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CORAÇÕES

ADORADORES
EM BUSCA DE DEUS, DE SI E DO AMOR

FERNANDA VINCI KONDO

Este livro é dedicado a todos aqueles que se empenham em ser achados por
Deus como verdadeiros adoradores.
Prefácio
Há várias maneiras de se abordar um tema. Fernanda escolheu o romance e
foi sem dúvida uma ótima escolha. Com a linguagem poética ela foi construindo
seu texto com beleza e através de personagens fortes foi apresentando a difícil
vivência da religiosidade, destacando em especial os dogmas que são
construídos ao longo da vida.
Escrever sobre a religiosidade é algo difícil, independente do estilo
escolhido. Em geral os livros de teologia, que tratam bastante desse tema,
utilizam termos técnicos, esbanjando citações de teóricos e refletindo de maneira
pesada sobre os vários itens dignos de atenção dentro da religiosidade. Nem todo
mundo consegue ler um livro de teologia com disposição e alegria exatamente
por esse motivo. Mas, e se tratarmos dos mesmo temas através da história de
personagens, que vivendo seus dramas pessoais, refletem sobre essas mesmas
inquietudes teológicas? E se em vez de termos difíceis utilizássemos a
linguagem do dia a dia, cheia de aventuras e surpresas? Com certeza a leitura
seria bem mais fácil. E é exatamente essa a proposta desse livro: abordar temas
da religiosidade, em especial o dogma, de uma maneira romanceada, com
personagens e lugares que cativam a atenção do leitor.
Fernanda nos convida a entrar em lugares peculiares à religiosidade como
um Seminário e uma Paróquia. Nos mostra os sentimentos e impressões de
padres, amigos, e principalmente membros de uma família comum, como a sua
ou a minha. Ela nos faz viajar no tempo, e nos insere em costumes de época que
somados à própria história narrada se tornam vívidos a ponto de nos transferirem
para uma época bem diferente da nossa onde nos sentimos ilustres visitantes,
com direito a assistirmos diálogos intensos de personagens vivendo seus dramas
de vida. Fernanda usa as palavras a favor do romance e faz isso de um modo tão
agradável que a leitura se torna convidativa, própria de um bom romance.
Ler esse livro é indicado para quem deseja viajar ao século XX e refletir
sobre a religiosidade. Mas também é indicado para quem gosta de histórias bem
contadas, daquelas que nos fazem quase sentir o cheiro dos personagens e ver a
cor do céu que os cobre. O livro "Corações Adoradores: em busca de Deus, de Si
e do Amor" servirá de reflexão sobre Deus e da busca incansável do ser humano
por Ele. Também será um convite a pensarmos sobre nossas próprias motivações
e nos fará pensar sobre a religiosidade de uma maneira objetiva, nos fazendo
enxergar anseios escondidos dentro de nós mesmos e que nos levam a fazer
perguntas sobre Deus, nós e o próximo.
Tenho certeza de que você apreciará essa leitura. Fernanda tem um estilo
único, ama escrever e podemos praticamente sentir em cada palavra esse
sentimento tão intenso que se transforma em um convite para participarmos não
apenas de uma leitura, mas sim de uma experiência onde letras se unem de
maneira harmoniosa para produzir uma das histórias mais lindas que já li.
Para mim é uma grande honra apresentar a você a jovem Fernanda. Estou
certo de que esse será o primeiro livro de uma série pois não falta talento,
dedicação e seriedade na vida dessa moça, não apenas como escritora, mas na
vida pessoal.
Espero que essa leitura seja tão prazerosa para você como foi para mim.

Guilherme de Amorim Ávilla Gimenez


Pastor da Igreja Batista Betel
Professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Embaixador da Universidade Batista de Dallas
Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais
que assim o adorem.

João 4:23

Prólogo
Janeiro de 1926

— Você tem certeza de que é isso mesmo que você quer, meu filho?
— Sim, mãe, é isso mesmo que eu quero. — disse, pela milésima vez
naquele dia, deixando minha única mala no chão.
A mesma conversa desgastante que tivemos ao longo da semana.
— Mas você vai abandonar toda uma vida? Você é ainda tão menino, tem
tanto para viver...
— Não vou morrer, apenas vou dedicar a minha vida a Deus!
— Mas precisa largar tudo? O colégio, sua casa, seus amigos...
— Vou em busca de algo maior. Além disso, não vou parar de estudar. Só
não vou mais ver essas coisas de números, ou a medicina que a senhora tanto
quis para mim. Vou estudar a bíblia, estudar a Deus, o que ele quer.
— Mas, meu filho... — Dona Madalena chorava com o braço estendido.
Aquilo era extremamente doloroso para ambos.
— Minha decisão já está tomada, — suspirei, reerguendo a mala — e não
vou voltar atrás. Darei notícias quando chegar.
Parte Um

O SEMINÁRIO
Um começo e Um fim
Março de 1935

— Augusto, não vai se vestir?


— Sim, padre, estou quase pronto.
— Está tudo bem? — perguntou padre Dionísio, estreitando os olhos ao
me observar mais atentamente — Parece um pouco abatido.
— Não, eu só estava pensando. Parece que o tempo passou tão rápido...
— disse eu, divagando.
— Você não tem se alimentado direito nos últimos tempos, não é? — os
olhos do padre ainda me perscrutavam — Seu prato chega praticamente intocado
todos os dias lá na copa.
— Tem andado me espionando, padre? — perguntei, com a devida
reverência, mas com um leve sorriso que me denunciava.
— Tenho que cuidar dos meus pupilos, Augusto. — respondeu Dionísio,
resolvendo deixar o assunto de lado — Agora ande, termine de se arrumar, a
missa já vai começar. Esta será a última missa que assistirá como seminarista.
Na próxima, o pregador será você.
O nó que até então estava na boca do meu estômago foi parar na garganta
e quase me sufocou.
Nove anos haviam se passado desde que tomara a decisão que mudaria a
minha vida para sempre. Minha mãe, que sempre achou que eu largaria os
estudos, mal acreditou quando soube que eu não faria apenas uma, mas duas
faculdades (o que, provavelmente, tenha lhe dado mais orgulho do que o fato de
eu me tornar um padre).
Terminei de me vestir sem pressa, não por desacato ao padre Dionísio,
mas porque não pude fazê-lo com maior rapidez. Ainda não havia absorvido a
ideia de que, em breve, já não me chamariam apenas de Augusto, ou de, no
máximo, irmão. Eu seria o padre Augusto. “Padre, a bênção!” — diriam. A mim!
Saí sorrateiramente pela porta, a fim de que Dionísio não me visse. Sabia
o que me esperava se ele soubesse que eu ainda não estava sentado no banco. De
repente, senti-me tão jovem, escondendo-me nos tão conhecidos pilares da
paróquia. Tantas confusões eu já não havia me metido por meus amigos
seminaristas — e eles por mim — nesses quase dez anos em que estive lá. Ao
mesmo tempo, senti-me tão velho, por sentir em meu ombro um peso que eu há
tanto almejava, agora tanto me oprimir. Por saber que, em poucos dias, eu já não
me sentaria nos bancos da sala de aula da faculdade, mas sim, seria o professor,
o mestre.
Enquanto burlava os padres que conversavam despreocupadamente no
corredor, comecei a pensar que fora pura sorte o fato de eu ter concluído o
seminário junto com meus colegas. Sorte, no modo mundano de pensar. Era a
mão de Deus. Sim, a poderosa mão de Deus. Tanta polêmica gerei nas salas da
faculdade, principalmente nas aulas ministradas pelos padres. Tantas coisas que
nunca compreendi a respeito das Sagradas Escrituras — e que permaneci sem
compreender até então.
Já sentado no banco envernizado, tão comum a mim como o sofá de uma
casa, sob o som dos altos sinos, as palavras do frei Julião, ditas há tantos anos,
ainda ecoavam em meu ouvido:
— Augusto, ouça bem, existem verdades que são inquestionáveis...
— Verdades quais, frei? O senhor mesmo disse que só é considerado
verdade o que está escrito na bíblia!
— E o que foi revelado, Augusto, não se esqueça disso, e o que foi
revelado! Agora ouça e não me interrompa: eu leciono aqui há mais de quarenta
anos. Isso não deve ser nem o que você tem de idade. Acha que sabe mais do
que eu? Eu sei o que estou falando, e estas são as verdades. — disse, batendo
com violência um livro surrado de sua autoria, enquanto vários perdigotos
alcançavam meu rosto. — E você não deve contestá-las, ouviu bem? Agora
deixe de dar uma de revolucionário e sente-se em seu lugar. Quando tiver a
minha idade e a minha posição, talvez, veja bem, talvez, você possa pensar a
respeito de ter um ponto de vista diferente. Obviamente, não contrariando as
verdades.
Sua voz rouca e autoritária nunca fora esquecida por mim e, acredito, por
nenhum de seus alunos. Após isso, não tive mais muitos meios de questionar “as
verdades” ensinadas no curso de teologia.
Tive maior abertura para as minhas ideias enquanto estudei filosofia.
Pude questionar tudo o que minha mente indagava, porém nem todas as
perguntas obtiveram respostas satisfatórias. Enquanto alguns me explicavam
teorias sagradas com pensamentos freudianos, outros, simples e honestamente,
confessavam não saber as respostas.
E, assim, concluí duas faculdades para o ministério paroquial, tendo
dúvidas acerca de conceitos básicos a respeito da supremacia de Deus e da série
de regras que a Igreja impunha a quem tinha o único e exclusivo desejo de levar
a mensagem de Deus a quem ainda não a tinha.
— Ansioso, Augusto?
A voz inconfundível de Samuel me tirou dos meus devaneios.
— Um pouco. — respondi, limpando o suor das mãos nas laterais das
calças — E você?
— Também. Quer dizer, é o fim de um ciclo, começo de outro, novos
desafios... Mas sei que o Senhor estará à frente de tudo, então, não tenho o que
temer.
Assenti suavemente. A fé de Samuel era invejável – com o perdão da
expressão. Nunca titubeara ante alguma adversidade. Mesmo em meio às muitas
tribulações que passamos, suas palavras sempre nos levavam a uma oração,
ações de graças e a uma cega confiança em Deus. Fé como a dele eu não
conhecia igual. Deus era o seu respirar.
O celebrante já estava à frente, com seus trajes longos e pomposos. Se a
Igreja prega a simplicidade, para quê esta ostentação? Mais uma de minhas
perguntas sem respostas.
Os fiéis agora estavam com a palavra.
— Para os retos de coração, surgiu nas trevas uma luz...
Será que eles sabiam o que tudo isso significava? Será que podiam
compreender a grandiosidade desta mensagem? Acreditei, com tristeza, ser isso
muito pouco provável. Ao virar-me para trás, vi que as beatas mal moviam os
lábios para recitar as conhecidas frases. Alguns jovens conversavam, como se ali
não fosse um lugar sagrado. Outros, acredito, nem estavam sintonizados:
repetiam mecanicamente as palavras, como se fizessem um favor a Deus por
estarem lá. Mas havia alguns, eu podia ver, que faziam de coração aquele
momento, um momento para dedicar a Deus. Ou a Nossa Senhora da
Misericórdia, a santa padroeira daquela paróquia.
— Senhor, tende piedade de nós! — todos diziam em uníssono. “Que
tenha mesmo” — rezei.
O leitor discursava com uma oratória perfeita: “o Espírito, a Água e o
Sangue”. Logo, essas mesmas palavras estariam em meus lábios. As palavras de
Deus, em lábios tão indignos como os meus.
— Aleluia, aleluia, aleluia! — Diziam todos mais uma vez.
“Vãs repetições” — eu ia pensando, sentindo-me mal por isso. O que
havia, afinal, de errado comigo? Logo, eu teria o que sempre quis. Logo, seria
ordenado, então o que mais eu esperava? Ter todas as respostas? Mas quem era
eu para saber de coisas que nem os grandes sabiam? E por que eu continuava
julgando todos com minha hipocrisia? “Pois quem julga se coloca no lugar de
Deus”. Essa ideia calou meus pensamentos por hora.
— Glória a vós, Senhor!
---
— É hoje o seu grande dia, Augusto!
— Meu não, irmão, os dias são sempre do Senhor. — disse, sentindo-me
estranho com aquela túnica enorme sobre mim.
— Ah, você entendeu. Digo, tudo o que você fez nos últimos nove anos
de sua vida foram para que esse dia chegasse!
Caio estava mesmo animado. Bem mais do que eu, pelo menos.
— Sim... — respondi com certa insegurança, ao que ele interpretou como
nervosismo.
— Acalme-se, irmão, ou melhor, padre! Vai dar tudo certo!
Um fio percorreu minha espinha. Padre!
— Augusto, os fiéis já estão ficando inquietos! Algum problema?
Eu não devia estar com uma feição muito boa, a julgar o modo como
Dionísio me fez esta pergunta.
— Sim, desculpe, não estou acostumado com isso, mas estou indo
imediatamente.
Dionísio observou-me por mais um segundo e logo saiu do quarto, sem
nada dizer.
— Vamos, padre, os fiéis te esperam!
Os olhos de Caio brilharam com tanta ânsia que quase me animei.
A igreja estava cheia. Eu podia ver pessoas até o último banco. Todos da
pequena cidade sabiam que aquela seria a minha primeira missa e me fitavam
com expectativa e constrangedora curiosidade, mas eu sabia pelo que eu estava
ali.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
Minha voz era forte e mais alta do que imaginei que conseguiria. Apesar
de saber que todos me olhavam, não pela mensagem que eu trazia, mas sim por
ser a minha primeira vez como padre, consegui manter o mesmo volume de voz
e prosseguir com a missa tranquilamente.
— Ó Deus, todo-poderoso, purificai-me o coração e os lábios, para que
eu anuncie dignamente o Vosso Santo Evangelho.
Tomado de minhas palavras, precisei de um momento para prosseguir a
missa. Algumas senhoras já se adiantaram “Ele está no meio...” mas eu queria,
verdadeiramente, sentir-me puro para anunciar ao Evangelho.
— O Senhor seja convosco. — consegui dizer, com o mesmo tom de voz.
Eu entregava as oferendas e cumpria todo o ritual, mas quando disse
“Receba o Senhor por tuas mãos o sacrifício”, uma voz estridente gritou em
minha mente “Sacrifício não quero, obediência sim, eu quero”. Pausei
novamente a missa, mas, desta vez, apenas o tempo de apertar meus olhos, como
que se tomado de uma breve vertigem, e prossegui, antes que alguém viesse me
acudir.
— Para glória do seu nome, para nosso bem e de toda a santa igreja.
Não tive mais nenhum lampejo de dúvidas em minha mente naquela
missa. Talvez o nervosismo, enfim, tivesse me vencido, e não consegui pensar
em mais nada.
Era o momento da eucaristia, quando saí do transe.
— Meu filho... Meu filho! — minha doce mãe dizia.
— Deus a abençoe, mãe.
Seus olhos estavam marejados e eu senti que faria o mesmo, se não
estivesse diante de um sem número de pessoas e mais, do reitor.
Ela tentou dizer mais alguma coisa, mas a hóstia já estava em sua boca.
Sorriu-me com ternura e contornou a longa fila que se formava atrás dela.
Quando tudo, finalmente, chegou ao fim, suspirei no altar. O aglomerado
de pessoas saía com pressa pela enorme porta da frente, ato costumeiro dos fiéis,
o que não permitiu que eu pensasse que, por isso, eu havia ido tão mal assim.
— Padre Augusto!
— Senhor Reitor. — apesar de minha voz não ter falhado em nenhum
momento durante a missa, eu mesmo mal escutei meu sussurro. — Como me
saí?
— É Deus que avalia isso, filho. — disse, com pouco caso, como se isso
fosse um assunto secundário. — Apenas achei que divagou demais nessa missa.
E também que cometeu um erro gravíssimo na eucaristia. Chamar uma fiel de
mãe?
— Mas ela é a minha mãe!
— Não aqui, padre! — disse, severamente — Aqui todos são irmãos!
Poderia até chamá-la de filha, mas nunca de mãe!
— Queria que eu chamasse minha mãe de filha?
Arrependi-me no mesmo instante pelo meu atrevimento. O rosto do reitor
se avermelhou de tal forma que quase chamei o frei para vir socorrê-lo.
— Não vou responder à sua insolência! Assim que os fiéis saírem por
aquela porta, vá até o frei se confessar! E que Deus... — disse, comprimindo os
lábios e apontando seu dedo fino para cima — o perdoe!
Prendi a respiração até que o reitor se afastasse. Minha visão ficou turva
por aquele ato, mas eu ainda estava abalado demais para cumprir até mesmo
minhas funções vitais.
— Augusto! Meu menino! Você agora é um... Padre!
Virei-me, ainda desorientado.
— Mãe, digo, filha! Ah... — suspirei, abraçando-a. Não havia ninguém
que pudesse nos ouvir. — Mamãe, que saudades da senhora.
Dona Madalena sorriu, com a mão sobre os lábios.
— Ah, Augusto, como você estava lindo lá na frente. Parecia um anjo!
Limitei-me a balançar a cabeça. Minha mãe não mudara nada.
— E digo que estou muito zangada com você! Prometeu-me que ia me
chamar para assistir à primeira missa que realizasse!
— Mas esta foi a minha primeira missa. — respondi, confuso.
— Pois sim, com toda essa desenvoltura. Esse não é o garoto tímido que
deixou a minha casa outro dia!
Seu sorriso largo passava longe de uma real irritação.
— Não mesmo, mãe, sou uma outra pessoa.
— Augusto! Ainda vivo? — interrompeu-nos Dionísio — Você se saiu
muito bem, deve ter recebido muitos elogios do reitor.
Sorri, sem graça.
— Ah, com certeza, qualquer um vê que meu filho nasceu para isso!
Dionísio limitou-se a sorrir para a senhora extravagante que acabara de
se anunciar como minha mãe.
— Mas me diga, foi você que cuidou do meu filho todo esse tempo? —
perguntou, de repente, minha mãe a Dionísio.
— Bem, digamos que fui uma espécie de tutor dele.
— Pois pode me explicar a magreza desse menino? Olhe para isso, não
tem carne!
Nem a multidão olhando para mim conseguiu me constranger tanto
quanto aquele comentário de mamãe.
— Bem, senhora, fiz o que pude. Além disso, assim que se aproximou o
dia de hoje, Augusto andou muito ansioso...
— Mas isso é desculpa? Esse menino precisa comer, veja só! Não foi
assim que eu o deixei no último natal!
Olhei suplicante para Dionísio, com o olhar que pedia para que ele me
livrasse daquela situação.
— Ah, padre, pode retirar a túnica, o frei não gosta que os padres a usem
depois da missa.
— Claro, claro, estou indo, padre.
— Para isso esse menino corre... — ouvi Dionísio murmurar antes de
sair. Eu lhe devia mais esta.
Já em meus aposentos, apenas com trajes habituais, peguei meu rosário
por hábito e me assentei na ponta da cama. Respirei fundo e curvei minha fronte.
Agora sim, eu poderia pensar em tudo aquilo. Pensar e rezar.
Com os olhos fechados, segurei com os dedos o primeiro nó do rosário e
comecei automaticamente a sussurrar, mal movendo os lábios, uma Ave Maria.
Quando estava no terceiro nó, o “rogai por nós pecadores” ainda estava em meus
lábios, quando minha mente voltou a me atormentar: “O único mediador de
Deus e os homens: Jesus Cristo, homem.” Parei bruscamente ante a lembrança,
levantando a cabeça e prendendo o ar. Onde? Onde estava aquele versículo?
Pulei da cama e abri a gavetinha do móvel ao lado, em busca da minha
velha e surrada bíblia. Eu nunca me ativera à vaidade de coisas novas. Talvez eu
tivesse o sangue colecionador de meu pai. Antiguidades sempre me encantavam
mais que novidades.
Folheando rapidamente, procurei nas cartas paulinas o que a minha
mente me alertava. Quando encontrei o versículo, um arrepio me percorreu a
espinha. “Bem, talvez seja só uma questão de interpretação.” — pensei.
Respirando fundo novamente, deixei a bíblia ao meu lado para mais
alguma eventualidade e voltei a me concentrar no terço.
Decidi, então, partir para o Pai Nosso. Esse eu não poderia encontrar
objeções. Foi a oração do próprio Senhor Jesus.
O Pai Nosso fluía com rapidez em meus lábios, mas algo ainda me
inquietava.
— O quê?! — gritei para a minha mente.
O silêncio ecoou pelo quarto por um breve momento, quando ouvi
batidas inseguras na porta.
— Está tudo bem, Augusto? Posso entrar?
A voz era de Samuel.
— Sim! — respondi, aguardando um instante, complementando em
seguida — Para as duas perguntas!
A porta rangeu baixo ao abrir lentamente. Samuel, talvez, estivesse com
medo do que encontraria.
— Estava conversando com alguém? — perguntou, agora sorrindo, ao
perceber que tudo estava no lugar.
Minha feição me denunciou ao lembrar-me dos últimos momentos.
O sorriso de Samuel apagou-se devagar, dando lugar a um suadouro
repentino e a uma expressão crescente de terror.
— Você não estava conversando com ... Você não estava expulsando
um... — ele temia mais do que a morte pronunciar aquele nome.
— Não, não estava expulsando demônio algum! — disse, rapidamente,
para tranquilizá-lo.
— Oh, ótimo... — expirou Samuel aliviado, com a mão no peito. —
Bem, não queria tomar o seu tempo, deve estar cansado e, pelo que vejo, estava
falando com Deus... — disse, concluindo que era com o Senhor mesmo a minha
conversa — Eu só queria te dar os parabéns. Sei que é a Deus toda a glória, mas
verdade seja dita, você foi muito bem!
Sorri, agradecido, sem me preocupar com a soberba. Eu estava tão aflito
que a última coisa que faria seria me gloriar.
— Bem, não vou mais te atrapalhar, fique com Deus, irmão!
— Fique com Ele, Samuel, e obrigado pelas palavras.
Samuel meneou a cabeça e saiu em silêncio, deixando no ar a pergunta
que eu havia feito minutos atrás.
O que a minha mente teria dito enquanto eu rezava o Pai Nosso, caso
Samuel não tivesse aparecido?
Não querendo entrar em conflito comigo mesmo mais uma vez, segurei
firmemente o rosário e voltei a rezar, mas, desta vez, sem as palavras prontas das
orações.
— Senhor, revela-me a Tua vontade.
Foi tudo o que consegui dizer.
Confissões
Foi somente no meio da semana que a ordem do reitor fora, de fato,
cumprida.
Eu caminhava pela igreja, abençoando as beatas que lá vieram rezar. Vi a
senhora Lourdes e, com grande regozijo, me aproximei dela.
— Como vai, minha filha? — Era tão difícil me acostumar a chamar de
filha uma senhora com idade para ser a minha avó.
— Padre! Deus seja louvado! Depois de 15 dias de cama, agora estou
aqui, para agradecer a Deus pessoalmente. — disse, com os olhos brilhando.
— Aleluia! Que o Senhor seja louvado! Creio que a senhora ficará ainda
melhor até o final da semana.
Ela sorriu-me com ternura e senti verdadeira compaixão daquela alma.
Tão fiel, tão temente. Por que o Senhor permitia que ela sofresse tanto?
Enquanto eu a via se distanciando com passos trôpegos, senti uma mão
apoiando-se firmemente em meu ombro.
— Padre Augusto.
— Frei! — disse, virando-me para ele.
— Er... O reitor conversou comigo a respeito da última missa...
— Sim, Frei, sei que cometi alguns erros, mas já os confessei a Deus e
garanto que não vão acontecer de novo.
— Sim, sim, tenho certeza que sim, mas o reitor faz questão que você se
confesse com um superior também, então...
Sua feição era de evidente descaso. Eu podia sentir que ele até se
compadecia de mim.
— Bem, vamos, acabemos de uma vez com isso. — completou.
Dirigimo-nos a um dos corredores da paróquia em que os fiéis não
pudessem nos ver.
— Não seria, digamos, didático um fiel ver um padre se confessando. —
confidenciou.
Sorri ante ao comentário do Frei Alceu. Se o Reitor estivesse ali,
provavelmente o faria se confessar por isso também.
Após realizarmos os protocolos, ele nos dirigiu ao confessionário.
— Muito bem. — disse, quase com enfado — Já fiquei muito na posição
de ouvinte, agora é a sua vez.
Respirei fundo e prendi o ar. Nunca vi o confessionário como algo tão
assustador como naquele instante.
— Pode entrar, a primeira fiel já se aproxima.
Olhei para a entrada da igreja e vi uma jovem senhora fazendo o sinal da
cruz.
Quando olhei para trás, porém, o frei já havia saído, com passos ruidosos
atravessando a paróquia, a bata sobrevoando o chão. Seus cabelos grisalhos, ou o
pouco que ainda restava de seus cabelos — Deus que me perdoe por isso —
ficavam intactos mesmo com a maior rajada de vento.
Entrei, então, no confessionário e aguardei a senhora se posicionar.
— Eu, grande pecadora Mercedes, confesso a ti, Reverendo Padre, todos
os pecados que cometi por ação, palavras e pensamentos.
Um novo nó atravessou minha garganta. Era frustrante perceber que não
estava preparado ainda para aquilo que busquei durante praticamente a segunda
metade de minha vida. Era como se eu fosse um personagem fora de contexto,
alguém que não devesse estar ali, ouvindo os pecados de uma senhora mais
velha do que eu.
— Abençoa-me, Padre, perdoe-me e ore por mim, pecadora.
— Eu a absolvo dos seus pecados, minha filha, vá em paz.
— Mas padre? E a minha penitência? — questionou, surpresa, a senhora.
— Ah, sim, reze três Pai Nossos e três Ave Marias.
Era aquilo, afinal, tudo o que eu tinha de fazer. Ouvir com paciência aos
pecados dos fiéis e absolvê-los. Eu, um outro pecador. Eu, que embora padre,
não conseguia evitar que meus pensamentos beirassem à heresia ao Santo Deus e
a Nossa Senhora.
— Seu Padre, eu preciso me confessar.
Uma nova voz fina e ofegante inundava meu pequeno espaço. Mal
percebi sua chegada.
— Sim, meu filho, pode falar.
Foi com mais facilidade que consegui chamá-lo de filho. O rapazinho
devia ter seus doze anos e parecia seriamente preocupado.
— Padre, eu não sei como contar isso, mas... Bem, eu estava com meus
amigos jogando bola, daí o Joaquim começou a xingar. Não, calma, antes disso,
a Susana, nossa vizinha, tinha passado de bicicleta. Não só eu, padre, mas todos
os meninos começaram a olhar pra ela passando, todo mundo da vizinhança
gosta da Susana, o senhor sabe, não sabe? Então, o Pedrinho disse que já veio se
confessar outro dia pro padre que estava gostando dela, mas eu não estou
gostando dela, eu só acho ela bonita. Achar bonita não é pecado, né, padre? Se o
senhor a visse, ia achar ela bonita também. Ai, desculpa padre, pequei de novo...
Depois da surpresa de ver como aquele menino conseguia falar tanto e
tão rápido, precisei me conter para não rir. Se eu risse, magoaria o coração
daquela pobre criança ávida em me contar sua história. Ouvi tudo com atenção,
não me preocupando com o tempo. A inocência daquele menino me emocionava.
Eu sabia do número de pecados verdadeiramente severos que eu teria de ouvir
dali adiante e aquele relato era tão inocente e puro de coração, que não me
importei de ouvi-lo e incentivá-lo de tempos em tempos com um “sim”,
“continue”, nas raras pausas de sua narrativa.
— Então padre, eu sei que a gente não pode contar os pecados dos
outros, mas o Joaquim que me disse que aquele pé de manga era do tio dele e
que podia pegar a vontade. Eu achei estranho, mas se ele disse, tudo bem. E eu
tenho certeza que ele fez isso pra gente ficar mal com a Susana. E agora o
guarda Matias está atrás da gente, dizendo que a gente é ladrão, e tudo, mas a
gente não é ladrão, não, seu padre, meu pai é trabalhador, e eu não roubo, não.
Mas se ele me pegar, ele vai cortar a minha mão, padre!
Soltei um suspiro sem querer. Ele, afinal, não estava querendo o perdão
e, sim, que eu o ajudasse com seu problema.
— Bem, filho, pelo que você me conta, você não roubou porque quis, já
que não sabia que não podia pegar as mangas do seu vizinho.
— É, padre, foi isso!
— Faça o seguinte agora, então, ainda tem as mangas com você?
— Não senhor, seu padre, eu comi algumas e as outras eu escondi na
árvore, senão o seu Abraão ia ver.
Meneei a cabeça, apoiando-a em uma das mãos. Que confusão aquele
garoto havia se metido...
— Muito bem, volte então para a árvore e pegue as mangas que
escondeu. Depois vá até o senhor Abraão e lhe devolva as mangas, dizendo que
tudo não passou de um engano e que sente muito por ter pegado suas mangas
sem a sua autorização. Diga também que trabalhará e pagará pelas mangas que
comeu, se assim ele quiser. Peça também desculpas pela confusão a seu pai, que
deve estar nervoso com você. Conte-lhe a verdade. E admoeste o seu amigo
sobre a mentira dele. Diga que Deus abomina a mentira e que ele deve vir se
confessar também.
O garoto me ouvia com atenção, a respiração ainda ofegante pela
provável corrida para chegar até a paróquia. Quando eu terminei, ele assentiu
firmemente.
— Sim, senhor, farei isso.
— Ótimo, e lembre-se de quando chegar a sua casa rezar um Pai Nosso e
três Ave Marias! — disse alto, mas provavelmente ele não me ouviu.
Já havia corrido pela rua seguir meus conselhos, supus. Diferentemente,
porém, do que deveria, não me importei com isso. Apesar de considerar a
importância de uma criança rezar, eu via uma solução melhor o arrependimento
e a confissão do que orações feitas às pressas e por obrigação.

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As missas agora eram revezadas entre os padres recém-ordenados. Era


uma tradição anual daquela paróquia dedicar um mês inteiro, exceto em datas
comemorativas, à apresentação de novos padres, permitindo que realizassem
suas primeiras missas.
Quando Samuel pregou, cheguei a me arrepiar. As palavras eram as
mesmas que os outros padres já haviam falado, inclusive eu, mas havia tanta
sinceridade em seu modo de falar, tanta devoção que, apenas não julguei ser por
nossa amizade, porque vi muitas senhoras chorarem durante a missa.
Seu sorriso era nervoso, mas terno, e suas mãos trêmulas evidenciavam
mais temor por estar diante do Senhor do que por se encontrar diante de uma
multidão de pessoas.
Minha missa seguinte fora somente duas semanas depois. Como Marco
Aurélio não havia se recuperado da gripe que adquirira às vésperas da sua missa,
eu fui escalado para substituí-lo. Ao contrário da primeira vez, porém, não
permiti que minha mente me desconcentrasse. No entanto, precisei me confessar
ao Senhor pela mecanicidade daquela missa. Como eu não refletia no que dizia,
eu mais parecia um padre monótono e enfadonho do que um padre que elevava
os corações dos fiéis. Meu único consolo foi que a missa que dirigi não foi
seguida da de Samuel, pois eu seria severamente comparado.
Não recebi comentário algum dos superiores. Também não fui escalado
tão cedo, o que não senti tanto, pois estava atarefado demais visitando casas para
orar por enfermos e passando as tardes no confessionário.
Certo dia, e nunca me esquecerei daquele dia, eu estava no
confessionário quando ouvi uma doce voz se pronunciar.
— Padre, por favor, me perdoe porque eu pequei.
Precisei de um minuto para falar, pois nunca ouvira voz tão bela. E, como
se não bastasse, juntamente com esta voz, vinha uma suave fragrância de alguma
flor. Dama-da-noite, talvez.
— Fale, minha filha, o que a trouxe aqui? — disse, tentando ver seu rosto
através das grades.
— Eu pequei porque menti. Fui forçada a mentir para minha mãe.
A moça, que começara com a voz impassível, começava a se engasgar.
Apesar de não conseguir vê-la muito bem e, certamente, nem ela a mim,
pareceu-me que ela não conseguia me encarar.
— Se eu lhe disser o motivo, — continuou rapidamente, antes que eu a
interrompesse. Ou, talvez, antes que perdesse a coragem — o senhor verá que eu
tive minhas razões, mas sei que, perante Deus, nada justifica o fato de alguém
cometer esse pecado.
Em choque, emudeci. Precisei me conter de curiosidade até que ela
revelasse, enfim, o motivo de sua confissão. O que teria levado aquela mulher,
aparentemente tão temente a Deus, a mentir para a própria mãe?
— Eu estou doente, padre. — declarou, após um instante, sua voz não
passando de um sussurro. — Fui desenganada pelos médicos e, segundo eles,
tenho só mais alguns meses de vida.
Uma pausa se fez, enquanto eu absorvia aquelas palavras, petrificado, e
ela escolhia novas palavras, corajosa. Pelo visto, o pior ainda estava por vir.
— Minha mãe sofre do coração. — prosseguiu a mulher, segurando com
força um lenço em suas mãos. — Se ela souber o que eu tenho, é capaz de partir
desta para uma melhor antes mesmo de mim.
Seus sussurros agora eram desesperados. Aguardei a mulher se recompor,
desejando sair daquele ingrato confessionário que nos separava e poder abraçá-
la, a fim de lhe trazer algum conforto.
— Eu não pude lhe contar a verdade. Sei que Deus é o Senhor da vida e
da morte, mas eu não conseguiria viver o pouco que ainda me resta com essa
culpa, caso algo acontecesse com ela.
— Mas não lhe ocorreu que será mais trágico se ela souber quando você
já não puder mais consolá-la?
Minha pergunta nos surpreendeu. Tanto tempo calado para lhe dizer isso.
Eu não tive tempo de pensar antes de falar e me arrependi de não tê-lo feito. Ela
se calara, abaixando a cabeça, e senti-me o mais miserável dos homens. Afinal, o
que eu estava fazendo com aquela pobre criatura?
— Sim, me ocorreu, — respondeu ela, por fim, com um gemido
angustiado — mas o que eu podia fazer? Não tive forças. Venho mentindo esse
tempo todo para ir ao médico, comprar remédios... Agora eu simplesmente não
posso mais! Mas, por favor, padre, em nome de Deus, me absolva, para eu poder
voltar para casa com um pouco de paz que seja.
— Está absolvida, minha filha, — respondi, rapidamente — Vá em paz e
que o Senhor a acompanhe.
— E o quanto terei de rezar para que Deus me perdoe?
Ponderei. Como Deus poderia tomar por culpada aquela mulher que só
fez proteger sua mãe de uma notícia tão trágica?
— Filha, reze por sua saúde e pela saúde de sua mãe. Não se preocupe
com a sua omissão. Deus já a perdoou.
Pelas frestas da grade vi que ela abriu sua boca, mas se resignou.
— Obrigada, Reverendo Padre.
— Vá em paz, minha filha.
Sem que eu entendesse por que, meu coração estava pulsando a mil
quando ela deixou o local. Sua presença havia me perturbado sobremaneira. Sua
voz ainda ecoava em meus ouvidos, e a lembrança de sua dor me corroía por
dentro. “Apenas alguns meses de vida.”
Apenas dei por mim quando um padre me chamou. Precisei de um
segundo para me recompor e saí.
E eu que estava preocupado com o que tinha feito com aquela criatura.
Surpresas
No domingo que se seguiu, eu já havia acabado com as lembranças que
tinha da tal mulher. Algum tempo depois de sua visita ao confessionário,
convenci-me de que minha comoção fora somente porque me compadecera de
sua causa.
Quem pregara naquele domingo fora o Padre Dionísio. Eram raras as
suas pregações, pois sua saúde não lhe permitia ficar de pé por mais de uma hora
seguida, isso sem contar com seus acessos de tosse repentinos. No momento da
Eucaristia, porém, ele ficou incapacitado de prosseguir, tendo de sair às pressas
para o mosteiro. O Frei Alceu sinalizou, sob o olhar rígido do reitor, que algum
de nós padres sentados nos primeiros bancos nos prontificássemos a dar
sequência ao momento.
— Irmão, por favor, vá você. Já pregou mais de uma vez, eu não estou
preparado agora. — disse um dos jovens padres que estava sentado comigo.
Eu assenti e levantei-me.
— Irmãos, — o frei levantou uma de suas mãos para os fiéis — por
motivos de força maior, o Reverendíssimo Padre Dionísio não poderá dar
continuidade às atividades desta manhã. Por isso, convoco o Padre Augusto para
realizar a Eucaristia.
Caminhei sentindo os olhares da multidão, mas procurei não observá-los.
Tomei a patena nas mãos e a ergui. O mesmo fiz com o vinho.
— Bendito seja Deus para sempre!
A missa prosseguiu em sua dinâmica e a congregação respondia
monotonamente.
— Que Ele faça de nós uma oferenda perfeita para alcançarmos a vida
eterna com os Vossos santos: a Virgem Maria, mãe de Deus, os Vossos
Apóstolos e Mártires, e todos os santos, que não cessam de interceder por nós na
Vossa presença.
“Acaso a favor dos vivos consultarás os mortos?” — minha mente me
inquiriu.
Tomei fôlego, para tentar abafar esse grito silencioso.
— Confirmai na fé e na caridade a Vossa Igreja, enquanto caminha neste
mundo: o vosso servo o Papa Bento XVI, o nosso bispo, com os bispos do
mundo inteiro, o clero e todo o povo que conquistastes.
“E a ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque um só é o vosso
Pai, aquele que está nos céus!” — a voz era ainda mais alta.
Aquilo era demais para mim. Minha mente já havia blasfemado contra
tudo o que eu julgava por santo: a Eucaristia, Nossa Senhora e até o Papa! Eu
não devia estar em condições de prosseguir, mas permaneci, com a voz um
pouco trôpega, até o fim.
Após toda a preparação, a fila de fiéis já estava sendo formada. Um a um,
todos pegaram seu elemento e receberam a bênção.
Foi quando a vi verdadeiramente. Seus trajes decentes e modestos, seus
cabelos marrons cobertos por um negro véu de renda, seus olhos escuros como a
noite. Procurei concentrar-me no momento, não podia sair do estado de contínua
oração, mas era impossível não me deter a ela.
— Amém. — ela disse baixo, após a minha bênção. Por mais que eu não
tivesse como vê-la na ocasião, não tive dúvidas de que ela era aquela mulher que
se confessara comigo naquele dia e me abalara tanto.
Fiz o possível para entregar-lhe depressa a hóstia e desviar minha atenção
dela, mas, embora eu soubesse que tudo transcorrera normalmente, era como se
ela se movesse em câmera lenta diante de mim.
Quando a missa acabou, corri os olhos pela igreja, inconscientemente, a
sua procura.
— Algum problema, padre? — perguntou o frei, entrando em meu campo
de visão.
— Como, frei? Oh, não, não se preocupe, estou bem, apenas um pouco
apreensivo ainda.
— Ótimo, que bom que estava preparado para assumir o lugar do Padre
Dionísio, sei que pode ser difícil estar sintonizado o tempo todo, então por isso
mesmo procurei por um de meus ex-seminaristas. — disse, dando uma piscadela
discreta. — Eles sempre estão “ligados”.
Sorri fracamente.
— Com licença, sua bênção, Frei Alceu. — disse, de repente, uma voz
atrás de mim.
Cheguei a arregalar os olhos e a boca ao mesmo tempo, mas em uma
fração tão curta de segundo que imaginei que nenhum dos dois pudessem ter
percebido.
A mulher estava ali, ao meu lado, tocando com os lábios a mão do Frei
Alceu, enquanto este assentia suavemente.
— Deus a abençoe, minha filha.
— Sua bênção também, padre.
E então sua mão, suave como um algodão, segurou a minha, que só não
transpirava naquela hora porque meu corpo não tivera tempo hábil para nenhuma
reação se não a de perplexidade.
— Deus a abençoe. — Forcei minha voz, que saiu apenas como um
murmúrio.
— Será que o senhor que tem um minuto, padre? — disse ela a mim.
Senti-me petrificado. Não me atrevia a olhar mais em seus olhos.
— Bem, com licença, preciso saber do Padre Dionísio. Depois que
terminar sua conversa, precisarei do senhor, padre.
— Sim, senhor, frei. — consegui responder.
— Frei! — chamou a moça por Alceu, fazendo-o virar. — Por favor,
estime as melhoras por mim ao Padre Dionísio.
— Ah, sim, filhinha, apresentarei suas condolências ao padre, sei que ele
ficará muito contente em saber de sua preocupação.
A mulher sorriu, grata, e aguardou que o frei estivesse fora de vista para
me dirigir a palavra.
— Padre, não sei se o senhor se lembra de mim. Sou aquela mulher que
se confessou outro dia, a respeito de uma doença, a qual não pude revelar a
minha mãe. — disse a mulher, hesitante.
— Sim, lembro-me da senhorita. — respondi, pensando se não seria bom
aparentar um pouco de dificuldade para lembrar-me dela. De qualquer forma,
isso também não seria certo. — E como foi a conversa com a sua mãe?
— Ah, padre, não consegui conversar com ela. Ela anda tão preocupada
com outras coisas, como dar uma notícia dessas? Além disso, que bem lhe farei
em contar a verdade? Fazê-la sofrer até o dia da minha morte?
Sua voz agora era dura e era perceptível a amargura em suas palavras. O
que era óbvio, pois ela era, de fato, muito jovem para já estar condenada à morte.
“Morte.” Arrepiei-me ao pensar.
— Filha, o Senhor, e não eu, nos diz para abandonarmos a mentira e
falarmos a verdade. Entendo o que está tentando fazer, mas por melhor que seja
a sua intenção, não deve continuar sustentando essas mentiras.
— Mas padre, o senhor não entende, minha mãe sofre do coração, e se
algo acontecer a ela?
— Ouça, a senhorita não disse que crê que o Deus a quem serve tem a
morte e a vida nas mãos?
— Sim, claro. — disse, automaticamente.
— Não responda apenas porque está falando com um padre e dentro de
uma igreja. Verdadeiramente acredita que é Deus quem decide quem viverá e
quando morrerá?
Ela se calou. Talvez, em seu íntimo, travasse uma batalha espiritual.
— Eu sei que o Senhor tem poder para fazer o que quiser... — disse, após
alguns segundos, lentamente, escolhendo as palavras — Mas creio também na
nossa participação nos eventos da vida. Digo, Ele nos mostra o caminho, mas o
nosso destino depende das decisões que tomamos.
— Faça o que estiver em seu coração, então. — disse — Ele a guiará
quanto ao que fazer.
Ela sorriu, satisfeita e aliviada.
— Obrigada, padre. Sua bênção.
E, mais uma vez, tocou com os lábios a minha mão, agora úmida e
ligeiramente fria.
— Que Deus a abençoe, minha filha.
“Enganoso é o coração do homem” — minha mente me lembrou, um
pouco tarde.
“Eu que sei” — respondi a mim mesmo, confuso quanto aos meus
sentimentos, enquanto via a moça sair, rapidamente, da igreja, com seu véu se
levantando com o vento, e este, trazendo de volta seu perfume até mim.
A Verdadeira Mensagem
Passaram-se algumas semanas até que eu voltasse a pregar. Com todos
saudáveis e disponíveis, seguíamos uma nova escala e, todos os dias, por quinze
dias, aproximadamente, um pregador diferente celebrava a missa.
Os sermões, em geral, não sei se por coincidência ou não, estavam todos
ligados ao mesmo tema: a ajuda aos necessitados e, quando não, o adultério e o
homicídio. Como se esta fosse a única exigência do Senhor, e estes fossem os
únicos pecados que um homem pudesse cometer.
Naquela quarta-feira, toda a solenidade transcorrera sem alterações
enquanto eu celebrava a missa. Apenas dois padres recém-ordenados estavam
presentes. Era uma missa pouco movimentada.
No momento da Palavra, uma bíblia antiga que todos os pregadores
usavam nas missas estava diante de mim com a mensagem programada. A
maioria dos sermões era escrita pelo frei, mas, algumas vezes, eles ficavam a
encargo dos padres. O texto para primeira leitura estava em Isaías 53. Foi
quando eu decidi que a mensagem que eu falaria não seria aquela da
programação.
Quando a aclamação do Evangelho chegou, os irmãos levantaram-se,
penosamente, e diziam seus “Aleluias” como se estivessem em um funeral. Mas
uma coisa, para mim, era certa: aqueles irmãos não voltariam para casa da
mesma forma.
Procurei naquela bíblia o texto que São Mateus escrevera sobre a árvore
e seus frutos. Como o frei não estava presente, ninguém sabia que não era aquele
o texto que estava programado para mim. A palavra era forte.
— Irmãos, santos do Senhor, não é todo que diz “Senhor, Senhor”, que
estará com Deus nos céus. Somente aqueles que cumprem a sua vontade.
Aqueles que fazem o bem. Mas aqueles que apenas fazem o bem? — perguntei,
de repente, para os fiéis, não crendo que eu estava dando vazão para que a minha
mente insana pregasse no meu lugar — Não! “Pela graça sois salvos, não pelas
obras, para que ninguém se glorie!”. E eu sinto dizer para vocês esta noite, que
não é só por frequentarem religiosamente a igreja, por terem uma aparência de
santos e por realizarem boas obras que irão morar com Deus. Não. Só habitarão
no Reino Celestial os que forem achados em sua Graça. Aqueles que vivem o
cristianismo em Espírito e em Verdade, em uma fé não fingida. Tornem-se, e
tornem-se depressa, conhecidos do Senhor, caso contrário, ele vos dirá
abertamente no juízo final: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que
praticais a iniquidade”.
Os fiéis ficaram atônitos e caí em mim a tempo de terminar a homilia
antes que fosse excomungado.
Foi com dificuldade que a congregação se levantou para rezar o credo.
Ele fora recitado sob o murmúrio das pessoas, que exclamavam algo como: — O
que ele estava falando?
Antes mesmo de terminar a música final, saí apressadamente e dirigi-me
ao meu quarto, no monastério.
Sentei-me ainda com a longa batina sobre a cama, sentindo minha testa
pingar.
— Senhor, dê-me sabedoria! O que está acontecendo comigo? —
perguntei, olhando para cima — Eu não quero blasfemar contra Ti, mas nada do
que eu disse hoje foge do que a Tua Santa Palavra diz!
Mais uma vez o silêncio após o meu desabafo. Nem minha mente mais
me acompanhava. Eu estava completamente só.
---

Foi só após muitos dias que eu percebi que nunca era escalado. A
princípio, não me importei, apenas achei que outros padres haviam pedido ao
reitor que pregassem mais vezes.
Enquanto isso, passei a maior parte do tempo no confessionário, ouvindo
um número sem igual de atrocidades. Mal podia imaginar os pecados que
rondavam aquela pacata cidade. Talvez não fosse sem motivo que o frei sempre
fizera questão de fazer sermões sobre adultério e crimes contra a justiça.
Raras foram as minhas visitas domiciliares naquele mês. Talvez, pelo
constante tempo fresco, as pessoas estivessem mais saudáveis e, felizmente, não
houve mais que dois funerais desde que fora ordenado. Participei de um
casamento também, em que fui auxiliar do padre que celebrava a cerimônia. Um
casal muito respeitável fez com grande comoção seus votos de matrimônio,
embora não dispusessem de muitos recursos para dar grandiosa festa, como era
de costume naquela cidade.
Salvo isto, estive ocupado, juntamente com toda a paróquia, com os
preparativos para a Festa Junina. Todos da cidade estariam pelas redondezas, e
precisávamos de uma festa à altura. Eu já estava acostumado com esses
preparativos, pois ficava na parte administrativa quando ainda seminarista. Mas,
desta vez, estava preparando um sermão para aquela multidão que viria. Foi
quando recebi uma notícia que levaria meus planos por água abaixo.
— Não ficou sabendo, Augusto? O próprio reitor fará a homilia nesta
Festa Junina! — disse-me Caio, com toda a convicção. — Ele permitiu que
algum recém-ordenado fizesse toda a celebração, enquanto ele faria a Aclamação
do Evangelho e a homilia. E não é por nada não, mas recebi várias indiretas que
esse recém-ordenado seria eu. Pelo menos, foi o que deu a entender.
Apenas assenti com a cabeça. Talvez fosse óbvio que o sermão da festa
não fosse proferido por mim, nem por nenhum ex-seminarista, mas o fato de o
próprio reitor realizar a homilia me deixou deveras confuso.
Naquele mesmo dia, eu estive no confessionário, e acabei me rebelando
novamente. Um senhor de meia idade se aproximara furtivamente e se
posicionara ao lado do confessionário.
— Padre, perdoe, porque pequei.
— Diga, meu filho, qual o seu pecado?
— Eu... Desejei a mulher do meu amigo. — sussurrou o homem — Digo,
eles são meus vizinhos, e a mulher dele é... céus, maravilhosa, com um corpo de
enlouquecer qualquer um...
Suas descrições passaram a ficar muito detalhadas, obrigando-me a
intervir.
— Filho, já compreendi o quanto a mulher lhe apetece os olhos.
— Ah, padre, se apetece... Nem lhe digo o que eu faria se...
— Ouça, veio aqui confessar seu pecado ou compartilhá-lo comigo?
— Não, padre, me perdoe, é que é algo mais forte do que eu! Essa
mulher é uma tentação ali do lado da minha casa! Não consigo resistir! Deus
sabe que a carne é fraca.
— A carne é fraca para quem vive pela carne. Viva pelo Espírito e de
modo algum cumprirá os desejos da carne.
— Ah, é fácil dizer...
— Acha que foi fácil para o Rei do universo tornar-se homem, despido
de glória, e resistir a todas as tentações, inclusive a de salvar a própria vida, em
vez de toda a humanidade? E Ele fez isso por você também!
O homem se calou. Imaginei que refletisse.
— Padre, estou aqui, confessando meu pecado. Eu poderia tê-lo omitido
e ninguém nunca saberia. Será que o senhor não pode simplesmente me dar uma
penitência para eu sair perdoado daqui? Meu pecado nem é tão grave assim!
Nunca toquei naquela mulher! Vamos, diga, quantos Padres Nossos tenho que
rezar? Credos também servem? São mais longos, talvez mais eficazes. E se
puder me deixar alguns a mais, para o caso de, o senhor sabe, ter uma recaída...
— disse, dando uma leve risada.
Mal tive tempo de pensar.
— Escute, homem, o que pensa que está fazendo? A quem está querendo
comprar? Acha que essas orações são o pagamento pelo seu pecado? Um
castigo? Acha que o Senhor dos Céus é um Deus de negócios? Sinceramente, é
isso que pensa? A oração é um privilégio! Se quer ouvir o que eu digo, não se
atreva a rezar! Não com esse coração bajulador e traiçoeiro. Ninguém é digno da
presença que o Senhor concede na oração, mas o que assim se dispõe, deve estar
com um coração puro e quebrantado. “Guarda teus pés quando estiveres na
presença de Deus” é o que a bíblia fala. Agora saia deste lugar sagrado e só
retorne quando estiver verdadeiramente arrependido de seus delitos e disposto a
abandonar seu pecado!
O homem calara-se mais uma vez e eu podia ver seu rosto pingando de
suor. Sua respiração ficara ofegante, e ele logo se pôs em pé, saindo depressa da
igreja.
Meu coração pulsava forte e minha boca estava seca. Nunca havia falado
naquele tom com ninguém e, muito menos, expulsado alguém da igreja. Senti-
me arrasado por aquilo, mas sabia que estava preservando a santidade da casa de
Deus. Que Ele tivesse misericórdia de mim!
Eu devia ter saído naquela hora para me acalmar, tomar uma água, salvar
o meu coração, mas acabei ficando dentro do abafado confessionário, ainda me
remoendo pelas palavras proferidas, quando a voz saiu pelas grades do
confessionário.
— Padre, perdoe-me, pois pequei mais uma vez.
O perfume e a voz inconfundíveis tornaram desnecessário olhar pelas
frestas da grade de madeira.
— Diga, filha, estou ouvindo. — eu disse, segurado o ar.
— Padre, eu sinto muito, mas não ouvi o seu conselho, — esbravejou a
mulher, revoltada — não contei a verdade a minha mãe! Eu tentei, Deus é
testemunha, eu tentei contar, várias vezes, mas ela sempre estava ocupada, ora
com as prendas da Festa Junina, ora com meus primos que vieram nos visitar... E
o pior é que isso tem virado uma bola de neve! Para eu encobrir uma mentira,
tenho que contar outra, e outra, e outra... Agora já não posso mais contar a
verdade, estou perdida!
— Filha, eu gostaria de ter uma palavra de conforto a você, mas a
verdade é que o Senhor abomina a mentira. Em vários lugares a Palavra de Deus
mostra que não devemos mentir. É um mandamento! E não há nada que
justifique uma mentira, nem uma boa intenção.
— Mas padre, o senhor mesmo disse que era para eu seguir o meu
coração! Eu segui! — disse a mulher, a beira do desespero.
Suas palavras ecoaram no pequeno espaço, enquanto ambos nos
recuperávamos.
— Perdão, padre... — prosseguiu, ante ao meu breve silêncio, engolindo
as duras lágrimas — Por favor, me perdoe, eu é que estou errada, o senhor me
disse desde o começo o que eu devia fazer, e ...
— Não, minha filha, você tem razão. — confessei, envergonhado — Eu
disse exatamente isso, que seguisse o seu coração, mas eu estava errado. O
coração das pessoas é traiçoeiro, por ser inconstante e presa fácil do mal.
— Padre. — a palavra permaneceu no ar, enquanto a mulher olhava
fixamente para mim, atrás das grades. — Não, por favor, o senhor não está
errado. Não diga isso. Apesar de sentir que era isso que eu devia fazer, meu
coração também apontava que Deus é mais importante do que tudo, mais até que
a minha família.
— “Quem ama a sua família mais do que a mim, não é digno de mim”.
— sussurrei, mais como um pensamento.
— Padre, eu quero ser conhecida de Deus.
Senti uma emoção inexplicável ao ouvir aquilo. Eu imaginara que,
naquela noite em que eu pregara, todos estivessem insatisfeitos com a minha
mensagem, mas, ao que parecia, aquela mulher estava disposta àquilo.
— Então seja.
Foi tudo o que disse. E, embora pensasse no momento que fizera-me
vago demais, pelo sorriso aberto da moça, percebi que ela havia compreendido.
— Obrigada, padre, obrigada.
— E mais uma coisa. — disse, enquanto ela apoiava as mãos para se
levantar. — Padres também erram... e pecam. — disse a última palavra, abrindo
mais os olhos — Não se esqueça disso.
Ela olhou-me confusa por um instante, mas assentiu com cordialidade e
retirou-se.
Desta vez, ouvi o bom senso e retirei-me também.

---

Eu estava em meu quarto, arrumando a cama, quando uma batida na


porta pegou-me de surpresa.
— Pode entrar, a porta está aberta.
O conhecido ranger tomou o ambiente e o Frei Alceu entrou, contrito.
— Bem, Augusto, estou aqui para lhe passar o sermão.
— Mas o que eu fiz de errado, Frei?
— Oh, Augusto... — disse, com sua risada rouca — aqui está o sermão
que irá pregar na sexta-feira.
— Eu? — perguntei, espantado.
— Sim. Bem, ouvi dizer que você modificou meu último sermão. Não
vou dizer que não me zanguei com você, mas acho um exagero impedir que você
pregue novamente. Tome.
Eu hesitei por um momento, refletindo.
— Reverendo, eu não modifiquei o sermão, de modo algum, como forma
de desrespeito ao senhor, mas acontece que eu tenho tido... revelações, por assim
dizer, e não consigo evitar de falá-las quando elas vem a mim.
— Revelações? Chama um sermão de ataque e condenação aos fiéis, algo
que vai contra a ideia do dogma do limbo, do purgatório, e o pior, da
misericórdia de Deus, de revelação?
— Não! — disse, automaticamente, pelo modo desdenhoso com que o
frei proferiu as palavras, mas vi que, em parte, talvez fosse mesmo verdade.
— Frei, — prossegui, após um suspiro — não quis ir contra nada, apenas
expus a Palavra de Deus.
— Expos com sua ótica, padre, e uma ótica bem distorcida, diga-se de
passagem. Enfim, tenho outras atividades para fazer, esses preparativos para a
festa estão me deixando louco... Está aí o sermão. Sabe o que fazer. E sabe o que
acontecerá se não fizer a coisa certa. — disse, com um ar intimidador.
Corri os olhos pelo sermão, enquanto o frei saía de meu aposento. A
homilia seria sobre guardar o sábado. Suspirei por saber que não seria algo tão
forte quanto eu gostaria, mas, de repente, senti um estalo dentro de mim. Algo
quente e poderoso, como um combustível, pronto para ir longe. E eu iria.
Antes, eu temia por essas sensações, achava que pudessem ser até
manifestações demoníacas, mas, depois, percebi que nenhum desses
pensamentos que me assaltavam fugia do que a Palavra de Deus já dizia. Logo,
era muito provável que era o Espírito quem me falava.
Enquanto o fogo ia sendo consumido, peguei uma folha de papel em
branco e comecei a fazer anotações breves. Apenas algumas referências bíblicas
para que eu não me perdesse.
Logo, a noite de sexta havia chegado e eu suava como um condenado,
culpando os trajes quentes, mas tendo a certeza que era de dentro de mim que
vinha aquele fogo consumidor.
Na congregação, um número talvez um pouco maior do que o daquela
quarta-feira se posicionava nos bancos. E, bem à frente, encontravam-se o Bispo
Francisco, que nos visitava nas épocas de festas, e o Frei Alceu, com sua feição
impassível. O papel que eu trouxera em minhas mãos já estava empapado com
meu suor, mas isso não me preocupou.
A missa transcorreu como todos esperavam até a Aclamação do
Evangelho. O texto seguia o mesmo, a respeito do sábado. Quando terminamos a
leitura, olhei firmemente para os fiéis e lhes dirigi a palavra.
— “Pois eu vos digo que o está aqui é maior do que o templo.” — Repeti
o último verso — Irmãos, os fariseus da época do nosso Senhor Jesus Cristo
estavam querendo condená-lo por seus discípulos terem feito colheita em um dia
de sábado, o que era proibido pela Lei do Senhor na época. Mas, então, o Senhor
Jesus os surpreendeu ao declarar ser maior do que o próprio sábado e,
posteriormente, que até do sábado era Senhor.
O silêncio mostrava que a atenção estava toda sobre mim.
— O Senhor transgredira a Lei que o próprio Deus-Pai havia imposto no
passado? — prossegui, percorrendo meu olhar sobre cada fiel — Não, de
maneira alguma. Ao contrário, ele a cumpriu em sua carne. Mas a questão é que
muitos ainda vivem presos ao que a Lei antes determinava. Irmãos, Jesus
cumpriu a Lei! E sabem o que isto significa? Não estamos mais arraigados ao
que e Lei nos obrigava, mas sim, devemos viver pela fé!
Alguns olhavam-me, confusos, enquanto outros pareciam atônitos. A
folha já não era mais nem lembrada por mim. Eu tinha tanto a falar e tão pouco
tempo! E, certamente, pela última vez eu teria esta oportunidade. Mas o Senhor
se revelou a mim.
— “Misericórdia quero, não sacrifício”, disse o Senhor dos Exércitos.
Vocês querem merecer o céu? Ninguém merece o céu! Acham que podem
comprar a Deus? Não podem! Acham que alcançarão alguma coisa somente com
caridade? É por graça! O apóstolo Paulo mesmo disse: “Não aniquilo a graça de
Deus, porque, se a justiça provém da Lei, segue-se que Cristo morreu debalde.”
Portanto, libertem-se da hipocrisia, esqueçam as tradições litúrgicas, esqueçam
os sacrifícios! “Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o
adorem.” Deus está à procura de verdadeiros adoradores! O cristianismo é mais
do que uma missa, irmãos! É um estilo de vida!
Neste momento, corri meus olhos para os padres. Bispo Francisco estava
pálido, enquanto o Frei meneava a cabeça entre as mãos. Os fiéis mal se moviam
e, mais uma vez, terminaram a missa sem conseguir sair do choque a tempo de
rezarem o Credo com devoção.
Minha esperança era que eles ao menos refletissem na mensagem, que eu
sentia ter vindo direto do Senhor. Não precisei de anotação alguma, nenhum
lembrete, apenas minha voz. E enquanto pensava se, de fato, Deus teria falado
aos corações ali presentes, a voz dentro de mim me consolava dizendo: “A
Palavra de Deus sempre cumpre com o propósito pela qual ela foi enviada”. E
enquanto corria para o monastério, fugindo da multidão que queria respostas e
dos padres que queriam a minha cabeça, simplesmente cri naquela verdade.
O Silêncio
— Proibido de pregar? — surpreenderam-se Caio e Samuel.
— Sim. — confirmei, não tão surpreso — Recebi esta carta do próprio
reitor, dizendo, polidamente, que seria melhor que eu me ausentasse da função
de pregador e participasse mais ativamente das atividades eclesiásticas
relacionadas ao confessionário e às visitas domiciliares.
— Bem, depois de toda a repercussão do seu último sermão, acredito que
deva agradecer por ainda permanecer na paróquia. — disse Caio, receoso.
— O reitor prefere um padre rebelde longe do púlpito a sofrer o
escândalo de excomungar um dos pupilos de sua própria paróquia. — eu disse,
revoltado, jogando a carta sobre a mesa da cozinha.
Ambos calaram-se e eu, finalmente, me assentei.
— A bem da verdade, — disse, recuperando o diálogo após um breve
suspiro — talvez seja melhor assim. Talvez minha vocação não esteja na
pregação, mas no serviço e na ajuda comunitária.
— Sim, talvez. — disse Samuel, que até então não havia se pronunciado,
balançando repetidamente a cabeça.
— Mas trate de se adequar às normas desta vez. — alertou Caio — Não
queremos você fora daqui com menos de um ano de casa!
— Estou aqui há quase dez anos, Caio! — disse, zombeteiro.
— Você está levando isso na baila, Augusto, vai acabar jogando fora toda
a sua carreira eclesiástica.
— Não estou levando na baila, só não vou me calar!
— Pois acho melhor ser calado agora do que nunca mais ser ouvido.
— Padre Caio, o frei o chama na capela. — interrompeu um coroinha
que eu nunca vira, entrando com rapidez e reverência dentro da copa.
Caio levantou-se da mesa e seguiu o menino, não sem antes lançar-me
um olhar de seriedade, quase paternal. Um pai, cerca de dois anos mais velho do
que eu.
Samuel continuou a fitar a mesa, sem me encarar. Eu seguramente diria
que ele estava muito distante dali e, como sempre, bem mais perto de Deus do
que qualquer um daquela paróquia.
— E você, Samuel, o que me diz? — perguntei, retirando-o de seus
devaneios.
— O quê? — assustou-se, deixando cair o braço que segurava sua
cabeça. — Bem, não sei, eu acredito em você quando diz que tem certas
revelações, mas acho que elas não batem muito com aquilo que cremos e
aprendemos.
— Os nossos dogmas, você diz?
— Sim, os nossos dogmas.
— E o que você acha mais importante: um dogma ou a Palavra do
Senhor?
— Ora, Augusto, claro que a Palavra de Deus! Mas nossos dogmas não
contrariam as Escrituras Sagradas.
— E se contrariassem? Em quem você acreditaria?
— Augusto, — disse meu amigo, pacientemente — quem nos ensinou
tudo o que sabemos sobre as Escrituras não foi qualquer um, foram doutores da
Lei, por assim dizer, pessoas que concordam com estudiosos que, há séculos
buscam compreender o que o nosso Senhor quis dizer na sua Palavra. Quem
seria eu para questioná-los? Para romper com tudo o que a Igreja acredita, só por
imaginar uma outra interpretação para o que eles estudaram por tantos e tantos
anos?
— Um filho de Deus, Samuel, tanto ou mais do que eles.
— Ninguém é mais ou menos filho de Deus, Augusto — disse, rindo
nervosamente — Todos somos igualmente filhos do Altíssimo.
— Então, por que o Senhor se revelaria a eles e não a você?
Samuel suspirou pesadamente e sua nova feição, ou somente agora eu
havia percebido, denotava que se entristecera com o meu interrogatório insano.
— Esqueça, Samuel, esqueça tudo o que eu disse. Você está certo, está
bem? Eu também acredito no que aprendemos no seminário. É só que... tenho
algumas perguntas sem respostas que têm me atormentado ultimamente, mas não
é justo repartir esta aflição com você. Esqueça, está bem?
— “Clame a mim e eu responderei. E anunciar-te-ei coisas grandes e
ocultas que não sabes.” — citou Samuel — É tudo o que posso te dizer,
Augusto.
Ponderei por meio minuto.
— E isso é mais do que o suficiente para mim. — respondi, já com as
mãos a dar-me impulso para levantar, sabendo o que faria a seguir.
---

— Senhor Soberano, — iniciei, com os joelhos apoiados no chão e os


cotovelos sobre a cama, unindo as duas mãos. — louvado seja o Senhor
eternamente. Humildemente ponho-me em tua presença, pedindo que Tu me
absolvas de todo o dolo e todo o pecado que tão de perto me rodeiam. As preces
que aprendemos desde a infância são santas e belíssimas, mas não gostaria de
ater-me a elas agora. Não que eu me julgue acima das preces antigas, mas elas
seriam apenas... repetições e, em atual circunstância, seriam vazias.
O silêncio era constrangedor e a minha voz ecoava de volta para mim,
fazendo-me sentir terrivelmente estranho. Talvez fosse melhor que eu pegasse o
rosário e começasse uma novena, mas eu precisava ter uma conversa madura
com o Senhor e precisava ser daquela forma: com as minhas próprias palavras.
— Senhor, revela-te a mim, diga o que queres que eu faça e farei.
Com o novo silêncio, suspirei pesadamente e levantei, retirando o pó
evidente de minha batina negra. Procurei por um fósforo dentro da gavetinha e
olhei, com ternura, para a imagem de Nossa Senhora que estava sob a estante.
Antes, porém, que eu riscasse aquele fósforo, algo dentro de mim bradou: “A
minha glória não darei a nenhum outro!”.
Recuei instintivamente, com a caixa de fósforos ainda em minhas mãos,
e fitei por um momento a escultura. Aproximei-me novamente e peguei a
imagem, olhando-a de perto.
Soltei-a depressa sobre a mesa, juntamente com os fósforos, e abri com
força a gaveta, tomando com violência as Sagradas Escrituras. Folheando com
avidez as folhas, encontrei algo que retorceu meu coração como nunca antes:
“Não farás para ti imagem de escultura; nem alguma semelhança do que
há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
Não te encurvarás a elas nem a elas servirás; porque eu, o Senhor, teu Deus, sou
Deus zeloso”.
Um frio percorreu minha espinha, enquanto eu olhava novamente para
aquela escultura.
— Mas como? — perguntei-me, indignado — Como pode haver isso na
Igreja? Como... como ninguém percebeu isso? É um dos dez mandamentos, algo
que vi ainda na primeira comunhão, como só hoje vi desta forma?
Meus olhos percorriam a Palavra em busca de mais respostas ou mais
passagens que frisassem essa informação, quando lembrei-me que o livro de
Êxodo era cheio de passagens sobre idolatria a falsos deuses.
— Talvez seja isso. — pensei — Talvez o Senhor quisesse se referir aos
falsos deuses, mas não a Nossa Senhora e aos demais santos, afinal, estes sempre
serviram ao Senhor.
Mas a passagem inicial era evidente demais para ser desprezada, então
saí do quarto, desnorteado, procurando aquietar a minha mente que, agora,
voltava a me atormentar.
Como seria fácil desmistificar alguma pessoa que me dissesse tais
palavras, seria tão simples e seguro dizer “não” a novos dogmas que fossem
contra tudo o que eu acreditava até então, mas ninguém menos que o próprio
Senhor dizia aquilo. E eu caía exatamente no dilema que lançara anteriormente a
Samuel.
Enquanto adentrava a igreja, recuei alguns passos, voltando para a
sombra que me escondia, a fim de observar uma senhora de meia idade que se
ajoelhava diante de Nossa Senhora da Misericórdia, a santa padroeira de nossa
pequena paróquia. Ela chorava silenciosamente, enquanto tocava com uma das
mãos os pés da santa, beijando-os antes de se levantar de sua prostração.
Aproximei-me furtivamente, ainda extasiado pelas circunstâncias,
quando ela se assustou ao me ver.
— Oh, padre, perdão, não o vi chegar.
Com incrível rapidez para a idade, a senhora de baixa estatura dirigiu-se
ao meu encontro e beijou a minha mão.
— Que Deus a abençoe, minha filha. Por que está chorando?
A senhora comprimiu os lábios e a minha mão ao mesmo tempo e deixou
escorrer algumas lágrimas antes de abrir a boca.
— Ah, padre... É meu filho. Ele se envolveu com uma mulher terrível,
que acredito estar lhe sugando até a alma. Não sei mais o que fazer!
E novas lágrimas lhe surgiam na face, tocando ainda mais meu coração.
— Senhora, peça ajuda a Deus, e Ele a consolará, e cuidará de seu filho
também.
— Sim, é o que estou fazendo, já pedi a Nossa Senhora que me
socorresse e sei que me socorrerá.
— Mas e ao Senhor? Ele é Senhor até mesmo de Nossa Senhora!
A mulher olhou-me seriamente, cessando um momento de limpar os
olhos com um lenço branco em suas mãos.
— Sim, mas... Nossa Senhora é da Misericórdia, não é? E eu preciso da
misericórdia dela!
— A senhora precisa da misericórdia é de Deus! Busque-o!
Indignada, a mulher balançou a cabeça, olhando incrédula para mim.
— Se o senhor diz que devo falar com Deus também, vou à capela
acender uma vela para Jesus também e tocar-lhe os pés.
E enquanto a mulher se virava, falei impensadamente e sem controlar o
tom de voz:
— Por que procura o vivo entre os mortos?
Ambos nos entreolhamos e eu senti meu rosto enrubescer, por não ter
planejado o que dizer a seguir.
— O que o senhor disse, padre? — perguntou a senhora, trêmula.
Arrependido, tentei segurar em seu braço para detê-la.
— Ouça, senhora, eu...
— Não, se afaste de mim! — dizia a mulher, recuando enquanto eu me
aproximava, assustada. — Eu... vou para casa!
— Senhora!
E sem que nada pudesse fazer, eu a vi saindo apressadamente da igreja.
Marília
Quando todos os preparativos para a Festa Junina já estavam prontos, os
padres se reuniram para descansar antes da nova maratona que se seguiria.
Embora houvesse muitos voluntários para as barracas da quermesse em frente à
igreja, alguns dos padres se dispuseram a participar do serviço, dentre eles Frei
Alceu, padre Dionísio, Samuel e eu.
Dentro da copa, com a mesa repleta de pães e rodeada de padres,
Dionísio tomava a palavra, entre uma mordida e outra de brioche.
— Irmãos, semana que vem comemoraremos mais uma quermesse e
sabemos da agitação que é essa cidade nessa época do ano. — As últimas
palavras mal eram compreensíveis, pois o padre falava com o pão ainda dentro
da boca. — Como vocês sabem também, muitos turistas nos visitam nessa época
e precisamos convencer o maior número de pessoas a comparecerem à missa do
domingo que vem.
Alguns padres assentiam com a cabeça, enquanto outros mal pareciam
escutá-lo, absortos que estavam nos pães doados por senhoras que,
caridosamente, pensaram nos “pobres padres que estariam famintos depois de
tanto trabalho”.
— Muito bem, — prosseguiu — eu vou ficar o tempo que puder na
barraca dos santinhos e imagens, porque lá conseguirei falar mais sobre a nossa
padroeira do que em qualquer outro lugar. De qualquer forma, podemos nos
revezar entre as barracas, porque, afinal, quinze dias são quinze dias, não é
mesmo?
Assentimos todos ao mesmo tempo.
Logo, o dia de inauguração da quermesse chegou e, com ele, quase o
dobro de visitantes estimados. Não contávamos que, com as obras do prefeito
sobre nossa cidade, o número de turistas se elevaria tanto, de modo que já não
estávamos tão certos se teríamos espaço na igreja e alimentos suficientes para
todos.
Depois de uma monótona mensagem proferida pelo senhor Reitor, os
fiéis mal esperaram as portas da igreja se abrirem para correrem em direção ao
pátio, a fim de se deliciarem com o que havíamos preparado para eles naquele
ano.

Em questão de segundos, o pacato pátio decorado passou a ter cada
metro quadrado preenchido pela multidão. Crianças corriam, tentando abrir
espaço entre as pessoas, enquanto os adultos faziam fila no caixa das fichas.
Aquela festa realmente prometia.
O sol estava a pino quando precisei me sentar. A fila finalmente havia
cedido e a nova leva de pipoca ainda estava estourando, o que me dava alguns
minutos de descanso.
Em busca de algum abrigo do sol, dirigi-me até a barraca vizinha da
pesca e consegui um lugar à sombra.
— Está se sentindo bem, padre? — perguntou a fiel que estava na
barraca, enquanto entregava a vara de pescar a uma criança.
— Sim, sim, estou bem, é que este sol está terrível.
— Ora, padre, por favor, descanse um pouco, a barraca em que está fica
no sol direto! — disse a mulher, compadecida.
— Obrigado minha filha, mas só vou descansar um pouco aqui.
— Faça assim, o Padre Samuel precisou sair e deixou a barraca das
bebidas sozinha. Fique lá e eu peço para ele ir para a pipoca quando voltar, ele
gosta de divertir as crianças, não vai se incomodar nem um pouco.
— Seria ótimo, dona Lourdes, obrigado. — disse, enquanto me dirigia à
barraca de Samuel.
— Ei, padre! — chamou a mulher — Esqueceu o chapéu!
Diverti-me com aquele chapéu de palha rústico e não pude evitar de rir
ao ver o Padre Dionísio e até o Frei Alceu com aquele mesmo chapéu, cedido em
doações.
— Canjica gelada! — dizia em seu tom alto o frei — A canjica está
geladinha!
Cheguei depressa na barraca de bebidas, já com uma fila formada.
Mesmo com o calor fora de época que fazia, as bebidas quentes faziam mais
sucesso que a água fresca.
Ao anoitecer, o intenso calor dava lugar a uma brisa fresca que era
recebida como verdadeira bênção. A quermesse ainda estava bem movimentada,
mas aquele tumulto da manhã já havia se acalmado.
Sentado despreocupadamente no banco alto de madeira da barraca, senti
um solavanco dentro do peito quando olhei adiante e a vi. Não deveria ser uma
surpresa, visto que toda a cidade visitava a quermesse na Festa Junina, mas eu
ainda não havia me acostumado com a presença daquela mulher.
Era inegável a sua beleza. Algo fascinante e hipnotizador que não podia
passar despercebido. Ainda que ela não quisesse e parecesse nem perceber,
andando lentamente com o braço dado a uma senhora e usando roupas discretas,
não havia um único homem, sozinho ou acompanhado, jovem ou mais velho,
que passasse por ela sem notá-la. Ela sorria com naturalidade, aparentemente
alheia a esses olhares, conversando com sua companhia, enquanto esta lhe
apontava algumas barracas, segurando fichas em sua mão livre.
E enquanto elas se detinham na barraca do frei, em meu íntimo eu
travava a maior batalha entre almejar que ela viesse até mim e torcer para que ela
fosse embora sem que tivéssemos nenhum contato. Mas a luta foi vencida
quando ela se virou e começou a caminhar em direção à minha barraca. Meu
lado racional cedeu e eu esperei com ansiedade que ela se aproximasse.
Ela só parou mais uma vez para comprar um doce, deixando a senhora
que a acompanhava em uma animada conversa com o senhor que estava na
barraca, e seguindo sozinha em minha direção.
— Olá, padre. — Aproximou-se de mim, com um sorriso tão encantador
que eu jamais vira — Belo chapéu. — disse, sorrindo, com um ar travesso, mas
respeitoso.
— Você gostou? Eu não podia ficar fora desta moda. — brinquei, com o
coração acelerado.
— Ora, mas padres podem se ater a esse tipo de vaidade? — indagou-me,
apertando os olhos, ainda mais encantadora.
— Bem, se não podem, todos os padres deveriam ser excomungados.
Veja, todos trajam uma batina preta com uma gola branca. Ninguém quer ficar
de fora!
A mulher riu deliciosamente, com um palito de morangos ao chocolate a
derreter em sua pequena mão.
— Acho que o senhor está certo, padre. — disse, finalmente, abaixando
os olhos e recompondo-se.
Antes, porém, que eu dissesse mais alguma coisa, ela abocanhou
graciosamente seu doce, fazendo com que eu perdesse minha linha de raciocínio.
Enquanto a outra mão limpava delicadamente o canto de seus lábios, observei-os
pela primeira vez com atenção, arrependendo-me no mesmo instante, pois os
pensamentos mais inadequados para um padre começaram a brotar por aquela
simples visão.
— Marília! — gritou a senhora que a acompanhava, vindo até nós com
avidez — Você não sabe o que aconteceu! Sabe por que o Marcus não foi à
igreja aquele dia? Ele estava com aquela... — e parou abruptamente, quando
entrei em seu campo de visão.
— Oh, olá padre, como vai? — perguntou a senhora, de repente,
constrangida com a minha presença.
Assenti com a cabeça uma vez, embaraçado.
— Padre, esta é a minha mãe, Irene. — disse a agora conhecida por mim
como Marília, mudando seu semblante.
— Muito prazer, senhora, que Deus a abençoe. — disse, lembrando-me
de toda a história.
— Já nos conhecemos, Padre Augusto, não se lembra de mim? Irene! —
disse a mulher, forçando minha memória — Prima do Padre Dionísio.
Olhei-a, confuso, procurando lembrar-me se a conhecia, de fato, mas a
única coisa que pude pensar era na discreta semelhança dos traços suaves do
rosto de Marília, modificados por linhas de expressão definidas pela idade.
— Bem, vamos, mãe? A senhora não queria ver o Padre Dionísio antes
de irmos?
— Ah, sim, vamos, vamos, com licença, padre, até logo. — disse Irene,
com uma nova pressa à caminho.
— Sua bênção, padre. — dirigiu-me Marília um último e suplicante
olhar, apoiando dois dedos da mão com o doce na barraca, enquanto a outra mão
era puxada pela mãe.
— Que Deus a abençoe, minha filha.
Ela se distanciava, olhando para trás mais uma vez, como se quisesse me
dizer algo. Eu tinha para mim que esse algo seria sobre sua mãe, porém tive
ainda mais certeza quando vi a senhora quase a correr pelo pátio, contrastando
com a senhora frágil e debilitada que caminhava com ela há pouco. Talvez a
situação de Marília fosse mais complicada do que eu podia supor.
Eu permaneci com meus olhos pousados nela, até que um homem com
uma menina sentada em seus ombros pediu-me um quentão, comentando algo
sobre o tempo e respondendo às curiosidades da menina, que parecia querer
conhecer o mundo em uma noite.
— Pai, de que são feitas as estrelas? Como elas não caem do céu? E
como a vovó não cai do céu? Como ela foi parar lá? Pai, do que é feito o algodão
doce?
— Porque é assim, Aninha, porque Deus quis assim. – respondia o pai –
Quando você crescer, vai entender, meu anjo.
Sorri com a ingenuidade da criança e com a paciência do pai e, súbito,
comecei a comparar meu relacionamento com o Senhor com aquela pequena
família. Tantas perguntas, que para ele devem ser cansativas e frívolas como as
dessa criança, mas que parecem de suma importância a quem as faz. E a
paciência que o Senhor igualmente nos confere, discipulando-nos e ensinando-
nos segundo a sua Verdade e Vontade. E, quando ainda não o momento certo, ele
apenas nos pede paciência e fé para que, no devido tempo, tenhamos as ansiadas
respostas.
A moça que tanto mexia comigo já estava fora de vista. Da forma com
que saíram apressadas, ela já devia estar longe.
Novas passagens bíblicas iam surgindo em minha mente, como o convite
para sermos iguais às crianças, pois delas era o Reino dos Céus, e como a que o
Senhor Jesus dizia que, embora sendo maus, sabíamos dar boas coisas aos
nossos filhos, quanto mais o Pai que está nos céus não nos daria o melhor.
E, certamente, ele nos dá.
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Eu estava na praia, a mesma que fui há dois natais, quando era
seminarista. Naquela época, eu não tinha a obrigação dos trajes longos e pouco
casuais. Eu andava de encontro ao vento, sentindo a camiseta e a calça levantada
até a altura dos joelhos grudarem na pele. A longa caminhada era capaz de
revigorar até a mais cansada mente, e lá tudo parecia fazer sentido, pelo simples
fato de lá nada precisar fazer sentido.
Mas agora era diferente. A batina era incômoda com esse vento, que
soprava sem piedade. As ondas batiam violentamente ao meu lado e,
honestamente, eu não fazia ideia para onde eu estava indo.
A praia estava deserta, ou pelo menos, achei que estivesse, e caminhei
sem rumo por longos minutos, procurando organizar uma mente que, de tão
saturada, não encontrava espaço para começar a buscar uma solução. Mas que
solução eu buscava?
Como que respondendo à pergunta, lá estava ela. Ela, a mulher que
simplesmente surgira, mas que já ocupava todos os meus pensamentos. Ela, que
nada fizera, mas que começava a aquecer um coração fadado a sempre ser gélido
para a paixão. Ela, apenas uma mulher, apenas uma jovem, apenas humana, mas
com todo o poder, por ser apenas Marília.
O vento agora a trazia para mim, agitando com graça seu vestido branco
e seus cabelos de sereia, trazendo consigo seu aroma floral e o brilho dos seus
olhos negros, cravados em mim. Seus pés, descalços, alvos, se dirigiam sem
pressa até mim, mas estavam me alcançando em uma velocidade surpreendente.
Eu, coração acelerado, boca seca; estático, preso como em areia
movediça, percebia que não a areia, mas seu olhar me tragava e me arrastava
para ela, em um desejo desconhecido, do que mais se quer, do que menos se
pode. E ela, impassível, como se soubesse que eu nela estava preso, andava cada
vez mais devagar e se aproximava cada vez mais depressa.
Logo, estávamos nós, a pouco menos de um metro de distância, olhos
fixos uns nos outros, ou pelo menos esperava que ela acreditasse que eu olhava
para seus olhos e não para seus lábios rosados, quando escutei um murmúrio
vindo deles:
— Sua bênção, padre.
Porém, ao invés de beijar a mão que ofereci, ela se aproximou e tocou
meu rosto, com suas mãos de seda, envolvendo-me com sua presença, domando-
me por completo apenas com seu aroma e o toque de seus dedos.
— Não, eu não posso... — eu dizia, semicerrando os olhos, afastando-a
com minhas palavras, mas, rendido, puxando-a para perto de mim com as mãos e
sentindo a maciez da pele do seu braço — Não posso...

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— Não posso... — murmurei pela última vez, sabendo que seriam as


minhas últimas palavras antes de acabar com tudo o que construí para a minha
vida, de tudo o que um dia cri como meu destino e com todas as possibilidades
de ser remido por Deus.
A escuridão dos meus olhos fechados e agora abertos me confundiu. À
minha frente, não mais a tentação, mas a salvação pregada em uma cruz no alto
da parede. Ao meu lado, uma vela já em seu fim, formando sombras
indecifráveis no teto pelo sopro do vento fraco a entrar pela janela.
Lágrimas escorriam em minha face, segundos depois da compreensão do
que fora. Ou do que não fora. Minhas mãos tentavam estancá-las com força, mas
eu sabia o que eu tinha feito. Não importava que tudo não passara de um sonho,
eu não poderia nunca ter sucumbido a um desejo tão infame e vil. Nunca, em
nenhuma circunstância.
Tomado de tristeza e vergonha, eu me ajoelhei, com a firmeza de quem
acaba de acordar, ao lado de meu leito, com as mãos ainda no rosto, em uma vã
tentativa de sanar aquela fonte inoportuna de lágrimas que se abrira.
— Senhor... — disse, desesperado — Tem misericórdia de mim, porque
pequei contra ti, e só contra ti pequei.
Os soluços, por fim, abafaram a tentativa de terminar minha prece,
quando um ranger inesperado invadira o silêncio do meu quarto.
— Padre, o que está havendo? — perguntou-me uma voz preocupada,
que a princípio não reconheci, mas que, ao virar, constatei ser do Padre Dionísio.
— Oh, padre. — disse, inconsolável, andando ainda de joelhos ao seu
encontro e quase a agarrar-lhe as vestes.
— Ora, o que está acontecendo aqui, Augusto? Achei que alguém tivesse
invadido o monastério, ou que estivesse passando muito mal!
— Padre, preciso me confessar, agora!
— O quê? Mas o que... O que você fez, garoto? Ou melhor, o que você
pode ter feito de tão grave dentro do seu próprio quarto a essa hora da noite?
— Oh, pequei, padre... Sucumbi a um pecado em sonho e preciso do
perdão de...
— O quê? — indagou mais uma vez o padre, afastando-me bruscamente
— Está brincando comigo, Augusto? Está desse jeito só por causa de um sonho?
— O senhor não entende, é um pecado que eu...
— Não entendo mesmo, Augusto, sua insanidade é deveras
incompreensível! Onde já se viu, precisar se confessar por causa de um sonho?
Um sonho! Como é possível pecar em sonho? Em um momento de
inconsciência, de incapacidade de deliberação? Ora, rapaz, faça-me o favor, já
não tenho mais idade para levantar a essa hora da noite atrás de padres
sonhadores!
O padre então saiu, não antes de lançar-me um olhar inconformado e
menear a cabeça, fechando a porta com força atrás de si. Senti um vazio e uma
dor ainda maiores do que antes.
Eu respirava com dificuldade, não podendo crer que, de fato, eu não
havia cometido um pecado naquela noite. Até porque, até então, eu não tinha a
noção da maneira que eu queria aquela mulher. Sim, queria, vergonhosamente
queria. Procurei enganar a mim mesmo, dizendo que tudo não passava de uma
reação natural de um homem a uma mulher muito bela. Céus, eu não devia ainda
pensar em mim como um homem! Eu já havia deixado o homem com desejos
para trás, para ser apenas um homem servo de Deus. Um homem casto, sem esse
tipo de necessidade.
“Como eu pude sucumbir a esse sonho?” — eu me perguntava
novamente.Mais uma vez ajoelhado ao lado da cama, sequei as últimas lágrimas
e, com toda a fé e humildade que pude reunir, finalmente, orei:
— Senhor, por favor, me perdoe pelo que quer que esse sonho tenha sido,
pois seja como for, eu não devia ter sucumbido a esse pecado.
A noite ainda estava escura, quando a vela se apagou. Sentado no chão,
tombei a cabeça na cama e assim fiquei até o dia amanhecer, cerca de três horas
depois.
A Visita
— Padre Augusto, tenho uma missão para você. — disse Dionísio,
colocando algumas mudas de roupa em uma bolsa improvisada feita com um
pano amarrado.
Como que despertando de um transe, segurei automaticamente a alça da
caneca a minha frente com um leite que eu mal tomara.
— Uma missão, Reverendo? — repeti, bebericando um pouco do
conteúdo da caneca.
— Sim, uma visita. Eu a faria pessoalmente se pudesse, mas fui pego de
surpresa com o casamento do meu sobrinho, aqui na cidade vizinha. Somente
nessas ocasiões aquele menino se lembra do velho tio, — disse, olhando para o
vazio por uma fração de segundos, mas logo desanuviando sua mente, quase que
mecanicamente, ao balançar a mão no ar— mas não importa, não permitiria que
mais nenhum outro padre realizasse esta cerimônia.
— Mas Padre, o senhor está bem para uma viagem desse porte? —
perguntei, receoso da sua reação — Pode ser perigoso para a sua saúde.
Padre Dionísio sofria de bronquite alérgica desde muito antes de eu o
conhecer e, até onde eu tomara conhecimento, desde antes até de eu nascer, na
sua tenra idade, mas nos últimos anos sua saúde parecia estar especialmente
debilitada. Ele chegava a uma quase depressão quando não era capaz de concluir
uma missa, mas estava sempre insistindo ao reitor que pregasse mais uma vez.
— Ora, padre, estou ótimo! — disse Dionísio, com uma voz mais
animada do que aparentava estar — Além disso, o ar puro do campo me fará
muito bem. Bah, como se algo pudesse ser empecilho para eu celebrar o
casamento do meu único sobrinho homem!
Abri a boca a fim de argumentar, mas, por fim, dei de ombros, resignado.
Nada era capaz de fazer o Padre Dionísio mudar de ideia.
— Bem, garoto, já estou de partida, o céu não está muito claro e acredito
que vem um temporal daqueles. — concluiu, olhando pela pequena janela da
cozinha.
— Vá com Deus, então, padre e, por favor, cuide-se. — insisti,
verdadeiramente preocupado.
Dionísio sorriu, meneando a cabeça, como que se dissesse: “Veja se
pode, um garoto me dando conselhos.”
Mas logo seus olhos se enterneceram e ele colocou uma de suas mãos em
meu ombro.
— Augusto, sabe que o considero como um filho, não?
Aquelas palavras me pegaram desprevenido. Padre Dionísio nunca fora
de expressar seus sentimentos, muito menos a seus chamados pupilos.
Emocionado, sorri um meio sorriso, ainda duvidando que ele tivesse dito
aquilo.
— E o senhor, como um pai... — consegui dizer.
Mais uma vez, Dionísio sorriu zombeteiramente, já à soleira da porta,
como que se fizesse pouco do que eu acabara de dizer, mas, no fundo, comovido
também.
— Bem, até mais, então. Ah, sim, a propósito, — disse ele, retornando
com um pedaço de papel dobrado — aqui está o endereço da casa que eu lhe
falei. Procure por dona Irene. Sua filha não passa bem. Eu mesmo a visitaria, são
da família do meu tio, primas distantes, mas, como vê, a atual circunstância não
me permite...
O padre disse mais algumas palavras, porém eu me desliguei dele e do
mundo quando ele disse que a filha de Irene não passava bem.
“Não, não é possível” — eu alertava minha mente — “não deve ser
aquela dona Irene. E muito menos, ser ela a filha.”
— Por isso diga a ela que precisei sair às pressas e mande minhas
condolências à menina. Tão jovem a moça, não deve ter mais que vinte e alguma
coisa, e Irene estava aos prantos quando veio até aqui, palavras do frei. Não sei
bem qual enfermidade a acometeu, mas parece ser algo sério. De qualquer
modo... Augusto! Está ouvindo o que eu estou dizendo?
— Sim, sim, padre. — respondi, rapidamente, consciente que pouco mais
eu ouvira do que a gravidade do caso e algo referente à provável idade da
moça.
— Ótimo, vá até lá ainda hoje. Dona Irene me procurou no começo da
semana, mas não imaginava que meu sobrinho me avisaria tão em cima da hora.
Bem, eu já vou, não quero pegar chuva antes de chegar à casa da irmã Berenice,
que me dará guarita para essa noite. Eu não vou chegar lá antes do anoitecer se
não correr agora. Adeus.
— Padre! — chamei, soltando a caneca e forçando-me a me colocar de
pé, apesar das pernas bambas — Será que não haveria outra pessoa para visitar
essa senhora e a sua filha?
— Outra pessoa? — perguntou o padre, com sua testa ligeiramente
enrugada — Por que eu haveria de enviar outra pessoa? Você não é o “padre
oficial das visitas”? Os outros padres estão ocupados demais com suas
incumbências. Você por acaso teria outro compromisso para hoje? — desafiou-
me.
— Não, mas...
— Então não há porque eu incumbir outra pessoa para essa tarefa.
Assunto encerrado, e agora, eu fui!
Deixando-me sozinho com meu leite frio sobre a mesa, Padre Dionísio
saiu sem olhar para trás, carregando desajeitadamente sua sacola improvisada.
Meu coração finalmente se aquietou após alguns minutos em que me
sentei e pus-me a refletir. Em primeiro lugar, nada garantia que as pessoas que eu
visitaria naquele dia eram as que eu imaginava — apesar da cidade ser pequena
o suficiente para conhecermos praticamente todos os seus habitantes — e, em
segundo lugar (e o mais importante), eu devia me conscientizar que, de fato, esse
era o meu ofício, minha incumbência. Visitar doentes e ir para o confessionário
vez ou outra.
Além disso, apesar da minha grande preocupação em me encontrar com
aquela mulher, era impossível que eu não me comovesse o suficiente com as
circunstâncias, a fim de me capacitar a ir ao seu encontro. Uma mulher tão
jovem que, como o padre dissera, não devia ter muito mais que os seus vinte
anos, não merecia estar naquela situação. Havia ainda tanta vida correndo por
suas veias, tantos sonhos e um futuro diante de seus olhos que talvez nunca se
concretizasse.
Abatido, lavei minha caneca e deixei a cozinha, mentalizando que
palavra traria àquela sofrida família, planejando a hora e o que faria até ir ao
encontro dela.
---

Durante o caminho até o meu martírio ansiado, munido de minha tão fiel
companheira de guerra, a Sagrada Palavra do Senhor, e toda a coragem e força
que pude reunir, eu pensava nos dias que tinham se seguido após aquele insano
sonho ao qual eu tanto me condenei. Por várias noites eu tivera meu sono
comprometido, temendo dar vazão mais uma vez àquele inebriante pecado, de
modo que, por vários dias, eu tive a atenção e energia debilitadas, não só pela
falta que o sono fazia, como pelo fato de a imagem de Marília ocupar até o meu
último pensamento, até que eu não tivesse condições de pensar em mais nada.
Depois de muitas preces, o Senhor finalmente teve compaixão de mim e
permitiu que eu prosseguisse a minha vida com relativa naturalidade. Eu já era
capaz de fazer alguns estudos da Palavra, ir algumas vezes ao confessionário —
obviamente, temendo a cada fiel que chegava que a figura dela inundasse o
pequeno espaço através das grades — visitar uma senhora enferma e comparecer
a um batizado, dirigido pelo frei.
Agora, porém, tudo o que eu sufocara em minha mente e em meu
coração parecia querer me explodir, tamanha a força que se comprimia a cada
passo em que eu ficava mais próximo da residência a qual eu me destinava.
Findo o martírio do caminhar, uma batalha muito maior estava agora
diante de meus olhos. Era uma casa antiga, mas muito bem cuidada, com flores
na janela e um ar respeitoso. A casa era de um tom coral muito claro, com alguns
retoques nas laterais, mas nada que comprometesse a sua beleza.
Antes, porém, que eu me atrevesse a bater na porta, um choro angustiado
me contorcera até o último centímetro do coração, deixando-o do tamanho de
um grão de feijão. “Como eu encontraria a minha querida?”. Tratei de afugentar
o pensamento tão logo ele surgira e reuni nova coragem para entrar, sabendo que
dor pior seria permanecer ali fora.
Após quatro batidas suaves, um arrastar de chinelos veio em direção à
porta e logo a senhora que eu temia, mas sabia no fundo que teria que ser,
apareceu diante de mim, os olhos vermelhos e o rosto inchado.
— Oh, padre, finalmente o senhor chegou! — disse dona Irene,
agarrando-se a minha batina como se eu fosse a salvação em pessoa. — Padre
Dionísio? — perguntou a senhora, olhando atrás de mim.
— O padre teve umas questões urgentes a resolver em outra cidade, por
isso me designou para vir até aqui ver a sua... filha. — engasguei na última
palavra.
— Mas como ele não veio? O que pode ser mais urgente que... — Vendo
minha face angustiada e, provavelmente, supondo que houvesse me ofendido, a
senhora logo tratou de me convidar a entrar. — Por favor, padre, tenha a
bondade de entrar, o sol está fraco, mas ainda está ardido.
Sem dizer nada, entrei lentamente dentro da pequena e arrumada casa,
imaginando onde estaria Marília e, pior, em que estado eu a encontraria.
A bíblia já estava ensopada com o suor de minhas mãos, mas, apesar do
convite da senhora para que eu me assentasse e tomasse um gole de café, eu não
conseguiria soltar aquela bíblia por nada deste mundo.
Ela me apontou uma cadeira antiga de madeira, muito bem conservada,
bem como os demais móveis da casa e, em um instante, preparou um café que
imaginei estar exalando seu aroma forte por todas as casas vizinhas. Não sei ao
certo quanto tempo ficamos ali em silêncio, pois a minha mente estava tão aflita
que eu apenas sentei na cadeira e, quando dei por mim, a senhora apareceu com
uma xícara de porcelana delicada a minha frente.
— Cuidado que ainda está muito quente. — alertou-me a mulher,
sentando-se lentamente ao meu lado, com um semblante abatido.
— Oh, padre, minha filha, pobre menina... — prosseguiu a mulher,
colocando o rosto entre as mãos, enquanto eu tentava engolir o gole de café que
estava em minha boca, quando ela me lembrou do estado de Marília — Eu
acordei cedinho, como sempre, para preparar o desjejum dela antes de ela ir para
a escola, chamei várias vezes para que ela viesse comer, mas como ela não
vinha, fui até o seu quarto e a vi branca feito leite. — Soluços entrecortavam sua
lamentação. — Ah, padre, essa menina sempre foi tão saudável, nunca me deu
trabalho de ter que ir ao médico e agora está lá, travada em uma cama, mal
comendo uma fatia de pão por dia, e isso há quase uma semana...
Lamentei o gole de café que eu obrigara meu estômago a receber naquele
momento. Uma dor dilacerante atravessava meu peito e uma tristeza, misturada
com um desejo maior do que todos os que eu já tive de vê-la, fez com que eu me
levantasse involuntariamente.
— Padre, não quer terminar de tomar o seu café? Acredito que Marília
ainda esteja dormindo. Eu a deixei há pouco quando percebi que havia
finalmente adormecido.
Não sei qual a minha feição de decepção naquele momento, porém
lembro-me apenas de tê-la olhado, quase que a implorar que me deixasse ver sua
filha, e ela, consternada, ter se levantado também.
— Bem, também não quero que perca a sua viagem. Além disso, eu
precisava que um padre viesse aqui, rezar por ela. — disse a mulher, secando
suas lágrimas e, com isso, alisando suas rugas evidenciadas pelo sofrimento.
Como eu nada dissera, ela segurou o meu braço e me levou, através de
um corredor estreito, até um dos quartos do fundo da casa.
— Ela não dormiu nada essa noite, — sussurrou — por isso, tente não
acordá-la, por favor.
Eu assenti de leve com a cabeça, desejando em meu íntimo fazer
exatamente o contrário, quando a vi prostrada, lívida, com os olhos suavemente
fechados e a respiração regular.
Aproximei-me com cuidado de seu leito, sentido que meu peito iria
finalmente explodir de dor. Era como se tudo o que houvesse dentro de mim
estivesse se partindo e que eu nunca mais fosse estar inteiro outra vez.
O quarto era pequeno e pouco mobiliado, mas bem arejado. O que faltava
em móveis, porém, sobrava em itens de decoração. Ao entrar, senti um suave
aroma de roupas limpas, misturado à fragrância que eu tanto conhecia de
Marília.
Quando avistei uma cadeira entre a janela e o leito, dirigi-me até lá pé
ante pé, a fim de não despertá-la de seu pequeno instante de conforto, longe da
dor da realidade. Antes de me sentar, porém, acompanhei uma leve
movimentação de seus olhos, que me abriram o mundo quando se revelaram por
detrás daquelas pálpebras cansadas.
— Padre... Augusto? — perguntou-me em tom quase inaudível.
— Sim. — respondi, finalmente — Sei que esperava a visita do Padre
Dionísio, mas ele infelizmente não pôde vir, teve um casamento para realizar,
alguém da sua parentela, um sobrinho. Mas ele mandou suas condolências, ficou
muito preocupado, disse que tem muito apreço pela senhorita, mas que,
realmente, não poderia vir, então...— disse, explicando mais do que precisava
pelo nervosismo.
Ela sorriu levemente, trazendo um pouco de cor ao rosto e de paz ao meu
coração, desviando seu olhar quando viu que eu a contemplava com demasiado
afinco.
— Fico feliz que tenha vindo. — ela disse, voltando seus belos olhos
cansados para mim e sorrindo mais um pouco. — Senti falta do senhor nas
missas.
Eu me limitei a sorrir também, sentando-me na cadeira, com a bíblia
entre as mãos.
— Sinto muito tê-la acordado, Srta. Marília. — disse, procurando
disfarçar a emoção de pronunciar o seu nome pela primeira vez — Sua mãe me
disse que não dormira quase nada esta noite...
— O senhor não me acordou. Na verdade, eu nem cheguei a dormir. —
sussurrou, o que acreditei ser mais para que sua mãe não a ouvisse do pelo seu
estado físico — Tive que fingir que dormia para que ela descansasse um pouco.
— disse, apontando para a direção da sala com os olhos — Ela passou a noite
toda ao meu lado, precisava descansar.
Com a metade da minha mente que ainda raciocinava — a outra metade,
apesar de todos os meus esforços, só fazia admirá-la em todos os aspectos,
apreciando o simples fato de poder estar ao seu lado — pensei em lhe retalhar
por não ter contado logo a verdade a sua mãe sobre seu estado e acabado com
aquele martírio, mas não quis torturá-la ainda mais.
Todavia, como que se ela ouvisse meus pensamentos, seu rosto passara a
demonstrar nova tristeza.
— Sim, padre, eu sei que deveria tê-lo ouvido. Fui uma tola e agora estou
pagando por isso. Não só eu, mas a minha mãe também...
E, pegando-me desprevenido, seus olhos tristes molharam-se de repente,
terminando de destruir tudo o que havia dentro de mim. E, sem que eu tivesse
tempo de pensar com prudência, inclinei-me para frente e segurei sua mão
pendida na cama, em um gesto mais paternal do que qualquer outra coisa.
— Não se torture assim, Marília, ainda pode contar a sua mãe o seu
problema, ela entenderá que só fez pensar nela e em sua saúde.
Duas lágrimas simultâneas caíram quando ela apertou seus olhos ao ouvir
minhas palavras. Percebi que ainda segurava a sua mão, mas quando fiz menção
de soltá-la, ela agarrou a minha com força.
— Padre, por favor, me ajude a contar tudo a ela! Eu não consigo! — Sua
voz era uma agonizante súplica. — Eu tive medo da reação dela, da dor que iria
causar, mas hoje vejo que nada é pior do que ouvi-la perguntando a Deus o que
há de errado comigo, onde ela falhou! O senhor tinha razão, eu devia ter contado
antes, enquanto eu ainda podia fazer alguma coisa, podia consolá-la.
Sua mão suada cravada na minha fez também meus olhos arderem, e um
desejo desesperado em ajudar aquela mulher surgiu naquele instante. Mais do
que amor ou paixão, uma compaixão por aquela criatura sofredora fez eu me
erguer, desvencilhando-me com cuidado de sua mão, a fim de pôr um ponto final
ao menos em parte daquela agonia.
— Dê-me apenas um instante, Srta.
Marília fitou-me assustada, mas por fim, assentiu uma vez.

---

Dirigi-me apressadamente até a sala, onde dona Irene olhava


distraidamente para os detalhes da xícara de café que se servira, quando se
levantou surpresa, provavelmente ante a minha face preocupada.
— Algum problema, padre? Marília! — gritou, correndo para o quarto da
filha.
— Não, senhora. — segurei com cuidado seu braço — Marília está do
mesmo jeito que a senhora a deixou, mas a senhora precisa ter conhecimento de
algo.
Irene olhou-me com olhos tão arregalados como eu nunca vira, nem
mesmo do frei quando assistira aos meus sermões. Temendo o que estivesse
passando pela sua cabeça, principalmente pelo fato de seus olhos esbugalhados
oscilarem rapidamente entre a minha mão que segurava o seu braço e uma
panela ao alcance de sua outra mão, tratei de esclarecer depressa as coisas.
— Marília está muito doente, senhora, e já há algum tempo sabe disso.
Como se não bastassem os olhos, agora sua boca estava muito aberta,
então tratei de buscar uma cadeira para que ela se sentasse, obviamente sem
deixar de ampará-la pelo braço que eu ainda segurava.
— O quê? O que o senhor está dizendo? — conseguiu dizer a mulher —
Marília nunca esconderia uma coisa dessas de mim.
Seus olhos agora pareciam um peixe assustado dentro de um aquário.
Imaginando que se movessem na velocidade de seus pensamentos, após fazê-la a
custo sentar-se, tomei a liberdade de pegar um copo com água para lhe acalmar.
— O que o senhor está falando, padre? — insistiu — O que ela tem? Ela
vai ficar bem, não vai? Ela só está com uma indisposição, uma virose talvez, vai
ficar boa logo, não vai?
Em suas últimas palavras, Irene prendera suas mãos em minha batina,
forçando-me a responder suas perguntas, seus olhos inquiridores sobre os meus,
que tentavam acalmá-la e, honestamente, não sabendo o que ainda a mantinha
sentada na cadeira.
— Dona Irene, eu creio que seja melhor a senhora se acalmar primeiro —
disse, com mansidão, retirando delicadamente suas mãos das minhas vestes e lhe
entregando o copo com água — e depois perguntar a Marília sobre seu estado.
Ela vai saber lhe explicar tudo.
— Não, não é possível... — dizia a mulher, balançando negativamente a
cabeça — Por que ela nunca me disse nada?
— Dona Irene, sua filha apenas fez protegê-la desta angústia, pois sabia
que a senhora sofreria, e ...
— Me proteger? Eu sou sua mãe! Sou eu quem preciso protegê-la! —
protestava Irene, com seus olhos já repletos de lágrimas.
Eu precisava tranquilizá-la depressa, antes que o temor de Marília se
concretizasse bem na minha frente.
Após um longo suspiro, enquanto Irene estava com seu rosto coberto
com as duas mãos, agachei-me para que ficássemos frente a frente.
— Ouça, Marília ficará bem, o Senhor cuidará dela, ele sempre cuida dos
seus. Sei que a senhora está preocupada com ela, mas agora, mais do que nunca,
ela precisa do seu apoio. Ela está mais preocupada com a senhora do que com o
próprio estado! Venha, vamos até o quarto dela para que ela possa lhe falar e, por
favor, a senhora precisa se acalmar, ou então a deixará em estado ainda pior.
Eu sabia que estava indo longe demais, porém, Marília realmente
precisava do ombro de sua mãe neste momento, não ter que dar o seu para que
sua mãe chorasse. Aquela senhora sofreria? Com certeza, mas ainda contava
com forças para se reerguer. E quanto a Marília, sozinha naquele quarto,
fingindo dormir para que a mãe pudesse descansar? A cada dia Marília se
tornava ainda mais perfeita aos meus olhos. Mas eu não tinha tempo e nem o
direito de pensar naquilo.
Olhando fixamente para mim, após retirar suas mãos do rosto abatido,
dona Irene respirou fundo, engoliu o choro e se pôs em pé.
— Vamos até o quarto, então. Minha filha precisa de mim.
Com um sorriso fraco, mas procurando passar confiança, levantei-me
também e coloquei minha mão em seu ombro.
— O Senhor estará contigo.
Com os lábios cerrados, dona Irene assentira com solenidade e se dirigira
até o quarto, sendo seguida por mim. Eu sabia que estava sendo inconveniente,
mas não deixaria Marília sozinha nesse momento por nada no mundo.
Marília estava com os olhos cravados na mãe, ainda assustada como
uma criminosa, os olhos novamente a se embaçarem.
— Me perdoe, mamãe, por favor, me perdoe!
Confuso quanto ao pedido da filha, imaginei que dona Irene diria algo
como: “Não há o que perdoar” ou “Não se preocupe com isso agora”, mas, ao
contrário do que pensei, a mãe, ainda transfigurada pela conversa que tivemos,
simplesmente lhe dissera:
— Você não devia ter escondido isso de mim. Sabe o quanto me
preocupou sua prostração repentina? E você sabendo de tudo? O tempo todo? Eu
devia ter imaginado...
Após um pigarro proposital para que dona Irene soubesse que eu estava
bem ali atrás, senti-me na obrigação de acalmar a situação.
— Dona Irene, por favor, ouça o que Marília tem a dizer.
Irene virou-se bruscamente para mim e acredito que apenas não me
escorraçou de sua casa pelo fato de eu ser um padre. Era mais do que evidente
que ela não me queria ali perto naquele momento.
— Mãe, eu fui ao médico, algum tempo atrás, e ele disse que eu tinha
uma doença grave e sem cura, e que já esava em estágio muito avançado para
que eu pudesse me tratar.
Dona Irene virou-se novamente para Marília, que passou a lhe contar
superficialmente o que tinha, provavelmente ainda poupando os sentimentos da
mãe. Até quando Marília se sacrificaria daquela forma?
Enquanto eu também ouvia o relato de Marília, senti meus olhos se
embaçarem a ponto de eu nada mais enxergar, mas tudo o que elas não
precisavam naquele momento era de um padre chorando. Virando-me, então, de
costas, alcancei um lenço e sequei rapidamente os olhos, sem que elas o
percebessem.
Quando Marília terminou de falar, dona Irene parecia apenas suspensa no
ar. Era evidente que já não mais sentia o chão sob seus pés e eu comecei a me
preocupar quando não via mais seu ombro se mexendo ao respirar.
— Ó, Marília! Marília, minha filha! — gemia dolorosamente dona Irene,
jogando-se aos pés do leito, sendo afagada pelas mãos de Marília a lhe passar
suavemente por sua cabeça, enquanto seus olhos consternados recaíam sobre
mim.
Seus olhos agora não passavam de duas gotas brilhantes, inquirindo-me
algo como: “E agora?”.
O leito todo balançava com os soluços de Irene, mas apesar daquela
situação, eu sabia que era melhor assim. Marília não podia continuar mantendo
em segredo essa dor, muito menos esse pecado e, olhando para ela, sibilei,
apenas movendo os lábios.
— Agora, você está perdoada.
Ela então, e finalmente, sorrira de verdade, fechando seus olhos e
derramando mais uma porção de lágrimas sobre a cabeça de sua mãe, quando,
apesar do meu desejo em permanecer ali, eu vira que já era hora de partir.
Boas Novas
Eu caminhava a passos rápidos, sentindo o vento frio de início de agosto
congelar minhas mãos. As vestes nunca foram tão oportunas como naquele dia,
pois, além das roupas quentes de baixo, a batina cobria a maior parte do corpo.
Sempre admirei as ruelas daquela singela cidadezinha que virou mais o
meu lar do que a cidade grande de onde eu viera. Lá, tudo parecia ter sido
arquitetado para trazer o máximo de praticidade aos seus moradores, cada rua
projetada para ter fácil acesso ao centro, onde tudo se concentrava. Mesmo
assim, subir e descer um morro sob aquele vento forte e garoa fina de inverno
era um desafio e tanto para o condicionamento físico de qualquer um.
Ainda estava na minha mente a imagem da família tão simples a qual eu
acabara de visitar e que me acolhera tão bem com biscoitos de sal e uma xícara
de café fumegante em sua humilde residência no alto do morro, — a criança
semi desnutrida, a mãe batalhadora, o pai desesperado em conseguir um
emprego para sustentar a família e a alegria de receberem as doações de comida,
roupas e brinquedos da comunidade — quando o Frei Alceu, braços também a
aquecer o corpo, vinha em minha direção, agora mais lentamente ao constatar
que eu já o tinha avistado e que percebera que ele queria conversar comigo.
Andando mais depressa, aliviado por agora o caminho ser mais reto e
sem declives, temi a notícia que poderia estar vindo com ele, temor este que
levou apenas o tempo de eu poder analisar sua feição tranquila e, apesar do
clima, alegre. De fato, ele trazia boas novas.
— Boa tarde, padre, conseguiu levar as doações ao seu Bento? —
perguntou ele, ofegante, quando nos aproximamos.
— Sim, senhor, frei, pedi a ajuda de alguns garotos que andavam pela rua
para que me ajudassem a levar as coisas morro acima e foi tudo a contento. A
família ficou extremamente grata.
— Ótimo, ótimo... — repetia o frei, balançando a mão em sinal de que
não seria este o cunho do seu assunto — A propósito, não sei se ficou sabendo,
mas Dionísio está exultante por sua afilhada ter se recuperado.
Assenti automaticamente, mas sem a menor ideia de qual afilhada de
Dionísio ele se referia. Pensei nas crianças da vizinhança, mas nenhuma em
especial me veio à mente. Além do mais, o frio aterrador daquele dia me impedia
de raciocinar com clareza. A única coisa que eu ansiava seria um pequeno abrigo
que fosse.
— Bem, ele me pediu para que eu o avisasse, caso o encontrasse, que
agora a menina passa bem e lhe agradecesse pelos seus cuidados dispensados
durante sua visita naquele dia. Ele acabou de sair da casa dela e está visitando
agora um fiel do outro lado da cidade, mas ao fim da tarde voltará.
Assenti mais uma vez, usando de toda a reverência devida ao Frei, mas
desejando ardentemente que ele cessasse seu recado e me deixasse prosseguir ao
meu tão ansiado refúgio.
— Apenas uma coisa não compreendi muito bem. — disse o frei,
olhando confuso para baixo, com um dedo sobre os lábios — Ele me disse que a
menina lhe mandara agradecimentos especiais por tê-la ajudado com a sua mãe.
Não me recordo muito bem de seu nome... Era uma tal de Amália... Maria...
— Marília? — Saltei com a surpresa e pelo tempo em que não
pronunciava seu nome.
— Isso, sim, Marília, a menina da beata Irene. — assentiu vigorosamente
— O padre disse que essa menina agora lhe será eternamente devota. Não
entendo, se a menina estava enferma, porque agradeceria pela mãe?
Pasmado, deixei a boca aberta, esperando agora que o frei lá
permanecesse a fim de dar mais informações acerca do estado de Marília e para
que eu pudesse pasmar no meio da rua com algum motivo aparente, o que
chamaria muito mais a atenção se ele saísse de lá naquele momento,
abandonando-me ao esmo com um rio de emoções transbordando em minha
feição.
— Bem, Dionísio já está com a idade avançada, deve já estar
confundindo os recados... — disse por fim o frei, ciente de que tinha muito mais
idade que o padre — De qualquer forma, ainda preciso encontrar o doutor
Ricardo para... Está tudo bem com você, Augusto? — perguntou-me, com um ar
preocupado.
— Sim! Bem, com esse frio, quem aguenta, não é mesmo? — respondi,
evitando assim uma mentira.
— Oh, sim, com certeza, estou aqui somente pela misericórdia do
Senhor.
E, após se despedir com seu cumprimento desatento habitual, o frei
passou por mim e seguiu morro acima.
Acontecendo exatamente o que eu temia, permaneci estático no meio da
rua, incapaz de pensar sequer no caminho de volta para a paróquia. Agora, o
meu alento não seria mais apenas um abrigo do frio, ou um cobertor, ou mesmo
um copo de leite bem quente. A única coisa que poderia aquietar meu coração
seria ver novamente Marília, com seu vigor jovem, seu sorriso fácil, seu perfume
inesquecível e seus gestos doces de menina, de mulher.
Com algo novo a me mover, passei a andar depressa, ignorando a chuva
que apertava e a voz da consciência que me apontava o pecado eminente ao
querer visitá-la.
“Seria muita audácia” — pensei, quase a ignorar isto também.
“A menina agora lhe será eternamente devota” — minha mente ecoava,
gerando arrepios pelo corpo.
Ao passar por uma árvore, porém, rodeei-a com um braço e pousei a
cabeça sobre ela, em busca de ar, odiando-me mais uma vez como padre infiel,
como ser humano. Fechei os olhos, a fim de afugentar as lembranças que eu
jamais esqueceria de Marília, mas ciente de que, quanto mais fugisse, mais
atrairia sua memória. Ainda assim, desisti a tempo de não cometer a loucura de
me atirar aos seus pés tão logo a visse, mas não a tempo de não querer fazer isso.
E, sob aquele céu cinzento e ao som de trovões, pedi pela centésima vez
o perdão por esse pecado.
---

Já dentro do monastério, sorvi com avidez um copo com leite morno, não
só na esperança de amenizar os efeitos da geada, como de esfriar a sensação de
queimação no estômago.
Todas as lembranças em mim atiradas, todos os sentimentos e
pensamentos, toda a esperança e a culpa retornando a minha mente e clamando
por Marília mais uma vez.
Ainda com o copo na mão, mal escutei quando Samuel se sentou à mesa
com uma folha de papel em suas mãos e um ar desanimado.
— Tudo para ontem, vou ficar maluco assim. — murmurava para si.
Deixei o copo sobre a pia e juntei-me a ele em seu triste universo.
— Algum problema, Samuel?
— Oh, Augusto, estou ficando louco nesse monastério. — disse, sua face
desesperada — Gosto muito dessas atividades, mas são tarefas demais para
tempo de menos! Imagine você ter que organizar toda uma seção da biblioteca,
com leitura para fazer para as crianças às 4 horas, tudo isso enquanto esboça um
sermão para daqui a dois dias! E como se já não bastasse, veja, — disse,
apontando-me a folha em suas mãos — ainda me foi dada uma lista de compras
para fazer no mercado. As freiras saíram para retiro e incumbiram a mim alguns
dos serviços domésticos da igreja, dentre eles o abastecimento da despensa...
Eu não via Samuel tão agitado desde a época das provas finais de
metafísica. Chegava a ser cômica a sua face preocupada por algo tão pequeno,
mas eram também invejáveis os motivos que traziam rugas a sua testa lisa e
jovem.
Ao observá-lo, lembrei-me de que ele nunca se envolvera em qualquer
tipo de confusão ou brigas que, vez ou outra, assolavam a vida no monastério.
Ao buscar ainda mais a fundo na memória, acredito que Samuel nem mesmo já
tenha levado algum tipo de advertência. Sua retidão fora sempre mantida e
reconhecida por todos e, ainda assim, ele se achava o menor dentre nós. Ao que
me conste, nunca houve nada que alguém tivesse que se queixar dele. Ele era
absolutamente irrepreensível.
Com a imagem de Samuel em minha mente e também diante de meus
olhos, este ainda olhando com desânimo a lista de suprimentos do monastério,
não pude evitar querer sua vida, seus problemas, sua integridade. Queria tanto
poder me preocupar com compras a fazer, ou — há quanto ao tempo — um
sermão a preparar. Ter, enfim, o carinho de todos e a confiança dos mais críticos
fiéis.
Por isso e, a fim de impedir que meus pensamentos chegassem ao meu
coração e me provocassem inoportuna inveja, sorri e tomei a folha de suas mãos.
— Deixe comigo essas compras, vá preparar seu sermão. Depois vejo se
consigo dar um jeito naqueles livros empilhados lá na biblioteca.
— Não, não, Augusto, isso atrapalhará suas atividades. Além disso, isso
não é justo, eu deveria ter administrado melhor o meu tempo. Confesso que me
perdi em um comentário bíblico quando estava lá na biblioteca, o que tomou
muito do meu tempo. — confessou Samuel, como que se confessasse ter
roubado o Papa.
— Não me atrapalhará em nada. Como as visitas que faço são demoradas
e cada vez mais distantes, depois de retornar de minha jornada fico com um bom
tempo livre. Além do mais, — arrematei, quando percebi que ele não cederia tão
fácil — os sermões devem sempre ficar em primeiro lugar. Nós podemos ficar
sem mantimento aqui dentro, mas os fiéis não podem ficar sem seu alimento
espiritual.
Sorri, por fim, quando vi que meu argumento seria inquestionável.
Samuel então cedeu, suspirando, um pouco constrangido, mas
visivelmente aliviado por menos essa tarefa sobre seus ombros.
— Muito obrigado, irmão. Bem, vou me recolher então para me
concentrar no sermão. Penso em dizer algo a respeito de batismo.
— Certo, — respondi, levantando-me — vou ao mercado, então. Só não
vá se “afogar” indo muito fundo nessa história de batismo.
Samuel riu, chacoalhando todo o seu corpo grande sobre a mesa, da
minha brincadeira sem graça. Ninguém jamais teria amigo melhor aqui nessa
Terra do que quem tem como amigo Samuel. Isso era fato e sempre me alegrava
o coração, independente das circunstâncias.
---

— Seiscentos e setenta mil réis. Para setecentos, trinta. Mas se eu tirar o


grão de bico, poderei levar mais um pote de manteiga e um quilo de feijão preto
— mentalizava, concentrado na fila do caixa, alternando meu olhar ora para as
minhas cestas de compras, ora para o dinheiro em minhas mãos.
A garoa havia, finalmente, dado uma trégua; já passava das cinco. O
mercado do centro estava bem movimentado, provavelmente porque todos
tiveram a mesma ideia de esperar a chuva passar.
Uma senhora com um avental de cozinha passava suas compras no caixa,
enquanto um homem alto e corpulento segurava uma cesta com poucas coisas à
minha frente.
Cansado pelo penoso dia, ainda fazia contas quando uma mão tocou de
leve o braço que segurava uma das cestas, quase me levando a derrubar tudo,
inclusive o dinheiro, no chão.
— Padre, que bom encontrá-lo aqui! — exultou o canto dos pássaros
vindos ao meu lado.
—Srta. Marília? Como está? — perguntei, impressionado com a sua
recuperação, deixando-a ainda mais saudável do que me parecia antes de estar
acamada, talvez só um pouco mais magra.
— Estou ótima, graças ao bom Deus, estou muito melhor. Foi só uma
fase mesmo, mas já me recuperei. — contava, radiante, balançando seus cabelos
enquanto se expressava. — Tive dias muito melhores depois que o senhor esteve
lá em casa.
Sentindo meu rosto queimar, desviei-me do seu olhar e observei que
carregava também uma cesta com um punhado de coisas. Como eu não a tinha
visto?
— Fico feliz que tenha se recuperado, minha filha, que Deus seja
louvado por sua misericórdia.
— Sim, amém, padre, que o Senhor seja louvado. — declarou, olhando
para os céus.
— E como está a senhora sua mãe? — perguntei, a fim de mudar o foco
dela para a mãe e, assim, diminuir meus batimentos cardíacos.
— Ela está bem, já entendeu minha situação, apesar de parecer ainda não
ter aceitado muito. — confessou, com seriedade, ao que assenti. — E anda
preocupada demais comigo. — completou, amenizando o tom. — Acredita que
só hoje ela permitiu que eu saísse sozinha? E ainda com severas restrições. —
disse Marília com tanta graça que eu não pude evitar um sorriso. — Só falta
agora ela querer ir comigo para dar aula!
Sorri, enternecido por mais essa informação a seu respeito. Quando dona
Irene me falara a respeito da escola, não associara ao fato de Marília ser
professora.
— Mas apesar do desconforto do extremo cuidado, — respondi — ela
está certa em querer protegê-la, a Srta. estava muito fragilizada.
— Minha mãe diz que eu devo ter assustado o pobre padre, parecendo
um fantasma, branca que eu estava. — segredou-me Marília, em um tom mais
baixo.
— De fato me assustei, mas foi com seu estado. Fiquei muito preocupado
com sua saúde e quando se recuperaria. — disse, relembrando-me da triste figura
que eu encontrara sobre aquele leito e querendo mais do que tudo esquecer
aquilo.
— Oh, padre, — suspirou Marília, deixando a máscara de bom humor de
lado e entregando-se a gravidade que o assunto trazia — nunca irei me esquecer
do que fez por mim. Não me refiro apenas à visita, que de fato me fez muito
bem, mas principalmente a sua ajuda em revelar meu estado e consolar a minha
mãe. Embora estivesse no quarto, não pude deixar de ouvir parte da conversa
que tiveram e eu não tenho palavras para agradecer pelo seu cuidado com ela,
tirando um fardo das minhas costas que eu já não podia mais suportar. Serei para
sempre uma devedora de seu favor.
Submerso em suas palavras, deixei ambos os braços pendidos, com as
compras quase a cair da cesta, e me perdi no mundo dela por instantes que não
pude mensurar, tendo em meu universo agora apenas Marília e suas palavras.
— É a sua vez de passar no caixa, padre. — disse Marília, por fim, com a
mão livre sobre os lábios, contendo um riso por pura reverência, mas denotando
que já há muito eu estava diante do dono do mercado.
— Boa tarde, padre. — disse o senhor atrás do balcão, acenando para a
minha desatenção.
— Oh, sim, boa tarde. — respondi, voltando de repente ao mercado, às
cestas, às compras, aos seiscentos e setenta mil réis, e procurando não voltar ao
mundo bem ao meu lado.
Com Marília a sorrir, caminhando junto a mim até o caixa, voltei a mim a
tempo de consertar minha grosseria.
— Oh, por favor, a Srta. primeiro. — disse, dando um passo para trás e
apontando à Marília o caixa.
— Ah, não, o que é isso? O senhor está aqui há mais tempo, além disso
está segurando essas cestas pesadas desde que cheguei aqui, por favor, passe o
senhor.
— Eu insisto, senhorita.
Contrariada, mas sorridente, Marília pôs-se a minha frente e tratou de
finalizar suas compras o mais rápido possível. Se soubesse o quanto que eu
desejava que ela demorasse uma eternidade ali, a fim de que eu tentasse voltar
ao normal e dizer-lhe algo digno.
Obviamente, eu nunca admitiria o meu real desejo, o de ter o meu sonho
ali, bem a minha frente, bem ao meu alcance, e passar uma eternidade
usufruindo da sua doce presença, na esperança de que aquele momento nunca
acabasse.
Ao terminar as suas compras, Marília deixou depressa o caixa livre para
mim, que ainda a tinha em meus mais distantes pensamentos, virando-se para se
despedir.
— Preciso ir agora, padre, ou então minha mãe virá até aqui me buscar,
achando que o pior me aconteceu. — disse, com sua brincadeira misturada ao
respeito devido a sua mãe e a mim. — Desculpe não ajudá-lo a carregar suas
compras à igreja, mas eu ainda não consigo carregar muitas coisas, fico cansada
com muita facilidade. — confessou com pesar e certo constrangimento.
Ouvindo eu, ainda com maior pesar, sobre seu estado delicado, tratei de
livrar-me depressa daquela proposta descabida.
— Por favor, não se preocupe comigo, estarei de volta em um pulo. — eu
disse, ciente que deveria já ir colocando minhas compras no balcão, se não
quisesse ser retaliado pelo senhor que chegara há pouco atrás de mim.
— Bem, estou indo então, espero vê-lo na próxima missa. — disse ela,
dando um passo para trás para partir.
— Por favor, espere um momento, eu posso ajudá-la a levar suas
compras à sua casa, apenas deixarei as minhas na paróquia, e ...
— Oh, não, padre, imagine, não posso ajudá-lo e ainda abusarei da sua
boa vontade?
— Não estará abusando de nada, Srta., deixe-me acompanhá-la até a sua
casa. Não levará mais que cinco minutos até eu terminar de pagar aqui e deixar
tudo lá na igreja. — ia dizendo, praticamente jogando as compras sobre a
bancada.
E vendo que ela seria resoluta até o fim, lancei mão dos mesmos meios
que usara com Samuel naquela mesma tarde.
— Ou a Srta. quer que sua mãe a veja cansada ao chegar e não permita
mais que saia de casa?
Eu falei sério, mas não pude deixar de evitar uma ponta de desafio em
meu tom de voz.
Percebendo a validade de meu argumento e minha nova travessura,
Marília riu, balançando a cabeça e os cachos escuros, voltando a postar-se ao
meu lado.
— O senhor é irredutível, não, padre?
Sorrindo e esquecendo-me do mundo mais uma vez, fui despertado pelo
mercador.
— Deu seiscentos e setenta mil réis, padre.
Entreguei rapidamente o dinheiro ao homem, esquecendo-me de quanto
eu calculara para o troco, e segurei de qualquer jeito as sacolas, a fim de sair
logo dali e terminar depressa a minha tarefa, o que me permitiria levar Marília
em segurança para casa comigo. Coisa que não pensei, todavia, era se eu estaria
seguro com ela.
Parte Dois
Verdadeiro Adorador
Corações Adoradores
Com incrível rapidez, larguei as compras sobre a mesa da copa, sabendo
que logo alguém as veria e guardaria as coisas no armário.
Atravessei correndo os salões, precisando me conter ao avistar alguns
anciãos conversando ao longe, provavelmente preparando a próxima missa.
Ao sair, vi Marília no pátio da igreja, com suas compras em cima do
muro de concreto, albergada do vento frio sob um toldo e com um pesado casaco
cor de vinho que a cobria até os joelhos.
— Muito bem, podemos ir. — disse, procurando controlar a respiração
acelerada.
— Padre, não sabe como me constrange com essa sua proposta em me
acompanhar. — disse Marília, tomando as sacolas na mão — Não queria que se
incomodasse com isso, deve ter muitos afazeres ainda.
— A bem da verdade, senhorita, — respondi, passando a segurar suas
sacolas — minhas atividades do dia já terminaram. Ou melhor, terminarão
quando eu deixá-la em sua casa.
Marília deu um meio sorriso, não muito satisfeita (talvez eu a tenha dado
tempo demais para pensar no meu trajeto para a copa), e nos colocamos a andar
sobre as desniveladas ruas da vizinhança.
— O senhor é desta cidade mesmo? — perguntou Marília, após alguns
instantes de silêncio.
— Não, sou de São Paulo, mas quis fazer seminário aqui. É a cidade
natal de toda a família de meu pai, em que muitos decidiram pela carreira
eclesiástica.
— Que interessante. Logo vi que seu sotaque era um pouco diferente.
Sotaque das cidades grandes, não do interior.
Fitei-a confuso por um instante, intrigado pelo comentário inesperado.
— Oh, perdão, padre, é que como leciono, às vezes me atenho a esses
detalhes de dialetos. — dizia, recriminando-se — Mas adoro esse sotaque, por
favor, não pense que lhe fiz qualquer crítica, é só que é bastante distinguível.
Sotaque dos intelectuais eu diria...
Ainda olhando para ela, resignei-me a rir de sua explicação, travando um
tipo de conversa que eu nunca tivera na vida.
— Bem, definitivamente, posso afirmar a Srta. que apenas o sotaque
seria de um intelectual. Não passo de um homem com conhecimentos limitados
do mundo que me cerca, em busca de crescer no conhecimento ilimitado do
Reino celestial.
Ponderando por um instante sobre o que eu acabara de dizer, temendo
não ter parecido muito confuso ou bitolado, percebi um meio sorriso de Marília
ao fitá-la pelo canto dos olhos.
— O senhor certamente é um intelectual das Escrituras, padre. Muito do
que disse há semanas ainda ecoa em meus ouvidos até hoje.
Engoli seco, apertando as compras em meus braços. A bagunça dos meus
sentimentos ainda me atormentava. A ideia de que ela costumava pensar em mim
e em minhas palavras me envaidecia, porém a ideia de que as palavras que eu
dissera nada mais foram do que palavras do próprio Deus me enchiam de
responsabilidade e temor.
Entretanto, antes que eu pudesse responder, Marília deixou em choque
cada nervo do meu corpo ao agarrar meu braço, obrigando-nos a caminhar mais
depressa. Sua feição era de temor.
— Er... Está tudo bem, Srta.? — perguntei, sentindo as batidas do meu
coração na garganta.
— Sim, sim, padre. — disse, rapidamente, com a cabeça baixa em minha
direção.
— Tem certeza? Parece nervosa. — insisti, ainda tremendo com o toque
de suas mãos.
— Sim, está tudo bem, é que aquele homem que acabou de passar, não
gosto do jeito que ele olha para mim. — sussurrou próximo ao meu ouvido.
Sem muita discrição, virei-me para trás, tentando diminuir um pouco o
ritmo da caminhada, a tempo de avistar um jovem, não muito bem vestido,
olhando para nossa direção como se quisesse devorar Marília. Olhei para ela
novamente, mas ela evitava meu olhar.
— Esse rapaz costuma importuná-la? — perguntei, apertando com mais
força sua mão em meu braço e não evitando que minha voz deixasse
transparecer profunda indignação e certo ciúme.
— Não, ele nunca fala comigo ou se dirige a mim, mas não gosto de
como ele me olha. Às vezes ele me sorri e, honestamente, não vejo nada de bom
nisso.
Mais uma vez, olhei para trás, a fim de fuzilá-lo com o olhar, caso ele
ainda estivesse olhando para Marília, mas ele já havia contornado a rua.
Ante o meu silêncio, Marília tomou a palavra novamente, após um breve
suspiro, forçando-nos a mudar de assunto.
— Eu sei que as coisas que o senhor diz são inspirações divinas, mas
existem coisas tão profundas que o senhor trata, que nenhum outro padre diz.
— Não sei se acreditaria se eu dissesse que a maioria das coisas ditas eu
ouvi pela primeira vez quando as falei. — respondi, dando de ombros.
Marília parou sua caminhada, fazendo-me retornar. Sua face estava
pasmada.
— Mas como? — perguntou, quando parei ao seu lado. Só então me dei
conta de que eu ainda apertava sua mão contra meu corpo. — Imaginei que o
senhor já tivesse refletido muito no assunto antes de pregar. Como, então, o
senhor montou o esboço de sua mensagem?
Vendo a exasperação de Marília, não pude conter um sorriso discreto.
— Mal me lembro do que o frei escreveu para eu falar naquele dia. —
confessei baixinho, como se fôssemos duas crianças aprontando.
— O frei? — inquiriu ela, no mesmo tom que eu — Mas... Isso quer
dizer que o senhor não fez nenhuma nota para o seu sermão?
Era difícil explicar tudo o que eu vivenciara naquela ocasião. Difícil
explicar o que nem eu mesmo entendia.
— Bem, sei que o Senhor conduziu a mensagem. — respondi apenas,
recomeçando a caminhar, esperando que ela não tentasse se aprofundar num
assunto que eu igualmente desconhecia.
— Sem dúvidas conduziu. — concordou, colocando-se novamente ao
meu lado. — Mas como se explica essa sintonia, essa relação sua com Deus, que
permite que alcance tão fundo os corações?
A pergunta ficou no ar enquanto minha mente me lembrava daquelas
passagens da Escritura que me vinham à memória, levando-me a pensar em
coisas que eu jamais havia considerado e acusando-me das tantas vezes que quis
calar essa voz que me queimava o coração, imaginando a afronta que elas seriam
ao que eu santificava.
— A misericórdia de Deus. — respondi, um pouco tarde, o que a
sobressaltou. Talvez também estivesse imersa em pensamentos. — Ela quem me
permitiu alcançar, por exemplo, o seu coração com a Palavra do Senhor.
Um leve sorriso atravessou seu rosto, um pouco mais ameno agora. Um
frio me percorreu a medula quando lembrei-me quem estava ali, caminhando
comigo. “Um grande erro” — pensei. “Eu não devia estar aqui”.
— Padre, o que devo fazer para ser uma verdadeira adoradora? —
perguntou Marília, de repente.
Foi a minha vez de retardar a caminhada. Parei meus olhos sobre ela,
enquanto ela retornava, após ter soltado meu braço, e fitava confusa minha
expressão. Há pouco eu chamara de erro o meu tentador passeio, mas, de
repente, os sentimentos inoportunos se dissiparam, dando lugar a uma inesperada
alegria, ao sentir a vitalidade da questão que ela levantara, movida pelo Espírito
Santo do Senhor.
O mais interessante, entretanto, era o fato de que eu não sabia a resposta
daquela pergunta de capital importância. Mas a mesma voz que, dentro de mim,
me movia a observar as questões mais pertinentes à vida, tratou de se manifestar
mais uma vez, de modo que eu mesmo somente tomara conhecimento daquela
Verdade porque Marília me instigara a buscá-la.
— O verdadeiro adorador adora em Espírito e em Verdade. Em Espírito,
porque a vida de uma criatura devota ao Senhor deve ser em Espírito, ou seja,
em uma entrega real e total da vida e da alma ao Senhor, gerando o fruto do
Espírito. Quem vive pelo Espírito, não vive pela carne, pelo pecado. E essa
adoração não é só de boca, é movida e promovida pelo Espírito de Deus.
— E em Verdade, — prossegui, extasiado — porque a fé não pode ser
fingida, não pode ser dissimulada, tem que ser verdadeira. Podemos pensar
também na questão da adoração ser baseada na Verdade. Qual Verdade? A de o
Senhor Jesus ser o Caminho, a Verdade e a Vida. Esta seria a verdade a ser
adorada.
Marília estava absorta em minhas palavras. Tinha a mesma expressão que
eu me lembrava quando dissera a ela que não haveria penitência para o seu
pecado. Certamente, as circunstâncias agora eram bem diferentes, pois algo me
dizia que, desta vez, eu estava certo.
Agora, com os braços cruzados firmemente, ela deixou seus olhos
perdidos em algum lugar atrás de mim, talvez em algum movimento da casa a
sua frente. Eu também não a fitava, pois aquela reflexão igualmente mexera
comigo. Entretanto, fora ela quem quebrara o silêncio.
— Eu estou disposta a isso. — afirmou, com convicção — Sei que posso
estar disposta pelo meu estado de saúde, talvez pelo fato de eu não ter uma vida
toda para decidir, mas tentarei até o fim servir ao Senhor, ainda que ele não me
aceite.
— É claro que aceitará! — disse, nervosamente.
— Não diga isso apenas porque é um padre. — respondeu, apesar do
comentário e da leveza de sua voz, sem evidências de estar brincando.
Eu sabia que ela dissera isso para bater de frente com o que eu dissera no
passado: “Não diga isso só porque está em uma igreja”. E eu caíra na mesma
armadilha. Como um padre, eu não poderia jamais desenganar uma alma sedenta
pelo Soberano Deus, porém não conseguia imaginar o meu Senhor rejeitando
uma alma que buscava apenas um pouco de conforto espiritual no pouco tempo
que ainda tinha de vida.
— “Eis que estou à porta e bato. Se alguém abrir, entrarei e cearei com
ele”. — citei — Isso é uma promessa do Senhor.
Ela, por fim, sorriu, não se importando mais com argumentos.
— Será que é tão fácil assim?
— Se Ele diz...
Marília ponderou por um momento, mas, em seguida, simplesmente
meneou sua cabeça, e voltou a caminhar. Agora só faltava mais uma quadra para
chegarmos ao nosso destino.
Recaída
O dia estava fechado, com muitas nuvens encobrindo o céu, pintando-o
com um cinza angustiante. Eu caminhava com a minha bíblia na mão, sabendo
que estava me esquecendo de algo enquanto seguia o caminho para a paróquia.
As chaves, talvez, mas as freiras certamente abririam a porta para mim. Fora
isso, minha mente estava vazia, pensando na cor dos olhos de Marília. Seriam
castanhos acinzentados ou cinzas acastanhados?
Rompendo, porém, meus pensamentos soltos, um grito assustado atrás de
mim fez com que eu me virasse, esperando o pior. Seria a minha mente me
pregando uma peça ou a voz era de Marília?
Pouco tempo tive, entretanto, para ponderar, pois assustada como uma
coelha fugindo de seu caçador, vinha Marília, seus cabelos saltando a vento,
assim como ela saltava pela rua, sua face transfigurada.
— Augusto, por favor, me ajude! — clamava, os olhos inundados.
Sem pensar um segundo, corri ao seu encontro e a abracei. Não podia
ponderar o certo, a única coisa que minha cabeça era capaz de pensar era em
protegê-la do que quer que fosse.
Eu não soube afinal. Não era importante. Eu estava lá e nada nem
ninguém a machucaria.
— Fique calma, Marília, está tudo bem, eu estou aqui.
Minha voz era apenas um sussurro, mas suas mãos cravadas em meu
braço eram prova de que me ouvira.
Alguns instantes se passaram, até que a senti mais calma em meus
braços, sua respiração mais regular e seus braços pousados com mais leveza em
meus ombros.
Respirando fundo e depois soltando um cheiro de rosas sobre mim,
Marília olhou-me de frente, ainda angustiada, mas tão bela, com detalhes agora
vistos com mais clareza por essa proximidade antes nunca alcançada entre nós.
— Augusto, eu não posso mais esconder isso. Eu não consigo parar de
pensar em você, em nós... Eu estou... apaixonada por você.
Ao contrário, porém, de tudo o que pudesse ser coerente e ainda do que
eu achei que sentiria caso algo tão impossível assim acontecesse, senti-me
extasiado e feliz, como se eu já soubesse daquela verdade o tempo todo, mas
somente agora pudesse acreditar nela.
Ela me olhou por muito tempo, certamente esperando uma resposta, ou
reação que fosse, mas tudo o que eu queria era olhar para algo que eu tanto
desejava e que, agora, era meu.
O tempo que assim ficamos não soube dizer, até saber que não fora,
afinal, tempo algum, quando o cacarejar do galo fez esvair lentamente a imagem
de Marília diante de mim com seu brilho estelar.
Meus olhos, por fim, pousaram sobre o teto ainda escuro do quarto, e não
somente escuro, mas embaçado também. Fechei-os, novamente, sentindo algo
quente atravessar os cantos do rosto, até tocar as orelhas. Eu já não podia mais
suportar aquilo, pois não sabia se dor pior seria da culpa ou do desejo. A culpa,
porém, me levaria à remissão, enquanto que o desejo à perdição. Até quando
Deus perdoaria esse meu delito, se é que eu havia sido perdoado?
Sabendo, porém, que se eu pedisse o devido perdão ao meu Senhor,
amanhã ou depois eu teria toda a brancura de minhas vestes manchadas tão logo
eu visse minha perdição, decidi acordar comigo mesmo que jamais tornaria a vê-
la. Se, porém, tivesse que vê-la, não travaríamos conversa alguma. Se,
entretanto, fosse mister conversar com ela, seria como se não o fizesse. Eu seria
apenas o padre, e ela, apenas a fiel. O Augusto do sonho, para Marília, teria
morrido para sempre.
---

— O que o senhor disse a respeito da Srta. Marília? — Saltei da cadeira,


ao ouvir Padre Dionísio lastimando o novo estado de saúde em que se
encontrava a jovem.
— Bem, não sei ao certo, vou vê-la ainda hoje, depois do almoço. —
respondeu, confuso, mas eu mal notava sua expressão e, sinceramente, não
estava me importando muito com o que pensariam sobre minha súbita atenção.
Há tempos que eu não dizia muita coisa, nem me mostrava interessado
por nada desde a minha infame promessa de que não veria mais quem não
deixou de frequentar meus sonhos. Às vezes, neles, ela nada me dizia, apenas me
olhava. Outras, se divertia com a minha angústia. Eu já chegara ao ponto de
expulsá-la dos meus sonhos, alegando o pecado que trazia a minha vida. Deixou
de aparecer por um tempo, mas, depois de vê-la no confessionário e fugir antes
que me visse, ela tratou de se vingar, surrupiando minha mente, mais uma vez.
Creio que tenha se passado cerca de um mês, ou mesmo mais, não soube
ao certo. Minha vida se limitava a assistir as missas, passar as tardes no
confessionário, ajudar Samuel com suas tarefas e, sempre que podia e lembrava,
orar pelos fiéis, pelos sacerdotes e por mim, para que eu tivesse forças para
esquecer quem já estava sedimentado na minha mente.
Nesse meio tempo, foram raras as minhas visitas domiciliares, e eu mal
via a luz do sol. Enfurnado por horas a fio na biblioteca, a fim de catalogar todos
os títulos com uma organização que o frei havia proposto há anos e que nunca
havia, de fato, sido colocada em prática, eu era constantemente repreendido por
Samuel.
— Por Deus, Augusto, saia um pouco desta biblioteca! Uma coisa é você
me ajudar, outra é passar a vida aqui dentro dessa sala claustrofóbica! —
costumava dizer, com um dedo a puxar o colarinho. — Se não ficar um bom
tempo longe daqui, vou ter que falar com o frei!
E essa era a ameaça de Samuel, a qual, pobre amigo, nunca cumprira,
pois eu sempre dava um jeito de escapulir quando achava que este estava prestes
a, pensando somente em minha saúde, queixar-se da minha entrega aos livros
para o frei.
Entretanto, ao contrário do que ele pensava, aquele era o momento mais
rápido do meu dia, pois o grande número de atividades que me esperavam lá
consumia boa parte da minha mente, o que me trazia um pouco de refrigério
naquele tempo de angústia.
De qualquer forma, todos já haviam percebido minha constante
indisposição para conversas ou mesmo para descanso. Eu fazia minhas refeições
fora do horário, por conta do tempo desprendido na biblioteca, por isso havia
dias em que eu não travava conversa com ninguém.
Em relação a Marília, porém, a situação era bem diferente. O fato de vê-
la, ainda que a vários bancos atrás de mim, na eucaristia, indo em direção ao
confessionário ou, ainda, em minha direção, transformava imediatamente meu
estado melancólico em um estado de intensa euforia, lutando contra um corpo e
uma mente que queriam apenas permanecer na inércia de aguardar seu perfume
chegar e refrigerar o coração, há tanto cativo.
Todavia, naquela manhã, enquanto pensava no livro que lera na noite
anterior, de Santo Agostinho, as palavras de Dionísio invadiram de repente meus
pensamentos, entorpecendo-me primeiramente, e depois, levando-me ao choque.
— Por falar na substituição da Madre Superiora do externato, soube que
a professora de línguas do colégio, a Srta. Marília, minha afilhada, teve uma
recaída essa semana e está acamada novamente. Parece que agora será mais sério
do que da outra vez... — dizia Dionísio, temeroso.
Ante a minha incoerente surpresa, todos da mesa passaram a me olhar,
pasmos.
— Mas o que há, Augusto? — interrompeu Caio — Por acaso conhece
essa moça?
— Augusto apenas foi visitá-la uma vez. — respondeu Dionísio, com
pouco caso. — Deve ter se apegado à família. — Seus olhos agora me fuzilavam
e eu não quis nem supor o que passava em sua mente naquele momento.
— Er, sim, conheço a família. — disse, após um breve momento de
silêncio. — É que tenho muita compaixão da jovem, seu estado no dia em que a
visitei estava muito debilitado e, se o padre diz que ela pode estar em estado
pior, não quero imaginar como ela esteja. — O que era a mais pura verdade.
— Bem, sim. — Abrandou, finalmente, Dionísio, encostando-se na
cadeira. — Não cheguei a vê-la da outra vez, mas lembro-me que disse o quanto
estava abatida a pobre.
Simulei também estar conformado, imitando o gesto do padre na cadeira,
mas por dentro eu parecia um vulcão prestes a explodir. A lembrança de Marília
falando sobre sua doença, o pouco tempo que lhe restava, quase me sufocou. Eu,
que tanto lutei para tirá-la da minha mente, da minha vida, que tanto esperava
não encontrá-la, não vê-la, e a possibilidade, agora, de nunca mais poder
contemplar seu sorriso, seus gestos delicados, o movimento dos seus cabelos ao
caminhar, seu doce perfume, sua mão quente na minha, sua risada musical, seu
olhar poderoso. Aquilo tudo era demais para mim.
Tomado por uma forte emoção, pedi licença aos presentes e deixei o
local, quase a correr. E a dor não esperou eu chegar ao meu quarto para se
manifestar. No instante seguinte, eu já estava aos prantos.
---
Não sei ao certo como e quando me pus a caminho da casa de Marília.
Somente dei conta exatamente do que fazia quando senti finas gotas de chuva
tocando pontos aleatórios da minha pele. Entretanto, mesmo sabendo que eu
estava a menos de vinte metros da paróquia, podendo retornar ileso da chuva,
meus passos permaneceram irredutíveis.
A única coisa que passou pela minha cabeça antes de sair do monastério
foi que nenhum dos padres, sobretudo Dionísio, soubesse para onde eu estava
indo. Recordo-me ainda de que alguém tenha me alertado da chuva iminente,
porém eu simplesmente dissera que o assunto que eu tinha para tratar era de
suma importância. E eu estava certo de que era mesmo.
Oh, quão gritante a diferença de minha jornada da primeira vez que a
fizera com a presente jornada! Tantas incertezas, tantas lutas interiores, tantos
temores. E agora, nada poderia me deter, a não ser o Senhor, e eu podia sentir no
meu coração que ele não o faria. E eu quase podia afirmar que Ele até me movia.
Sentindo o ar começando a faltar pela intensidade da caminhada,
lembrei-me da última vez que estive com Marília, o único momento, por sinal,
em que tivemos um tempo verdadeiramente nosso e soubemos um pouco mais
um do outro.
Marília voltou a apoiar seu braço no meu e lá permaneceu até o término
da nossa caminhada, o que, por mais angustiante que fosse tentar evitar o deleite
ante aquele gesto, fez com que eu me sentisse incapacitado de desvencilhar-me
daquelas mãos frias enluvadas roçando minha roupa, que roçava a pele do meu
braço. Que gesto pequeno e iníquo para os demais homens não castos do resto
do mundo. Mas que sensação arrebatadora para mim, que nunca chegara tão
perto assim de uma mulher que não fosse minha parenta ou muito mais velha do
que eu e, muito menos, estava acostumado a sentir essas coisas no coração.
Suas risadas ainda podiam ser ouvidas se eu fechasse por um instante os
olhos, risadas estas provocadas por pequenas e cômicas narrativas de episódios
que eu vivenciara na faculdade, ao que ela emendara com algumas de suas
histórias do externato. Ainda nesta ocasião, eu soube que ela era pedagoga e que
coordenava a pequena escola de Nossa Senhora da Misericórdia há pouco mais
de dois anos, quando passara a morar ali com a mãe, após concluir seu estudos
na cidade vizinha. Ela lecionava as disciplinas de Português, Francês e Latim, e
até brincamos um pouco com o último idioma até chegarmos, enfim, à sua casa.
Quem, afinal, poderia não se encantar por Marília? Enganar-se-ia
drasticamente quem supusesse que sua essência estaria somente na beleza.
Marília era doce, sublime, perspicaz e era muito mais inteligente do que se
considerava. Era culta, porém modesta; risonha, mas não vulgar; de certa forma
ousada, mas sem jamais perder a reverência ao sagrado. O que poderia fazer uma
mulher assim estar só? Talvez a castidade, ou a idade, mas, após conhecê-la
naquele dia, soube que a resposta estava tão-somente na sua doença. Não que ela
me tivesse revelado, porém era evidente para mim que seu bondoso coração
jamais permitiria trazer a dor da separação corporo-temporal com uma morte já
anunciada, ao seu afortunado amante, até pelo fato de não saber que mesmo
pouquíssimos dias ao seu lado já o faria o mais feliz dos homens.
Mas agora, a poucos metros de sua casa, na mesma última quadra que
atravessamos aos sorrisos naquele dia, — coração acelerado pela velocidade e
pelo temor do que veria ao passar por aquela porta de madeira envernizada — a
única imagem que me vinha à mente era a de Marília, tomando as suas sacolas
de meus braços, sorrindo-me com ternura e gratidão, e dizendo as últimas
palavras que eu a ouvira pronunciar e que, pelo temor de serem as últimas que eu
pudesse ouvir dela pelo resto da minha vida terrena, guardava como uma pérola
do maior tesouro de origem humana que eu já tivera.
— Muito obrigada por tudo, Padre Augusto. O senhor é um precioso
instrumento nas mãos de Deus para abençoar vidas. Na sua companhia, sinto-me
na companhia de Deus. Sua bênção, querido padre.
Insanidade
Foi com certo pavor que percebi a porta da casa de Marília apenas
encostada, todavia lutei contra o pessimismo, sabendo que, em breve, este me
levaria à insanidade, e dei algumas batidas na porta. Como ninguém respondeu,
empurrei sorrateiramente a porta, não por constrangimento, mas por puro medo
do que encontraria. Ou pior, do que não encontraria. Calafrios me percorriam o
corpo e só percebi o quanto minha mão tremia quando fechei a porta atrás de
mim.
Eu podia escutar vozes vindas de onde eu lembrava ser o quarto dela.
Uma voz masculina se sobressaía, mas não falava alto. Por um segundo, temi
que Padre Dionísio tivesse retornado a casa, ou quem sabe algum outro padre,
mas logo vi um homem todo vestido de branco, com um pulôver bege e uma
maleta pequena preta em sua destra, atravessando o corredor e se dirigindo à
sala, onde eu me encontrava. Trazia também um estetoscópio pendurado no
pescoço, e dirigiu um olhar curioso ao me ver.
— Mais um padre? — perguntou à Dona Irene, que vinha logo atrás.
— O quê? Oh, padre, o que faz aqui? — disse a senhora, transfigurada,
com o rosto inchado, grandes e intensas olheiras e uma expressão de torpor.
— Er... Soube do estado de sua filha e vim para saber notícias.
— Ora, mas o Padre Dionísio não lhe transmitiu as novidades? —
indagou, com uma expressão mais surpresa do que incomodada.
— Bem, sim, mas quis vê-la pessoalmente. Claro, se a senhora permitir.
— O que, no fundo, era meia mentira, pois mesmo que aquela senhora não me
permitisse, iria até o fim do mundo para ver Marília, ainda que pela última vez.
A senhora o e médico moreno e alto se entreolharam, como que se ela
perguntasse se haveria algum problema.
— Bem, talvez seja bom mais um padre ir vê-la. Pelo estado em que
está... — disse, enfim, o médico.
Dona Irene segurou o choro mais uma vez, e eu percebi o quanto ela
estava diferente de como aparentava na outra ocasião. Antes, era nítido o seu
desespero e a sua angústia, mas, agora, era como se ela estivesse entorpecida,
quase que resignada, como se não tivesse ainda assimilado tudo o que estava
acontecendo e prestes a acontecer.
Eu, por minha vez, não estava em situação melhor, mas era capaz de
mascarar meu desespero pela esperança de tudo não passar de um engano, um
exagero. De encontrá-la corando ao me ver fitando-a, sorrindo com sua
docilidade, dizendo sentir minha falta, como outrora. Algo dentro de mim era
capaz de ainda manter essa fé.
— Está bem, então, fique a vontade para rezar por ela, padre. —
respondeu a senhora, indiferente. — Ela está muito fraquinha, por isso pediria
que o senhor não a deixasse falar muito.
— Sim, senhora. — assegurei. Eu apenas precisava vê-la, nada mais.
A senhora, então, deixou-me com o médico, adentrando o corredor na
direção oposta ao quarto de Marília.
— Doutor. — chamei-o, enquanto ele se dirigia para a porta de saída.
— Pois não? — retornou, girando os calcanhares.
— Er... Poderia me dizer qual o real estado da Srta.? — perguntei,
sentindo meu coração acelerar outra vez, antes da hora.
— Bem, Reverendo, a situação da Srta. Marília é muito delicada. O
câncer se alastrou muito rapidamente por conta de um diagnóstico tardio, e foi
opção da própria paciente não submeter-se aos tratamentos de Radio e
Quimioterapia.
— Quanto... Quanto tempo ela ainda tem, doutor? — Eu estava ciente de
que se continuasse naquele ritmo de adrenalina, eu seria seu próximo e imediato
paciente.
— Não sei. — Meneou pesarosamente a cabeça, dando um longo e
ruidoso suspiro. — Pode ser hoje, pode ser amanhã, mas certamente não passa
dessa semana.
Não soube o que ocorrera com o chão naquele momento, que de repente
se abriu em um abismo sem fim, nem como eu ainda me mantinha em pé (talvez
ainda a doce esperança do impossível), apenas sei que assenti ligeiramente ante a
despedida do doutor que, após ver que eu já havia terminado meu interrogatório,
nada mais tinha a fazer naquela casa.
Eu, porém, mais do que nunca, ainda tinha muito o que fazer ali.

---

Não foi com pouco temor que atravessei aquele corredor escuro à
procura do dormitório de Marília. A cada passo, um novo medo, e eu podia
sentir a esperança se esvaindo como se eu fosse uma garrafa furada.
O passo mais difícil foi atravessar, por fim, a porta entreaberta que nos
separava. Precisei tomar novo fôlego e empurrar a porta ainda com os olhos
fechados. Como nenhum som era emitido, a única informação que me veio do
ambiente naquela fração de segundo foi um cheiro de roupas limpas, associados
ao perfume que eu jamais esqueceria por toda a minha vida, perfume o qual me
fez abrir os olhos de repente e contemplar tudo o que eu queria e o que não
queria ao mesmo tempo.
Sim, era Marília, minha Marília, que estava sobre aquele leito branco,
debaixo de um lençol bordado creme. Seus olhos estavam fechados, como da
outra vez, mas agora eu sentia que ela, de fato, dormia. Sua face estava
descansada, mas tão abatida que, apenas por vê-la sempre em meus sonhos, eu
podia encontrar a Marília de outrora através daquela languidez.
Aproximei-me devagar, contemplando cada detalhe do seu novo estado,
sua respiração curta e irregular, seus lábios semiabertos, seus lindos cachos
desmanchados e seus leves e breves espasmos, temendo no profundo da alma
que aquela fosse a última vez que eu a veria viva.
Em pé, mais uma vez entre aquela mesma janela que trazia uma brisa
fria, balançando uma cortina de seda atrás de mim, e a minha doçura, tive a
necessidade de tocá-la e sentir a vida que ia se esvaindo daquele corpo que eu
tanto quis que um dia fosse meu. Sim, agora eu conseguia admitir isso, com toda
a culpa do mundo, mas, finalmente, rompendo a barreira que me impedia de
enxergar o que sempre fora tão óbvio. Eu sempre soube que precisava prender a
respiração quando ela se aproximava, porque seu cheiro me faria entrar num
mundo de impossibilidades; que precisava olhar sempre para seus olhos, se
quisesse sair de sua presença íntegro; e que precisava sempre me manter a uma
certa distância dela, pois o menor toque me faria estremecer e perder a pouca
razão que ainda tinha.
Contrariando o bom senso, mas afagando um pouco o meu coração em
brasas, toquei com a ponta dos dedos seu rosto, com toda a suavidade que pude,
até chegar aos seus lábios, percebendo que os meus se abriram ligeiramente, de
modo involuntário, devido ao que se passava na minha mente insana. Recolhi,
porém, minha mão, bruscamente, num contraste com meus gestos suaves, ao
perceber uma leve movimentação de seus olhos, que mui lentamente se abriam
para mim.
Ao contrário, porém, dos olhos vivos e grandes que eu esperava, abriram-
se apenas duas meias-luas, mas que ainda puderam me devolver parte da
esperança perdida.
Por um breve momento, Marília nada disse, nada fez. Apenas me olhou.
Sua respiração continuava arrítmica e percebi que o que eu via não eram luas, e
sim, um reflexo de pequenas luas sobre o mar, pois de repente começaram a se
afogar.
— Padre Augusto! — balbuciou, enchendo-me de alegria o coração por
ouvi-la me reconhecer e me chamar.
— Sim, Srta., estou aqui. — respondi, emocionado, apertando com força
a bíblia em minhas mãos e, sem perceber, sentando-me em um canto de seu leito,
que agora parecia tão grande ante a sua pequenez.
— A-chei que... não o ve-ria... mais — dizia, com uma respiração
ruidosa, entrecortando as palavras.
— É melhor não falar muito para não se cansar. — disse, contrariando a
voz dentro de mim que gritava para deixá-la falar e, assim, aquietar e incendiar
meu coração outra vez.
Ela sorriu ligeiramente, fechando os olhos por alguns segundos, enquanto
eu me dava o direito de apreciar sua beleza mais uma vez.
— Eu te pro... curei, padre. Ten-tei... falar com o senhor. — sussurrou,
tornando a abrir os olhos, procurando falar mais rápido, mas tendo que respirar
de forma mais intensa para isso.
— Eu sei, Marília, eu sei. — respondi baixinho, com uma dor
insuportável na garganta por conter as lágrimas e esquecendo-me de qualquer
protocolo para dirigir-me a ela. Aquela poderia ser, ó Deus, a última vez que eu
poderia falar com ela e não desperdiçaria esse privilégio outra vez — Eu sinto
muito.
Ela olhou-me, tão tristonha, que senti vontade de me jogar de um
penhasco, de tão miserável que me senti. Tanto sofrimento aquela alma e aquele
corpo sofrera e, na busca de alívio ao menos para a alma, me procurara, e eu,
pelo pecado, pelo egoísmo, pela verdadeira miserabilidade, rejeitei-a, afastei-a
de mim, dos meus conselhos como padre, do meu ombro amigo, deixando-a só
quando mais precisou.
— Que bom... que está aqui... agora. — disse Marília, sorrindo, talvez
percebendo minha dor. Ela, com a saúde escoando a cada respirar, consolando-
me, enquanto eu, com toda a saúde, que daria de bom grado a ela se pudesse,
negligenciara sua dor.
O meu martírio, porém, tão grande, trasbordou pelos meus olhos,
saltando sem que eu pudesse contê-lo. Eu queria que minhas lágrimas pagassem
seu sorriso. Eu queria trocar de lugar com ela. Queria a minha morte e a sua
vida.
— Não... sofra... assim... por mim... padre. — disse minha pequena, que
agora eu via chorando também. Olhando demais para a minha dor, mal pude ver
a sua estampada em seus olhos e nariz vermelhos, e a onda daquele mar
alcançando a areia branca do seu rosto.
Chorando agora convulsivamente, deixei a bíblia em um móvel ao lado
de seu leito e tomei sua mão nas minhas, a fim de tentar consolá-la. A fim de
tentar me consolar.
— Por favor, menina, não chore também. Perdoe-me por não ter estado
com você nesses últimos dias, mas acredite, foi porque julguei ser o melhor para
ambos.
Marília continuava chorando, mas segurava com fraca firmeza minhas
mãos suadas. Sua respiração estava cada vez mais difícil e custosa, e percebi que
precisava acalmá-la imediatamente.
— Vou rezar por você agora, enquanto descansa, sim? Ficarei aqui até
que me mandem embora escorraçado com uma vassoura. — disse, tentando
sorrir um pouco, conhecendo a pobreza de minhas piadas.
Ela sorriu levemente, soluçando um pouco, mas não soltou uma das
minhas mãos enquanto, com a outra, eu pegava a bíblia.
— Não quero... descansar... enquanto... está aqui... Quero ouvir... sua ora-
ção.
Fiz menção de repreendê-la, mas que poderia fazer eu? Insistir para que
dormisse com um padre chorando ao seu lado? Com uma dor e um medo no
peito, não sabendo o que se sucederia no instante seguinte? Ao fim, resignei-me
e, com apenas uma mão, abri a bíblia no salmo costumeiro para aquelas
circunstâncias. Limpei um pouco a garganta e comecei:
— “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do
Onipotente descansará...”.
Uma vida por Outra
Marília limitava-se a assentir ocasionalmente e alternava seu olhar, ora
para a bíblia, ora para mim, ora para o teto, que eu imaginava que seria para o
céu.
Ao término do salmo, seus olhos já estavam fechados e sua mão já não
apertava a minha, mas sua respiração provava que ainda vivia.
Pousando a bíblia sobre o meu colo, perdi-me no habitual devaneio de
observar suas expressões, seus traços, seus movimentos, e desejei passar o resto
de minha vida ali, a observá-la serena, em paz.
Mas meu momento não demorou muito, pois quando ela percebeu que eu
havia parado de ler e que estava prestes a adormecer, tornou a abrir seus olhos,
desta vez mais rapidamente, não dando tempo de eu sair do meu transe.
— O que foi... padre? — perguntou, duvidosa, ante minha provável
feição abobada.
Não tendo, porém, nada mais a perder ou a esconder, sabendo que aquela
seria a única e última chance de dizer aquilo a ela, ou a qualquer pessoa,
confessei.
— Sabe o quanto é bela, Srta. Marília? — disse, dando ênfase no
“quanto”.
Senti uma movimentação em seu peito, que julguei por uma risada, a
qual comprovou-se com um subsequente sorriso. Sua expressão era de extrema
surpresa, mas sem constrangimentos. Talvez, em sua inocência e até decência,
julgasse que aquele comentário, vindo de um padre, nada mais era do que uma
palavra piedosa a uma moribunda.
— Sabe... uma das coisas... que mais me dói? — perguntou, ainda a
sorrir — É que eu nunca... conheci... meu grande... amor.
Nunca na minha vida compreendi o que eu tinha na cabeça para
responder ao seu comentário daquela forma. Nem muitos anos depois eu
consegui dizer com certeza o que me levou àquele ato insano e inconsequente.
Teorias não me faltaram: talvez fosse a pressão de perder para sempre aquela tão
adorada criatura, ou talvez, uma manifestação de tudo o que eu havia reprimido
por todo aquele tempo, ou ainda uma forma que a vida viu para que meu destino
se concretizasse, ou até mesmo fosse a doce expressão que minha bela Marília
fizera ao dizer essas palavras. Nunca soube. Apenas me lembrarei até o último
dia da minha existência aquele momento e todas as sensações indescritíveis que
ele proporcionou, rasgando-me por dentro no extremo da culpa e do desejo.
— Mas o seu grande amor a conheceu. — foi o que respondi, sem ar.
E com o coração já adormecido de tanto palpitar, apoiei-me com um dos
joelhos e inclinei meu corpo para frente, sustentando o corpo com as mãos, uma
de cada lado do rosto de Marília, uma das mãos ainda a segurar a bíblia. Meu
rosto já havia virado brasas vivas e temi queimar o seu ao me aproximar, mas eu
já não era dono de mim e, com a visão turva do rosto assustado de minha amada,
toquei seus lábios com os meus com toda a suavidade e força que eram devidos,
demorando-me mais do que pretendia pelo prazer do gesto e pela certeza de que
aquele seria um momento único, mas que me condenaria por toda a vida.
Alcancei os céus e as profundezas em poucos segundos e a viagem me
entorpeceu.
Logo, lá estava eu, sentado novamente ao seu lado, os lábios úmidos e
anestesiados, os olhos pousados onde eu estivera a pouco, as marcas das minhas
mãos ainda em seu travesseiro, provando a realidade do momento e, assim, a
validade da minha culpa.
Minha respiração, agora, devia estar mais irregular e profunda do que a
dela, que me olhava entre a incredulidade e o assombro, enquanto eu ali
permanecia, apenas aguardando que ela me expulsasse definitivamente daquele
quarto e da sua vida. Ao contrário do que eu esperava, porém, tudo o que fez foi
derramar novas lágrimas, que me feriram muito mais do que a mais dura palavra.
— Me perdoe por amá-la assim, Marília. — consegui dizer, alcançando
dor pior do que a anterior, enquanto me punia tocando nas lágrimas que causei
nela.
Suas lágrimas agora, porém, vinham com mais força e seu choro era
convulsivo. Seu olhar era de desespero e seu corpo tremia como se recebesse
vários choques elétricos, quando me levantei rapidamente para analisar a cena.
Marília estava mudando sua cor pálida para uma cor arroxeada e buscava ar
como se estivesse se afogando.
O seu desespero me contagiou tão logo percebi seu estado e eu vi que
precisava tomar alguma atitude imediatamente. O médico há muito já havia
partido e sua mãe, certamente, não saberia o que fazer, a não ser atirar-se sobre
ela, sufocando-a ainda mais. A única coisa que me restou foi o motivo que me
levara até lá, o motivo que nos afastava terminantemente, mas o único que
poderia salvar a sua vida naquele instante.
Dignidade e santidade eu certamente não tinha para falar com Ele, muito
menos lhe suplicar por algo, mas aquela mulher nada fizera e, talvez, a sua
pureza de coração fosse capaz de alcançar a graça do Senhor em um pedido
desesperado a seu favor.
Como eu não tinha opções, exatamente do jeito que estava, enlameado no
pecado, virei-me para a janela, entrelacei os dedos trêmulos e supliquei em voz
alta, com profundo desespero:
— Senhor, tenha misericórdia desta alma, não a deixe partir. Não o faça
por mim, que sou o pior e mais imundo dos pecadores, mas faça por ela, que
sempre o buscou de todo o coração e aos seus estatutos, e que ainda tanto tem
para viver. E quanto a mim, meu Senhor, jamais pecarei assim novamente,
aniquilarei todos os desejos do meu coração e lhe darei o que restar de mim
depois do dia de hoje. O Senhor disse na sua Palavra: “Tudo quanto pedires em
meu nome eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho”, então eu rogo,
em nome do Filho, em nome do Senhor Jesus Cristo, que o Senhor a salve!
---

Um silêncio mórbido inundou o ambiente e, derramando mais uma


porção de lágrimas presas aos olhos, expirei.
Acabou.
Todos os sonhos, os desejos, as fantasias, tudo acabado, dissolvidos bem
atrás de mim. Mas como eu ainda conseguia pensar em mim? Tantos planos
daquela jovem frustrados, tudo o que sonhou para o seu futuro, sua carreira, seus
estudos, uma família. Os medos que a assombravam a noite, as lembranças que a
faziam sorrir. O que gostava de fazer, de ouvir, de comer, de falar. Tudo findo
bem ali.
Algo em mim me alertava de que eu devia avisar sua mãe, mas não havia
mais nada a ser feito e eu estava abalado demais para tomar alguma atitude sã.
Em minha mente, eu me imaginava dando essa notícia para seus familiares,
colegas de trabalho, para o Padre Dionísio. Oh, era triste demais.
Mas nada poderia ferir mais o que restara de mim. Algo restara, afinal? O
pouco de vida que ainda havia em mim desperto ante a sua presença agora estava
morto, juntamente com ela. Marília. Morta.
Sem forças sequer para respirar, fiquei como uma estátua, ainda olhando
pela janela, um sol laranja fraco no fundo do horizonte, manchando um céu azul-
acinzentado. A chuva já há muito havia cessado, mas a rua permanecia molhada
em pequenos poços do terreno irregular. Poucos instantes se passaram, os quais
achei que tivessem sido equivalentes a toda a minha vida, quando passei a ter
alucinações.
— Padre... — vinha uma voz atrás de mim.
Por um momento meus olhos se arregalaram, mas não tive coragem de
me virar. Eu ainda não era uma pessoa convicta da impossibilidade de espíritos
se comunicarem com os vivos.
— Padre! — repetiu a voz, agora um pouco impaciente.
Suspirei e tomei a decisão de me virar. Fosse o que fosse, eu tinha a
certeza de duas coisas: meu coração não se assustaria, pois já estava morto, e eu
não me importava mais com a morte física, caso ela viesse me buscar.
Lentamente, voltei-me para trás, com a cabeça baixa, limpando um
pouco das lágrimas do meu rosto e, de repente, vi renascer tudo em mim.
Em cima daquele mesmo leito, em que jazia a única mulher que eu amara
e amaria por toda aquela vida miserável, mulher esta que acabara de falecer
praticamente em meus braços, por minha culpa, agora repousava a mesma
criatura, com a cabeça pendida para o lado e um par de olhos cansados a me
fitar. Virando o restante do meu corpo, certifiquei-me da vida que lá havia
somente quando aqueles — e agora eu podia afirmar — doces lábios
contorceram-se em um pequeno sorriso.
— Eu estou viva. — disse, sem mais respirar com dificuldade e trocando
seu semblante sofrido por um apenas cansado, mas em paz.
Aproximando-me com avidez, olhei-a por completo e senti meus olhos e
se arregalando de forma que achei que fossem se rasgar.
— Por que a surpresa, padre? Não confia no Deus para quem rezou?
E voltou a sorrir, um sorriso emocionado, mas agora completo.

---

Aquilo simplesmente não era possível. Mais do que a surpresa por ela
estar viva, era seu novo estado. Suas bochechas estavam um pouco coradas e
seus olhos emitiam luz e vida. Ela já respirava com regularidade e estava serena
como quem acaba de despertar de um sono.
— Mas, como? — perguntei para mim mesmo, com as mãos estendidas,
querendo certificar-me que aquilo não era uma miragem. Tomado, porém, de
tardio bom senso, recolhi-as a tempo de não tocá-la.
Ela nada dissera, apenas me fitava, rosto banhado de suor, cabelos
desgrenhados, mas ainda belíssima. Logo, porém, sucumbiu ao cansaço e
adormeceu, com um leve sorriso nos lábios. Ela estava em paz. E viva.
Apesar da vontade de lá permanecer e continuar dando graças em meu
interior a cada respirar dela, decidi sair na surdina e cumprir de vez minha
promessa feita ao Senhor. Como último gesto, porém, dentro daquela casa e
dentro daquelas vidas, fui até o corredor que levava ao quarto de sua mãe e, pelo
vão da porta, sussurrei:
— Ela viverá.
Depressão
Já fazia mais de duas horas que eu estava trancado em meu quarto, mas
somente tomei nota disso quando batidas persistentes na porta me despertaram
das minhas preces.
Um pouco assustado — sempre se leva algum tempo para voltarmos à
realidade quando ficamos algum tempo distante dela — levantei-me do chão e,
ainda segurando o rosário, destranquei a porta, recebendo Samuel e Caio em
meus aposentos e fechando novamente a porta atrás deles.
— Augusto, o que está acontecendo com você? — perguntou o segundo,
sem rodeios.
— Eu... Estava apenas rezando. — expliquei-me, mostrando o terço em
minhas mãos.
— Desde quando, desde terça-feira? — inquiriu-me Caio mais uma vez.
Era sábado.
Em um primeiro momento, não respondi. Deixei-me cair sentado sobre a
cama, suspirando com grande dor. Teriam eles já passado por semelhante
situação? Duvidava muito que sim.
— Vocês já sentiram tentação tamanha que não pudessem suportar? —
arrisquei — E já foram obrigados a arrancar algo dentro de si por ter deixado
essa tentação dar vazão, mas, de repente, descobriram que, arrancando isso,
tiraram junto tudo o que tinham dentro do peito?
Eu devia tê-los encarado enquanto fazia essas perguntas. Assim, teria
visto a tempo seus olhos se arregalando, a fim de impedir que ficassem daquele
tamanho quando os voltasse a encarar.
— Esqueçam... — tentei consertar, mas sabendo que já era tarde.
— O que você fez, Augusto? — perguntou Caio, com desespero. Samuel
estava aturdido demais para se pronunciar.
Meneei a cabeça, procurando fugir da pergunta. Eu devia saber o quão
diretos costumavam ser os interrogatórios de Caio.
— O que você fez? — repetiu, impaciente, como se visse um cadáver
naquele quarto e uma faca ensanguentada em minhas mãos.
— Eu pequei, Caio, eu pequei! — respondi, nervoso — E eu estou
pagando pelo pecado que eu deixei entrar na minha vida!
Eu sentia meu rosto pegar fogo, e somente dei conta do meu tom de voz
quando ambos se voltaram para trás, constrangidos — imagino eu, torcendo para
que, se alguém aparecesse de repente, não pensasse que fosse um deles quem
fizera tamanha confissão.
Exausto, suspirei mais uma vez, apertando os nós do rosário e vendo
meus dedos embranquecerem com isso.
— Por favor, me deixem sozinho. Não há nada que possam fazer por
mim. E eu não quero envolver vocês nisso também.
Caio balançava fortemente a cabeça, não acreditando nas minhas
declarações.
— É melhor que você saiba o que está fazendo, Augusto. — disse
simplesmente, virando-se e saindo do quarto, deixando a porta entreaberta para
Samuel sair.
Este, porém, me olhava com compaixão e, com isso, fazia-me querer
chorar.
— Augusto... — disse, finalmente, e eu ergui meu olhar, sabendo que o
que ele diria a seguir viria do próprio Deus. — eu queria poder te ajudar, mas...
Isso foge da minha capacidade. Eu não tiro pecados, — declarou, como a
primeira demonstração de que ele também não era adepto a todos os dogmas da
Igreja, coisa que eu esperava ardentemente que não fosse por minha influência
— mas o Senhor tira. E mais, ele dá refrigério às nossas almas. “Vinde a mim,
vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Aprendei de mim que
sou puro e humilde de coração, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”
Converse com Jesus, e Ele te dará descanso, meu amigo.
Não sei se as palavras, ou o modo como ele falou de Jesus como se
fossem velhos amigos, mas mal ele terminara de dizer aquelas palavras e dos
meus olhos brotaram as teimosas lágrimas que eu estivera empurrando para
dentro nos últimos dias.
Minha vontade era agradecer-lhe, abraçá-lo, dizer o impacto que suas
palavras me causaram, mas eu mal me sentia digno de lhe olhar nos olhos. Ele,
então, compreensivo, apenas colocou sua mão em meu ombro e saiu, não antes
de dizer:
— Fique em paz, amigo, que Deus o abençoe.
O que ele não sabia era que o Senhor já havia me abençoado. E eu
levantei a cabeça a tempo de ver aquela divina bênção saindo pela porta e
encostando-a suavemente.

---

Saindo da copa, poucos dias após a conversa com os padres em meu


quarto, não me recordo por que, mas estava com pressa para ir a algum lugar.
Pelo trajeto que fazia quando fui interceptado, imagino que estava indo à
biblioteca em busca de alguma obra que eu tinha em mente, mas os eventos que
se sucederam tornaram tão irrelevante o motivo que me levava a andar depressa
pelos corredores da paróquia, que hoje não consigo me lembrar.
O fato era que, alcançando em algum lugar a minha mente que divagava
nem sei aonde, apareceu-me como que do nada o Padre Dionísio, com um lenço
na mão, gesticulando com a outra que eu o esperasse enquanto tossia com o
peito cheio sobre o lenço. Esse novo acesso começou desde que voltara da
última viagem que havia feito para um batismo em que fora convidado a
celebrar. Mas, apesar de todos os apelos, o padre não se resignava a ouvir-nos e a
guardar repouso quando o tempo estava nublado e frio. Fazia sempre questão de
sair altas horas da noite e com poucas roupas quentes. De qualquer forma, não
havia santo que o fizesse ficar quando estava determinado a sair.
Após conseguir controlar-se, ele finalmente respirou fundo e se dirigiu a
mim.
— Augusto, há duas mulheres na capela que querem falar com você.
Dona Irene e sua filha, Marília. — disse, aguardando minha reação, que foi mais
controlada do que imaginei que seria capaz. — Enfim, — retomou — fiquei
sabendo que esteve na casa delas no mesmo dia em que lá estive, coisa que não
tomei nota se não por essas senhoras, e agora, há cinco minutos. Não vou
perguntar por que você esteve lá, mas espero que saiba o que está fazendo.
Já era a segunda pessoa que me alertava isso, mas igualmente a Caio, o
padre não fazia ideia do quanto eu sabia o que estava fazendo, apenas não tinha
o menor controle.
— Bem, padre, eu estava indo para outro lugar agora. — A essa altura, eu
já não sabia mais para onde estava indo. — É só comigo que elas gostariam de
falar?
O padre me esquadrinhou, fazendo-me sentir invadido com aquele olhar,
como se perscrutasse a minha mente, a única coisa que eu ainda conseguia
esconder, ou ao menos pensava conseguir.
— Padre, — disse, ainda a me sondar — pelo que soube por minha
afilhada, após uma oração sua, a menina foi curada. Logo, é evidente que é só
com você que elas queiram falar.
Silenciei-me por um minuto e achei por bem ir logo falar com elas, se
não para resolver a questão, ao menos para que o padre parasse de escutar meus
pensamentos.
— Está bem, falarei com as senhoras.
Lançando um último olhar para mim, Dionísio então virou-se e adentrou
o corredor que levava à capela.
---
Quando o padre me chamou para ir ter com as senhoras, não imaginei
que fosse para conversarmos nós quatro juntos. Era a situação mais
desconcertante pela qual eu já passara.
Já havia passado cerca de quinze dias desde o evento que culminara na
rigorosa distância entre Marília e eu e, desde então, estive em retiro espiritual,
passando longas horas longe de todos, inclusive de minhas atividades. No
princípio, cheguei a receber algumas advertências, mas os padres acabaram por
aceitar minha reclusão, imaginando que eu estivesse padecendo de algum
problema de saúde, o que não era mentira.
Com tanto tempo de oração, diferente do tempo que passava horas a fio
na biblioteca apenas para preencher meu tempo e minha mente, passei a me
sentir um pouco mais forte em relação aos meus sentimentos por Marília, de
modo que, determinado o suficiente a não quebrar minha promessa diante do
Senhor, — promessa essa confirmada com sua permanente cura — tive forças
para encontrar-me com ela naquele momento.
Reunimo-nos, por fim, na pequena capela, as senhoras, o padre Dionísio
e eu. A posição, porém, que Dionísio assumira ao lado de Dona Irene obrigou-
me a postar-me ao lado de Marília, mas eu ainda estava resoluto.
— Padre Augusto! — anunciou Marília, radiante, tão saudável e
especialmente bela que fez meu corpo estremecer. Meu cuidado maior, porém,
era o de evitar ao máximo exteriorizar qualquer regozijo ao reencontrá-la, ainda
que apenas pela alegria de vê-la com saúde, pois isso talvez fosse algo
esclarecedor ao padre.
— Srta. Marília, como está? — saiu minha voz mais fria do que eu
pretendia.
— Estou ótima, graças a Deus e ao senhor! — respondeu, emocionada.
— Apenas graças a Deus, Srta.
Só Deus sabe a dor que senti não só ao dizer isso com tamanha apatia,
como, e principalmente, por ver minha pequena Marília perdendo seu sorriso.
— Soube que a Srta. Marília se curou tão logo o senhor esteve em sua
casa, seguido de mim, — interveio Dionísio — portanto acho válido dizer que
está sim bem graças ao senhor também, Padre Augusto.
— Pois para mim, um anjo pousou na minha casa naquele dia. —
interrompeu dona Irene, com os olhos marejados e uma feição exultante, tão
distante da última que eu vira. — Marília estava tão abatida e, oh céus,
desenganada pelo médico, e então eu ouvi, enquanto dormia, uma voz suave me
dizendo: “Ela viverá!”, e quando eu me levantei para vê-la, ela estava leve em
seu quarto, coradinha, e, meu Deus, curada! E foi tanto tempo depois que o
padre já tinha chegado que, a essa hora, com certeza ele já tinha ido embora. —
disse, olhando com descaso para mim.
Pela minha visão periférica, vi que Marília olhou para mim e,
instintivamente, também olhei para ela. A lembrança, porém, do que eu fizera
naquele dia constrangeu-me a ponto de eu virar a cabeça para o lado oposto mais
bruscamente do que eu deveria, chamando a atenção do padre.
— Com certeza, Irene, — disse, olhando ele firmemente para mim — a
essa hora ele já estava muito longe.
Fitando agora o chão, vi que Marília fazia o mesmo, e podia sentir seu
rosto corar como o meu. “Oh, Deus” — pensei — “ela deve estar se lembrando
agora da minha insanidade. Pobre menina, o que eu a fiz passar...”
Enquanto isso, a senhora voltava a tagarelar, dizendo que sentira também
um sopro em seu coração, e algo que dizia que toda a dor havia cessado, e que
agora acenderia uma vela todos os dias para o anjo que a salvara.
— Anjos não são dignos de louvor, senhora. — irrompi, levantando
imediatamente a cabeça ao comentário místico da mulher — “O meu louvor não
darei a outro”, diz o Senhor.
Senti o olhar do padre me fuzilar, mas o fogo que me queimava por
dentro — há tanto esquecido pelos sentimentos que me confundiam — era
incontrolável, e eu sentia que não era eu que falava.
— O que a senhora quer dizer, padre — respondeu pacientemente
Dionísio — é que ela quer demonstrar gratidão ao anjo que o Senhor enviou para
salvar a vida da Srta. Marília. Ou acaso não acredita que foi um anjo que ficou
até altas horas na casa delas?
O padre havia me pegado na curva, e eu senti a chama se apagando pela
culpa. O que eu poderia dizer? Eu sabia que fora eu quem dissera que Marília
viveria, mas como confessar o que houve naquela noite, naquele recinto? Aquilo
eu jamais confessaria a ninguém.
— Mas eu acredito que o padre Augusto tenha razão, mamãe, ainda que
tenha sido um anjo que intercedera por mim, o que eu estou certa que foi, —
completou Marília, olhando para mim — a glória disso é só de Deus, que nos dá
a vida, que nos tira da morte.
— Ora, sim, vocês sabem que foi isso o que eu quis dizer. — defendeu-se
Irene, alheia às indiretas lançadas a sua volta. — Apenas pretendo acender uma
vela a esse anjo protetor para que ele esteja sempre por perto.
O recinto ficou em silêncio por um longo e desconfortável minuto.
Marília e eu olhávamos para baixo, enquanto o Padre Dionísio olhava para mim
e Dona Irene, para todos.
Não sendo capaz de suportar mais aquela situação, suspirei e falei:
— Bem, folgo em saber que passa bem, Srta., e espero que Senhor a
abençoe e a senhora sua mãe poderosamente. Agora, se me dão licença, tenho
um compromisso, e terei de deixá-las aqui na companhia do Padre Dionísio, que
sei que foi um verdadeiro intercessor pela sua vida, Srta.
Marília olhava-me com pesar, naquele único e ingrato momento que
permiti que nossos olhos se cruzassem. Dona Irene apenas aquiesceu, mas
Dionísio não deixou barato.
— Compromisso, padre? Que eu saiba o frei não havia designado
nenhum compromisso para o senhor a essa hora.
— Não, senhor, é um compromisso particular. Com sua licença,
senhoras, padre. — despedi-me acenando com a cabeça para cada um,
respectivamente.
Sei que o padre não se dera por satisfeito, mas não havia mais nada que
pudesse fazer. Não na frente daquelas senhoras.
Fugindo da Verdade
Não fora nada fácil vencer a lembrança da frieza daquele dia, mas eu tive
as minhas forças renovadas por saber que o pior já havia passado — ou, pelo
menos, na crença de que já tivesse passado. Imaginei, inocentemente, que,
depois daquele meu comportamento hostil com Marília, ela jamais me procuraria
novamente, ao menos não a mim em particular. Voltaria, sim, a frequentar as
missas, e poderíamos ocasionalmente nos encontrar em um mercado, na rua, mas
eu tinha por certo que ela não mais me dirigiria a palavra.
Eu mentiria se dissesse que essa perspectiva me trazia alguma paz e que
não sentia sua falta a cada dia, que não queria procurá-la, dizer que a tratei
daquela forma para esquecer aquele incidente em seu quarto, mas eu me
fortalecia na consciência de que, agora, meu compromisso de esquecê-la era com
o Senhor.
Certa vez, até me assustei quando, inadvertido, passei a ler o livro de
Provérbios de Salomão e detive-me em um capítulo, quase que em sua
totalidade, dedicado à tentação de um jovem em relação a uma mulher adúltera.
Era evidente que eu jamais compararia Marília a uma meretriz, longe de mim tal
sacrilégio, porém vi-me de modo semelhante àquele jovem, que “imediatamente
a seguiu como o boi levado ao matadouro, ou como o cervo que vai cair no laço
até que uma flecha lhe atravesse o fígado, ou como o pássaro que salta para
dentro do alçapão, sem saber que isso lhe custará a vida”. E o conselho do sábio
servo do Senhor era para mim: “Não deixe que o seu coração se volte para os
caminhos dela, nem se perca em tais veredas.”
Logo, foi com esse pensamento que, um dia, voltando eu de alguma
visita, ouvi sua doce voz me chamando de longe. Com todo o esforço, impedi-
me de olhar para trás ou diminuir o ritmo dos meus passos. Ela, porém, mais
perto do que eu imaginava, alcançou-me bem na porta da igreja.
Era hora do almoço, e não havia muito movimento na rua, muito menos
na igreja. Algumas crianças corriam, e algumas pessoas apareciam na porta de
seus comércios para pendurar a surrada placa: “Horário de almoço, volto logo”.
Ela estava ofegante quando se postou diante de mim, e a angústia que
senti por tratá-la daquela forma quase me desarmou.
— Padre, eu o estava chamando, queria falar com o senhor. — ela disse,
entorpecendo-me com seu doce hálito sobre mim, por sua respiração ofegante.
— Preciso entrar agora, Srta., outro dia nos falamos. — respondi,
desesperado para sair de sua presença.
Eu já me virava para a porta quando ela segurou no meu braço.
— Por favor, padre, é muito importante, eu prometo não tomar muito o
seu tempo.
Eu suspirei. Apesar da minha luta, não podia me esquecer do meu papel
de padre. Afinal, ela não via o Augusto apaixonado por ela, via apenas o padre
estranho que agia abobadamente perto dela, aparecia em sua casa sem mais nem
menos e depois a ignorava como um insano. Isso sem contar o incidente que me
constrangia tanto sempre que me lembrava e muito mais quando a via.
— Certo, pode falar. — respondi, asperamente.
Era evidente sua indignação pelo jeito como eu a tratara.
— Mas aqui? Não podemos conversar dentro da igreja?
— Não. — respondi abruptamente, desejando apunhalar-me.
— Mas eu precisava também me confessar, padre. — sua voz era uma
súplica.
— Então, volte mais tarde, que o padre Estevão estará por aqui. — Eu já
me virava novamente.
— Mas eu preciso me confessar com o senhor! — respondeu, teimosa,
encurralando-me cada vez mais.
— Sinto muito, mas não estarei no confessionário hoje, tenho alguns
compromissos fora da igreja, por isso apenas retornei para almoçar e já estarei de
saída em seguida. — disse, tomando aquelas decisões no momento em que
falava. — Com licença, Srta.!
— Certo, se não quer me ouvir no confessionário, direi aqui mesmo! —
disse alto Marília, chamando a atenção de algumas pessoas. — Eu pequei padre,
porque tive alucinações com uma pessoa destinada ao sacerdócio!
Cheguei a tombar literalmente quando senti meu mundo cair. Várias
pessoas nos olhavam surpresas, mas logo abaixavam a vista, percebendo que eu
as olhava assustado. Aquilo simplesmente não podia estar acontecendo.
— Sinto muito, padre, — continuou Marília, agora em um tom mais
baixo quando me virei de volta para ela — mas não posso mais conviver com
esse pecado, isso não sai da minha mente, eu preciso confessá-lo de uma vez
para continuar minha vida em paz!
Corri meus olhos para baixo, sem saber o que dizer. Então ela achava que
tudo não passava de uma alucinação? Isso não era possível, ela estava consciente
quando tudo aconteceu. Minha sensatez me dizia para absolvê-la de uma vez e
voltar para a igreja, mas a curiosidade foi muito mais forte.
— Alucinações? — perguntei, já desarmado das minhas tentativas de
tratá-la com desprezo.
— Sim. — respondeu, envergonhada, esfregando as mãos nos braços
apesar do calor. — Acho que talvez possa ter sido efeito de algum medicamento,
não sei, mas quando o senhor esteve lá na minha casa, no meu quarto, eu...
E não continuou. Suas mãos tremiam, e eu podia sentir seu
constrangimento. Pobre menina, pobre menina! Aquilo não era justo, o pecado
não era dela, era meu! Ela estava se humilhando daquela forma por confiar em
mim para confessar esse pecado, crendo dentro de si que fora ela quem criara em
sua mente aquela insensatez que eu de fato cometera. Mas eu não podia deixar
que ela pagasse por isso, nem se sentisse mais culpada por algo que ela nada
compactuara.
Aproximando-me, então, fiz uma das coisas mais difíceis que eu já fizera
na vida, e que, não fosse a compaixão por aquela que eu tanto amava, jamais
teria tido coragem.
— A Srta. não teve nenhuma alucinação... Marília. — disse seu nome,
enquanto ela levantava confusa a sua cabeça para mim. — Eu realmente fiz o
que pensou ser apenas um sonho. Por isso, não se penitencie por causa disso,
pois foi culpa minha e só minha.
Eu não parei de falar nesse momento, mas faço uma pausa aqui para
descrever nós dois e a cena que estávamos compondo. Marília estava tão
chocada que não moveu um músculo quando lhe dei a notícia, ao contrário,
soltou os músculos da mandíbula e deixou sua boca cair. Mal se ouvia sua
respiração e eu, honestamente, não queria nem imaginar a ideia horripilante que
ela devia fazer de mim naquele instante. Quanto a mim, eu estava a poucos
centímetros de seu rosto, tal o medo de que alguém na rua pudesse nos escutar.
Poucos, de fato, nos circundavam, mas aquilo seria o fim de toda a minha
carreira eclesiástica e da minha vida se caísse nos ouvidos de algum padre.
Quem visse essa cena, porém, viria apenas uma bela moça, surpresa, na calçada
da igreja, com sua saia branca se movendo com o vento no ritmo dos seus
cabelos cor de barro, e um padre, abatido, digno talvez de piedade para quem
desconhecesse sua história, com uma bíblia segurada firmemente ao lado do
corpo, no primeiro degrau da igreja, inclinado para a bela senhorita. Estes
éramos nós.
— Sei que nunca me perdoará por isso, — prossegui — mas digo que
farei todo o possível e o impossível para não atravessar mais o seu caminho, e
rezarei todos os dias pela Srta. para que não seja considerada pouco
misericordiosa pelo Senhor por não perdoar um padre indigno como eu.
E então virei-me e, finalmente, adentrei a igreja, certo de que nada no
mundo seria capaz de me deter.
---
Eu estava saindo da biblioteca com dois volumes grandes na mão,
quando aquilo que eu mais temia aconteceu.
Cedo de manhã naquele sábado, o frei havia me chamado para ir à
pescaria com ele em um lago nas redondezas. Embora sua feição fosse séria e
resoluta na maior parte do tempo, o Frei Alceu tinha uma personalidade até que
bem divertida em seus momentos de lazer.
Não era sempre que saímos da paróquia sem ser por motivos
eclesiásticos, mas naquela manhã, com o tempo seco e um sol fraco, o frei
decidiu chamar alguns dos padres mais jovens para acompanhá-lo — pois os
mais velhos normalmente declinavam seu convite, alegando ter compromissos
inadiáveis.
Era evidente que eu não estava nem um pouco disposto a sair naquele
dia, com tantas lembranças torturantes a me importunar, mas minha infelicidade
era tamanha que eu buscaria qualquer coisa que refrigerasse um pouco o meu
espírito.
O passeio em nada fora uma má ideia. Devido à prática, o frei pescava
muito mais peixes do que todos nós juntos. Cheguei até a me divertir um pouco
com a cena pitoresca de Samuel arregaçando a batina na beira do lago, tentando
retirar um peixe em sua vara, cuja linha havia se emaranhado de tal forma que já
não era mais possível girar o gatilho. Eu mesmo cheguei a pescar alguns, mas
nunca fora um deleite para mim ver um ser se debatendo sobre o solo,
agonizando até a morte, coisa absolutamente oposta a ideia do Frei Alceu, que
via a pesca como uma prática absolutamente saudável, senão até cristã:
— Quantas passagens na bíblia não relatam essa atividade, hã? —
perguntava, enquanto eu olhava com aflição a vida se esvaindo do pobre peixe.
— Pedro e seus companheiros pescadores voltaram para o cais sem peixe algum,
então o Senhor Jesus entrou no barco e eles quase viraram a embarcação com
tantos peixes apanhados! E quanto ao peixe que o Senhor pediu que pescassem,
onde encontraram a moeda para pagar seus impostos?
Ele também citou muitos outros exemplos, dos quais agora não me
recordo, mas que, por fim, me convenceram a deixar de lado minhas emoções,
coisa que já estava ficando bom.
Ao término, recolhemos as varas, as caixas com os materiais de pesca e
as cestas com os peixes, e fomos até a paróquia. Embora tenha sido o frei a pegar
mais peixes, apenas nós os carregamos (o que também me fez compreender por
que insistira tanto para que fôssemos com ele). No caminho, ele dera uma
missão para nós para depois do almoço.
— Sei que já não são mais seminaristas, mas gostaria que pesquisassem
nas Escrituras as passagens que citei sobre a pesca e o respaldo bíblico que
temos para usar da criação para nos alimentar. Escrevam também algo sobre os
alimentos puros e impuros. É interessante ter essa informação também.
Ergui a cabeça, mãos esbranquiçadas pelo peso do cesto de peixes que eu
carregava com Estevão, pronto para comentar acerca dos alimentos impuros nos
dias de hoje e o livramento que o Senhor havia dado dessa lei, manifesto em uma
carta paulina, dando-nos a liberdade de comermos tudo quanto dermos graças.
Mas, talvez, esse fosse o propósito do frei, pegar-nos nesse erro, por isso nada
comentei para não estragar sua didática.
Pela ânsia em levantar esse debate sobre a não mais impureza dos
alimentos, caso algum padre não houvesse pensado nessa nova lei, tão logo
terminei meu almoço, fui direto à biblioteca buscar referências e comentários
acerca desse assunto. Tal foi minha surpresa quando vi que não havia obras que
pudessem me auxiliar em como colocar essa questão. Decepcionado, peguei uma
versão bíblica mais antiga comentada, que eu sempre usara na época de
seminário, deixando minhas marcas de estudante nela, e mais um livro que se
intitulava “Pescador de homens”, que talvez me desse algum paralelo a fazer
com o tema “pescaria”.
Subindo as escadas com os dois pesados livros nas mãos, pensava em
como introduzir o assunto da impureza, falando acerca da Nova Lei, quando
Padre Dionísio atravessou meu caminho.
Seu semblante era como alguém que encontra aquilo ou aquele que
procurava e, honestamente, aquele não me parecia em nada um encontro
amistoso. Prova disso foi quando ele estreitou seus olhos ao se aproximar e, em
seguida, voltou-se e fechou a porta da sala de leitura do pavimento superior.
Não havia ninguém naquela sala, e comecei a entrar em pânico ao pensar
que meus colegas demorariam ainda um bom tempo até vir ali, isso caso se
dessem ao trabalho de vir para fundamentar sua pesquisa.
Há um antigo ditado que diz: “Quem não deve, não teme.” Porém, se o
inverso também é verdadeiro, era certo que eu tinha muito o que temer.
— Padre Augusto... — principiou-se, após caminhar um pouco — era
com o senhor mesmo que eu gostaria de falar.
Eu conhecia de longe o tom disciplinador de Dionísio, e aquele “senhor”
certamente era uma grande evidência daquilo.
— Er... Eu estava fazendo uma pesquisa que o Frei Alceu nos sugeriu, e
...
— E não tem um minuto para conversar com seu velho mentor?
Minha respiração começava a denunciar meu nervosismo, e a percepção
disso pelo padre só o fez seguir em frente com a sua pequena tortura.
— Está nervoso, padre? Há algum motivo para você querer se esquivar
de uma conversa franca comigo? — perguntou, com seu tom irônico no auge,
quase a se divertir com a minha angústia.
— Não senhor, quer dizer... — às vezes era quase impossível ser cristão o
tempo todo — não sei do que está falando.
— Não sabe? — indagou Dionísio, como se me perguntasse se não sei
quanto são dois e dois. — Não há nada que lhe venha à mente em uma hora
dessas?
Aquilo estava beirando o insuportável, e eu sabia que, desta vez, não
haveria muito o que fazer para escapar da verdade.
— Quer que eu seja mais claro então, Augusto? Pois então serei, não sou
um homem de rodeios. Minha afilhada, a Srta. Marília, filha da senhora Irene,
não te faz sugerir por que estamos tendo essa conversa?
Meu coração era um instrumento de percussão dentro de mim, e se eu
achava que tudo o que Marília havia feito nele o tinha destruído por completo,
eu estava ligeiramente equivocado.
Para a boca, faltou água que a saciasse, para o pulmão, faltou muito ar e,
para a mente, uma boa resposta.
— Vamos, o gato comeu a sua língua? Responda, Augusto, qual a sua
relação com a minha afilhada? Vocês estão tendo algum caso? — despejou o
padre, falando em tom alto e evidenciando sua ira em seu rosto, orelhas e
pescoço intensamente vermelhos.
— Não, não estamos tendo caso algum, padre! — respondi,
imediatamente. — A Srta. Marília é inocente em tudo, não fez nada de errado!
— Oh, veja só, ela não fez nada. Então, o que você fez, padre? Será que
pode me explicar? — perguntou, em uma falsa paciência.
Meus olhos corriam, e tudo o que eu queria era que minhas pernas
tivessem o mesmo privilégio. Em tão pouco tempo eu havia sentido tantas vezes
meu mundo cair, que acreditava que, um dia, não teria mais lugar seguro para
pisar.
— Por favor, padre, — supliquei, entregando meu desespero no meu tom
de voz — Deus já tem me penitenciado o suficiente, não me obrigue a falar...
— Acha que o Senhor já o tem punido o suficiente? — gritou, fazendo o
chão vibrar. Tudo o que eu torcia agora era que ninguém viesse até lá. — Pois eu
digo que não, porque você ainda está aqui entre nós, como se nada tivesse
acontecido, participando da eucaristia e de todas as atividades da vida
eclesiástica dessa paróquia, fazendo-se ainda passar por bom moço, mas
destruindo a santidade da Igreja!
Eu não achava que ainda haveria uma solução para mim depois daquilo,
nem que essa dor passaria um dia. Era como uma pessoa que cai de um lugar
alto e, não sentindo mais as pernas, mesmo não tentando se levantar, tem a
certeza de que jamais voltará a andar. Eu só tinha, portanto, uma coisa a fazer, na
tentativa de salvar um pouco que fosse da minha vontade de viver.
— Padre, — disse, ajoelhando-me à sua frente, com os livros agora
jogados no chão e lágrimas brotando dos olhos — por favor, me perdoe, porque
eu pequei.
— Acha que o seu pecado merece perdão, Augusto? — perguntou-me o
padre com rude frieza, olhando-me de cima e me fazendo sentir ainda menor. —
Com seus lábios, você fez um voto diante de Deus e o quebrou. O que vale hoje
a sua palavra?
Eu chorava agora convulsivamente, e minha humilhação me fez baixar a
fronte até a altura do peito, simplesmente pela anatomia do pescoço não permitir
que eu me afundasse mais.
— Vou ter que sair da igreja? — perguntei, quase num sussurro, achando
que talvez ele não tivesse me ouvido, o que me fez levantar um pouco a cabeça
para falar com mais clareza, quando ele me respondeu.
— Eu não vou mandar você embora, Augusto, embora eu tivesse essa
autoridade. Mas se tiver dignidade, fará isso por si só.
E começou a caminhar para a porta. Detendo-se, porém, no último
instante, recuou e voltou-se a postar a minha frente.
— Eu estou muito decepcionado com você, Augusto. — disse, desta vez
mais brandamente, mas declaradamente ainda irado. — Cuidei de você como um
filho, ensinei-lhe tudo o que sabia. Fiz planos para você e acreditei que chegaria
aonde nenhum padre antes chegara, que alcançaria lugares jamais alcançados. E
hoje, vendo sua queda, penso que não tenho mais discernimento, pois quem eu
confiara me desapontou.
— Não foi culpa sua, padre. — disse, ainda sem coragem de erguer a
cabeça. — O pecado foi meu e o cometi por obedecer à carne e não ao Espírito.
Mas eu poderia ser quem o senhor queria que eu fosse, e o faria em gratidão ao
senhor. Por favor, perdoe-me por desapontá-lo e por desperdiçar o seu tempo e o
seu esforço em alguém que, por fim, não terá futuro.
Ainda não olhava para ele, mas o ouvi suspirar dolorosamente e a
desarmar-se ao soltar seus ombros rígidos.
— Não precisa sair correndo daqui. Você ainda tem mais algumas
atividades para concluir, ainda que não seja mais digno delas. Vou absolvê-lo dos
seus pecados para que possa permanecer aqui por mais alguns dias para ficar no
confessionário, pois, nesta semana, todos estarão ocupados com os preparativos
do Natal. E como você não ficará mais longe de sua casa, acho que não verá
problemas em não retornar para os seus familiares nesse final de ano, não é?
Uma tristeza inundou-me de modo que preferia não ter perguntado meu
destino. A paróquia era tudo na minha vida, tudo o que eu sabia, conhecia, tudo
pelo que eu vivia e, de repente, não eu seria tirado dela, mas ela de mim.
Ele não esperou que eu respondesse. Simplesmente saiu do recinto e
deixou-me ali, prostrado, em companhia apenas da minha dor e de dois livros de
pescaria.
A Penitência
Eu não tinha mais motivos para sorrir e, honestamente, não encontrava
um bom motivo nem mesmo para viver. Era como se eu tivesse passado anos
construindo um belo castelo de areia, cheio de detalhes, portas, janelas,
bandeiras, pilares e, enquanto o contemplava, satisfeito, a única recompensa por
todo esse meu esforço, alguém viesse e pisasse em cima de cada torre,
esmigalhando até a última forma, de modo que eu já nem mais fosse capaz de
me lembrar de como era a sua estrutura.
Eu tinha tudo: a realização de um sonho, a satisfação por achar-me
alguém útil para o Reino do Senhor, a honra de ser chamado padre e a alegria de
servir. E agora eu não tinha nada. Tinha pecado contra o Senhor de forma
hedionda, tinha manchado a reputação da mulher que eu amava, embora em nada
a ela devesse ser atribuído culpa e, agora, não tinha mais o meu tão amado
ministério. Voltar para casa seria uma vergonha, e eu ainda nem teria como me
sustentar, pois nada mais sabia que rezar uma missa. De fato, eu não tinha mais
motivo algum para seguir adiante.
A ira do Padre Dionísio, aos poucos, foi se aplacando, e ele já não me
olhava com tanto desprezo quando me via. Sempre até que eu começava a
preparar minhas malas para sair da paróquia, ele me barrava, dizendo ter ainda
muitas atividades para eu cumprir, e que eu não precisava ter pressa para partir.
O que ele não sabia era que minha vida teria acabado assim que eu pusesse os
pés para fora daquela paróquia, com uma roupa comum e uma mala em minhas
mãos. Por isso, sempre o agradecia e louvava a Deus por mais aqueles dias ali.
As festas de fim de ano finalmente chegaram ao fim, o que me enchia de
tristeza, pois isso indicava que meu tempo tinha acabado. Em meu interior, eu já
podia sentir a perda.
Eu estava no confessionário naquela tarde, sem ânimo sequer para sair de
lá quando o último fiel lá estivera, há cerca de quarenta minutos. Revivi em
minha mente todos os momentos vividos naquele lugar, os ensinamentos, as
provas, as brincadeiras, enfim. E com meus olhos fechados, podia ver meus mais
altos sonhos se dissolvendo como uma neblina atingida por um forte vento.
Não vou dizer que a vida fora justa comigo naquele momento, pois acho
que mesmo com tanto pecado em minhas costas, sofri mais do que era capaz.
Não bastasse a dor daquelas lembranças, a voz dela inundou meu pequeno
recinto, mas não tive forças sequer para desejar sair de lá. Suspirei ruidosamente
e senti, pensando ser pela última vez, aquele cheiro de lavanda que me
perfumava e manchava a alma.
— Padre, por favor, me perdoe, porque pequei. — disse Marília, olhando
tão fixamente para mim, que era como se aquelas grades não existissem, e tão
dentro dos meus olhos, como se estes não se desviassem para as minhas mãos,
mas tão somente para os dela.
— Diga, minha filha, o Senhor a escuta. — respondi, com dor nos olhos
e na garganta por querer chorar, mas anestesiado demais na dor para ser capaz de
tal.
— Pequei e ainda peco, porque... — Ela fez uma pausa, talvez exigindo
que meus olhos de fato encontrassem os seus, coisa que ainda não ousava fazer
— porque estou apaixonada por alguém que não devia.
Pode parecer pretensão minha, mas em momento algum eu pensei que ela
se referia a algum homem casado, ou a algum parente seu, ou mesmo a algum
outro padre. Era certo para mim que ela se referia a minha pessoa.
Pode também parecer estranho que um homem, ainda mais um jovem, ao
ouvir dos lábios de sua amada que esta o ama, ainda que não devendo este se
relacionar com ela, não se regozije em seu interior por tal declaração.
Mas a verdade foi que ouvir aquilo foi a pior dor que jamais havia
sentido. Era uma dor que chegava a sufocar o peito e, se antes eu não tinha mais
motivos para viver, parecia-me agora que eu encontrara um bom motivo para
morrer. Era óbvio que, como cristão que era, jamais intentaria contra a minha
vida, mas eu me encontrava em estado depressivo tal que nem meus instintos
seriam capazes de me fazer lutar pela vida se, por acaso, esta fosse posta em
risco.
A dor que eu sentia agora era maior porque eu sabia que Marília passaria
a sofrer também. O fato de eu ser excomungado não me daria o direito de me
casar, até porque eu seria o mais indigno dos homens até para a mais infame
mulher. Para Maríli, então, era melhor que se casasse com um condenado à
morte.
Não sei quanto tempo pensei nessas coisas com ela ali do lado, mas não
acredito ter sido por muito tempo, pois ela ainda olhava muito fixamente para
mim quando prosseguiu.
— Padre, eu estou apaixonada por um sacerdote e, por mais que eu tente,
não sou capaz de me livrar desse sentimento proibido.
Só então ela abaixou sua cabeça, e eu vi que suas mãos tremiam.
Tudo eu faria naquele instante para tirá-la daquela situação, e daria a vida
para tirar dela esse sentimento por mim. Ela fora levada a desenvolver esse amor
pela minha inconsequente insanidade e, talvez, se vira no direito de permitir essa
loucura por pensar que até um padre o fizera.
Mas, como se me ouvisse confabular, — coisa que passei a acreditar com
o tempo que, de fato, era capaz de o fazer, tantas foram as circunstâncias em que
adivinhava meus pensamentos — Marília novamente interrompeu o silêncio.
— Por favor, padre, sei que não pode retirar de mim esse sentimento, mas
preciso saber qual a penitência para eu ser absolvida de tal pecado. De... amar
quem eu não devia.
Virando-me, então, em sua direção e permitindo que nossos olhares desta
vez se encontrassem, minha cabeça ainda estava apoiada na parede do
confessionário, quando lhe disse apenas:
— Se descobrir, conte-me também, que nos penitenciaremos juntos.

---

Uma boa notícia, em meio a tantas tribulações, trouxe um pouco de vida


ao meu condenado coração.
O ano novo chegara e, quando pensei que fosse, enfim, o término de
tudo, o Padre Dionísio e eu tivemos uma breve conversa informal, mas que me
devolvera um pouco do ânimo de viver.
Eu entendia a situação em que o padre se encontrava, pois ele defendia a
santidade da Igreja e, apesar do meu inestimável desejo de ficar, eu concordava
que, para o bem de todos, eu devia partir. O padre, porém, desenvolvera
verdadeira feição paternal por mim ao longo dessa última década, e seu bom
coração se sobrepusera à sua justiça.
Nada fora declarado oficialmente, ele não chegou um belo dia e disse que
eu não precisava mais ir. O que o padre disse, na realidade, fora mais ou menos
isto:
— Padre Augusto, sei que está verdadeiramente arrependido do seu
pecado, e o Senhor nos ensina a sermos sempre misericordiosos para recebermos
misericórdia. Não vou dizer que seu ministério quanto pregador seja muito
promissor, por isso até que há tempos você não prepara um sermão, mas eu devo
admitir que você sempre foi um aluno brilhante, e a sua compaixão com os
menos desfavorecidos é algo que não se pode desprezar.
Eu ouvia aquelas palavras, esperando que concluíssem em algo a meu
favor, mas o padre então, apenas suspirou e disse:
— Dê o seu melhor, rapaz.
E essa fora a minha boa notícia.
Não vou dizer que tudo voltara a ser como antes e eu me regozijei
escandalosamente. Era um alento, sim, e eu podia novamente vislumbrar um
futuro, quando antes eu apenas via uma densa neblina a minha frente, sentindo
que cada vez mais me aproximava de um penhasco.
Mas minha tristeza maior ainda se dava por Marília. Eu ainda sofria
muito, evidentemente, com a paixão que teimava arder em meu peito, mas
lamentava ainda mais a situação dela.
Desde que entregara esse amor doentio ao Senhor no dia em que Ele a
curara, eu já era capaz de me conter, ao menos, para não cometer outra estupidez
em relação a ela. Mas sofria por pensar no que a confusão da minha vida causara
em sua mente. Talvez, ela nunca tivesse estado antes com um homem e, céus,
quem sabe, eu fora o primeiro a beijá-la. Logo, era válido que ela desenvolvesse
sentimentos por mim, não, porém, por achar-me a pessoa certa para ela — o que
evidentemente não era — mas por descobrir coisas em si comigo — coisa que eu
igualmente fizera com ela.
E, em meio a essa culpa e melancolia, eu fazia o melhor que podia na
paróquia, mas ciente de que não era o suficiente. Esse estado de espírito me
consumia, e eu apenas aguardava a hora em que iria sucumbir.
Foi, porém, com o maior choque — uso essa expressão por não conseguir
pensar em algo mais forte — que Marília voltou a minha vida, e tirou o resto de
sensatez que ainda podia se encontrar e mim. A única coisa que ainda me detinha
era a minha promessa, coisa que se eu não tivesse feito, teria me levado ao maior
sacrilégio que eu poderia cometer.
Era ainda muito cedo de manhã, quando fui incumbido de comprar
algumas velas em uma loja, no outro quarteirão. O pedido era muito específico,
por isso eu sabia exatamente aonde ir e o que procurar.
Chegando à loja, porém, o que eu procurara estava em falta, fazendo-me
caminhar lentamente pela rua, pensando se acaso haveria outro lugar na cidade
para conseguir tal produto.
Eu estava já nos fundos da igreja, onde tudo aconteceu. Como a loja em
questão era na rua detrás, convinha que atravessássemos o pátio da igreja, ao
invés de contornarmos toda a rua. E, como o pátio era um local público, era
comum que as pessoas passassem por lá.
Naquele dia, porém, uma garoa grossa recolhera para dentro de casa as
crianças da vizinhança, deixando o pátio completamente vazio.
Apesar da eminente chuva de verão, eu ainda caminhava devagar, com o
pensamento distante, quando vi que ela vinha em minha direção.
Acredite se quiser, mas em minha mente tudo o que eu fazia era traçar
algum plano para fugir do eminente encontro, o que logo percebi ser algo
impossível. Ela já havia percebido que eu a tinha visto e, sair correndo, apesar da
minha vontade, não seria nada apropriado. Eu continuei, então, a andar devagar,
procurando trazer ritmo ao meu coração e um pouco de lucidez à minha mente.
Ela carregava um pequeno pacote do mercado em uma de suas mãos, e
usava o mesmo esquema de atravessar o pátio da igreja para cortar caminho.
Parei por um instante para aguardar que ela se aproximasse, enquanto
confabulava com a minha mente que apenas a cumprimentaria, daria a bênção e
entraria na igreja. O que eu não sabia eram as intenções dela.
Era evidente que ela não planejara aquele nosso encontro, até porque não
era comum eu sair da paróquia àquela hora. Além disso, ao me ver, sorriu de um
modo diferente, como se pretendesse fazer algo no futuro, mas vendo ocasião,
antecipara seus planos.
— Bom dia, Reverendo. — cumprimentou-me, formalmente.
— Bom dia, Srta. Marília. — respondi no mesmo tom.
— Tenho algo a lhe dizer e não vou perguntar se o senhor terá tempo ou
interesse em me ouvir.
Tanto para a época como nos dias de hoje, era extremamente reprovável
que algum fiel se dirigisse a qualquer sacerdote nesses termos. Seria um
verdadeiro sacrilégio se ela se atrevesse a, por exemplo, falar assim com o Padre
Dionísio, ou mesmo com Caio ou Samuel.
Fato era que nós dois sabíamos que, apesar da formalidade do tom e do
“senhor”, naquele momento, quem conversava eram Augusto e Marília.
Eu poderia ter feito como da outra vez, tentado me esquivar de qualquer
tipo de conversa, mas eu precisava terminar com aquela tortura e permitir que
prosseguíssemos nossa vida sem esse obstáculo que nos unia.
— Estou ouvindo. — respondi, deixando de lado a frieza desta vez.
Ela, provavelmente, não esperava que eu assentisse, e posso acreditar até
que tenha se constrangido com isso, pois era como atirar pedras em alguém
desarmado.
Após se recompor, porém, Marília despejou de uma vez tudo o que trazia
consigo.
— Não vou dizer que é certo o que venho sentindo, nem tentar me apoiar
em algo para me justificar. Isso é um pecado e eu sei disso. Apenas não posso
entender por que o Senhor colocaria algo tão forte dentro de mim se isto não
fosse permitido.
— Nem sempre é Deus quem nos coloca um sentimento. O ódio, a
inveja...
— Mas e o amor, Augusto? Vem da onde? Como pode esse sentimento
ser errado?
— Homens casados também podem se apaixonar por outra mulher, e
quem pode dizer que não é amor?
— Mas você não é casado! Quer dizer, sim, tem um compromisso com a
Igreja, mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Não pode cumprir seu
ministério, dar seus sermões e amar uma mulher ao mesmo tempo?
Eu me calei por um momento. Como eu podia contradizer o que eu
mesmo concordava?
Ela suspirou. Era evidente que estava perturbada.
— Sinto muito, Srta. Por favor, não fique assim ... — eu disse,
consternado.
Fora uma tolice, eu sei, mas eu apenas queria confortá-la.
Ela olhou-me dentro dos olhos, estreitando os seus em um misto de ira e
desespero, a ponto de começar a me assustar.
— Não precisa sentir pena de mim, padre! — explodiu — Não estou
sofrendo! Eu sei o que é sofrer. Sabe o que é sofrer? É estar entrevada em uma
cama achando que não verá o dia de amanhã! É escutar as vozes das pessoas
que você ama, é olhar para as coisas que você gosta, pensando: será que esta será
a última vez que verei isso? É ter medo da morte e medo da vida que resta ao
mesmo tempo. Isso é sofrer.
Eu a ouvia, sentindo-me diminuído a cada palavra.
— O que eu estou sentindo — prosseguiu, agora angustiada — é a coisa
mais grandiosa e bonita que já senti antes, mas tem se tornado um pesadelo
porque eu sei que é errado, que não pode ser assim. Mas, se quer saber de uma
coisa, nunca me senti tão perto de Deus antes, porque quando estou com você eu
me sinto com Ele também. Mesmo quando sei que eu posso estar, e certamente
estou, sentindo tudo isso sozinha.
A sensatez dava um golpe de misericórdia em minha mente, gritando
para que eu encerrasse ali aquela conversa e fosse embora, antes que o padre
desse por minha falta. Mas, ah, sinceramente, qual era a probabilidade de eu não
dizer a ela tudo o que queria ter dito todo esse tempo?
— Francamente, Srta., não consigo imaginar como pode passar pela sua
cabeça que passa por tal provação sozinha! Afinal, quem foi que a beijou?
— Isso não quer dizer nada, você é um padre, pode ter aproveitado a
oportunidade, que podia ser única na sua vida, e se aproveitado de mim. Depois
de morta, ninguém jamais saberia.
Minha expressão deve ter sido de extremo horror, porque no instante
seguinte Marília recuava, principiando querer pedir perdão.
— Sim, — finalmente disse — não tenha dúvidas que me aproveitei de
você e que pensei mesmo que essa seria a única oportunidade que eu teria.
Oportunidade de saber o que é satisfazer o desejo de um coração que há tanto
pedia por um pouco de você e que nunca era satisfeito. Você acha que apenas
você reviveu, mas um coração quase morto foi despertado no momento em que
vi seus olhos abertos naquele leito. Eu tive tudo o que quis e perdi tudo o que eu
tinha naquela hora. Por isso, não diga que tem passado por isso sozinha, porque
antes que você sequer pensasse em mim, eu já era perdidamente apaixonado por
você.
Desta vez, foi a minha vez de emudecê-la, mas eu estava exaltado demais
e humilhado demais no meu pecado para me gabar.
Ela, talvez, planejasse dizer algo, mas nós dois já havíamos dito mais do
que o suficiente, por isso, decidi sucumbir à razão, ainda que tarde demais, e
deixá-la ali.
— Eu permiti que tivéssemos essa conversa para acabar de uma vez com
essa história, que jamais deveria ter começado. É óbvio que você não teve culpa
de nada e que logo amará um outro alguém e poderá seguir a sua vida, mas,
como a mim só cabe juntar os cacos e tentar seguir o que restou da minha vida,
vou deixá-la aqui agora e convém que não nos vejamos mais.
Era certo para mim que aquele terrível diálogo terminaria ali, ela se
silenciaria para sempre e eu passaria o resto dos meus dias confinado em meu
quarto, aguardando apenas a morte, — o segundo, de fato, ocorreu — mas tal foi
minha surpresa quando ela segurou firmemente em meu braço e me fez retornar,
que quase tombei, como da outra vez.
— Muito bem, se é assim que tem que ser, assim será, mas o senhor
roubou algo de mim, e vou querer de volta, agora.
Minhas sobrancelhas ainda estavam arqueadas na dúvida de que pertence
seu estaria em meu poder, quando sem que eu pudesse deliberar o que estava
acontecendo, sua mão estava fortemente agarradas à minha batina, suas compras
comprimindo meu peito e seus lábios de perdição da alma e salvação do corpo
colados aos meus com toda a avidez.
Seu beijo fora tão rápido, que só senti meu coração palpitar quando tudo
já havia acabado, mas tão mais poderoso do que o que eu dera, por sua condição
física agora e pelo ciente desejo mútuo que, mesmo com a situação
desconcertante e, apesar dos nossos planos em comum de nos virarmos e
seguirmos ela a sua vida e eu a minha morte, ambos ficamos por alguns
segundos estáticos em frente ao outro, sua mão ainda presa em minha roupa,
respirações aceleradas, até que então ela me soltou em um eterno abismo,
enquanto eu a via virar-se e andar depressa pela rua.
O Abismo
A grande depressão a qual eu me referia que passaria após o meu último
encontro com Marília começara antes mesmo que ela desaparecesse da minha
vista e durara até mais de um mês depois. Por um bom tempo, fiquei acamado,
fazendo minhas refeições no quarto, levantando-me apenas para assistir às
missas e ir ao banheiro. Ao contrário, porém, de se preocupar com meu estado,
Padre Dionísio evidenciava estar aliviado com a situação. A seu ver, eu agora
sim colocava uma pedra em meu passado pecaminoso e recomeçava uma nova
vida, ainda que isso custasse minha saúde.
Apenas uma ou duas vezes comparecera em meu aposento, vindo
acompanhado de um médico, apenas para atestar que eu não tinha uma virose
com potencial para contaminar a todos na paróquia. O doutor sempre o
tranquilizava quanto a isso, — segundo relatos de Caio — mas insistia na ideia
de que eu estava extremamente debilitado e que meu estado requeria cuidados.
Não era com muito pesar que eu ouvia esses relatos de Caio que,
constantemente, me dava informações quanto ao que se passava, esperando que
eu reagisse, ao tomar nota delas. Ainda hoje peço perdão a Deus por isso, mas
minha intenção era mesmo a de ficar acamado até a morte. Mas, veja bem a
expressão que usei: intenção. Eu não estava, conscientemente, me direcionando
a um encontro antecipado com o Pai. Eu apenas aguardava ansiosamente partir
desta para melhor. Sabia que entraria mais do que indigno diante da sua
presença, mas imaginei, na minha imensa ignorância, que qualquer coisa seria
melhor do que continuar atravessando aquele vale escuro de trevas e morte.
A missa diária era a única coisa que ainda me fazia ter contato com a
realidade. Fechado durante o dia todo dentro de um pequeno quarto, eu passava
a maior parte do tempo sozinho, mesmo com as caridosas visitas dos meus
amigos.
Por diversas vezes, porém, entreguei-me a tentação de procurar por
Marília com os olhos ao término de cada missa, assim que me levantava para
partir. Apesar de estar sem força alguma, usava toda a minha determinação a fim
de pôr-me em pé sozinho e dirigir-me, ao menos, até fora da vista de todos, até
que alguém me levasse ao quarto.
Durante a primeira semana, eu a via ocasionalmente, com seu negro véu
se esvoaçando em uma saída apressada da igreja. Nos dias subsequentes, porém,
embora eu a procurasse com determinação, até mesmo durante a missa, eu já não
a via em parte alguma, e passei a me preocupar que estivesse se afastando da
Igreja.
Passados tantos dias sem forças para reagir, o Padre Dionísio finalmente
viera ter comigo em meu aposento, mas, se a sua intenção era a de me ajudar,
fora de uma forma bastante inusitada, confesso.
Eu estava lendo a bíblia, encostado em um travesseiro apoiado na parede.
Coberto com uma manta marrom xadrez, que me fazia sentir especialmente
idoso quando eu a usava, olhei com curiosidade para a porta ao ouvir que
alguém batia. Normalmente, Samuel ou Caio não batiam na porta, apenas as
freiras que me traziam sopa no horário das refeições, porém eram ainda quatro
da tarde.
Ao convidar que entrasse, o padre entrou sem pressa no aposento,
fechando a porta atrás de si — uma traumatizante lembrança de outra ocasião em
que assim o fizera — e fitou-me por um longo momento, enquanto cruzava os
braços.
— Até quando ficará nessa cama, Augusto? — perguntou-me, assim,
friamente, como se perguntasse a uma criança quanto tempo mais ela ficaria
jogada no chão fazendo birra. Talvez, fosse exatamente como o padre me via.
Pego de surpresa com essa pergunta, deixei a bíblia cair em meu colo e
olhei para a parede, pensando em que responder.
— Bem, padre, eu não sei dizer, talvez até...
— O que você pretende? O que você pensa que acontecerá? Acha que
ficando aqui seus problemas irão se resolver sozinhos e que quando voltar
poderá respirar aliviado e fingir que nada aconteceu? No começo, até achei bom
que você passasse algum tempo refletindo, mas isso já está ficando ridículo! Não
sei se só está querendo chamar a atenção, ou fazer com que eu sinta pena de
você, mas o doutor diz que você já perdeu mais de cinco quilos esse mês! O que
você espera da vida, Augusto?
Eu fiquei paralisado, observando o pescoço do padre, mais uma vez, se
transformar em um escarlate, bem como seu rosto.
Meu corpo tremia, pois era como se eu literalmente recebesse um balde
de água fria, e eu temia pronunciar alguma palavra que respondesse àquela
pergunta mais do que cometer o desrespeito de não responder.
— Você disse que queria ficar, não disse? — prosseguiu o padre, um
pouco mais controlado. — E eu permiti que você ficasse. Mas não para isso.
Então, trate de sair logo dessa cama e se restabelecer de uma vez, ou então
mandarei você de volta para a sua casa!
E, em seguida se retirou, sem dizer mais nada.
Após ouvi-lo bater com força a porta de meu quarto, recostei a cabeça no
travesseiro, fechei os olhos e me senti verdadeiramente morto. Não era fácil
ouvir aquelas palavras e continuar a jornada. Agora eu tinha que reagir se
quisesse ficar lá, e eu sabia que o padre não estava nem perto de blefar.
Abri os olhos com tristeza ao ver que tudo ainda estava lá. Era uma
esperança tão tola, mas eu realmente esperava que eu pudesse abrir os olhos em
um lugar diferente, um lugar sem dor. Mas até o fato de respirar me feria a alma,
de modo que senti profunda amargura pelas palavras do padre naquele instante.
Como se não bastasse tudo o que eu tinha que passar, como se não bastasse eu
estar no fundo do poço, ainda vinha alguém para me cobrar a demora por sair de
lá.
Uma agonia dolorosa me sufocava o peito, quando me lembrei de repente
que, certa vez, ouvira o frei dizer, ainda no seminário, quando eu me entristecera
por algo em certa ocasião, que “o fundo do poço é, às vezes, o melhor lugar para
se estar, pois lá conseguimos o impulso necessário para subir”.
Com esse pensamento, deixei minha mente se esvaziar por completo
durante alguns instantes, com os olhos cerrados, mas longe do sono. Em seguida,
passei a tarde pensando em cada coisa que pudesse me trazer forças naquele
momento, como salmos, cânticos, lembranças de um doce passado, o afeto das
pessoas por mim, as glórias que eu já dera ao Senhor por poder ver, ouvir, andar,
sentir e tocar a natureza e, por fim, a constatação de que, naquela vida, nada
mais do que eu pudesse passar seria tão doloroso quanto aquilo, o que me fazia
crer que, se eu fosse capaz de superar aquela tribulação, superaria qualquer
coisa.
De alguma forma, essas coisas trouxeram um pouco de vida a mim,
suficiente ao menos para que, a princípio, eu tivesse forças para me levantar
sozinho e me preparar para a missa. Desta vez, eu iria até lá sem a ajuda de
ninguém e determinaria que, dali em diante, seria sempre assim.
A Vida
Todos se surpreenderam com a minha repentina recuperação. Era
evidente que tanto tempo sem comer bem e sem me exercitar tiveram um custo
para mim. Muitas vezes, eu sentia tonturas após caminhadas leves, além de não
sentir muita firmeza em minhas pernas, mas, na medida do possível, eu já era
capaz de me virar sozinho e até cumprir pequenas tarefas, como ajudar o frei a
corrigir as provas dos seus seminaristas ou regar as plantas do pátio — o que era
raro, devido ao tempo chuvoso.
A segunda vez, porém, que eu me atrevi a sair da paróquia, insistindo que
me deixassem visitar alguém ou, ao menos, ler para as crianças na rua — coisa
que me saudava o tempo de seminarista — o padre incumbira-me de
encomendar alguns terços de uma artesã que vivia próxima à paróquia para os
alunos que concluiriam sua primeira comunhão na semana seguinte.
No caminho de volta, já com o pedido em mãos, eu percebi que havia
cometido um grande erro ao caminhar tanto, pois as minhas energias já estavam
quase ao fim. Com isso, eu temia desmaiar no meio da rua e assustar as pessoas
que caminhavam nas proximidades.
Faltando apenas alguns passos para chegar, coração na mão, Marília, de
repente, atravessou meu caminho, como um raio que cai sem aviso, fazendo-me
recuar de susto e quase sucumbir.
Já fazia tanto tempo que eu não a via e o sol da tarde batia com tamanha
precisão em meus olhos, que ela parecia tão irreal quanto nos meus remotos
sonhos; e, embora não deixasse de ser ela o motivo de todo o sofrimento que eu
vinha passando, eu não era capaz de sentir raiva dela um momento sequer, nem
censurá-la por ter me procurado mais uma vez.
Apesar das saudades e do paradoxo da sua presença que me corroía e me
restaurava ao mesmo tempo, olhei para ela como se fosse um padre velho,
raquítico, vendo uma bela jovem cheia de vida e aparentando estar ainda mais
rejuvenescida do que da última vez em que eu a vira no pátio. Sua pele estava
brilhosa, corada, seus cachos bem formados e sua roupa perfumada. Tinha
também uma paz diferente, algo que chegava a contagiar, de modo que, por um
momento, eu quis apenas estender minhas mãos e tomar um pouco que fosse
daquele sentimento há tanto esquecido.
Quando nossos olhos, por fim, se encontraram, ela principiou despejar
uma porção de coisas, como da outra vez, mas acredito que meu estado físico a
detivera.
— Boa tarde, padre, o senhor está bem? — perguntou, olhando meu rosto
e, provavelmente, pensando em uma caveira.
— Sim, estou. Melhor, pelo menos. — disse, desviando o olhar. Não
podia dizer uma mentira tão deslavada quando ela via em meu rosto uma
verdade tão evidente.
— O senhor esteve enfermo? — continuou, ainda a me esquadrinhar.
— Pode-se dizer que sim, mas o Senhor já me restaurou. — eu dizia,
balançando levemente a cabeça, sem saber o que mais dizer.
— Bem, — disse Marília afinal, com um breve suspiro, ante o meu
silêncio após essas poucas palavras — achei uma lástima que o senhor tenha me
evitado justo numa hora dessas, mas tudo bem, é um direito seu, apenas queria
dizer algo a respeito da Igreja.
Eu abri minha boca, mas nada falei, permanecendo assim até que eu
processasse as informações. A primeira não me fez sentido algum, visto que ela
sabia exatamente o motivo de eu ter que evitá-la, e a segunda compreendi menos
ainda. “Numa hora dessas”? Que hora dessas?
Além do mais, tinha a segunda sentença. Senti-me estremecer com a
ideia de que ela pudesse ter se afastado da Igreja. Lembrava-me, então, da sua
estranha ausência na paróquia nos últimos dias. Parecia que agora eu teria
finalmente essas respostas.
— Padre, — disse, solenemente, considerando meu silêncio como uma
concessão para que falasse — gostaria de anunciar que é possível que eu não
participe mais das missas da paróquia, nem de lugar algum.
Deixei minhas mãos caírem junto com meu mundo — mais uma vez.
Seria eu o culpado disso? Teria eu afastado Marília dos Santos caminhos de
Deus? Eu definitivamente e mais do que nunca preferia a morte.
Marília aguardou minha reação, mas tratou de me acalmar, vendo, talvez,
meu estado e pensando que eu desabaria ali mesmo.
— Não, acalme-se padre, não estou desgarrada. — disse rapidamente,
com as mãos sinalizando para que eu me aquietasse. — Na verdade, agora
realmente acho que me encontrei.
Eu ainda nada dizia, mas, depois da salvação da alma da Marília, tudo o
que eu mais queria no momento seria um lugar para me sentar, pois eu nunca
sentira o corpo tão pesado.
— Do que você está falando? — perguntei, assim, sem formalidades.
Voltaram a conversar Marília e Augusto apenas.
Ela suspirou, parecendo aliviada por eu ter voltado a falar e, talvez,
também pelo novo tom da conversa.
— Eu tinha muitas divergências quanto ao que a Igreja pregava, mas não
tinha coragem de questionar. Quando você começou a pregar coisas que eu
nunca tinha antes sequer considerado, foi como se uma luz insistisse para ser
manifesta, mas eu ainda andasse vedada. Você deve se lembrar de quando eu fui
me confessar certa vez, ou mesmo quando conversamos voltando do mercado,
que eu me sentia tocada com as suas mensagens.
Eu assentia, desviando mais uma vez o olhar em um devaneio que essas
lembranças me evocavam.
— De qualquer forma, — prosseguiu — as últimas missas que assisti
foram as que mais me incomodaram. E aquilo tudo, de repente, passou a não
fazer mais sentido nenhum pra mim, ainda mais depois que um amigo me
instigou a ler a respeito de Lutero e suas teses.
Eu me lembrava vagamente de Lutero, pelas aulas de filosofia em que ele
fora um pouco mais exposto. Ainda não podíamos discutir abertamente a
respeito, mas eu já me sentira confuso na época sobre suas ideias.
— Augusto, — ela disse, com gravidade — você precisa conhecer as
ideias Luteranas. Elas contestam quase todas as práticas católicas, inclusive as
atribuições de um padre. E tudo faz tanto... sentido!
Seus olhos estavam tão brilhantes, que eu achava que derramariam, em
breve, pequenas lágrimas, mas sua excitação mostrava que o que ela estava era
emocionada.
— Nem sempre o que ouvimos falar é de real valor. — disse, sem saber
por que dizia isso. Talvez, fosse a primeira coisa que me viera à mente, sobre o
que um padre experiente diria.
Ela olhou-me perplexa, como se verdadeiramente não esperasse essa
resposta. Éramos dois.
— Tudo isso faz mesmo sentido, Augusto! — insistiu — E não são só
ideias, eu realmente estou crendo nisso!
— Mas você está se afastando da Igreja...
— Não, eu estou me afastando da Igreja Católica. Estou começando a
frequentar uma Igreja Luterana, a poucos quilômetros daqui, onde esse meu
amigo, também professor, frequenta. E eu fico verdadeiramente satisfeita quando
saio de lá.
Minha mente girava e eu já não era mais capaz de deliberar. Era algo
complexo demais e meu corpo já estava em seu limite. Eu via nela a alegria e a
paz que emitia, mas temia pelo que seriam essas novas ideias que ela estava
aderindo. Tudo isso com uma mescla de curiosidade e inoportuníssimo ciúme
desde tal amigo que a estava acompanhando nessa emboscada. De qualquer
modo, eu não podia negar que gostaria de conhecer de perto isso, talvez também
alcançar um pouco dessa paz, mas, em meu interior, pedia perdão a Deus por
cogitar isso. Afinal, meu voto eclesiástico era vitalício.
— Fico feliz que esteja bem lá, Marília, e espero que o Senhor a conduza
no caminho certo.
— Você não está acreditando em mim, não é? — perguntou-me, agora
com tristeza em seu semblante. — Era isso que estávamos procurando, Augusto!
Eu sei que você está nessa busca também!
— Fale apenas por você. — eu disse, explodindo em meu peito por negar
tudo o que havia de Augusto dentro de mim.
Meus olhos caíram para o chão e eu senti-me um lixo humano, deixando
tudo o que eu verdadeiramente acreditava para defender o que eu hipocritamente
era.
— Faça, então, o que quiser. — disse, ressentida. — Eu só quero dizer
uma coisa. Espero que um dia deixe de servir a um Deus preso em uma cruz —
disse, segurando com força o crucifixo pendurado em meu pescoço — e passe a
servir ao Deus Vivo!
E, dizendo isso, virou-se mais uma vez, deixando-me ali sozinho, e com
a sensação mais solitária que um ser humano pode ter: a de estar sem Deus.
---

Foi em uma das minhas refeições lá na paróquia, algumas semanas


depois do meu encontro derradeiro com Marília, que minha sorte passou a
mudar. É obvio que, quando estamos no meio de uma tribulação, não sabemos
que uma luz está se formando no fim do túnel, ainda mais quando avistamos
mais uma curva, sem nenhuma perspectiva do que encontraremos a seguir. Mas,
hoje, posso afirmar que aquela seria a última e, talvez, a mais ardilosa curva, que
eu passaria até encontrar a verdadeira Paz.
Eu remexia as últimas folhas de agrião que sobravam no meu prato,
misturando com um molho acho que de uma lasanha, não me lembro. Poucas
pessoas estavam comigo à mesa naquele dia. Foi então que o Padre Dionísio
chegou atrasado para o almoço, alegando estar com uma fiel há mais de uma
hora no confessionário.
— Aquela senhora estava me contando barbaridades!
Apesar de não aprovarmos muito a sua conduta, o padre costumava usar
uma certa fiel, senhora já de idade, para ter notícias da vizinhança que lhe
parecessem relevantes. Sua intenção era ter controle sobre seus fiéis: o que
faziam, o que diziam da Igreja, o quão devotos eram. Não o contestávamos,
porém, por considerar seus motivos. A paróquia de Nossa Senhora da
Misericórdia era a única da pequenina cidade, portanto o catolicismo apenas se
expandiria e monopolizaria a cidade por meio dela. Sei que a verdadeira
intenção do padre era que ninguém se afastasse, mas sabíamos que ele buscava
mais informações do que verdadeiramente lhe dizia respeito.
Por fim, ainda comentando sobre a senhora, o padre me chamou a
atenção se dirigindo a mim naquela mesa, já com o prato feito pela freira.
— Bem, Augusto, tenho uma informação para você também, que sei que
lhe interessará muito. — Sua voz tinha um tom provocativo que eu não
compreendera. — É a respeito de uma fiel muito cara a você, a qual você
conhece muito bem.
Minhas mãos gelaram e meu rosto se esquentou. O que ele pretendia
dizer ali, no meio daquele pequeno grupo de pessoas?
— Obviamente sabe de quem estou falando, não sabe? — perguntou,
aguardando minha resposta com avidez, ao qual eu respondi assentindo com a
cabeça. — Muito bem, não sei o que andou dizendo ou fazendo para a pobre
moça, apenas sei que ela se mudou para uma cidade vizinha como missionária de
uma igreja evangélica. — disse com desdém a última palavra — É evidente que
a senhora sua mãe não aprovou tal ato leviano, mas nada pôde fazer para
dissuadi-la.
Eu mal conseguia engolir o chumaço da verdura que eu colocara na boca
quando ele abordara o assunto. Meu estômago revirava de tal forma que achei
que não aguentaria ficar mais lá.
— O que mais me surpreende, Augusto, — prosseguiu, entre uma
garfada e outra de sua tranquila refeição — é que conheço essa moça desde que
nasceu, e ela nunca demonstrou nenhum ato de rebeldia até entrar em contato
com certa pessoa. E veja, hoje abandonou a fé e a família e está agora lá, em um
lugar distante, sabe-se lá de que jeito. Há boatos até de que saiu com um homem
daqui da cidade. Que Deus preserve sua reputação quando decidir voltar. —
disse, largando os talheres por um momento e erguendo as mãos aos céus.
Meu semblante deve ter mudado tão repentinamente que todos se
voltaram para mim, não compreendendo em nada as palavras e o tom do padre.
— Mas quem é essa moça? — perguntou a freira que nos servia comida.
— O que foi, padre? Disse algo tão improvável assim? — perguntou
Dionísio, ignorando a pergunta da freira e deixando na mesa novamente os
talheres, apoiando seus braços ao lado do prato com as mãos fechadas. Ele agia
como um jogador que sabe que irá vencer e provoca seu adversário. — A menina
é jovem, era de se esperar que buscasse um homem com quem pudesse casar,
sem que isso fosse o maior sacrilégio contra Deus.
Cansado e enojado daquela conversa, levantei-me bruscamente, quase
perdendo os sentidos e dirigindo-me a porta, sem nada dizer.
— Não sabe que é falta de respeito com os presentes sair assim, padre?
— perguntou, e eu ouvia mais uma garfada sua. — É melhor que se sente e
termine a sua refeição. — Apesar das palavras, o tom não era de repreensão, mas
de recente vitória.
— Com licença, padre, mas preciso ir, não estou me sentindo muito bem.
— disse, virando-me.
— Será que foi a comida? Irmã Brenda! — chamou o padre à freira —
Da próxima vez, coloque menos azeite na salada do padre. Ele anda com o
estômago muito sensível.
Antes, porém, que ela respondesse, eu interrompi.
— O tempero pode ser o mais suave, mas se essa mesa continuar a
destilar veneno desse jeito, não há estômago que suporte.
A Fuga
As palavras de Marília ecoaram no meu ser por dias a fio. A Igreja
passava a fazer cada vez menos sentido para mim também, e eu estremecia com
a ideia do “Deus vivo”. Eu vagamente era capaz de sentir a alegria dela, na ânsia
de uma real experiência com o meu Senhor. Mas, até que ponto eu seria capaz de
abandonar tudo e me arriscar nessa aventura?
Mas, afinal, o que eu estaria deixando para trás? Sonhos? Meu maior
sonho sempre foi servir a Deus. Tempo de estudo? O que eu aprendi, jamais me
tomariam. Títulos? Deus sabe que nunca me importei com isso.
Quando, por fim, dei-me conta de que nada me prendia àquela paróquia,
saltei do lugar onde estava e, pela primeira vez em muito tempo, senti-me
verdadeiramente vivo e com uma grande razão para viver. O sorriso que, até há
pouco, não passava de um mero protocolo, algo meramente social, agora eu já
não podia esconder, e a única coisa que era capaz de fazer era andar de um lado
para o outro do corredor, com as mãos a passarem pelo cabelo e a euforia me
levando para não sei aonde.
Logo, voltei ao meu solitário aposento, como um prisioneiro que agora
via uma rota de fuga, e continuei a viver minha euforia lá. Era algo incontrolável
e, honestamente, não muito são, mas isto eu já estava acostumado. “Vou pegar
minhas coisas e me encontrar com Deus” — pensei, abrindo meu armário. “Mas
o que levar daqui?”.
Pode parecer materialista da minha parte, mas meu coração eufórico
chegou a se entristecer um pouco ao perceber que não havia nada meu lá, a não
ser duas trocas de roupa. É costume da Igreja pregar a divisão de bens, a
fraternidade, o partilhar das coisas, mas imagine um dia querer recomeçar em
algum outro lugar e descobrir que não há nenhum ponto de partida para a sua
nova vida. Que quase trinta anos de história não serviram para acumular nada, a
não ser a esperança de tesouros no céu.
A verdade, porém, foi que a tristeza logo se foi quando eu vi o quão
superficial era esse fato. Eu tinha um objetivo agora, uma meta, uma visão. Eu
havia passado os últimos meses sem saber pelo que eu vivia e agora eu tinha um
propósito. Eu podia ver o futuro que eu queria na minha frente, eu podia ver a
luz.
Certezas eu não tinha, pois, como disse, seria uma aventura de tudo ou
nada. Fato era que, olhando para o que eu tinha, a verdade é que eu não tinha
nada a perder.
Mas o que verdadeiramente me fazia acreditar naquela mudança de vida,
o que podia me dar a coragem de me aventurar, era Marília. Eu não a amava
apenas por sua beleza, inteligência e graça. Marília, assim como eu, estava em
busca de um Deus real, e ela finalmente o encontrara, e eu confiava nela o
suficiente para crer que o que ela descobrira era verdadeiramente real.
Passado o primeiro momento de êxtase, sentei-me na beirada da cama e
suspirei. Seria uma decisão e tanto. E Deus? O que pensaria de tudo aquilo?
Era evidente que eu não poderia correr para os braços do Pai sem saber
se Ele estaria no lugar aonde eu ia, se estaria com os braços abertos para mim e
se seria mesmo o Pai a me esperar.
Sedento por uma palavra libertadora, clamei com todo o fervor que eu
tinha na época, quando um texto, a princípio desconexo, me veio a memória:
“Portanto, cingindo os lombos do vosso entendimento, sede sóbrios e
esperai inteiramente na graça que se vos ofereceu na revelação de Jesus
Cristo, como filhos obedientes, não vos conformando com as concupiscências
que antes havia em vossa ignorância; mas, como é santo aquele que vos chamou,
sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver, porquanto escrito
está: Sede santos, porque eu sou santo”. (I Pedro 1: 13-15).
Tendo lido isso, peguei algumas moedas de minha posse (que não me
pertenciam de fato, mas que me eram dadas de tempos em tempos para que eu
comprasse qualquer ítem pessoal que não estivesse incluso nos objetos comuns a
todos os sacerdotes) e dirigi-me apenas com minha bíblia e algumas anotações
do tempo de seminarista em mãos ao bazar da igreja, onde comprei roupas
comuns, encontrando até mesmo uma camisa minha da época de seminarista
entre o amontoado no grande cesto. O responsável pelo setor certamente se
surpreendera com meu ato, mas nada dissera. Apenas me olhava com grande
curiosidade, enquanto eu separava algumas mudas de roupas e um sapato velho.
Era tudo o que eu precisava por hora. O resto o Senhor proveria. Eu já estava
aprendendo a depender, de fato, do Senhor.
---

Uma pequena mala com algumas peças de roupas e uma bíblia surrada
com anotações eram carregadas por um ex-padre de roupas amarrotadas. Eu
parecia um verdadeiro mendigo, mas, honestamente, nunca me sentira mais rico.
Não foi surpresa para mim que o Padre Dionísio, nem ninguém da
paróquia, me reconhecessem de pronto. Como eu caminhava a passos largos
pelas pessoas, muitas se desviavam de mim, talvez pela imagem medíocre que
eu transparecia. Mas jamais me esquecerei da face abobada do padre, ao
constatar que o homem ali a sua frente era o seu, até então, pupilo, coisa não
mais assustadora do que a devastadora revelação de que eu ia abandonar a Igreja.
— Padre Augusto? — perguntou-me, incrédulo, deixando os papéis que
mexia sobre a mesa.
— Sim, padre, preciso falar com o senhor.
— Mas que cargas d’água você está fazendo com essas roupas? Vai
entrar para o teatro ou vai mendigar nas ruas para pregar o evangelho?
— Nada disso, padre, vim até aqui para agradecer tudo o que o senhor
fez por mim por todos esses anos e me despedir do senhor.
Com tanta determinação e ousadia que me cercavam, não imaginei o
quão difícil seria aquele momento após aquelas palavras terem sido ditas. Dizem
que as palavras são como pedras lançadas: uma vez ditas, não voltam atrás.
— O que está dizendo? — perguntou o padre, desnorteado, como se eu o
tivesse mandando embora da paróquia. — Não entendo, eu disse que você podia
ficar.
— Eu sei, — suspirei — mas eu seguirei outro caminho de agora em
diante...
— Foi aquela menina, não foi? — gritou Dionísio, levantando-se, tão
vermelho como na ocasião da biblioteca em que descobrira tudo sobre Marília e
eu. — Aquela menina desgarrada! Cuidei dela como um tio, dei a ela todos os
conselhos necessários, e veja só, eu achando que você havia pervertido os
caminhos dela, e hoje vejo que é justamente o contrário! Menina promíscua!
— Não, padre! — disse alto, não alcançando seu tom, mas alto o
suficiente para qualquer que estivesse nos arredores pudesse ouvir. — O senhor
está completamente enganado sobre ela! É certo que conversamos acerca da sua
nova fé, mas...
— Nova fé? Chama esse sacrilégio de fé? Essa garota está perdida, não
vê Augusto? Com um homem em uma outra cidade, sem ninguém que cuide de
sua integridade, por Deus, não seja assim tão ingênuo! Marília está perdida!
Aquele foi o máximo que eu fui capaz de escutar no meu lugar. Não sei
como aconteceu, mas quando menos esperei, minhas coisas estavam jogadas no
chão e o meu rosto a centímetros do rosto do padre.
— Ouça, padre, a questão não é o que Marília está fazendo lá ou
deixando de fazer. Tudo o que eu sei é que ela tinha algo diferente quando a vi
pela última vez, algo que eu quero e estou indo buscar. Desde que me entendo
por gente, busco uma paz genuína, algo sólido e real, e isso me levou a deixar a
minha casa e vir passar o resto da minha vida aqui se fosse preciso, negando
tudo o que a minha carne pedisse. Passei nove anos na esperança de que, com o
título de padre, eu alcançaria o que tanto esperei, mas não alcancei, se quer
saber. E, se ela encontrou isso que eu tanto procuro, eu irei aonde ela estiver.
— Eu sei o que você procura, Augusto. — Enfrentou-me Dionísio. —
Sei que não está nem um pouco interessado nas coisas de Deus. Você quer é se
encontrar com aquela perdida e se perverter com ela, é isso o que quer! Mas por
tudo o que é mais sagrado, ouça: Marília não será a mesma que você conheceu
aqui. Ela será uma mulher leviana e sem honra. Você trocará seu ministério por
uma meretriz, e eu lhe digo que não haverá lugar para um perdido aqui se tornar
padre novamente, está ouvindo?
E, reunindo minha última gota de paciência, antes que eu perdesse
completamente a razão, finalmente disse:
— Eu não sei o que mais dizer para o senhor acreditar que minha busca é
verdadeira, mas, honestamente, eu não tenho mais tempo, nem paciência para
lhe explicar. Talvez, um dia eu volte e lhe apresente os frutos que alcançar, mas
isso se o Senhor permitir. Mas, se a questão que o senhor quer levantar é sobre
Marília, se ela não tem quem cuide da sua integridade lá, agora terá, pois eu
cuidarei. Providenciarei para que o homem com quem ela viajou e por quem se
apaixonou e deseja formar uma família seja honroso e fiel a ela, e esquecerei o
que fui até agora se esse homem tiver, de fato, lhe faltado com respeito, como o
senhor insinuou à mesa. E isso é tudo, padre.
Aquietei-me por um instante, procurando recuperar o controle.
— Por consideração ao senhor, — concluí — me humilhei aqui pela
última vez para lhe dar uma satisfação e ouvi toda a sorte de desaforos. Mas por
tudo o que me fez nos últimos meses, eu me despeço sem considerar seus
conselhos e suas palavras, e parto certo de que é isso que o meu Senhor espera
de mim. E que Ele lhe abençoe.
Peguei, então, minhas coisas e saí, ouvindo o padre ainda praguejar
algumas coisas, mas que já não me atingiam. A verdadeira alegria ainda estava
em mim.
---

Andando a esmo, eu sabia que seria imprudente se eu simplesmente


aparecesse em uma cidade desconhecida, sem saber nem mesmo o que
exatamente eu estava procurando. Decidi, então, procurar o endereço da Igreja
Luterana que Marília havia frequentado, antes de se mudar. Quem sabe até eles
tivessem informações mais consistentes do exato local onde eu poderia encontrá-
la.
Dirigi-me, a princípio, ao externato em que Marília lecionava, a procura
do famoso colega de trabalho que lhe trouxera as tais ideias luteranas. Inácio era
o seu nome. Tal foi a minha surpresa ao constatar que o professor também
abandonara a sua turma na mesma época que Marília. Ambos haviam deixado o
externato, então. Juntos.
Perguntando a algumas pessoas das redondezas, naturalmente me
passando por um peregrino com aqueles trajes surrados, não precisei andar muito
para, finalmente, encontrar uma pequenina casa azul e branca sobre uma
estradinha de barro vermelho. A princípio, pensei que tivessem me enganado ao
levarem-me ali, pois em nada se diferenciava de uma casa comum, com a
exceção de uma placa no alto, indicando uma Igreja Luterana.
Temeroso, aproximei-me da porta aberta e pensei se deveria bater ou,
simplesmente, entrar. A casa era tão pequena, que eu me sentiria um intruso se a
invadisse sem avisar. Bati, então, algumas vezes, sentindo que a casa estava
completamente vazia, e aguardei um pequeno instante.
“Acho que perdi a viagem” — pensei comigo. Virei-me, pronto para
sentar-me no chão para esperar o sacerdote chegar. Antes, porém, que eu
encontrasse uma pedra ou um degrau, ouvi a porta se abrindo e virei-me
novamente, com um súbito medo.
— Olá, rapaz, o que procura? — perguntou-me um homem gorducho e
barbudo, na casa dos cinquenta anos, com uma roupa casual. Sua feição era
alegre e eu podia sentir a mesma paz que Marília transmitira. Certamente, eu
encontrara o lugar.
— Boa tarde, senhor. — pigarreei. — Eu gostaria muito de falar com o
Reverendo, se não for causar nenhum incômodo a ele.
Eu me sentia um adolescente novamente, entrando na sala do Frei Alceu
pela primeira vez, a fim de entrar para o seminário, com tanto temor que achei
que faria um acidente em minhas calças se minha tensão aumentasse. Naquele
momento, eu já não tinha essa sensação, mas era difícil não pedir desculpas e
voltar a minha peregrinação.
— Boa tarde, rapaz, não me incomodará nem um pouco, pode entrar.
Meus olhos devem ter se arregalado, porque o homem começou a rir e a
se divertir às minhas custas. Fez um gesto para que eu entrasse na pequena
igreja, enquanto ainda ria um riso tossido.
A casa era maior do que parecia do lado de fora, mas não era capaz de
comportar mais do que cinquenta pessoas. Os bancos de madeira eram um pouco
diferentes dos da paróquia, mais simples e sem o genuflexório. Observei,
curioso, as paredes brancas, sem nenhuma gravura desenhada, nem uma
escultura, apenas com uma cruz de madeira escura na frente, perto de uma
pequena piscina. Sim, uma piscina dentro de uma igreja. “Desconcertante” —
pensei na época.
O Reverendo me olhava, ainda se divertindo com minha expressão
confusa.
— Vejo que esta é a primeira vez que entra em uma igreja evangélica,
estou certo?
— Sim, senhor, na verdade eu vim a convite de uma amiga.
— Amiga? Como é o nome dela?
— Srta. Marília. — respondi, certo de que ela seria reconhecida em
qualquer lugar que se apresentasse.
— Oh, a pequena Marília! — exultou, com real regozijo. — Uma doçura
de menina, com uma fé descomunal. E sabe que, agora o senhor falando dela, me
fez lembrar que ela entrou aqui com o mesmo assombro que o seu. Depois, ela
me explicou que fora católica fervorosa desde muito pequena. O senhor também
deve ter essas raízes, não?
Era muito revigorante ouvir palavras boas a respeito de Marília e, apesar
de conhecê-lo há menos de cinco minutos, eu era capaz de dar muito mais
credibilidade ao que dizia do que ao Padre Dionísio.
E eu esperava que o sorridente homem dispusesse de um bom tempo,
pois teríamos muito o que conversar.
Parte Três
O ENCONTRO
Verdadeiro Encontro
— Bem, digamos que eu tinha um grande vínculo com a Madre Igreja.
— respondi ao homem de meia idade que estava à minha frente. “E que vínculo”
— pensei.
— Tinha? E hoje, que vínculo tem? — indagou o homem, perscrutando-
me com curiosidade.
Ponderei por um instante. Era um verdadeiro desafio recomeçar assim,
do nada, uma nova vida, e as circunstâncias tão novas daquele momento quase
me faziam voltar à paróquia, onde tudo era conhecido por mim.
— Bem, rapaz, me desculpe perturbá-lo assim, — interrompeu o
reverendo meus pensamentos, denotando preocupação ao estudar meu rosto
contrito — apenas gostaria de saber o que procura vindo aqui. Não sei se sabe,
mas a Srta. Marília não frequenta mais esta sede da igreja.
— Esta sede?
— Sim, ela agora está como missionária em uma cidade vizinha, a não
muitos quilômetros daqui. Sabe, ela tinha pouquíssimos meses de convertida
quando a enviamos para lá, mas ela devorava a Palavra de tal modo que, nem
mesmo dentre os fiéis mais antigos da igreja, eu tive tanta segurança em mandar
para essa tão necessitada obra como a ela.
— Convertida? — perguntei, começando a ficar realmente assustado. —
Convertida do quê?
O pobre homem, por mais que tentasse, não podia deixar de se divertir
com o meu embaraço, e hoje eu mesmo me divirto com estas lembranças, mas,
no momento em que me ocorreram, irritei-me profundamente com as risadas
dele a cada pergunta que eu fazia.
— Ora, rapaz, vamos, temos muito o que conversar. Primeiro, diga-me o
seu nome, e quero que me chame de Pastor Joel a partir de agora, certo? Vou lhe
contar a melhor história do mundo, e me perdoe desde já se eu me emocionar ao
contá-la.
---

— Muito bem, Augusto. — prosseguiu, após sentarmos em um dos


bancos envernizados e eu me apresentar a ele apenas com meu primeiro nome.
— Há muito, muito tempo atrás, quando Deus criou o mundo, Ele, na sua
Soberana sabedoria, já tinha em seus planos demonstrar seu amor infinito pela
humanidade enviando seu Filho amado para morrer pelos nossos pecados em
nosso lugar, mesmo quando os termos morte e pecado ainda nem existiam em
nosso planeta. Após o pecado ter sido concebido pelos primeiros habitantes da
Terra, havia uma promessa...
Eu estudara a história da humanidade, todos os eventos descritos nas
Escrituras, as profecias, o motivo da vinda de Cristo; eu fizera inúmeros
trabalhos abordando os temas pecado, salvação, vida eterna, destrinchando
temas, pesquisando em livros renomados, tendo aulas com sábios padres; mas,
naquele momento, sem a menor sombra de dúvidas, eu realmente soube o plano
de Deus para a humanidade, por que Ele maltratou tanto seu único Filho e qual
era a razão da minha existência.
Aquela doce e maravilhosa história durara cerca de uma hora mais ou
menos e, até seu término, o pastor Joel não chorou como previra, mas meus
olhos se encheram das melhores lágrimas que eu já derramara.

---

Uma alegria indescritível transbordava dentro do meu ser e, de repente, a


vida era vista por mim de uma forma tão linda que minha vontade era a de sair
louvando a Deus por toda a cidade.
O pastor me abraçou após terminar a sua história, fato que me deixara
naturalmente constrangido, mas estranhamente em paz. Quando finalmente
tomei fôlego e as palavras voltaram aos meus lábios, ainda sentado no banco da
pequena igreja, dirigi-me com seriedade ao pastor.
— Bem, e agora, o que eu faço? Digo, como faço para fazer parte deste
mundo, desta igreja, não sei...
— Você deve procurar fazer parte do corpo de Cristo, meu jovem. —
disse, também em tom mais sério. — Deve aceitar ao Senhor Jesus como seu
salvador pessoal, confessando seus pecados, e buscar uma vida em santidade.
— Certo, e como eu aceito a Jesus? Quer dizer, não é Ele que precisa me
aceitar?
— Ora, Augusto, Jesus já o aceitou há quase dois mil anos, Ele morreu
por você, Ele queria você. Mas você precisa dar esse passo de fé, precisa querê-
lo também.
— Mas eu o quero! — respondi, com mais entusiasmo do que eu deveria
demonstrar. Era muito difícil me conter com tanta adrenalina. — É tudo o que
busquei por toda a minha vida.
— Buscou mesmo ao Deus verdadeiro, ou apenas a um deus que
satisfizesse às suas necessidades e perspectivas, ainda que de justiça e
autopunição?
Eu me calei, anestesiado. Uma forte dor cruzou o meu peito, como se ele
tivesse jogado a desgraça da minha vida como um tiro. E a verdade era mais
dolorosa do que eu podia imaginar.
— Ouça, sei que são duras essas palavras, mas você precisa refletir sobre
o verdadeiro significado da sua busca, ou então nunca encontrará o que procura.
— Eu já encontrei, pastor. Minha busca por respostas acaba aqui. É isso
que eu quero para a minha vida, o Deus Verdadeiro, o Deus Vivo, seja Ele quem
for e o que Ele quiser comigo.
O pastor sorriu, complacente, e colocou uma mão em meu ombro.
— Sei que o Espírito Santo do Senhor o tocou essa tarde. Está disposto a
dar esse passo de fé agora?
Eu aquiesci, pronto para ser direcionado a um confessionário e a ser
discipulado por aquele homem.
— Senhor Deus, — disse o pastor, de repente, ali mesmo, ainda com a
mão em meu ombro, fechando os olhos, ao qual eu fiz o mesmo — entra na vida
deste homem que te busca. Desfaça as amarras que os falsos dogmas criaram
nele e o liberta em sua Verdade. Lapida-o como ouro puro e esculpa-o como um
vaso de honra para o teu reino. Peço isso em nome do seu Filho amado, Jesus
Cristo, e a ele toda a glória eternamente, amém.
Dois minutos e o homem já me fizera cidadão do céu. E em dois minutos
passei a chorar novamente. Esse choro, porém, não durou apenas o período da
decisiva oração, como eu imaginara, mas eu chorei por alguns bons minutos,
totalmente constrangido diante daquele recém-conhecido, mas com a experiência
mais marcante da minha vida: a experiência da verdadeira paz.
---

O sol ainda estava quente e a ausência de recursos levou-me a abusar da


generosidade de um pobre carroceiro, que se dispôs a me levar à cidade em que
Marília se encontrava.
Com o veículo sacolejando, minha mente e meu coração iam sendo
colocados no lugar, sendo transformados por lembranças e sentimentos
marcantes.
Lembranças do transbordar de alegria e paz que Marília derramava em
nosso último encontro e que eu sentia agora fluir de mim; do rosto entristecido
de Samuel, ao me ver partir da paróquia, mas com uma real certeza de que eu
estava indo em busca de um outro meio de encontrar nosso Deus; da antagônica
face de Caio, reprovando deliberadamente meu ato, fazendo coro com as
palavras duras do Padre Dionísio; e, mais recentemente, das palavras de
despedida do pastor, ao chamar o carroceiro para minha jornada.
— Mande lembranças minhas à jovem Marília e ao senhor que a
acompanhara também — pediu — e leve este encarte aos meus dois queridos
missionários. É um discipulado sobre serviço social que ela me pediu. Agora vá,
meu jovem, antes que escureça demais para procurar guarida para a sua jornada.
Enquanto eu subia a carroça, olhos ainda inchados, agradeci mais uma
vez o que o humilde pastor fizera por mim e disse simplesmente adeus, ao
contornar a esquina sobre os galopes do pangaré que nos carregava.
— Vá com Deus, padre! — ele disse, quase gritando pela nossa distância,
e com um sorriso malicioso no rosto. Foi desconcertante saber que ele sabia o
tempo todo quem eu era.
Em meio a essas lembranças, o céu se escureceu e o tempo esfriou. Eu
não tinha para onde ir, por isso o pastor me mandou para a casa de um de seus
fiéis, para que me abrigasse por uma noite, até que eu pudesse completar a
minha viagem. Este morava em uma casa na beira da estrada de uma cidade
intermediária, por isso já era bem tarde da noite quando lá cheguei.
Ao despedir o carroceiro, fui severamente tentado a dormir na rua, pois a
ideia de incomodar um homem de família, completamente desconhecido, àquela
hora da noite, era aterrador. Não fossem as minhas poucas vestes e o sereno frio
da noite, eu certamente teria passado a noite na sarjeta.
Contrariando o bom senso e com todo o embaraço, bati levemente na
porta, temendo desesperadamente que todos já estivessem dormindo, de modo
que assustei-me ao ver a rapidez com que esta me fora aberta.
— Pois não, em que posso ajudar? — perguntou-me um homem que não
chegava aos quarenta anos, calvo, com uns óculos de leitura na ponta do nariz e
roupas de dormir.
— Er, bem, eu estive com o pastor Joel, — gaguejei, esfregando as mãos
nos braços inconscientemente para me aquecer — e ele...
— Oh, você é da igreja? Por que não disse logo? Vamos, entre! —
respondeu o homem, mudando seu tom para algo mais familiar e amigável.
— Não, não, digo, não quero incomodar, é que, bem, eu preciso visitar
uma cidade, e ...
— Ora, vamos, não será incômodo algum, por favor, entre, está muito
frio aqui fora, ou então vamos os dois congelar aqui.
Não tive outra escolha a não ser seguir seus comandos, entrar e me
acomodar na modesta, porém muito confortável casa.

Não era de se estranhar que eu achasse deveras inusitado o fato de o
homem me trazer para dentro de sua casa, com uma mulher e duas filhas
pequenas, sem nem ao menos saber da minha história e por que eu vim, mas
logo ele me esclareceu esta questão.
— Então, vejo que vai para Eldorado.
— Oh, sim, — respondi, surpreso, enquanto uma jovem e bela mulher,
vestida com um roupão rosa felpudo, me servia uma xícara de chá, e duas
crianças me olhavam com curiosidade. — Vou encontrar uma amiga que foi para
lá como missionária.
— Uma amiga, que ótimo! A maioria vai para lá sem conhecer ninguém,
portanto é grande sorte a sua ter alguém que o espere por lá.
— Bem, a bem da verdade ela não me espera, eu acabei de tomar esta
decisão.
— Oh, entendo. — assentiu o homem várias vezes com a cabeça,
lentamente. — Mas, de qualquer forma, ela certamente ficará muito feliz em
recebê-lo. A obra de Deus pede cada vez mais urgência.
— Certamente. — respondi, ainda com o êxtase da minha nova vida
transpirando no meu falar e agir. — Como disse São Paulo aos Romanos, “como
invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem não
ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?”. O mundo espera a Deus,
toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só
ela, mas nós também, esperando a adoção, a redenção do nosso corpo.
Enquanto o homem concordava, sorvendo um gole do seu chá, uma das
meninas veio até mim com uma boneca de pano velha e sorriu, envergonhada.
— O nome dela é Julia. Ela quer saber qual é o seu.
— Oh, olá, Julia, — respondi, olhando para a boneca — meu nome é
Augusto. E você pode me dizer qual é o nome dessa outra bonequinha aqui? —
disse, agora apontando para a menina.
— Sofia. — disse a menina, escondendo seu rostinho atrás da boneca.—
Sofia! Sabe o significado do seu nome? É sabedoria. E você certamente é uma
garotinha muito sábia.
— E o meu, e o meu? — perguntou-me a outra menina, provavelmente a
mais velha, saltando com seus cachos loiros, enquanto corria para perto de mim.
— Como é o seu nome, pequena? — perguntei, sorrindo agora para ela.
— Stefane.
— Oh, Stefane. Vitoriosa. Você é vitoriosa em Cristo.
— Eba! — gritou, e saiu correndo para dentro de um dos cômodos, sendo
seguida por sua irmã.
— E então, — interrompeu o homem, após alguns instantes de silêncio,
batendo as mãos nas pernas e as aquecendo por fricção — preparado para a
missão?
— Missão? — indaguei, confuso. — Bem, ainda não sei exatamente qual
a minha missão. O cunho da minha viagem, na verdade, é meramente pessoal, e
...
— Oh, você não é missionário? — interrompeu-me o homem, surpreso.
— Digo, pensei que o pastor o tivesse mandando para uma missão, por isso
tivesse batido à minha porta.
Constrangido mais do que antes, olhei para a porta da casa e já procurei
por minhas coisas com as mãos. Certamente eu estava no lugar errado e não
fazia mais o menor sentido eu permanecer ali. Agradeceria o chá e a
hospitalidade e me desculparia pelo incômodo.
Vendo, porém, que eu já me preparava para ir, o homem se levantou, de
repente.
— Oh, não, por favor, me desculpe a indelicadeza, não precisa ir embora,
é só que, — o homem estava mais encabulado do que eu transparecia — é só que
achei que fosse um missionário, pois o pastor sempre manda quem ele enviou
para uma missão para cá. Como a viagem é longa e eu moro entre as cidades em
que ficam as igrejas, eu me dispus a servir a igreja assim, mas isto não significa
que você não seja bem-vindo aqui, por favor.
Eu soltei a mala, mas ainda não estava convencido a ficar. Sentia-me um
intruso e considerava fortemente a ideia de procurar um albergue ou coisa
parecida.
— Não precisa se incomodar comigo, eu só vim porque... porque o pastor
me disse para vir, mas... convenhamos, você não me conhece, não tem porque
me deixar ficar na sua casa. Por favor, de modo algum me sentirei ofendido, ao
contrário, sinto-me verdadeiramente agradecido pela hospitalidade, e ...
— Não, não, fique, não preciso te conhecer, você é um crente em Jesus e
isto me basta.
— Como sabe que sou crente? Só porque o pastor me mandou aqui? —
perguntei, tentando talvez trazer um pouco de malícia para aquela família até
então ingênua o suficiente para albergar um homem de origem desconhecida
apenas pela menção do nome do Pastor Joel.
— Isso também, mas a jornada com Deus nos faz viver pela fé. Você é
meu irmão nessa jornada e minha casa é aberta para toda a família de Deus. —
respondeu o homem, sorrindo com sinceridade.
E, assim, compreendi a verdadeira comunhão dos santos, e a palavra
“irmão” nunca foi tão propícia como naquela noite.
Eldorado
É engraçado como as coisas parecem só fazer algum sentido ou,
definitivamente, não fazer sentido algum, quando estamos sozinhos para refletir.
Se, a princípio, a minha viagem até a casa do solícito homem era de lembranças
e expectativas, o percurso de sua casa a Eldorado era de profunda adoração, por
sentir que Deus estava ali, ao meu lado, sentado na humilde carroça, assim
como, um dia, assentou-se em um jumentinho para receber a glória dos homens.
Eu sentia que, agora, sim, podia confiar literalmente a minha vida a Ele e
que nada mais eu precisaria temer a partir daquele momento; que eu estaria
sempre seguro em seus braços de amor. Eu estava experimentando o que Paulo
descrevera, algo que eu tanto li, mas que, apenas agora, me parecia real: “Todas
as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito.”
A viagem fora deveras longa, de modo que precisamos de uma pausa
para o almoço no meio do trajeto, aumentando ainda mais a minha expectativa.
Apenas na segunda metade da jornada, anuviando parte do entusiasmo
que sentia, passei a ficar aflito ao pensar em Marília. Eu tentava, com todas as
forças, aceitar a vontade de Deus de que ela tinha se apaixonado por aquele
professor, amando-o a ponto de comprometer sua reputação viajando sozinha
com ele. Mas era impossível não sentir a dor de imaginá-la com outro e, o pior,
agora que eu finalmente podia estar com ela.
Eu estava convencido de que Marília nada tinha a ver com a minha
decisão, a não ser, é claro, por ter me direcionado para a Verdade; e eu estava
bem certo que o desejo de estar com ela, sem que isso fosse o maior sacrilégio,
não fora em nada influência para a minha conversão. Só que não me cabia na
mente como a vida podia ser tão injusta a ponto de tirá-la de mim, antes que eu
sequer tivesse a chance de demonstrar meu amor sem arrependimentos.
E, só naquele momento, a poucas horas de Eldorado, passei a pensar na
minha possível reação quando visse tudo isso de perto, uma vez que os
emocionantes eventos que ocorreram desde a saída da paróquia não me
permitiram refletir sobre isso.

A princípio, obviamente, eu contaria a ela a boa nova, e já até podia ver
em seu lindo rosto a alegria por minha decisão e seu sorriso maravilhoso se
abrindo como uma lua crescente. Ao mesmo tempo em que podia imaginá-la
também me virando as costas, dizendo algo como “agora é tarde demais”. A
segunda hipótese, porém, apesar de bem razoável, não obteve muito sucesso na
batalha da minha mente, simplesmente por não conseguir acreditar que poderia
caber qualquer rancor em seu doce coração.
Ao cair da tarde, o sol pronto para se pôr, a pequena carroça adentrou a
tão ansiada cidade de Eldorado. Sua placa de boas-vindas em cimento rústico
fizeram meu coração disparar. Ao redor, casas geminadas, cada qual com uma
cor diferente, conferia à cidade um local aconchegante e familiar.
O carroceiro parou em frente a alguns comércios que ficavam logo na
entrada da cidade.
— Pois bem, rapaz, a sua viagem termina aqui. — disse ele, virando-se
para trás, com seu chapéu de palha que me recordava um evento passado.
— Ah, sim... Quanto lhe devo? — perguntei, sabendo que não tinha um
tostão furado em meu bolso, visto que gastara o último vintém no almoço, mas
com a certeza de que, fosse o valor que fosse, eu arrumaria um jeito de pagá-lo o
quanto antes.
— Não se preocupe, o pastor já acertou comigo antes de sairmos.
— Oh, não, — neguei veementemente — diga a ele que eu o pagarei, e ...
— Amigo, você não conhece o pastor Joel. — disse o homem, com uma
seriedade que não me permitia continuar insistindo. — Quando ele faz algo para
alguém, não permite que ninguém o retribua. Tem algo a ver com seu galardão
no céu....
Ainda contrariado, saí da carroça e, tão logo o fiz, o homem pulou da
mesma e adentrou a cidade, rumo ao que parecia uma pequena padaria.

Com a minha mala na mão, caminhei até um dos vendedores que já
fechava a porta de seu comércio, um armarinho ao que me parecia.
— Boa tarde, senhor, poderia me informar como faço para chegar à
Igreja Luterana de Eldorado?
— E quem é você? — perguntou-me o senhor, apertando os olhos,
visivelmente irritado com a minha presença.
O homem não devia passar dos cinquenta anos, mas sua voz rouca de
fumante lhe conferia um tom de um senhor já muito idoso. Somado a isso, o
homem tinha um aspecto quase cadavérico, com o contorno de seus ossos
visíveis sob uma pele fina e um tanto enrugada.
— Er, apenas um visitante da cidade...
O senhor mediu-me da cabeça aos pés, de modo que preferi nem supor o
que se passava em sua cabeça ao considerar sua feição.
— É pra ajuda? — perguntou, com desdém. — Olha, rapaz, é bom você
saber que já temos pessoas por demais nessa cidade para receber ajuda. Não
precisamos de gente de outra cidade buscando guarida aqui também.
— O que é isso, homem? — perguntou uma senhora de baixa estatura,
aparentemente com a mesma faixa etária do homem e com um ar indignado. —
Será que você não consegue ser mais estúpido?
Arregalei um pouco os olhos, perguntando-me se não deveria procurar
outras pessoas para me informar.
— Me desculpa, moço, — prosseguiu a senhora, agora se dirigindo a
mim — é que ele não sabe conversar com gente. A igrejinha evangélica fica a
uns dois quarteirões daqui, é uma casa azul clara. Ela deve de estar fechada uma
hora dessas, mas você pode bater lá que sempre tem alguém pra atender.
Meu coração deu mais um salto ao pensar que esse alguém poderia ser a
própria Marília, levando minha mente a mais uma de suas viagens insanas. Ela
me receberia? Estaria com o tal professorzinho? Eu os encontraria juntos?
Aliança nas mãos dadas?
Meneei a cabeça para afugentar essas bobagens, agradeci a mulher e parti
para onde me havia direcionado.

---

— Tem que ser aqui. — sussurrei para mim mesmo, com a noite já a cair
como um véu sobre a cidade. Naquele lugar, o sol devia se pôr devagar,
pois, quando ouvi a sétima badalada, percebi que havia sido tapeado pelo tempo
desde quando chegara lá — o que, pelo visto, ocorrera bem mais tarde do que eu
previra.
De qualquer forma, sob uma boa fonte de luz vinda de uma luminária nas
proximidades e um mormaço agradável, parei em frente à casa mencionada pela
senhora do armarinho, com o mesmo estilo de letra e símbolo da igreja do Pastor
Joel.
A casa era muito bonita, um sobrado com uma varanda emoldurada por
tábuas de madeira antigas e adornada com desenhos em gesso pintados de azul
marinho, o que lhe conferia um aspecto rústico e sofisticado ao mesmo tempo.
Acho que não preciso mencionar como estremeci por completo, logo
após dar as quatro batidas finais que me levariam ao meu sonho vivo. Penso que
não tinha noção de quanta falta Marília me fizera, pois ali, diante daquela porta,
cheguei a ter falta de ar ao pensar em revê-la, sentir seu cheiro mais uma vez,
ainda que a última em que eu me permitiria como seu amante platônico. Ela
seria de outro e tudo seria como antes. Ela como meu tesouro inalcançável e eu
como refém de seu amor.
Houve algum barulho do lado de dentro, algo que parecia uma cadeira
sendo arrastada, um breve silêncio e, em seguida, o som de um molho de chaves
batendo na porta.
Quando a porta se abriu diante de mim, exalando um aroma amadeirado
de dentro da igreja, um senhor franzino, na casa dos sessenta anos, mediu-me
igualmente ao vendedor, porém, diferente do primeiro, olhou-me com ternura.
— Olá, amigo, a Paz do Senhor! Em que posso ajudar?
— Boa noite, senhor, — disse, após um instante, a voz a falhar — meu
nome é Augusto. Eu gostaria de falar com a Srta. Marília, ela se encontra?
— Augusto? — disse, como se o nome lhe soasse familiar.
— Sim, quer dizer, eu sou, não, — neguei nervosamente com a cabeça —
era da cidade dela, me converti há pouco tempo lá e, então, vim aqui para...
— Ora, então posso chamá-lo de irmão, mas que bênção! Vamos, entre
depressa, Marília está lá nos fundos, separando os itens do bazar, ela vai gostar
muito de revê-lo. Ela já sabe da sua conversão?
— Ainda não. — respondi, acompanhando o homem afoito casa adentro.
— Nossa, isso será uma linda surpresa para ela! Ela andava tão tristonha
esses dias, penso eu que por conta das poucas doações. — divagou ele. — Mas,
quem sabe, sua visita não traga a alegria que estava faltando a ela?
— Bem, veremos... — disse, com poucas esperanças.
— Marília! — Chamou o senhor, entrando em uma sala e saindo para um
quintal nos fundos da casa, fazendo meu coração novo disparar. — Você tem
uma visita muito especial. — disse, sorrindo quase que maliciosamente para
mim.
— Quem? — perguntou a minha doce voz preferida do quintal, voz que
eu reconheceria em qualquer lugar, em qualquer tempo.
O senhor não respondeu, ao invés disso, fez um sinal para que eu
entrasse.
— Fique em paz, filho. — disse, deixando-me sozinho.
Ao passar pela porta, avistei os lindos cabelos de Marília caídos sobre
uma face úmida, enquanto ela separava algumas peças de roupas no chão. À sua
frente e virado para mim, um rapaz jovem, louro, de cabelo partido e cheio,
olhou-me, seguido por Marília.
— Augusto? — perguntou, incrédula, deixando a peça que segurava cair
entre as outras.
O rapaz correu os olhos entre mim e ela, terminando com um olhar
desconfiado para mim. Eu sabia que aquilo era a última coisa que eu devia estar
sentindo, mas não pude evitar que uma imensa inveja dele transbordasse em meu
peito e se manifestasse em uma feição perturbada.
Quando olhei novamente para ela, Marília se levantou, sem desviar os
olhos de mim, respirando com alguma dificuldade, na visível incredulidade de
me ver ali.
Aproximou-se, então, com cautela e, também mirando meus trajes,
perguntou surpresa:
— O que houve com as suas roupas, padre?
— Bem, acho que não sou mais um padre... — disse, dando nos ombros
com um meio sorriso, esperando que ela entendesse o recado.

Marília entendeu, e demonstrou crescente surpresa tapando a boca aberta
com as duas mãos.
Em seguida, fez o que eu menos poderia supor neste reencontro. Pulou
em meus braços, como se sempre estivesse lá, e apertou-me contra si com
força.
— Oh, Augusto, meu Deus, glória a Deus, glória a Deus! — louvou,
repetidamente.
Apesar de forçar-me a interpretar o seu gesto como uma demonstração de
alegria apenas pela salvação da minha alma, não pude deixar de pensar em seu
noivo bem ali ao lado, e no que poderia estar pensando de nós.
E, então, pelo que desejei em meu íntimo ser a última vez na vida, contra
toda a minha vontade e todo o meu desejo, desvencilhei-me com cuidado de seu
abraço caloroso, ao que ela não permitiu por completo, segurando agora em
meus braços, a poucos centímetros de mim.
Discretamente, porém não imperceptivelmente para mim, o homem
resolvera entrar na casa e nos deixar a sós no quintal, em meio a roupas de
doação e a sentimentos desperdiçados.
Só Deus sabe que a prudência e o respeito àquele homem foram o que me
impediram de abraçar Marília ainda com mais força, beijar-lhe mais uma vez e
dizer a ela o quanto a amava e a queria para mim, agora que eu finalmente a
podia fazê-la feliz como antes eu não podia e só a machucava.
E só Deus sabe também como é difícil esconder tamanha paixão, pois
ainda que os braços tenham forças, ainda que as pernas corram, os olhos e a
respiração sempre haveriam de denunciar. E lá estava eu, com os olhos cravados
nos seus, dizendo a ela tudo o que eu não podia em palavras e arfando como se
ela fosse meu ar após um naufrágio.
Ela, então, retirando minhas últimas forças, puxou-me para perto de si,
enquanto seu rosto se aproximava do meu e seus olhos se fechavam como um
pôr-do-sol.
Foi quando, finalmente, consegui tirá-la dos meus braços, sentindo como
se tirasse uma estaca do peito, e virei-me contra a parede, a fim que ela não visse
as eminentes lágrimas que de mim sairiam pela dor da perda de tudo aquilo que
eu tanto queria e que poderia estar usufruindo naquele instante, não fosse nosso
ingrato destino. Céus, aquilo era muito mais que um homem poderia
suportar.
— O que há, Augusto? Você não tem mais o voto, você, você é livre
agora! — Marília começou a dizer, e eu sentia a agonia em sua voz. — Augusto,
achei que você quisesse ficar comigo! Que se tudo isso acontecesse, nós dois
poderíamos... como, droga, como fui tola em acreditar!
— Ficar com você? — perguntei, virando-me para ela novamente e
vendo que não era o único com lágrimas nos olhos. — Como posso ficar com
você? Posso até ser livre, mas você não é mais, você pertence a outro!
— Outro? Mas que outro? Do que você está falando? — Sua voz havia
subido um tom e seus olhos corriam desesperados ao encontro dos meus.
— O professor! — eu disse, carregando nessa palavra todo o meu ciúme
e a minha ira não declarada, até mesmo a mim, por ela ter dado o seu amor a
outro tão depressa, e este, por ter tragado meu amor, tão logo eu a ele estivera
ausente.
— Mas, homem, que professor?
Sua feição era de genuína incompreensão, mas eu estava possesso demais
para perceber.
— O maldito professor que surgiu como quem não quer nada e que se
aproveitou do conhecimento da Verdade para te enredar, tão logo deixei de vê-la,
com quem você viajou para cá e que, a essa altura, já deve estar até de
casamento marcado! — Minha voz também estava alterada e eu já não conseguia
mais controlar o volume, enquanto apontava com as mãos trêmulas na direção
em que saiu o homem que nos deixara há pouco.
— Augusto, por Deus, você está totalmente louco! — disse Marília,
desesperada. — Vim para Eldorado com meu tio-avô, que já era convertido há
muito tempo e eu nunca soube. Meu amigo professor não tem nada a ver com
isso!

— Ah, não? Então quem era esse homem que acabou de sair daqui? —
gritei, a centímetros de distância dela.

— Antônio? O que tem o Antônio? — indagou-me, aturdida — Ele é
daqui da cidade, mora na casa ao lado com a esposa. O que deu em você?
Engoli seco. Julguei e condenei o pobre homem sem que ele nada tivesse
a ver com nossa história.
— Certo, então onde está o sortudo professor que conquistou a única
mulher que eu amei nessa vida? — perguntei, olhando ao redor simbolicamente,
mesmo sabendo que somente nós dois estávamos lá. Eu ainda estava totalmente
descontrolado.

— Augusto, por tudo o que é mais sagrado, você precisa me escutar. —
suplicou ela, com as mãos no rosto, procurando seriamente se controlar. — Não
tem nenhum professor aqui, muito menos alguém com quem eu pudesse me
casar. Inácio, o tal “professor” que você deve estar se referindo, que me levou a
conhecer a Igreja Luterana, viajou um pouco antes de eu sair do externato, para
trabalhar no Pará. Depois que ele se foi, nunca mais ouvi falar dele.
Engoli seco, o coração cada vez mais a disparar.
— Além do mais, — prosseguiu, aproximando-se novamente de mim —
o que você acha que eu iria querer com qualquer outro homem, se o meu coração
ficou com você esse tempo todo? A minha capacidade de amar foi tirada quando
eu me afastei de você. Como pôde pensar que eu estaria com outro? —
perguntou, com a voz embargada, enquanto suas lágrimas corriam junto com as
minhas. — É você que eu amo, quando você vai enxergar isso?
Toda raiva, todo ciúme se dissiparam nessas palavras que devolveram, de
repente, toda a paz retida desde que me pusera a pensar no assunto. Desde que a
vira pela primeira vez no confessionário.
— Sou um tolo, meu amor, eu sou um tolo. — foi o que pude dizer,
enquanto me atirava em seus braços e a abraçava com tamanha força que temi
machucá-la. Força essa de um sentimento há tanto tempo reprimido e agora
liberto, podendo se manifestar sem medo.
Em qualquer outra ocasião, sentiria grande vergonha em chorar daquela
forma diante de uma mulher, mas naquelas circunstâncias, era tão inevitável
como amá-la. E, enquanto eu a abraçava, respirava fundo o aroma de seus
cabelos, apertando-os com a mão, e beijando seu rosto como se eu estivesse em
mais um dos meus desatinados sonhos, que se desfariam diante de meus olhos
em alguma sarjeta, ainda tentando encontrar o caminho para Eldorado.

Lágrimas ainda corriam em seu rosto, quando eu o segurei com as duas
mãos, como se fosse o baú do meu tesouro e a fechadura estivesse bem na sua
base, a qual eu abri com um beijo acumulado de todos os meus sonhos, dias e
noites acordados, todos os meus desejos e planos impossíveis, inviáveis,
impróprios.
Ela me envolvia com seus braços e devolvia com avidez meus beijos, e
estava bem claro para ambos que nenhum dos dois pretendia terminar com
aquele momento tão cedo.
Novas Criaturas
Quando, finalmente, nosso coração voltou a bater com normalidade, eu
ainda não estava disposto a soltá-la. Marília se recostava em meu peito, enquanto
eu me recostava sobre uma parede rústica do quintal da igreja, sabendo que o
frio chegara com a noite por conta do vento que brincava com os cabelos dela,
bem como meus dedos que alternavam entre seus cachos, ora enrolando-os, ora
esticando-os, com o cuidado de quem mexe em uma boneca de colecionador.
Mas o frio em si de longe eu sentia, pois aqueles braços impossíveis ao
meu redor me aqueciam com ternura. Sua respiração, agora ritmada, era como se
ela em mim adormecesse, e a única prova de que de fato não o fazia, eram suas
mãos que, de tempos em tempos, acariciavam levemente minhas costas.
Eu tinha tanto a dizer a ela, — Deus sabe o quanto — mas, como nunca
imaginara que meu sonho poderia, um dia, se tornar realidade, não fazia ideia
agora de como exprimir meus sentimentos da forma mais fiel e bonita a ela. Não
sabia como declarar meu amor.
Então, ali em pé, aproveitando o fato de não estarmos face a face no
momento, tentei dizer um pouco dos muitos sentimentos que ela já havia me
proporcionado desde o princípio, mas acabei por começar pelo final.
— Marília, — sussurrei, com um pouco de juízo agora em mente,
pensando nos demais presentes na casa — não sabe o quanto eu esperei por esse
momento. Não, — interrompi, sentindo-me um desajeitado com as palavras —
na verdade, não esperei. Sonhei desesperadamente por esse momento. Nunca
tive o atrevimento ou a pretensão de realmente esperar por isso.
Marília, então, frustrou os meus planos, olhando diretamente para mim,
com curiosidade, levando embora o resto da coragem e as poucas palavras que
eu havia reunido.
— Bem, você simbolizou o que eu sempre quis, mas não devia ter. —
resumi, a fim de terminar aquele suplício e, talvez, mudar de assunto.
— Fala como se eu fosse o pecado em pessoa. — disse, tentando parecer
séria, mas esboçando sua travessura de sempre.
— Não. Quero dizer, você sabe... — esquivei-me, constrangido,
suspirando para ganhar tempo.
— Eu sei. — ela disse, me abraçando novamente, em silêncio, por mais
um instante.
Quando se passa mais de dez anos pensando como um padre, não se
consegue simplesmente ser romântico ou conquistador. É como uma criança
comportada com um rifle nas mãos. Nunca usou, não sabe como usar e nunca
teve a menor perspectiva de um dia ter que usar. E lá estava eu, Augusto, um ex-
padre, com uma mulher em meus braços, muito mais perto do que jamais
sonhara um dia ter, e sem ter a menor noção de como demonstrar em palavras
tudo o que ficara preso em mim por todo aquele tempo. Lá estava eu, uma
criança, com um rifle nas mãos.
Foi quando, soltando-me mais uma vez, ela me olhou com seriedade e,
após um breve suspiro, pôs fim a minha agonia com as palavras.
— Não sabe como meu coração está feliz por ter você aqui comigo. Isso
tudo é mais que um sonho, mas ainda mais por saber que você também
encontrou a Verdade. E acho que ela sempre esteve muito mais perto de você do
que de mim, até. Você esteve em contato com a Palavra por todo esse tempo e,
mais do que isso, via discrepâncias na Igreja que ninguém mais via ou, ao
menos, ninguém tinha a coragem de dizer. Eu já disse e repito que, não fossem
os seus sermões abordando a Palavra naquela outra ótica, de um ponto mais
desafiador e menos comodista, eu jamais teria chegado até aqui.
— E, consequentemente, eu também não.
Ela sorriu e acariciou o meu rosto, fazendo-me, mais uma vez,
estremecer.
— Sempre achei que um homem como você não devia ser confinado ao
sacerdócio. — disse-me, hipnotizando-me com a dança dos seus olhos.
— Como assim? — perguntei, inocente.
Marília abriu um novo, porém conhecido, sorriso malicioso.
— Sabe o quanto é um homem belo, Sr. Augusto?
Acredito que nem na conversa com o Padre Dionísio, a qual ele
descobrira os meus sentimentos por sua afilhada, devo ter-me tornado em tom
mais escarlate do que naquele momento. Fato era que Marília não era tão boa em
confortar o constrangimento alheio, pois, no instante seguinte, já estava a
debochar do meu embaraço.

---

Ao deixarmos, por fim, o quintal, Marília ofereceu-se para me mostrar o


restante da casa, mas, apesar da minha real curiosidade em conhecer o
aconchegante espaço — que parecia conter mais cômodos do que aparentava
pelo lado de fora —, o aroma vindo da cozinha e o som de conversas alegres me
detiveram por um momento na soleira da porta.
Marília, então, exímia observadora que era, percebendo meus olhares, —
ou ouvindo meu estômago roncar, um dos dois — convidou-me para jantar antes.
Feitas as devidas apresentações, todos me receberam com muita
hospitalidade e entusiasmo. Foi preciso apenas cinco minutos de conversa com
Antônio para eu ver quanta grandeza de espírito havia naquele jovem, talvez um
ano ou dois mais moço do que eu. Ele não chegou a fazer muitas perguntas a
mim referentes ao meu passado, pois, ao que eu descobrira constrangidamente,
todos da pequena igreja já tinham ouvido falar de mim através de Marília. Fato
era que, mostrando sua comoção ao ouvir a história da minha conversão, este se
pôs, mui gentilmente, a oferecer-me uma muda de roupas suas, muito limpas e
perfumadas.
Reunidos, enfim, todos ao redor da mesa, senti-me tão feliz e realizado,
que a simplória canja com torradas me pareceu um verdadeiro banquete real.
Após me bombardearem de perguntas, as quais, exceto por me fazerem
falar tanto enquanto comia, eram agradáveis de responder — perguntas acerca da
vida eclesiástica, ou sobre questões cruciais da bíblia —, todos procuraram
dispersar as interrogações entre si a pedido de uma senhora muito amável,
Eufrida, que assim solicitou para que o “menino pudesse comer em paz”.
Já estávamos todos no segundo prato da canja maravilhosa da Dona
Eufrida, quando um assunto me trouxe novamente para a conversa.
— Pois é, meu filho, esse é o problema. — dizia Seu José, um senhor
idoso, com traços orientais, que demonstrava grande simplicidade e fé, a
Antônio, quando o último questionou acerca do futuro da igreja. — Todos nós
estamos envolvidos com as doações, o material das crianças, o curso para novos
membros, mas nenhum de nós aqui tem condições para pastorear o rebanho que
vai se formar.
— Mas, com certeza, Deus vai capacitar alguém, Seu José. — declarava
Antônio, esperançoso. — Ele não ia nos abandonar justo agora.

Seu José passava a mão na testa, perturbado, suspirando vez ou outra.
— Eu sei que Deus vai nos ajudar, mas alguém aqui acredita ter sido
chamado por Deus para ser pastor? Para cuidar desse rebanho?
Um silêncio mórbido se fez na cozinha, deixando o ambiente antes
alegre, agora instável.
— Quem é crente aqui há mais tempo? — perguntou um rapaz, cujo
nome eu desconhecia.
Dona Eufrida foi a primeira a responder:
— Seis anos.
— Dois — disse Antônio
— Eu entrei há poucos meses na família — respondeu Marília,
recebendo sorrisos afáveis.
— Quatro anos e meio.
— Dois, igual ao irmão.
— Um ano.
— Cinco anos.
— Eu sou crente há onze anos. — disse Seu José, provocando reações
nos demais. — Mas não me olhem com essa cara, que não tenho o menor jeito
para pastor. Sou um velho turrão e não sei explicar a uma mosca como voar.
Além disso, não tenho um conhecimento muito profundo da Palavra, a não ser
aquilo que o Senhor me revelou nas minhas leituras diárias e o que o Pastor Joel
teve a paciência de explicar a esse velho. Acho que cresci muito pouco nesses
anos em termos de doutrina, para dar mais atenção à obra e ao trabalho. Não, eu
não tenho condições de pastorear uma igreja. — disse o senhor, com a cabeça
agora baixa, e todos compreenderam que o que ele dizia não era por falsa
modéstia ou por descaso com o serviço. Muito pelo contrário, aquilo denotava
profundo respeito com as coisas de Deus.
— Quem? — prosseguiu Seu José, levantando as mãos. — Quem, meu
Senhor, irá guiar o teu povo nessa cidade?
— Seu José, — irrompeu a voz ao meu lado — eu sei quem poderia ser o
pastor dessa igreja.
Marília olhou para mim e o que eu temia pelo seu olhar justamente se
sucedeu.
— Augusto! — completou.
— Augusto? — Seu José indagou. — Mas como, esse garoto acabou de
se converter, é como se estivesse ainda nas fraldas da vida cristã!
— Sim, Seu José, mas acontece que ele era um padre, ou seja, estudou
durante anos a Palavra e, se quer saber, reconheço que foi em uma de suas
pregações que eu me converti.
Olhei surpreso para ela, que trocou mais um olhar comigo, e todos, por
alguns instantes, se silenciaram mais uma vez, olhando ora para mim, ora para
Seu José.
— Bem, devo reconhecer que a bagagem que Augusto carrega não deve
ser em nada pequena, a não ser aquela maleta de roupas que ele trouxe em suas
mãos. — disse, finalmente, o senhorzinho, arrancando risos de todos.
— Seu José, concordo com Marília que Augusto seria a pessoa mais
indicada para ministrar os sermões. — disse Antônio, de repente.
— Vamos com calma, vamos com calma. — ponderou Seu José — Só o
conhecimento da Palavra não é o bastante, é preciso uma verdadeira experiência
cristã. Por favor, não se ofenda com isso, Augusto, você com certeza deve ser
um exímio ouvinte da Palavra, mas desde quando é um verdadeiro cumpridor
dela?
Todos olharam para mim agora, aguardando uma resposta, mesmo o tom
da pergunta de Seu José ter sido claramente retórico.
Eu não fazia ideia do que dizer, pois Marília começou esse assunto e
todos deram continuidade, falando da possibilidade de eu pastorear uma igreja
que eu conhecera naquele dia, pregando sobre uma religião que eu aderira a
menos de 48 horas, como se eu não estivesse lá.
— Eu, — comecei, sentindo a voz falhar — com muita sinceridade,
gostaria de agradecer aos irmãos pela cogitação de tornarem-me o pastor desta já
a mim querida igreja, mas devo dizer que concordo plenamente com Seu José,
pois, de fato, eu não teria condições de assumir esse ministério. Dediquei nove
anos da minha vida a fim de tornar-me um padre, de saber tudo sobre o livro de
ensino — a Palavra do Senhor — conhecer todos os rituais e seus significados,
suas simbologias, a preparação da homilia, enfim, tudo para, um dia, assumir
aquela posição que, hoje, deixei sem remorso algum, por amor do mesmo Cristo,
pelo qual um dia deixei a minha casa na promessa de que “nenhum que deixar
sua casa e seus bens por amor de mim deixará de receber, ainda nessa vida, e na
vida vindoura, cem vezes mais”. Portanto, eu...

— Muito bem, achamos o nosso pastor. — disse Seu José,
interrompendo-me e fazendo-me dar um pulo sobre a cadeira, ao bater
animadamente a palma da mão na mesa, ao falar.
Todos sorriram, como se aquela fosse uma daquelas pegadinhas, em que
eu era a vítima.
— Mas o senhor tem certeza, Seu José? — disse uma mulher magrinha e
jovem que, até então, não se pronunciara.
— É, eu comecei essa prosa, esperando um sinal de Deus sobre a
vinda de um novo pastor, mas eu nunca imaginei que a pessoa que o Senhor
revelaria seria esse moço simpático que acabou de chegar aqui. — respondeu. —
E está mais claro do que a água, para mim, que esse homem foi feito para pregar.
O testemunho que a irmã me deu da vida desse rapaz, toda a sua devoção na
paróquia, sua adoração por Deus, todas as lutas que ele passou por amor a Ele, o
conhecimento bíblico que ele provou aqui para nós hoje, durante o jantar, e essa
profissão de fé feita aqui, agora, na frente de todo o mundo, é mais do que
suficiente para sabermos que ele poderia ser nosso pastor.
Todos sorriram, mais uma vez, agora para mim, incentivando-me com
gestos, enquanto eu começava a duvidar que aquilo tudo fosse mesmo real.
— Eu continuo sem compreender. — confessei, fazendo todos cessarem
suas conversas paralelas lentamente. — Eu sou novo nessa nova vida, descobri
há pouco a Verdade, não devo ser o mais indicado para o cargo.
O senhor sorriu e suspirou mais uma vez antes de falar, cruzando os
dedos e apoiando os cotovelos na mesa.
— Filho, me desculpe a bagunça, as nossas conversas são sempre assim
mesmo, sem pé nem cabeça, e aí a gente chega às conclusões, sem nem tocar no
ponto principal. É claro que você não iria começar seu ministério já amanhã
cedo. Não sei se você conhece o nosso ministério, mas nós todos fomos
mandados pelo Pastor Joel para evangelizarmos essa cidade pequena e, então,
retornarmos aos nossos lares. Todos, menos essa menina mirradinha, a Cidinha,
fruto do nosso trabalho, um amor de criatura. — disse, apontando para a menina
que há pouco se pronunciara.
Olhei para os presentes, surpreso com a história que os unia.
— Coisa que a gente não esperava — prosseguiu, após um suspiro
cansado — era que a cidade não tinha uma igreja cristã evangélica sequer. A
gente sabia das necessidades das pessoas daqui, muito carentes, mas imaginava
que, com algumas doações e algumas pessoas evangelizadas que dessem
continuidade ao ministério, a gente estaria com a nossa missão cumprida. Ledo
engano. E aqui estamos nós, montando uma igreja a partir da casa de seu
Gerônimo, para que os moradores daqui não tenham só o conhecimento da
Palavra, mas como crescer na fé. Bem, como eu já disse, nós temos tudo, menos
um pastor, alguém com domínio da Palavra, sabedoria e convivência com o meio
“eclesiástico”, vamos assim dizer. E acredito, pelo que eu já disse também, que
você seria a pessoa ideal para isso. Mas é claro que isto não passa de um convite,
você está livre para decidir.
E, assim, sem uma pergunta oficial, Seu José parou de falar, enquanto
todos se dirigiram agora para mim, esperando uma resposta.
— Eu, eu não sei o que dizer... — comecei, engolindo seco.
— Não precisa responder agora, rapaz. — tranquilizou-me Seu José. —
Há cinco minutos você era apenas o novo hóspede e, de repente, tornou-se um
candidato a pastor, vamos com calma. Eu só queria saber se você também sente
isso de Deus ou se, pelo menos por enquanto, acha que isso está fora de questão.
— Bem, — eu disse, percebendo que já estava suando com toda aquela
tensão — o que eu acredito, honestamente, é que Deus me chama para o
ministério da pregação. Acredito que ele tem me revelado coisas e que,
certamente, gostaria que eu repassasse isso aos demais. Então, não pergunte a
um ex-padre se ele quer pregar. — eu disse, em tom de brincadeira, ao qual
todos riram. — Mas eu realmente preciso de um tempo para pensar a respeito,
conversar com Deus, ouvir a sua voz e, então, tomar essa tão importante decisão.
— Falou certo, meu jovem, deve orar mesmo. E agora, Dona Eufrida, e a
sobremesa?
E após toda aquela tensão, saboreamos um delicioso pudim de leite
fresco. Assim, uma coisa era certa: com tanta franqueza, amor, presença de Deus
e comida sem par, sendo o pastor ou apenas mais uma ovelha, era aquele o lugar
onde eu queria estar.
O Chamado
Quatro dias depois daquela conversa na cozinha, o assunto pastoral
voltou à berlinda.
Só ao cair da tarde, Marília e eu conseguimos terminar de organizar todos
os itens de doação vindos das Igrejas Luteranas espalhadas por todo o estado.
Marília, certamente, era a que mais se empenhava, e eu começava a temer por
sua saúde, quando vi que seu trabalho era sempre constante e sem pausas para
descanso ou para um lanche da tarde.
— Marília, trouxe um pouco de chá para você. — disse, retornando da
cozinha, onde todos insistiam para eu lá permanecer, tirando dúvidas acerca da
Trindade.
— Ah, obrigada, acho que finalmente está tudo pronto por aqui. — disse,
olhando tudo ao seu redor, com as mãos na cintura e, depois, sentando-se no
murinho do quintal.
— E eu acho que você realmente trabalhou demais.
— Não foi nada, além do mais, eu adoro fazer isso. Só de pensar nas
pessoas que vão receber essas coisas, meu Deus, é maravilhoso.
— Você é maravilhosa. — disse, esquecendo-me de filtrar minhas
palavras de amor para momentos mais propícios.
Ela sorriu e segurou minha mão, enquanto sorvia um gole do seu chá.
— Estou tão feliz que está aqui que ainda não consigo acreditar que tudo
isso seja real. — ela disse, depois de alguns instantes, olhando em meus olhos.
— E eu? A todo instante fico achando que vou acordar mais uma vez na
paróquia, vendo que tudo não passou de mais um sonho com você... — disse,
vendo minha voz falhar, ao pensar no que eu estava revelando.
— Você sonhava comigo? — perguntou, apertando minha mão sob a sua.
— Depende do sentido de sonhar... — disse, tentando ganhar tempo.
Como era constrangedor falar de sentimentos. Às vezes, eu achava que
realmente não nascera para aquilo.
— Sonhar no sentido de almejar, — prossegui, desconfortável —
acredito que sempre sonhei com alguém como você na juventude, mas acho que
nunca cri que, de fato, alguém como você existisse. Além do mais, eu tive um
chamado para algo maior do que a simples busca pelos próprios sonhos: a busca
pelos sonhos de Deus. E, ainda hoje, esse é o meu maior sonho.
Marília aquiesceu, mas sua expressão denotava que sua pergunta não
tinha sido respondida.
— Quanto aos sonhos noturnos... — continuei, mudando meu tom de
voz, pigarreando algumas vezes, enquanto ela me olhava com curiosidade e com
um sorriso incentivador no rosto. — Meu Deus, quer mesmo saber sobre isso?
— Claro que sim! Acha que é todo o dia que uma mulher descobre que
esteve presente nos sonhos de um padre? — perguntou, rindo.
Eu, porém, como há muito não sentia, fui assaltado por uma profunda
tristeza, pensando no quão distante eu estava de Deus naquela época, não
somente por ainda não ter a Verdade comigo, mas por ter a consciência de um
pecado — a quebra de um voto sagrado — e afrontar ao Senhor com meus
sentimentos por uma pessoa nas minhas condições.
— Me desculpe. — pediu Marília, interrompendo meus pensamentos e
aproximando-se mais de mim.
— Não, a culpa não é sua. Nunca foi.
— Augusto, por favor, você precisa deixar para trás essa história de
culpa. Todos nós éramos culpados para o Senhor, mas Ele verdadeiramente nos
perdoa, joga no lago do esquecimento nossos pecados.
Olhei-a furtivamente, sabendo que ela estava certa, mas não acreditando
que ela, um dia, pudesse compreender a gravidade do meu pecado. Abaixei,
então, a cabeça, acreditando ser melhor encerrar aquele assunto.
— Ótimo, quer falar de culpa, então falemos. — disse, soltando a minha
mão, dando um forte suspiro e virando-se para frente, com sua xícara entre as
mãos. — Quando eu era mais jovem, gostava de um rapaz que morava em frente
da casa que na época era dos meus avós, aquela que você conheceu me
visitando. Como eu só passava lá nas minhas férias escolares, eu só via esse
moço uma vez por ano, no verão. Um dia, eu o procurei e marquei um encontro
com ele às escondidas...
— Marília, você não precisa fazer isso, — interrompi, aflito. Aquilo era
tudo o que eu não precisava naquela hora: Marília se confessando novamente
para mim — não sou mais um padre, não absolvo e nunca absolvi pecado algum,
e isso não vai mudar o fato de que...
— E quem disse que estou contando isso para ter o seu perdão? —
perguntou, como um tapa na minha cara.
Eu virei-me mais uma vez para frente e decidi que não falaria mais nada
até que ela concluísse a sua ideia.
— Apenas me escute, está bem? — disse após mais um suspiro,
amenizando o tom de voz. — Bem, onde eu estava? No garoto, certo. Nós enfim
nos encontramos e, só depois de algum tempo, eu fui perceber quais eram as
intenções dele, afinal. Saí correndo, sentindo-me péssima por ter buscado aquilo.
Apesar de saber que nada tinha acontecido efetivamente, minha mente me
acusava, e eu passei aquela noite em claro, pensando em quando eu teria
coragem de me confessar com o meu padrinho, que na época era quem ficava no
confessionário. Por fim, eu me confessei e fui “absolvida” daquilo. Mas nunca
me senti, de fato, perdoada. Minha mãe nunca soube disso, e o garoto se mudou
duas semanas depois, mas eu me lembro até hoje do olhar de desprezo que a sua
tia me dirigiu no dia da sua partida, como se eu fosse uma perdida.
Eu a olhava agora com surpresa, pensando aonde ela queria chegar com
tudo aquilo, mas vendo que, para mim, de qualquer forma, não estava sendo
mais difícil do que para ela.
— Enfim, depois disso, eu não me aproximei, nem permiti que mais
nenhum homem se aproximasse, por não acreditar mais que alguém pudesse ter
boas intenções, apesar da insistência de minha mãe de que uma moça não
deveria ficar sozinha para sempre.
Continuei a fita-la, em expectativa.
— Mas sabe que um dia, — prosseguiu, mudando o tom da conversa —
em mais uma das minhas férias na casa da minha avó, eu devia ter uns dezesseis
anos, mais ou menos, eu estava voltando do mercado, quando vi um rapaz
agachado no chão, recolhendo várias moedas que uma jovem senhora tinha
deixado cair. Ao seu lado, tinha um padre, que não passava muito dos trinta
anos, olhando toda a cena, apressando o rapaz para que recolhesse mais rápido
as moedas, mas não movendo um dedo para ajudá-lo. Por fim, o rapaz não só
pegou as moedas, como as colocou de volta na carteira da senhora e ainda se
ofereceu para carregar suas sacolas. Só que ela se recusou e saiu, sem nem ao
menos agradecer. Então, o padre que acompanhava o jovem o puxou pelo braço,
dizendo que, por culpa dele, estariam ambos atrasados para a missa em que já
deveriam estar. Como o caminho para a casa era na mesma direção, ainda pude
ouvir o mais velho dizer, após o jovem insistir que era seu dever ter feito o que
fez:
“Quer um motivo para ter deixado de lado aquelas moedas? Pois posso te
dar vários: a jovem senhora não deve ter muito mais que a minha idade, a rua
estava praticamente deserta para você se dar o trabalho de pegar aquelas moedas
e era evidente que, pela insatisfação por sua demora, a senhora nem o
agradeceria... Além do mais, você não anda nos confessionários para saber a
vida daquela mulher. Espero que isso lhe sirva de lição: um padre não é escravo
dos outros, é servo do Senhor!”.
Mas, então, o rapaz respondeu:
“Sinto muito, padre, mas, com todo o respeito, não concordo com o
senhor, acho que quando servimos à imagem e semelhança do Senhor, servimos
ao Senhor também.”.
— Enfim, — prosseguiu, após uma pausa de efeito, como se voltasse
para o quintal comigo e a xícara de chá — naquele dia, eu percebi que existiam,
sim, pessoas com boas intenções, ainda que um candidato a padre, e que, talvez,
eu encontrasse um dia alguém assim para mim.
— Meu Deus, como você se lembrou disso? Faz tanto tempo... —
comentei, com a mesma nostalgia. Aqueles eram Padre Teodoro, meu antigo
professor, e eu.
— Está me chamando de velha? — perguntou, desanuviando a face
contrita.
— Não, mas é que isso já faz o quê? Sete, oito anos. Eu estava ainda no
primeiro ano de filosofia. Questionando tanto os padres. — comentei,
lembrando-me dos sentimentos conflitantes daquela época.
Marília assentia, distante.
— Então você já me conhecia desde aquela época? — perguntei, de
repente, abismado. Como ela pôde ter passado despercebida por mim por tanto
tempo?
— Conhecer eu não conhecia, — explicou-me, apoiando a xícara no
muro — como eu disse, eu só ia para lá nas férias, mas acabei me habituando a
encontrar algumas pessoas. Só passei a conhecer mesmo as pessoas dali quando
me mudei definitivamente para a casa que era da minha avó, que Deus a
tenha.
— Mesmo assim, isso faz muito tempo. E eu não fazia ideia que tinha
alguém escutando a nossa conversa. — provoquei-a, cutucando levemente seu
braço.
— Eu não estava escutando a conversa de vocês. — respondeu, um
pouco constrangida. — Como eu disse, fazia parte do meu caminho, e o jovem
moço chamou a minha atenção.
— Os bastidores de uma igreja são muito diferentes do que se imagina.
— Acho que em todo lugar é assim.
— É, talvez.
— Sabe, acredito que você já era um escolhido de Deus desde aquela
época. Como você pôde, desde então, mexer tanto com a minha razão, com o
que eu acreditava, sentia?
Eu a fitei, pensando se ela estaria aguardando uma resposta.
— Acho que você veio pra mudar a minha vida. — ela concluiu, olhando
para frente. — E a de muita gente.
— Não sei...
— Como não? — disse, eufórica, olhando novamente para mim. — Você
tem esse dom, Augusto, diz coisas certas, nas horas certas, tem o dom da
Palavra, do Evangelismo, você como pastor daqui faria uma revolução!
Eu ponderei, olhando para o chão.
— Me desculpe, — pediu mais uma vez Marília, contendo-se — sei que
Seu José deixou esse tempo para você pensar.
— Não, eu sei, eu tenho orado, mas estou muito inseguro quanto a isso.
— Augusto, não quero te pressionar, mas você não precisa saber o que
fazer, sua segurança tem que vir de Deus, como sempre acredito que veio. Ele
vai estar com você.
— Marília, acabei de me converter, por favor, entenda, não sei nada a
respeito dos dogmas de uma igreja evangélica, não posso ensinar aquilo que nem
eu mesmo sei. Tudo o que tenho ciência é que Jesus morreu por amor de mim
para me livrar da condenação eterna e que, pelo fato de eu crer nisso e seguir os
seus passos, e saber que apenas isso basta, eu serei contemplado por essa graça.
E só.
— E é só isso que você precisa saber! Foi o que bastou para você se
converter. E, se mais pessoas souberem, terão condições de se converterem
também.
Eu me calei mais uma vez, não sabendo mais como argumentar.
Marília, então, soube, segurando mais uma vez a minha mão e dizendo
de cabeça baixa e olhos fechados:
— Senhor meu Deus, eis aqui seus servos para falar contigo. Fiz o que o
Senhor colocou no meu coração para fazer, porque eu realmente acredito que foi
com esse propósito que o Senhor trouxe Augusto aqui, mas a tua serva não está
sabendo se expressar. Senhor, eu sei que Tu não escolhes as pessoas pelo que há
de bom nelas, até porque todo dom perfeito e toda boa dádiva vem do alto, mas
eu tenho para mim que Augusto tem um dom único de tocar no coração das
pessoas com o teu Espírito Santo e que, quando ele fala, bênçãos fluem de seus
lábios, e que essas bênçãos não deveriam ser aprisionadas somente em seu
interior.
Meu coração se acelerava com aquelas palavras, vendo que o Senhor já
agia.
— Portanto, — concluiu — eu te peço, meu Deus, que toque em seu
coração, assim como tocaste no meu, para que ele veja a necessidade do povo
dessa cidade, sedento por uma Palavra tua e por uma interpretação bíblica
coerente, de quem estudou com afinco as tuas Escrituras. Mas seja feito
conforme os teus propósitos e o teu tempo. É em nome do Senhor Jesus que eu
oro. Amém.
A Resposta de uma Oração
A oração de Marília foi respondida alguns dias depois, após já termos
feito as doações, quando eu tive um sonho que me pareceu muito mais pertinente
do que qualquer realidade então vivida. Nele, eu estava sobre um púlpito e
perguntava “quem crê nessa verdade?”, e um número que eu não podia contar se
aproximou de mim, dizendo que cria.
O sonho foi tão emocionante, que acordei com os olhos marejados. Se
algo assim acontecesse, seria o céu na terra. Tudo pelo que eu passara seria
pequeno demais diante daquela grandeza.
Após banhar-me, anunciei, por fim, a minha decisão a Seu José, que eu
considerava como espécie de mentor de todos, ao que ele me felicitou com muita
alegria, dizendo ser aquele motivo de grande festa. Eu, porém, pedi-lhe apenas
que não contasse a Marília essa novidade. Ela saberia de outra forma.
Marília estava na cozinha, ajudando a preparar o almoço, quando eu a
encontrei. Dona Eufrida estava no fogão e foi a primeira a me ver chegar. Após
perguntar sobre a minha noite e se eu não estava precisando de nada, eu apenas
disse que gostaria de conversar por um momento com Marília, se isso não fosse
atrapalhar suas atividades. Dona Eufrida, então, como que se já sabendo que o
assunto que eu trataria era importante, sorriu e disse que terminaria tudo por lá.
Marília deixou a cozinha e a casa com um ar preocupado. Eu sabia que
não era certo assustá-la assim, mas gostaria de contar a novidade em um lugar
especial.
Alguns dias depois de ter sido instalado na casa, eu andava pela cidade
quando avistei, a não muitos metros dali, um riozinho um pouco barrento, com
grandes rochas despontando à vista, sob uma velha ponte de madeira que
balançava ao andar, dando pouca estabilidade aos pedestres. A ponte devia estar
a cerca de cinco metros do rio, e nos levava a várias ruelas com mais casas
coladas umas nas outras e a um pacato parque.
Pensando nesse ambiente de paz, conversei sobre coisas supérfluas com
Marília, levando-nos até essa ponte, para ali tratar dos planos futuros.
Quando pisamos sobre a ponte, segurei uma de suas mãos, mais por
cuidado do que por romantismo, ao que ela sorriu e parou de caminhar.

— Por que você me trouxe aqui, Augusto? — perguntou, finalmente,
tombando a cabeça para o lado, como se pudesse decifrar a minha mente daquele
ângulo. — Sabe que não podemos ficar muito tempo longe da vista dos outros.
— Sim, eu sei. — respondi, assumindo um ar mais sério. — Apenas
precisava conversar em particular com você por um minuto, sem que ninguém
nos interrompesse.
— Quanto mistério... — disse, continuando a caminhar.
— Marília, — comecei, pensando em uma forma menos abstrata para
falar sobre a minha decisão do que simplesmente o fruto de um sonho — eu a
trouxe aqui para falar a respeito da questão do pastorado.
— Você já decidiu? — perguntou, apagando seu sorriso desconfiado e
parando novamente sua caminhada.
— Sim. Bem, não sou bom para rodeios, digamos que o Senhor me
revelou que é da sua vontade que eu seja o pastor daqui.

— Oh, Augusto! — disse, abraçando-me, como sua reação costumeira
para grandes notícias. — Eu sabia, sabia que Deus te mostraria!

— Acho que sua oração surtiu efeito. — eu disse, mergulhado em seus
cabelos.
Ela sorriu, meneando a cabeça, ao me soltar.
— Vai dar tudo certo, meu bem, nada que é dirigido pelo Senhor falha,
seus planos não podem ser frustrados. — disse, olhando firmemente em meus
olhos.
— Eu sempre soube, mas a maioria das coisas estou começando a
acreditar agora.
Ela, então, continuou a andar, levando-me a segurar sua mão novamente.
— E então, pastor, qual será seu primeiro trabalho na igreja de Eldorado?
— perguntou Marília, sorridente, balançando nossas mãos.
Eu estava formulando uma resposta quando, de repente, nossa vida ficou
por um fio.
Como mencionei, a ponte a qual andávamos era instável, e devo
acrescentar que bem antiga e rústica também. Alguns cordões a seguravam de
uma margem a outra e as tábuas de madeira horizontais não estavam completas
nas suas extremidades. Todos costumavam, porém, se aventurar nela, pela curta
trajetória e pelos muitos anos em que ela bem servira ao seu propósito.
Fato era que, enquanto caminhávamos, provavelmente por termos andado
lado a lado, Marília pisou em falso numa das tábuas que estava danificada, de
modo que perdeu o equilíbrio e tombou em direção ao rio. Tão logo senti um
peso na mão em que eu segurava, seguido de um grito, agarrei-a com toda a
força e, por pouco, não fomos os dois, rio abaixo. A ponte, de fato, virou com o
nosso peso, mas as cordas e o contrapeso que tive uma rápida ideia de fazer,
pisando do outro lado da ponte, nos fizeram retornar ao centro, sãos e salvos,
lançando-a em meus braços.
Eu permaneci com os braços ao redor de seu corpo, temendo mexer-me e
balançar a ponte mais uma vez, sentindo o coração pular como um animal
desesperado. As mãos de Marília sobre as minhas estavam frias e eu demorei a
perceber que a pressão que ela fazia era para se soltar de mim.
— Eu estou bem, Augusto. — disse, ainda assustada, mas,
provavelmente, querendo sair o mais rápido possível da ponte.
— Mas eu ainda não, espere. — respondi, com dificuldade para respirar.
— Esse rio não é muito fundo. — Marília continuou, procurando me
acalmar, como se estivéssemos em posições opostas.
— Não quero saber, você quase caiu, quase se foi.
— Augusto, não teria sido tão grave.
— Mas poderia ter sido, você sabia que o rio não era tão fundo, eu não,
portanto, para mim, eu quase a perdi, então não espere que eu tenha calma tão
rápido! — disse, sabendo que a minha voz estava soando desesperada e que a
devia estar assustando.
Marília aguardou, parecendo já restabelecida, enquanto eu ainda a
abraçava de costas. Ficaria assim o tempo que fosse, até meu coração entender
que eu não a perdera.
Percebendo, porém, que eu não sairia tão rápido daquele estado de
choque, Marília conseguiu soltar-se um pouco dos meus braços e, com esforço,
se virar para mim.
— Meu amor, está tudo bem, não se preocupe. — ela disse, quando
ficamos novamente frente-a-frente.
— Não consigo imaginar o que teria sido de mim se algo tivesse
acontecido com você... — respondi, aflito. — As pedras lá em baixo, possíveis
animais, meu Deus, quantas vezes mais vou viver no limiar de te perder?
Marília entendeu que eu agora fazia menção à época em que estava
acamada e que sua vida esteve em risco, mais de uma vez. Seus olhos agora não
me encaravam.
— Deus sempre me protegeu, — disse, depois de alguns instantes, ainda
sem olhar para mim — e Ele sempre te colocou na minha vida para me salvar.
— Tenho medo de não estar lá quando você precisar. — continuei,
buscando seu olhar.
— Vai estar, você sempre esteve, e eu estarei sempre aqui pra você
também.
— Não, você se foi, saiu da cidade, e o que a impediria de me deixar de
novo, se Deus a chamasse para outro lugar? — rebati, com as lembranças
daquela época a me sufocarem mais uma vez. — Poderia partir sem avisar, como
antes, o que a impediria?
— Augusto, — ela disse, finalmente a me encarar, afastando-se um
pouco e fazendo a ponte se mexer — não éramos nada antes, você era um padre,
que satisfação eu devia a você? Mas agora...
— Agora ainda não somos nada Marília, eu amo você e isso, como
sempre, é tudo o que sei. — interrompi, amargurado. — Mas não aguento mais
pensar que, a qualquer momento, você pode partir. Eu a vi adoecer mais de uma
vez e Deus sabe quantas vezes não quis trocar de lugar com você. Eu a vi partir
sem avisar e ouvi histórias sobre você que prefiro nem mencionar. Vim na
certeza de que você estaria com outro, mas a minha esperança estava que esse
alguém a pudesse proteger e, assim, você nunca mais estaria em perigo. E agora,
por um segundo, vi você quase partindo mais uma vez e, por mais tolas que
pareçam essas palavras, vi tudo acabado por essa fração de segundo, em que eu
poderia não estar aqui, ou poderia não ter tempo de segurá-la.
Respirei fundo, com uma certeza cada vez mais crescente em meu peito.
— Me desculpe, — eu disse, finalmente, com um nó na garganta — mas
não posso mais viver assim.
Marília me olhava assustada e seus olhos estavam ficando mais
brilhantes do que de costume.
— O que você quer dizer com isso? — sussurrou, com a voz embargada.
— Você não pode me deixar. Não agora.
— Te deixar? — indaguei, incrédulo com a sua conclusão. — Acha que
passou pela minha cabeça te deixar? Já fui obrigado a deixá-la tantas vezes
porque não a podia ter e, agora que posso e que sei que sente algo por mim
também, acha que eu a deixaria? Eu não posso viver sem você, é isso que estou
querendo dizer. E não posso mais viver na incerteza do que será, não posso
pensar em você longe sem que alguém a proteja, não posso pensar em ter que me
separar de você outra vez.
Pronto, era chegada a hora.
— Eu quero estar com você para sempre. — declarei, emocionado. — E
não me basta estar na mesma casa que você, podendo vê-la a qualquer hora do
dia. Isso é maravilhoso e, em outras épocas, talvez isso me bastasse, mas não
hoje. Hoje eu quero ter a certeza de que você vai estar pra sempre comigo.
Marília agora tinha um sorriso tímido nos lábios e o brilho de um dos
olhos escorreu, discretamente.
— Eu quero estar sempre com você, meu amor. — ela disse, nutrindo
cada espaço do meu coração.
— Então, aceite ser minha esposa, Marília, e eu prometo estar sempre
com você, até quando o Senhor me permitir e, depois, na eternidade também.
Prometo também estar sempre ao seu lado te apoiando, te protegendo, te
amando, e prometo que isso nunca vai acabar. Eu não sou um homem perfeito,
mas Deus me faz melhor e, por Ele, eu sou melhor. E, do meu melhor, você faz
parte.
— Ah, Augusto, — disse Marília, agora chorando abertamente — eu
amo você, e nada me faria mais feliz nessa vida do que ser a sua esposa.
Eu sorri, extremamente apaixonado por aquelas palavras e por aquela
mulher, quando ela me beijou com tanta paixão, que eu me esqueci que ainda
estávamos naquela ponte bamba, porque tudo o que eu precisava na vida estava
sobre ela: a confiança num Pai de amor, que me protege em toda e qualquer
circunstancia e que detém um futuro maravilhoso para seus filhos, e a mulher da
minha vida, que satisfazia, num gesto, tudo aquilo que o meu coração precisava.
Alguns Acertos de Contas
Adormecida em meus braços, no caminhar vagaroso e contínuo da
carroça, Marília deixou também suas mãos pousadas na minha, enquanto
sacolejávamos no caminho de volta para a cidade onde construiríamos a nossa
vida. Minhas bochechas ainda doíam de tanto sorrir, mas mais ainda de tanto
segurar o sorriso, pois desde o “sim”, eu tinha dificuldades de contê-lo.
---

Foi com grande festa que nos despedimos dos amigos de Eldorado para
nos casarmos na sede da igreja. As notícias simultâneas do casamento e do
pastorado trouxeram grande alegria a todos e muitos planos para o futuro.
Nossa vontade era a de nos casarmos no nosso agora lar, na pequena
Igreja Luterana de Eldorado. Chegamos a mandar uma carta ao Pastor Joel para
que viesse celebrar nosso casamento, mas ele insistiu que, ao invés disso, nós
fôssemos até ele. Além de querer comemorar nossa alegria com os novos amigos
que fizemos, ele bem sabia que não queríamos voltar para a cidade onde tantas
feridas foram abertas para não ter que encarar a vergonha que nossas decisões
provocaram naquele contexto. Em resumo, se quiséssemos nos casar, teríamos
que enfrentar tudo aquilo mais uma última e definitiva vez.
Durante o caminho de ida, fizemos a mesma parada na casa do bondoso
homem que me acolhera, ao qual nos recebeu com igual atenção e alegria.
Conversei por longo tempo com ele e sua esposa, enquanto Marília contava
histórias da bíblia para as suas filhas. Sua curiosidade e expressão no conto
quase me fizeram sentar ali junto com as crianças para ouvi-la falar.
Chegamos com incrível rapidez a nossa antiga cidade — fato que tive a
leve desconfiança de ser pela minha companhia desta vez — porém, não nos
atrevemos a andar de braços dados pelas ruas. Certamente que a notícia da
minha partida já havia se espalhado, mas o nosso retorno repentino juntos já
traria suficiente repercussão.
Muitos olhares nos acompanhavam pelas ruas, mas Marília andava de
cabeça erguida e com seus passos firmes costumeiros, como se nunca tivesse
deixado a cidade. Isso até ela avistar um de seus ex-alunos andando com o pai,
sorrindo para ela e ela para ele; e o pai, tão logo a vira junto a mim, desviar o
rosto da criança para não mais vê-la, aniquilando-nos com o olhar. Aquilo
certamente a destruiu.
Com duas breves batidas na porta, logo o sorridente pastor nos recebeu.
A alegria demonstrada em calorosos abraços pelo meu ministério e pela nossa
união foi muito grande.
Após uma longa conversa a respeito do matrimônio e suas implicações e,
compreendendo que a nossa história de amor era suficiente para justificar a
nossa precipitação, o pastor finalmente se deu por satisfeito e aceitou casar-nos
dentro de três dias — o sábado seguinte — com uma difícil condição: que não
tivéssemos pendências com ninguém. Ele não esperava exatamente o apoio de
todos, porém não queria nada às escondidas ou não devidamente esclarecido. O
pastor, assim como nós, não queria boatos pela cidade, visto que a fofoca sobre
Marília havia, infelizmente, sido disseminada como rastro de pólvora.
No dia seguinte, já com as forças revigoradas da viagem e da conversa,
Marília e eu saímos para um lugar certeiro, sem nem ao menos o mencionarmos
em palavras. Ao entrarmos à vista de todos na praça central, Marília agarrou o
meu braço e, embora eu não quisesse que falassem de nós, fomos assim até a
Paróquia.
Era incrivelmente nostálgico agora olhar para aquele local, apesar de não
ter me afastado de lá há muito tempo. Parecia que anos haviam se passado.
Entramos lá sem cerimônia e aguardamos um coroinha que arrumava as
flores do altar chamar o Padre Dionísio.
Enquanto esperávamos, olhei para o semblante de Marília: frio e
determinado. Minha vontade era perguntar em que pensava, mas logo o padre
irrompeu o templo, com a batina a esvoaçar no chão.
— Ora, quem temos aqui. — disse, certamente já ciente do nosso retorno
à cidade.
— Bom dia, padre. — respondi, procurando ser o mais firme possível.
Marília segurava o meu braço ainda com mais força, e eu sentia sua
respiração se acelerando.
— Não vão me pedir a bênção? — perguntou o padre, em tom
provocativo.
— Nós já somos abençoados por Deus. — disse Marília, de repente.
Dionísio titubeou.
— Bem, imagino que não vieram para a missa, vieram?
— Padre, gostaríamos de conversar com o senhor, poderia nos levar a um
local particular? — perguntei, olhando de esguelha para duas senhoras que
rezavam nos fundos da igreja.
— Há um bom lugar para vocês conversarem comigo ali. — disse-nos
Dionísio, apontando para o confessionário.

— Não temos nada para confessar! — retalhou Marília, já com o tom de
voz alterado, soltando-se do meu braço.
O padre sorria com insolência, e eu percebia que tinha que agir depressa.
— Padre, se não podemos conversar em outro lugar, — eu disse,
mantendo uma falsa tranquilidade — seremos breves em falar com o senhor aqui
mesmo. Iremos nos casar dentro de dois dias e queríamos...
— A minha bênção? — interrompeu-me o padre, exasperado. — Que eu
celebre o casamento de vocês? Fora de cogitação eu compactuar com uma
aberração dessas, é pior que um incesto!
— Não queremos nada do senhor, — eu disse, contendo Marília com um
braço — a não ser que tome nota por nós desse evento, e não somente deste, mas
que agora somos convertidos, ou evangélicos como preferir nos denominar, e
gostaríamos de não deixar nenhum mal resolvido para trás quando começarmos
nossa nova vida. Espero que seja razoável com isso.

— Razoável? — gritou o padre, tomando sua cor tomate novamente e
chamando a atenção das senhoras. — Quer que eu seja razoável com um padre
que larga a batina para se casar com uma perdida?
— O senhor se cale, Reverendo! — eu disse, perdendo o meu tom calmo,
o que trazia mais força à minha voz do que eu pretendia. — Não tem o direito de
difamar assim a minha futura esposa, e esta será a última vez que permitirei que
assim o faça, pois haverei de lutar contra qualquer um que ousar fazê-lo, até
mesmo um padre!
O padre emudeceu, surpreso. Pelo calor do meu rosto, imagino que
tenhamos agora atingido o mesmo tom.
As senhoras já nos olhavam deliberadamente, o que levou o padre a sair
de seu estado de choque e responder à altura.
— Você, jovem rapaz, que não ouse “lutar” contra um homem de Deus,
um representante do Altíssimo, pois ainda que essa sua mente pervertida já tenha
se esquecido de tudo o que aprendeu aqui, e ainda que já tenha abandonado ao
Deus que o sustentou por todos esses anos, eu ainda sou um respeitável padre e,
o que fizer contra mim, responderá a Ele. — disse, apontando o dedo fino para o
alto.
Eu ainda não era capaz de determinar os meus sentimentos, se de ira,
vergonha ou pena, mas minha Marília adiantou-se a responder por mim.
— O senhor, respeitável padre, — disse, no mesmo tom sarcástico que
ele — vive num triste mundo de mentiras, acreditando que, por se manter casto,
por morar em uma igreja, por ter um título e fiéis que o sigam, está salvo da
condenação eterna. Mas não eu, o Senhor diz que haverá mais misericórdia para
Sodoma e Gomorra do que para vocês fariseus. São como sepulcro caiado, guias
cegos, não entram no Reino e não deixam ninguém entrar!
Dionísio arregalou os olhos, abismado.
— E eu estou certa — prosseguiu, sem se deixar interromper — que
havia muito mais pureza em Augusto quando estava aqui do que o senhor jamais
tenha alcançado em anos de ministério. Ele ao menos buscava servir a Deus em
Espírito e em Verdade e não apenas representar alguém aqui. Eu só lamento pela
sua condição e, em consideração por tudo o que já fez por mim e pela minha
família, orarei para que o Senhor possa salvar a sua alma também, mas,
honestamente, espero não vê-lo nunca mais nesta vida.
Todos nos calamos por um instante e mal percebemos quando um
pequeno grupo de pessoas se reuniu à porta da igreja, assistindo a tudo.
— Vamos, Augusto, não temos mais nada a fazer aqui. — concluiu ela,
me puxando para fora.
Eu, porém, a detive por um minuto, pois tinha algo ainda a dizer.
— Padre, gostaria de agradecer por tudo o que me ensinou nesse tempo,
pelo nosso convívio. O senhor nunca foi uma pessoa fácil, mas eu aprendi a
entender o seu tempo e o seu modo de ensinar as coisas. Eu sinto muito ter saído
assim da igreja, pois eu realmente gostava de estar aqui, mas nunca fui completo.
Eu não tinha realmente Deus comigo, e o espaço que Marília preenche em mim é
bem considerável. Hoje eu sou feliz, e espero ardentemente que um dia o senhor
possa experimentar essa nova liberdade em Cristo, e ...
— Nunca. — respondeu friamente o padre. — Jamais me entregarei a
esses prazeres mundanos, nem abandonarei a Madre Igreja. Agora, por favor,
saiam deste templo, estão difamando um lugar sagrado.
— Adeus, Padre Dionísio. — eu disse, triste por esse desfecho, mas com
a certeza de ter feito a coisa certa.
Antes de partir, porém, o padre e eu trocamos um último olhar, ao que
julguei ser pela última vez o mesmo olhar paterno que havia me seguido por
todos aqueles anos. De tudo, aquilo fora o mais doloroso.
Ao sairmos da igreja, os fiéis se dispersaram, cochichando uns com os
outros e balançando a cabeça para nós, o que em outros tempos nos cobriria de
vergonha, mas agora apenas nos dava a certeza de que estávamos no caminho
certo.

Caminhamos em silêncio por alguns instantes, até nos afastarmos por
completo daqueles olhares acusadores, quando, então, decidi fazer a minha
pergunta inicial a Marília.
— Em que você está pensando?— arrisquei, hesitante. Eu não tinha
ainda como avaliar o impacto daquela conversa sobre ela.

— Em você, — disse, olhando para mim — em como você é bom. Será
que um dia eu vou ser assim, tão cheia do Espírito como você?
— Como disse?
Nós dois paramos na praça e nos encaramos.
— Será possível que não esteja envergonhado pelo que fiz?
— Marília, presenciamos a mesma conversa? Você citou as palavras de
Jesus para um padre e as encaixou como uma luva, de que você ou eu
poderíamos nos envergonhar?
— Eu não sei, — suspirou — eu estava tão irada com ele por saber o
quanto ele tinha torturado você nos últimos tempos e por ter quase nos separado
ao espalhar aquelas calúnias sobre mim. Você deve ter me desprezado quando
ouviu aquelas coisas. E, mesmo assim, você teve consideração, misericórdia,
piedade dele, e disse, como sempre, a coisa certa.
— Desprezado? A você? — perguntei, incrédulo, me prendendo a essa
parte do seu diálogo. — Acho que o inferno se esfriaria primeiro. Como pode
pensar que eu sentiria essas coisas por você? Desprezo, vergonha...
— Viu? — acusou, angustiada. — Nem quando soube daquela mentira
teve raiva de mim, seu coração não comporta essas coisas. Sou muito pouco para
alguém como você.
Nesta hora tive vontade de gritar. Nem a conversa com o padre tinha me
deixado tão aflito quanto esta.
— Por favor, Augusto, — pediu, antes que eu respondesse, detendo
minha explosão eminente com uma mão aberta diante de mim — eu sei que você
vai dizer que me ama assim mesmo e que sou o que você queria, mas a verdade é
que, desde que você se converteu e deixou o voto, não teve a oportunidade de
estar com mais ninguém. Talvez sua gratidão por eu ter lhe apontado o Caminho,
somado ao sentimento que já tinha por mim, não sei, o tenha levado a essa
decisão que nos trouxe até aqui, mas eu bem me lembro que, quando nos
encontramos depois daquele beijo, você confessou que tinha se aproveitado do
meu estado, porque aquela seria a sua única oportunidade de estar com uma
mulher.
Marília tomou fôlego, parando de me encarar.
— Mas hoje, — ela concluía, com certa amargura na voz — hoje as
coisas são diferentes, você é alguém tão excepcional, que poderia ter a mulher
que quisesse ao seu lado. Será que eu sou mesmo o melhor para você?
Acredito que a tenha deixado falar tantos disparates porque estava
transtornado demais para interrompê-la, caso contrário, não a teria permitido
concluir sequer a primeira sentença.
— Marília! — protestei, antes que ela continuasse, passando as mãos na
minha cabeça suada. — Meu Deus, não sei o que dizer, não consigo acreditar
que tudo o que eu fiz, tudo o que eu te contei, todo o sentimento que procurei
expressar da melhor forma nesses últimos dias e que devo ter demonstrado
contra a minha vontade antes, tenham sido tão ineficazes.
O sol estava a pino, e eu suava descontroladamente.
— Acha mesmo que eu arriscaria toda a minha carreira eclesiástica, e
mais, meu relacionamento com Deus, pela simples curiosidade de beijar uma
mulher? — prossegui, enquanto ela me olhava, desconfiada. — Marília, meu
amor, a castidade para mim foi uma escolha, e eu não a tinha por perda até
conhecer você. Mas, desde que eu a conheci, não fui capaz de tirá-la dos meus
pensamentos e do coração. Eu nunca olhei para mulher alguma com tanto querer,
tanta paixão como você. Você é, para mim, uma extensão do céu! Meu Deus, é
você que eu amo, e eu passaria tudo o que eu passei outra vez, se fosse preciso,
para estar com você.
Marília, que até então estava paralisada, com uma pequena ruga em sua
testa, expirou e irrompeu em um sorriso aliviado, abraçando-me no meio da
praça — o que, apesar de não ser de bom tom em local público nem para um
casal normal, não me tirou a paz, pois o que eu há tanto tempo escondi, agora
estava exposto a todos os que quisessem ver.
---

Meu coração começou a bater forte novamente quando a cidade de


Eldorado despontou em minha vista. Não vou mentir que não fora extremamente
exaustiva a viagem de quatorze horas praticamente ininterruptas, porém, ainda
eram oito da noite quando nos aproximamos do nosso destino, e sobrevivemos.
Às duas horas daquela tarde, paramos em uma cidade para almoçarmos e
reabastecermos nosso suprimento de água e lanches até a noite. Nesta cidade, o
carroceiro trocou de turno com outro, que passou a andar ainda mais devagar a
partir das cinco, quando um tempo repentinamente nublado ameaçava perigo.
Marília dormira em meus braços, deixando-me mais aliviado por ela ter,
assim, otimizado o seu tempo, visto que ambos concordamos em não importunar
mais nosso bom anfitrião que morava na estrada.
Apesar de tudo, a alegria predominava em meu coração por tudo o que
Deus já tinha feito e pela perspectiva do que ainda faria. Mesmo tão cansado, eu
não poderia estar mais feliz.
.
---
Depois da desgastante conversa com o Padre Dionísio, sabíamos que
faltava ainda alguém essencial para esclarecermos tudo. Muito mais perturbada
do que outrora, Marília caminhava agora com passos não tão determinados até a
casa de sua mãe.
Marília confessara-me em Eldorado que a mãe havia sido absolutamente
contra a sua ida à outra cidade, ainda mais professando outra fé. E, tão certo
quanto o sol nasce a cada dia, era que a notícia da união entre ela e o ex-padre já
havia se disseminado por toda a cidade, chegando sabe-se lá como em seus
ouvidos. E nenhum de nós estava pronto para confrontar aquela mãe traída
naquele momento.
Quando batemos em sua porta, Dona Irene a abrira logo em seguida,
rindo distraidamente de algo que conversava com outra senhora sentada à mesa.
Ao nos ver, porém, sua feição transformara-se de tal forma que passei a temer
por sua saúde.
— O que fazem aqui? — perguntou, como se nossa visita fosse o maior
disparate, o que eu atribuía à minha presença mais do que qualquer outra coisa.
— Oi, mãe. — disse Marília, e eu percebia a forte emoção procurando
ser contida em seu tom de voz.
— Não sou mais sua mãe. — respondeu Dona Irene, com olhos
tornando-se vermelhos pelas lágrimas eminentes. — Deixei de ser quando você
saiu por aquela porta, não se lembra?
Marília calou-se e eu, definitivamente, não sabia como agir. A vizinha
espichava o pescoço para nos ver, balançando a cabeça.
— Oh, mãe, — disse Marília, após algum tempo, lágrimas também
ameaçando escapulir dos olhos — eu sinto muito ter agido assim, mas eu
encontrei o que eu buscava, eu encontrei a Deus! Mãe, por favor, tente me
entender.
— Como entender? Nunca vou entender o que aquele pastor maldito
enfiou na sua cabeça, tudo o que sei é que ele tirou a minha filha de mim e a
levou para a perdição. E você, menino, — disse, dirigindo sua ira e seu dedo
agora para mim — foi o pivô disso tudo, desviou a minha filha como um lobo
desvia uma ovelha.
— Dona Irene, as coisas não foram dessa maneira... — tentei argumentar,
enquanto via Marília lutar com todas as forças para parecer forte diante dela.
— Ah, não foram? — respondeu, olhando para a vizinha, rindo
forçosamente. — Você se faz de ministro de Deus, ilude a minha filha inocente
com promessas, presentes, sabe-se lá com que diabos você ludibriou essa
menina, só sei que desde que você apareceu naquela igreja como padre, ela
começou a ficar com a cabeça desviada, falando das suas pregações, indo atrás
do Dionísio para saber os dias em que você estaria lá. Olha, eu devia ter
confiado na minha intuição, eu sempre soube que havia alguma coisa entre
vocês, eu sempre soube!
— Nunca houve nada entre nós! — gritou Marília, falhando no final. Ela
sabia que algo havia acontecido quando adoecera.
— Como não, menina, como você sai de casa e, logo em seguida, esse aí
larga a batina e vocês dois voltam juntos? Pensa que eu nasci ontem?

Marília agora chorava deliberadamente, e olhava com ira a mulher que
escutava a nossa conversa como a um teatro, quase a sorrir.
— Escuta, mamãe, a senhora...
— Não, escute aqui você, Marília! — interrompeu Irene, agora um pouco
mais contida e quase a ignorar a presença da vizinha. — Eu te criei com todo o
amor e carinho, e sozinha desde que seu pai faleceu, que Deus o tenha em bom
lugar. Coloquei você na igreja, na escola, na primeira comunhão, tudo para que
você fosse uma mulher de bem, decente. E aí vem alguém e te arranca de mim
dessa forma, e todo o meu sacrifício vai por água abaixo, como se não tivesse
valido de nada todo esse meu esforço.
— É uma questão de fé... — Marília tentou argumentar.
— Não, não é questão de fé. Que Deus é esse, que tira uma filha de uma
mãe assim, para ir a um lugar desconhecido? Que Deus é esse que aceita um
padre pecador no seu Reino, que não preza os bons costumes, a decência, que
faz uma pessoa deixar a Igreja!
— O Deus Verdadeiro! — disse Marília, determinada, com lágrimas
ainda no rosto. — Ele espera que o amemos mais do que a nossos pais se
quisermos ser dignos dele, aceita a qualquer um que o busca no seu Reino e nos
tira da hipocrisia para sermos membros do Corpo de Cristo. Esse é o nosso Deus
agora, meu e do meu futuro marido.
Dona Irene, então, desabou em um choro desesperado, olhando-me com
tanto ódio que parecia conter-se fisicamente para não partir para cima de
mim.
— Não, minha filha, não! Não pode ser, você não pode se casar com esse
pervertido, ele não presta, ele deixou a Igreja. Volta pra casa, Marília, volta pra
sua mãe, eu te perdoo, esquece esse homem e volta pra casa...
Marília aproximou-se da mãe, que a esperava com os braços abertos, e a
abraçou.
— Eu a amo mamãe, muito, sempre. Mas essa é a minha vida agora, esse
é o Deus a quem eu vou servir e esse é o homem com quem eu vou viver. E eu
vou ser muito mais feliz do que um dia sonhei pra mim.
Elas se soltaram, ambas com o rosto banhado por lágrimas, enquanto a
mulher sentada à cozinha as observava boquiaberta. Eu realmente não nutria um
bom sentimento por ela naquele instante, porém, havia algo muito mais
importante sendo travado diante de mim.
— Não faça isso, minha filha, por favor, eu imploro... — dizia Dona
Irene, enquanto Marília se desvencilhava de seus braços com dor.
— Dona Irene, — tentei mais uma vez, sentindo que eu devia isso a ela
— eu sei que a senhora me acha um devasso por ter deixado a Igreja, mas, por
favor, acredite, foi algo muito mais complexo que nos ocorreu. Eu deixei o meu
futuro para trás, os meus sonhos, a minha vocação, por algo que eu vi bem
maior. É verdade que sua filha me ajudou a encontrar esse caminho, mas a nossa
conversão e o nosso relacionamento foram eventos absolutamente isolados. E, de
modo algum abandonamos a Deus, muito pelo contrário, agora sim estamos com
ele.
A senhora me ouvia com atenção, mas com evidente rancor.
— Ouça, — prossegui, aproveitando seu silêncio — eu verdadeiramente
amo a sua filha e dou-lhe a minha palavra de que farei de tudo nessa vida para
fazê-la feliz e, por favor, me amaldiçoe se um dia a reencontrar menos feliz do
que sonhou pra a vida dela. Mas eu suplico, nos abençoe hoje para nos casarmos
sob esse privilégio.
— Não. — respondeu, limpando o rosto com um avental que tinha ao
redor de sua cintura. — Não posso abençoar uma coisa dessas, é uma blasfêmia.
Qualquer um, qualquer homem que me dissesse essas mesmas palavras bonitas
eu abençoaria, mas não você. Não um padre. É a pior coisa que poderia ter
acontecido, o pior castigo que Deus poderia dar para mim. Não me peça para
abençoar isso.
Dona Irene retornou para casa e, antes tarde do que nunca, pediu a
senhora sentada que voltasse mais tarde. A mesma logo se levantou, dizendo ter
deixado o feijão no fogo, e saiu, não antes de nos lançar um olhar de
repúdio.

Assim que a porta foi fechada diante de nós, abracei firme Marília, que
chorava inconsoladamente. Daria qualquer coisa, mais uma vez, para poder
trocar de lugar com ela naquele momento.
O Grande Sonho
Após pagar ao carroceiro o valor imensurável do retorno à agora nossa
terra, ajudei Marília, ainda sonolenta, a descer da carroça. O belo anel de Dona
Mirtes em sua mão simbolizava algo tão precioso para mim, que mil diamantes
certamente não me valeriam tanto.
O homem nos deixou com as nossas coisas mais uma vez perto do
armarinho, agora fechado na rua deserta. O tempo sempre abafado de lá nos
trazia a sensação familiar da cidade, expressa em suspiros da nossa parte,
enquanto caminhávamos de mãos dadas até a igreja.
Marília sorria para mim com um sorriso tão doce que eu mal prestava
atenção no caminho. Minha esposa era a coisa mais bonita de toda aquela
cidade, de todo o mundo, enfim.
Quando olhei para cima e vi a bela lua posta sobre nossas cabeças,
lembrei-me, mais uma vez, do que eu jamais esqueceria em toda a minha vida: o
dia do meu casamento.

---

Não estávamos exatamente quitados com todos quando o dia esperado


chegou. Depois daquelas duas conversas mais difíceis, fomos ainda ao externato,
onde alguns poucos amigos de Marília nos apoiaram, mas a maioria nos virou as
costas, até sermos expulsos de lá pelos pais das crianças que souberam que ali
estávamos. Também chegamos a nos encontrar em particular com outros
membros da Igreja, inclusive com Samuel, que me recebeu a princípio com a
alegria de um filho pródigo que a casa torna, mas que, ao tomar conhecimento
do motivo do meu retorno, me despediu como a um irmão em seu funeral.
Contamos tudo ao Pastor Joel que, obviamente, compreendeu que não
seríamos capazes de convencer aos outros que o que nos movia ao matrimônio
vinha de Deus, e não o maior dos sacrilégios.
— Pedi que vocês procurassem as pessoas mais atingidas por esta
decisão, — disse ele, enquanto estávamos sentados em sua sala de estar com a
senhora sua esposa — porque isto era o certo, não devemos fazer nada às
escondidas. Mas vocês não devem deixar de cumprir a vontade que o Senhor
lhes colocou no coração por causa deles. Sinto muito que sua mãe não a tenha
compreendido, Marília, — disse o pastor, olhando-a complacente — mas
acredito que, um dia, o Senhor abrirá os seus olhos para que ela possa ver a
preciosidade desta união.
Marília aquiesceu, mostrando seu pesar no olhar.
— E quanto a sua família, Augusto, o que pensa a respeito? — perguntou
ele, dirigindo-se agora a mim.
— Bem, — respondi, cruzando as mãos à minha frente — assim que
cheguei, enviei um telegrama a minha mãe, pois como meu pai é caixeiro
viajante, dificilmente pode ser encontrado. Expliquei a ela o rumo que a minha
vida havia tomado, mas, honestamente, não sei como ela reagirá. Ela nunca foi
exatamente a favor da minha entrega à Igreja, mas é tão católica quanto a mãe de
Marília. Espero que possa, ao menos, pensar um pouco diferente.
— Gostaria muito de conhecer a sua mãe. — disse Marília, segurando a
minha mão.
— Ela esteve uma vez na igreja, na minha primeira missa como
ministrante. — disse, nostálgico. Isso parecia há uma vida. E, honestamente, eu
me sentia muito mais mudado agora para reencontrá-la do que quando saí de
casa.
— Ah, que lindo. E será que virá ao nosso casamento? — perguntou,
esperançosa.
— Será muito estranho nos reencontrarmos nessas circunstâncias.
No começo da tarde do sábado, um dos empregados do pastor chegou
com um envelope amarelo em mãos, e este, da mesma forma, chegou a mim.
— Acho que a pergunta que estávamos fazendo será respondida agora.
— disse o pastor, retirando os óculos de leitura que usou para ler suas cartas.
Surpreso e mais do que curioso, rasguei o envelope e me contive para
não me emocionar diante do pastor mais uma vez. Na carta, minha mãe pedia
para que não houvesse casamento algum antes que ela chegasse.
Corri com alegria até o quarto onde Marília estava, mas fui barrado na
porta. Dona Mirtes avisou que ela estava experimentando um vestido seu que
usaria naquela noite.
— Não temos a superstição de que o noivo não pode ver a noiva antes do
casamento, — alertou ela — mas ainda é errado um homem ver uma mulher se
vestindo.
Eu sorri, pedindo que desse o recado a ela.
Mais tarde, o pastor estava na sala, quando me chamou em particular.
— Filho, — chamou-me, sentando-se e me apontando uma cadeira —
sinto muito orgulho de você e de Marília, sabe? É visível a fé de vocês, e o amor
que demonstram um para o outro não se encontra todo o dia.
— Obrigado, pastor, mas o senhor não deixou de ser um elo entre nós
dois. E o que está fazendo por nós agora, nem sei como um dia poderei
agradecer.
— Bobagem, menino, não sabe a alegria que está trazendo a mim e a
Mirtes. E, pelo que sei, ela está vestindo a sua noiva como a uma boneca. —
disse o pastor, sorrindo. — Mas há mais uma coisa que eu gostaria de fazer pelos
meus missionários.
E, deixando-me absolutamente sem palavras, retirou uma pequena caixa
de dentro de seu bolso e a abriu para mim.
— Todo noivo precisa de alianças. — disse, com um sorriso aberto.
— Oh, não, pastor, o que é isso? Não posso aceitar, é a aliança de vocês.
— recusei, ao ver duas alianças finas de ouro puro, como que novas, dentro de
uma caixa branca.
— Sim, foram nossas pelos vinte e cinco anos mais belos de nossas
vidas. Mandei um ourives retirar as inscrições dos nossos nomes no seu interior
e gravar o de vocês. Foi o melhor que pude mandar fazer em menos de três dias.
Agora é só vocês mandarem derreter e moldá-las para o dedo de vocês. Será o
nosso presente.
Eu estava petrificado, diante do homem mais generoso que eu já
conhecera na vida. Ele nos trouxe a Palavra da Verdade, nos mandou para um
lugar mais que querido, uniu a minha vida com a mulher que eu amava e agora
estava viabilizando de todos os modos o nosso matrimônio. Minha gratidão a ele
jamais teria um fim.
— Meu Deus, não sei se posso aceitar. — foi tudo o que pude dizer.
— Claro que sim. Não se preocupe conosco, não usamos mais essas
alianças, já fizemos novas bodas. — disse ele, apontando a aliança que usava. —
Além disso, sei que deixaram tudo para trás, família, bens, conforto, para seguir
ao Senhor. E o Senhor mesmo garante que esses não deixarão de receber cem
vezes mais nesta vida e na vindoura. Por favor, apenas aceite, é de coração que
as damos a vocês, nosso casal preferido.
Eu ainda sorria sem graça, pensando se era sensato aceitar, mas o homem
já até havia gravado os nossos nomes, e tudo o que eu mais queria era dar esse
símbolo do nosso elo à Marília. Eu, então, me levantei e abracei o pastor, que via
sinceramente como a um pai, guardando aquelas preciosidades no meu bolso
para serem retiradas na hora certa.
Mais tarde, quando todos tomávamos, mais que ansiosos, um delicioso
chá da tarde, um barulho persistente de batidas vindas do andar de baixo nos
despertou a atenção.
O pastor, então, desceu e retornou com a melhor surpresa que eu
poderia ter naquele momento.
— Mãe, não acredito que a senhora veio mesmo! — disse, saltando da
mesa e lhe dando um caloroso abraço.
— Mas o que é isso, acha que uma mãe perderia o casamento de seu
único filho? — disse, enquanto todos se entreolham e Marília se continha.
— Agora, deixe-me ver, quem foi a mulher capaz de tirar esse menino do
convento. — prosseguiu, olhando, naturalmente, para a moça mais jovem da
mesa.
— Olá, dona Madalena. — disse Marília, levantando-se, sem jeito, ao
encontro de minha mãe. — Não sabia que a senhora era tão jovem.
— Ora, já imagino porque Augusto perdeu a cabeça, um doce de menina
e tão bonita.
— Obrigada, senhora, o que é isso... — respondeu Marília, corando ainda
mais.
— Agora me diga, Augusto, que confusão foi essa que você se meteu? —
disse minha mãe, voltando-se a mim com seriedade. — Como escreve uma carta
dizendo que, de repente, viu que não era isso que acreditava, que foi morar em
outra cidade e que ia se casar em três dias?
Todos estavam calados, e eu vira que era hora de conversarmos em
particular.
Saindo da sala de jantar, levei-a até o jardim, sabendo faltar pouquíssimo
tempo para a cerimônia, mas certo de que aquela conversa não terminaria até que
tudo estivesse esclarecido para a minha mãe, ainda que o casamento fosse
adiado.
Minha mãe sempre planejara muitas coisas para o meu futuro, sempre
compartilhando seus sonhos comigo ou em particular com meu pai, coisa que
ouvi vez ou outra escondido atrás da porta da cozinha. E seu maior sonho
sempre fora conhecido por todos: o de ter netos. Como eu era filho único, com
muitos primos, minha mãe esperava ansiosamente o momento em que poderia
dar continuidade a sua família a partir de mim. Logo, a ideia de me ver como
padre, mesmo como exímia frequentadora da Igreja, colocava uma pedra
definitiva em seu sonho. Até agora.
Apesar de isso dar nova esperança a ela, saber que o filho recentemente
ordenado padre abandonara a batina também não era em nada boa notícia. Todos
da nossa família já sabiam no que eu havia me tornado, e compartilhar a
realização do seu sonho com todos, caso eu realmente viesse a ter filhos, seria,
no mínimo, um escândalo.
Era certo que aquela conversa no jardim não seria nada fácil.
Minha sorte foi que mamãe, apesar de seguir todas as normas da
sociedade, não era uma mulher muito ligada a convenções. Era o tipo de pessoa
capaz de aceitar uma notícia dessas com relativa naturalidade por amor. Após
algum tempo, ela enfim compreendeu que eu agora me encontrara e que seria
feliz desta maneira.
— Espero ainda ter tempo para ver os meus netos crescerem. — disse,
em um tom pouco esperançoso. — Você bem que podia ter conhecido essa moça
antes, não?
Eu a levei mais uma vez à sala onde todos estavam reunidos, salvo
Marília, que já estava se arrumando. Sem que percebêssemos, já passavam das
seis horas.
O pastor logo me levou ao quarto de seu filho para me vestir com um
terno muito bem alinhado, enquanto minha mãe foi ajudar a arrumar a noiva.
Quando terminei e saí do quarto, ouvi o pastor chamar Dona Mirtes para
ambos descerem e se prepararem no andar de baixo. Enquanto eu também para
lá me dirigia, vi que haviam deixado a porta do casal entreaberta, onde Marília
se aprontava. De onde eu estava, apesar de nada ver, era capaz de ouvir tudo o
que lá se passava, de modo que não consegui resistir à tentação de escutá-las
atrás da porta. Não fazia a menor ideia da real impressão de minha mãe quanto à
Marília, apesar de não ser capaz de imaginar alguém não se encantando por ela.
— Veja, está uma pérola. — dizia mamãe, enquanto caminhava com seu
salto pelo quarto de piso de taco.
— Vou seguir então o seu conselho, Dona Madalena, sua pele é incrível!
— disse Marília, com grande entonação.
— Sim, sua pele também é assim hoje, mas espere mais trinta anos para
ver o resultado.
Mais passos foram ouvidos.
— Minha mãe que me deu esses conselhos, — continuou, após um
suspiro, agora em tom mais baixo — mas como eu não tenho filhas, isto
morreria comigo.
— Tenha certeza que o seu segredo agora alcançará gerações. —
respondeu Marília, e as duas riram.
— Ah, menina, — iniciou minha mãe, provavelmente sentando-se na
cama que rangia — não vou dizer que era o meu maior desejo que meu filho
padre largasse tudo e se casasse com uma mulher, mas... ele é meu filho,
entende? Quando ele nasceu, eu pensei em tantas coisas pra ele, eu o vi
crescendo tão bonito, educado. Eu tinha certeza que faria um bom casamento.
Augusto é um menino de ouro, sabe, não tem maldade no coração. Nunca tive
reclamações dele na escola, ele sempre tirava as melhores notas, e voltava pra
casa todo ano com prêmios de leitura e redação.
— Nossa, eu não sabia disso. — surpreendeu-se Marília.
— Claro que não, acha que ele algum dia diria algo para se gabar? É
mais fácil ele te contar todos os erros da vida dele do que um acerto. Ele é assim.
As duas ficaram em silêncio. Eu já estava me sentindo mal de estar
ouvindo aquilo, mas a droga da curiosidade não me deixava ir embora.
— Marília, — disse minha mãe de novo — eu não sei quase nada sobre
você, exceto que é a mulher mais “incrível, perfeita, linda e maravilhosa” que
Augusto conheceu, e que o trouxe a Deus. Eu sei que nada mais forte faria
Augusto deixar a Igreja, que era a paixão da vida dele, e sei também, por mais
que ele diga o contrário, que foi por você também que ele fez isso.
Minha mãe parou de falar, parecendo escolher bem as próximas palavras.
— Por favor, — concluiu, em tom mais grave — faça o meu filho feliz.
Ele é perdidamente apaixonado por você, e eu sei o que a paixão faz com ele.
Ele entrega a vida. Eu nunca vou achar alguém realmente digno dele, mas o seja.
Ele pode não estar de olho a sua volta, mas eu vou estar, pode ter certeza.
— Eu sei, Dona Madalena, — respondeu Marília, enquanto eu ouvia a
cama ranger novamente. Provavelmente, sentara-se ao lado de mamãe — e eu
vou tomar a liberdade de pegar emprestadas as palavras que Augusto disse à
minha mãe: que a senhora me amaldiçoe se encontrar, no futuro, o seu filho
menos feliz do que sonhou para ele. Eu o amo de verdade, senhora, mais do que
pode imaginar. E eu sei que ele é exatamente tão bom e íntegro como a senhora
disse que ele era. Vou ser digna dele, eu prometo.
Meus olhos começaram a ficar embaçados e, temendo ser encontrado ali,
desci depressa as escadas para o meu futuro. Tudo o que eu precisava saber, eu
havia ouvido naquele instante, e não havia mais espaço para tanta alegria dentro
de mim.
---

No nosso novo lar como marido e mulher, o pavimento superior da


querida Igreja Luterana de Eldorado, todos nos saudaram com alegria,
congratulando-nos pelo matrimônio e lamentando-se por não terem estado lá.
— Foi uma cerimônia muito simples, — disse Marília, ainda com os
olhos inchados da viagem, com a cabeça sobre o meu ombro — apenas algumas
pessoas da própria igreja assistiram e a mãe do Augusto.
— Ora, mas nem pra ter uma festa, ou uns comes e bebes na cidade? —
perguntou Dona Eufrida, secando as mãos no avental, deixando a pia.
— Acho que ninguém da cidade se interessaria em festejar a união do ex-
padre com a perdida de Eldorado. — disse Marília, tentando fazer uma piada,
sem ela mesma sorrir.
— Vocês devem estar exaustos. — disse Cidinha, convidando Marília
para ir ver o quarto que eles tinham preparado para nós.
Eu, de fato, estava, mas estava também extasiado demais para contar a
todos os detalhes sobre o casamento e continuar na alegria das bodas.
Não querendo, porém, torturar Marília, pedindo que ficasse entre nós,
deixei que acompanhasse Cidinha e mais um rapaz que se ofereceu para levar
nossas malas até o quarto.
— A carne já está quase no ponto. — anunciou Dona Eufrida, diante do
forno.
— E então, rapaz, o que está esperando para contar como foi? —
inquiriu-me Seu José, sentando-se à mesa e puxando uma cadeira para mim.
— Eu não vou perder essa história por nada. — comentou Eufrida,
correndo para a mesa, enquanto todos se juntavam a nós.
Com todos ansiosos ao redor da mesa, contei com poucos detalhes o que
se sucedeu nos dias anteriores, não querendo aborrecer meus ouvintes, nem
retardar nossa janta. Além do que, as conversas que tivemos com o Padre
Dionísio e Dona Irene foram muito fortes e tristes, não cabendo para o momento.
Contei dos infinitos favores do Pastor Joel e sua esposa, dos poucos
preparativos para o casamento e da grata surpresa de mamãe.
— E, então, eu desci às escadas — narrei, omitindo o meu deslize em
ouvir atrás da porta — e a aguardei com todos no saguão da igreja. Não sei
como, ninguém a havia anunciado, mas algo me fez virar para trás, por onde ela
chegaria, no exato momento em que ela despontara no topo das escadas.
Aquelas lembranças enchiam meu coração de alegria. Era difícil me
conter.
— E, amigos, — disse, emocionando-me ao lembrar — tenho apenas
uma coisa a dizer do que vi: ao longo da vida, presenciei um sem número de
casamentos, alguns muito bem orquestrados, com noivas vestidas como
verdadeiras princesas, detalhes até no arranjo das flores das daminhas de honra,
decorações de perder o fôlego. Por conta da falta de tempo e de recursos para um
matrimônio usual, Marília trajava apenas um vestido simples que Dona Mirtes
emprestara para a ocasião. O vestido era antigo, mas muito bonito, além do que
Dona Mirtes o reformara em tempo recorde especialmente para que Marília o
usasse, fazendo-o parecer novo em folha. Tudo o que sei — concluí — é que,
embora Marília trajasse um vestido tão simples para um casamento, não tenho
dúvidas, nem medo de errar, que ela foi a noiva mais linda que já existiu.
Eu olhava apenas para Seu José enquanto falava, pois, afinal, ele quem
me instigara a contar nossa aventura. Quando, porém, olhei ao redor, vi que as
mulheres estavam com lencinhos nas mãos, secando os olhos, e os homens com
largos sorrisos no rosto. Devo ter colocado emoção demais na história, mas,
naquele instante — e eu soube, no futuro, que por toda a vida — era impossível
contar aquele sonho de outra forma.
Ainda constrangido, resumi todo o resto do evento: a troca das alianças,
os votos e o casto beijo em seu rosto no final. As congratulações dos convidados
da própria igreja, mesmo não nos conhecendo tão bem quanto nossos amigos de
Eldorado, foram igualmente calorosas.
Contei também da surpresa que tivemos, pouco antes de tudo acabar,
com a chegada repentina de meu pai, que, por sorte, minha mãe conseguira
contatar a tempo. Como não era católico, viu com a maior naturalidade o
casamento, — liberando-nos de outra exaustiva conversa — abraçando-nos
fortemente e acompanhando minha mãe de volta para casa, no dia seguinte, logo
ao raiar do sol.
— Enfim, a cerimônia não durou mais do que trinta minutos no total.
Mas sabem, foi o melhor casamento que já participei. — disse, e todos se
puseram a rir.
— Desta vez do lado de lá do púlpito, não é amigo? — brincou Seu José.
— Sabem, — confessei, com o coração na mão — ainda que eu me
casasse no fundo do mar, no meio de um deserto, de uma floresta, num porão de
uma casa, com Marília, seria sempre o casamento mais bonito que já existiu.
Um suspiro atrás de mim fez todos dirigirem o olhar para a porta da
cozinha. Ou, talvez, eles já estivessem olhando para lá e somente eu que não
notara.
— Vejo que a noivinha também veio se emocionar com a história. —
disse Seu José, sorrindo ternamente para Marília.
— Vim buscar o meu marido, que não subia. — disse ela, em tom
zombeteiro, apoiando a mão em meu ombro.
— Meu Deus, a carne! — gritou Eufrida, de repente, pondo-se de pé em
um segundo.
— Desde quando está ai? — perguntei, sem olhar para ela, tentando
sorrir, mas sentindo meu rosto pegar fogo.
— Desde a reforma do vestido em tempo recorde. — disse ela, sorrindo
para mim como uma estrela.
Levantei-me, ainda sem jeito, sabendo que olhavam para nós.
— Por que não me avisou? Eu teria abreviado a história. — sussurrei só
para ela.
— Esses últimos detalhes eu não perderia por nada. — respondeu ela no
mesmo tom, recebendo-me com um abraço.
Dona Eufrida voltou, então, com uma bela carne assada, rodeada de
batatas e pimentão. Comemos até nos fartar, conversando sobre tudo e sobre
nada, rindo como crianças e partilhando da bênção da comunhão cristã.
Tarde da noite, cansados, porém realizados, Marília e eu nos despedimos
de todos e subimos, agora rumo ao nosso céu.
Coisa estranha era descobrir que, estando nós unificados, tão próximos,
tão cúmplices dessa paixão, onde eu imaginava finalmente poder sentir menos
necessidade dela, eu me sentia ainda mais seu refém, em que estar próximos não
bastava: precisávamos ser sempre um.
Novo Começo e Novo Fim
Precisamente seis meses após o meu casamento, Seu José anunciou a
mim e à cidade que a Primeira Igreja Luterana de Eldorado seria inaugurada
como igreja evangélica oficial da cidade, “agora que havia um pregador
capacitado para este ministério”.
Não seria mister dizer que eu não me sentia em nada preparado. Apesar
de ter concluído o curso de teologia na paróquia, eu me preparara nove anos para
subir ao púlpito e pregar, o que já não fora nada fácil. E, agora, com apenas sete
meses de conversão, lá estava eu me vestindo, mais uma vez, para a minha
primeira pregação, agora como pastor.
Enquanto eu abotoava a camisa, pensava que, há dois anos, eu estava
com a mesma sensação de pavor ao vestir aquela batina pesada. A diferença era
que, embora teoricamente mais preparado na época, somente agora eu estava
completamente certo do que fazia. Preparara sim, um sermão, bem como na
época preparei, mas sabia que, da mesma forma, eu não o usaria.
Naquele dia, ao olhar-me no espelho, vi alguém completamente diferente
do que era antes. Não só as vestes mudaram, mas eu era verdadeiramente um
novo homem. Sem aqueles fantasmas de culpa que me perseguiam no passado,
ou aquele vazio dentro do peito, ou mesmo aqueles relâmpagos que me
assaltavam de repente, condenando a vida falsamente pura que eu levava.
Sabia, porém, que eu simplesmente tinha que falar tudo aquilo que há
tanto meu coração me instigara. Eu era como o profeta Jeremias, que um dia
declarou com toda a convicção e dor: “Se eu disser: não farei menção dEle, e
não falarei mais no Seu nome, então há no meu coração um como fogo ardente,
encerrado nos meus ossos, e estou fadigado de contê-lo, e não posso
mais.”.
Esses pensamentos, porém, se dissiparam ao ouvir a porta se abrindo.
— Já está pronto, querido? — perguntou-me Marília, com um belo
vestido bordô e seus cachos firmemente presos em fivelas brilhosas.
— Quase. — disse, entregando-lhe a minha gravata.
— Esses homens de batina... — brincou, enquanto a colocava
habilidosamente em meu pescoço. Aprendera com a esposa do Pastor Joel
visivelmente bem mais rápido do que eu. — precisam de ajuda com tudo.
— Acho que estou sofrendo de um terrível dejávu... — disse, sorrindo
sem humor.
— Não precisa se preocupar, Augusto. — Marília respondeu, serena, com
as mãos em meu peito. — Vai dar tudo certo. Deus está com você. Aquelas
pessoas que estarão aqui precisam ouvir a nossa Verdade, precisam conhecer o
nosso Deus. Você só será um veículo para o Espírito Santo falar com elas.
— Tenho medo de não estar sensível a sua voz. Quero dizer, medo de o
tempo de seminário me subir à cabeça, não sei, começar a pregar um dogma
católico, enfim, usar as minhas palavras, não as dos Senhor. — disse, sentando-
me pesadamente na cama e cobrindo o rosto com as mãos. — Só quero ter a
certeza de que farei o certo.
— Augusto, — Marília começou, sentando-se a meu lado — deixe-me
lembrá-lo de uma coisa. Você, um dia, quis usar as suas palavras, quis ensinar os
dogmas católicos, mas o Senhor tomou os seus lábios, porque desde sempre eles
os pertencia. Hoje, você está aqui para ser usado por Ele, para ser seu
instrumento direto. Agora, me responda, como Deus poderia não te usar? Não
honrar os sonhos dEle, envergonhar o próprio nome? Seja apenas seu ministro,
meu amor, e deixe que Ele o conduza. Afinal, as coisas não são por Ele e para
Ele?
Eu suspirei mais uma vez, enquanto a olhava.
— Acho que agora sei por que padres não podem ter esposas. Se eu
tivesse você naquela época, provavelmente ainda estaria lá até agora.

Marília balançou a cabeça em reprovação, mas estava sorrindo.
— Obrigado por existir para mim. — eu disse, agora sério.
Ela beijou-me o rosto, limpando a marca de batom que deixara em mim.
— Agora vamos, todos já estão chegando.
Não sei se por me conhecer tão bem, mas, apesar de meu esforço para
tentar dissuadi-la a ficar mais um tempo no quarto, reflexivo — assim como fiz
com Padre Dionísio —, Marília segurou-me ainda com mais firmeza, dirigindo-
me para fora do quarto.
— Fique em paz, Augusto, estarei bem ao seu lado. — disse, olhando
para mim pela última vez antes de entrarmos no templo.
---

Não era exatamente tranquilizante ver aquele sem número de pessoas no


nosso pequeno espaço. Devo ter calculado, na época, que metade da cidade
estava lá. Os anúncios de Seu José repercutiram tão bem, que muitos ficaram
para o lado de fora, esticando o pescoço, como se algo muito inusitado estivesse
prestes a acontecer. O que havíamos de convir que estava.
Uma música tocada no órgão já havia iniciado o culto e, os que puderam,
se assentaram no maior número de cadeiras que pudemos reunir. Marília ainda
segurava a minha mão com força, e eu via que já não era mais para me confortar
do que para confortar a si mesma.
Quando a música cessou, seu Gerônimo subiu ao púlpito e disse em alta
voz.
— Queridos irmãos e irmãs no Senhor, reunimo-nos aqui pela primeira
vez como Igreja para louvarmos a Deus, aprendermos um pouco mais sobre Ele
e nos relacionarmos com Ele.
Nem um som se ouvia entre a multidão.
— Era nosso desejo, — prosseguiu, enquanto todos o ouviam com
atenção — já há muito tempo, fundarmos uma igreja evangélica devota à Palavra
e, verdadeiramente, temente a Deus, porém o Senhor ainda estava levantando um
servo para cuidar deste rebanho como pastor interino do Bom Pastor, até que este
volte. Apresento-vos, então, com muitíssima alegria, quem haverá de cuidar de
nós a partir de hoje, como igreja, como irmãos: o Pastor Augusto.
A congregação se pôs de pé e irrompeu em aplausos, ao que, apesar de
me deixar de rosto e orelhas ruborizados, fez-me acreditar que a Igreja havia
despertado para Cristo e exultava ante a notícia de ter agora um lugar para se
reunir e estar com Deus.
— Boa noite, irmãos. — eu disse, quando todos se assentaram
novamente. — É um grande privilégio estar aqui, mas também uma grande
responsabilidade, eu sei, de estar à frente deste rebanho para a Glória do nosso
Deus. Muitos aqui, eu sei, já conhecem a minha esposa, Marília, que igualmente
tem o chamado e a vocação para o ministério diaconal, e estará me auxiliando,
como verdadeira auxiliadora idônea, a cumprir esta difícil, mas gratificante
missão.
Marília sorria e acenava, tão nervosa quanto eu naquela posição de
destaque, o que, ao contrário de me afligir, de alguma forma me confortava. Pela
primeira vez, eu podia dividir uma experiência com alguém e, mesmo Marília
sabendo que teria tantas responsabilidades quanto eu na igreja, foi capaz de me
incentivar a agarrar o ministério com afinco.
Ela logo se sentou em um lugar reservado na primeira fileira, parecendo
já estar recuperada da recente experiência. Eu, porém, ainda tinha o mais difícil
pela frente.
Enquanto todos me fitavam, curiosos, rostos conhecidos, rostos que eu
nunca vira, tomei minhas notas nas mãos e me posicionei no púlpito, pensando
na melhor maneira de dar inicio àquele sermão. Marília, afinal, estava certa. A
questão lá não era eu, meu constrangimento, meu medo, e sim que aquelas
pessoas precisavam ouvir o que eu tinha a dizer. O que Deus tinha a dizer.
— Irmãos, — iniciei, com voz mais firme do que achei que sairia —
quero começar a mensagem de hoje lhes dizendo uma coisa: Deus está à procura
de verdadeiros adoradores.
Era estranho estar pregando aquilo mais uma vez, porém, mais estranho
era aquela mesma mensagem parecer tão nova naquele dia. Eu era um padre
cheio de falsos dogmas no coração quando preguei sobre verdadeira adoração, e
agora eu era o pastor da única igreja evangélica denominalmente reconhecida da
cidade e, ao contrário de fiéis cumprindo enfadonha tarefa de participar de mais
uma missa, eu estava diante de uma multidão visivelmente sedenta pela Palavra.
Era maravilhoso. Assustadoramente maravilhoso.
Havia uma conexão tão boa entre eles e eu enquanto eu falava, que eu me
sentia cada vez mais estimulado a falar. A atenção a mim conferida, os ouvidos
estendidos como se não quisessem perder uma palavra sequer me davam a
certeza de que Deus estava lá e lhes falava ao coração.
— Verdadeiros adoradores — dizia eu, extasiado — buscam com fervor a
Deus. Àquele que o busca, Deus se fará achado dele. Batam, e a porta vos será
aberta, procurem, e encontrarão. “Eis que estou à porta e bato”, diz o Senhor
Jesus, “se você abrir, eu entrarei e cearei contigo”.
— Irmãos, o povo do Antigo Testamento vivia em uma dinâmica muito
clara, mas que, até hoje, não somos capazes de deliberar: quando viviam em
pecado e abandonavam a Deus, este se afastava deles e derramava a sua porção
de ira pela desobediência — Não, Deus não era tirano, mas era infinitamente
justo — e, quando o povo voltava a buscá-lo, lá estava Ele de braços abertos
para um recomeço, pronto para perdoar. E o Senhor é o mesmo ontem, hoje, e o
será para sempre.
— Eu descobri um tesouro, — prossegui, direcionando-me para o fim da
mensagem, após não sei quanto tempo de pregação — e muitos dos que estão
aqui também já o descobriram. É o tesouro que Deus disponibiliza aos que nEle
creem e servem. Um tesouro que a traça e a ferrugem não destroem. E um
tesouro muito, muito precioso. Vocês devem estar se perguntando que tesouro é
este? Ouro, pedras preciosas, tecidos finos? Não. É um tesouro dos reis: a coroa
da vida! Esta coroa garante que não morreremos espiritualmente, mas que
passaremos da morte para a vida. Como conseguir esta coroa? Esta coroa é para
aqueles que perseverarem até o fim na fé. E como perseverar em algo que ainda
não se alcançou?
— Irmãos, se alguém aqui creu nesta mensagem, e quer uma vida
entregue ao Senhor como sacrifício vivo; se alguém aqui está disposto a deixar
uma vida vazia e sem significado para trás, para alcançar a vida plena que o
Senhor oferece a quem se entregar a Ele, venha até aqui à frente para começar a
sua jornada eterna, pois, se você crer no seu coração que Jesus Cristo ressuscitou
dos mortos e confessar com os lábios que Ele é Senhor, será salvo! Ele está à
procura de corações adoradores, quantos corações nós temos aqui para
Ele?
Devo confessar que a minha fé nunca mais foi a mesma depois daquela
noite. Uma multidão tão imensa tentou vir para frente, que não havia espaço
sequer para os demais se moverem. Apesar, porém, de nem todos conseguirem
mover um metro que fosse, era possível visualizar quem estava tentando, com os
olhos marejados e as mãos erguidas em louvor. E se eu, mero ínfimo mortal,
podia vê-las, quanto mais o Senhor que as moveu as veria para escrever seus
nomes no Livro da Vida.
E assim foi o meu primeiro sermão da igreja em que eu pastorearia por
muitos anos, e seria o mais feliz dos homens, na mais nobre profissão.
Nunca vivemos com grande luxo, nem quando a igreja alcançara seus
trinta anos, com cinco vezes mais que seu tamanho original e mais de dois mil
membros ativos. Depois de nós, outras igrejas evangélicas tão reconhecidas
quanto a nossa surgiram, o que foi motivo de muita alegria e festa. As igrejas
comumente se interagiam em encontros de jovens e casais, dividindo
experiências e multiplicando bênçãos.
Não vou mentir que este caminho não fora deveras árduo, com muitos
conflitos e problemas que o tamanho trazia. “Com muitos membros, chegam
muitos joios”, dizia Seu José. E, de fato, eram notórios alguns desses joios,
buscando a divisão da igreja. Porém, estes não subsistiram por muito tempo. A
Luz naquela congregação era grande demais para eles.
Epílogo
Dezembro de 1967

E esta foi a minha história, e a história da minha igreja. Quis narrá-la,


não a fim de enfadar os queridos leitores com os altos e baixos da minha vida,
mas sim de mostrar qual foi o caminho que trilhei para encontrar “O Caminho”
e, assim, enaltecer ao Senhor, compartilhando um dos modos que ele usara para
alcançar um filho dEle. Um vaso que o oleiro mui habilidosamente fizera para a
sua honra, apesar da tortuosidade do seu coração.
Anos dourados se seguiram, e vimos a mão do Senhor em cada vida,
cada vitória. Eu, como pastor, mais até que como padre, — mesmo porque fiquei
pouquíssimo tempo como ministro da igreja católica — ouvi relatos de
mudanças verdadeiramente drásticas de vida. Reconciliações, curas,
recasamentos, libertações de vícios, tudo obra da infinita graça de Deus.
Mas eu não podia deixar de falar sobre o que fiquei sabendo sobre o fim
que tiveram os antigos conhecidos nossos.
Bem, começando pela mãe de Marília, esta ficou vários anos sem falar
conosco, embora Marília a procurasse em todas as festas anuais. Quando, porém,
tivemos nosso primeiro filho, Samuel, ela veio nos visitar, e houve um toque do
Senhor para o perdão e a reconciliação. Ela não mais negava Marília como filha,
embora ainda se recusasse a manter contato conosco. Com o passar do tempo,
porém, e a saudade dos netos aflorando mais a cada ano, suas visitas se tornaram
mais frequentes, o que me deixava satisfeito, mesmo que ainda agisse com
reservas com relação a mim.
Quanto a minha mãe, esta, como sempre, exigia me ver em todos os
natais. E, com o maior prazer, eu levava a minha nova família para sua casa,
“religiosamente”, nos quinze dias que eu dispunha de férias no mês de
dezembro. Samuel e Gabriel adoravam, e minha mãe não sabia o que fazer para
agradar a eles e à Marília.
— Este vai ser médico, e este outro, advogado. — dizia para os meus
filhos, que tinham tudo mesmo para seguir essas carreiras.
Na nossa igreja, infelizmente, Seu José não ficou muito tempo entre nós.
Mas, pela graça de Deus, ele pôde ver seu sonho realizado, chegando até a
conhecer meus filhos.
— Esses meus olhos viram tudo o que precisavam ver. — disse, enquanto
chorávamos ao redor de seu leito no dia da sua partida. — Combati o bom
combate, acabei a carreira e guardei a fé.
Nunca me esqueci do seu sorriso dócil e a feição serena com que
descansou em boa velhice. Afinal, foi isso que nos deu forças para continuar,
depois da sua partida.
Na paróquia, as coisas não mudaram muito. Marília e eu fomos com
nossos filhos mais duas vezes a nossa antiga cidade, para ver sua mãe. E,
incrivelmente, mesmo depois de anos, o Frei Alceu estava tão enxuto e lúcido
como eu o havia deixado, fazendo-me duvidar mais do que nunca da
naturalidade de seus cabelos e dentes. Sempre que nos encontrávamos na rua,
porém, nos cumprimentava rapidamente e se afastava. O quanto isso me
machucava, não posso descrever. Padre Dionísio mal nos encarava, tudo o que
fazia era balançar a cabeça, agora alva e opaca. Apenas de longe, às vezes,
lançava um olhar triste, ao qual devolvíamos na mesma intensidade. Ele fizera
muito parte de nossas histórias.

Ainda assim, nas vezes em que estive lá, não resisti ao intento de assistir
às pregações de Caio e Samuel, enquanto Marília ficava na casa de sua mãe com
as crianças. Felizmente, durante as minhas rápidas estadias, pude pegar trechos
de ambas, as quais me soavam agora, no mínimo, curiosas.
Caio desenvolvera uma oratória impecável, sendo muito bem quisto
pelos fiéis. Seus sermões eram longos, cheios de leituras, mas era possível ouvi-
lo por muito tempo sem se cansar — a não ser pelo fato de eu já não mais seguir
tal doutrina. Este amigo, porém, como os demais da paróquia, não mais dirigia
palavra a mim ou a minha esposa, apenas expressões de decepção e
repúdio.
Samuel, em contrapartida, quase nunca pregava. Suas mensagens eram
breves, mas seu olhar carismático e a devoção de suas palavras eram
encantadores. Quando me viu, ao contrário de todos, devolveu-me um enorme
sorriso e, chamando-me para a capela, longe da vista de todos, recebeu-me com
um caloroso abraço.
— Melhor aqui, ainda sou um padre de respeito. — brincou
inocentemente Samuel, logo depois se desculpando. — Oh, me perdoe, Augusto,
eu não quis dizer isso...
— O que é isso, amigo? — disse, sorrindo. — Sou um padre de nenhum
respeito, mas um pastor mais do que respeitado.
— Um pastor! — disse Samuel, olhando para cima e depois para mim.
— Quem diria?
— Eu que não, jamais imaginei que minha vida levaria esse rumo.
— E como está Marília? — perguntou, cruzando as mãos a sua frente.
Parecia mais conformado ao tratar desses assuntos.
— Está bem, na casa da Dona Irene. Samuel sempre pergunta de você.
— Ainda não acredito que deu o meu nome para ele, Augusto. Não sabia
que tinha tanta consideração por mim. — disse Samuel, constrangido.
— Você foi e sempre vai ser o meu melhor amigo, Samuel. Além disso,
expressei nesse nome o mesmo desejo de que meu filho seja chamado pelo
Senhor, assim como eu e você.
Samuel sorriu, complacente.
Naquela ocasião, eu o convidara para ir visitar a minha igreja algum dia
desses, porém não acreditando que ele, de fato, iria. Afinal, que padre iria para
outra cidade para assistir a um culto evangélico?
Tal foi a minha surpresa quando o vi, em uma tarde, chegando a minha
casa, exaurido da viagem.
— Mas você foi morar no fim do mundo ou o que, homem? — disse
Samuel ofegante, da forma irreverente com que conversávamos no tempo de
seminário.
Marília logo lhe trouxera um copo com água gelada, e meu filho Samuel
veio ao seu encontro, dando-lhe um abraço.

— Tio Samuel, que bom que veio aqui, meu pai sempre diz para orarmos
pelo senhor para que venha aqui, e Deus dessa vez respondeu!
E de batina e tudo, Samuel foi a nossa igreja assistir ao culto — um em
que, se não me falha a memória, eu falava sobre nova vida em Cristo.
Ele se assentara bem à frente, junto com Marília e as crianças.
Quando o culto terminou, Samuel aguardou pacientemente até que eu
cumprimentasse todas as ovelhas que se enfileiravam para desejar uma boa
semana a mim e a minha esposa. À porta de casa, quando ficamos a sós, ele me
confidenciou, ante a minha pergunta do que tinha achado de tudo:
— Augusto, irmão, ouça bem, eu sinto o chamado de Deus para mim na
paróquia e sinto que o sirvo como Ele espera lá, mas devo confessar que, quando
você fez o convite para aqueles que queriam ter uma vida nova em Cristo, o
Senhor Jesus fez morada em mim de uma forma muito especial e, apesar de ter
dedicado toda a minha vida para Ele, parece que só agora eu me sinto,
verdadeiramente, uma nova criatura nEle. Que as coisas velhas já passaram, e
que tudo se fez novo.
Aquela, depois da minha conversão e da chegada da minha família, foi a
coisa mais maravilhosa que o Senhor me permitiu ver.
Enfim, Samuel e eu continuamos a nos comunicar por cartas e, com o
advento dos retratos fotográficos, fui capaz de mostrar-lhe o crescimento dos
meus filhos e da igreja. Ele sempre louvou muito a Deus por isso.
Hoje, meus filhos pequenos se tornaram dois varões muito valorosos.
Samuel me trouxe imensa alegria quando começou seu curso de teologia para ser
pastor, enquanto Gabriel deu o prazer que a minha mãe sempre almejou: tornou-
se o médico da cidade, trazendo novas tecnologias e descobertas da cidade
grande para nós.
Gabriel, inclusive, deve ter secretamente desenvolvido uma fórmula
rejuvenescedora para Marília, pois os anos não atingiram em nada a sua beleza,
de modo que, enquanto persistentes cabelos brancos iam crescendo sob minha
cabeça, Marília permanecia com o mesmo rosto de menina que tinha quando nos
conhecemos, ficando até incrivelmente mais bela, com a maturidade
evidenciando seus doces traços. Mesmo depois de tantos anos, era sempre a
minha Marília, minha pequena menina.
Agradecimentos
Agradeço ao meu amado Senhor Jesus Cristo, por ser a minha fonte de
inspiração não só para escrever, como para viver a linda vida que ele me deu. É
ele quem opera em mim tanto o querer quanto o efetuar, de acordo com a sua
boa vontade. Ele é a minha causa e meu efeito, a origem e a finalidade de tudo.
Que este livro o glorifique.
Agradeço a minha irmã, Daniela, por sempre me incentivar desde quando
as primeiras linhas foram escritas, dando força e conselhos valiosíssimos que
culminaram nessa obra. Conseguimos, Dani!
Agradeço também aos meus pais, Jaime e Márcia, meus parceiros de toda a
vida, que me capacitam a fazer tudo o que sonho. Minha gratidão não tem fim.
Ao querido Pastor Guilherme Gimenez, por ter lido e incentivado a
publicação dessa obra, me apontando ajustes necessários e, ainda, se
disponibilizado tão gentilmente a escrever o prefácio. Muito obrigada pelo
apoio, pelas palavras e pelo carinho.
A todos, meu sincero agradecimento.

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