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Engana-te a ti mesmo

23/11/2011

Os professores de filosofia das universidades brasileiras foram


enganados e, hoje, retribuem com enganação. Dupla ludibriação: enganam o aluno e
enganam a si mesmos. São vítimas e algozes.

A minha geração é, em geral, bem formada em filosofia. Tivemos bons professores.


Alguns deles não só verdadeiros scholars, mas filósofos mesmo. Todavia, uma grande
parte dessa minha geração foi enganada não propriamente por esses professores, mas
por uma concepção de filosofia (e de ensino de filosofia) que é boa para formar
estudantes até um certo ponto, mas é completamente inútil e, em certos casos, nociva,
para gerar filósofos.  Essa concepção é a que diz que o estudante deve ater-se aos textos,
voar baixo ou mesmo manter-se completamente pedestre. Pede-se aí uma humildade
intelectual para que o prêmio seja o rigor filosófico e, no entanto, não raro, o único
prêmio mesmo é antes de tudo uma tremenda timidez – às vezes insuperável, o que pode
gerar a mediocridade. Muita gente se tornou antes “copista medieval” que filósofo ou
professor por meio disso.

Contra essa formação, o correto seria propor aos alunos mais exercícios que forçassem a
capacidade criativa, levando-os a aprender a dura tarefa de pensar tudo a partir da
filosofia. Ou seja, deveríamos educar o jovem para ele pensar com filosofia os
problemas ditos filosóficos, tradicionais, e pensar com filosofia o cotidiano que, muitos,
acreditam que nada tem de filosófico, mas  que é claramente filosófico – e se olharmos
os antigos certamente entenderemos bem isso. Uma formação assim certamente teria
chances de gerar  antes filósofos que meros bons moços educadinhos, loucos para irem
para a burocracia da Capes ou coisa parecida.

Quando anuncio isso na universidade, uma boa parte dos professores atuais, jovens ou
mesmo da minha geração, não entende. Eles acham que estou falando de um antigo (e
inócuo) debate entre “história da filosofia” e “filosofar”. Esse debate teria tido origem
(mais ou menos) em Quine, que afirmou filosofar e não fazer história da filosofia.
Todavia, o que digo não é sobre isso. Primeiro, porque não acho que atualmente se faz
história da filosofia quando se diz que se faz história da filosofia. Uma colcha de
citações, ainda que esteja bem arrumadinha, não é história da filosofia. A história da
filosofia também é criação. Segundo, dizer que o que Quine (ou Wittgenstein ou
Davidson) fizeram não era história da filosofia é, no limite, não entender bem que eles
não discorreram sobre fatos históricos mas, enfim, estiveram com a história da filosofia
na frente deles, conscientemente, o tempo todo. Escreveram como quem dirige bem um
carro, ou seja, olhando para diante sem descuidar do retrovisor.
Não se trata disso, portanto, do debate de “formação USP” versus “formação outra”. O
problema que levanto é que tanto faz se a “pegada” de um trabalho é mais histórica que
a de outro. Pois, a questão é que, para ambos, em geral, falta criatividade – é nisso que
estamos. Os orientadores e professores ficam com medo de alunos “louquinhos” e,
então, tentando lhes dar rigor, erram a dose e acabam castrando todo mundo.

Como uma boa parte da minha geração e da subsequente foi formada sob esse tacão da
busca do rigor, geradora antes da timidez que propriamente de uma aptidão para
escrever filosofia (ou escrever qualquer coisa!), ela reproduz esse processo castrador
com o alunado atual. Eis que é aí que surge não mais só o engano, mas o autoengano. O
professor atual reza no que jamais foi escrito em Delfos, mas que muitos alunos (que já
nem mais sabem do que estou falando) podem acreditar que foi escrito sim: “engana-te
a ti mesmo”.

A minha geração fez a escola básica. Mas os alunos de hoje, no Brasil, estão entrando
na universidade, na sua maioria, sem o ensino médio. Aliás, vários, sem qualquer
ensino. São analfabetos. Mas não sabem que são analfabetos. Os professores da minha
geração, então, pegam esses alunos e… ora, não sabem o que fazer senão repetir o que
foi feito com eles mesmos! Não querem olhar para a realidade deles. Passam um texto
de Kant ou Frege ou seja lá o que for para eles. Eles não sabem ler Monteiro Lobato e
tropeçam na Folha de S. Paulo e, em alguns casos,  em qualquer revista de histórias em
quadrinhos um pouco mais sofisticada. Alguns não entendem nem mesmo a revista
Caras! Possuem um vocabulário de no máximo duas mil palavras, que é o mínimo para
falar uma língua. Não se expressam em português, não conseguem sequer contar um
filme de desenho animado corretamente e, enfim, são incapacitados para terem uma
segunda língua. Mas, logo se apresentam num mini-colóquio para estudantes bolsistas.
Apresentam-se como pesquisadores! E lá dissertam sobre “A finitude em Kant” ou “O
anti-cartesianismo explícito no parágrafo X da Ética de Espinosa”. Fazem isso mesmo!
Pasmem, fazem! Os professores deixam! Até incentivam! Alguns … orientam!

Como são analfabetos, esses alunos, munidos do antigo método de ler e citar, vindo dos
seus professores, ficam muito felizes. Pois, com a Internet, logo aprendem a recortar e
colar. Aquilo que era o rigor da nossa geração, e que levou muitos à timidez, agora
apenas serve como manutenção da estupidez e analfabetismo. Alguns professores até
percebem isso. Mas, não sabem como enfrentar o problema. Outros, não percebem
mesmo, pois estão cegos por uma formação em filosofia que não os deixou apenas
tímidos, mas os colocou na vida de modo completamente alienados. Não enxergam a
realidade do país, não aceitam que os alunos são analfabetos e, enfim, continuam dando
aula para si mesmos. No fundo, gostam de ler filosofia e aproveitam a aula para
recordar a graduação. Não são filósofos, não aprenderam a ser filósofos. Mas não
conseguem ser bons professores de filosofia, pois o que aprenderam para formar
estudantes é algo que não serve mais para o estudante sem o ensino médio, que é o que
têm nas mãos.

Isso deixa essa minha geração, uma vez no magistério superior, logo pensando em uma
única coisa: um pós-doc no exterior, para voltar a ler filosofia sossegado, sem ter de
corrigir prova. Querem fugir do aluno ou, então, querem achar algum aluno mais ou
menos alfabetizado para poderem orientar. Querem reproduzir o que foi feito com eles
próprios,  mas não conseguem. Não podem deixar ninguém tímido, pois o aluno de hoje
está aquém de perceber o que é ser tímido em filosofia. Para tal ele precisaria, antes,
aprender a ler e a escrever. Teria de ter feito a cartilha Caminho Suave. Mas não fez
nada. E assim estão os cursos de ciências humanas no país. O de filosofia, então, é o
mais louco deles.

Alguém vai fazer alguma coisa a respeito disso? Não! Ninguém. Esses alunos estarão
fazendo coisas bárbaras no Ensino Médio, logo logo. E também estarão nas ANPOFs da
vida, apresentando “papers”. Os seus professores, então, no lugar dos grandes mestres
do passado, estarão lá, aplaudindo o “paper” dos seus orientandos. Só que com uma
diferença, se a ANPOF de hoje já é uma coisa bem esquisita e chata, a desse tempo que
logo estará chegando será a farsa da mediocridade.

Mas, acreditem, na abertura desses eventos, teremos lá sempre os mesmos, falando


coisas que agora, dado a idade, nem eles mesmos entendem. Aguardem. No ano que
vem tem encontro desse tipo. Vá e divirta-se com o que será trágico, só trágico, pois não
tendo o Bento Prado vivo, não haverá piada, só “paper” mesmo. E nessa base, sem
timidez, só com o corte e cole dos orientados de hoje.

Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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