Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ADORADORES
EM BUSCA DE DEUS, DE SI E DO AMOR
Este livro é dedicado a todos aqueles que se empenham em ser achados por
Deus como verdadeiros adoradores.
Prefácio
Há várias maneiras de se abordar um tema. Fernanda escolheu o romance e
foi sem dúvida uma ótima escolha. Com a linguagem poética ela foi construindo
seu texto com beleza e através de personagens fortes foi apresentando a difícil
vivência da religiosidade, destacando em especial os dogmas que são
construídos ao longo da vida.
Escrever sobre a religiosidade é algo difícil, independente do estilo
escolhido. Em geral os livros de teologia, que tratam bastante desse tema,
utilizam termos técnicos, esbanjando citações de teóricos e refletindo de maneira
pesada sobre os vários itens dignos de atenção dentro da religiosidade. Nem todo
mundo consegue ler um livro de teologia com disposição e alegria exatamente
por esse motivo. Mas, e se tratarmos dos mesmo temas através da história de
personagens, que vivendo seus dramas pessoais, refletem sobre essas mesmas
inquietudes teológicas? E se em vez de termos difíceis utilizássemos a
linguagem do dia a dia, cheia de aventuras e surpresas? Com certeza a leitura
seria bem mais fácil. E é exatamente essa a proposta desse livro: abordar temas
da religiosidade, em especial o dogma, de uma maneira romanceada, com
personagens e lugares que cativam a atenção do leitor.
Fernanda nos convida a entrar em lugares peculiares à religiosidade como
um Seminário e uma Paróquia. Nos mostra os sentimentos e impressões de
padres, amigos, e principalmente membros de uma família comum, como a sua
ou a minha. Ela nos faz viajar no tempo, e nos insere em costumes de época que
somados à própria história narrada se tornam vívidos a ponto de nos transferirem
para uma época bem diferente da nossa onde nos sentimos ilustres visitantes,
com direito a assistirmos diálogos intensos de personagens vivendo seus dramas
de vida. Fernanda usa as palavras a favor do romance e faz isso de um modo tão
agradável que a leitura se torna convidativa, própria de um bom romance.
Ler esse livro é indicado para quem deseja viajar ao século XX e refletir
sobre a religiosidade. Mas também é indicado para quem gosta de histórias bem
contadas, daquelas que nos fazem quase sentir o cheiro dos personagens e ver a
cor do céu que os cobre. O livro "Corações Adoradores: em busca de Deus, de Si
e do Amor" servirá de reflexão sobre Deus e da busca incansável do ser humano
por Ele. Também será um convite a pensarmos sobre nossas próprias motivações
e nos fará pensar sobre a religiosidade de uma maneira objetiva, nos fazendo
enxergar anseios escondidos dentro de nós mesmos e que nos levam a fazer
perguntas sobre Deus, nós e o próximo.
Tenho certeza de que você apreciará essa leitura. Fernanda tem um estilo
único, ama escrever e podemos praticamente sentir em cada palavra esse
sentimento tão intenso que se transforma em um convite para participarmos não
apenas de uma leitura, mas sim de uma experiência onde letras se unem de
maneira harmoniosa para produzir uma das histórias mais lindas que já li.
Para mim é uma grande honra apresentar a você a jovem Fernanda. Estou
certo de que esse será o primeiro livro de uma série pois não falta talento,
dedicação e seriedade na vida dessa moça, não apenas como escritora, mas na
vida pessoal.
Espero que essa leitura seja tão prazerosa para você como foi para mim.
João 4:23
Prólogo
Janeiro de 1926
— Você tem certeza de que é isso mesmo que você quer, meu filho?
— Sim, mãe, é isso mesmo que eu quero. — disse, pela milésima vez
naquele dia, deixando minha única mala no chão.
A mesma conversa desgastante que tivemos ao longo da semana.
— Mas você vai abandonar toda uma vida? Você é ainda tão menino, tem
tanto para viver...
— Não vou morrer, apenas vou dedicar a minha vida a Deus!
— Mas precisa largar tudo? O colégio, sua casa, seus amigos...
— Vou em busca de algo maior. Além disso, não vou parar de estudar. Só
não vou mais ver essas coisas de números, ou a medicina que a senhora tanto
quis para mim. Vou estudar a bíblia, estudar a Deus, o que ele quer.
— Mas, meu filho... — Dona Madalena chorava com o braço estendido.
Aquilo era extremamente doloroso para ambos.
— Minha decisão já está tomada, — suspirei, reerguendo a mala — e não
vou voltar atrás. Darei notícias quando chegar.
Parte Um
O SEMINÁRIO
Um começo e Um fim
Março de 1935
---
Foi só após muitos dias que eu percebi que nunca era escalado. A
princípio, não me importei, apenas achei que outros padres haviam pedido ao
reitor que pregassem mais vezes.
Enquanto isso, passei a maior parte do tempo no confessionário, ouvindo
um número sem igual de atrocidades. Mal podia imaginar os pecados que
rondavam aquela pacata cidade. Talvez não fosse sem motivo que o frei sempre
fizera questão de fazer sermões sobre adultério e crimes contra a justiça.
Raras foram as minhas visitas domiciliares naquele mês. Talvez, pelo
constante tempo fresco, as pessoas estivessem mais saudáveis e, felizmente, não
houve mais que dois funerais desde que fora ordenado. Participei de um
casamento também, em que fui auxiliar do padre que celebrava a cerimônia. Um
casal muito respeitável fez com grande comoção seus votos de matrimônio,
embora não dispusessem de muitos recursos para dar grandiosa festa, como era
de costume naquela cidade.
Salvo isto, estive ocupado, juntamente com toda a paróquia, com os
preparativos para a Festa Junina. Todos da cidade estariam pelas redondezas, e
precisávamos de uma festa à altura. Eu já estava acostumado com esses
preparativos, pois ficava na parte administrativa quando ainda seminarista. Mas,
desta vez, estava preparando um sermão para aquela multidão que viria. Foi
quando recebi uma notícia que levaria meus planos por água abaixo.
— Não ficou sabendo, Augusto? O próprio reitor fará a homilia nesta
Festa Junina! — disse-me Caio, com toda a convicção. — Ele permitiu que
algum recém-ordenado fizesse toda a celebração, enquanto ele faria a Aclamação
do Evangelho e a homilia. E não é por nada não, mas recebi várias indiretas que
esse recém-ordenado seria eu. Pelo menos, foi o que deu a entender.
Apenas assenti com a cabeça. Talvez fosse óbvio que o sermão da festa
não fosse proferido por mim, nem por nenhum ex-seminarista, mas o fato de o
próprio reitor realizar a homilia me deixou deveras confuso.
Naquele mesmo dia, eu estive no confessionário, e acabei me rebelando
novamente. Um senhor de meia idade se aproximara furtivamente e se
posicionara ao lado do confessionário.
— Padre, perdoe, porque pequei.
— Diga, meu filho, qual o seu pecado?
— Eu... Desejei a mulher do meu amigo. — sussurrou o homem — Digo,
eles são meus vizinhos, e a mulher dele é... céus, maravilhosa, com um corpo de
enlouquecer qualquer um...
Suas descrições passaram a ficar muito detalhadas, obrigando-me a
intervir.
— Filho, já compreendi o quanto a mulher lhe apetece os olhos.
— Ah, padre, se apetece... Nem lhe digo o que eu faria se...
— Ouça, veio aqui confessar seu pecado ou compartilhá-lo comigo?
— Não, padre, me perdoe, é que é algo mais forte do que eu! Essa
mulher é uma tentação ali do lado da minha casa! Não consigo resistir! Deus
sabe que a carne é fraca.
— A carne é fraca para quem vive pela carne. Viva pelo Espírito e de
modo algum cumprirá os desejos da carne.
— Ah, é fácil dizer...
— Acha que foi fácil para o Rei do universo tornar-se homem, despido
de glória, e resistir a todas as tentações, inclusive a de salvar a própria vida, em
vez de toda a humanidade? E Ele fez isso por você também!
O homem se calou. Imaginei que refletisse.
— Padre, estou aqui, confessando meu pecado. Eu poderia tê-lo omitido
e ninguém nunca saberia. Será que o senhor não pode simplesmente me dar uma
penitência para eu sair perdoado daqui? Meu pecado nem é tão grave assim!
Nunca toquei naquela mulher! Vamos, diga, quantos Padres Nossos tenho que
rezar? Credos também servem? São mais longos, talvez mais eficazes. E se
puder me deixar alguns a mais, para o caso de, o senhor sabe, ter uma recaída...
— disse, dando uma leve risada.
Mal tive tempo de pensar.
— Escute, homem, o que pensa que está fazendo? A quem está querendo
comprar? Acha que essas orações são o pagamento pelo seu pecado? Um
castigo? Acha que o Senhor dos Céus é um Deus de negócios? Sinceramente, é
isso que pensa? A oração é um privilégio! Se quer ouvir o que eu digo, não se
atreva a rezar! Não com esse coração bajulador e traiçoeiro. Ninguém é digno da
presença que o Senhor concede na oração, mas o que assim se dispõe, deve estar
com um coração puro e quebrantado. “Guarda teus pés quando estiveres na
presença de Deus” é o que a bíblia fala. Agora saia deste lugar sagrado e só
retorne quando estiver verdadeiramente arrependido de seus delitos e disposto a
abandonar seu pecado!
O homem calara-se mais uma vez e eu podia ver seu rosto pingando de
suor. Sua respiração ficara ofegante, e ele logo se pôs em pé, saindo depressa da
igreja.
Meu coração pulsava forte e minha boca estava seca. Nunca havia falado
naquele tom com ninguém e, muito menos, expulsado alguém da igreja. Senti-
me arrasado por aquilo, mas sabia que estava preservando a santidade da casa de
Deus. Que Ele tivesse misericórdia de mim!
Eu devia ter saído naquela hora para me acalmar, tomar uma água, salvar
o meu coração, mas acabei ficando dentro do abafado confessionário, ainda me
remoendo pelas palavras proferidas, quando a voz saiu pelas grades do
confessionário.
— Padre, perdoe-me, pois pequei mais uma vez.
O perfume e a voz inconfundíveis tornaram desnecessário olhar pelas
frestas da grade de madeira.
— Diga, filha, estou ouvindo. — eu disse, segurado o ar.
— Padre, eu sinto muito, mas não ouvi o seu conselho, — esbravejou a
mulher, revoltada — não contei a verdade a minha mãe! Eu tentei, Deus é
testemunha, eu tentei contar, várias vezes, mas ela sempre estava ocupada, ora
com as prendas da Festa Junina, ora com meus primos que vieram nos visitar... E
o pior é que isso tem virado uma bola de neve! Para eu encobrir uma mentira,
tenho que contar outra, e outra, e outra... Agora já não posso mais contar a
verdade, estou perdida!
— Filha, eu gostaria de ter uma palavra de conforto a você, mas a
verdade é que o Senhor abomina a mentira. Em vários lugares a Palavra de Deus
mostra que não devemos mentir. É um mandamento! E não há nada que
justifique uma mentira, nem uma boa intenção.
— Mas padre, o senhor mesmo disse que era para eu seguir o meu
coração! Eu segui! — disse a mulher, a beira do desespero.
Suas palavras ecoaram no pequeno espaço, enquanto ambos nos
recuperávamos.
— Perdão, padre... — prosseguiu, ante ao meu breve silêncio, engolindo
as duras lágrimas — Por favor, me perdoe, eu é que estou errada, o senhor me
disse desde o começo o que eu devia fazer, e ...
— Não, minha filha, você tem razão. — confessei, envergonhado — Eu
disse exatamente isso, que seguisse o seu coração, mas eu estava errado. O
coração das pessoas é traiçoeiro, por ser inconstante e presa fácil do mal.
— Padre. — a palavra permaneceu no ar, enquanto a mulher olhava
fixamente para mim, atrás das grades. — Não, por favor, o senhor não está
errado. Não diga isso. Apesar de sentir que era isso que eu devia fazer, meu
coração também apontava que Deus é mais importante do que tudo, mais até que
a minha família.
— “Quem ama a sua família mais do que a mim, não é digno de mim”.
— sussurrei, mais como um pensamento.
— Padre, eu quero ser conhecida de Deus.
Senti uma emoção inexplicável ao ouvir aquilo. Eu imaginara que,
naquela noite em que eu pregara, todos estivessem insatisfeitos com a minha
mensagem, mas, ao que parecia, aquela mulher estava disposta àquilo.
— Então seja.
Foi tudo o que disse. E, embora pensasse no momento que fizera-me
vago demais, pelo sorriso aberto da moça, percebi que ela havia compreendido.
— Obrigada, padre, obrigada.
— E mais uma coisa. — disse, enquanto ela apoiava as mãos para se
levantar. — Padres também erram... e pecam. — disse a última palavra, abrindo
mais os olhos — Não se esqueça disso.
Ela olhou-me confusa por um instante, mas assentiu com cordialidade e
retirou-se.
Desta vez, ouvi o bom senso e retirei-me também.
---
---
Durante o caminho até o meu martírio ansiado, munido de minha tão fiel
companheira de guerra, a Sagrada Palavra do Senhor, e toda a coragem e força
que pude reunir, eu pensava nos dias que tinham se seguido após aquele insano
sonho ao qual eu tanto me condenei. Por várias noites eu tivera meu sono
comprometido, temendo dar vazão mais uma vez àquele inebriante pecado, de
modo que, por vários dias, eu tive a atenção e energia debilitadas, não só pela
falta que o sono fazia, como pelo fato de a imagem de Marília ocupar até o meu
último pensamento, até que eu não tivesse condições de pensar em mais nada.
Depois de muitas preces, o Senhor finalmente teve compaixão de mim e
permitiu que eu prosseguisse a minha vida com relativa naturalidade. Eu já era
capaz de fazer alguns estudos da Palavra, ir algumas vezes ao confessionário —
obviamente, temendo a cada fiel que chegava que a figura dela inundasse o
pequeno espaço através das grades — visitar uma senhora enferma e comparecer
a um batizado, dirigido pelo frei.
Agora, porém, tudo o que eu sufocara em minha mente e em meu
coração parecia querer me explodir, tamanha a força que se comprimia a cada
passo em que eu ficava mais próximo da residência a qual eu me destinava.
Findo o martírio do caminhar, uma batalha muito maior estava agora
diante de meus olhos. Era uma casa antiga, mas muito bem cuidada, com flores
na janela e um ar respeitoso. A casa era de um tom coral muito claro, com alguns
retoques nas laterais, mas nada que comprometesse a sua beleza.
Antes, porém, que eu me atrevesse a bater na porta, um choro angustiado
me contorcera até o último centímetro do coração, deixando-o do tamanho de
um grão de feijão. “Como eu encontraria a minha querida?”. Tratei de afugentar
o pensamento tão logo ele surgira e reuni nova coragem para entrar, sabendo que
dor pior seria permanecer ali fora.
Após quatro batidas suaves, um arrastar de chinelos veio em direção à
porta e logo a senhora que eu temia, mas sabia no fundo que teria que ser,
apareceu diante de mim, os olhos vermelhos e o rosto inchado.
— Oh, padre, finalmente o senhor chegou! — disse dona Irene,
agarrando-se a minha batina como se eu fosse a salvação em pessoa. — Padre
Dionísio? — perguntou a senhora, olhando atrás de mim.
— O padre teve umas questões urgentes a resolver em outra cidade, por
isso me designou para vir até aqui ver a sua... filha. — engasguei na última
palavra.
— Mas como ele não veio? O que pode ser mais urgente que... — Vendo
minha face angustiada e, provavelmente, supondo que houvesse me ofendido, a
senhora logo tratou de me convidar a entrar. — Por favor, padre, tenha a
bondade de entrar, o sol está fraco, mas ainda está ardido.
Sem dizer nada, entrei lentamente dentro da pequena e arrumada casa,
imaginando onde estaria Marília e, pior, em que estado eu a encontraria.
A bíblia já estava ensopada com o suor de minhas mãos, mas, apesar do
convite da senhora para que eu me assentasse e tomasse um gole de café, eu não
conseguiria soltar aquela bíblia por nada deste mundo.
Ela me apontou uma cadeira antiga de madeira, muito bem conservada,
bem como os demais móveis da casa e, em um instante, preparou um café que
imaginei estar exalando seu aroma forte por todas as casas vizinhas. Não sei ao
certo quanto tempo ficamos ali em silêncio, pois a minha mente estava tão aflita
que eu apenas sentei na cadeira e, quando dei por mim, a senhora apareceu com
uma xícara de porcelana delicada a minha frente.
— Cuidado que ainda está muito quente. — alertou-me a mulher,
sentando-se lentamente ao meu lado, com um semblante abatido.
— Oh, padre, minha filha, pobre menina... — prosseguiu a mulher,
colocando o rosto entre as mãos, enquanto eu tentava engolir o gole de café que
estava em minha boca, quando ela me lembrou do estado de Marília — Eu
acordei cedinho, como sempre, para preparar o desjejum dela antes de ela ir para
a escola, chamei várias vezes para que ela viesse comer, mas como ela não
vinha, fui até o seu quarto e a vi branca feito leite. — Soluços entrecortavam sua
lamentação. — Ah, padre, essa menina sempre foi tão saudável, nunca me deu
trabalho de ter que ir ao médico e agora está lá, travada em uma cama, mal
comendo uma fatia de pão por dia, e isso há quase uma semana...
Lamentei o gole de café que eu obrigara meu estômago a receber naquele
momento. Uma dor dilacerante atravessava meu peito e uma tristeza, misturada
com um desejo maior do que todos os que eu já tive de vê-la, fez com que eu me
levantasse involuntariamente.
— Padre, não quer terminar de tomar o seu café? Acredito que Marília
ainda esteja dormindo. Eu a deixei há pouco quando percebi que havia
finalmente adormecido.
Não sei qual a minha feição de decepção naquele momento, porém
lembro-me apenas de tê-la olhado, quase que a implorar que me deixasse ver sua
filha, e ela, consternada, ter se levantado também.
— Bem, também não quero que perca a sua viagem. Além disso, eu
precisava que um padre viesse aqui, rezar por ela. — disse a mulher, secando
suas lágrimas e, com isso, alisando suas rugas evidenciadas pelo sofrimento.
Como eu nada dissera, ela segurou o meu braço e me levou, através de
um corredor estreito, até um dos quartos do fundo da casa.
— Ela não dormiu nada essa noite, — sussurrou — por isso, tente não
acordá-la, por favor.
Eu assenti de leve com a cabeça, desejando em meu íntimo fazer
exatamente o contrário, quando a vi prostrada, lívida, com os olhos suavemente
fechados e a respiração regular.
Aproximei-me com cuidado de seu leito, sentido que meu peito iria
finalmente explodir de dor. Era como se tudo o que houvesse dentro de mim
estivesse se partindo e que eu nunca mais fosse estar inteiro outra vez.
O quarto era pequeno e pouco mobiliado, mas bem arejado. O que faltava
em móveis, porém, sobrava em itens de decoração. Ao entrar, senti um suave
aroma de roupas limpas, misturado à fragrância que eu tanto conhecia de
Marília.
Quando avistei uma cadeira entre a janela e o leito, dirigi-me até lá pé
ante pé, a fim de não despertá-la de seu pequeno instante de conforto, longe da
dor da realidade. Antes de me sentar, porém, acompanhei uma leve
movimentação de seus olhos, que me abriram o mundo quando se revelaram por
detrás daquelas pálpebras cansadas.
— Padre... Augusto? — perguntou-me em tom quase inaudível.
— Sim. — respondi, finalmente — Sei que esperava a visita do Padre
Dionísio, mas ele infelizmente não pôde vir, teve um casamento para realizar,
alguém da sua parentela, um sobrinho. Mas ele mandou suas condolências, ficou
muito preocupado, disse que tem muito apreço pela senhorita, mas que,
realmente, não poderia vir, então...— disse, explicando mais do que precisava
pelo nervosismo.
Ela sorriu levemente, trazendo um pouco de cor ao rosto e de paz ao meu
coração, desviando seu olhar quando viu que eu a contemplava com demasiado
afinco.
— Fico feliz que tenha vindo. — ela disse, voltando seus belos olhos
cansados para mim e sorrindo mais um pouco. — Senti falta do senhor nas
missas.
Eu me limitei a sorrir também, sentando-me na cadeira, com a bíblia
entre as mãos.
— Sinto muito tê-la acordado, Srta. Marília. — disse, procurando
disfarçar a emoção de pronunciar o seu nome pela primeira vez — Sua mãe me
disse que não dormira quase nada esta noite...
— O senhor não me acordou. Na verdade, eu nem cheguei a dormir. —
sussurrou, o que acreditei ser mais para que sua mãe não a ouvisse do pelo seu
estado físico — Tive que fingir que dormia para que ela descansasse um pouco.
— disse, apontando para a direção da sala com os olhos — Ela passou a noite
toda ao meu lado, precisava descansar.
Com a metade da minha mente que ainda raciocinava — a outra metade,
apesar de todos os meus esforços, só fazia admirá-la em todos os aspectos,
apreciando o simples fato de poder estar ao seu lado — pensei em lhe retalhar
por não ter contado logo a verdade a sua mãe sobre seu estado e acabado com
aquele martírio, mas não quis torturá-la ainda mais.
Todavia, como que se ela ouvisse meus pensamentos, seu rosto passara a
demonstrar nova tristeza.
— Sim, padre, eu sei que deveria tê-lo ouvido. Fui uma tola e agora estou
pagando por isso. Não só eu, mas a minha mãe também...
E, pegando-me desprevenido, seus olhos tristes molharam-se de repente,
terminando de destruir tudo o que havia dentro de mim. E, sem que eu tivesse
tempo de pensar com prudência, inclinei-me para frente e segurei sua mão
pendida na cama, em um gesto mais paternal do que qualquer outra coisa.
— Não se torture assim, Marília, ainda pode contar a sua mãe o seu
problema, ela entenderá que só fez pensar nela e em sua saúde.
Duas lágrimas simultâneas caíram quando ela apertou seus olhos ao ouvir
minhas palavras. Percebi que ainda segurava a sua mão, mas quando fiz menção
de soltá-la, ela agarrou a minha com força.
— Padre, por favor, me ajude a contar tudo a ela! Eu não consigo! — Sua
voz era uma agonizante súplica. — Eu tive medo da reação dela, da dor que iria
causar, mas hoje vejo que nada é pior do que ouvi-la perguntando a Deus o que
há de errado comigo, onde ela falhou! O senhor tinha razão, eu devia ter contado
antes, enquanto eu ainda podia fazer alguma coisa, podia consolá-la.
Sua mão suada cravada na minha fez também meus olhos arderem, e um
desejo desesperado em ajudar aquela mulher surgiu naquele instante. Mais do
que amor ou paixão, uma compaixão por aquela criatura sofredora fez eu me
erguer, desvencilhando-me com cuidado de sua mão, a fim de pôr um ponto final
ao menos em parte daquela agonia.
— Dê-me apenas um instante, Srta.
Marília fitou-me assustada, mas por fim, assentiu uma vez.
---
Já dentro do monastério, sorvi com avidez um copo com leite morno, não
só na esperança de amenizar os efeitos da geada, como de esfriar a sensação de
queimação no estômago.
Todas as lembranças em mim atiradas, todos os sentimentos e
pensamentos, toda a esperança e a culpa retornando a minha mente e clamando
por Marília mais uma vez.
Ainda com o copo na mão, mal escutei quando Samuel se sentou à mesa
com uma folha de papel em suas mãos e um ar desanimado.
— Tudo para ontem, vou ficar maluco assim. — murmurava para si.
Deixei o copo sobre a pia e juntei-me a ele em seu triste universo.
— Algum problema, Samuel?
— Oh, Augusto, estou ficando louco nesse monastério. — disse, sua face
desesperada — Gosto muito dessas atividades, mas são tarefas demais para
tempo de menos! Imagine você ter que organizar toda uma seção da biblioteca,
com leitura para fazer para as crianças às 4 horas, tudo isso enquanto esboça um
sermão para daqui a dois dias! E como se já não bastasse, veja, — disse,
apontando-me a folha em suas mãos — ainda me foi dada uma lista de compras
para fazer no mercado. As freiras saíram para retiro e incumbiram a mim alguns
dos serviços domésticos da igreja, dentre eles o abastecimento da despensa...
Eu não via Samuel tão agitado desde a época das provas finais de
metafísica. Chegava a ser cômica a sua face preocupada por algo tão pequeno,
mas eram também invejáveis os motivos que traziam rugas a sua testa lisa e
jovem.
Ao observá-lo, lembrei-me de que ele nunca se envolvera em qualquer
tipo de confusão ou brigas que, vez ou outra, assolavam a vida no monastério.
Ao buscar ainda mais a fundo na memória, acredito que Samuel nem mesmo já
tenha levado algum tipo de advertência. Sua retidão fora sempre mantida e
reconhecida por todos e, ainda assim, ele se achava o menor dentre nós. Ao que
me conste, nunca houve nada que alguém tivesse que se queixar dele. Ele era
absolutamente irrepreensível.
Com a imagem de Samuel em minha mente e também diante de meus
olhos, este ainda olhando com desânimo a lista de suprimentos do monastério,
não pude evitar querer sua vida, seus problemas, sua integridade. Queria tanto
poder me preocupar com compras a fazer, ou — há quanto ao tempo — um
sermão a preparar. Ter, enfim, o carinho de todos e a confiança dos mais críticos
fiéis.
Por isso e, a fim de impedir que meus pensamentos chegassem ao meu
coração e me provocassem inoportuna inveja, sorri e tomei a folha de suas mãos.
— Deixe comigo essas compras, vá preparar seu sermão. Depois vejo se
consigo dar um jeito naqueles livros empilhados lá na biblioteca.
— Não, não, Augusto, isso atrapalhará suas atividades. Além disso, isso
não é justo, eu deveria ter administrado melhor o meu tempo. Confesso que me
perdi em um comentário bíblico quando estava lá na biblioteca, o que tomou
muito do meu tempo. — confessou Samuel, como que se confessasse ter
roubado o Papa.
— Não me atrapalhará em nada. Como as visitas que faço são demoradas
e cada vez mais distantes, depois de retornar de minha jornada fico com um bom
tempo livre. Além do mais, — arrematei, quando percebi que ele não cederia tão
fácil — os sermões devem sempre ficar em primeiro lugar. Nós podemos ficar
sem mantimento aqui dentro, mas os fiéis não podem ficar sem seu alimento
espiritual.
Sorri, por fim, quando vi que meu argumento seria inquestionável.
Samuel então cedeu, suspirando, um pouco constrangido, mas
visivelmente aliviado por menos essa tarefa sobre seus ombros.
— Muito obrigado, irmão. Bem, vou me recolher então para me
concentrar no sermão. Penso em dizer algo a respeito de batismo.
— Certo, — respondi, levantando-me — vou ao mercado, então. Só não
vá se “afogar” indo muito fundo nessa história de batismo.
Samuel riu, chacoalhando todo o seu corpo grande sobre a mesa, da
minha brincadeira sem graça. Ninguém jamais teria amigo melhor aqui nessa
Terra do que quem tem como amigo Samuel. Isso era fato e sempre me alegrava
o coração, independente das circunstâncias.
---
---
Não foi com pouco temor que atravessei aquele corredor escuro à
procura do dormitório de Marília. A cada passo, um novo medo, e eu podia
sentir a esperança se esvaindo como se eu fosse uma garrafa furada.
O passo mais difícil foi atravessar, por fim, a porta entreaberta que nos
separava. Precisei tomar novo fôlego e empurrar a porta ainda com os olhos
fechados. Como nenhum som era emitido, a única informação que me veio do
ambiente naquela fração de segundo foi um cheiro de roupas limpas, associados
ao perfume que eu jamais esqueceria por toda a minha vida, perfume o qual me
fez abrir os olhos de repente e contemplar tudo o que eu queria e o que não
queria ao mesmo tempo.
Sim, era Marília, minha Marília, que estava sobre aquele leito branco,
debaixo de um lençol bordado creme. Seus olhos estavam fechados, como da
outra vez, mas agora eu sentia que ela, de fato, dormia. Sua face estava
descansada, mas tão abatida que, apenas por vê-la sempre em meus sonhos, eu
podia encontrar a Marília de outrora através daquela languidez.
Aproximei-me devagar, contemplando cada detalhe do seu novo estado,
sua respiração curta e irregular, seus lábios semiabertos, seus lindos cachos
desmanchados e seus leves e breves espasmos, temendo no profundo da alma
que aquela fosse a última vez que eu a veria viva.
Em pé, mais uma vez entre aquela mesma janela que trazia uma brisa
fria, balançando uma cortina de seda atrás de mim, e a minha doçura, tive a
necessidade de tocá-la e sentir a vida que ia se esvaindo daquele corpo que eu
tanto quis que um dia fosse meu. Sim, agora eu conseguia admitir isso, com toda
a culpa do mundo, mas, finalmente, rompendo a barreira que me impedia de
enxergar o que sempre fora tão óbvio. Eu sempre soube que precisava prender a
respiração quando ela se aproximava, porque seu cheiro me faria entrar num
mundo de impossibilidades; que precisava olhar sempre para seus olhos, se
quisesse sair de sua presença íntegro; e que precisava sempre me manter a uma
certa distância dela, pois o menor toque me faria estremecer e perder a pouca
razão que ainda tinha.
Contrariando o bom senso, mas afagando um pouco o meu coração em
brasas, toquei com a ponta dos dedos seu rosto, com toda a suavidade que pude,
até chegar aos seus lábios, percebendo que os meus se abriram ligeiramente, de
modo involuntário, devido ao que se passava na minha mente insana. Recolhi,
porém, minha mão, bruscamente, num contraste com meus gestos suaves, ao
perceber uma leve movimentação de seus olhos, que mui lentamente se abriam
para mim.
Ao contrário, porém, dos olhos vivos e grandes que eu esperava, abriram-
se apenas duas meias-luas, mas que ainda puderam me devolver parte da
esperança perdida.
Por um breve momento, Marília nada disse, nada fez. Apenas me olhou.
Sua respiração continuava arrítmica e percebi que o que eu via não eram luas, e
sim, um reflexo de pequenas luas sobre o mar, pois de repente começaram a se
afogar.
— Padre Augusto! — balbuciou, enchendo-me de alegria o coração por
ouvi-la me reconhecer e me chamar.
— Sim, Srta., estou aqui. — respondi, emocionado, apertando com força
a bíblia em minhas mãos e, sem perceber, sentando-me em um canto de seu leito,
que agora parecia tão grande ante a sua pequenez.
— A-chei que... não o ve-ria... mais — dizia, com uma respiração
ruidosa, entrecortando as palavras.
— É melhor não falar muito para não se cansar. — disse, contrariando a
voz dentro de mim que gritava para deixá-la falar e, assim, aquietar e incendiar
meu coração outra vez.
Ela sorriu ligeiramente, fechando os olhos por alguns segundos, enquanto
eu me dava o direito de apreciar sua beleza mais uma vez.
— Eu te pro... curei, padre. Ten-tei... falar com o senhor. — sussurrou,
tornando a abrir os olhos, procurando falar mais rápido, mas tendo que respirar
de forma mais intensa para isso.
— Eu sei, Marília, eu sei. — respondi baixinho, com uma dor
insuportável na garganta por conter as lágrimas e esquecendo-me de qualquer
protocolo para dirigir-me a ela. Aquela poderia ser, ó Deus, a última vez que eu
poderia falar com ela e não desperdiçaria esse privilégio outra vez — Eu sinto
muito.
Ela olhou-me, tão tristonha, que senti vontade de me jogar de um
penhasco, de tão miserável que me senti. Tanto sofrimento aquela alma e aquele
corpo sofrera e, na busca de alívio ao menos para a alma, me procurara, e eu,
pelo pecado, pelo egoísmo, pela verdadeira miserabilidade, rejeitei-a, afastei-a
de mim, dos meus conselhos como padre, do meu ombro amigo, deixando-a só
quando mais precisou.
— Que bom... que está aqui... agora. — disse Marília, sorrindo, talvez
percebendo minha dor. Ela, com a saúde escoando a cada respirar, consolando-
me, enquanto eu, com toda a saúde, que daria de bom grado a ela se pudesse,
negligenciara sua dor.
O meu martírio, porém, tão grande, trasbordou pelos meus olhos,
saltando sem que eu pudesse contê-lo. Eu queria que minhas lágrimas pagassem
seu sorriso. Eu queria trocar de lugar com ela. Queria a minha morte e a sua
vida.
— Não... sofra... assim... por mim... padre. — disse minha pequena, que
agora eu via chorando também. Olhando demais para a minha dor, mal pude ver
a sua estampada em seus olhos e nariz vermelhos, e a onda daquele mar
alcançando a areia branca do seu rosto.
Chorando agora convulsivamente, deixei a bíblia em um móvel ao lado
de seu leito e tomei sua mão nas minhas, a fim de tentar consolá-la. A fim de
tentar me consolar.
— Por favor, menina, não chore também. Perdoe-me por não ter estado
com você nesses últimos dias, mas acredite, foi porque julguei ser o melhor para
ambos.
Marília continuava chorando, mas segurava com fraca firmeza minhas
mãos suadas. Sua respiração estava cada vez mais difícil e custosa, e percebi que
precisava acalmá-la imediatamente.
— Vou rezar por você agora, enquanto descansa, sim? Ficarei aqui até
que me mandem embora escorraçado com uma vassoura. — disse, tentando
sorrir um pouco, conhecendo a pobreza de minhas piadas.
Ela sorriu levemente, soluçando um pouco, mas não soltou uma das
minhas mãos enquanto, com a outra, eu pegava a bíblia.
— Não quero... descansar... enquanto... está aqui... Quero ouvir... sua ora-
ção.
Fiz menção de repreendê-la, mas que poderia fazer eu? Insistir para que
dormisse com um padre chorando ao seu lado? Com uma dor e um medo no
peito, não sabendo o que se sucederia no instante seguinte? Ao fim, resignei-me
e, com apenas uma mão, abri a bíblia no salmo costumeiro para aquelas
circunstâncias. Limpei um pouco a garganta e comecei:
— “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do
Onipotente descansará...”.
Uma vida por Outra
Marília limitava-se a assentir ocasionalmente e alternava seu olhar, ora
para a bíblia, ora para mim, ora para o teto, que eu imaginava que seria para o
céu.
Ao término do salmo, seus olhos já estavam fechados e sua mão já não
apertava a minha, mas sua respiração provava que ainda vivia.
Pousando a bíblia sobre o meu colo, perdi-me no habitual devaneio de
observar suas expressões, seus traços, seus movimentos, e desejei passar o resto
de minha vida ali, a observá-la serena, em paz.
Mas meu momento não demorou muito, pois quando ela percebeu que eu
havia parado de ler e que estava prestes a adormecer, tornou a abrir seus olhos,
desta vez mais rapidamente, não dando tempo de eu sair do meu transe.
— O que foi... padre? — perguntou, duvidosa, ante minha provável
feição abobada.
Não tendo, porém, nada mais a perder ou a esconder, sabendo que aquela
seria a única e última chance de dizer aquilo a ela, ou a qualquer pessoa,
confessei.
— Sabe o quanto é bela, Srta. Marília? — disse, dando ênfase no
“quanto”.
Senti uma movimentação em seu peito, que julguei por uma risada, a
qual comprovou-se com um subsequente sorriso. Sua expressão era de extrema
surpresa, mas sem constrangimentos. Talvez, em sua inocência e até decência,
julgasse que aquele comentário, vindo de um padre, nada mais era do que uma
palavra piedosa a uma moribunda.
— Sabe... uma das coisas... que mais me dói? — perguntou, ainda a
sorrir — É que eu nunca... conheci... meu grande... amor.
Nunca na minha vida compreendi o que eu tinha na cabeça para
responder ao seu comentário daquela forma. Nem muitos anos depois eu
consegui dizer com certeza o que me levou àquele ato insano e inconsequente.
Teorias não me faltaram: talvez fosse a pressão de perder para sempre aquela tão
adorada criatura, ou talvez, uma manifestação de tudo o que eu havia reprimido
por todo aquele tempo, ou ainda uma forma que a vida viu para que meu destino
se concretizasse, ou até mesmo fosse a doce expressão que minha bela Marília
fizera ao dizer essas palavras. Nunca soube. Apenas me lembrarei até o último
dia da minha existência aquele momento e todas as sensações indescritíveis que
ele proporcionou, rasgando-me por dentro no extremo da culpa e do desejo.
— Mas o seu grande amor a conheceu. — foi o que respondi, sem ar.
E com o coração já adormecido de tanto palpitar, apoiei-me com um dos
joelhos e inclinei meu corpo para frente, sustentando o corpo com as mãos, uma
de cada lado do rosto de Marília, uma das mãos ainda a segurar a bíblia. Meu
rosto já havia virado brasas vivas e temi queimar o seu ao me aproximar, mas eu
já não era dono de mim e, com a visão turva do rosto assustado de minha amada,
toquei seus lábios com os meus com toda a suavidade e força que eram devidos,
demorando-me mais do que pretendia pelo prazer do gesto e pela certeza de que
aquele seria um momento único, mas que me condenaria por toda a vida.
Alcancei os céus e as profundezas em poucos segundos e a viagem me
entorpeceu.
Logo, lá estava eu, sentado novamente ao seu lado, os lábios úmidos e
anestesiados, os olhos pousados onde eu estivera a pouco, as marcas das minhas
mãos ainda em seu travesseiro, provando a realidade do momento e, assim, a
validade da minha culpa.
Minha respiração, agora, devia estar mais irregular e profunda do que a
dela, que me olhava entre a incredulidade e o assombro, enquanto eu ali
permanecia, apenas aguardando que ela me expulsasse definitivamente daquele
quarto e da sua vida. Ao contrário do que eu esperava, porém, tudo o que fez foi
derramar novas lágrimas, que me feriram muito mais do que a mais dura palavra.
— Me perdoe por amá-la assim, Marília. — consegui dizer, alcançando
dor pior do que a anterior, enquanto me punia tocando nas lágrimas que causei
nela.
Suas lágrimas agora, porém, vinham com mais força e seu choro era
convulsivo. Seu olhar era de desespero e seu corpo tremia como se recebesse
vários choques elétricos, quando me levantei rapidamente para analisar a cena.
Marília estava mudando sua cor pálida para uma cor arroxeada e buscava ar
como se estivesse se afogando.
O seu desespero me contagiou tão logo percebi seu estado e eu vi que
precisava tomar alguma atitude imediatamente. O médico há muito já havia
partido e sua mãe, certamente, não saberia o que fazer, a não ser atirar-se sobre
ela, sufocando-a ainda mais. A única coisa que me restou foi o motivo que me
levara até lá, o motivo que nos afastava terminantemente, mas o único que
poderia salvar a sua vida naquele instante.
Dignidade e santidade eu certamente não tinha para falar com Ele, muito
menos lhe suplicar por algo, mas aquela mulher nada fizera e, talvez, a sua
pureza de coração fosse capaz de alcançar a graça do Senhor em um pedido
desesperado a seu favor.
Como eu não tinha opções, exatamente do jeito que estava, enlameado no
pecado, virei-me para a janela, entrelacei os dedos trêmulos e supliquei em voz
alta, com profundo desespero:
— Senhor, tenha misericórdia desta alma, não a deixe partir. Não o faça
por mim, que sou o pior e mais imundo dos pecadores, mas faça por ela, que
sempre o buscou de todo o coração e aos seus estatutos, e que ainda tanto tem
para viver. E quanto a mim, meu Senhor, jamais pecarei assim novamente,
aniquilarei todos os desejos do meu coração e lhe darei o que restar de mim
depois do dia de hoje. O Senhor disse na sua Palavra: “Tudo quanto pedires em
meu nome eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho”, então eu rogo,
em nome do Filho, em nome do Senhor Jesus Cristo, que o Senhor a salve!
---
---
Aquilo simplesmente não era possível. Mais do que a surpresa por ela
estar viva, era seu novo estado. Suas bochechas estavam um pouco coradas e
seus olhos emitiam luz e vida. Ela já respirava com regularidade e estava serena
como quem acaba de despertar de um sono.
— Mas, como? — perguntei para mim mesmo, com as mãos estendidas,
querendo certificar-me que aquilo não era uma miragem. Tomado, porém, de
tardio bom senso, recolhi-as a tempo de não tocá-la.
Ela nada dissera, apenas me fitava, rosto banhado de suor, cabelos
desgrenhados, mas ainda belíssima. Logo, porém, sucumbiu ao cansaço e
adormeceu, com um leve sorriso nos lábios. Ela estava em paz. E viva.
Apesar da vontade de lá permanecer e continuar dando graças em meu
interior a cada respirar dela, decidi sair na surdina e cumprir de vez minha
promessa feita ao Senhor. Como último gesto, porém, dentro daquela casa e
dentro daquelas vidas, fui até o corredor que levava ao quarto de sua mãe e, pelo
vão da porta, sussurrei:
— Ela viverá.
Depressão
Já fazia mais de duas horas que eu estava trancado em meu quarto, mas
somente tomei nota disso quando batidas persistentes na porta me despertaram
das minhas preces.
Um pouco assustado — sempre se leva algum tempo para voltarmos à
realidade quando ficamos algum tempo distante dela — levantei-me do chão e,
ainda segurando o rosário, destranquei a porta, recebendo Samuel e Caio em
meus aposentos e fechando novamente a porta atrás deles.
— Augusto, o que está acontecendo com você? — perguntou o segundo,
sem rodeios.
— Eu... Estava apenas rezando. — expliquei-me, mostrando o terço em
minhas mãos.
— Desde quando, desde terça-feira? — inquiriu-me Caio mais uma vez.
Era sábado.
Em um primeiro momento, não respondi. Deixei-me cair sentado sobre a
cama, suspirando com grande dor. Teriam eles já passado por semelhante
situação? Duvidava muito que sim.
— Vocês já sentiram tentação tamanha que não pudessem suportar? —
arrisquei — E já foram obrigados a arrancar algo dentro de si por ter deixado
essa tentação dar vazão, mas, de repente, descobriram que, arrancando isso,
tiraram junto tudo o que tinham dentro do peito?
Eu devia tê-los encarado enquanto fazia essas perguntas. Assim, teria
visto a tempo seus olhos se arregalando, a fim de impedir que ficassem daquele
tamanho quando os voltasse a encarar.
— Esqueçam... — tentei consertar, mas sabendo que já era tarde.
— O que você fez, Augusto? — perguntou Caio, com desespero. Samuel
estava aturdido demais para se pronunciar.
Meneei a cabeça, procurando fugir da pergunta. Eu devia saber o quão
diretos costumavam ser os interrogatórios de Caio.
— O que você fez? — repetiu, impaciente, como se visse um cadáver
naquele quarto e uma faca ensanguentada em minhas mãos.
— Eu pequei, Caio, eu pequei! — respondi, nervoso — E eu estou
pagando pelo pecado que eu deixei entrar na minha vida!
Eu sentia meu rosto pegar fogo, e somente dei conta do meu tom de voz
quando ambos se voltaram para trás, constrangidos — imagino eu, torcendo para
que, se alguém aparecesse de repente, não pensasse que fosse um deles quem
fizera tamanha confissão.
Exausto, suspirei mais uma vez, apertando os nós do rosário e vendo
meus dedos embranquecerem com isso.
— Por favor, me deixem sozinho. Não há nada que possam fazer por
mim. E eu não quero envolver vocês nisso também.
Caio balançava fortemente a cabeça, não acreditando nas minhas
declarações.
— É melhor que você saiba o que está fazendo, Augusto. — disse
simplesmente, virando-se e saindo do quarto, deixando a porta entreaberta para
Samuel sair.
Este, porém, me olhava com compaixão e, com isso, fazia-me querer
chorar.
— Augusto... — disse, finalmente, e eu ergui meu olhar, sabendo que o
que ele diria a seguir viria do próprio Deus. — eu queria poder te ajudar, mas...
Isso foge da minha capacidade. Eu não tiro pecados, — declarou, como a
primeira demonstração de que ele também não era adepto a todos os dogmas da
Igreja, coisa que eu esperava ardentemente que não fosse por minha influência
— mas o Senhor tira. E mais, ele dá refrigério às nossas almas. “Vinde a mim,
vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Aprendei de mim que
sou puro e humilde de coração, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”
Converse com Jesus, e Ele te dará descanso, meu amigo.
Não sei se as palavras, ou o modo como ele falou de Jesus como se
fossem velhos amigos, mas mal ele terminara de dizer aquelas palavras e dos
meus olhos brotaram as teimosas lágrimas que eu estivera empurrando para
dentro nos últimos dias.
Minha vontade era agradecer-lhe, abraçá-lo, dizer o impacto que suas
palavras me causaram, mas eu mal me sentia digno de lhe olhar nos olhos. Ele,
então, compreensivo, apenas colocou sua mão em meu ombro e saiu, não antes
de dizer:
— Fique em paz, amigo, que Deus o abençoe.
O que ele não sabia era que o Senhor já havia me abençoado. E eu
levantei a cabeça a tempo de ver aquela divina bênção saindo pela porta e
encostando-a suavemente.
---
---
Uma pequena mala com algumas peças de roupas e uma bíblia surrada
com anotações eram carregadas por um ex-padre de roupas amarrotadas. Eu
parecia um verdadeiro mendigo, mas, honestamente, nunca me sentira mais rico.
Não foi surpresa para mim que o Padre Dionísio, nem ninguém da
paróquia, me reconhecessem de pronto. Como eu caminhava a passos largos
pelas pessoas, muitas se desviavam de mim, talvez pela imagem medíocre que
eu transparecia. Mas jamais me esquecerei da face abobada do padre, ao
constatar que o homem ali a sua frente era o seu, até então, pupilo, coisa não
mais assustadora do que a devastadora revelação de que eu ia abandonar a Igreja.
— Padre Augusto? — perguntou-me, incrédulo, deixando os papéis que
mexia sobre a mesa.
— Sim, padre, preciso falar com o senhor.
— Mas que cargas d’água você está fazendo com essas roupas? Vai
entrar para o teatro ou vai mendigar nas ruas para pregar o evangelho?
— Nada disso, padre, vim até aqui para agradecer tudo o que o senhor
fez por mim por todos esses anos e me despedir do senhor.
Com tanta determinação e ousadia que me cercavam, não imaginei o
quão difícil seria aquele momento após aquelas palavras terem sido ditas. Dizem
que as palavras são como pedras lançadas: uma vez ditas, não voltam atrás.
— O que está dizendo? — perguntou o padre, desnorteado, como se eu o
tivesse mandando embora da paróquia. — Não entendo, eu disse que você podia
ficar.
— Eu sei, — suspirei — mas eu seguirei outro caminho de agora em
diante...
— Foi aquela menina, não foi? — gritou Dionísio, levantando-se, tão
vermelho como na ocasião da biblioteca em que descobrira tudo sobre Marília e
eu. — Aquela menina desgarrada! Cuidei dela como um tio, dei a ela todos os
conselhos necessários, e veja só, eu achando que você havia pervertido os
caminhos dela, e hoje vejo que é justamente o contrário! Menina promíscua!
— Não, padre! — disse alto, não alcançando seu tom, mas alto o
suficiente para qualquer que estivesse nos arredores pudesse ouvir. — O senhor
está completamente enganado sobre ela! É certo que conversamos acerca da sua
nova fé, mas...
— Nova fé? Chama esse sacrilégio de fé? Essa garota está perdida, não
vê Augusto? Com um homem em uma outra cidade, sem ninguém que cuide de
sua integridade, por Deus, não seja assim tão ingênuo! Marília está perdida!
Aquele foi o máximo que eu fui capaz de escutar no meu lugar. Não sei
como aconteceu, mas quando menos esperei, minhas coisas estavam jogadas no
chão e o meu rosto a centímetros do rosto do padre.
— Ouça, padre, a questão não é o que Marília está fazendo lá ou
deixando de fazer. Tudo o que eu sei é que ela tinha algo diferente quando a vi
pela última vez, algo que eu quero e estou indo buscar. Desde que me entendo
por gente, busco uma paz genuína, algo sólido e real, e isso me levou a deixar a
minha casa e vir passar o resto da minha vida aqui se fosse preciso, negando
tudo o que a minha carne pedisse. Passei nove anos na esperança de que, com o
título de padre, eu alcançaria o que tanto esperei, mas não alcancei, se quer
saber. E, se ela encontrou isso que eu tanto procuro, eu irei aonde ela estiver.
— Eu sei o que você procura, Augusto. — Enfrentou-me Dionísio. —
Sei que não está nem um pouco interessado nas coisas de Deus. Você quer é se
encontrar com aquela perdida e se perverter com ela, é isso o que quer! Mas por
tudo o que é mais sagrado, ouça: Marília não será a mesma que você conheceu
aqui. Ela será uma mulher leviana e sem honra. Você trocará seu ministério por
uma meretriz, e eu lhe digo que não haverá lugar para um perdido aqui se tornar
padre novamente, está ouvindo?
E, reunindo minha última gota de paciência, antes que eu perdesse
completamente a razão, finalmente disse:
— Eu não sei o que mais dizer para o senhor acreditar que minha busca é
verdadeira, mas, honestamente, eu não tenho mais tempo, nem paciência para
lhe explicar. Talvez, um dia eu volte e lhe apresente os frutos que alcançar, mas
isso se o Senhor permitir. Mas, se a questão que o senhor quer levantar é sobre
Marília, se ela não tem quem cuide da sua integridade lá, agora terá, pois eu
cuidarei. Providenciarei para que o homem com quem ela viajou e por quem se
apaixonou e deseja formar uma família seja honroso e fiel a ela, e esquecerei o
que fui até agora se esse homem tiver, de fato, lhe faltado com respeito, como o
senhor insinuou à mesa. E isso é tudo, padre.
Aquietei-me por um instante, procurando recuperar o controle.
— Por consideração ao senhor, — concluí — me humilhei aqui pela
última vez para lhe dar uma satisfação e ouvi toda a sorte de desaforos. Mas por
tudo o que me fez nos últimos meses, eu me despeço sem considerar seus
conselhos e suas palavras, e parto certo de que é isso que o meu Senhor espera
de mim. E que Ele lhe abençoe.
Peguei, então, minhas coisas e saí, ouvindo o padre ainda praguejar
algumas coisas, mas que já não me atingiam. A verdadeira alegria ainda estava
em mim.
---
---
---
— Tem que ser aqui. — sussurrei para mim mesmo, com a noite já a cair
como um véu sobre a cidade. Naquele lugar, o sol devia se pôr devagar,
pois, quando ouvi a sétima badalada, percebi que havia sido tapeado pelo tempo
desde quando chegara lá — o que, pelo visto, ocorrera bem mais tarde do que eu
previra.
De qualquer forma, sob uma boa fonte de luz vinda de uma luminária nas
proximidades e um mormaço agradável, parei em frente à casa mencionada pela
senhora do armarinho, com o mesmo estilo de letra e símbolo da igreja do Pastor
Joel.
A casa era muito bonita, um sobrado com uma varanda emoldurada por
tábuas de madeira antigas e adornada com desenhos em gesso pintados de azul
marinho, o que lhe conferia um aspecto rústico e sofisticado ao mesmo tempo.
Acho que não preciso mencionar como estremeci por completo, logo
após dar as quatro batidas finais que me levariam ao meu sonho vivo. Penso que
não tinha noção de quanta falta Marília me fizera, pois ali, diante daquela porta,
cheguei a ter falta de ar ao pensar em revê-la, sentir seu cheiro mais uma vez,
ainda que a última em que eu me permitiria como seu amante platônico. Ela
seria de outro e tudo seria como antes. Ela como meu tesouro inalcançável e eu
como refém de seu amor.
Houve algum barulho do lado de dentro, algo que parecia uma cadeira
sendo arrastada, um breve silêncio e, em seguida, o som de um molho de chaves
batendo na porta.
Quando a porta se abriu diante de mim, exalando um aroma amadeirado
de dentro da igreja, um senhor franzino, na casa dos sessenta anos, mediu-me
igualmente ao vendedor, porém, diferente do primeiro, olhou-me com ternura.
— Olá, amigo, a Paz do Senhor! Em que posso ajudar?
— Boa noite, senhor, — disse, após um instante, a voz a falhar — meu
nome é Augusto. Eu gostaria de falar com a Srta. Marília, ela se encontra?
— Augusto? — disse, como se o nome lhe soasse familiar.
— Sim, quer dizer, eu sou, não, — neguei nervosamente com a cabeça —
era da cidade dela, me converti há pouco tempo lá e, então, vim aqui para...
— Ora, então posso chamá-lo de irmão, mas que bênção! Vamos, entre
depressa, Marília está lá nos fundos, separando os itens do bazar, ela vai gostar
muito de revê-lo. Ela já sabe da sua conversão?
— Ainda não. — respondi, acompanhando o homem afoito casa adentro.
— Nossa, isso será uma linda surpresa para ela! Ela andava tão tristonha
esses dias, penso eu que por conta das poucas doações. — divagou ele. — Mas,
quem sabe, sua visita não traga a alegria que estava faltando a ela?
— Bem, veremos... — disse, com poucas esperanças.
— Marília! — Chamou o senhor, entrando em uma sala e saindo para um
quintal nos fundos da casa, fazendo meu coração novo disparar. — Você tem
uma visita muito especial. — disse, sorrindo quase que maliciosamente para
mim.
— Quem? — perguntou a minha doce voz preferida do quintal, voz que
eu reconheceria em qualquer lugar, em qualquer tempo.
O senhor não respondeu, ao invés disso, fez um sinal para que eu
entrasse.
— Fique em paz, filho. — disse, deixando-me sozinho.
Ao passar pela porta, avistei os lindos cabelos de Marília caídos sobre
uma face úmida, enquanto ela separava algumas peças de roupas no chão. À sua
frente e virado para mim, um rapaz jovem, louro, de cabelo partido e cheio,
olhou-me, seguido por Marília.
— Augusto? — perguntou, incrédula, deixando a peça que segurava cair
entre as outras.
O rapaz correu os olhos entre mim e ela, terminando com um olhar
desconfiado para mim. Eu sabia que aquilo era a última coisa que eu devia estar
sentindo, mas não pude evitar que uma imensa inveja dele transbordasse em meu
peito e se manifestasse em uma feição perturbada.
Quando olhei novamente para ela, Marília se levantou, sem desviar os
olhos de mim, respirando com alguma dificuldade, na visível incredulidade de
me ver ali.
Aproximou-se, então, com cautela e, também mirando meus trajes,
perguntou surpresa:
— O que houve com as suas roupas, padre?
— Bem, acho que não sou mais um padre... — disse, dando nos ombros
com um meio sorriso, esperando que ela entendesse o recado.
Marília entendeu, e demonstrou crescente surpresa tapando a boca aberta
com as duas mãos.
Em seguida, fez o que eu menos poderia supor neste reencontro. Pulou
em meus braços, como se sempre estivesse lá, e apertou-me contra si com
força.
— Oh, Augusto, meu Deus, glória a Deus, glória a Deus! — louvou,
repetidamente.
Apesar de forçar-me a interpretar o seu gesto como uma demonstração de
alegria apenas pela salvação da minha alma, não pude deixar de pensar em seu
noivo bem ali ao lado, e no que poderia estar pensando de nós.
E, então, pelo que desejei em meu íntimo ser a última vez na vida, contra
toda a minha vontade e todo o meu desejo, desvencilhei-me com cuidado de seu
abraço caloroso, ao que ela não permitiu por completo, segurando agora em
meus braços, a poucos centímetros de mim.
Discretamente, porém não imperceptivelmente para mim, o homem
resolvera entrar na casa e nos deixar a sós no quintal, em meio a roupas de
doação e a sentimentos desperdiçados.
Só Deus sabe que a prudência e o respeito àquele homem foram o que me
impediram de abraçar Marília ainda com mais força, beijar-lhe mais uma vez e
dizer a ela o quanto a amava e a queria para mim, agora que eu finalmente a
podia fazê-la feliz como antes eu não podia e só a machucava.
E só Deus sabe também como é difícil esconder tamanha paixão, pois
ainda que os braços tenham forças, ainda que as pernas corram, os olhos e a
respiração sempre haveriam de denunciar. E lá estava eu, com os olhos cravados
nos seus, dizendo a ela tudo o que eu não podia em palavras e arfando como se
ela fosse meu ar após um naufrágio.
Ela, então, retirando minhas últimas forças, puxou-me para perto de si,
enquanto seu rosto se aproximava do meu e seus olhos se fechavam como um
pôr-do-sol.
Foi quando, finalmente, consegui tirá-la dos meus braços, sentindo como
se tirasse uma estaca do peito, e virei-me contra a parede, a fim que ela não visse
as eminentes lágrimas que de mim sairiam pela dor da perda de tudo aquilo que
eu tanto queria e que poderia estar usufruindo naquele instante, não fosse nosso
ingrato destino. Céus, aquilo era muito mais que um homem poderia
suportar.
— O que há, Augusto? Você não tem mais o voto, você, você é livre
agora! — Marília começou a dizer, e eu sentia a agonia em sua voz. — Augusto,
achei que você quisesse ficar comigo! Que se tudo isso acontecesse, nós dois
poderíamos... como, droga, como fui tola em acreditar!
— Ficar com você? — perguntei, virando-me para ela novamente e
vendo que não era o único com lágrimas nos olhos. — Como posso ficar com
você? Posso até ser livre, mas você não é mais, você pertence a outro!
— Outro? Mas que outro? Do que você está falando? — Sua voz havia
subido um tom e seus olhos corriam desesperados ao encontro dos meus.
— O professor! — eu disse, carregando nessa palavra todo o meu ciúme
e a minha ira não declarada, até mesmo a mim, por ela ter dado o seu amor a
outro tão depressa, e este, por ter tragado meu amor, tão logo eu a ele estivera
ausente.
— Mas, homem, que professor?
Sua feição era de genuína incompreensão, mas eu estava possesso demais
para perceber.
— O maldito professor que surgiu como quem não quer nada e que se
aproveitou do conhecimento da Verdade para te enredar, tão logo deixei de vê-la,
com quem você viajou para cá e que, a essa altura, já deve estar até de
casamento marcado! — Minha voz também estava alterada e eu já não conseguia
mais controlar o volume, enquanto apontava com as mãos trêmulas na direção
em que saiu o homem que nos deixara há pouco.
— Augusto, por Deus, você está totalmente louco! — disse Marília,
desesperada. — Vim para Eldorado com meu tio-avô, que já era convertido há
muito tempo e eu nunca soube. Meu amigo professor não tem nada a ver com
isso!
— Ah, não? Então quem era esse homem que acabou de sair daqui? —
gritei, a centímetros de distância dela.
— Antônio? O que tem o Antônio? — indagou-me, aturdida — Ele é
daqui da cidade, mora na casa ao lado com a esposa. O que deu em você?
Engoli seco. Julguei e condenei o pobre homem sem que ele nada tivesse
a ver com nossa história.
— Certo, então onde está o sortudo professor que conquistou a única
mulher que eu amei nessa vida? — perguntei, olhando ao redor simbolicamente,
mesmo sabendo que somente nós dois estávamos lá. Eu ainda estava totalmente
descontrolado.
— Augusto, por tudo o que é mais sagrado, você precisa me escutar. —
suplicou ela, com as mãos no rosto, procurando seriamente se controlar. — Não
tem nenhum professor aqui, muito menos alguém com quem eu pudesse me
casar. Inácio, o tal “professor” que você deve estar se referindo, que me levou a
conhecer a Igreja Luterana, viajou um pouco antes de eu sair do externato, para
trabalhar no Pará. Depois que ele se foi, nunca mais ouvi falar dele.
Engoli seco, o coração cada vez mais a disparar.
— Além do mais, — prosseguiu, aproximando-se novamente de mim —
o que você acha que eu iria querer com qualquer outro homem, se o meu coração
ficou com você esse tempo todo? A minha capacidade de amar foi tirada quando
eu me afastei de você. Como pôde pensar que eu estaria com outro? —
perguntou, com a voz embargada, enquanto suas lágrimas corriam junto com as
minhas. — É você que eu amo, quando você vai enxergar isso?
Toda raiva, todo ciúme se dissiparam nessas palavras que devolveram, de
repente, toda a paz retida desde que me pusera a pensar no assunto. Desde que a
vira pela primeira vez no confessionário.
— Sou um tolo, meu amor, eu sou um tolo. — foi o que pude dizer,
enquanto me atirava em seus braços e a abraçava com tamanha força que temi
machucá-la. Força essa de um sentimento há tanto tempo reprimido e agora
liberto, podendo se manifestar sem medo.
Em qualquer outra ocasião, sentiria grande vergonha em chorar daquela
forma diante de uma mulher, mas naquelas circunstâncias, era tão inevitável
como amá-la. E, enquanto eu a abraçava, respirava fundo o aroma de seus
cabelos, apertando-os com a mão, e beijando seu rosto como se eu estivesse em
mais um dos meus desatinados sonhos, que se desfariam diante de meus olhos
em alguma sarjeta, ainda tentando encontrar o caminho para Eldorado.
Lágrimas ainda corriam em seu rosto, quando eu o segurei com as duas
mãos, como se fosse o baú do meu tesouro e a fechadura estivesse bem na sua
base, a qual eu abri com um beijo acumulado de todos os meus sonhos, dias e
noites acordados, todos os meus desejos e planos impossíveis, inviáveis,
impróprios.
Ela me envolvia com seus braços e devolvia com avidez meus beijos, e
estava bem claro para ambos que nenhum dos dois pretendia terminar com
aquele momento tão cedo.
Novas Criaturas
Quando, finalmente, nosso coração voltou a bater com normalidade, eu
ainda não estava disposto a soltá-la. Marília se recostava em meu peito, enquanto
eu me recostava sobre uma parede rústica do quintal da igreja, sabendo que o
frio chegara com a noite por conta do vento que brincava com os cabelos dela,
bem como meus dedos que alternavam entre seus cachos, ora enrolando-os, ora
esticando-os, com o cuidado de quem mexe em uma boneca de colecionador.
Mas o frio em si de longe eu sentia, pois aqueles braços impossíveis ao
meu redor me aqueciam com ternura. Sua respiração, agora ritmada, era como se
ela em mim adormecesse, e a única prova de que de fato não o fazia, eram suas
mãos que, de tempos em tempos, acariciavam levemente minhas costas.
Eu tinha tanto a dizer a ela, — Deus sabe o quanto — mas, como nunca
imaginara que meu sonho poderia, um dia, se tornar realidade, não fazia ideia
agora de como exprimir meus sentimentos da forma mais fiel e bonita a ela. Não
sabia como declarar meu amor.
Então, ali em pé, aproveitando o fato de não estarmos face a face no
momento, tentei dizer um pouco dos muitos sentimentos que ela já havia me
proporcionado desde o princípio, mas acabei por começar pelo final.
— Marília, — sussurrei, com um pouco de juízo agora em mente,
pensando nos demais presentes na casa — não sabe o quanto eu esperei por esse
momento. Não, — interrompi, sentindo-me um desajeitado com as palavras —
na verdade, não esperei. Sonhei desesperadamente por esse momento. Nunca
tive o atrevimento ou a pretensão de realmente esperar por isso.
Marília, então, frustrou os meus planos, olhando diretamente para mim,
com curiosidade, levando embora o resto da coragem e as poucas palavras que
eu havia reunido.
— Bem, você simbolizou o que eu sempre quis, mas não devia ter. —
resumi, a fim de terminar aquele suplício e, talvez, mudar de assunto.
— Fala como se eu fosse o pecado em pessoa. — disse, tentando parecer
séria, mas esboçando sua travessura de sempre.
— Não. Quero dizer, você sabe... — esquivei-me, constrangido,
suspirando para ganhar tempo.
— Eu sei. — ela disse, me abraçando novamente, em silêncio, por mais
um instante.
Quando se passa mais de dez anos pensando como um padre, não se
consegue simplesmente ser romântico ou conquistador. É como uma criança
comportada com um rifle nas mãos. Nunca usou, não sabe como usar e nunca
teve a menor perspectiva de um dia ter que usar. E lá estava eu, Augusto, um ex-
padre, com uma mulher em meus braços, muito mais perto do que jamais
sonhara um dia ter, e sem ter a menor noção de como demonstrar em palavras
tudo o que ficara preso em mim por todo aquele tempo. Lá estava eu, uma
criança, com um rifle nas mãos.
Foi quando, soltando-me mais uma vez, ela me olhou com seriedade e,
após um breve suspiro, pôs fim a minha agonia com as palavras.
— Não sabe como meu coração está feliz por ter você aqui comigo. Isso
tudo é mais que um sonho, mas ainda mais por saber que você também
encontrou a Verdade. E acho que ela sempre esteve muito mais perto de você do
que de mim, até. Você esteve em contato com a Palavra por todo esse tempo e,
mais do que isso, via discrepâncias na Igreja que ninguém mais via ou, ao
menos, ninguém tinha a coragem de dizer. Eu já disse e repito que, não fossem
os seus sermões abordando a Palavra naquela outra ótica, de um ponto mais
desafiador e menos comodista, eu jamais teria chegado até aqui.
— E, consequentemente, eu também não.
Ela sorriu e acariciou o meu rosto, fazendo-me, mais uma vez,
estremecer.
— Sempre achei que um homem como você não devia ser confinado ao
sacerdócio. — disse-me, hipnotizando-me com a dança dos seus olhos.
— Como assim? — perguntei, inocente.
Marília abriu um novo, porém conhecido, sorriso malicioso.
— Sabe o quanto é um homem belo, Sr. Augusto?
Acredito que nem na conversa com o Padre Dionísio, a qual ele
descobrira os meus sentimentos por sua afilhada, devo ter-me tornado em tom
mais escarlate do que naquele momento. Fato era que Marília não era tão boa em
confortar o constrangimento alheio, pois, no instante seguinte, já estava a
debochar do meu embaraço.
---
Foi com grande festa que nos despedimos dos amigos de Eldorado para
nos casarmos na sede da igreja. As notícias simultâneas do casamento e do
pastorado trouxeram grande alegria a todos e muitos planos para o futuro.
Nossa vontade era a de nos casarmos no nosso agora lar, na pequena
Igreja Luterana de Eldorado. Chegamos a mandar uma carta ao Pastor Joel para
que viesse celebrar nosso casamento, mas ele insistiu que, ao invés disso, nós
fôssemos até ele. Além de querer comemorar nossa alegria com os novos amigos
que fizemos, ele bem sabia que não queríamos voltar para a cidade onde tantas
feridas foram abertas para não ter que encarar a vergonha que nossas decisões
provocaram naquele contexto. Em resumo, se quiséssemos nos casar, teríamos
que enfrentar tudo aquilo mais uma última e definitiva vez.
Durante o caminho de ida, fizemos a mesma parada na casa do bondoso
homem que me acolhera, ao qual nos recebeu com igual atenção e alegria.
Conversei por longo tempo com ele e sua esposa, enquanto Marília contava
histórias da bíblia para as suas filhas. Sua curiosidade e expressão no conto
quase me fizeram sentar ali junto com as crianças para ouvi-la falar.
Chegamos com incrível rapidez a nossa antiga cidade — fato que tive a
leve desconfiança de ser pela minha companhia desta vez — porém, não nos
atrevemos a andar de braços dados pelas ruas. Certamente que a notícia da
minha partida já havia se espalhado, mas o nosso retorno repentino juntos já
traria suficiente repercussão.
Muitos olhares nos acompanhavam pelas ruas, mas Marília andava de
cabeça erguida e com seus passos firmes costumeiros, como se nunca tivesse
deixado a cidade. Isso até ela avistar um de seus ex-alunos andando com o pai,
sorrindo para ela e ela para ele; e o pai, tão logo a vira junto a mim, desviar o
rosto da criança para não mais vê-la, aniquilando-nos com o olhar. Aquilo
certamente a destruiu.
Com duas breves batidas na porta, logo o sorridente pastor nos recebeu.
A alegria demonstrada em calorosos abraços pelo meu ministério e pela nossa
união foi muito grande.
Após uma longa conversa a respeito do matrimônio e suas implicações e,
compreendendo que a nossa história de amor era suficiente para justificar a
nossa precipitação, o pastor finalmente se deu por satisfeito e aceitou casar-nos
dentro de três dias — o sábado seguinte — com uma difícil condição: que não
tivéssemos pendências com ninguém. Ele não esperava exatamente o apoio de
todos, porém não queria nada às escondidas ou não devidamente esclarecido. O
pastor, assim como nós, não queria boatos pela cidade, visto que a fofoca sobre
Marília havia, infelizmente, sido disseminada como rastro de pólvora.
No dia seguinte, já com as forças revigoradas da viagem e da conversa,
Marília e eu saímos para um lugar certeiro, sem nem ao menos o mencionarmos
em palavras. Ao entrarmos à vista de todos na praça central, Marília agarrou o
meu braço e, embora eu não quisesse que falassem de nós, fomos assim até a
Paróquia.
Era incrivelmente nostálgico agora olhar para aquele local, apesar de não
ter me afastado de lá há muito tempo. Parecia que anos haviam se passado.
Entramos lá sem cerimônia e aguardamos um coroinha que arrumava as
flores do altar chamar o Padre Dionísio.
Enquanto esperávamos, olhei para o semblante de Marília: frio e
determinado. Minha vontade era perguntar em que pensava, mas logo o padre
irrompeu o templo, com a batina a esvoaçar no chão.
— Ora, quem temos aqui. — disse, certamente já ciente do nosso retorno
à cidade.
— Bom dia, padre. — respondi, procurando ser o mais firme possível.
Marília segurava o meu braço ainda com mais força, e eu sentia sua
respiração se acelerando.
— Não vão me pedir a bênção? — perguntou o padre, em tom
provocativo.
— Nós já somos abençoados por Deus. — disse Marília, de repente.
Dionísio titubeou.
— Bem, imagino que não vieram para a missa, vieram?
— Padre, gostaríamos de conversar com o senhor, poderia nos levar a um
local particular? — perguntei, olhando de esguelha para duas senhoras que
rezavam nos fundos da igreja.
— Há um bom lugar para vocês conversarem comigo ali. — disse-nos
Dionísio, apontando para o confessionário.
— Não temos nada para confessar! — retalhou Marília, já com o tom de
voz alterado, soltando-se do meu braço.
O padre sorria com insolência, e eu percebia que tinha que agir depressa.
— Padre, se não podemos conversar em outro lugar, — eu disse,
mantendo uma falsa tranquilidade — seremos breves em falar com o senhor aqui
mesmo. Iremos nos casar dentro de dois dias e queríamos...
— A minha bênção? — interrompeu-me o padre, exasperado. — Que eu
celebre o casamento de vocês? Fora de cogitação eu compactuar com uma
aberração dessas, é pior que um incesto!
— Não queremos nada do senhor, — eu disse, contendo Marília com um
braço — a não ser que tome nota por nós desse evento, e não somente deste, mas
que agora somos convertidos, ou evangélicos como preferir nos denominar, e
gostaríamos de não deixar nenhum mal resolvido para trás quando começarmos
nossa nova vida. Espero que seja razoável com isso.
— Razoável? — gritou o padre, tomando sua cor tomate novamente e
chamando a atenção das senhoras. — Quer que eu seja razoável com um padre
que larga a batina para se casar com uma perdida?
— O senhor se cale, Reverendo! — eu disse, perdendo o meu tom calmo,
o que trazia mais força à minha voz do que eu pretendia. — Não tem o direito de
difamar assim a minha futura esposa, e esta será a última vez que permitirei que
assim o faça, pois haverei de lutar contra qualquer um que ousar fazê-lo, até
mesmo um padre!
O padre emudeceu, surpreso. Pelo calor do meu rosto, imagino que
tenhamos agora atingido o mesmo tom.
As senhoras já nos olhavam deliberadamente, o que levou o padre a sair
de seu estado de choque e responder à altura.
— Você, jovem rapaz, que não ouse “lutar” contra um homem de Deus,
um representante do Altíssimo, pois ainda que essa sua mente pervertida já tenha
se esquecido de tudo o que aprendeu aqui, e ainda que já tenha abandonado ao
Deus que o sustentou por todos esses anos, eu ainda sou um respeitável padre e,
o que fizer contra mim, responderá a Ele. — disse, apontando o dedo fino para o
alto.
Eu ainda não era capaz de determinar os meus sentimentos, se de ira,
vergonha ou pena, mas minha Marília adiantou-se a responder por mim.
— O senhor, respeitável padre, — disse, no mesmo tom sarcástico que
ele — vive num triste mundo de mentiras, acreditando que, por se manter casto,
por morar em uma igreja, por ter um título e fiéis que o sigam, está salvo da
condenação eterna. Mas não eu, o Senhor diz que haverá mais misericórdia para
Sodoma e Gomorra do que para vocês fariseus. São como sepulcro caiado, guias
cegos, não entram no Reino e não deixam ninguém entrar!
Dionísio arregalou os olhos, abismado.
— E eu estou certa — prosseguiu, sem se deixar interromper — que
havia muito mais pureza em Augusto quando estava aqui do que o senhor jamais
tenha alcançado em anos de ministério. Ele ao menos buscava servir a Deus em
Espírito e em Verdade e não apenas representar alguém aqui. Eu só lamento pela
sua condição e, em consideração por tudo o que já fez por mim e pela minha
família, orarei para que o Senhor possa salvar a sua alma também, mas,
honestamente, espero não vê-lo nunca mais nesta vida.
Todos nos calamos por um instante e mal percebemos quando um
pequeno grupo de pessoas se reuniu à porta da igreja, assistindo a tudo.
— Vamos, Augusto, não temos mais nada a fazer aqui. — concluiu ela,
me puxando para fora.
Eu, porém, a detive por um minuto, pois tinha algo ainda a dizer.
— Padre, gostaria de agradecer por tudo o que me ensinou nesse tempo,
pelo nosso convívio. O senhor nunca foi uma pessoa fácil, mas eu aprendi a
entender o seu tempo e o seu modo de ensinar as coisas. Eu sinto muito ter saído
assim da igreja, pois eu realmente gostava de estar aqui, mas nunca fui completo.
Eu não tinha realmente Deus comigo, e o espaço que Marília preenche em mim é
bem considerável. Hoje eu sou feliz, e espero ardentemente que um dia o senhor
possa experimentar essa nova liberdade em Cristo, e ...
— Nunca. — respondeu friamente o padre. — Jamais me entregarei a
esses prazeres mundanos, nem abandonarei a Madre Igreja. Agora, por favor,
saiam deste templo, estão difamando um lugar sagrado.
— Adeus, Padre Dionísio. — eu disse, triste por esse desfecho, mas com
a certeza de ter feito a coisa certa.
Antes de partir, porém, o padre e eu trocamos um último olhar, ao que
julguei ser pela última vez o mesmo olhar paterno que havia me seguido por
todos aqueles anos. De tudo, aquilo fora o mais doloroso.
Ao sairmos da igreja, os fiéis se dispersaram, cochichando uns com os
outros e balançando a cabeça para nós, o que em outros tempos nos cobriria de
vergonha, mas agora apenas nos dava a certeza de que estávamos no caminho
certo.
Caminhamos em silêncio por alguns instantes, até nos afastarmos por
completo daqueles olhares acusadores, quando, então, decidi fazer a minha
pergunta inicial a Marília.
— Em que você está pensando?— arrisquei, hesitante. Eu não tinha
ainda como avaliar o impacto daquela conversa sobre ela.
— Em você, — disse, olhando para mim — em como você é bom. Será
que um dia eu vou ser assim, tão cheia do Espírito como você?
— Como disse?
Nós dois paramos na praça e nos encaramos.
— Será possível que não esteja envergonhado pelo que fiz?
— Marília, presenciamos a mesma conversa? Você citou as palavras de
Jesus para um padre e as encaixou como uma luva, de que você ou eu
poderíamos nos envergonhar?
— Eu não sei, — suspirou — eu estava tão irada com ele por saber o
quanto ele tinha torturado você nos últimos tempos e por ter quase nos separado
ao espalhar aquelas calúnias sobre mim. Você deve ter me desprezado quando
ouviu aquelas coisas. E, mesmo assim, você teve consideração, misericórdia,
piedade dele, e disse, como sempre, a coisa certa.
— Desprezado? A você? — perguntei, incrédulo, me prendendo a essa
parte do seu diálogo. — Acho que o inferno se esfriaria primeiro. Como pode
pensar que eu sentiria essas coisas por você? Desprezo, vergonha...
— Viu? — acusou, angustiada. — Nem quando soube daquela mentira
teve raiva de mim, seu coração não comporta essas coisas. Sou muito pouco para
alguém como você.
Nesta hora tive vontade de gritar. Nem a conversa com o padre tinha me
deixado tão aflito quanto esta.
— Por favor, Augusto, — pediu, antes que eu respondesse, detendo
minha explosão eminente com uma mão aberta diante de mim — eu sei que você
vai dizer que me ama assim mesmo e que sou o que você queria, mas a verdade é
que, desde que você se converteu e deixou o voto, não teve a oportunidade de
estar com mais ninguém. Talvez sua gratidão por eu ter lhe apontado o Caminho,
somado ao sentimento que já tinha por mim, não sei, o tenha levado a essa
decisão que nos trouxe até aqui, mas eu bem me lembro que, quando nos
encontramos depois daquele beijo, você confessou que tinha se aproveitado do
meu estado, porque aquela seria a sua única oportunidade de estar com uma
mulher.
Marília tomou fôlego, parando de me encarar.
— Mas hoje, — ela concluía, com certa amargura na voz — hoje as
coisas são diferentes, você é alguém tão excepcional, que poderia ter a mulher
que quisesse ao seu lado. Será que eu sou mesmo o melhor para você?
Acredito que a tenha deixado falar tantos disparates porque estava
transtornado demais para interrompê-la, caso contrário, não a teria permitido
concluir sequer a primeira sentença.
— Marília! — protestei, antes que ela continuasse, passando as mãos na
minha cabeça suada. — Meu Deus, não sei o que dizer, não consigo acreditar
que tudo o que eu fiz, tudo o que eu te contei, todo o sentimento que procurei
expressar da melhor forma nesses últimos dias e que devo ter demonstrado
contra a minha vontade antes, tenham sido tão ineficazes.
O sol estava a pino, e eu suava descontroladamente.
— Acha mesmo que eu arriscaria toda a minha carreira eclesiástica, e
mais, meu relacionamento com Deus, pela simples curiosidade de beijar uma
mulher? — prossegui, enquanto ela me olhava, desconfiada. — Marília, meu
amor, a castidade para mim foi uma escolha, e eu não a tinha por perda até
conhecer você. Mas, desde que eu a conheci, não fui capaz de tirá-la dos meus
pensamentos e do coração. Eu nunca olhei para mulher alguma com tanto querer,
tanta paixão como você. Você é, para mim, uma extensão do céu! Meu Deus, é
você que eu amo, e eu passaria tudo o que eu passei outra vez, se fosse preciso,
para estar com você.
Marília, que até então estava paralisada, com uma pequena ruga em sua
testa, expirou e irrompeu em um sorriso aliviado, abraçando-me no meio da
praça — o que, apesar de não ser de bom tom em local público nem para um
casal normal, não me tirou a paz, pois o que eu há tanto tempo escondi, agora
estava exposto a todos os que quisessem ver.
---
---