
faculdade, etc). Ações desse tipo são executadas voluntariamente (diferentemente de sangrar ou
dormir que não são executadas nesse mesmo sentido). As ações pressupõem uma intenção, algo que
queremos através da realização da ação, algum propósito que reconhecemos como importante e que
podemos, eventualmente, fracassar em alcançar. As teorias que explicam a ação humana tendem a
considerar que a ação pressupõe algum objetivo (algo que impulsiona o agir) ou benefício que
buscamos. Os benefícios ou objetivos que buscamos podem ser instrumentais (como comer menos
se queremos emagrecer) ou objetivos intrínsecos ou com valor em si mesmo. O prazer (de ouvir
uma boa música, por exemplo) é um bem com valor em si mesmo. Mas existe um bem último, um
benefício final, que pode doar sentido a todas nossas ações? Qual o objetivo último das nossas
ações, das coisas que fazemos na vida? O benefício último ou bem último que buscamos através de
nossas ações tem sido caracterizado, desde Aristóteles, como sendo a felicidade (eudaimonia, em
grego). A felicidade era entendida como um estado ou condição em que nossa vida pode ser
considerada boa, satisfatória, um tipo de vida importante de ser vivido por um ser humano. A vida
feliz foi concebida como envolvendo vários elementos (saúde, prazer, reconhecimento pelos
colegas, retidão).Teorias recentes sobre a felicidade tendem a sustentar que uma vida feliz depende
do bem-estar subjetivo ou auto-satisfação e que esses estados promovem ações boas, altruístas.
Afinal, qual o papel que a busca da felicidade desempenha no comportamento moral? Se a
felicidade e conceitos correlatos como bem-estar e satisfação guiam nossas ações e deliberações
pessoais, como fazem isso?
4) O problema do caráter e das virtudes. As abordagens filosóficas mais recentes entendem as
avaliações morais de ações humanas e pessoas a partir do apelo a normas e raciocínios. Esses
teóricos dizem que, quando condenamos alguém, não estamos fazendo nada além de reconhecer que
existem normas morais que presidem nosso comportamento e aplicamos essas normas aos
comportamentos particulares. Por outro lado, há doutrinas muito antigas que não falam de normas
ou ações para explicar a moralidade, mas usam a noção de virtude. As virtudes são traços de caráter
das pessoas, ou seja, um conjunto de traços de comportamento que levam as pessoas a agir de
maneira específica em determinadas ocasiões. Algumas virtudes muito apreciadas em nossa época
são a honestidade, bondade, disciplina, senso de justiça e preocupação com os outros
(solidariedade). Se as ações decorrem do caráter, um homem com caráter bondoso e solidário
procurará ajudar as pessoas em situações em que for adequado expressar essa virtude (por exemplo:
um homem bondoso dará seu casaco para alguém que sente frio na rua ou defenderá uma pessoa
indefesa nas situações em que ela sofre alguma injustiça), pois o caráter atua como um
determinante psicológico da ação. No entanto, estudos empíricos têm mostrado que dependendo
das circunstâncias da ação, ou seja, do contexto ambiental e influências, o papel do caráter na
realização de ações morais pode ser enfraquecido enormemente ou eliminado por completo. Pessoas
que recebem um benefício irrisório (como achar uma moeda de 25 centavos na rua) são
estatisticamente mais propensas a ajudar alguém em dificuldades (como ajudar alguém a recolher
uma pilha de documentos que caiu no meio de uma rua movimentada). Mas, afinal de contas, em
que medida a ação moral depende do caráter e virtudes? Será que o contexto ambiental, as
circunstâncias da ação, são mais importantes que o caráter?
5) O problema da variação moral entre gêneros. Existem diferenças físicas evidentes entre
homens e mulheres (entre os gêneros masculino e feminino). Mas será que existem diferenças no
desenvolvimento do raciocínio e no tipo de avaliação moral de homens e mulheres? Tem sido
considerado que as mulheres são mais sensíveis e tolerantes com erros dos outros, que elas perdoam
mais e são mais compreensivas, enquanto os homens são mais racionais, abstratos e guiados por
sentimentos de honra e justiça. Existem diferenças no modo de pensar e agir moralmente (nas
operações e capacidades morais) de homens e mulheres?
6) O problema da identidade prática ou “eu moral”.
Será que é suficiente, para entender a normatividade da moral, ter uma boa teoria impessoal
ou abstrata que explique as ações morais que muitos praticam (doar roupas, comida e brinquedos
aos necessitados, trapacear nos negócios, mentir) ou precisamos também de uma teoria que permita
entender essas ações como próprias de alguém, de um “eu” ou pessoa envolvida em um projeto de
vida que dá sentido e direção às ações? É suficiente falar em ações orientadas por preceitos ou
precisamos entender melhor como a noção psicológica do “eu” atua como um elemento integrador
das diferentes ações? Qual o papel que a identidade que plasmamos como agentes e nossos projetos
pessoais desempenham no comportamento moral?
Essas questões não esgotam o domínio dos temas da psicologia moral, mas permitem elaborar
um panorama inicial bastante completo da disciplina. Como se verá mais adiante, elas foram
apresentadas como problemas, pois o debate e o tratamento de cada uma delas ainda está em aberto.
Antes de avançar e aprofundar a análise desses problemas é importante reconhecer que a psicologia
moral foi, durante boa parte da história humana, objeto da atenção quase exclusiva dos filósofos.
Com o avanço científico e tecnológico, verificado a partir do início do último século, novas
alternativas de conhecimento do comportamento moral foram desenvolvidas e a ciência da
psicologia passou a dar atenção ao tema, investigando, através de observação e experimentos, como
o comportamento moral desenvolve-se em seres humanos. As pesquisas de Jean Piaget e Lawrence
Kohlberg desenvolvidas nos anos 40 e 50 foram pioneiras na abordagem empírica do
comportamento moral. A tendência de estudar a psicologia moral empiricamente cresceu muito nos
últimos anos, sobretudo em virtude do surgimento de novas tecnologias de mapeamento das
funções das diferentes partes do cérebro e das descobertas em torno da atuação dos hormônios
(como a ocitocina e a testosterona) e outras substâncias no comportamento moral (INSERIR
QUADRO 1). A aproximação entre ética filosófica e psicologia empírica (experimental) fez com
que a psicologia moral adquirisse o status de uma investigação multidisciplinar. Nesse capítulo,
procuraremos oferecer um panorama da psicologia moral que leve em conta tanto as reflexões
próprias da tradição filosófica, quanto os desenvolvimentos mais recentes da psicologia moral
experimental. Começaremos fornecendo uma apresentação geral de entendimento das duas
principais abordagens da moralidade e, em seguida, faremos uma abordagem pontual de cada um
dos problemas indicados acima.

2 Duas concepções acerca da moralidade: boa conduta e pessoa moral


2.1 Moralidade e boa conduta

A principal questão que ocupa a psicologia moral é a questão da ligação entre normatividade
(o cumprimento das exigências da moralidade) e psicologia, ou seja, entre aquilo que nos determina
a agir conforme padrões morais e os fatos e conceitos psicológicos envolvidos. O modo como essa
temática geral é abordada varia de acordo com a tradição ou entendimento subjacente da natureza
da moralidade. Existe uma tradição que, para os propósitos desse texto, podemos chamar de
tradição da “boa conduta” que analisa os comportamentos específicos associados com a moralidade
como comportamentos vinculados a um sistema de normas ou um sistema de raciocínio baseado em
princípios do dever ou obrigações. Para esses autores, a moralidade humana se expressa
adequadamente como um conjunto de deveres, princípios e normas que seguimos em nossa conduta
diária. O segundo enfoque ou tradição enfatiza, na análise da moralidade, sobretudo as noções
gerais de pessoa, ou seja, sujeitos humanos equipados com ‘projetos de vida’ ou ‘projetos pessoais’
cujo desenvolvimento resulta na construção de uma vida com “valor”, “significado”. Que tipo de
pessoa devo ser? O que é uma vida humana desejável? Quais são os traços de caráter necessários
para a felicidade humana? São essas as perguntas centrais da segunda tradição. Podemos ter uma
idéia bem clara da diferença fundamental entre essas duas tradições a partir da seguinte passagem
de Charles Taylor. Ele diz:
Boa parte da filosofia moral anglo-saxã concentra-se no fato do
agente ter um sentido que ele ou ela pode fazer certas coisas. O foco é
naquilo que somos obrigados a fazer. O interesse intelectual se concentra
em tornar claro o que tem em comum as coisas que somos obrigados a fazer.
Uma teoria diz que todas elas envolvem maximizar a felicidade humana
[utilitarismo]; outra diz que elas todas envolvem não agir com base em
máximas que não sejam universalizáveis [kantismo ou deontologismo]. A
filosofia está procurando aqui um modo de derivar nossas obrigações,
procurando um teste pelo qual possamos ver o que nós somos moralmente
obrigados a fazer. Mas a ética envolve mais do que aquilo que estamos
obrigados a fazer. Ela envolve aquilo que é bom ser. Isso se torna claro
quando pensamos sobre outras considerações além daquelas que surgem a
partir de nossas obrigações com os outros, questões sobre a vida boa e a
satisfação humana. (TAYLOR, 1996, p. 10.)
Taylor distingue nessa passagem dois modelos de abordagem da ética: uma ética centrada na
ação obrigatória ou boa conduta e uma abordagem da ética centrada naquilo que é bom ser. Embora
haja um distanciamento grande entre os autores de uma e outra tradição, essas duas abordagens não
são excludentes, mas complementares. Para a tradição de autores vinculados à tendência da “ação
certa, obrigatória”, o homem moral é um agente deliberador, alguém que precisa tomar decisões
prático-morais e, para tanto, precisa saber como fazer escolhas corretas do ponto de vista moral.
Nessa perspectiva, ter uma vida moral implica ser capaz de aplicar adequadamente os princípios
morais gerais (como fazer apenas aquilo que produz as melhores consequências ou o máximo de
consequências boas) ao contexto das ações particulares. Por exemplo: numa determinada situação
pode-se deliberar se é certo impor um castigo a uma criança que não fez a lição escolar. Como se
sabe, toda forma de castigo envolve elementos desagradáveis, mas se as consequências forem boas,
o utilitarista dirá que é certo adotá-lo. O conteúdo da abordagem da moralidade pela via da “ação
certa” envolve essencialmente conceitos de dever, aquilo que “deve” ou “não deve” ser feito e os
conceitos gerais de “bom e mau, certo e errado”. Embora façam parte de nosso vocabulário moral,
os conceitos morais menos pomposos (humilde, brincalhão, severo, doce, metido, etc) não são
amplamente empregados nessa tradição. As decisões morais aparecem, nessa abordagem focada na
ação e obrigação, como um “modelo computadorizado e legalista” (DEIGH, 1996, p. 1).
A partir dessas características, fica fácil reconhecer que psicologia moral importa para essa
primeira tradição como uma disciplina preocupada com a aprendizagem e assimilação de normas
morais e também interessada nas expectativas que os outros dêem importância a elas. Os pontos
centrais indicados acima mostram que uma psicologia moral adequada para esse modelo de
abordagem moral deve explorar os elementos racionais, objetivos e universais envolvidos na ação
moral, como juízos morais envolvendo a adequação de princípios a fatos ou situações, bem como
estados psicológicos como a intenção, a vontade racional do agente e sua capacidade de controlá-la
para fazer o que é certo. Embora alguns pontos desse modelo sejam considerados, a abordagem da
psicologia moral que será feita nesse capítulo estará mais voltada para a psicologia pressuposta pelo
segundo modelo, o modelo que aborda a moralidade a partir da pessoa moral ou daquilo que é bom
ser.
2.2 Moralidade e ser bom
A segunda tradição de abordagem tem como foco a identidade e a pessoa moral, bem como
com aquilo que dá significado e objetivo na vida (felicidade, vida virtuosa). A moralidade é
entendida aqui não apenas com um foco na ação, mas envolvendo elementos como visão (o modo
como representamos o caráter das pessoas em sua inteireza), consciência (boa ou má, envolvendo
auto-indulgência, consolação), aperfeiçoamento e auto-realização moral e identificação com as
ações que fazemos. Uma forma de entender essa abordagem foi apresentada pela filósofa britânica
Iris Murdoch. Ela criticou os filósofos que tiveram a pretensão de ver a ética como uma disciplina
científica, preocupada em encontrar, de um modo abstrato e neutro, uma caracterização da boa ação,
em detrimento da conquista de uma vida mais virtuosa. Ela critica essa tradição dizendo que a ética
deve não apenas responder questões ligadas à boa conduta, mas deve ajudar a compreender “como
podemos nos tornar melhores”. (Murdoch, 2001, p. 76). Ela sustentou que a ética trata “da atividade
contínua de nossas mentes e almas e com nossas próprias possibilidades de sermos verdadeiros e
bons”. (Murdoch, 1993, p. 250). Como ela diz, numa passagem que tem sido freqüentemente citada
para estabelecer a diferenciação entre esses dois modelos de investigação moral, agentes morais são
melhor retratados como pessoas que vêem a moralidade a partir da contemplação (muitas vezes
interior) de imagens que fazem de si mesmos e dos outros. Essas imagens são, muitas vezes, falsas,
guiadas por tentativas de auto-proteção egoísta. A moralidade é, em grande medida, o esforço por
ver os outros sem as distorções que o egoísmo e falsificações provocam. Uma boa abordagem moral
deve começar por tentar entender como nos tornamos capazes de alcançar esse ponto de vista
realista, objetivo em nossas avaliações e considerações dos outros. Esse tipo de resultado supõe o
que ela chama de uma “visão total da vida” (e não apenas de seus atos particulares). Ela diz:
Quando compreendemos e avaliamos outras pessoas nós não
consideramos apenas suas soluções pra problemas práticos específicos, nós
consideramos algo mais fugaz que poderia ser chamado de sua visão total da
vida, sua avaliação dos outros, sua concepção da sua própria vida, o que ela
considera interessante ou valioso, o que ela considera engraçado; em suma,
as configurações de seu pensamento que se mostram continuamente em suas
reações e conversação. Essas coisas que podem ser geral e
compreensivelmente articuladas ou internamente elaboradas e concebidas
constituem o que alguém poderia chamar de o ser do homem ou a natureza da
sua visão pessoal. (Murdoch, 1998, p.79; 80-81)
A moralidade aparece aqui, no essencial, como um eu ou alma marcada pelo esforço para
tornar-se bom ou ser uma pessoa boa, através de uma sucessão de movimentos interiores de
apreensão, de contínua transformação, em direção ao auto-aperfeiçoamento. Nesse modelo, além de
certo e errado, ganham destaque conceitos subsidiários (teimoso, rude, gentil, alegre, jovial,
grotesco, etc) que dão conta do modo como vemos os outros, assim como a textura da vida que
modelamos através de nossos atos, pensamentos, elucubrações em torno de laços afetivos, gestos
corporais, tom de voz, pesar pelos erros e assim por diante. Para esse tipo de abordagem, interessam
muito os mecanismos empíricos ou fáticos relacionados à auto-concepção e auto-transformação,
bem como a identificação que temos com nossos atos. A seguir faremos uma exposição sobre cada
um dos problemas apresentados inicialmente, focando principalmente nessa segunda tradição de
análise da moralidade.
3 Motivação moral
A motivação para a ação moral é diferente da motivação para outros tipos de ações (como a
motivação para estudar, correr, etc.). Ao contrário dessas outras formas de ação, a motivação moral
deve explicar a motivação que temos para agir bem, para fazer coisas consideradas boas. Quais são
os estados ou fatos psicológicos que motivam as pessoas a agirem moralmente? Há outros
elementos que podem motivar, além de estados psicológicos? O problema da motivação moral é um
problema vinculado às razões que levam as pessoas a fazerem coisas com valor ou significado
moral. O simples pensamento que algo é bom é suficiente para motivar alguém a fazer o que é
bom? Considere o seguinte exemplo:
Jen está descendo a rua quando um mendigo lhe pede dinheiro. Ela pára e lhe dá um
dólar, o cumprimenta e segue caminhando. Jen parece ter feito uma ação moralmente
boa. Mas o que a motivou a realizá-la? Talvez ela tenha sido motivada pelo
pensamento que o homem precisava do dinheiro mais do que ela. Talvez ela tenha
sido motivada pelo desejo de parecer uma pessoal boa para aqueles que a rodeiam.
Talvez ela tenha sido motivada por um surto irracional de medo do que o mendigo
poderia fazer, se ela não lhe desse esmola. E podemos fazer outras especulações, pois
cada ação tem muitas motivações possíveis. (Shroeder et al, 2010, p. 72)
A partir desse pequeno exemplo fica claro que a ação moral pode ter muitas motivações
distintas. O filósofo escocês David Hume e vários filósofos argumentaram que o desejo tem uma
função motivadora preponderante, de modo que outros tipos de propriedades psicológicas (como
estados racionais ou cognitivos) não seriam capazes de levar as pessoas a fazerem o que é
considerado certo. Mas podemos ver pelo exemplo que há ainda outros motivos que poderiam atuar
na ação. Esses diferentes tipos de motivos levaram à defesa de concepções variadas da motivação
moral. Há dois grupos de teorias que explicam a motivação moral. As teorias psicológicas (que
fazem referência a estados mentais como desejo e crença) e as teorias não-psicológicas. De acordo
com Shroeder, Nichols e Roskies (2010), as principais teorias sobre a motivação que apelam para
conceitos psicológicos são o instrumentalismo, o cognitivismo, o sentimentalismo. Vejamos
brevemente cada uma dessas doutrinas.
a) O instrumentalista sustenta que temos desejos que queremos satisfazer, como o desejo de
ter experiências prazerosas ou de querer o bem-estar das pessoas que gostamos. A motivação
começa com esses desejos. Mas os desejos sozinhos não motivam. Precisamos também de crenças
sobre como satisfazer esses desejos. O instrumentalista diz que as pessoas são motivadas quando
elas formam crenças sobre como satisfazer desejos pré-existentes. No exemplo acima, fica claro que
Jen deseja fazer o que é certo e tem a crença que ao dar ao mendigo um dólar, ela está fazendo a
coisa certa. “Ela tem, assim, um desejo instrumental de dar ao homem um dólar. Esse novo desejo é
sua motivação para dar a ele um dólar. Ela então age com base em seu desejo instrumental e dá ao
homem um dólar; portanto também agindo a partir de seu desejo intrínseco de fazer o que é certo.
Ao fazer isso, ela faz o que é certo e age com consideração moral” (Shroeder et al., 2010, p. 72).
b) O cognitivista rejeita a tese que a motivação moral começa com o desejo e a tese que a
crença desempenha uma função meramente instrumental. Ele sustenta que desejar não pode fazer
isso, pois desejar é simplesmente estar em um estado que gera um impulso comportamental e um
impulso comportamental não pode ser a fonte da consideração moral. Ou seja, o cognitivista
considera que o desejo de ajudar, por exemplo, só fornece um estímulo para a ação, mas não pode,
por ser um tipo de impulso, funcionar como motivador da moralidade. Qual o motivo da ação
moral, então? A motivação moral começa com uma crença ou um pensamento (conteúdo cognitivo)
sobre quais ações podem ser corretas. Segundo Shroder e outros, o cognitivista sustenta que, pelo
menos nos casos de ação moralmente relevantes, tais crenças conduzem a motivação a realizar
aquelas ações. Uma ação moralmente relevante não depende de desejos antecedentes, mas resulta
primeiramente de crenças. A motivação de Jen poderia ser explicada assim: “os desejos de Jen não
são irrelevantes para sua ação, mas eles não estão no ponto de partida das engrenagens da ação. Em
vez disso, seus desejos são meros dados que ela considera ao vir a ser motivada. No contexto de sua
ação, talvez ela creia que poderia ser certo dar dinheiro ao mendigo, e nunca ocorreu a ela
considerar seus desejos. Essa consideração da correção de dar dinheiro ao mendigo motiva Jen a dar
a ele algum dinheiro e ela o faz; por estar sendo movida pelo tipo correto de crença, sua ação tem
valor moral” (Shroeder et al, 2010, p. 73).
c) O sentimentalista é aquele que defende que uma ação não pode ser considerada moralmente
motivada a menos que seja impulsionada por certas emoções. “A história sentimentalista sobre Jean
é fácil de contar. Quando Jen vê o sem-teto, ela sente compaixão em relação a ele. Esse sentimento
de compaixão proporciona a motivação que a conduz a tratá-lo gentilmente. Dado que
sentimentalistas normalmente reconhecem que a compaixão é um tipo de emoção que pode fornecer
motivação moral, a ação de Jean foi moralmente relevante” (Shroeder et al, 2010, p. 73).
O grau de plausibilidade dessas diferentes doutrinas acerca da motivação depende muito de
como se entendem os sentimentos e crenças em cada um dos casos. Se os desejos que motivam a
ação moral forem desejos que não envolvem nenhum tipo de concepção conceitual (como impulsos
puros), então o sentimentalismo não parece ser plausível, pois essa formulação não consegue dar
conta da ação intencional, uma vez que impulsos são estados não-cognitivos e a ação moral parece
requerer algum tipo de valoração. Por outro lado, itens como crenças e idéias também podem ser
questionados quanto à sua capacidade motivadora para a ação. As observações de Hume sobre a
psicologia da ação, em particular sobre o oportunista, uma pessoa que reconhece que ações injustas
e desonestas são erradas, mas não se sensibiliza com essa compreensão, mostram que a tese que
crenças e pensamentos são motivadores adequados pode ser questionada. Nesse caso em particular,
o juízo que x é errado não parece suficiente para impedir as pessoas de fazerem x. O próprio Hume
sugeriu que uma emoção baseada na perspectiva da dor ou do prazer pode motivar a agir (Hume,
1978, p. 414), mas essa doutrina também não parece alheia a problemas, especialmente se os
desejos forem impulsos puros, sem nenhum conteúdo avaliativo sobre a correção ou incorreção da
ação. Além disso, as teorias cognitivistas, que enfatizam o papel da crença e cognição, enfrentam
dificuldades para explicar problemas vinculados à fraqueza da vontade ou akrasia, uma vez que, se
as concepções sobre o certo forem motivadoras, então o agente não deveria se sujeitar a inclinações
que divergem de sua escolhas sobre o que é o melhor a fazer. Os agentes que são fracos na vontade
(akraticos) escolhem de modo livre e intencional ir contra suas próprias convicções sobre o que é
certo fazer. O fenômeno da akrasia, portanto, é também um problema para a teoria cognitivista.
Em vista desses problemas, muitos filósofos foram levados a especular sobre teorias
alternativas, teorias que não envolvem capacidades ou estados psicológicos específicos como
motivadores. Cabe destacar aqui duas teorias principais: o personalismo, que defende uma
concepção mais abrangente sobre a motivação. O personalista acredita que ações morais decorrem
de um caráter bom, que envolve disposições emocionais permanentes que favorecem a boa ação.
“Na visão do personalista, a ação com valor moral começa com o conhecimento do bem. Esse
conhecimento é retido na pessoa na forma de uma teoria explícita ou na forma de uma disposição
para testar os princípios de ação possíveis de alguém (como a universalidade) contra os padrões
particulares” (Shroeder, 2010, 77-78).
Uma segunda alternativa que não apela para estados psicológicos, mas para a situação do
agente foi desenvolvida por Dancy (2000). Ela consiste em dizer que a motivação deriva de boas
razões, das considerações feitas pelo agente para fazer x. O que motiva são as circunstâncias e as
ações anteriores no contexto prático do agente. Ou seja, se tenho um compromisso marcado num
determinado dia, se considero que esse compromisso é importante e significativo para meus
interesses ou gostos, esses elementos do contexto prático podem funcionar como motivadores para
a ação moral. (Cf. Wallace, 2010, p. 89)

4 Psicologia moral e emoções


Seres humanos são equipados com uma série muito grande de emoções. Embora as emoções
sejam tratadas de modo similar, existem diferenças importantes entre elas. Em geral, emoções
referem-se a uma classe de “reações, comportamentos, estados e experiências” (Lewis, 2011, p.
304). Reações emocionais (uma idéia ou um estado fisiológico) são eventos que disparam uma
mudança no estado do organismo. Eles podem ser internos (como a fome ou atividades cognitivas
como pensamentos ruins) ou externos, os quais podem ser sociais (como o som alto na rua) ou não-
sociais (como a separação dos pais). Os estados emocionais são padrões de ação que incluem
mudanças faciais e respostas fisiológicas (a tristeza é um estado emocional resultante de reações
emocionais como uma separação na família). Comportamentos emocionais são mudanças
superficiais observáveis na face, voz, corpo e nível de atividade (andar cabisbaixo por tristeza pela
separação dos pais). Experiências emocionais são interpretações e avaliações por pessoas de suas
situações, estados e comportamento. As experiências emocionais exigem que as pessoas interpretem
seus estados e o comportamento dos outros (sentir-se inferior ou infeliz por ter pais separados, por
exemplo).
Nessa seção examinaremos dois tipos de emoção: emoções reativas e emoções pró-sociais.
Esses dois tipos de emoção têm recebido muita atenção nos estudos de psicologia moral. O primeiro
tipo é importante para a psicologia moral, pois ajuda a entender como funciona a submissão a
normas e padrões morais. As emoções reativas são atitudes reativas naturais que ocorrem em nossas
vidas sociais e práticas morais. Por serem reações naturais, elas constituem e regulam nossas
práticas intersubjetivas. As emoções reativas são emoções que experimentamos frente ao
conhecimento que temos das intenções nossas e de outros. Elas parecem ser um tipo de experiência
emocional, pois envolvem bastante reflexão sobre atitudes nossas e de outros. Elas são também
chamadas de emoções auto-conscientes. Elas diferem de emoções mais básicas como a alegria, a
tristeza, medo, que envolvem: (1) pouca consciência reflexiva (são mais instintivas ou corporais e
menos reflexivas e auto-avaliativas); (2) possuem disparadores externos (como a alegria causada
por ver um amigo ou sentir medo ao ver um cão bravo latindo) e podem ser identificadas por
expressões faciais ou corporais (tremor, reações fisiológicas) (3) e não dependem de um “eu” que
identifica essas emoções. A culpa, o remorso, o pesar, indignação parecem (1) envolver contextos
informativos complexos identificáveis pelo agente sobre o sentido de suas ações sobre outros e em
relação a si; (2) envolvem a referência a um “eu” particular, uma vez que o mesmo evento pode
gerar culpa ou outras emoções em alguns e não em outros; (3) Elas também estão normalmente
ligadas à consciência do agente de ter rompido ou fracassado em cumprir os próprios padrões ou
ideais morais. Os três exemplos mais comuns são a vergonha moral, a indignação e a culpa.
Aparentemente, pessoas que internalizam bem normas morais são mais suscetíveis a experimentar
culpa e vergonha quando fazem algo errado e reagir com raiva e indignação ou pesar quando
percebem que uma ação injusta foi realizada. Nesse sentido, estudar as emoções morais,
especialmente esse grupo de emoções, é uma forma de entender como as normas morais atuam
sobre nós, pois sentir essas emoções pode ser a expressão da aceitação das regras que governam o
funcionamento da moralidade.
Tugendhat (1993) argumentou nessa direção ao afirmar que essas emoções são indissociáveis de
juízos de censura moral, de juízos onde avaliamos pessoas em si mesmas (como boas ou más). O
mecanismo pelo qual as emoções participam desses juízos é complexo. Para fins explicativos,
podemos distinguir dois estágios operacionais. O primeiro estágio diz respeito à socialização em
torno de qualidades apreciadas (como tocar violino, cozinhar) e de nosso sucesso no desempenho
dessas atividades. “Uma criança é socializada para adquirir habilidades socialmente apreciadas. Ao
fazer isso, ela adquire um sentido de auto-estima” (Tugendhat, 1993, p. 4). Elogiamos ou criticamos
as pessoas em relação ao grau de sucesso no desempenho de funções sociais; se elas realizam mal a
função, são criticadas; se realizam bem, são elogiadas. A crítica refere-se ao desempenho da função
e não à pessoa. Um segundo estágio, com funcionamento similar, é a avaliação moral (não mais
funcional). Os juízos normativos de elogio e reprovação ou censura moral envolvem a avaliação ou
valoração não relativamente à atividade desenvolvida, mas à cooperação do agente na sociedade;
essa valoração é construída desde a infância, quando elogiamos as pessoas que fazem bem uma
função; no comportamento moral, no entanto, a avaliação tem um escopo mais amplo. Ela envolve
não propriamente criticar um mau desempenho, mas algo mais forte que a crítica: a censura da
pessoa, da sua identidade e lugar como membro da comunidade. A censura da pessoa ocorre dentro
de uma escala de depreciação e estima dirigida a um indivíduo específico e consiste em avaliar bem
ou mal o desempenho na habilidade geral de cooperação como membro da sociedade. A vergonha
moral aparece, nesse modelo, “como a perda de valor aos olhos dos outros que estão no centro de
minha vida social” (Tugendhat, 1993, p 5). A indignação, por sua vez, é a inclusão de uma reação
emocional, de repúdio a uma ação imoral que põe em risco as próprias fundações da comunidade.
As emoções têm, assim, como atestam as vergonha e indignação, um papel importante para a
identidade pessoal e identidade social que é intersubjetivamente constituída. Elas indicam o status
que uma pessoa desfruta dentro de uma comunidade moral.
A principal consequência dessa abordagem é mostrar que o que justifica e, realmente, dá o teor
moral das avaliações morais que fazemos não são instâncias racionais abstratas ou Deus, mas as
exigências que as emoções reativas fazem do ponto de vista da identidade de cada um. É o sentido
de perda de auto-estima e valor diante dos outros que confere força normativa às normas morais.
Para finalizar essa seção, podemos analisar uma emoção pró-social que têm atraído a atenção
nos estudos morais: a empatia afetiva. A empatia não envolve reação, mas identificação com a
perspectiva dos outros. Esse tipo de estado ou emoção tem sido examinado em psicologia moral,
pois ele permite pensar as interações morais de uma perspectiva não-consciente e, ao mesmo tempo,
com sentido moral. A empatia é o estado emocional disparado pelo estado emocional ou situação de
outros; é a condição em que alguém sente o que o outro sente na situação (Hoffman, 2010, p. 440).
Ela tem uma função de motivação pró-social, pois as pessoas costumam sentir aflição empática
quando confrontadas com sofrimento dos outros. Nesse aspecto, a aflição empática (que é o afeto
empático de preocupação) tem um sentido moral, pois aparece no envolvimento com pessoas em
situações de preocupação ou risco (dor, perigo, pobreza). Os casos mais relevantes dessa forma de
empatia são aqueles que envolvem injustiça. Estudos empíricos têm mostrado que se a justiça é
violada, a empatia é transformada em sentimento de justiça, incluindo uma motivação forte para
corrigir o erro. As pessoas que contemplam injustiças e sentem aflição empática buscam modos de
reparação e esses modos aliviam rapidamente a aflição, o que parece indicar a ligação entre a
emoção e a preocupação com justiça (Hoffman, 2010). Por produzir no agente uma indignação
empática frente aos causadores de injustiça, a empatia tem se mostrado mais adequada no
desenvolvimento de mecanismos de justiça social, do que abordagens centradas em políticas
públicas e legislação de teor abstrato e impessoal. Ela funciona, nesse sentido, como um mecanismo
mais seguro do que razões e argumentos para o cumprimento das exigências da moralidade.
5 Gênero e Psicologia Moral
Existem diferenças físicas significativas entre homens e mulheres. Além da distribuição dos
cromossomos no núcleo celular, há diferenças no funcionamento do hipocampo cerebral, a largura
da bacia, a proporção de gordura no corpo, velocidade da respiração, entre outras diferenças. O
reconhecimento da existência de diferenças físicas indica que homens e mulheres também
apresentam diferenças psicológicas quanto a maneira de avaliar e lidar com questões morais? Essa
tese, aparentemente pouco aceitável, tem sido bastante debatida desde a publicação das pesquisas
realizadas pelo psicólogo americano Lawrence Kohlberg. Kohlberg analisou o desenvolvimento
moral sob duas dimensões distintas: uma dimensão factual e outra normativa. A dimensão factual do
desenvolvimento moral foi explicada por Kohlberg a partir de uma teoria que envolve 3 níveis e 6
estágios do desenvolvimento moral (INSERIR QUADRO 2). Esses níveis e estágios dizem respeito
ao tipo de juízo e entendimento da moralidade que apresentamos em diferentes fases da vida (da
tenra infância até o amadurecimento moral). Para avaliar os níveis de desenvolvimento moral,
Kohlberg entrevistou várias crianças e utilizou dilemas hipotéticos que serviam para descobrir se as
crianças reconheciam um determinado valor moral em jogo. Um desses dilemas é o dilema de
Heinz, que avalia o nível de entendimento da criança quanto ao valor da vida humana. O dilema de
Heinz tem a seguinte formulação:
Na Europa, uma mulher estava próxima da morte por um tipo de câncer. Havia um
remédio que os médicos achavam que poderia salvá-la. Era uma forma de rádio que um
farmacêutico na mesma cidade tinha descoberto recentemente. O remédio era caro para
fazer, mas o farmacêutico estava cobrando dez vezes o que ele custava para ser feito. Ele
pagava $200 pelo rádio e cobrava $2000 por uma pequena dose do remédio. O marido da
mulher doente, Heinz, procurou todos os seus conhecidos para pedir dinheiro emprestado,
mas conseguiu juntar apenas cerca de $1000, que é metade do que o remédio custava. Ele
disse ao farmacêutico que sua esposa estava morrendo, e pediu que ele vendesse mais barato
ou o deixasse pagar mais tarde. Mas o farmacêutico disse: “Não, eu descobri o remédio e
vou ganhar dinheiro com ele”. Então Heinz, desesperado, invadiu a loja do homem para
roubar o remédio para sua esposa’. (Kohlberg e Elfenbein, apud Boyd, 1975, p. 349).
Kohlberg notou diferenças no modo como meninas e meninos reagiam diante do dilema. O
menino Jake, de onze anos, concluiu que o marido deveria roubar o remédio. Ele explicou-se assim:
“uma vida humana é mais valiosa do que o dinheiro. Ao ser indagado: “Por que a vida é mais
valiosa do que dinheiro?”, ele respondeu: “Por que o farmacêutico pode ganhar mil dólares depois
das pessoas ricas e que têm câncer, mas Heinz não pode ter a sua esposa de volta”. (Kohlberg apud
Rachels, 2006, p. 164) Já a menina Amy, com a mesma idade, deu respostas mais evasivas e que
sugeriam que deveria ser tentado algum tipo de acordo entre os dois, como se não tivesse envolvida
numa situação dilemática. Quando perguntada se Heinz deveria roubar o remédio, ela respondeu:
“Bem, acho que não. Acredito que deve haver outros meios que não o roubo,
como fazer um empréstimo ou coisa parecida, mas ele não deveria roubar o remédio
nem deixar sua esposa morrer. Se ele roubasse o remédio, então ele poderia salvar a
vida da sua esposa, mas, se ele fizesse isso poderia ir para a cadeia; e daí, sua esposa
poderia ficar doente novamente, e ele não conseguiria mais a droga, e isso pode não
ser bom. Portanto, ele deveriam entrar num acordo e achar outra maneira de ter o
dinheiro” (Kohlberg apud Rachels, 2006, p. 165).
Ao ser oferecida perguntas adicionais, deixando claro que Amy não estava respondendo o
dilema, Amy insistia que se tratava de um conflito entre pessoas e que poderia ser resolvido de
outra forma. De acordo com a descrição de Kohlberg, a maneira de responder ao dilema por Amy
seria típica de alguém no estágio 3, enquanto Jake, da mesma idade, estaria em estágios mais
avançados.
Não haveria nenhum problema aqui se apenas fosse afirmado que o desenvolvimento é
diferente em homens e mulheres. Mas a abordagem de Kohlberg também envolvia uma dimensão
normativa. A dimensão normativa estabelece que existem modos mais e menos desenvolvidos ou
complexos de desenvolvimento moral. Os estágios mais avançados (5 e 6) representariam o pleno
desenvolvimento do raciocínio moral. O estágio mais avançado, da moralidade plena, consiste na
capacidade de agir segundo princípios morais universais, não levando em conta fatores como nosso
próprio ponto de vista, o medo de punição por fazer algo errado ou laços afetivos, mas normas
morais ou deveres que todo ser humano racional deveria seguir.
Os aspectos normativos e descritivos da pesquisa de Kohlberg foram revisados e criticados
em estudos subseqüentes. Ele foi, por um lado, criticado por considerar que elementos emocionais
não participam da moralidade e, por outro, por sustentar que haveria uma moralidade de tipo ideal
caracterizada por assumir posições universalistas e abstratas (próprias dos estágios 5 e 6). A
principal crítica à dimensão normativa foi dirigida pela Profa. Carol Gilligan, de Harvard, num livro
clássico chamado In a Different Voice. Nesse livro, ela sustentou que a avaliação das formas de
pensar das meninas, elaborada a partir dos exemplos de Jake e Amy, não são inferiores. Amy
responde tipicamente como menina e Jake como menino. Gilligan sustentou que só consideramos a
resposta de Jake superior se assumirmos que uma ética centrada em princípios universais e abstratos
(como o dever de justiça) é superior a uma ética que enfatiza o cuidado e as relações pessoais.
Segundo Gilligan, ‘a orientação moral das mulheres é o cuidado pelos outros- ‘tomar conta’ dos
outros de uma forma pessoal e não se preocupar apenas com a humanidade de uma forma geral- e
atender suas necessidades. A sensibilidade às necessidades dos outros leva as mulheres a ‘prestarem
atenção nas outras vozes que não a delas próprias e a incluir em seus julgamentos outros pontos de
vista’. (Gilligan apud Rachels, 2006, p. 166). A ética própria da voz das mulheres seria, nesse
sentido, não uma ética inferior ou menos sofisticada, mas uma ética diferente, voltada para a
preocupação suprema com os relacionamentos e o cuidado com os outros.
A partir do trabalho precursor de Gilligan outros pesquisadores procuraram desenvolver
éticas centradas no cuidado. No entanto, a própria Carol Gilligan enfatizou, em estudos mais
recentes que a “voz diferente” sobre a moral não está vinculada ao gênero, mas ao tema, ao tipo de
moral. Ela pretendia insistir que existe mais de uma forma legítima de expressar a moralidade,
diferente daquela de Kohlberg. Mas, afinal, existe diferença no padrão de raciocínio e
desenvolvimento moral entre homens e mulheres? De fato, não parece haver diferenças
significativas e, mais ainda, estudos recentes rejeitam um aspecto chave da teoria de Gilligan: o
contraste entre justiça e cuidado. Diferentes estudos têm apontado que nossos laços emocionais,
laços de cuidado e preocupação, não são separados da justiça. A afetividade ou emotividade com
outros desempenha uma função integral em nossos compromissos reflexivos tanto com a
moralidade em geral, quanto com a justiça em particular. A teoria do desenvolvimento moral de
Hoffman (2000) que centra o desenvolvimento moral na empatia coloca os sentimentos de injustiça
partilhados no centro do nosso compromisso com a justiça. Justiça e empatia, portanto, não parecem
se colocar em lados opostos, assim como homens e mulheres não estão separados do ponto de vista
moral.

6 Caráter e Psicologia moral

A ética do dever, como mostramos anteriormente, sustenta que a noção central para o
entendimento de agentes morais é a noção de obrigação ou dever. Segundo a abordagem da
moralidade centrada na noção de dever, existem certas ações que somos obrigados a fazer, pois elas
são reconhecidas, a partir de princípios do dever, como boas ou certas. Os defensores da ética das
virtudes, por outro lado, consideram que a noção central em ética é a noção de virtude e caráter,
bem como seu lugar na conquista do bem viver ou felicidade (eudaimonia, em grego). As virtudes
são traços característicos do que é bom ser e fundam o caráter moral. O caráter são traços morais
persistentes, que se manifestam no comportamento intersubjetivo e são reconhecidos ou valorizados
no interior de um determinado grupo ou comunidade moral. Os traços de caráter que importam à
psicologia moral e a ética são os traços virtuosos e viciosos, ou, mais simplesmente, as virtudes e
vícios (defeitos de caráter).
Os tratados de ética antigos costumavam oferecer uma lista ou catálogo das virtudes. Essa
lista incluía virtudes admiradas até hoje, como a coragem, a bondade, honestidade, amizade,
lealdade, justiça, moderação e também virtudes típicas de sociedades diferentes da nossa (como a
virtude do orgulho ou valor próprio nas sociedades guerreiras da Grécia Antiga e a penitência,
piedade, mortificação nas sociedades cristãs medievais). Mas por que será que os antigos
enfatizavam tanto a idéia de investigar os traços de caráter que fazem de alguém uma pessoa boa?
Esse ponto pode ser compreendido a partir de um exemplo. O exemplo consiste em imaginar uma
pessoa que faz coisas certas (um policial, por exemplo, que nunca infringe a lei) por respeito à lei e
cumprimento do dever, mas não por realmente julgar importante e valorizar a idéia de ser um bom
cidadão, cooperativo e preocupado com a vida em sociedade. Seguramente consideraríamos que há
algo errado com quem age assim. Agir por senso de obrigação, sem considerar o que as pessoas
sentem, parece ser um modo moral defeituoso de agir. Assim, as virtudes explicariam melhor o
sentido moral das nossas ações. As virtudes e o caráter ajudariam a entender que gostaríamos de
viver num mundo em que as pessoas visitam as outras por que se preocupam ou querem estar
próximas (e não por dever moral), respeitam a lei porque acreditam ser importante ter um
comportamento cidadão e não por um simples sentido de obrigação ou dever moral. A noção
psicológica de caráter ajuda a tornar esse aspecto transparente.
Mas há estudos que põem em dúvida essas idéias. E as dúvidas não resultam de divergências
intelectuais, mas de estudos empíricos. Apesar de toda a proximidade que a idéia de caráter tem
com nossa experiência corriqueira, estudos científicos têm mostrado que o caráter parece
desempenhar uma função bem menos importante em nossas ações. Investigações sobre a psicologia
do caráter têm retirado um pouco da relevância desse conceito psicológico para a moral. Merritt,
Doris e Harman, (2010) sustentam que experimentos fornecem evidência que o comportamento
preocupado com conseqüências das ações é influenciado por processos cognitivos que resistem à
direção intencional e são, no máximo, insensíveis às normas morais endossadas reflexivamente. Ou
seja, eles sustentam que nesses comportamentos não estão envolvidos conceitos psicológicos como
o caráter, que supõe que queremos fazer coisas. Essa tese tem sido abordada sob múltiplos aspectos.
O ponto que focaremos diz respeito à existência de caráter moral robusto. A noção de caráter moral
robusto estabelece o seguinte: “uma pessoa que tem um traço de caráter robusto pode seguramente
manifestar traços de comportamento relevantes através de uma variedade de situações relevantes
àquele traço, mesmo onde algumas ou todas as situações não são ótimas ou condutivas a tal
comportamento” (Merritt et al, 2010, p. 356). Quanto a esse aspecto, há vários experimentos que
objetivaram mostrar que a noção de caráter moral robusto não possui grande corroboração empírica,
haja visto que:
Isen and Levin descobriram que sujeitos que encontraram uma moeda de dez
centavos de dolár foram 22 vezes mais propensos a ajudar uma mulher que deixou
cair alguns papéis, do que sujeitos que não encontraram a moeda. (88% vs. 4%).
Haney et al. descrevem como estudantes de uma escola de ensino médio atuando
como guardas numa prisão simulada rapidamente recaem em comportamento de
abuso e crueldade total.
Darley, Darley and Batson relatam que passageiros despreocupados foram seis vezes
mais prestativos com uma pessoa que parecia passar por dificuldades significativas
do que passageiros ocupados (63% vs. 10%).
Mathews e Cannon relataram que sujeitos tem uma probabilidade 5 vezes maior de
ajudar um homem machucado que deixou cair alguns livros no chão quando o ruído
ambiental estiver em níveis normais, do que quando um poderoso auto-falante
estiver passando nas proximidades (80% vs. 15%). (Doris et al, 2010, p. 356-357)
Esses estudos não pretendem mostrar que não há relação entre caráter e conduta, mas que o
motivo para a boa conduta parece estar mais na situação do que na pessoa, pois as pessoas são
facilmente induzidas por motivos insignificantes a realizarem boas ou más ações. Isso parece
sugerir um tipo de ceticismo sobre caráter moral forte, como se não existisse tal coisa. Merritt
formula esse ceticismo através de um argumento com a seguinte estrutura:
(1) Se o comportamento é tipicamente governado por traços robustos, a observação
sistemática revela consistência comportamental ampla ou abrangente.
(2) Observação sistemática não revela consistência comportamental abrangente.
(3) O comportamento não é tipicamente governado por traços robustos (Merritt et al,
2010, p.357-358)

Se esse tipo de argumento for plausível, as suposições de que ações moralmente boas
resultam de um caráter forte parecem seriamente ameaçadas, uma vez que a justificação dos traços
robustos pressupõe o comportamento consistente, o que não é revelado nos estudos realizados. O
caminho aberto (como resposta) para esse problema ao teórico da ética das virtudes é reformular
sua concepção de caráter e virtudes (enfatizando, por exemplo, que a noção de caráter forte não é
uma noção crucial para a ética das virtudes ou aceitando que traços de caráter envolvidos na virtude
não são psicologicamente possíveis). Em qualquer caso, a necessidade de atentar para os
desenvolvimentos científicos parece crucial para oferecer um sentido para a abordagem da
moralidade a partir das virtudes.

7 Felicidade, bem-estar e psicologia moral

Se tivéssemos de fazer a pergunta: Qual a principal preocupação da vida


humana? uma das respostas seria: A felicidade. Como alcançar, como
conservar, como recobrar a felicidade é, de fato, para a maioria dos homens
de todos os tempos, o motivo secreto de tudo o que fazem e de tudo o que
estão dispostos a suportar. (James, 1995, p. 59)
A passagem do psicólogo e filósofo americano William James indicada acima atesta de modo
suficientemente forte que a felicidade desempenha um papel central na ação humana. As pessoas
querem ser felizes. Não é, no entanto, nada fácil definir no que consiste uma vida boa e feliz.
Aristóteles na Ética a Nicômacos enfatizou que uma vida feliz, boa, deve envolver a preocupação
com a virtude, com a boa ação. Ele acreditava (com razão) que é impróprio considerar que uma
pessoa que faz coisas erradas, que maltratam os outros, é uma pessoa feliz. Embora ela possa se
sentir bem assim, a vida dela parece simplesmente destituída de algo central para que sua vida seja
boa. Essa tese foi partilhada pelos estóicos e por muitos outros filósofos. David Hume, um filósofo
escocês que viveu entre 1711 e 1776, chegou a declarar na Investigação sobre os Princípios da
Moral que “as virtudes têm a tendência a aumentar a felicidade, e o vício, a miséria da
humanidade” (Hume, 1975, p. 218). Os estudos mais recentes sobre a felicidade guardam pouca
similaridade com os temas da vida boa e feliz da tradição clássica e moderna. A felicidade tem sido
estudada na psicologia moral principalmente por sua conexão com o bem-estar subjetivo e a
satisfação (e não tanto como uma condição geral da vida). Há boas evidências da existência da
ligação entre bem-estar subjetivo ou satisfação (felicidade) e comportamentos altruístas e virtuosos.
Os estados emocionais do bem-estar subjetivo e emoções positivas como a gratidão, a alegria, a
elevação atuam no comportamento humano produzindo atitudes moralmente apreciadas como a
bondade, a aceitação das diferenças, a amorosidade, dentre outras. Em outras palavras, quanto mais
satisfeitas e felizes as pessoas estão com suas vidas, mais elas mostram comportamentos morais de
bondade e altruísmo. William James, ao que tudo indica, foi um dos primeiros autores destacar a
relação entre estados expansivos ou positivos e ações bondosas. “O júbilo é uma afeição expansiva,
e todas as afeições expansivas são desinteressadas e bondosas enquanto duram”. (James, 1995, p.
179). Ele destacou as pesquisa de Georges Dumas com uma doente psiquiátrica (Marie) que tinha
transtornos bipolares, onde transparece a relação orgânica entre melancolia e egoísmo e da alegria
com impulsos altruísticos (como a ternura).
Nenhum ser humano era tão mesquinho e inútil quanto Marie em seu período de
melancolia! Mas assim que principia o período feliz, ‘a simpatia e a bondade passam
a ser os seus sentimentos característicos. Ela manifesta uma boa vontade universal,
não só nas intenções, mas também nos atos. Torna-se solícita pela saúde de outros
pacientes, interessada em fazê-los sair, desejosa de arranjar lã a fim de tricotar meias
para alguns deles. Nunca desde que está sob minha observação, lhe ouvi, em seu
período alegre, opiniões que não fossem caridosas. E mais tarde, referindo-se a todas
essas condições jubilosas, diz o Dr. Dumas que ‘sentimentos generosos e ternas
emoções são os únicos estados afetivos que se encontram nelas. A mente do sujeito
fecha-se para a inveja, o ódio e o espírito de vingança, totalmente transformado em
benevolência, indulgência e piedade’ (James, 1995, p. 179).

A atuação dessas emoções no comportamento, criando condições favoráveis para ações boas ou
altruístas, voltadas para o outro, parecem resultar dos mecanismos ampliativos e construtivos
ligados às emoções positivas. As emoções positivas são marcadores do bem-estar geral e felicidade
das pessoas. É um tipo de emoção que “amplia o repertório momentâneo de pensamento-ação das
pessoas e conduz à ações que constroem recursos pessoais duradouros”. (Fredrickson; Cohn, 2010,
p. 782). Elas conduzem a ampliação e tendências de resposta mais flexíveis. A alegria, por exemplo,
cria a necessidade de brincar, amplia os limites e a criatividade no comportamento social,
intelectual e artístico. O contentamento cria a necessidade de voltar atrás e saborear as
circunstâncias da vida e integrar essas circunstâncias em novas concepções de si mesmo e do
mundo. (Fredrickson; Cohn, 2010). A gratidão encoraja a reflexão e reconceitualização das
experiências, direcionando o agente a encorajar comportamento recíproco no futuro e pode
aumentar a preocupação com a perspectiva e os desejos daqueles que ajudam. Essas emoções que
frequentemente são avaliadas de maneira polarizada em termos de prazer e desprazer (a alegria é
prazerosa, a tristeza é desagradável) induzem estados de interação social, de reconhecimento e de
bem-estar e satisfação que abrem caminho para interações positivas, preocupadas e voltadas para os
outros, no sentido que é moralmente importante para a constituição de boas ações e boas atitudes
(moralmente aprováveis). Em suma, o bem-estar subjetivo e outras formas de emoções positivas
tendem a criar condições favoráveis para a expressão moral adequada. Experimentos têm mostrado
que emoções positivas, quando voltadas para a interação social, assumem a forma de um
aprimoramento na atenção aos outros e uma redução nas distinções entre eu e outro ou entre
diferentes grupos. As pessoas que experimentam emoções positivas relatam mais abertura nas
concepções de si mesmas e dos seus melhores amigos; elas também são mais atentas e imaginativas
em relação ao que fazer para seus melhores amigos. Nas pessoas que não tem relações íntimas ou
próximas, elas induzem o aumento da confiança e atuam na criação de relações e oportunidades
interdependentes. Em contextos de interação racial, a indução de emoções positivas nos
participantes mostra que as pessoas são mais capazes de lembrar traços faciais de outras raças e são
simultaneamente piores em perceber diferenças físicas entre raças, o que mostra uma maior abertura
e reconhecimento das diferenças e não seu reforço (uma tendência nas mentalidades racistas e
preconceituosas) (Fredrickson; Cohn, 2010, p. 785). Esses estudos parecem fornecer um suporte
substantivo para a concepção de que moralidade e felicidade andam juntos, que pessoas felizes são
mais preocupadas e atentas moralmente.
8 Eu moral
Vimos que existem teorias que consideram que as ações morais são o resultado da aplicação
de princípios abstratos a casos particulares. O utilitarismo, por exemplo, diz que as boas ações são
aquelas que maximizam a felicidade do agente e dos demais envolvidos na ação. O filósofo inglês
Bernard Wiliams argumentou que essas formas de motivação impessoal (como querer promover o
máximo de felicidade para todos) têm como efeito separar o agente moral dos interesses e
compromissos que formam a estrutura real da sua vida individual. Ele sustentou, portanto, que a
realização de uma vida moral requer algum tipo de identificação, requer que os indivíduos sejam
inteiramente identificados com as atitudes motivadores que eles estão sujeitos. Nesse sentido, a
filosofia moral deve fazer alguma justiça ao conceito psicológico de um eu, com projetos pessoais e
que vê a si mesmo nas escolhas práticas e decisões morais que faz na vida. Um homem pode ter,
para boa parte de sua vida ou mesmo para alguma parte dela, um projeto fundante ou um conjunto
de projetos que estão intimamente relacionados com sua existência e que, num grau significativo,
dão sentido a sua vida (WILLIAMS, P. 209) [..] os projetos fundantes de um homem proporcionam
a força motivadora que o impele ao futuro e dão a ele uma razão para viver. O fato, acentuado por
Williams, é que são esses projetos fundantes, que doam sentido e direção para nossas vidas, que
definem a esfera daquilo que pode ser feito. Contra esse pano de fundo de pessoas morais com uma
identidade prática, as ações morais são algo como uma imposição pessoal, sentidas como próprias.
Tal perspectiva de abordagem ética fornece uma representação da ação moral como vinculada com
compromissos e significados morais do agente. O desenvolvimento dessa tradição gerou dois
aspectos fundamentais do “eu moral” para a psicologia moral: (1) o eu moral sugere que uma
pessoa moral busca um tipo de integração especial e auto-realização moral que congrega os
aspectos da identidade, bem como aspectos vinculados a história e cultura, em termos de normas
morais e ideais legados; (2) O sentido de identidade envolve uma concepção objetiva de alguém no
mundo que ele é- um membro particular, persistente, de ordem objetiva para o qual ele vincula seu
ponto de vista particular. Nesse aspecto, os defensores de uma concepção do eu e pessoa moral tem
argumentado que uma concepção instrumentalista do raciocínio prático baseado num cálculo de
custo e benefício, é uma concepção que estreita a série de considerações disponíveis para nós. Nós
somos de fatos capazes de ter compromissos efetivos e dar aos outros fundamentos racionais para
crer em nossos compromissos. Somos pessoas com concepções objetivas do tipo de pessoa que
somos. Essa concepção reforça que quem está fazendo algo é uma pessoa no mundo e ao confrontar
outra pessoa moralmente não estamos confrontando razões abstratas, mas condenamos ou
elogiamos pessoas.

9 Conclusão
A psicologia moral foi apresentada nesse capítulo partiu da indicação de um conjunto de
questões centrais. Na seleção dessas questões procurou-se preservar as principais capacidades e
processos psicológicos envolvidos no funcionamento da moralidade humana, como a consciência,
intencionalidade, estados psicológicos motivacionais como o desejo e a crença, caráter, “eu”, até
capacidades psicológicas naturais como as emoções. Muitos pontos importantes não aparecem aqui,
como capacidades psicológicas envolvidas na formulação de juízos morais, intuição, a psicologia
da responsabilidade moral, a psicologia moral evolutiva e um tratamento pormenorizado da
vontade racional e intenção. A estratégia de apresentação adotada acima pede, ainda que
minimante, um posicionamento mais claro em torno do direcionamento que recomendamos nos
estudos da ética e filosofia moral. Podemos formular as conclusões principais em torno de alguns
pontos centrais que nos parecem bem assentados: (a) expansão do domínio da ética para além dos
confins da ação obrigatória; Em nossa psicologia moral cotidiana, a moralidade e a argumentação
em torno da correção das ações é evidente, mas as emoções aparecem mais largamente. Quando
tentamos explicar e predizer o que uma pessoa faz e diz, as emoções da pessoa estão entre os
objetos do pensamento. E, no entanto, elas aparecem muito pouco na reconstrução filosófica da
prática psicológica cotidiana ligada à moralidade; o que mais aparece é a produção e o controle
racional do comportamento, enquanto na psicologia comum o repúdio, a rejeição, o sofrimento
gerado pela incompreensão e o desacordo moral são os elementos mais presentes (e o quantum de
energia envolvido nessas operações). (b) ligação da moralidade com a perspectiva pessoal, do
repúdio da pessoa (com menos foco na ação). Quando as pessoas fazem algo que nos decepciona
(de um ponto de vista moral), podemos assumir uma posição intelectualizada e considerar “x fez
algo errado, condenável”, mas nossa psicologia frequentemente parece nos levar noutra direção. Os
pensamentos, comportamentos e reações corporais e emocionais se dão numa direção que mostra
que nossa rejeição é da pessoa, da sua presença e existência: “saia daqui”, “não fale comigo”, “não
posso ficar perto desse canalha”, “não posso nem ver esse cara” são expressões que aparecem com
muita freqüência em nossas rejeições e considerações morais (pense na reação um namorado sente
ao saber que foi traído, de um político, professor, empresário flagrado recebendo propinas ou algo
similar). Reações a comportamentos imorais também tendem a ser sociáveis, de proteção, atenção e
cuidado. A moralidade que experimentamos e a psicologia que parece mais efetiva não é a
moralidade das fórmulas abstratas, mas aquela que envolve pessoalidade, que supõe envolvimento e
proximidade. Nesse sentido, noções como caráter, o tipo de pessoa que devemos ser, as emoções
(em seus diferentes tipos) que mais propriamente promovem atitudes morais ajudam a entender a
“lógica da moralidade”. Nesse sentido, o tipo de psicologia que explora mais naturalmente nossas
relações morais emotivas parece ter, a seu favor, uma importante vantagem competitiva. (c) a teoria
da motivação. A motivação tem sido pensada a partir do estrito conjunto de estados mentais como
crença, desejo e intenção e percepção. A vinculação de uma teoria da motivação centrada na ação e
agência prática, definindo motivação moral a partir da perspectiva do agente e seus compromissos,
parece um caminho rico para o desenvolvimento de teorias da motivação moral. (d) a adequação da
abordagem da ação obrigatória no domínio da legislação e das relações institucionais. No domínio
das instituições, da legislação e dos processos decisórios (como na ética biomédica ou na legislação
para distribuição de recursos em saúde, educação e outros domínios relevantes), a psicologia moral
aqui apresentada pode enfrentar dificuldades. Relações morais mediadas por instituições são
bastante diferentes daquelas que são próprias dos domínios afetivos, familiares. Nesses domínios, é
evidente que a psicologia moral de caráter mais legalista, reflexiva, parece mais ajustada. As
relações interpessoais mediadas por emoções de empatia, de vergonha, de arrependimento e as
vidas individuais podem ser plenas de contentamento, de pesar, de pessimismo e medo. Esses
impulsos humanos são pouco operativos para definir propostas de políticas públicas justas, da
moralidade especifica nos níveis de taxação de ricos e pobres ou na definição do grau de liberdade
que cada um deve dispor para buscar seus objetivos frente aos interesses coletivos. E, no entanto,
uma abordagem moral focada na dimensão do caráter e das emoções pode necessariamente
influenciar no modo pelo qual nos conduzimos nas deliberações públicas através da qual refletimos
nas questões políticas. Em síntese, embora os desdobramentos em torno do tipo de psicologia moral
que é mais adequada para a apreensão da dimensão moral das nossas vidas encontram-se indefinido,
parece bastante claro que um nível de pessoalidade e preocupações com identidade prático-moral é
relevante, ao mesmo tempo em que a comparação de ações particulares com normas morais gerais
pode gerar resultados práticos efetivos para a legislação e a dinâmica das instituições.

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10 Glossário
Virtudes: traços de excelências de caráter que inclui a coragem, sabedoria, justiça.
Bem intrínseco e Bem instrumental: bens instrumentais são meios para alcançar outros bens.
Bens intrínsecos são bens em si mesmos ou absolutos. Uma casa é um bem instrumental (serve para
nos proteger do frio). O prazer e a honra são bens intrínsecos, pois são desejados por si mesmos.
Utilitarismo: teoria ética criada por Jeremy Bentham e John Stuart Mill no século XIX, que
sustenta que a ação certa é aquela que produz a maior quantidade de felicidade para todos os
envolvidos, considerados de um ponto de vista imparcial.
Obrigação: dever imposto ou derivado da existência de uma norma moral; é a responsabilidade ou
dever perante uma norma moral.
Principio do dever: uma lei geral (como “Não faça malefícios” na ética médica) que, quando
comparados com fatos ou situações, permite determinar a coisa certa a fazer.
Objetivismo: a crença que valores morais podem ser objetivamente verdadeiros, independente dos
sentimentos individuais, defendida principalmente por Rachels. Iris Murdoch utiliza o termo
objetividade e objetivismo no sentido de uma representação realista, não influenciada por
mecanismos egoístas, de nós mesmos e dos outros.
Moralidade: o que as pessoas acreditam ser certo ou errado. O domínio da ação humana sujeito à
avaliação segundo o certo e o errado, bom ou mau.
Intenção: A intenção é importante do ponto de vista moral, pois para muitas ações o conhecimento
da intenção do agente parece desempenhar uma função importante para o conteúdo moral e para a
determinar se a ação é ou não uma boa ação. A intenção é um estado psicológico distinto de estados
como acreditar e desejar. Um intenção parece envolver um (1) objetivo, a finalidade pela qual ação
foi desenvolvida e (2) um plano escolhido que prende os meios aos fins;
Dilema ético hipotético: um problema em que alguém é obrigado a escolher entre duas opções que
são, ao mesmo tempo, inaceitáveis.
Cognitivo: diz respeito aos elementos envolvidos no pensamento e conhecimento e opõe-se a
emoção e sentimentos.
Ceticismo: estado geral de descrença frente a existência de Deus, de uma determinada noção (como
caráter) ou conceito (conhecimento).
Akrasia: incontinência, fraqueza da vontade, condição em que o agente sabe que uma coisa é certa,
deseja fazer a coisa certa, mas não consegue.
Agente moral: pessoa que na perseguição de seus objetivos práticos ou propósitos realiza ações
que podem ser caracterizadas como boas ou más.
Normatividade: é a dimensão coercitiva da moralidade; aquele aspecto em que somos obrigados a
realizar certas ações por serem certas e evitar aquelas que são erradas, por serem essas ações objeto
de normas (não matar, não roubar, etc).

Quadro 1: Fonte Jornal Folha de São Paulo.


Quadro 2: Fonte: Fonte: BEE; BOYD, 2011, p. 350

Estágios do desenvolvimento moral de Kohlberg


Estágio Descrição
NÍVEL I: Moralidade pré-convencional
A criança decide o que é errado com base no que é
punido. A obediência é valorizada por sua própria
Estágio 1: Orientação a punição e obediência
vantagem, mas a criança obedece porque os adultos são
fisicamente mais poderosos.
A criança segue regras quando é de seu interesse
Estágio 2: Individualismo, propósito instrumental e troca
imediato. O que é bom é o que traz resultados agradáveis.

NÍVEL II: Moralidade convencional


Ações morais são aquelas que cumprem as expectativas
Estágio 3: Expectativas interpessoais mútuas, relacionamentos e
da família ou de outro grupo significativo. "Ser bom"
conformismo interpessoal
torna-se importante por sua própria vantagem.

Ações morais são aquelas assim definidas por grupos


sociais mais amplos ou pela sociedade como um todo. A
Estágio 4: Sistema social e consciência
pessoa deve cumprir deveres combinados e cumprir as
leis, exceto em casos extremos.

NÍVEL III: Moralidade de princípio e pós-convencional


Agir de modo a alcançar o "bem maior para o maior
Estágio 5: Orientação pelo contrato social (ou utilidade e direitos número de pessoas". O adolescente ou adulto tem
individuais) consciência de que a maioria dos valores são relativos e
as leis são inconstantes, embora as regras devam ser
defendidas a fim de preservar a ordem social. Contudo,
há algumas regras não relativas básicas, tais como a
importância da vida e da liberdade de cada pessoa.
O  adulto  desenvolve  e  segue    princípios  éticos  por  
escolha  própria  na  determinação  do  que  é  certo.  Esses  
Estágio  6:  Princípios  éticos  universais princípios  éticos  são  parte  de  um  sistema  de  valores  e  
princípios  articulado,  integrado,  cuidadosamente  
reAletido  e  consistentemente  seguido.

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