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Bortoni-Ricardo, S. M (2005). Heterogeneidade linguística e ensino da língua: o paradoxo da escola.

In
S. Bortoni-Ricardo, Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolinguística e educação (pp.13-17). São Paulo: Parábola
Editorial.

O PARADOXO DA ESCOLA1

Quando o professor Paulo Freire foi empossado secretário da educação do município de São
Paulo, fez uma declaração que causou estranheza: a de que as professoras não devem criticar ou
reprimir um aluno que fale coisas como ‘’nós cheguemu’’.
Qualquer posição que coloque ou pareça colocar em risco a pureza e a propriedade do
idioma pátrio será sempre recebida no mínimo com perplexidade, quando não com veemente
resistência. É interessante constatar que, nas sociedades modernas, os valores culturais associados à
norma linguística de prestígio, considerada correcta, apropriada e bela, são ainda mais arraigados e
persistentes que outros, de natureza ética, moral e estética.
O prestígio do português culto, padronizado nas gramáticas e dicionários e cultivado na
literatura e nos mais mais diversos domínios institucionais da sociedade, não se restringe, como
seria de esperar, aos grupos de seus usuários; ao contrário, perpassa todos os segmentos sociais.
Varia apenas a sua manifestação, em função do acesso diferenciado que esses grupos têm às normas
que funcionam como um quadro referencial da correcção e propriedade linguística. O cidadão
erudito aprecia a língua culta, que por sinal é o seu meio natural de comunicação, mas o trabalhador
braçal, a empregada doméstica, os milhões de iletrados também o fazem. Demonstram igualmente
um sentimento positivo em relação à ‘’boa linguagem’’, à linguagem daqueles que têm estudo. Uma
evidência disso é que as lideranças políticas das nossas classes trabalhadoras se esmeram em falar
um português escorreito em suas aparições públicas, no que nem sempre têm total sucesso em
virtude da sua sociabilização ter ocorrido no âmbito das variedades populares. O prestígio associado

1 A primeira versão deste texto apareceu em 1991 na Revista Humanidades (7 (2): 144-146) da Universidade de
Brasília. Como primeiro capítulo, tem por objectivo levantar uma série de questionamentos decorrentes do caráter
impositivo do ensino da língua portuguesa na escola, à luz de nosso compromisso com uma pedagogia sensível aos
saberes dos alunos e com uma postura respeitosa no trato das diferenças socioculturais e linguísticas. As questões
levantadas neste capítulo serão tratadas ao longo do livro. O capítulo inclui ainda, como um post scriptum, uma carta
endereçada ao jornal Correio Braziliense, bem ilustrativa das atitudes presentes na sociedade brasileira em relação aos
usos prestigiosos da língua.
ao português-padrão é sem dúvida um valor cultural muito arraigado, herança colonial consolidada
nos nossos cinco séculos de existência como nação. Podemos e devemos questioná-lo, desmistificá-
lo e demonstrar sua relatividade e seus efeitos perversos na perpetuação das desigualdades sociais,
mas negá-lo, não há como.
O comportamento linguístico é um indicador claro da estratificação social. Os grupos sociais
são diferenciados pelo uso da língua. Em sociedades com histórica distribuição de renda (entre as
quais o Brasil pode ser considerado paradigmático), as diferenças são acentuadas e tendem a
perpetuar-se. Pode-se afirmar que a distribuição injusta de bens culturais, principalmente das formas
valorizadas de falar, é paralela à distribuição iníqua de bens materiais e de oportunidades.
No Brasil, as diferenças linguísticas socialmente condicionadas não são seriamente levadas
em conta. A escola é norteada para ensinar a língua da cultura dominante; tudo o que se afasta desse
código é defeituoso e deve ser eliminado. O ensino sistemático da língua é de facto uma atividade
impositiva. Para alguns estudiosos, há mesmo uma incompatibilidade entre uma democracia
pluralista e a padronização linguística. Isto fica mais evidente em países plurilíngues, onde os
falantes de línguas minoritárias têm de aprender e usar, em muitos domínios, a língua majoritária.
Mas nesses países, os grupos étnicos minoritários têm feito valer seus direitos e as escolas,
desenvolvido métodos de ensino bilíngue ou bidialetal, comprometidos com o respeito e a
preservação das características linguístico-culturais desses grupos.
Se a padronização é impositiva, não deixa de ser também necessária. Ela está na base de
todo estado moderno, independentemente de regime político, na formação do seu aparato
institucional burocrático, bem como no desenvolvimento do acervo tecnológico e científico.
Pesquisas na área de planejamento linguístico mostram que existe uma correlação positiva entre o
grau de padronização linguística de um país e seu estágio de modernização. O problema não parece
estar, pois, na existência de um código-padrão, mas no acesso restrito que grandes segmentos da
população têm a ele.
No caso brasileiro, o ensino da língua culta à grande parcela da população que tem como
língua materna – do lar e da vizinhança – variedades populares da língua têm pelo menos duas
conseqüências desastrosas: não são respeitados os antecedentes culturais e lingüísticos do educando,
o que contribui para desenvolver nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de forma
eficiente a língua-padrão.
Estudiosos que se detêm diante desse grave problema costumam adotar duas posições
opostas. Alguns, mesmo sem o perceber, aderem à chamada ideologia do vácuo, segundo a qual
certos grupos sociais não seriam portadores de qualquer cultura significativa. Para eles, toda a
linguagem, e conseqüentemente a cultura das crianças de classes populares, tem que ser substituída
pela língua da cultura institucionalizada. No outro extremo, estão aqueles que vêem no próprio
código a causa de todos os males. Propõem que este seja substituído por uma variedade linguística
popular, esquecendo-se de que, para cumprir as funções de norma-padrão, essa variedade teria de
passar por um processo inevitável de codificação. Se a primeira posição peca por um etnocentrismo
destituído de qualquer base científica, a segunda peca pela ingenuidade.
Diante de todos esses dilemas, como fica a escola? A escola não pode ignorar as diferenças
sociolinguísticas. Os professores e, por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que
existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas
servem propósitos comunicativos distintos e são recebidas de maneira diferenciada pela sociedade.
Algumas conferem prestígio ao falante, aumentando-lhe a credibilidade e o poder de persuasão;
outras contribuem para formar-lhe uma imagem negativa, diminuindo-lhe as oportunidades. Há que
se ter em conta ainda que essas reacções dependem das circunstâncias que cercam a interacção. Os
alunos que chegam à escola falando ‘’nós cheguemu’’, ‘’abrido’’ e ‘’ele drome’’, por exemplo, têm
que ser respeitados e ser valorizadas as suas peculiaridades linguístico-culturais, mas têm o direito
inalienável de aprender as variantes do prestígio dessas expressões. Não se lhes pode negar esse
conhecimento, sob pena de se fecharem para eles as portas, já estreitas, da ascensão social. O
caminho para uma democracia é a distribuição justa de bens culturais, entre os quais a língua é o
mais importante. Essas questões linguístico-educacionais têm de ser mais discutidas e a sua
importância para a implantação de um estado democrático, redimensionada.

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